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ARTES PLSTICAS EM FEIRA DE ARTESANATO: VENDA, CRIAO E OS OLHOS PARA VER A ARTE*
Lgia Dabul i
I Departamento de Sociologia,
Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil
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Este artigo trata de aspecto nem sempre enfocado da arte a venda , refletin-
do sobre as formas por meio das quais ela se liga a procedimentos criativos e
a diversos atributos que costumam compor a identidade de artista, como o
carter original, individualizado e comercialmente desinteressado de sua pro-
duo. Analisando situao na qual artistas plsticos trabalham em feira de
artesanato de Fortaleza, Estado do Cear, Brasil, as aproximaes e os distan-
ciamentos das categorias artista/arte, de um lado, das categorias arteso/artesa-
nato, de outro, contribuem para a reflexo sobre o significado varivel de pro-
cedimentos vinculados venda de seus produtos, as condies nas quais se
realiza, e o quanto concorre para a diferenciao dos e entre artistas plsticos.
O fato de na operao de venda artistas plsticos aquilatarem o valor artstico
de seus trabalhos possibilita verificarmos como avaliam a prpria capacidade
de os indivduos que frequentam o espao da venda reconhecerem a qualidade
artstica desses trabalhos.
VERDADEIROS ARTESOS E VERDADEIROS ARTISTAS
A Feira de Artesanato da Praia de Iracema foi criada em 2009, em boa medida
como resultado de um processo de ordenamento, feito pela Prefeitura de For-
taleza, capital do Estado do Cear, do importante comrcio voltado para o tu-
rismo na Avenida Beira Mar,1 espao frequentado tambm para lazer e compras
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pelos moradores dos bairros valorizados da regio litornea da cidade. A partir
de presso de moradores, frequentadores e lojistas dessa rea da orla, e de
feirantes permissionrios da Feira de Artesanato da Beira Mar importante
centro de venda de produtos especialmente para turismo que funciona h d-
cadas , numeroso contingente de comerciantes ou feirantes ilegais, ou irregulares,
ou vendedores ambulantes, foram impedidos de continuar atuando na rea sem
o aval da Prefeitura, e amplo recadastramento foi efetuado. Alimentos, refrige-
rantes, brinquedos made in China, e muitos outros produtos, dentre eles pin-
turas em tela e artesanato, eram vendidos no calado da avenida, fora da rea
de cerca de 200m2 ocupada pelos boxes de permissionrios da feira. Entre os
trabalhadores impedidos de atuar na regio estavam artesos, alguns deles
ambulantes, outros atuando em pontos fixos s vezes ocupados h anos. E, den-
tre esses artesos, havia os que participavam de pequenas feiras nas imedia-
es da Feira de Artesanato da Beira Mar e por toda a orla, organizadas por
associaes de artesos e pelo Sindicato dos Artesos Autnomos do Estado do
Cear Siara.2
Atingindo outros trabalhadores alm dos artesos, no decorrer do con-
fuso e dramtico processo que reordenou o comrcio voltado para o turismo
na avenida Beira Mar3 e que concorreu para a criao da Feira de Artesanato da
Praia de Iracema, os artesos impedidos de continuar atuando na orla foram
mencionados das mais diferentes maneiras pela imprensa e pelos diversos
atores sociais e agncias envolvidos. Com frequncia foram englobados pela
categoria comerciantes irregulares ou ilegais, vendedores ambulantes, no permis-
sionrios, quando o eventual carter ilcito de sua atividade era sublinhado.
Algumas vezes foram tratados como artesos, em oposio aos vendedores de
mercadorias confeccionadas por terceiros, meros comerciantes, em alguns con-
textos especialmente aos que vendiam produtos industrializados. Finalmente,
depois de processo que contou com intensas negociaes do Siara, das asso-
ciaes de artesos envolvidas e da Prefeitura, tratamento e destino diferente
aos dos demais trabalhadores foram dados aos verdadeiros artesos, que produ-
ziam e vendiam suas mercadorias, artesanato, na avenida Beira Mar e eram
scios do Sindicato. Para eles estava sendo organizada aquela feira, a Feira de
Artesanato da Praia de Iracema, em terreno de aterro na Praia de Iracema, on-
de h movimentao de turistas e de moradores da cidade, mas em escala
muitssimo menor que a da regio da Beira Mar. E os artesos no sindicaliza-
dos que atuavam na rea da Beira Mar, e tantos outros que se interessaram,
passaram, ento, a ter que providenciar sua sindicalizao para que tambm
pudessem participar dessa nova feira.
O processo de sindicalizao dos artesos envolve um conjunto de pro-
cedimentos voltados para o disciplinamento da atividade. O Centro de Artesa-
nato do Cear, o Ceart, vinculado Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento
Social do Estado do Cear, fornece uma carteira de arteso, mediante pagamen-
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to de taxa nica e teste que consiste na elaborao, diante de avaliadores, de
produtos de uma ou duas tipologias4 por exemplo, xilogravura, cermica, ma-
deira, vesturio, couro. Trata-se da comprovao de que o candidato capaz de
confeccionar as peas, isto , de habilidade e da autoria. Uma vez dispondo
dessa carteira, o arteso estar isento de determinados impostos e liberado
para a venda de seus produtos. E poder sindicalizar-se, pagando mensalidade
ao Siara, ou participar de alguma das tantas associaes de artesos de Forta-
leza, tendo com isso, ento, acesso a diversas feiras e eventos que organizam
em espaos estabelecidos junto Prefeitura para a venda de seus produtos, e
obtendo financiamentos bancrios, dentre outras vantagens. Poder tambm
contar mais facilmente com cursos e assessorias fornecidas pelo Servio Bra-
sileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas o Sebrae e outras entidades
de apoio, que tambm organizam eventos, por exemplo em hotis, onde os
artesos podem vender seus produtos.5
Alm das contribuies para sindicato e associaes, os artesos costu-
mam ter, nas feiras permanentes, como a da Praia de Iracema, que pagar taxa
semanal para os fornecedores das cadeiras e das mesas de plstico onde os
seus produtos so expostos para a venda. Na Feira da Praia de Iracema, a dis-
posio dessas mesas e cadeiras formam alas, cada uma juntando artesos e
artesanato de uma determinada tipologia. Iniciada com cerca de 300 artesos,
participam hoje da feira em torno de 140, organizados em doze alas: calados,
bonecas, bolsas, croch, lembranas, cama, mesa, banho e tapearia,
renda, roupas bordadas e pintadas, bijuteria, alimentos tpicos, talhas
e artes plsticas.6
Nessa contabilidade incluem, portanto, os artistas plsticos, que em 2009,
no incio de funcionamento da feira, eram em torno de 50,7 com suas telas
apoiadas em toda a extensa amurada que separa a rea aterrada do mar. Hoje
no chegam a 10 os que insistiram, essa diminuio sendo atribuda, pelos
artesos e organizadores da feira, ao vento forte que vinha com gua e areia
da praia, sujando e derrubando telas, incomodando os prprios artistas e afas-
tando potenciais compradores. Segundo artistas plsticos que l permanecem,
houve primeiro uma debandada dos atravessadores, que no eram os verda-
deiros artistas, apenas vendiam as telas, e que tinham afludo com eles re-
cm-criada Feira da Praia de Iracema quando foram proibidos artistas plsti-
cos e atravessadores -, naquela operao de disciplinamento do comrcio na
orla da cidade, de permanecer vendendo telas ao lado da movimentada Feira
da Beira Mar. Mas houve tambm a desistncia de verdadeiros artistas plsti-
cos que quebraram com a transferncia para a no to movimentada Feira
da Praia de Iracema. Alguns desses artistas no vieram da Beira Mar, mas, como
diversos artesos, resolveram tambm juntar-se nova feira, providenciando
carteira de arteso junto ao Ceart, como todos os que hoje, artesos ou artistas
plsticos, vendem sua produo na Feira da Praia de Iracema.
