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1 A COLUNA PRESTES 60 ANOS DEPOIS: DISPUTAS EM TORNO DO PASSADO E CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA REGIÃO DAS MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL. 1 Amilcar Guidolim Vitor Universidade Federal de Santa Maria - UFSM [email protected] Júlio Ricardo Quevedo dos Santos Universidade Federal de Santa Maria UFSM [email protected] RESUMO No ano de 1924 Luiz Carlos Prestes liderou a partir de Santo Ângelo/RS a organização de um movimento rebelde em oposição ao presidente Artur Bernardes, que mais tarde daria origem a Coluna Prestes. Em 1996 foi inaugurado em Santo Ângelo um Memorial em homenagem a Coluna, o que gerou uma série de debates, questionamentos e disputas ideológicas quanto ao reconhecimento ou não daquele espaço como lugar de memória e expressão do patrimônio cultural da cidade. O presente trabalho discute sobre a história, a memória e o patrimônio ligados a Coluna Prestes em Santo Ângelo, na região das Missões do Rio Grande do Sul, evidenciando as disputas politicas em torno da memória e do patrimônio e como se produzem representações com o intuito de legitimar ou deslegitimar o passado, a memória e o patrimônio construído acerca de um evento histórico. Palavras-chave: História; Memória; Patrimônio; Representação. 1. INTRODUÇÃO A Coluna Prestes foi um movimento rebelde da década de 1920 importante no processo de desestabilização do sistema político da Primeira República. Na região das missões do Rio Grande do Sul, assim chamada em função do seu passado Jesuítico-Guarani dos séculos XVII e XVIII, especialmente nos municípios de Santo Ângelo e São Luiz

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A COLUNA PRESTES 60 ANOS DEPOIS: DISPUTAS EM TORNO DO PASSADO E

CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA REGIÃO DAS MISSÕES DO

RIO GRANDE DO SUL.

1Amilcar Guidolim Vitor

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

[email protected]

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

[email protected]

RESUMO

No ano de 1924 Luiz Carlos Prestes liderou a partir de Santo Ângelo/RS a organização de um

movimento rebelde em oposição ao presidente Artur Bernardes, que mais tarde daria origem a

Coluna Prestes. Em 1996 foi inaugurado em Santo Ângelo um Memorial em homenagem a

Coluna, o que gerou uma série de debates, questionamentos e disputas ideológicas quanto ao

reconhecimento ou não daquele espaço como lugar de memória e expressão do patrimônio

cultural da cidade. O presente trabalho discute sobre a história, a memória e o patrimônio

ligados a Coluna Prestes em Santo Ângelo, na região das Missões do Rio Grande do Sul,

evidenciando as disputas politicas em torno da memória e do patrimônio e como se produzem

representações com o intuito de legitimar ou deslegitimar o passado, a memória e o

patrimônio construído acerca de um evento histórico.

Palavras-chave: História; Memória; Patrimônio; Representação.

1. INTRODUÇÃO

A Coluna Prestes foi um movimento rebelde da década de 1920 importante no

processo de desestabilização do sistema político da Primeira República. Na região das

missões do Rio Grande do Sul, assim chamada em função do seu passado Jesuítico-Guarani

dos séculos XVII e XVIII, especialmente nos municípios de Santo Ângelo e São Luiz

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Gonzaga o movimento rebelde que deu origem a Coluna Prestes foi articulado e organizado

por Luiz Carlos Prestes, então Capitão Engenheiro do Exército que havia sido transferido para

Santo Ângelo depois de revoltas tenentistas2 ocorridas em julho de 1922 no Rio de Janeiro.

Em Santo Ângelo Luiz Carlos Prestes liderou as ações rebeldes em outubro de 1924 a

partir de outros levantes tenentistas iniciados em julho do mesmo ano, principalmente em São

Paulo. Prestes sublevou o 1º Batalhão Ferroviário deslocando-se e concentrando seu efetivo

rebelde na cidade de São Luiz Gonzaga, também na região das missões do Rio Grande do Sul.

Posteriormente, grupamentos de outras guarnições que também se rebelaram no Estado

vieram a São Luiz Gonzaga onde o efetivo rebelde do Rio Grande do Sul foi organizado.

Em 1925 rebeldes do Rio Grande do Sul e de São Paulo reuniram-se no Paraná e a

partir dali formou-se um movimento de oposição ao presidente Artur Bernardes que tinha

como grande objetivo destituí-lo do poder e promover aquilo que chamavam de moralização

da política brasileira. Para tanto, o movimento passou a empreender uma marcha pelo interior

do Brasil, a qual teve a duração de dois anos e três meses. Entre outubro de 1924 e fevereiro

de 1927, os rebeldes do movimento que passou a ser denominado e conhecido como Coluna

Prestes, principalmente em alusão a um dos seus principais líderes, Luiz Carlos Prestes,

percorreram aproximadamente vinte e cinco mil quilômetros passando por todas as regiões do

Brasil até se exilar na Bolívia.

