A Antropologia Medica

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    Cadernos de Sade PblicaPrint version ISSN 0102-311X

    Cad. Sade Pblica vol.10 no.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 1994

    doi: 10.1590/S0102-311X1994000400010

    ARTIGO/ARTICLE

    Antropologia mdica: elementosconceituais e metodolgicos para umaabordagem da sade e da doenaMedical anthropology: conceptual andmethodological elements for an approach tohealth and disease

    Elizabeth UchaI,II

    ; Jean Michel VidalII

    ICentro de Pesquisas Ren Rachou, Fundao Oswaldo Cruz. Av.Augusto de Lima, 1715, Belo Horizonte, MG, 30190-002, BrasilIIUnit de Recherche Psychosociale, Centre de Recherche del'Hpital Douglas. 6875 Bd. La Salle, Montral, Canada

    ABSTRACT

    This paper discusses the relevance, specificity, and potential ofthe anthropological approach to health and illness. Medicalanthropology is shown as complementary to other approachesthat currently deal with public health problems. The impact of

    social and cultural factors on health-related perceptions andbehaviors is illustrated and commented. A conceptual andmethodological framework is also proposed to systematize thestudy of representations and practices of communities in thearea of public health. The specific contribution of theanthropological approach is discussed in terms of theeffectiveness of public health programs.

    Key words: Medical Anthropology; Perceptions and Behaviors;Public Health

    RESUMO

    O artigo discute a pertinncia, as especificidades e aspotencialidades da perspectiva antropolgica na abordagem dasade e da doena. A antropologia mdica apresentada comouma perspectiva complementar e enriquecedora na abordagemdos problemas de sade pblica. A influncia do universo sociale cultural sobre as percepes e aes em sade exemplificada e comentada em referncia a estudos realizados

    junto a diferentes populaes. Elementos conceituais emetodolgicos centrais so apresentados e integrados proposta de sistematizao do estudo "das maneiras de pensare de agir" face a diferentes problemas de sade. A contribuioespecfica da abordagem antropolgica discutida em termos

    da efetividade dos programas sade pblica.

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    Palavras-Chave: Antropologia Mdica;Percepes eComportamentos; Sade Pblica

    ABORDAGEM ANTROPOLGICA. PERTINNCIA,ESPECIFICIDADES E POTENCIALIDADESOs trabalhos antropolgicos na rea de sade tem aumentadoprogressivamente, existindo hoje vasta literatura sobre oassunto. No pretendemos analisar neste artigo as contribuiesespecficas dos diferentes autores ou examinar as vriasabordagens que delimitam o campo da Antropologia Mdica. Otrabalho tem objetivos mais limitados. Ele visa a demonstrar apertinncia do discurso antropolgico na abordagem da sade eda doena.

    Sabemos hoje que noes, como as de sade e doena,aparentemente simples referem-se, de fato, a fenmenoscomplexos que conjugam fatores biolgicos, sociolgicos,

    econmicos, ambientais e culturais. A complexidade do objeto,assim definido, transparece na multiplicao de discursos sobrea sade que coexistem atualmente, cada um privilegiandodiferentes fatores e sugerindo estratgias de interveno e depesquisa tambm diversas.

    O discurso antropolgico aponta os limites e a insuficincia datecnologia biomdica quando se trata de mudar de formapermanente o estado de sade de uma populao. Ele nosrevela que o estado de sade de uma populao associado aoseu modo de vida e ao seu universo social e cultural. Aantropologia mdica se inscreve, assim, numa relao decomplementaridade com a epidemiologia e com a sociologia da

    sade.A epidemiologia estuda a distribuio das doenas (ou decondies relacionadas sade) em populaes e busca osdeterminantes dessa distribuio. Nos estudos epidemiolgicospredominam as abordagens sobre os comportamentos dosindivduos, e mtodos quantitativos so utilizados. A prevalnciaou a incidncia de uma certa patologia e as caractersticas deindivduos apresentando ou no essa patologia sodeterminadas, com o objetivo de identificar os perfis dedistribuio da patologia e grupos ou fatores de risco. Naabordagem sociolgica, os problemas de sade so apreendidosem sua dimenso social e no individual. A sociologia da sade

    investiga a determinao que exercem os contextos social einstitucional sobre as enfermidades e os comportamentos delasdecorrentes. A antropologia considera que a sade e o que serelaciona a ela (conhecimento do risco, idias sobre preveno,noes sobre causalidade, ideias sobre tratamentos apropriados,etc.) so fenmenos culturalmente construdos e culturalmenteinterpretados (Nichter, 1989). A perspectiva qualitativa empregada para identificar e analisar a mediao que exercemos fatores sociais e culturais na construo de formascaractersticas de pensar e agir frente saude e doena.Integrando uma apreenso da dimenso cultural, a antropologiamdica vem, ao lado da sociologia da sade e da epidemiologia,

    contribuir para ampliar o contexto que deve ser levado emconsiderao na leitura dos processos patolgicos.