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relativamente comum a presena de artistas plsticos em feiras de
artesanato, onde ocupam em geral reas especficas e bem situadas, que con-
correm para distingui-los dos artesos, sempre em maior nmero. Na Feira da
Praia de Iracema, no utilizam aquelas mesas e cadeiras, mas expem ao p-
blico boa parte de suas telas e quadros no cho, ou presos em armaes e
grades de ferro ou ainda apoiadas naquela amurada. Transeuntes talvez no se
deem conta da classificao artistas plsticos, usada por artesos e coordena-
dores da feira,8 e que artesos muitas vezes justificam por conta do suporte
diferenciado que os artistas plsticos utilizam: so artistas plsticos porque
pintam quadros, telas. Na verdade, essas distines costumam ser um tanto
variveis, e os prprios artistas plsticos acionam numerosos elementos para
estabelec-las, para muito alm do suporte que usam na confeco de seus
trabalhos.
Se para os artesos da Feira da Praia de Iracema parece estar naturali-
zada a presena de artistas plsticos ali, os artistas sempre tomam o local
como provisrio.9 Boa parte enfatiza no ter havido uma poltica adequada da
Prefeitura em relao aos verdadeiros artistas plsticos naquelas aes de orde-
namento do comrcio na orla, acabando por trat-los como aos atravessadores,
impedindo-os, todos, de trabalhar na Beira Mar, ou no se preocupando em
transferi-los para local to movimentado quanto: Estamos esse tempo todo
esperando um lugar melhor. Mas vamos resistindo at quando der. Ajudamos
a formar esse local. Era abandonado, no tinha nada.
Mas h os que associam o carter provisrio de sua permanncia na
feira profunda inadequao que pensam haver em um artista plstico traba-
lhar como se fosse arteso: O que eu fao no tem nada a ver com artesana-
to. Quer dizer, no tinha. Eu sou uma artista. Aqui eu estou me prostituindo.
Sabe aquele trabalho amarelo ali? J fiz uns trinta iguais.
REPETIO E CRIAO
Diferente da maioria dos artistas plsticos que esto na feira, essa artista a
considera necessria pouso depois de uma srie de problemas que teve em sua
carreira, aps anos de permanncia em pas europeu onde era vista como ar-
tista plstica, expunha em galerias e tinha seu trabalho tratado por crtica
especializada: L eu criava. Desenvolvia um trabalho, realmente. Aqui eu fao
a mesma coisa se algum pedir. Isso, para mim, artesanato. Contrapor arte
a artesanato a partir da repetitividade, do no reconhecimento nele das ope-
raes criativas da arte, parece ser operao muito frequente entre artistas
plsticos. Alguns que vendem seus trabalhos h muitos anos em local da orla
de Fortaleza conhecido como Alambrado, e que no foram afetados por aquelas
operaes de ordenamento da Beira Mar pela Prefeitura, ponderam sobre o
quanto imprprio artistas plsticos venderem seus trabalhos em feira de
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artesanato: Aqui no Alambrado s tem artista plstico, pinturas e esculturas.
Arte arte, artesanato artesanato. [...] Todo artista plstico arteso. Mas
poucos artesos so artistas plsticos. A diferena que o arteso est sempre
fazendo a mesma coisa, e o artista sempre est criando.
A noo de repetio de procedimentos de produo e de padres est-
ticos amplamente acionada em contraste com a ideia de criao, e no raro
aparece associada ao artesanato por diferentes artistas, perpassando j a for-
mao escolar de numerosos deles.10 Ela costuma ser atribuda vinculao
que a pintura e a escultura tiveram historicamente com as chamadas arts
mcaniques, em oposio s arts libraux (Nathalie-Heinich, 1996), havendo
uma correlao importante, como aponta Norbert Elias (1995), entre, de um
lado, a arte de arteso e a arte de artista, livre e insubordinada, e, de outro,
os respectivos lugares na estrutura social que artesos e artistas ocuparam ao
longo do tempo. Parte razovel da literatura sociolgica acerca da arte tambm
utiliza classificaes apoiadas em distines dessa ordem, ainda quando, como
faz Howard Becker (1982), so assinalados trnsitos e continuidades de fato
entre arte e artesanato.11 O atributo da criatividade sempre remetido ao ar-
tista, ao arteso sendo referidas principalmente as funes utilitrias de sua
produo e o virtuosismo de sua prtica.