Após o fim da Coluna Prestes, Luiz Carlos Prestes permaneceu por um tempo na

Bolívia, migrando depois para a Argentina, onde passou a ter uma aproximação maior com o

Partido Comunista Brasileiro (PCB), o qual resistiu em aceitá-lo como membro. Depois de

aceito, Prestes foi uma grande liderança do PCB, não só no Brasil como na América Latina.

Foi liderança da Aliança Nacional Libertadora (ANL), comandando movimento insurgente

em oposição ao governo Getúlio Vargas. Preso, permaneceu na cadeia até 1945. Foi eleito

Senador e participou da Constituinte entre 1946 e 1948. Cassado, viveu períodos na

clandestinidade. Em 1979 com a Lei da Anistia, Prestes pôde retornar ao Brasil. No início da

década de 1980 rompeu com o PCB e passou a viajar pelo Brasil levando suas ideias sobre

democracia e direitos da classe trabalhadora em uma época de transição do regime da ditadura

2 O movimento tenentista se desenvolveu principalmente a partir de 1922 em oposição aos governos dos

presidentes Epitácio Pessoa e, posteriormente, Artur Bernardes. Levava esta denominação pelo fato de seus

participantes serem, em sua maioria Tenentes e Capitães do Exército (PRESTES, 1997, p. 69).

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militar para o reestabelecimento da democracia, que só se concretizaria efetivamente, ou

simbolicamente como preferem outros, com as eleições diretas de 1989.

Passados 60 anos do início da Coluna Prestes em outubro de 1924, em 1984 foi

realizado um encontro com Luiz Carlos Prestes e alguns ex combatentes da Coluna em Santo

Ângelo. Tal encontro foi intitulado “Coluna Prestes: 60 anos depois”. A vinda de Luiz Carlos

Prestes ao município gerou grande repercussão, tanto nos meios de comunicação quanto na

sociedade civil. Na época a Câmara de Vereadores de Santo Ângelo negou o título de cidadão

honorário a Luiz Carlos Prestes. Houve representações contra e a favor de sua presença para

realização de palestras e debates acerca do passado da Coluna no município. Porém, pelo

momento que o Brasil vivia a época, obviamente seria traçado um paralelo entre os

acontecimentos de 1924 e a luta pela redemocratização em 1984.

Já nos anos 1990, a partir do governo do prefeito Adroaldo Mousquer Loureiro do

Partido Democrático Trabalhista (PDT) entre 1993 e 1996 foi idealizada e concluída a

implantação de um Memorial em homenagem a Coluna Prestes em Santo Ângelo. Para os

idealizadores do projeto, o Memorial seria uma homenagem e um marco na história pelo fato

de que a Coluna Prestes teria saído de Santo Ângelo em 1924 para percorrer o Brasil em

busca da moralização da política brasileira. Também seria um atrativo turístico para o

município aliado ao passado histórico das missões Jesuítico-Guarani de San Angel Custódio

do século XVIII.

Da mesma forma como quando da presença de Prestes em 1984, nos anos 1990

também foram produzidas representações sociais, especialmente através dos meios de

comunicação locais, acerca da legitimidade, ou não, do Memorial Coluna Prestes enquanto

espaço de história, memória e patrimônio cultural de Santo Ângelo. O presente trabalho tem

por objetivo problematizar estas questões que envolvem a disputa pela história, pela memória

e pelo patrimônio cultural a partir da produção de representações sociais baseadas em

convicções ideológicas ou por leituras singulares do passado fazendo-o projetar-se para o

presente.

2. LUIZ CARLOS PRESTES EM SANTO ÂNGELO E A MARCHA DA COLUNA

PRESTES NA DÉCADA DE 1920.

Os jovens oficiais do Exército que fizeram parte do movimento tenentista e que

passaram a contestar a autoridade do governo federal, especialmente após a vitória de Artur

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Bernardes, representante da situação, sobre Nilo Peçanha, representando a oposição nas

eleições de 1° de março de 1922, queriam não apenas a extinção da chamada política dos

governadores3, mas também defendiam eleições livres e limpas que permitissem a vitória dos

candidatos da oposição, pois, de acordo com eles, os pleitos eram fraudulentos. Desejavam a

moralização da política, reivindicavam os direitos dos cidadãos consagrados na Constituição

de 1891 e pleiteavam o voto secreto. Enfim, queriam o saneamento da vida pública nacional

(PRESTES, 1995, p. 12).

Após a vitória de Artur Bernardes nas eleições de março de 1922 e sua posse

definitiva estabelecida para novembro do mesmo ano, os jovens militares do Exército,

dissidentes do governo, passaram a acelerar seus preparativos visando à tentativa de impedir a

posse do presidente eleito. Os militares programaram sua sublevação contra o governo.

