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A ANÁLISE DE HABERMAS DO PROJETO KANTIANO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO TRANSNACIONAL LA ANALISE DE HABERMAS DEL PROYECTO KANTIANO DE CONSTITUCIONALIZACIÓN TRANSNACIONAL Adriano Moreira Gameiro * Carolina Vieira Ribeiro de Assis Bastos ** RESUMO Em 1796, Kant escreveu a obra “À Paz Perpétua”. Desde então esta tem despertado um interesse universal, tanto que efetivamente repercutiu no movimento pacifista e no direito internacional. O fato de uma obra filosófica ter conseguido tal êxito, provavelmente deve-se ao seu caráter prático, ou seja, Kant acreditava na disposição da Humanidade para o progresso, por isso, escreveu um Projeto, algo para ser tornado real. O seu grande mérito de foi ser um homem à frente de sua época, ter criado uma filosofia ou direito da paz. Enquanto muitos ainda discutiam o direito de guerra, Kant almejou mudá-la, ou melhor, extinguí-la, abriu o precedente de que não haveria justificativa possível para uma guerra. À Paz Perpétua apresenta seis artigos preliminares e três artigos definitivos. Nos primeiros, Kant traz as situações que devem ser evitadas em política internacional, ou seja, as condições negativas para a paz perpétua. Já nos artigos definitivos, através de uma perspectiva mais procedimentalista, procura mostrar que a paz somente será obtida quando a Humanidade contar com uma determinada estrutura política nacional e internacional. Habermas, em 1996, celebra com entusiasmo o Bicentenário da obra de Kant e, vê naquele momento histórico não somente a atualidade, mas também a fertilidade do Projeto Kantiano. Acreditou e defendeu uma série de propostas afim de tornar uma organização supranacional, promovedora da paz e dos direitos humanos, juridicamente operante. Entretanto, a configuração atual da política e do direito internacional já não permite tanto entusiasmo. O que se percebe é um unilateralismo hegemônico de uma superpotência que não age sob argumentos * Advogado, Especialista em Filosofia Política e Jurídica e Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. ** Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

A ANLISE DE HABERMAS DO PROJETO KANTIANO DE ... · Se o ser racional distingue-se dos demais seres pela capacidade de pensar (o entendimento) e com isso de se dar fins, isto, segundo

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A ANÁLISE DE HABERMAS DO PROJETO KANTIANO DE

CONSTITUCIONALIZAÇÃO TRANSNACIONAL

LA ANALISE DE HABERMAS DEL PROYECTO KANTIANO DE

CONSTITUCIONALIZACIÓN TRANSNACIONAL

Adriano Moreira Gameiro*

Carolina Vieira Ribeiro de Assis Bastos**

RESUMO

Em 1796, Kant escreveu a obra “À Paz Perpétua”. Desde então esta tem despertado um

interesse universal, tanto que efetivamente repercutiu no movimento pacifista e no

direito internacional. O fato de uma obra filosófica ter conseguido tal êxito,

provavelmente deve-se ao seu caráter prático, ou seja, Kant acreditava na disposição da

Humanidade para o progresso, por isso, escreveu um Projeto, algo para ser tornado real.

O seu grande mérito de foi ser um homem à frente de sua época, ter criado uma filosofia

ou direito da paz. Enquanto muitos ainda discutiam o direito de guerra, Kant almejou

mudá-la, ou melhor, extinguí-la, abriu o precedente de que não haveria justificativa

possível para uma guerra. À Paz Perpétua apresenta seis artigos preliminares e três

artigos definitivos. Nos primeiros, Kant traz as situações que devem ser evitadas em

política internacional, ou seja, as condições negativas para a paz perpétua. Já nos artigos

definitivos, através de uma perspectiva mais procedimentalista, procura mostrar que a

paz somente será obtida quando a Humanidade contar com uma determinada estrutura

política nacional e internacional. Habermas, em 1996, celebra com entusiasmo o

Bicentenário da obra de Kant e, vê naquele momento histórico não somente a

atualidade, mas também a fertilidade do Projeto Kantiano. Acreditou e defendeu uma

série de propostas afim de tornar uma organização supranacional, promovedora da paz e

dos direitos humanos, juridicamente operante. Entretanto, a configuração atual da

política e do direito internacional já não permite tanto entusiasmo. O que se percebe é

um unilateralismo hegemônico de uma superpotência que não age sob argumentos

* Advogado, Especialista em Filosofia Política e Jurídica e Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. ** Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

jurídicos, tampouco éticos. Neste sentido, o presente trabalho tem por objetivo,

primeiramente, analisar a obra de Kant, sua importância e repercussão no direito

internacional. Em seguida, abordar a reformulação proposta por Habermas na década de

90 e seu posicionamento hoje, após o 11 de Setembro. Tendo em vista o impacto

produzido, pela atuação estadunidense, nas relações internacionais, este tema merece ser

debatido, pois pensar que os pressupostos do direito internacional estão prontos é uma

grande ilusão.

PALAVRAS-CHAVE: DIREITO COSMOPOLITA - CONSTITUIÇÃO

INTERNACIONAL - DIREITO INTERNACIONAL

RESUMÉN

En 1796, Kant escribiu la obra “Hacia la Paz Perpetua”. Desde entonces ella tiene

despertado um interes universal, tanto que efectivamente repercutio en el movimiento

pacifista y en el derecho internacional. El hecho de uma obra filosófica tener

conseguido tal êxito, probable deverse al suyo carácter practico, o sea, Kant acreditava

en la disposición de la humanidad hacia el progreso, por ello, escribiu algo para ser

tornado real. Su grande mérito fue ser um hombre a la frente de su época, tener criado

uma filosofia o derecho de la paz. Mientras muchos aún discutian el derecho de la

guerra, Kant almejou cambiar la, o mejor, extinguirla, abrio el precedente de que no

haberia justificación posible para una guerra. “Hacia la Paz Perpetua” apresenta seis

artículos preliminares y três artículos definitivos. Em los primeros tras las situación que

deven ser evitadas em la política internacional, o sea, las condiciones negativas para la

paz perpetua. Ya em los artículos definitivos, por medio de uma perspectiva más

procedimentalista, busca mostrar que la paz solamente será obtenida cuando la

humanidad contar com una determinada estructura política nacional y internacional.