Para a maioria dos artistas plsticos que trabalha na Feira da Praia de
Iracema ao lado de artesos, a oposio arte/artista x artesanato/arteso pare-
ce no operar de maneira to enftica, afora quando indagamos a respeito: Na
verdade, sou trabalhador da arte, um operrio da arte. Mas tambm sou artista
plstico. Sou arteso e artista. Sou os dois. Marcando sua origem social que
os remeteria a trabalhos braais no fosse, segundo afirmaram, o dom que
teriam insistido em assumir e desenvolver , e a necessidade de produo pa-
ra a sobrevivncia como condio que em alguma medida os aproximaria dos
artesos, seus depoimentos sublinham o carter no necessariamente repeti-
tivo de seu trabalho. Reconhecem, por exemplo, copiar em determinadas peas
estilo de hoje famoso pintor nordestino que vive em Miami, identificadas fa-
cilmente e procuradas por compradores e para cuja confeco mobilizam, in-
clusive, a ajuda de seus familiares, o que no costuma ocorrer com seu prprio
trabalho. Alguns no assinam essas peas, diferenciando-as daquelas que cria-
ram. Mas o que visto como repetio em suas telas pelos artistas plsticos
do Alambrado e mesmo por alguns da prpria Feira da Praia de Iracema, con-
siste, para esses artistas plsticos, em derivaes de criaes de sua prpria
autoria: Esses eu sempre fao desse jeito. E claro que eu assino. meu, eu
que criei. Eu que trouxe esse estilo. Ningum tinha feito antes.
A percepo da produo dos artistas da Praia de Iracema como repro-
duo de procedimentos, de peas e padres o que tambm a literatura so-
ciolgica costuma reconhecer no artesanato aparece para boa parte desses
artistas como acusao descabida, ou engano derivado de incompetncia para
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se perceber variaes no seu trabalho pictrico. Um desses artistas demonstra,
analisando diversas das suas telas estilo postal, que retrata paisagens litor-
neas com coqueiros e jangadas luz da lua, muito procurado por turistas e
por cearenses mesmo, variantes que considera fundamentais: Eu mudo o
nmero de jangadas, a cor, formas. Eu tento uma coisa, tento outra. Veja a di-
ferena. Nunca a mesma coisa. Se olhar bem, at o tamanho diferente. No
cpia. Quem diz que cpia porque no sabe ver a diferena, no sabe
nada de arte. E orienta: Toda vez que voc achar que um artista est se repe-
tindo, veja se [...] ele no est repetindo, mas para mudar.12
Dentre os que sublinham o carter repetitivo da produo desses artis-
tas esto alguns vendedores de telas, os chamados por eles de atravessadores
que atuam em muitos pontos da cidade, como os regularizados em boxes na
Feira da Beira Mar. Esses comerciantes por vezes equiparam a produo das
telas que recebem inclusive dos artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema
a qualquer trabalho mecnico e desqualificado: O cara pinta dez telas com
jangada, tudo igual. Vendeu, girou: traz mais dez. Podia estar vendendo milho,
mas aprendeu a pintar tela. No arte, no mximo, no mximo, arte comer-
cial. A generalizao dessa prtica de repetio, segundo alguns desses ven-
dedores, atingiria mesmo artistas do Alambrado, ciosos por diferenciar sua
produo do artesanato e do trabalho de artistas plsticos como os da Feira da
Praia de Iracema: Fala, fala dos outros, mas repara: se ele vende um quadro,
vai l no dia seguinte e vai ver que aparece pendurado outro igualzinho, a
mesma coisa.
Para um dos artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema, esse tipo de
avaliao da sua produo feita pelo pessoal do Alambrado,13 alm de no
fazer justia qualidade das telas, corresponde ao desconhecimento da impos-
sibilidade de repetio na arte: Nem que se queira, se copia um trabalho. Vai
ser sempre diferente. Artesos tambm, salientando seus prprios limites
tcnicos, indicam a incapacidade de qualquer artista ou arteso repetir um
trabalho: Quem disser que faz dois trabalhos idnticos, est mentindo. Mesmo
quem copia do outro no faz igual. Isso impossvel. Para uma artes, tudo
uma questo de interesse de quem observa e avalia os trabalhos: Se eu venho
aqui e quero dizer que arteso faz tudo igual, essas minhas bolsinhas, por
exemplo, todas iguais, eu vou ver isso. Mas eu posso ver tambm as diferenas,
s as diferenas, se eu quiser. Cada uma uma.
Ao verem sugerido que o trabalho artesanal estaria baseado na cpia, ou
que a prtica de artistas plsticos que trabalham na Praia de Iracema possuiria
um carter artesanal, e por isso reprodutor, artesos e artistas da Feira da Praia
de Iracema reagem especialmente afirmando essa impossibilidade de repetio.
Contudo, noutros contextos, ambos, artistas plsticos e artesos, enfatizam o
quo inventivo seu trabalho. Demoram-se em detalhes ao indicar suas cria-
es, modelos, texturas, estabelecendo a prpria natureza sobretudo dificul-
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dades na manipulao do material ou da encomenda como deflagradoras de
inovaes no que fazem. Elizabeth Hallam e Tim Ingold (2007) descrevem mui-
tas das dificuldades no reconhecimento, tambm na arte, de processos de trans-
formao que acompanham procedimentos de improviso, no ditados por in-
tencionalidades explcitas prvias.14 Atentam para o quanto se distanciam do
que tomamos hoje por criatividade, normalmente ocorrncia projetada e de
aparncia sbita, contrastiva em relao a prticas e padres precedentes, e
altamente individualizada. Mas, para artistas e artesos, esses processos cria-
tivos adaptados, por assim dizer, quelas exigncias que indicam referncias
a tipologias amplamente reconhecidas,15 adequados, portanto, a atividades que
resultam na venda de seus produtos de modo a garantir sua sobrevivncia, no
dariam conta de todas as suas experincias artsticas e criativas.
Ao contrrio do que costumamos considerar, o mpeto criativo perpassa
a experincia de trabalho desses artesos e de artistas cuja produo perce-
bida to comumente como repetitiva. So numerosos os relatos de situaes,
deflagradas pelas mais diferentes razes, que os levam utilizao de proce-
dimentos, produo de peas e imaginao de resultados os mais inusitados.
Uma artes, por exemplo, contou que acorda s vezes mais cedo para poder
confeccionar uma pea que, do nada, disps-se a inventar: Eu fico como que
agarrada nela. Fugindo consideravelmente do tipo de artesanato que costuma
produzir, ata-se, contudo, sua feitura, horas e horas na oficina que tem em
casa, a ponto de o marido perguntar se no vai voltar a trabalhar: E tenho
mesmo que largar tudo e voltar para o meu trabalho, seno, no tenho o que
trazer. Indagada se colocaria venda a tal pea na feira, nega, contundente, a
possibilidade: no tem nada a ver uma coisa com a outra.