O levante de várias unidades militares sediadas no Rio de Janeiro, então capital da

República, e em outros pontos do país estava marcado para o dia 5 de julho de 1922.

Mas, devido à desorganização do movimento e às vacilações de muitos dos seus

participantes, a maior parte da oficialidade comprometida com a conspiração acabou

descumprindo a combinação feita com os seus camaradas (PRESTES, 1995, p. 08).

Nesta data uma das poucas unidades militares que se sublevaram efetivamente se

sublevou foi o Forte de Copacabana no Rio de Janeiro. Os militares que lá estavam foram se

rendendo aos poucos, restando apenas aqueles que ficaram conhecidos como os “dezoito do

Forte de Copacabana”, os quais saíram pelas areias da famosa praia carioca e foram alvejados

pelas tropas governistas restando vivos apenas os tenentes Antônio Siqueira Campos e

Eduardo Gomes.

Após o levante do Forte de Copacabana a maioria dos líderes envolvidos no

movimento opositor ao governo federal foram presos ou transferidos para outras unidades

militares do país. Dentre essas lideranças estava Luiz Carlos Prestes. Identificado como um

dos articuladores do movimento contra a posse de Artur Bernardes à presidência da

República, o oficial do Exército e engenheiro Prestes foi transferido para Santo Ângelo,

interior do Rio Grande do Sul, onde permaneceria até 1924 quando eclodiu o segundo levante

3 “Durante o governo do paulista Campos Sales (1898 – 1902), foi posta em prática a famosa ‘política dos

governadores’, um pacto fundamentado na aceitação da hegemonia paulista em nível nacional em troca do

reconhecimento da autonomia das oligarquias em âmbito local. Em outras palavras: a ‘política dos governadores’

significava que, por meio da fidelidade de suas bancadas no Congresso Nacional, os governadores dos estados

davam apoio ao presidente da república e, em troca, este assumia o compromisso de ‘respeitar’ os resultados das

eleições fraudulentas que garantiam a escolha dos governadores em seus respectivos estados” (PRESTES, 1995,

p. 18).

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contra o governo de Artur Bernardes e que deu origem à marcha da Coluna Prestes. De acordo

com o próprio Prestes: “Eu estava aqui em Santo Ângelo, para onde fui deslocado depois do

Levante, como punição, porque eu servia no Rio de Janeiro na época do Levante” (MEIHY;

BIAZO, 2004, p. 34).

É a partir desse momento que Santo Ângelo passa a fazer parte da história da Coluna

Prestes e foi baseando-se nestes acontecimentos que se idealizou entre os anos de 1994 e 1996

a criação do Memorial Coluna Prestes. Luiz Carlos Prestes chegou a Santo Ângelo em

outubro de 1922 para integrar a unidade do 1° Batalhão Ferroviário, recebendo a missão de

construir o trecho de ferrovia que ligaria as cidades de Santo Ângelo e Giruá, trabalhando

também na supervisão das obras de construção de quartéis para o Exército Nacional na região

de Santo Ângelo (BINDÉ, 2006, p. 291).

Entretanto, foi a partir de 1924 que as ações políticas de Prestes em relação à

contestação do regime político vigente no país tiveram maior destaque. Principalmente após a

eclosão de nova revolta tenentista em São Paulo no dia 5 de julho de 1924, quando

grupamentos da Força Pública e unidades do Exército sediados nesse Estado se rebelaram

contra o governo do presidente Artur Bernardes. Liderados pelo General reformado do

Exército Isidoro Dias Lopes e pelo Major da Força Pública de São Paulo Miguel Costa, o

objetivo do movimento era depor Bernardes.

Além de Luiz Carlos Prestes, outros oficiais do Exército que tiveram participação nos

movimentos de 1922 ou simpatizavam com as ideias rebeldes, voltaram a manter contato no

Rio Grande do Sul antes mesmo do início da revolta eclodida em São Paulo, em julho de

1924. “A conspiração acontecia desde janeiro de 1924, quando Prestes recebeu a visita do

então tenente Juarez Távora, cuja reunião foi feita em uma casa perto do acampamento do

Comandaí” (BINDÉ, 2006, p. 293). Sobre a visita de Távora e a eclosão do movimento

rebelde em São Paulo, o próprio Prestes afirma:

Recebi, aqui em Santo Ângelo, no meu acampamento, às margens ali do rio

Comandaí – onde estava construindo a ponte em cima da estrada de ferro – o

camarada Juarez Távora. Ele esteve aqui para conversar sobre a conspiração, para

saber em que pé ela estava em São Paulo, e para estabelecer as ligações entre a

guarnição do Rio Grande do Sul e a militar de São Paulo. No entanto, não fomos

avisados do Levante de 5 de julho de 1924 que, aliás, foi para nós uma surpresa.

Soubemos do Levante através dos telegramas da imprensa (MEIHY; BIAZO, 2002,

p. 34).