Habermas, en 1996, celebra com entusiasmo el bicentenario de la obra de Kant y, ve en

aquelo momento histórico no solamente la atualidad, mas también la fertilidad del

proyecto kantiano. Acreditou y defendeu una serie de propuestas afin de tornar uma

organización supranacional juridicamente operante. Entremedias, la configuración

actual de la política y del derecho internacional ya no permite tanto entusiasmo. El que

percebese es un unilateralismo hegemônico de una superpotencia que no actua sob

argumientos jurídicos, tampoco éticos. Neste sentido, el presente trabajo tiene por

objectivo, antetodo, analisar la obra de Kant, su importancia y repercución en el derecho

internacional. En seguida, abordar la reformulación propuesta por Habermas em la

decada de 90 y su posicionamento hoy, depues del 11 de septiembre. Tiendo en la vista

el impacto producido, pela actuación estadunidense, en las relaciones internacionales,

este asunto merece ser debatido, pues piensar que los presupuestos del derecho

internacional están prontos es una grande ilusión.

PALAVRAS-CLAVES: DERECHO COSMOPOLITA - CONSTITUCIÓN

INTERNACIONAL - DERECHO INTERNACIONAL

INTRODUÇÃO

Desde 1796, a obra de Kant tem despertado um interesse universal, tanto

que efetivamente repercutiu no movimento pacifista e no direito internacional. Kant foi

um homem à frente de sua época, cogitou uma filosofia ou direito da paz; enquanto

muitos ainda discutiam o direito de guerra (o que é permitido ou não na guerra), Kant

almejou mudá-la, ou melhor, extinguí-la, e para tanto propôs uma estrutura jurídico-

política internacional, inédita na história do direito internacional.

Habermas, em 1996, quando da comemoração do bicentenário da obra de

Kant defende não somente a atualidade, mas também a fertilidade do Projeto Kantiano.

Neste sentido, defendeu uma série de propostas com o fim de tornar uma organização

supranacional, promovedora da paz e dos direitos humanos, juridicamente operante.

Entretanto, a configuração atual da política e do direito internacional já não

permite tanto entusiasmo. Daí o objetivo do trabalho de percorrer este caminho,

apresentado alguns conceitos de ambos autores, imprescindíveis para reflexão do direito

internacional hoje; para ao final analisar o posicionamento de Habermas após o ataque

de 11 de Setembro, que tendo em vista o impacto produzido nas relações internacionais,

merece ser debatido.

Nesse intermeio entre os dois posicionamentos habermasianos sobre o

mesmo tema, verifica-se uma proposta que permanece possível em qualquer das óticas

assumidas, que é a de formação de uma constituição para a União Européia, o que

poderia se transportar para outros povos de caráter supranacionais, autorizando assim as

constituições transnacionais.

1. O Projeto kantiano de Paz Perpétua

Bobbio relembrando o entusiasmo que a Revolução Francesa causara no

filósofo alemão Immanuel Kant, bem como na opinião pública mundial, apontou o fato

de ser o primeiro aparecimento na cena da história da disposição de um povo em buscar

uma constituição em harmonia com os então chamados direitos naturais do homem1.

Segundo Nour, quando Kant introduz o conceito de autonomia do ser

racional como a faculdade de obedecer apenas à lei dada por si próprio, torna-se

evidente o porquê do referido entusiasmo com a Revolução Francesa:

Se o ser racional distingue-se dos demais seres pela capacidade de pensar (o entendimento) e com isso de se dar fins, isto, segundo Kant, não basta, como na tradição, para fazer dele uma pessoa. Pela autonomia, no entanto, isto é, por se submeter à lei moral dada por si próprio, é que o ser racional torna-se uma pessoa, que não possui preço, mas um valor interno absoluto, uma dignidade”2.

Com base no conceito acima exposto, num contexto histórico em que a

solução dos conflitos entre os Estados soberanos não excluía a guerra como remédio e,

acreditando na disposição moral do homem para o progresso, Kant escreve, em 1796, À

Paz Perpétua. A obra tem a forma de um Tratado de Direito Internacional, na qual o

filósofo de Könisberg almeja demonstrar a possibilidade e exeqüibilidade de um projeto

de paz entre os homens, que não seja apenas um novo armistício no meio de guerras

intermináveis.

À Paz Perpétua apresenta seis artigos preliminares e três artigos definitivos.

Nos primeiros, Kant traz as situações que devem ser evitadas em política internacional,

ou seja, as condições negativas para a paz perpétua. Já nos artigos definitivos, através de

uma perspectiva mais procedimentalista, procura mostrar que a Paz Perpétua somente

1 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 475. 2 NOUR, Soraya. À Paz Perpétua de Kant: Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 11.

será obtida quando a Humanidade contar com uma determinada estrutura política

nacional e internacional3.

A crítica de Kant presente nos artigos preliminares constitui um de seus

ataques mais relevantes ao direito das gentes clássico, o qual baseando-se na distinção

entre guerra justa e injusta, justificou inúmeras agressões na história moderna. Para o

direito das gentes clássico, o direito à guerra é o meio permitido a um Estado que tenha

sofrido uma violação efetiva de defender-se e reparar a ofensa sofrida como represália,

ao invés de buscar uma restituição por meios pacíficos4.

Além do referido direito à guerra como defesa, tal concepção se fundava no

que então se chamava equilíbrio das potências na Europa, isto é, o direito de prevenção,

o qual diante de uma ameaça permitia a preparação de armamentos. Kant considera esse

equilíbrio como a casa de Swift que, construída de acordo com todas as leis de

equilíbrio, desmorona assim que um pardal sobre ela pousa5.

Quanto aos artigos definitivos, o primeiro deles considera o republicanismo

condição para o estabelecimento da paz. Segundo Kant, uma constituição republicana

está fundada nos princípios da liberdade dos membros de uma sociedade; em

conformidade com os princípios da dependência de todos em relação a uma única

legislação comum e, segundo a igualdade de todos os cidadãos6.