Tais experincias no compem o discurso primeiro sobre processos de
criao e de inveno que artesos e artistas plsticos da Feira da Praia de
Iracema apresentam, nem essas peas especialssimas s quais chegam so
trazidas para a feira. Mas no apenas para alguns ocorrem com frequncia,
como so bastante prazerosas. Eu chego a pagar a minha diria para fazer
esse tipo de trabalho. Por isso difcil acontecer de ficar nele como eu at
queria. E nunca ia trazer para a feira. Iam pensar que eu estou louco. Ia cobrar
quatro mil, cinco mil, por um quadro. Ningum aqui pagaria,16 afirma um ar-
tista plstico da Feira da Praia de Iracema. E retoma aquela reflexo sobre a
inexistncia de olhos apropriados dos frequentadores daquele espao para
reconhecer e ponderar o valor de um trabalho com essas caractersticas.
A excepcionalidade dessas peas recai, em primeiro lugar, no quanto
mobilizam tempo, ateno e interesse de artistas e artesos que as confeccio-
nam.17 Reside tambm no prprio material e nos procedimentos de feitura: So
feitas a leo. Todas as que eu trago so de tinta acrlica. As que eu fao por
fora so a leo, que demora a secar e tudo. S isso j traz dificuldades. Tem que
esperar secar e tudo. Alm disso, segundo o que artesos e artistas plsticos
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da Feira da Praia de Iracema afirmaram, por meio dessas peas querem dizer
algo, h alguma mensagem de ordem distinta da que pretendem comunicar por
meio dos demais trabalhos que vendem: Todas as que eu assino tm uma
mensagem. Mas nessas eu trago tudo da minha origem. rvores, os animais de
l, tudo, explica um artista plstico cujos trabalhos na feira habitualmente
tematizam itens por completo diferentes. Se todos os trabalhos artsticos e
artesanais possuem uma mensagem, esses trabalhos extraordinrios possui-
riam significado no convencional nem de todo controlado pelo seu produtor,
e, por isso, alm do espanto que lhes causam, exigiriam outros pblicos e es-
paos de exposio.18
VENDA E O LUGAR DO ARTISTA
Alguns artistas plsticos, como os que expem em galerias e centros culturais
de Fortaleza, e estudiosos, associam com muita frequncia a cpia, a repetio,
a padronizao que reconhecem no artesanato e na arte encontrada em feiras,
venda, vetor que conduziria a confeco de objetos, em processo contrrio ao
que daria lugar arte, voltada para a criao. No limite, h identificao dessas
ideias com a tambm amplamente difundida que prope que o artesanato seria
comercial enquanto a arte seria gratuita, submetida inteiramente fantasia
individualizada do artista, ideia qual costumamos aderir, nas Cincias Sociais,
com a facilidade do reconhecimento da sobrevivncia como motor importante,
e incondicional, da produo artesanal e artstica das classes populares.19
No Alambrado, um artista plstico pode eventualmente ser assemelha-
do a artesos por seus colegas, como a insinuao de que produz a mesma
coisa sempre, porque venderia com facilidade. De fato, na chamada arte, a
produo e a venda costumam ser, idealmente, concebidas como operaes
separadas, e rigidamente hierarquizadas, o artista devendo isentar-se de pre-
ocupaes comerciais. E parece consistir em regra o artista plstico estar apar-
tado das situaes de apresentao de sua obra, ainda aquelas no comerciais,
como exposies em museus, centros culturais e galerias, exceto em algumas
circunstncias, como em certas montagens de exposies que exigem decises
atribudas a ele e nas ocasies rituais de vernissage.20 Tudo indica, de fato, com-
por a experincia no campo artstico a incorporao da convenincia e legiti-
midade do afastamento do artista das situaes de venda de seu trabalho.
Aquela artista plstica da Feira da Praia de Iracema que demonstrava profundo
descontentamento com a repetio de seu trabalho para atender ao gosto e
demanda de clientes, assemelhando-a prostituio, no participava nunca da
operao de venda: Meu marido vem comigo para a feira para isso. Recebe e
d troco para os clientes. Tudo com ele. Eu no toco em dinheiro.
Nas feiras de artesanato, no raro o arteso est presente vendendo21 e,
em muitas situaes, tambm trabalhando na confeco de seu produto bol-
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sas, enfeites de arame, bijuterias, trabalhos em renda e croch etc. Uma das
coordenadoras da Feira da Praia de Iracema explicou que artesos no tm
estoque; para terem o que vender, tm, muitas vezes, que fazer aqui, e me
conduziu por muitas mesas para v-los trabalhando uma senhora confeccio-
nava bolsa com colega ao lado que aprendia, ento, determinado acabamento,
um senhor fazia enfeites de arame para turistas que diziam as palavras que
queriam ver desenhadas na pea, jovem montava um colar etc. Essa juno de
esferas para as artes plsticas to frequentemente separadas estimulada na
feira: Elas trazem a almofada, tudo. para o pessoal saber como faz a renda
de bilro, a coordenadora agrega a informao quela sobre a falta de estoque.
Agncias, como o Ceart, e lojas, hotis e instituies que viabilizam a produo
e a venda do artesanato no Cear tambm propem a presena do arteso
trabalhando ao lado das peas que vende. Argumentavam que o turista gosta,
que o comprador quer ver o arteso trabalhando a pea, certificar-se de que
o processo artesanal e no industrial , autntico.22
Na Feira da Praia de Iracema muito comum os artistas plsticos tam-
bm trabalharem na feitura de suas telas enquanto fazem suas vendas. Atri-
buem a pintura, em geral em tela, j com armao ou no, disposta no cho,
nessas condies inadequadas, falta de tempo para levar em nmero sufi-
ciente trabalhos j finalizados. Nessas situaes em que o artista pinta na feira,
contudo, exerce uma atrao especial, principalmente sobre crianas, para o
acompanhamento de seus procedimentos de manipulao do material e de pin-
tura, e para a observao de suas peas j dispostas para a venda. A utilizao
do espao de venda para a produo de suas telas contradiz ideia amplamente
difundida junto a artistas plsticos, inclusive alguns do Alambrado, e ao senso
comum, de que o artista plstico, alm de no dever envolver-se com as si-
tuaes de comercializao de seu trabalho, muito menos deveria produzi-lo
durante a venda. O cliente, por seu turno, no teria ento acesso nem ao artista,
nem a como o trabalho foi produzido. Haveria, em alguma medida, resguardo
em relao s circunstncias de criao, individualizadas, ntimas, libertas de
constrangimentos, nas quais, nelas sim, os artistas estariam verdadeiramente
implicados.