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Com o início da revolta em São Paulo os preparativos para que os aquartelamentos do

Rio Grande do Sul se rebelassem foram acelerados. Dessa forma, Luiz Carlos Prestes pediu

demissão do Exército em setembro de 1924, pois “recorreu a este expediente para criar a

impressão de que havia abandonado definitivamente a carreira militar e, assim, afastar as

suspeitas quanto à sua participação no movimento tenentista” (PRESTES, 1995, p. 33). A

partir desse momento a atuação de Prestes passou a ter maior destaque. Ele e o tenente Mário

Portela Fagundes foram os principais responsáveis pela adesão do 1° Batalhão Ferroviário de

Santo Ângelo ao movimento rebelde. “Prestes organizava suas reuniões na casa de Inocêncio

Silva em Santo Ângelo, onde eram recebidos e lidos telegramas, avisos e demais informações

sobre a revolta” (SILVA, 1959, p. 10).

Deflagrada a revolta em Santo Ângelo, o Capitão Luiz Carlos Prestes tentou tomar as

cidades de Ijuí e Tupanciretã, entretanto não logrou sucesso e decidiu reunir a tropa rebelde

na cidade de São Luiz Gonzaga. Antes disso, destacamentos comandados por Prestes e Mário

Portela Fagundes deslocaram-se até a região de Itaqui e São Borja, onde as tropas governistas

estavam em número maior e impondo sucessivas perdas ao efetivo revoltoso. Durante essa

passagem por São Borja, Luiz Carlos Prestes foi nomeado Comandante do efetivo do Rio

Grande do Sul (PRESTES, 1995, p. 39).

Após assumir o posto de Comandante, Prestes e outras lideranças do movimento

organizaram a tropa rebelde em São Luiz Gonzaga e, sendo acossados por efetivos legais do

governo do Rio Grande do Sul, passaram a empreender marcha em direção ao Paraná, onde

estava o efetivo paulista do movimento, comandado pelo Major da Força Pública de São

Paulo, Miguel Costa. A unificação de tropas riograndenses e paulistas aconteceu a partir de

abril de 1925. Entretanto, em função de estarem constantemente sob perseguição por parte de

efetivos militares do governo, os rebeldes passaram a efetivar deslocamentos sobre o território

brasileiro.

Após dois anos e três meses de marcha e inúmeros combates entre tropas rebeldes e

governistas os líderes da Coluna resolveram buscar novos caminhos para o movimento. O

presidente do país já era Washington Luís quando em fevereiro de 1927 a Coluna entrou na

Bolívia dando fim a uma marcha que percorreu aproximadamente 25 mil quilômetros,

empreendida durante dois anos e três meses, passando de sul a norte por diversos Estados

brasileiros, chegando a adentrar territórios do Paraguai até a chegada em Santa Cruz de La

Sierra. Sobre a situação que levou o efetivo a se refugiar na Bolívia, Luiz Carlos Prestes diz o

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seguinte: “Precisávamos estudar para compreender as causas de como em um país tão rico

como o nosso, o povo pode viver em tão grande miséria. Foi por isso que pensamos: estava

chegando o momento de terminarmos a luta [...]” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 66).

3. A COLUNA PRESTES 60 ANOS DEPOIS.

A vinda de Luiz Carlos Prestes ao município de Santo Ângelo no ano de 1984

aconteceu em um período marcado pelo processo de transição do regime militar para a

redemocratização política no Brasil. Nesse ano houve a campanha das “Diretas Já!”,

movimento civil que reivindicava as eleições presidenciais diretas. Dessa forma, as disputas

políticas entre setores progressistas e conservadores da sociedade estavam acirradas em todo

território nacional. É neste contexto em que Prestes foi convidado a vir até Santo Ângelo. “A

iniciativa de convidar Prestes para um encontro em Santo Ângelo foi idealizada, inicialmente,

pela Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos de Santo Ângelo (SENASA)” (MEIHY;

BIAZO, 2002, p. 13). O objetivo do encontro com Prestes era o de evidenciar as obras de

infraestrutura realizadas por ele quando de sua atuação como Capitão Engenheiro em Santo

Ângelo entre 1922 e 1924. Entretanto, tendo em vista o contexto social da época e a

importância política de Luiz Carlos Prestes, o evento acabou ganhando proporções maiores.

Com o passar do tempo, o objetivo da SENASA, de ter Luiz Carlos Prestes como

interlocutor, acabou ganhando proporções maiores que exigiram dos idealizadores

do projeto a realização de parcerias que, entre outras, contou com o apoio da

FUNDAMES (Fundação Missioneira de Ensino Superior). O articulador dessa

empreitada foi o professor Clowis Apollo Mitri, na época, Presidente da

FUNDAMES. A participação e o apoio dessa instituição universitária foi de

fundamental importância para a realização do evento tendo mobilizado, naquela

localidade, vários intelectuais e setores progressistas em geral [...]”(MEIHY;

BIAZO, 2002, p. 13).