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    Uma profunda dicotomia entre mtodos quantitativos equalitativos ainda afeta o conjunto das cincias sociais; essadicotomia obscurece a complementaridade dessas duasestratgias de pesquisa, cada uma tendo seus pontos fortes esuas fraquezas (Ltourneau, 1989). Diversos autores (Minayo &Sanches, 1993; Ltourneau, 1989) sugerem que as perspectivas

    quantitativas e qualitativas deveriam ser encaradas comoperspectivas complementares, como fases sequenciais de ummesmo processo. As estratgias qualitativas indicam o que importante estudar em um dado contexto scio-cultural,permitem identificar variveis pertinentes e formular hiptesesculturalmente apropriadas. As pesquisas quantitativas soconstruidas a partir de amostras representativas do grupoestudado e permitem testar essas hipteses. O reconhecimentodos pontos fortes e dos limites de cada uma dessas perspectivassuporta o movimento atual, que advoga a adoo deabordagens multi e transdisciplinares em pesquisas no campoda sade (Rosenfield, 1992). Nestes ltimos anos, vrios

    autores escreveram sobre o interesse, as dificuldadesdecorrentes e as consequncias metodolgicas de umaconjugao entre as perspectivas quantitativa e qualitativa(Hundt & Forman, 1993). O ponto comum desses trabalhos aconstatao do enriquecimento gerado pela conjugao dasduas perspectivas.

    Neste artigo, a antropologia mdica apresentada como umaperspectiva complementar e enriquecedora para a abordagemdos problemas de sade pblica. Comeamos por examinar ainfluncia do contexto social e cultural sobre "as maneiras depensar e de agir" das populaes frente aos seus problemas desade e, a partir da, situamos a contribuio especfica da

    abordagem antropolgica. Apresentamos, em seguida, algunselementos conceituais e metodolgicos que intervm de maneirafundamental na construo do conhecimento antropolgico emsade e propomos um quadro de referncia para o estudosistemtico das representaes e comportamentos associados sade e doena.

    DOENA E CULTURA: MANEIRASDE PENSAR EMANEIRAS DE AGIRAs informaes culturais tm sido, na maioria das vezes,consideradas irrelevantes para as intervenes preventivas eteraputicas na rea da sade (Good & DelVecchio Good, 1980).

    Em geral, so tidas como essenciais unicamente aquelasreferentes ao diagnstico biomdico. Todos os outros dados, emparticular aqueles referentes ao impacto dos fatores sociais eculturais, so avaliados como acessrias (Kleinman, 1987).

    Contrariando esse ponto de vista, estudos recentes demonstrama grande influncia que exercem os universos social e culturalsobre a adoo de comportamentos de preveno ou de risco esobre a utilizao dos servios de sade (Taylor et al., 1987). Ogrande investimento que tem sido feito em campanhas devacinao em diferentes pases do mundo (WHA, 1977, 1982) eo relativo sucesso dessas campanhas em alguns pases africanos(Unger, 1991) pode ser citado como um primeiro exemplo.

    Razes tcnicas (cadeia fria no respeitada, pessoal paramdicopouco ou no formado, etc.) so geralmente evocadas para

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    explicar as dificuldades que essas campanhas enfrentam.Devem tambm ser levados em considerao os fatoresculturais que podem comprometer o sucesso dessascampanhas. Responsveis tcnicos e mdicos formados pelosmtodos cientficos ocidentais ignoram muitas vezes asignificao que as campanhas de vacinao podem ter para as

    populaes visadas. Por exemplo, como elas percebem o fato dedar medicamentos a uma criana, aparentente sadia, que, emmuitos casos, ter febre nas 24 horas seguintes vacinao e,portanto, parecer doente? No fcil convencer os pais dacriana de que isso a proteger de certas doenas no futuro.Tais campanhas no podem ser facilmente transportadas de umcontexto a outro. Elas exigem que se levem em conta asparticularidades culturais e os diferentes processos lgicospredominantes em cada contexto.