O SENTIDO DA VENDA E A HIERARQUIA DE TUDO
A venda, na realidade, tanto para artistas plsticos como para artesos, valo-
rizada para alm do ganho pecunirio direto que proporciona, isto , da obten-
o de recursos para a sua sobrevivncia e para a reposio do material e outros
gastos com o trabalho artstico e artesanal. Ela tambm atesta a aceitao, e
por isso o valor, propriamente, da sua produo.
Os diferentes mecanismos de aferio da qualidade artstica do trabalho
dos artistas plsticos, e dentre eles a venda, esto vinculados s suas distintas
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trajetrias. Para os artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema, segundo o que
indicaram, a venda constitui o referencial mais importante para a apreciao
do valor de seus trabalhos. J no Alambrado, alguns artistas tm laos mais di-
retos com o campo artstico, participando de exposies em centros culturais e
galerias, no mercado de arte contempornea, candidatando-se e eventualmente
ganhando prmios, tendo sucesso em selees que, por exemplo, os levam a ver
cpias de seus trabalhos impressas em capas de catlogos telefnicos do estado.
No Cear, as instncias de aceitao do artesanato so particularmente
numerosas, e dizem respeito, dentre outras, possibilidade de os artesos con-
seguirem colocar ou expor seus trabalhos em determinadas lojas e feiras,
obter financiamento, receber apoio tcnico, convites para participar de expo-
sies e feiras organizadas por hotis, agncias do estado ou do governo fede-
ral, Sebrae, sindicatos e associaes. Artesos j com reconhecimento pblico
ou mestres da cultura,23 ainda quando eventualmente prescindem desses me-
canismos de aceitao, ou dispem de fato de outros, por exemplo, que vincu-
lam sua produo arte como estudos acadmicos, abordagem por mdias,
aquisio de peas por colecionadores ou instituies de arte, requisio de
trabalhos para exposies , permanecem considerando a venda, e muito dire-
tamente o preo de venda, indicativo fundamental para a avaliao de sua obra
e atestado de seu valor. Para um mestre da cultura, seleiro conhecido interna-
cionalmente, consiste na prova mais importante desse valor, e a que o deixa
mais feliz.
O estabelecimento do preo, bem como sua manuteno frente a tenta-
tivas de regate-lo por parte de compradores, compe o valor tambm artstico
das peas vendidas por artesos e artistas. Matria de preocupao da coorde-
nao da Feira de Artesanato da Praia de Iracema, a orientao dada aos arte-
sos de manterem o preo de suas peas ainda quando os compradores in-
sistem em baix-lo: Turista s quer saber do preo baixo. Eu converso muito
com eles [artesos]. S quem fez que sabe quanto vale, o trabalho que deu, o
tempo que levou, a importncia daquele trabalho. Em que pese a generalizada
prtica do regateio, e do prprio oferecimento por artesos de seus trabalhos
a preos mais baixos que os inicialmente anunciados por vezes frente pos-
sibilidade de o comprador levar nmero maior de peas , a manuteno dos
preos permanece tema bastante tocado por artesos e artistas plsticos da
Feira da Praia de Iracema quando tratam do valor artstico do que produzem.
No baixar o preo estipulado para suas peas aparece de fato como
operao associada pelos artistas e artesos ao valor que atribuem a elas. Aque-
les trabalhos excepcionais de artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema s
poderiam ser vendidos a preo completamente impraticvel, e para muito alm
do tanto de tempo e de material gastos na sua feitura. No Alambrado, muitos
artistas, ao demarcarem a diferena de sua situao frente de artesos e de
artistas que vendem seus trabalhos em feiras de artesanato, afirmaram jamais
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negociar o valor do que vendem: Prefiro no vender. Mas o que eu peo, aca-
bam dando. No demora tanto e compram.
O interesse, e assim a aquisio de seus trabalhos pelo preo que estipu-
lam, vinculado por artesos e artistas plsticos no apenas ao poder aquisitivo,
mas especialmente capacidade de os indivduos avaliarem adequadamente
o que veem. Essa associao teria a ver com o tipo de pblico que frequenta
as feiras e tambm a orla da Beira Mar, bastante diversificado e, segundo eles,
poucas vezes qualificado, ou culto, para quem nem sempre o valor propria-
mente artstico dos trabalhos devidamente aquilatado. Eu no pinto para
gringo peo, dizia um artista plstico do Alambrado. Meus quadros exigem
conhecer arte, ter um mnimo de critrio, completava. Segundo artistas que
vendem nesse espao, a imensa maioria de turistas estrangeiros que visita
Fortaleza e se interessa pelos quadros que expem formada por braais, que
preferem justamente trabalhos que representam jangadas, coqueiros ou um
Lampio: A o camarada vai botar na parede da sala dele e dizer: Estive l.
O fato de exporem em feiras de artesanato apresentado como inc-
modo para os artistas plsticos que no consideram ser esse um lugar apro-
priado para a venda de objetos de arte, e, para alguns, mesmo da arte comer-
cial, porque voltado para pblico altamente diversificado e bastante desqua-
lificado, praticamente rua: Quando meu empresrio me pediu para vender
na rua, comeou a no dar certo. Vendia muito, mais que nas galerias, mas
desvalorizou. Galeria galeria. Rua rua. Desvaloriza. Da eu voltei para o
Brasil, dizia a artista plstica profundamente insatisfeita por vender seu tra-
balho em feira de artesanato, explicando por que sua carreira no tinha dado
certo depois de perodo de sucesso em pas europeu. Na realidade, a galeria
costuma ser aventada por muitos desses artistas plsticos como local ideal, se
no para a venda de toda a arte que produzem, ao menos daquela arte que
resulta de processos criativos especiais, como os que tratamos anteriormente.