O evento passou a ser divulgado como “Coluna Prestes – 60 anos depois”. Inicia neste

momento a iniciativa dos setores progressistas da sociedade santo-angelense em utilizar a

representatividade política de Prestes, pois era um momento em que a presença dele era

requisitada em vários lugares do Brasil, por várias instituições, meios de imprensa e

intelectuais, preocupados com os desdobramentos políticos do país (MEIHY; BIAZO, 2002,

p. 14). Assim, começaram a ser produzidas as representações em torno das ações políticas de

Luiz Carlos Prestes. Porém, “[...] era um período, pois, ainda desconfortável para a

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implementação de propostas que pretendiam enfrentar os setores conservadores da sociedade

que apoiavam a permanência do regime ditatorial” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 14).

A visita de Prestes foi marcada para os dias 27, 28 e 29 de outubro coincidindo com a

data do início do movimento rebelde de 1924 em Santo Ângelo. Além de cumprir a

programação prevista na cidade, Prestes também se dirigiria aos municípios de São Luiz

Gonzaga e Ijuí nos dias seguintes, respectivamente. Para Santo Ângelo, a programação

contava com recepção no aeroporto municipal, entrevista a imprensa e encontro com os ex-

veteranos da Coluna, além de painel, debate e palestra. Com a data marcada da visita de

Prestes a Santo Ângelo se iniciam embates entre grupos com ideias distintas acerca de Prestes.

Sobre o contexto político da época, João Baptista Santos da Silva, Vereador municipal neste

período, afirma:

[...] Em 1980, Santo Ângelo ainda vivia muito sob a égide da Revolução de 1964.

Os cargos políticos, praticamente todos, eram frutos do movimento de 1964,

embora já com algumas melhorias evidentemente, mas era muito lenta essa

reformulação na maneira de pensar e de abertura política. E a Câmara de

Vereadores não fugia a regra, nós tínhamos uma bancada de 11 vereadores, que era

bancada de situação formada pelos então vereadores do PDS, que tinham 11

vereadores, e o PMDB tinha 6 vereadores e o PDT contava com 4 vereadores [...]4.

Neste contexto, “[...] o retorno de Prestes a Santo Ângelo foi, contudo, um evento

polêmico em nível local, pois havia sido marcado pela resistência das alas mais conservadoras

da cidade [...]” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 14). A negativa deste grupo ficou explícita

quando, “[...] a Câmara Municipal de Vereadores negou o título de cidadão santo-angelense a

Prestes, durante aquela sua visita a cidade” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 15). Sobre esta

negativa, compreende-se por parte deste grupo político, a produção de uma representação

contra Prestes, baseada em sua atuação política, principalmente frente ao PCB. De acordo

com Meihy e Biazo (2002, p. 15): “[...] a petição idealizada pela vereadora Denise Galeazzi e

encaminhada, a seu pedido, pelo vereador Adroaldo Mousquer Loureiro, não tinha

conseguido aprovação, tendo recebido dez votos favoráveis, nove contrários e uma abstenção.

[...]”.

4 Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM) localizado em Santo Ângelo/RS no campus

da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). - Depoimento oral concedido por

João Baptista dos Santos Silva à Claudete Boff e Dione Mello Lenz, em 29/10/1998.

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Por outro lado, o grupo político liderado pelos Vereadores Denise Galeazzi e Adroaldo

Loureiro entendiam que a recepção a Prestes em Santo Ângelo e as homenagens que deveriam

ser prestadas eram legítimas, tendo em vista o caráter revolucionário que a Coluna Prestes

teve na década de 1920 e ao fato desse processo ter sido iniciado em Santo Ângelo quando

Prestes servia no 1º Batalhão Ferroviário. Assim, era importante para este grupo se utilizar da

representatividade política de Luiz Carlos Prestes produzindo representações em relação a

suas ações em 1924, a fim de incutir no imaginário da população santo-angelense do período

um sentimento de indignação com a situação política e social vigente, fazendo com que esta

visse em Prestes o seu “porta-voz”. Tal afirmativa pode ser verificada na afirmação de Meihy

e Biazo:

[..] Trata-se de dois momentos históricos, é evidente, mas a retomada da façanha de

1924 ganha também um peso simbólico, de uma nova coluna, na medida em que

metaforiza uma pretensa nova marcha pelo país. Como se a coluna Prestes em 1984

fosse um movimento que partindo de Santo Ângelo percorresse o Brasil, a intenção

do encontro deixa de lado o valor laudatório e assume um caráter militante

(MEIHY; BIAZO, 2002, p. 92).

Neste contexto, de acordo com o contexto político e social de 1984, o período

histórico de maior interesse para o grupo político progressista da sociedade santo-angelense

capaz de contestar o regime ditatorial estava ligado ao passado da Coluna Prestes e, mais

especificamente, a atuação política de Luiz Carlos Prestes. Dessa forma, a produção de

representações progressistas esteve baseada nos acontecimentos de 1924. Enquanto isso, as

representações conservadoras basearam-se nas ações políticas de Prestes frente ao PCB.