Para Kant, a liberdade jurídica, como autonomia, é a faculdade de obedecer

apenas a uma lei exterior à qual possa dar meu consentimento, então a única

constituição originada desta idéia é a republicana, que faz com que o Estado seja

administrado conforme as leis que um povo daria a si próprio. Isto porque, sendo uma

lei pública um ato de vontade pública, dela provém um direito que não pode cometer

injustiça a ninguém; já que é possível que se cometa uma injustiça quando se decide a

respeito de outro, mas não quando se decide sobre si próprio7. Explica Kant:

Se (como não pode ser de outro modo nesta constituição) se exige o consentimento dos cidadãos para decidir se deve ou não haver guerra, então, nada é mais natural do que deliberar muito em começarem um jogo tão maligno, pois têm de decidir para si próprios todos os sofrimentos da guerra (como combater, custear as despesas da guerra com o seu próprio patrimônio, reconstruir penosamente a devastação

3 KANT, Immanuel. À Paz Perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 29. 4 NOUR, Soraya. Op cit. p. 35-6. 5 Ibidem. p. 36. 6 KANT, Imannuel. Op cit. p. 127. 7 NOUR, Soraya. Op cit. p. 40-1.

que ela deixa atrás de si e, por fim o cúmulo dos males, tomar sobre si o peso das dívidas que nunca acaba em virtude de novas e próximas guerras) e torna amarga a paz”8.

Portanto, Kant estabelece uma relação entre a estrutura jurídica e política de

um Estado e seu comportamento em relação a outros Estados. Segundo Nour, a

Constituição Republicana é então apresentada como funcionalmente pacífica9.

O segundo artigo definitivo é assim enunciado: “O direito das gentes deve

fundar-se numa federação de Estado livres”10. Como o direito das gentes era então um

direito recíproco dos povos, essa federação poderia ser uma aliança de povos, mas não

um Estado de Povos denominada de Congresso Permanente de Estados.

Por fim, o terceiro artigo definitivo “O direito cosmopolita deve limitar-se

às condições de hospitalidade universal”11 apresenta a terceira condição positiva para a

paz.

Além de Kant ser considerado por internacionalistas a primeira reação ao

direito das gentes clássico de Grotius, Pufendorf e Vattel, até ele, o direito contava com

apenas duas dimensões: o direito estatal, ou seja, o direito interno da cada Estado; e o

direito das gentes ou o direito das relações dos Estados entre si e dos indivíduos de um

Estado com os do outro12. Numa nota de rodapé de À Paz Perpétua, Kant acrescenta

uma terceira dimensão àquelas duas: o direito cosmopolita ou direito dos cidadãos do

mundo, o qual considera cada indivíduo não membro de seu Estado, mas membro ao

lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita, o que significa dizer que:

[...] como se avançou tanto no estabelecimento de uma comunidade (mais ou menos estreita) entre os povos da Terra que a violação do direito num lugar da Terra se sente em todos os outros, a idéia de um direito cosmopolita não é nenhuma representação fantástica e extravagante do direito, mas um complemento necessário de código não escrito, tanto do direito político como do direito das gentes, num direito público da humanidade em geral[...]13.

2. A Reformulação proposta por Habermas na década de 90

8 KANT, Imannuel. Op cit. p. 129. 9 NOUR, Soraya. Op cit. p. 42. 10 KANT, Imannuel. Op cit. p. 132. 11 Ibidem. p. 137. 12 NOUR, Soraya. Op cit. p. 54-5. 13 KANT, Imannuel. Op cit. p. 140.

Tendo em vista que as conseqüências da era moderna mostram-se

crescentemente em medida global, são inevitáveis as reivindicações de direitos humanos

universais; se já Kant argumentava a favor de um direito civil universal, pretendendo

uma resposta política e jurídica à interdependência factual e irreversível entre os

Estados sobre a terra comum a todos, hoje, com o desenvolvimento da globalização que

desencadeia crises e injustiças com dimensões mundiais, o universalismo normativo se

torna ainda mais justificável14.

A idéia cosmopolita de Kant foi reconstruída na década de noventa como

orientação a uma política universal dos direitos humanos, porém, sua manipulação por

alguns Estados pode degenerar em uma moralização autodestrutiva da política, já que

quando um Estado combate seu inimigo político em nome da humanidade, toma um

conceito universal para se identificar com ele contra o adversário, em outras palavras,

reivindica para si a paz, a justiça, o progresso e a civilização, negados ao inimigo15.

Neste contexto, Habermas em sua coletânea de artigos intitulada A inclusão

do outro: estudos de teoria política, especificamente no texto A idéia Kantiana de Paz

Perpétua à distância histórica de 200 anos, retoma o projeto Filosófico Kantiano

sustentando que o mesmo não estacionou, mas passou a ser implementado pela política,

desde a iniciativa do Presidente Wilson e a fundação da Liga das Nações em Genebra,

ou seja, que após a Segunda Guerra Mundial, a referida idéia ganhou uma forma

palpável nas instituições, declarações e políticas das Nações Unidas16.

Por outro lado, Habermas defende que, o cosmopolitismo apregoado por

Kant precisa de uma reformulação, caso não queira perder o contato com a realidade,

por isso, no referido opúsculo apresenta um interesse prático no sentido de redefinir o

ideal Kantiano à luz do atual estado de coisas no mundo. Sua reformulação se orienta

em uma vertente mais propositiva, tendo em vista a reorganização do atual sistema de

organização das Nações Unidas em uma espécie de Estado Mundial e, a transformação

do Direito Internacional vigente em um ordenamento cosmopolita17.

14 BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2000, p. 53. 15 NOUR, Soraya. Op cit. p. 168. 16 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. SP: Edições Loyola, 2002, p. 199-200. 17 VELASCO, Juan Carlos. La Teoria Discursiva del Derecho: Sistema Jurídico y democracia em Habermas. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2000, p. 212.

Habermas celebra com entusiasmo a idéia Kantiana de estabelecer um

direito de alcance cosmopolita, porém, esse reconhecimento não o impede de assinalar

questões que nos separam do filósofo de Könisberg, como as experiências históricas,

que obviamente são diferentes e, o uso da linguagem do jusnaturalismo racionalista,

cujos pressupostos metafísicos já não podem ser simplesmente aceitos.