Para alguns artistas plsticos, como vimos, seu envolvimento direto na
venda do trabalho parece j indicar tensa necessidade de abrir mo daquele
lugar do artista voltado exclusivamente para a criao. Ao lado disso, os espa-
os para a venda so valorizados ou desvalorizados por eles por meio de dife-
rentes critrios. Algumas avaliaes dos espaos dizem respeito s condies
de exposio para os passantes, o conforto para os que permanecem horas
seguidas vendendo seus produtos, a organizao da infraestrutura da feira e
higiene, propaganda, visibilidade e acesso para, especialmente, turistas.24 Pre-
ferem, por isso, uma feira a outra, gostariam de estar nesta ou naquela. A Feira
da Praia de Iracema avaliada como pouco frequentada, mas mais organizada
e exclusiva isto , sem a presena de ambulantes que os espaos onde
vendiam seus trabalhos na regio da Beira Mar.
Suas oficinas, ou seus espaos,25 locais onde produzem boa parte de seus
trabalhos, so muitas vezes mencionados como lugares algo superiores feira
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de artesanato, e onde eventualmente seus trabalhos mais interessantes seriam
procurados. Artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema com frequncia
referem-se a galerias como os espaos nos quais poderiam encontrar pessoas
dispostas a compreender o significado e capazes de aferir o valor do seu traba-
lho. Origem social, poder aquisitivo e o local de frequentao so associados
por esses artistas ao possvel interesse e eventual aquisio de seus trabalhos
mais especiais, em geral por pessoas das classes abastadas: Tem pessoas que
sabem at se aproximar de uma obra de arte, sabem como chegar nela. Devagar.
Em silncio. Calmos. Os caras aprenderam a procurar, aprenderam a ver. Aqui
na feira, tem vezes que nem se interessam por quem fez. Sobre o acesso s
galerias, afirmam nunca terem tido, alguns esperando vivamente a sorte de
vir a expor seus trabalhos nelas.
Sua origem social, e respectiva necessidade de trabalhar para a sobrevi-
vncia, acionada como fator que os levaria a no ter contato com as galerias:
No, no conheo o pessoal de galeria. E eu gostaria de fazer uma pea, uma
assim totalmente nova, passar outro tempo e fazer outra pea, s fazer essas
peas com a minha histria. Mas tenho que vender meus trabalhos aqui na
feira, a bem dizer, um local humilde. Nesse ponto, aquilo: nesse ponto eu no
sou um artista, nesse ponto eu sou mais um trabalhador. E eu sou um artista.
A hierarquia dos lugares de exposio , assim, correlacionada a dife-
renciaes importantes dos expositores, de quem observa e compra, e do pr-
prio valor do que exposto. A esse respeito, fatos ocorridos durante entrevista
para esta pesquisa foram apontados por artista plstico da Feira da Praia de
Iracema como comprovao da distncia entre o que vive e a situao ideal que
presume encontrar em galerias: uma criana comendo pipoca passava o dedo
em uma de suas telas enquanto os pais, distrados, comentavam um outro
trabalho exposto; turista agachava-se ao lado de uma enorme tela retratando
ndia, posava, e seu companheiro fazia foto, sem pedir licena ao artista.
VENDA NOS OLHOS?
Para quem artistas e artesos que trabalham na Feira da Praia de Iracema pro-
duzem consiste em vetor que perpassa no apenas o processo criativo por meio
do qual por vezes desatam percursos bastante definidos de elaborao de seus
trabalhos. Esse pouso, o da venda, est amarrado a lugares para os quais afluem,
ou poderiam afluir, reais ou potenciais compradores, isto , admiradores de sua
arte. Que estes indivduos interessados existem, embora possam circular por
espaos desconhecidos, ou aos quais artesos e alguns artistas no tm acesso,
como galerias, fato que sustenta boa parte das iniciativas que resultam em
uma produo que, como vimos, seus criadores avaliam como completamente
inadequada frente sua rotina de trabalho e ao local onde, e para quem, efe-
tivamente vendem suas peas.
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Desintegrada como ltima operao da arte para muitos que se debru-
am sobre a arte contempornea, ou a arte acessada por especialistas e classes
abastadas, a venda opera como dimenso constitutiva da arte produzida por
artesos e artistas plsticos que trabalham em feiras de artesanato. Para mui-
to alm da necessria e inexorvel repercusso que tem para a sua sobrevivn-
cia, e para a prpria continuidade de sua produo, por meio da venda que o
valor de seu trabalho pode ser aventado, e com ele a prpria oportunidade da
comunicao que desejam e presumem instituir no repasse das peas que
criam. Se h, ali, e naquele momento, olhos que possam verdadeiramente re-
conhecer e assim compor o valor do que produzem, isso ir muitas vezes de-
terminar o que fazem e se continuaro a faz-lo. O fato de essa viso que
tanto almejam ser para eles, de alguma maneira, atributo de indivduos nor-
malmente oriundos de classes privilegiadas, que circulam por lugares nem
sempre acessveis a seus trabalhos, e a eles mesmos, consiste em problema
que muitos indicam ainda no saber como resolver.
Parece haver algo inconveniente em imprimir nfase no aspecto comer-
cial da arte quando nos detemos tambm em elementos propriamente criativos
e nos sentidos atribudos pelos artistas sua produo. Com efeito, no de
todo incomum estudar o artesanato e a arte produzida por artistas das classes
populares sem que consideremos a venda como momento, operao, dimenso
crucial. Ao nos abstrairmos dessa dimenso, analisamos a arte de artesos e
artistas plsticos que vendem seus trabalhos na rua a partir do ponto de vista
do artista despreocupado quanto aos aspectos vinculados ao comrcio de suas
criaes. De fato, no raro nos estudos sobre os artesos e sobre os artistas que
trabalham em feiras de artesanato, a venda ou esquecida ou desvalorizada
como espcie de invaso interesseira que diminuiria o valor verdadeiramente
artstico do seu trabalho. Ao contrrio do que vimos, em anlises desse tipo
essa arte poderia ento existir independente da sobrevivncia de seus produ-
tores e do seu desejo de controlar e expandir o alcance do que querem, com
ela, comunicar.
Recebido em 21/05/2013 | Aprovado em 12/10/2013
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Lgia Dabul doutora em Sociologia, com ps-doutorado em
Antropologia Social na School of Social Sciences da University of
Manchester. Professora Associada do Departamento de Sociologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordena o Nectar
Ncleo de Estudos Cidadania, Trabalho e Arte, e est vinculada aos
Programas de Ps-Graduao em Sociologia e em Estudos
Contemporneos das Artes da UFF. pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq),
tem pesquisas sobre pblicos das artes, processos criativos,
configuraes de prticas e identidades de artista. autora de
Sociabilit et les sens de lart (2014) e, com Rodrigo Barreto, Fim
de linha na arte: pintores retratistas de rua (2014, no prelo).