4. A IMPLANTAÇÃO DO MEMORIAL COLUNA PRESTES E O SEU LUGAR

NO PATRIMÔNIO DA REGIÃO DAS MISSÕES.

Em dezembro de 1996 foi inaugurado em Santo Ângelo o Memorial Coluna Prestes. O

prefeito da época e um dos idealizadores do projeto era o senhor Adroaldo Mousquer

Loureiro, do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Loureiro recorda que “[...] como

prefeito, inclusive eu conversava muito com a Gládis (Diretora do Museu Municipal) sobre

isso. Resgatar essa história toda que é uma coisa importante, pra cultura, até mesmo pro

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próprio turismo nosso [...]” 5 . Loureiro fora um dos vereadores que em 1984 queria a

concessão do título de cidadania honorária de Santo Ângelo a Luiz Carlos Prestes.

Apesar de na década de 1990 a democracia estar restabelecida, havia ainda a

manifestação contrária de grupos conservadores quanto aos assuntos ligados à Coluna Prestes

e a Luiz Carlos Prestes. Conforme verificado no periódico Jornal das Missões, em matéria

publicada no ano de 2002: “Apesar da relevância histórica, apenas a partir de 1993, na

administração do hoje deputado Adroaldo Loureiro, é que a rica história de Prestes começou a

ser resgatada no município que viu nascer a Coluna Prestes” (JORNAL DAS MISSÕES,

2002, p. 11).

Após dois anos de atividades voltadas para a viabilização do projeto de implantação

do Memorial Coluna Prestes ele foi inaugurado em 17 de dezembro de 1996, contando com a

presença de autoridades municipais, estaduais e federais, como o prefeito de Santo Ângelo

Adroaldo Loureiro, o governador do Rio Grande do Sul Antônio Britto e o senador da

república Roberto Freire, além da viúva de Luiz Carlos Prestes, Maria do Carmo Ribeiro e um

dos filhos do casal, Luiz Carlos Prestes Filho, o qual esteve diretamente envolvido com o

projeto. Após o evento, as notícias sobre os atos de inauguração do Memorial tiveram como

principais destaques as palavras das autoridades e de Luiz Carlos Prestes Filho. De acordo

com o noticiado por A Tribuna Regional:

[...] o filho do líder comunista, Luiz Carlos Prestes Filho, leu o manifesto que seu

pai, Capitão Luiz Carlos Prestes, assinou em 28 de outubro de 1924 e que fora o

primeiro documento político da sua vida. O Governador Britto enfatizou que o

gaúcho é um povo motivado a construir o seu futuro e cultivar o seu passado, mas o

Rio Grande do Sul somente será grande se tiver orgulho dos seus ancestrais (A

TRIBUNA REGIONAL, 1996, p. 14).

A implantação do Memorial Coluna Prestes em 1996 não foi uma unanimidade na

comunidade santoangelense. A iniciativa partiu de um grupo político representado pelo

prefeito Adroaldo Loureiro que acreditou nos benefícios culturais e econômicos que o local

poderia trazer para a cidade de Santo Ângelo. Apesar disso, houve interpretações distintas por

parte daqueles que não perceberam o projeto dessa forma, o que gerou a produção de

5 Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM) localizado em Santo Ângelo/RS no campus

da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).- Depoimento oral concedido por

Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello Lenz, em 06/11/1998.

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representações sociais tanto daqueles que aprovaram quanto daqueles que não foram a favor

da implantação do Memorial.

A idealização e criação do Memorial Coluna Prestes tiveram como objetivos, de

acordo com os seus idealizadores, rememorar e homenagear os acontecimentos rebeldes de

1924 em Santo Ângelo e que deram origem à marcha da Coluna Prestes, além da importância

histórica da figura política de Luiz Carlos Prestes. Como se divulgava na época: “Este espaço

histórico-cultural tem como objetivo homenagear e resgatar um dos fatos mais marcantes na

história do Brasil, servindo como referencial para o seu conhecimento e divulgação”

(TAVARES, 1996, p. 04). Também com a criação do novo espaço de memória do município

se tinham os objetivos econômicos, através do turismo que se acreditava iria projetar Santo

Ângelo nacionalmente.

Prevendo o aproveitamento cultural do Memorial Coluna Prestes a imprensa

santoangelense já fazia projeção de como o local seria útil. “Formado pelas duas obras de arte

e mais um completo museu o Memorial santo-angelense se tornará uma visitação obrigatória

para uma vasta legião de pessoas que querem conhecer cada vez mais sobre a história de

Prestes” (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).