    De modo geral, os programas de sade partem do pressupostode que a informao gera uma transformao automtica doscomportamentos das populaes frente s doenas. Essaabordagem negligencia os diferentes fatores sociais e culturaisque intervm na adoo desses comportamentos (Fincham,1992).

    Diversos autores ressaltam a grande influncia que exercem asemiologia popular e as concepes culturais de causalidadesobre os comportamentos adotados frente s doenas(Nyamwaya, 1987; Green, 1992; Hielscher & Sommerfield,1985; Corin et al., 1992a). Segundo Green (1992), a causaprincipal das doenas sexualmente transmissveis , em vriassociedades africanas, percebida como a violao de normas quegovernam os comportamentos sexuais. Partindo dessaconcepo, a populao prefere recorrer ao tratamento comterapeutas tradicionais do que aos servios mdicos. Um outrobom exemplo dessa influncia fornecido pelo estudo deAgyepong (1992), que investigou as percepes e prticasfrente malria em uma comunidade de Gana. Esse autormostrou: (1) que a palavra malria no era popularmenteconhecida e que uma categoria popular "asra"englobava umcomplexo de sinais e sintomas muito semelhantes aos damalria, incluindo febre; (2) que muitos membros dacomunidade no conectavam o vetor doena; a populaoacreditava que o "asra"era causado por contato prolongadocom o calor excessivo. Essa concepo etiolgica eliminavaquase toda possibilidade de preveno, pois o sol est sempre

    presente e no h como evit-lo. Essa doena era tambmconsiderada pela populao incurvel pela medicina, pois, com otratamento, a doena desaparecia, mas voltava a reapareceralgum tempo mais tarde. O desconhecimento das causas dereinfeco levava desvalorizao dos efeitos do medicamento.Como conseqncia, a maioria das pessoas era tratada em casa,a cloroquina era pouco utilizada e geralmente em dosessubteraputicas.

    Hielscher & Sommerfield (1985) discutem a relao entre asconcepes culturais das doenas e a utilizao de recursosmdicos em uma comunidade rural do Mali. Os autoresdescrevem a identificao da causa cultural como etapafundamental do processo teraputico. As concepes etiolgicaspopulares do significado aos diferentes episdios patolgicos e

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    determinam em grande medida as estratgias para lidar comeles. Hielscher & Sommerfield (1985) ressaltam que no existeum conceito popular equivalente ao conceito deesquistossomose. Os diversos sinais e sintomas so percebidospelas populaes como entidades separadas e independentes. Oestudo de Nyamwaya (1987) junto aos Pokot, do Kenia,

    demonstra igualmente a influncia das concepes culturais decausalidade sobre a utilizao das formas tradicionais eocidentais de terapia. No entanto, a influncia de outros fatoresno processo decisrio tambm demonstrada pelo autor.Segundo Nyamwaya (1987), os Pokot seriam bastantepragmticos e revelariam grande capacidade de integrar novasidias e novas prticas; a eficcia comprovada de uma ou outrateraputica seria fundamental tanto como princpioclassificatrio como na escolha do tratamento adequado.

    Todos esses estudos revelam que os comportamentos de umapopulao frente a seus problemas de sade, incluindo autilizao dos servios mdicos disponveis, so construdos apartir de universos scio-culturais especficos. Eles apontam anecessidade de enraizarem-se os programas de educao e oplanejamento em sade em conhecimento prvio das formascaractersticas de pensar e agir predominantes nas populaes

    junto s quais se quer intervir (Hielscher & Sommerfield, 1985;Nyamwaya, 1987; Nichter, 1989; Corin et al., 1989; Fincham,1992; Agyepong, 1992; Green, 1992, Inecom, 1993).

    MODELO MDICO - MODELOS CULTURAIS.ELEMENTOS CONCEITUAIS E METODOLGICOSPARA UMAABORDAGEM ANTROPOLGICA DASADE E DA DOENASegundo Scheper-Hugues & Lock (1987), o dualismo cartesianoentre corpo e esprito seria o precursor imediato das concepesbiomdicas contemporneas de organismo humano e dopensamento materialista radical que caracteriza a biomedicina.Descartes teria legado s cincias naturais e sociais umaconcepo mecanicista do corpo e de suas funes que sustentauma viso reducionista dos fenmenos sade e doena. Adoena ora vista como um problema fsico ou mental, oracomo biolgico ou psicossocial, mas raramente como fenmenomultidimensional. A fragmentao do objeto gera afragmentao das abordagens. A descontinuidade entre asdiferentes abordagens retarda a apreenso multidimensional doobjeto.