No que se refere às características próprias do preconizado direito

cosmopolita em relação com as do clássico direito internacional, Habermas encontra um

problema conceitual. Segundo Kant o traço distintivo entre os dois ordenamentos

jurídicos seria a presença de um órgão colegiado supranacional, ao qual denominou

Congresso Permanente de Estados. Entretanto, Habermas adverte uma contradição pois,

tendo em vista eles se encontrariam num Estado de Natureza18, os laços seriam frágeis

para garantir uma federação continuamente livre; além disso, somente um poder

vinculante, uma autoridade coercitiva seria capaz de impor decisões e garantir a paz19.

Kant entende por congresso, tão somente um agrupamento arbitrário de diversos Estados, dissolúvel a qualquer tempo, e não uma União (como a dos Estados americanos) que se funda sobre uma constituição estatal. Kant, não explicou, porém, nem como garantir a permanência dessa união, da qual depende a natureza civil da harmonização de conflitos internacionais, nem como fazê-lo sem a obrigação jurídica de uma instituição análoga à constituição”20.

Para Habermas, apesar da debilidade dos vínculos que estabelece a proposta

associação Kantiana, são, contudo, laços muito mais estreitos que os gerados pelo

direito internacional até então existente, mesmo o Congresso Permanente de Estados a

doutrina tradicional do direito das gentes não havia preconizado instituição semelhante.

Naquele momento histórico não eram comuns nem Estados Democráticos nem a

soberania estatal poderia ser entendida de outra maneira que não independência e, a

idéia de uma república mundial podia evocar a idéia de uma Monarquia Universal21.

Segundo Habermas, com a globalização dos intercâmbios econômicos, das

comunicações e das relações políticas, o panorama internacional tem se transformado

18 Estado de Natureza é um dos elementos essenciais da estrutura da doutrina contratualista. Seria justamente aquela condição da qual o homem teria saído ao associar-se, mediante um pacto, com os outros homens. Os contratualistas costumam apresentá-lo como hipótese lógica negativa, ou seja, como seria o homem fora do contexto social e político com o intuito de assentar as premissas que justificariam o poder. Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 273. 19 VELASCO, Juan Carlos. Op cit. p. 213. 20 HABERMAS, Jürgen. Op cit. p. 190. 21 VELASCO, Juan Carlos. Op cit. p. 213.

estruturalmente de uma maneira tal que questiona não somente a noção tradicional de

soberania, mas também aquele outro pressuposto essencial do direito internacional

clássico da distinção entre os assuntos de política interna e externa. O direito

cosmopolita precisa ser institucionalizado para ser capaz de vincular diferentes

governos e, o estabelecimento de um Estado Mundial que garantisse cidadania única a

todos os habitantes do planeta seria a conseqüência lógica tanto da noção de democracia

como da de direitos humanos, por isso, Habermas concebe essa federação menos como

uma associação de Estados e mais como uma associação de cidadãos22.

O estabelecimento, primeiramente da Sociedade das Nações e

posteriormente da Organização das Nações Unidas marcaram dois fatos históricos:

contribuíram para a extensão do âmbito de aplicação das normas de direito internacional

virtualmente a toda a humanidade e, as Nações Unidas enquanto fórum permanente para

tratar de assuntos de interesse planetário, se trata de uma Instituição que coincide em

termos gerais com a idéia kantiana de associação de nações livres23.

Percebeu Habermas um clima propício para estreitar laços interestatais,

fazendo sua uma série de propostas de reforma das Nações Unidas que já circulavam na

opinião pública, dentre elas a de democratização interna da organização. Sugeriu então

uma democracia cosmopolita fundada na implantação de um parlamento com

representação direta de todos os cidadãos do mundo; na instauração de um Tribunal de

Justiça permanente com competência universal e, na reorganização do Conselho de

Segurança, a fim de fixar novas pautas sobre a eleição dos membros, sobre o sistema de

voto e sobre a sua capacidade executiva24.

As políticas que se orientem segundo um conceito de paz como este recorrerão a todos os meios aquém do uso do poder militar, inclusive à intervenção humanitária, para exercer influência sobre a situação interna de Estados formalmente soberanos, com o objetivo de fomentar neles uma autonomia auto-sustentável com relações sociais adimissíveis, a participação democrática, a tolerância cultural e a condição efetiva de um Estado de Direito25.

Habermas explica que, a então situação poderia ser entendida, na melhor das

hipóteses, como uma transição do direito internacional para o direito cosmopolita. Isto

22 Ibidem. p. 214. 23 Ibidem. p. 214. 24 Ibidem. p. 215. 25 HABERMAS, Jürgen. Op cit. p. 209.

porque, a Organização Mundial já abrigava praticamente todos os Estados,

independentemente de serem republicanos ou democráticos. Essa união política

encontrava expressão na Assembléia das Nações Unidas, na qual todos os governos

estavam representados com igualdade de direitos e a globalização desafia o mundo,

enquanto sociedade de risco, ao agir cooperativo26.

Sublinha ainda uma idéia, já presente em Kant, de que uma opinião pública

mundial com ramificações por todo o planeta poderia oferecer alguma garantia à paz.

Uma democracia cosmopolita não é possível sem uma sociedade civil com trama

supranacional, composta de associações de interesses, organizações não

governamentais, movimentos sociais, e, um sistema de partidos. Neste contexto, a

revolução das telecomunicações pode acelerar deste processo, seria, porém perigoso

confiar em suas virtudes ante a possibilidade de uma participação cidadã manipulada27.

Naquele contexto de comemoração do bicentenário da obra de Kant,

Habermas acreditou que, em que pese o perigo de uma moralização da política face à

expansão e exercício do poder, não seria o caso de isentar a política de uma dimensão

moral, mas sim transformar a moral, por via democrática, em um sistema positivado de

direitos dotado de procedimentos jurídicos para sua aplicação. Para ele, não se poderia

evitar o fundamentalismo dos direitos humanos pela renúncia de uma política dos

direitos humanos, mas apenas por meio da transformação cosmopolita da condição

natural entre Estados em uma condição jurídica28.