Principalmente o periódico Jornal das Missões, ligado ao prefeito Adroaldo Loureiro

comemorava os benefícios que o Memorial Coluna Prestes traria para Santo Ângelo. Tais

benefícios não estavam relacionados apenas ao desenvolvimento cultural da cidade através da

valorização do passado em um novo lugar de memória, mas, fundamentalmente, tratava-se de

benefícios econômicos com o desenvolvimento do turismo na cidade, agregando novos pontos

de referência turística ao município. O jornal destacava o seguinte:

Outro aspecto a ser destacado nessa iniciativa da administração municipal de Santo

Ângelo em homenagear a Coluna Prestes é a atração turística em que se constituirá o

Memorial. O monumento colocado na Avenida Ipiranga é a única obra projetada

pelo mais importante arquiteto do país, Oscar Niemayer, situada no Rio Grande do

Sul e isso, além da importância histórica e cultural, vale como atrativo. É de se

destacar que projeto de Niemayer não teve custo nenhum para o município, foi

doado pelo arquiteto que foi companheiro de partido e admirador confesso do

“Cavaleiro da Esperança” (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).

Por outro lado, também houve resistências em relação ao Memorial Coluna Prestes em

Santo Ângelo. Essas resistências eram sentidas desde a década de 1980, como evidenciado

anteriormente. Em depoimento ao Jornal das Missões, o professor Valmir Muraro, que fez

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parte da organização do evento que trouxe Prestes a Santo Ângelo em 1984, relata a ideia que

se tinha acerca do comunismo.

Os comunistas eram vistos como pessoas de uma periculosidade até assustadora. Eu

lembro que nas escolas depois de 64, antes do inicio das aulas a gente rezava

pedindo a Deus que nos libertasse das ameaças do comunismo. As professoras

diziam que o comunismo viria tirar os animais e as terras dos colonos. Certamente

esta visão anticomunista associada à figura de Prestes o transforma num vilão

(MEOTTI, 2009, p. 05).

Não apenas o preconceito que se tinha em relação à orientação política de Luiz Carlos

Prestes, mas também a contrariedade em relação a sua presença em Santo Ângelo ficou

comprovada com a negativa do título de Cidadão Honorário em 1984. Sobre esse evento, Luiz

Carlos Prestes Filho recorda:

[...] Quando meu pai esteve visitando Santo Ângelo, em 1984, o então vereador

Adroaldo Loureiro quis dar a ele o titulo de Cidadão Honorário de Santo Ângelo e

naquele momento a Câmara Municipal negou. Além disso, quando ele chegou a

Santo Ângelo foi dada ordem expressa de que se o ex- capitão Luiz Carlos Prestes se

aproximasse do Batalhão de Comunicações os soldados tinham que abrir fogo.

Imaginem só, o papai estava com 86 anos, e ainda emitia medo naquela época no

Exército. Então dá para perceber como nós mudamos, como o Brasil mudou. [...]

(MEOTTI, 2009, p. 05).

A iniciativa de trazer Luiz Carlos Prestes a Santo Ângelo desagradou, de maneira

geral, toda a ala conservadora da política local. Valmir Muraro recorda e destaca: “Nosso

objetivo não era, de forma alguma, fazer apologia ao comunismo ou política partidária, mas

como historiadores queríamos registrar um acontecimento histórico importante para a região

[...]” (MEOTTI, 2009, p. 05).

O principal argumento utilizado pelo grupo citado por Loureiro para representar o

Memorial Coluna Prestes como algo desnecessário para Santo Ângelo esteve vinculado à

ideia de que se estaria desperdiçando dinheiro público para homenagear um comunista, pois,

“[...] diziam que se estava investindo dinheiro público pra uma coisa que não tinha valor. O

Prestes, comunista, a Coluna, era um bando de arruaceiros, enfim, eram contra a democracia.

Depreciavam o valor da Coluna e a figura do Prestes”. 6

Apesar de todas as manifestações e representações contrárias o Memorial foi

inaugurado em dezembro de 1996, o que fez com que o grupo político e demais cidadãos

6 Depoimento oral concedido por Adroaldo Loureiro ao autor em 29/12/2011.

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contrários ao projeto tivessem de aceitar o fato de que o espaço criado se tornou referência em

termos de ressignificação da memória vinculada à Coluna Prestes e a Luiz Carlos Prestes.

Entretanto, aceitar não significa reconhecer o espaço enquanto expressão do patrimônio

cultural de Santo Ângelo, algo que até hoje não é uma unanimidade entre toda a comunidade

santoangelense. Exemplo disso encontrei durante as pesquisas nos escritos de um colunista do

jornal A Tribuna Regional, onde o mesmo expressa todo o seu descontentamento em relação à

figura política de Luiz Carlos Prestes e o Memorial Coluna Prestes.