    A contribuio da antropologia aqui extremamenteimportante. Ela ressitua nossas premissas bsicas no horizonteepistemolgico ocidental, tornando possvel uma perspectivacrtica frente a nossas "verdades" mais fundamentais efavorecendo a construo de um novo paradigma para aabordagem da sade e da doena.

    Com o desenvolvimento da corrente interpretativa emantropologia, surge uma nova concepo da relao entreindivduo e cultura e torna-se possvel uma verdadeiraintegrao da dimenso contextual na abordagem dos

    problemas de sade. C. Geertz, que se situa na origem dessacorrente, concebe a cultura como o universo de smbolos e

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    significados que permite aos indivduos de um grupo interpretara experincia e guiar sua aes (Geertz, 1973: pp). Segundoele, a cultura fornece modelos "de" e modelos "para" aconstruo das realidades sociais e psicolgicas. Para Geertz, acultura o contexto no qual os diferentes eventos se tornaminteligveis. Essa concepo estabelece ligao entre as formas

    de pensar e as formas de agir dos indivduos de um grupo, ouseja, entre os aspectos cognitivos e pragmticos da vidahumana e ressalta a importncia da cultura na construo detodo fenmeno humano. Nessa perspectiva considera-se que aspercepes, as interpretaes e as aes, at mesmo no campoda sade, so culturalmente construdas.

    Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Harvard e, emparticular, pelos professores Arthur Kleinman e Byron Good, quese situam entre os principais representantes da correnteinterpretativa em antropologia mdica, fornecem os elementos-chave de um quadro terico e metodolgico para anlise dosfatores culturais que intervm no campo da sade. Essestrabalhos ressaltam a importncia de considerar que asdesordens, sejam elas orgnicas ou psicolgicas, s nos soacessveis por meio da mediao cultural; "a desordem sempre interpretada pelo doente, pelo mdico e pelas famlias"(Kleinman & Good, 1985).

    A distino paradigmtica estabelecida por Eisenberg (1977)entre a "doena processo" (disease) e a "doena experincia"(illness) o elemento-chave desse grupo de estudos. A "doenaprocesso" (disease) refere-se s anormalidades de estrutura oufuncionamento de orgos ou sistemas, e a "doena expericia"(illness), experincia subjetiva do mal-estar sentido pelodoente. Nessa perspectiva, a experincia da doena no vistacomo simples reflexo do processo patolgico no sentidobiomdico do termo. Considera-se que ela conjuga normas,valores e expectativas, tanto individuais como coletivas, e seexpressa em formas especficas de pensar e agir.

    Kleinman (1980), inspirando-se em Geertz (1973), afirma que acultura fornece modelos "de" e "para" os comportamentoshumanos relativos sade e doena. Segundo Kleinman,todas as atividades de cuidados em sade so respostassocialmente organizadas frente s doenas e podem serestudadas como um sistema cultural: health care system. Todo"sistema de cuidados em sade" seria constitudo pela interao

    de trs setores diferentes (profissional, tradicional e popular).Cada setor veiculando crenas e normas de conduta especficase legitimando diferentes alternativas teraputicas.

    Kleinman (1980) elaborou o conceito de "modelo explicativo"(explanatory model) para estudar os traos cognitivos e osproblemas de comunicao associados s atividades de sade.Segundo esse autor, o modelo explicativo constitudo pornoes elaboradas a partir de episdios de doenas e emreferncia aos tratamentos que foram utilizados. Kleinman(1980) distingue "os modelos explicativos" dos profissionais e os"modelos explicativos" utilizados pelos doentes e suas famlias.Esses modelos se enrazam em diferentes setores do sistema

    mdico e veiculam crenas, normas de conduta e expectativasespecficas. A grande contribuio desses instrumentos

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    analticos que eles permitem abordar sistematicamente, e emseus aspectos plural e dinmico, o conjunto de valores, crenase normas de conduta predominantes no campo da sade. Oestudo de modelos explicativos empregados por diferentescategorias de pessoas (profissionais, doentes, famlias e outros)permite uma avaliao da distncia que separa os modelos

    mdicos e no mdicos, o exame da interao entre eles e aanlise dos problemas de comunicao que surgem do encontroentre modelos culturais e modelos mdicos durante asatividades clnica, educativa ou de pesquisa. O conhecimentodos modelos explicativos, que predominam em um grupo,facilita a comunicao com os indivduos desse grupo e permitea realizao de intervenes que sejam compreensveis eaceitveis para eles, duas condies essenciais para o sucessode qualquer programa de sade.