3. Estado contemporâneo frente à globalização

O quadro de otimismo de Jürgen Habermas frente ao cosmopolitismo

enfrenta obstáculo que já havia sido identificado por ele próprio na década de oitenta,

no texto traduzido para português como A nova intransparência, onde descreve os

problemas estruturais do Estado de bem estar social e, mais recentemente, no ensaio

político denominado Aprender com as catástrofes? Um olhar diagnóstico retrospectivo

sobre o breve século XX, publicado na obra A constelação pós-nacional, onde discute

26 Ibidem. p. 206. 27 VELASCO, Juan Carlos. Op cit. p. 215. 28 Ibidem. p. 227.

também as dificuldades do mesmo Welfare State, todavia agora com enfoque mais

voltado para os efeitos externos, mais precisamente sobre o impacto da globalização.

Habermas vislumbra o cuidado a se tomar no sentido de evitar que se

fortaleça a corrente chamada de neoliberal, que nada mais é do que a retomada dos

ideais liberais, iniciada na década de oitenta, principalmente na Inglaterra com a

privatização de várias empresas estatais e redução do Estado. Fato é que esse novo

modelo liberal vem tomando proporções cada dia maiores, todavia ele vai de encontro

com o desejo dos povos, que preferem a segurança proporcionada pelo estado de bem

estar social.

Ocorre, contudo, que no curto período em que o Estado de bem estar social

foi o principal modelo, ele já se demonstrou eivado de dificuldades internas e passível

de interferências externas que elevam ainda mais seus problemas, desembocando no que

hoje se tem como a crise do modelo de Estado contemporâneo, já que nenhum dos dois

modelos foram passíveis de solucionar os problemas que deles originaram.

Após a II Guerra Mundial, todos os partidos dirigentes alcançaram maioria, de forma mais ou menos acentuada, sob a insígnia dos objetivos sócio-estatais. Entretanto desde a metade dos anos 70 os limites do projeto do Estado social ficam evidentes, sem que até agora uma alternativa clara seja reconhecível. Em razão disso, gostaria de precisar minha tese acima: a nova intelegibilidade é própria de uma situação na qual um programa de Estado social, que se nutre reiteradamente da utopia de uma sociedade do trabalho, perdeu a capacidade de abrir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada.29

Fica demonstrado a partir da década de 70 que o modelo de Estado de bem

estar social tem suas limitações internas, próprias de sua estrutura grande e onerosa.

Surge então a dúvida se o referido modelo é de fato capaz de fomentar a dignidade da

vida de seus cidadãos.

Diante de uma situação fática, que Jürgen Habermas entende como

esgotamento das energias utópicas, chega-se ao diagnóstico de que “O desenvolvimento

do Estado social acabou num beco sem saída. Com ele esgotaram-se as energias da

utopia de uma sociedade do trabalho”30.

29 HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: A crise do Estado de bem estar social e o esgotamento das energias utópicas. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987. p. 106. 30 Ibidem. p. 112.

Repise-se que este entendimento é decorrente da própria estrutura onerosa

do modelo de Estado que cada vez mais investe para conseguir manter os benefícios

sociais alcançados, porém, sofre com a sua manutenção, vista a cultura paternalista que

eleva a necessidade doméstica dos seus cidadãos. Existem também fatores externos que

influenciam no Estado de bem estar social, agravando ainda mais a sua crise estrutural.

Surge, substancialmente na década de oitenta, um movimento buscando

uma solução para os problemas surgidos nos Estados de bem estar social no decênio

anterior. A Inglaterra estabeleceu uma política reducionista, com privatizações em

massa e diminuição da estrutura estatal, estabelecendo uma nova tendência mundial,

chamada de neoliberal.

Esse neoliberalismo se espalhou por vários países do globo, gerando uma

nova condição em que os Estados passam a ter uma interferência mínima na economia,

proporcionando melhores condições para o mercado que, agora se encontra livre para

estabelecer e alcançar suas metas independentes das políticas públicas.

Paralelo a isso houve também um grande avanço científico e tecnológico,

que levou a aumentar a população mundial em grande escala. Esse progresso trouxe

também uma cada vez maior velocidade de circulação de bens, serviços e informação.

Com o avanço tecnológico ocorreu uma diminuição dos postos de trabalho, o que aliado

ao grande aumento populacional gerou uma maior demanda de benefícios sociais por

parte do Welfare State, que, já caro passou e se onerar ainda mais. Contudo essa atuação

social não resolveu os efeitos da mudança estrutural do trabalho, apenas amenizando

temporariamente seus efeitos.

Todas essas conseqüências se agravaram com o fenômeno chamado de

globalização. Os problemas já manifestos se tornam cada vez mais graves, já que o

capitalismo totalmente desregulado passa a atuar de acordo com interesses privados,

agindo estrategicamente, de forma a aumentar progressivamente o lucro.

Os países desenvolvidos, como os europeus atingiram uma forma de vida

bem estruturada, com amplos direitos sociais, que perdurou por um período. Com essa

nova situação começaram a surgir os referidos problemas estruturais dificultando a sua

manutenção e causando grande alarde a essas sociedades. Efeitos ainda maiores se

verificaram nos Estados subdesenvolvidos que já não tinham boa condição social, e

chegam a situações que beiram ao desprezo da dignidade dos cidadãos.

Verifica-se que algumas empresas passam a ter rendimentos maiores do que

produtos internos brutos de muitos países, e ainda mais, esses mesmos países pouco

estruturados e atrasados tecnologicamente também integraram o processo imposto pelo

neoliberalismo de não intervir na economia. Os grandes especuladores mercadológicos

passam a se utilizar dessa liberalidade estabelecida para aumentar cada vez mais seus

lucros, e os Estados, com pretensão de atrair algum benefício social, por muitas das

vezes acabam por ceder ainda mais, sem muitas das vezes ter contrapartida, o que

novamente onera Estado.