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NOTAS
* A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o apoio
do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico
e Tecnolgico e da Faperj - Fundao Carlos Chagas Filho de
Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Agradeo a
Peregrina Capelo, a Maria Sylvia Porto Alegre, a Dodora Gui-
mares e a Ismael Pordeus Jr. pelas indicaes preciosas para
essa pesquisa, naturalmente eu me responsabilizando por
seus resultados. Seguindo acerto feito com artesos e artis-
tas plsticos entrevistados, evitaremos aqui, em muitos mo-
mentos, apresentar dados que permitam sua identificao.
1 Um turista receber sugestes, j em mapas distribudos
no Aeroporto Internacional Pinto Martins pela Secretaria
de Turismo do Governo do Estado do Cear, e tambm no
hotel e de moradores da cidade, para conhecer a Feirinha
da Beira Mar, ou Feira de Artesanato da Beira Mar, ou
ainda Polo Artesanal da Beira Mar, dentre outras desig-
naes: Quem vem a Fortaleza no pode deixar de conhe-
cer esse carto-postal, lemos em um mapa, referindo-se
a toda rea da Avenida Beira Mar. Ver Mapa No Cear, voc
j tem uma companhia para onde for: a alegria, Secretaria de
Turismo do Cear, s/d.
2 So divergentes as informaes a respeito do nmero e da
organizao dessas pequenas feiras. Membros de associao
de artesos, do sindicato e outros artesos entrevistados
informaram ora que se tratava de apenas uma associao,
ora que eram diversas, ou ainda que somente o sindicato
organizava as feiras de artesanato da orla antes da opera-
o de regularizao do comrcio dessa rea da cidade.
3 Dentre os diversos acontecimentos que levaram nova or-
ganizao do comrcio da rea, foram noticiados ampla-
mente a greve de fome de vendedora ambulante, que per-
maneceu deitada dentro de caixo por dias, e o protesto do
presidente da Associao dos Feirantes da Grande Fortale-
za. Amarrado a uma cruz, manteve-se durante alguns dias
na calada da avenida Beira Mar manifestando-se contra o
impedimento dos comerciantes associados ao seu sindi-
cato e no cadastrados pela Prefeitura de venderem mer-
cadorias na rea, e contra o tratamento privilegiado con-
cedido aos artesos, remetidos para a ento em formao
Feira de Artesanato da Praia de Iracema.
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4 Amplamente utilizado por artesos, pesquisadores, com-
erciantes, agncias e diversos atores sociais envolvidos no
estudo, produo e distribuio do artesanato do Cear, o
termo tipologia corresponde, nas situaes tratadas neste
estudo, mais a tipo de artesanato que ao sistema usado
para classific-lo. Consistem, ento, cada uma das tipolo-
gias, em categorias que abrangem e diferenciam peas arte-
sanais, embora variando consideravelmente de contedo
de acordo com o contexto de sua utilizao. As tipologias
podem estar remetidas de diferentes maneiras, por exem-
plo, a matrias-primas, tcnicas, tradies, regies, medi-
das e valores, e agregadas ao importante sistema de disci-
plinamento, produo e circulao do artesanato cearense.
5 Artesos entrevistados fazem crticas a respeito do acesso
diferenciado que o Siara e associaes de artesos propi-
ciam para este ou aquele grupo de associados, alguns no
sendo informados de diversas oportunidades, por exemplo,
de participao em cursos e feiras.
6 O nmero e a composio das alas variaram desde a cria-
o da feira, quando havia nove delas. Tambm a forma de
design-las tem variado com o tempo. Mesmo hoje, entre
participantes, coordenadores e curadores (ver nota 8), h
inmeras maneiras de nome-las. Ala dos quadros, ala
das telas, ala dos artistas, foram designaes da ala dos
artistas plsticos, forma que, na imprensa, aparecia com
mais frequncia quando da criao da feira e que ainda
hoje muito utilizada.
7 H verses de artistas plsticos diversos, e de artesos que
participam desde o incio da feira, que afirmam terem sido
cerca de 100 os artistas plsticos que acorreram para l.
8 A organizao da feira inclui coordenadores, incumbidos da
administrao e da relao da feira com o sindicato, e os
curadores das alas, que controlam a qualidade e a adequa-
o das peas levadas para a venda por artesos aos crit-
rios estabelecidos pelo sindicato para que sejam admitidas
na feira. Durante a pesquisa, tivemos notcias de negocia-
es de artesos, curadores e sindicato em relao mu-
dana de algumas caractersticas das peas, como elemen-
tos de brilho em bijuterias, que fugiriam ao padro regional,
ou rstico, mas que facilitariam muito a aceitao do p-
blico e, ento, a venda. As artess que trabalham com bi-
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juteria estavam no ponto de desistir de vir. Agora vendem
muito mais, esclarecia uma coordenadora.
9 Segundo artistas e artesos entrevistados, o desejo de sair
da feira no tem a ver com a relao que mantm com os
demais artistas e artesos que l tambm expem seu
trabalho, de colaborao e amizade, construda em mais de
dois anos de convvio. De fato, presenciei diversas demons-
traes de confiana e proximidade, por exemplo artistas
plsticos utilizando em suas vendas mquina para carto
de crdito de arteso, participando de conversas e come-
moraes, na feira, de aniversrio de artesos, e dividindo
a merenda com eles.
10 A extenso dessa diferenciao de fato larga, incluindo
ambientes da chamada arte contempornea. Em curso de
pintura contempornea em grande escola de artes visuais do
Rio de Janeiro, o professor, um artista plstico, reconhecia
nfase no tratamento de materiais pelos alunos com pr-
tica em artesanato, e a relacionava a uma mecnica ma-
nual, automatizao de procedimentos que reproduzem
um padro decorativo, sem que o aluno se preocupe em
criar uma linguagem com a pintura (Dabul, 2001: 125).
11 H. Becker atm-se a duas possibilidades: In the first case,
participants in an art world borrow from or take over a
craft world; in the second, a mature art world begins to
exhibit some of the characteristic features of craft worlds
(1982: 272).
12 Manoel de Barros (1997: 11), poeta, define esse processo:
Repetir repetir at ficar diferente./Repetir um dom do
estilo.
13 Artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema apresenta-
ram avaliaes muito distintas dos artistas do Alambrado.