    O modelo de anlise de redes semnticas (semantic networkanalysis), desenvolvido por Good (1977) e Good & DelVecchioGood (1980, 1982), abre o caminho para a compreenso dosdiferentes fatores que participam da construo de "realidadesmdicas". Esses autores enfatizam a diversidade de modelosque suportam, em uma sociedade, a construo cultural dosproblemas de sade e os esforos teraputicos para resolv-los.Eles ressaltam que toda prtica teraputica eminentementeinterpretativa e implica constante trabalho de traduo, dedecodificao e de negociao entre diferentes sistemassemnticos. Segundo Good (1977) e Good & Delvecchio Good(1980, 1982), a significao dos episdios patolgicos seriaconstruda em redes de significaes (semantic network illness),por meio das quais elementos cognitivos, afetivos eexperienciais se articulam sobre o universo das relaes sociais

    e das configuraes culturais. Essas redes de smbolosassociadas a doenas particulares em dada sociedade seriamutilizadas pelos indivduos para interpretar o vivido, articular aexperincia e exprimi-la de forma socialmente legtima. Ointeresse desse modelo aparece mais claramente quando seconsidera que no existe correspondncia termo a termo entreos diagnsticos profissionais, que geralmente orientam osprogramas de sade, e os diagnsticos populares, que orientamas representaes e comportamentos das comunidades(Hielscher & Sommerfield, 1985). A percepo do que relevante e problemtico, do que causa ou evita um problema,do tipo de ao que esse problema requer , para os

    profissionais de sade, determinada pelo corpo deconhecimentos biomdicos, mas, para os indivduos de umacomunidade, determinada pelas redes de smbolos quearticulam conceitos biomdicos e culturais e determinam formascaractersticas de pensar e de agir frente a um problema desade especfico.

    Os trabalhos de A. Kleinman, B. Good e M. J. Delvecchio Goodreinscrevem as crenas, as normas de comportamento e asexpectativas referentes s doenas no contexto mais amplo denormas e valores que predominam em uma sociedade. Elesquestionam o "naturalismo" das interpretaes biomdicas,favorecem maior tolerncia frente a outras formas de pensar e

    agir diante da doena e, em conseqncia, abrem novoscaminhos para o reconhecimento e anlise dos processos

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    culturais que mediatizam a construo das representaes ecomportamentos em sade.

    O modelo de anlise dos "sistemas de signos, significados eaes"elaborado por Corin et al. (1989, 1990, 1992a, 1992b,1993) se inscreve, em linhas gerais, como um prolongamento

    dos trabalhos do Grupo de Harvard, j descritos. Todavia, elepermite maior sistematizao dos diferentes elementos docontexto (dinmica social, cdigos culturais centrais, conceito depessoa, etc.) que intervm efetivamente na identificao do que problemtico, na deciso de tratar ou no um problema e naescolha do terapeuta apropriado.

    Embora o modelo de anlise dos "sistemas de signos,significados e aes"tenha sido inicialmente empregado na reada sade mental, sua contribuio potencial para outras reasda sade, parece indiscutvel. Muito pouco se conhece sobresinais e sintomas considerados relevantes por populaesespecficas ou sobre interpretaes culturalmente associadas a

    um determinado problema e menos ainda se conhece sobre oscomportamentos caractersticos nos quais se traduzem essaspercepes e interpretaes. O modelo de anlise dos "sistemasde signos, significados e aes"visa precisamente aoconhecimento sistemtico das maneiras de pensar e de agir depopulaes junto s quais se quer intervir; ele constitui uminstrumento privilegiado para a investigao antropolgica dasrepresentaes e comportamentos predominantes no campo dasgrandes endemias.

    Esse modelo de anlise construdo a partir de duas premissasbsicas: (1) cada comunidade constri de maneira especfica ouniverso dos problemas de sade, marcando principalmente tal

    ou tal sintoma, privilegiando tal ou tal explicao e encorajandocertos tipos de reaes e aes; (2) existe continuidade entre amaneira pela qual uma comunidade percebe e interpreta seusproblemas de sade e os procedimentos que ela desenvolvepara resolv-los; essa construo especfica ligada scaractersticas scio-culturais da comunidade e s condiesmacroscpicas de contexto (Corin et al., 1990).