Não importa o que se faça com a globalização da economia, ela destrói uma constelação histórica que havia provisoriamente permitido o compromisso do Estado social. Por mais que ele não represente de modo algum a solução ideal de um problema inerente ao capitalismo, ainda assim havia mantido os custos sociais existentes dentro de um limite aceitável.31

Dessa forma, ressalta Habermas a necessidade de uma nova ordem, uma

constelação pós-nacional que possa atuar frente aos desafios da economia transnacional.

Essa nova ordem se faz necessária frente a impotência dos Estados nacionais frente

esses novos obstáculos impostos como bem destaca Elve Miguel Cenci em artigo sobre

o assunto:

Chega-se a um tempo em que as metas econômicas só são alcançadas com custos sociais e políticos significativos que inclusive ameaçam a própria democracia. Neste cenário o Estado sente-se de mãos atadas, já que para manter a competitividade e ser atraente aos mercados, precisa oferecer atrativos. Por outro lado, tais atrativos implicam na aceitação de condições impostas, o que significa redução dos impostos, diminuição do poder de atuação e da capacidade de intervenção nos problemas sociais. A globalização do sistema econômico mundial limita a tal ponto as possibilidades de ação dos Estados nacionais que a atuação destes resulta insuficiente para amortizar os efeitos colaterais32.

Os efeitos da globalização levam à instalação da crise do Estado de bem

estar social, contudo, a solução não pode ser a retomada do modelo liberal, já que ele

também se demonstrou ineficiente e eivado de insustentações. Ademais, a adoção do

neoliberalismo poderia representar a entrada num ciclo sem, ou de difícil, saída. Dessa

forma, importante destacar a vontade dos povos, sobre qual modelo prefere viver, tendo

31 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Marcos Seligmann-Silva. SP: Littera Mundi, 2001. p. 68-9. 32 CENCI, Elve Miguel. Direito e globalização: o posicionamento de Habermas diante da proposta de uma constituição para a União Européia. In: DUTRA, Delamar Volpato, PINZANI, Alessandro (orgs.). Habermas em discussão: Anais do Colóquio Habermas. Florianópolis: Nefipo, 2005.

assim como seu valor fundamental. O entendimento que se pode concluir é de que ao

menos a maioria dos povos prefere a égide do Welfare State.

Habermas ilustra esse raciocínio com o entendimento que tem do povo

europeu. Esse povo teria vivido índices sociais tão confortantes no período pós-guerras

que nunca mais poderia ficar longe desses benefícios sem reclamar a sua falta. Isso de

fato se percebeu após a referida onda neoliberal, acelerada pela globalização, que

iniciou um processo de diminuição de garantias sociais, como, por exemplo, a

diminuição dos empregos, fragilidade financeira dos sistemas públicos de previdência,

dentre outros, o que causou efeitos como a xenofobia, já que parte da população

acreditava que poderiam ser os estrangeiros os responsáveis por esse quadro.

Uma vontade política não pode constituir-se se falta uma perspectiva clara. Pergunto: os cidadãos da Europa compartilham na verdade o modelo humano neoliberal, com base no qual cada pessoa deve tornar-se ao mesmo tempo empreendedor e explorador da própria força do trabalho? Porque é isto que está por detrás da política social que se apresenta como “investimento sobre capital humano”. Os cidadãos Europeus querem na verdade uma sociedade na qual a maioria deva fechar os olhos diante de estridentes desigualdades sociais e minorias marginalizadas? Se é assim, devem saber porém que esta é a conseqüência de uma concepção de justiça altamente seletiva, que se esgota na “igualdade de oportunidade”. Os Europeus querem na verdade um futuro no qual a democracia torne-se apenas uma fachada, e onde o Estado se especialize na garantia da liberdade do mercado e a política na criação de condições favoráveis para a livre concorrência? [...] os europeus não devem só defender uma posição, mas uma “Lebensform”, uma forma, um estilo de vida. Por esta razão eles deveriam estar interessados no fato de poder falar com “um única voz”. Para conseguir fazer-se escutar na “assembléia internacional”.33

Portanto, é anseio do povo europeu, a manutenção de bons índices sociais,

os quais devem ser proporcionados pelo Estado. Isso deve ser conjugado com as

liberdades individuais almejadas pelos liberais, todavia, devendo prevalecer os direitos

sociais. Tal vontade poderia ser transportada ao menos à maioria dos povos, de forma

que não restaria uma outra alternativa para afirmá-las do que uma constituição onde

esses valores fossem firmados. Daí a possibilidade, senão necessidade de constituições

transnacionais. Poderia se dizer necessidade, já que como existente uma comunidade

européia e uma vontade comum do povo de toda a Europa, essa manifestação

constitucional somente poderia se dar no âmbito pós-nacional.

Questiona-se então, neste trabalho, se essa poderia uma alternativa

conceitual à configuração atual do direito e da política internacional, ou seja, se as

constituições transnacionais lograriam enfrentar e responder os complexos problemas

33 HABERMAS, Jurgüen. Op cit. p. 66-7

mundiais que são potencializados pelo fenômeno da globalização, sendo imprescindível

para tanto as reflexões mais recentes de Habermas.

4. A releitura do Projeto Kantiano de Constitucionalização do Direito Internacional após o 11 de Setembro

Em 2005, em um Congresso realizado em Granada na Espanha, Habermas

coloca o seguinte questionamento: É ainda possível o Projeto Kantiano de

Constitucionalização do Direito Internacional ?, Sempre tendo em vista sua conexão

com a atualidade como já havia feito em 1996, o filósofo de Frankfurt continua

afirmando a importância do direito cosmopolita preconizado por Kant, mas que a

situação atual coloca não mais somente como outrora a objeção da primazia da força

bruta sobre o direito, e sim que surgem outras objeções sob a bandeira de um ethos

liberal que se propõe como alternativa ao direito internacional34.

O conflito entre idealistas kantianos e realistas que seguem a Carl Schimitt é

sobreposto por outro ainda mais intenso. Trata-se da Pax Americana, o projeto

neoliberal que propõe o estabelecimento de um traço jurídico para as relações

internacionais através da moralização da política internacional definida pelo ethos de

uma superpotência. Habermas lança a questão se há algo de equivocado,

normativamente falando, neste enfoque unilateral. Para tanto, primeiramente coloca a

premissa de que a ação estadunidense alcançaria de forma mais efetiva os mesmos

objetivos que haviam perseguido com pouco ímpeto e escasso êxito as Nações Unidas35.