Alguns os reverenciam, os pioneiros, cuja permanncia
segura de seu ponto de exposio e venda admiram como
forma de resistncia quela ao da Prefeitura que atingiu
tantos artistas. Outros os veem como de salto alto, dis-
postos a mostrar alm do que tm, achando-se superiores
a todos os outros artistas que trabalham na orla da cidade.
14 No consistindo em nosso objeto, podemos, contudo, re-
marcar o carter generativo que a improvisao assume na
arte, determinando efetivamente possibilidades criativas
que se estabelecem e se fixam por algum tempo, e assim
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feies mais permanentes dos seus resultados. A esse res-
peito, ver Robert Faulkner (2006). Noutra modalidade de
pesquisa, focada mais diretamente no work itself (Becker,
2006), talvez partssemos justamente da relevncia desses
processos de adaptao a demandas de clientes e s do
material para a constituio da arte.
15 Tambm no podemos nos deter nas operaes de mani-
pulao e apresentao, pelos artesos, de repertrio ava-
liado amplamente por agncias que estimulam a produ-
o e venda de artesanato, como Sebrae e Ceart, de insti-
tuies como o sindicato e associaes, e atores sociais
como estudiosos, compradores e vendedores do artesana-
to cearense como regional, autntico, rstico, artstico, cea-
rense em suas peas. Diversos pesquisadores, como Machi-
ko Kusahara (1997), indicam experincias dessa natureza
como elas prprias, contra o que normalmente concebemos
como valor artstico, a originalidade, definidoras dos atribu-
tos criativos e notveis de muitos produtos artsticos.
16 Mas artistas plsticos tambm relataram situaes de ven-
da, noutros lugares, de trabalhos frutos de devaneio e in-
tensa pesquisa. Esse mesmo artista plstico conta que um
rico fazendeiro, por outros caminhos, adquiriu por mi-
lhares de reais pea que demorou muitssimo a confeccio-
nar e que nunca exps, nem exporia, na feira.
17 E estamos aqui nos referindo a processo criativo que inclui
experincias para alm do insight, aproximando-se consi-
deravelmente s do devaneio, ou entusiasmo. A respeito des-
sa distino, ver Fernando Muniz (2011).
18 No pudemos avaliar nessa pesquisa as implicaes de ar-
tesos e artistas plsticos que trabalham em feiras utiliza-
rem o termo expor para referirem-se a vender ou co-
locar ou dispor suas peas em algum espao para comer-
cializ-las.
19 Ver em H. Becker (1982) o quanto a submisso ao agrado de
um contratante ou cliente compe a categoria artesanato e
moveria trnsitos da arte em sua direo. Ver em Pierre
Bourdieu (2007) a proposio do quanto o gosto das classes
populares estaria identificado a uma esttica da necessi-
dade, enquanto o das classes abastadas estaria justamen-
te correlacionado a uma noo de liberdade em relao s
demandas da sobrevivncia.
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20 Ver consideraes a respeito de mudanas na chamada ar-
te contempornea em relao ao contato do artista com
seu pblico em Dabul (2011)
21 Na Feira de Artesanato da Praia de Iracema, trata-se de
exigncia da coordenao que a venda seja feita pelo pr-
prio arteso ou artista plstico.
22 Diversos so os registros e anlises das determinaes e
implicaes dessa simultaneidade de venda e produo de
artesanato. Ver, por exemplo, em Antonio M. C. Novaes
(2011), descrio da atuao de artesos de Juazeiro do Nor-
te, Cear.
23 Trata-se de distino atribuda, desde 2004, pelo Governo
do Estado do Cear por meio de sua Secretaria de Cultura,
a indivduos e, a partir de 2006, tambm a grupos e coleti-
vidades cuja prtica corresponderia a uma tradio cultural
que mereceria ser valorizada e preservada.
24 Artesos e artistas plsticos da Feira da Praia de Iracema
indicam recente e importante mudana na sua clientela,
dada a diminuio do nmero de turistas europeus e au-
mento dos brasileiros e, mais que isso, a cada vez mais
frequente compra de telas e outras peas por moradores
de bairros populares prximos.
25 A maioria dos artistas plsticos da Feira da Praia de Irace-
ma refere-se a seu espao de trabalho fora da feira como
oficina, tal como os artesos, ou espao. Muitos avisam que
no tm ou no se referem a ele como ateli, como fazem
muitos artistas plsticos, como alguns do Alambrado. In-
dicam tambm, com frequncia, que sua oficina funciona
na sua casa.
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ARTES PLSTICAS EM FEIRA
DE ARTESANATO: VENDA, CRIAO E
OS OLHOS PARA VER A ARTE
Resumo
Este artigo trata de aspecto nem sempre enfocado da arte,
a venda, refletindo sobre as formas por meio das quais ela
se liga a procedimentos criativos e a diversos atributos que
costumam compor a identidade de artista, como o carter
original, individualizado e comercialmente desinteressado
de sua produo. Analisando situao na qual artistas pls-
ticos trabalham em feira de artesanato de Fortaleza, Esta-
do do Cear Brasil, as aproximaes e os distanciamentos
das categorias artista/arte, de um lado, das categorias arte-
so/artesanato, de outro, contribuem para a reflexo sobre
o significado varivel de procedimentos vinculados ven-
da de seus produtos, as condies nas quais se realiza, e o
quanto concorre para a diferenciao dos e entre artistas
plsticos.
PLASTIC ARTS AT A HANDICRAFTS MARkET:
SELLING, CREATING AND HAVING
PROPER EyES TO SEE ART
Abstract
This paper discusses an aspect that is not always regarded
in art the sale , pondering on the ways whereby it is
linked to creation processes and to several atributes that
usually add to artists identity, such as originality , which
is individualised and not interested in commercialising
with products. By analysing a situation in which plastic
artists work at a handicrafts market in Fortaleza, state of
Cear Brazil, we discover that the similarities and differ-
ences between, on the one hand, the artist/art categories
and the craftworker/handicraft ones, on the other, play a role
when pondering on the variable meaning of procedures
associated to selling products, the conditions in which it
is done and how much it leads to distinguishing plastic
artists, not only from other artists but also among them.
Palavras-chave
Arte;
Artista plstico;
Venda;
Feira de artesanato;
Criao.
Keywords
Art;
Plastic artist;
Sale;
Handicrafts market;
Creation.