    A proposta metodolgica de Corin et al. (1990) de inverter oprocedimento geralmente utilizado nos estudos sobrerepresentaes e partir do nvel pragmtico para remontar aonvel semntico. Os comportamentos concretos de indivduosservem de ponto de partida para um estudo que tenta

    identificar as lgicas conceituais subjacentes a essescomportamentos e os diferentes fatores que intervm naconcretizao destas lgicas em situaes particulares (Corin etal., 1989). A experincia anterior dos autores (Corin et al.,1992b) revela que existe grande distncia entre os discursosque descrevem uma doena em termos gerais e a maneira pelaqual so percebidas e interpretadas as ocorrncias concretasdessa doena; da a escolha de focalizar as aes concretas deindivduos particulares, frente a problemas especficos, e, poressa via, remontar ao universo de percepes e representaes.

    A anlise dos "sistemas de signos, significados e aes" feita apartir do estudo das prticas dos atores apreendidas por

    histrias concretas. Uma fase preliminar do estudo visa delimitao do campo semntico que cobre um determinado

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    problema. So identificados termos locais e formuladasdescries significativas que serviro para identificar casos. Paracada caso identificado, diferentes questes tentam reconstruirde maneira detalhada os comportamentos e sintomasassociados doena, as interpretaes feitas por diferentescategorias de pessoas, os tratamentos realizados e/ou que

    deveriam idealmente ser realizados. As entrevistas sogravadas, transcritas e codificadas em funo de registros decontedo e de categorias analticas. Toda informao compilada em quadros que permitem a identificao dascategorias de informao dominantes. Cada entrevista , emseguida, indexada com a ajuda de um software (por exemplo,Sato ou Ethnograph) para permitir a rpida extrao dos textoscorrespondentes s diferentes categorias de informao e aidentificao do informante. Um primeiro nvel de anlise visa aidentificar "os sistemas de signos, significados e aes", ou seja:1) os diferentes tipos de signos associados identificao de umdeterminado problema, gravidade desse problema ou

    necessidade de tratamento; 2) as explicaes privilegiadasfrente a esses signos e 3) as reaes e aes que sodesencadeadas por esses signos. Um segundo nvel de anliseprocura examinar as articulaes entre "os sistemas de signos,significados e aes"e determinar o impacto especfico dediferentes elementos do contexto pessoal, social e cultural sobrea construo e a evoluo das reaes e dos comportamentos(Corin et al., 1989, 1990, 1992a, 1992b, 1993; Ucha et al.,1993).

    O modelo de anlise "dos sistemas de signos, de significados ede aes"possibilita a sistematizao da investigaoantropolgica na rea das grandes endemias. Ele permite o

    conhecimento das lgicas conceituais que organizam o campodas representaes culturais, associadas por populaesespecficas a cada endemia, e de elementos do contexto(experincia pessoal, exigncias profissionais, hbitos culturais,fatores ambientais, etc.) que podem influenciar a traduodessas representaes em comportamentos concretos (de risco,de proteo, frente aos recursos de sade existentes).

    O emprego desse modelo em estudos de diferentes problemasde sade pblica contribuir, certamente, para o refinamento dapesquisa nessa rea e para a reformulao das questesrelativas ao planejamento e organizao de programas desade, no sentido de maior adequao das intervenes s

    caractersticas sociais e culturais das populaes junto s quaisse quer intervir.

    CONCLUSONa perspectiva antropolgica, o universo scio-cultural dodoente visto no mais como obstculo maior efetividade dosprogramas e prticas teraputicas, mas como o contexto ondese enrazam as concepes sobre as doenas, as explicaesfornecidas e os comportamentos diante delas. Essa perspectivareorienta a percepo dos aspectos relacionados efetividadedas intervenes em sade. Se considerarmos que a efetividadede um programa de sade depende da extenso em que a

    populao aceita, utiliza e participa desse programa, essaefetividade parece, assim, ser dependente do conhecimento

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    prvio das maneiras caractersticas de pensar e agir associadas sade nessa populao e da habilidade do programa emintegrar esse conhecimento (Inecom, 1993).

    A antropologia desenvolveu importante aparelhagem conceituale metodolgica para o estudo sistemtico das maneiras culturais

    de pensar e de agir associadas sade. Ela permite examinaras relaes (interaes e contradies) entre os modelos deprtica, que suportam a organizao dos servios, os programasde preveno e as intervenes teraputicas, e os modelosculturais dos usurios. A partir da, ela fornece parmetros paraa reformulao da questo da adequao scio-cultural dosdiferentes programas de sade.

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