Na seqüência, argumenta Habermas que o Projeto Kantiano somente

poderia continuar se os EUA voltasse ao internacionalismo adotado em 1918 e 1945

(Wilson e Roosevelt)36, assumindo seu papel de líder no desenvolvimento de um direito

internacional que leve a uma ordem cosmopolita ao invés de deixar de lado o direito

internacional e a ONU para conceder prioridade aos seus próprios interesses nacionais,

34 HABERMAS, Jürgen. És aún possible el Proyecto Kantiano de la Constitucionalización del derecho internacional?In: Derecho e Justicia en una Sociedade Global. Anales de la Cátedra de Francisco Suárez. Granada, 2005, p. 101. 35 Ibidem. p. 101-2. 36 A Sociedade das Nações, preconizada por Woodrow Wilson, após a Primeira Guerra Mundial em 1919, foi a primeira organização mundial com o objetivo específico de manter a paz através de mecanismos jurídicos. Já a Organização das Nações Unidas surgiu na Conferência de Yalta, juntamente com a aprovação da Carta das Nações Unidas em junho de 1945 após o término da Segunda Guerra Mundial, tendo como participantes relevantes Churchill, Roosevelt e Stalin. Cf. SEINTENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 113.

alegando justificações que não são éticas, nem jurídicas, como aconteceu em 2002

(proclamação da doutrina da Segurança Nacional) e 2003 (invasão do Iraque)37.

Para Kant, o direito não era simplesmente o meio apropriado para

estabelecer a paz entre os Estados, mas a paz seria uma paz jurídica. Na perspectiva

republicana de Kant, a função pacificadora do direito está conceitualmente vinculada à

função de garantia da liberdade de um ordenamento jurídico que os cidadãos aceitem

como legítimos, por isso, o direito internacional deveria ser substituído por uma

constituição para uma comunidade de Estados. Segundo Habermas, a inovação do

projeto kantiano consistiu na transformação do direito internacional em um direito

cosmopolita, que incluiu, além dos Estados, os indivíduos como sujeitos. Mas o preço

que os Estados pagariam pela promoção de seus cidadãos ao status de cidadãos do

mundo seria a submissão à uma autoridade supraestatal38.

Partindo das estruturas existentes hoje, Habermas acredita ter boas razões

para conceber a constituição política de uma sociedade mundial descentralizada, que

não tem caráter de Estado. Nesta ordem, uma organização mundial reformada

adequadamente cumpriria com efetividade e de forma não seletiva as funções vitais,

mas estritamente vinculadas à garantia da paz e aplicação dos direitos humanos em

nível supranacional. Porém, reconhece que não existe atualmente ator mundial, exceto

os EUA, com capacidade de representação suficiente e força necessária para a aplicação

de tais políticas. Para tanto, os Estados-Nação de diferentes regiões do mundo teriam

que se unir tal como a União Européia39.

Assim, defende que o modelo de Estado à escala mundial não é a única via

de se alcançar uma ordem cosmopolita:

O ligeiro esboço de um sistema com múltiplos níveis que garantisse, em nível supranacional, a segurança mundial e os direitos humanos estabelecidos como objetivos na Carta das Nações Unidas e, que em nível transnacional resolva os problemas interiores em um plano mundial mediante compromissos entre as principais potências já domesticadas, serve aqui como uma mera ilustração de uma alternativa conceitual a uma república mundial que merece nossa atenção”40.

37 HABERMAS, Jürgen. Op cit. p. 102. 38 Ibidem. p. 103-4. 39 Ibidem. p. 105. 40 Ibidem. p. 105-6.

Por outro lado, defende que se quiser fazer justiça à importância que ainda

perdura o Projeto Kantiano, deve-se olhar mais além do próprio horizonte histórico de

Kant. A Sociedade das Nações e as Nações Unidas representam objetivos importantes,

ainda que deficientes, no longo e duro caminho à uma constituição política para uma

sociedade mundial. Existiram outros contratempos antes do processo que culminou com

a invasão do Iraque em março de 2003, a qual provocou uma situação contraditória sem

precedentes na história do direito internacional. Se por um lado, o mais poderoso

membro das Nações Unidas fez caso omisso à sua norma fundamental de proibição do

uso da violência; por outro lado, esta violação não acabou com a organização mundial,

cuja autoridade parece estar saindo reforçada do conflito41.

Muitos esperavam que o Conselho de Segurança se convertesse em um

importante fórum político mundial. Nos anos 90, três circunstâncias apontavam para a

crescente autoridade das Nações Unidas: o Conselho de segurança intervindo em

conflitos internos de Estados; a criação de tribunais de guerra para os massacres de

Ruanda e da antiga Iugoslávia e, o conceito de “Estado Canalhas”, que significou a

prática do reconhecimento de um direito internacional. Por outro lado, esses avanços

são contrapostos por fatos que merecem reflexão. A organização tem um financiamento

débil, o continente africano especialmente sofre a percepção seletiva e a avaliação

assimétrica que se faz das catástrofes humanitárias, o que revela a primazia que a

comunidade internacional concede aos interesses nacionais em suas obrigações

mundiais. Tais contratempos poderiam ser descritos indefinidamente42.

Entretanto, voltando à questão colocada inicialmente neste ítem do trabalho,

de se ainda se pode manter a esperança de que os avanços na constitucionalização do

direito internacional tenham adquirido uma dinâmica que não pára ou se seria o começo

do fim do projeto de canalização jurídica das relações internacionais; a resposta de

Habermas parte de uma constatação empírica da transição atual da constelação atual à

pós-nacional43.

Segundo o filósofo, a debilidade da ONU é evidente e demonstra a

necessidade de reformas, ações construtivas urgentes da comunidade internacional.

Habermas defende claramente que o Projeto Kantiano e o projeto neoconservador

41 Ibidem. p. 106-7. 42 Ibidem. p. 110-11. 43 Ibidem. p. 111.

estadunidense, em um nível abstrato, coincidem em suas metas na medida em que

ambos afirmam promover a segurança internacional e os Direitos Humanos, mas

diferem consideravelmente quanto à eleição dos meios e especificação dos objetivos44.

No entanto, os graves danos produzidos pelo terrorismo internacional não

podem ser combatidos de forma efetiva com os instrumentos clássicos da guerra entre

Estados, tampouco com a superioridade militar de uma superpotência que atua

unilateralmente. Somente a coordenação dos serviços de inteligência, as forças policiais

e a justiça penal servirão para golpear a logística de tal adversário, bem como terá que

firmar-se uma combinação de modernização social com o diálogo autocrítico entre

culturas.

Esses meios são mais exeqüíveis para uma comunidade internacional horizontalmente vinculada e obrigada a cooperar que o unilateralismo de uma grande superpotência que instrumentaliza, ou faz caso omisso do direito internacional. A imagem de um mundo unipolar reflete com exatidão a distribuição assimétrica do poder político, mas deforma a realidade da complexidade de uma sociedade mundial extremamente interdependente e diferenciada, que não pode ser dirigida de um único centro45.

Ainda que esse liberalismo hegemônico esteja bem intencionado, se bem

que fatos publicamente reconhecidos pela comunidade internacional demonstram o

contrário, um governo que tem que decidir por si só temas como: autodefesa,

intervenções humanitárias ou tribunais internacionais; na inevitável valoração das

circunstâncias não poderá separar seus interesses nacionais dos interesses

universalizáveis que poderiam ser compartilhados com o resto do mundo46.

Diante desse contexto, percebe-se a importância da teoria habermasiana,

pois uma previsão unilateral do que poderia ser racionalmente aceitável para todas as

partes somente pode verificar-se submetendo-a a proposta imparcial de um

procedimento discursivo da opinião e da vontade. Os procedimentos discursivos

implicam: que as decisões igualitárias se sujeitem a uma argumentação prévia que possa

justificar as decisões; que estes procedimentos sejam abertos de maneira que todas as

partes afetadas participem e, procura a aceitação dos participantes dos pontos de vista

dos demais de maneira que seja possível uma avaliação justa dos interesses implicados.

44 Ibidem. p. 112. 45 Ibidem. p. 112. 46 Ibidem. p. 113.

Essa nova ótica apontada por Habermas em Granada é perfeitamente

compatível com o cosmopolitismo kantiano, conforme já ressaltado, não trazendo

nenhum óbice à sua defesa anterior da necessidade de manifestação da vontade dos

povos através de uma constituição transnacional, como a Européia. Neste sentido, seu

posicionamento atual apresenta-se mais tímido se comparado à proposta de

reformulação, presente em sua obra Inclusão do Outro: ensaios de teoria política.

CONCLUSÃO

A paz sempre foi um ideal a ser perseguido ao longo da história da

Humanidade, já estava contido na mensagem cristã. Mas a paz, até Kant, foi colocada

como a negação ou ausência da guerra, por isso, se tratava de uma paz parcial ou um

período determinado entre guerras. Daí a importância o projeto Kantiano, de não

somente buscar a paz, mas torná-la perpétua; por isso, a paz para Kant era sobretudo

jurídica.

Desse projeto de paz é que surgiu o direito cosmopolita, útil não apenas para

a instituição da paz perpétua, mas para diversos fins, inclusive para proporcionar um

novo modelo de estrutura que pode auxiliar os Estados nacionais na atual conjuntura de

crise, que pode ser refletido em uma constituição transnacional.

Além disso, quando Kant imaginou uma confederação de Estados, projetou-

se para além de seu horizonte histórico e com o cosmopolitismo demonstrou uma

sensibilidade para com o futuro da humanidade. Por este e outros inúmeros motivos é

sempre válido repensar Kant.

Habermas o faz com muita competência de maneira que merece a nossa

atenção. Pensar que os pressupostos do direito internacional estão prontos, diante do

atual estado de coisas, pode ser uma grande ilusão. Por outro lado, desistir dos avanços

conseguidos, entregando as decisões à uma superpotência que não age sob argumentos

jurídicos, tampouco éticos, pode ser um retrocesso a longo prazo desastroso.

Da análise da leitura habermasiana, conclui-se que a atuação unilateral

estadunidense no direito e na política internacional, não se justifica por três motivos: do

ponto de vista estratégico, pois não lograria resolver o problema do terrorismo, o qual

depende de um envolvimento maior por parte dos Estados face a sua atuação difusa; do

ponto de vista ético, pois uma potência que age unilateralmente sempre pretenderá

impor seus próprios valores e, do ponto de vista jurídico, porque desconsidera tudo que

o direito internacional defende como norma cogente para os Estado sobre a Terra.

Não obstante a nova conjuntura mundial, temos que sob qualquer aspecto,

não se perdeu o ideal cosmopolita, de forma que ele deve ser aproveitado como forma

de auxílio ao atual modelo de Estados nacionais, em crise não só estrutural como

também do ponto de vista de influências externas, agravadas pela característica

aceleradora de processos da globalização.

Parece que o cosmopolitismo é algo que já se tem inerente às pessoas, visto

a tendência recente de agrupamento de Estados em áreas de livre comércio, acordos

bilaterais comerciais, e mesmo no exemplo da Europa que passou por diversas fases até

chegar o atual status de União européia com, por exemplo, mercado comum, livre

fronteira e até mesmo moeda única.

O exemplo da União européia inspirou Habermas na necessidade de uma

constituição que expressasse a vontade daquele povo, especialmente no sentido de

firmar um modelo de Estado de bem estar social em desfavorecimento do liberalismo

que objetiva se impor pós década de oitenta. Essa constituição seria de primordial

importância, pois ela estamparia os valores fundamentais do povo europeu.

Se essa constituição é algo que se pode objetivar para a Europa, da mesma

forma pode ser almejada para outros povos que venham a se formar na evolução

história, o que se mostra como uma tendência, decorrente do ideal cosmopolita cada vez

mais contundente. Assim, natural a autorização para formação de constituições

transnacionais, desde que representativas da vontade de determinado povo.

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