Para vergonha e repúdio da nação, o nome de Luiz Carlos Prestes, covarde assassino

e vendilhão de sua pátria, é dado a logradouros públicos, por indicação de

autoridades executivas ou de políticos levianos e oportunistas, sem o menor

sentimento de patriotismo. Certamente, desconhecem a verdadeira história ou

esposam ainda filosofias sanguinárias e ditatoriais. Em nossa querida Capital

Missioneira, usamos e veneramos o nome e a figura de Prestes, para fins turísticos,

com o argumento de que quando iniciou a marcha, hoje denominada “Coluna

Prestes”, este ainda não era militante do comunismo internacional e defendia ideais,

digamos, mais “patrióticos” (MULLER, 2009, p. 06).

Mesmo que o Memorial Coluna Prestes esteja afirmado na cidade de Santo Ângelo

enquanto um espaço de memória, de ressignificação do passado, de usos culturais,

econômicos ou políticos, ele ainda é um espaço em debate, o que gera e pode gerar

representações contra o local. Assim como houve manifestações a favor de sua criação e que

o estabeleceram como expressão do patrimônio cultural de Santo Ângelo, também, quem foi

contrário à iniciativa na década de 1990, procurou representá-lo como algo negativo para a

cidade baseados principalmente em suas ideologias políticas contrárias a que foi seguida por

Luiz Carlos Prestes em praticamente toda a sua atuação como homem público no Brasil.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Coluna Prestes se constituiu em um dos movimentos rebeldes mais significativos do

período da Primeira República no Brasil. Sua existência significou o início de uma época em

que o modo como era conduzida a política naquele período passou a ser duramente

contestado, principalmente no que se refere à centralização das decisões na região sudeste. A

marcha pelo interior do Brasil desenvolvida em dois anos e três meses, passando por todas as

regiões do país expôs o atraso e a situação de carestia que a maior parte da população sofria.

Tendo iniciado em outubro de 1924 no município de Santo Ângelo sob a liderança de

Luiz Carlos Prestes e com a organização do efetivo gaúcho em São Luiz Gonzaga, o

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movimento rebelde passou efetivamente a empreender marcha a partir de março de 1925

quando da junção de tropas gaúchas e paulistas no Paraná. Depois de mais de 20 mil

quilômetros percorridos e tendo verificado que os problemas políticos e, sobretudo sociais

brasileiros eram estruturais, o comando da Coluna optou pelo Exilio na Bolívia em fevereiro

de 1927.

Com a criação do Memorial Coluna Prestes em 1996 no município de Santo Ângelo,

os idealizadores do projeto acreditavam que estavam “resgatando”, como eles mesmo diziam,

os eventos do passado relacionados à Coluna Prestes. Para quem trabalha com a pesquisa e a

escrita da história, sabe-se que isso é impossível. A história e principalmente os lugares de

memória ou expressões do patrimônio cultural que se efetivam a partir dela, jamais podem ser

entendidos como um simples resgate. São representação, seleção e (re)construção social do

passado a partir do presente. Tudo isso é feito intencionalmente. No caso do Memorial Coluna

Prestes se estava sim demarcando o passado e construindo um espaço a ser reconhecido como

parte do patrimônio cultural local, assim como também se tinha a intenção de transformá-lo

em um local de visitação, em um ponto turístico a ser agregado a outras expressões do

passado e possibilitar o desenvolvimento econômico.

Entretanto, a trajetória política de Luiz Carlos Prestes foi marcante no século XX no

Brasil. Prestes fez parte de acontecimentos decisivos tanto na fragmentação e desestruturação

da República Velha, como quando liderou a Coluna que leva seu nome, quanto nos

acontecimentos que marcaram a construção e afirmação da Nova República. Faleceu no início

da década de 1990, tendo sua história de vida diretamente entrelaçada com a história política

brasileira desde a década de 1920.

Tal biografia não passaria despercebida, e quando da efetivação da implantação do

Memorial Coluna Prestes houve significativa resistência quanto à implantação de um

Memorial em Santo Ângelo que estivesse ligado a Coluna Prestes e a trajetória política de

Luiz Carlos. A construção e o reconhecimento das expressões do patrimônio cultural também

são um choque de ideologias e de representações do passado. Muitos viram o Memorial

Coluna Prestes como uma homenagem necessária a figura do Cavaleiro da Esperança

imortalizado na biografia escrita por Jorge Amado. Outros acreditavam que era absurda a

associação de Santo Ângelo com a trajetória de um comunista.

São estes embates pelo passado, pelas memórias, pelos acontecimentos e pelas pessoas

que definem aquilo que se esquece e aquilo que se preserva. Às vezes é conveniente esquecer,

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às vezes, indispensável lembrar. O patrimônio cultural é também fruto desse processo de

produção de representações sociais e busca pela legitimidade de algumas expressões.

Principalmente com o Memorial Coluna Prestes isto não seria diferente.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM), de Santo Ângelo/RS. -

Depoimento oral concedido por Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello

Lenz, em 06/11/1998.

A TRIBUNA REGIONAL. Memorial à Coluna Prestes será inaugurado no dia 17. Santo

Ângelo, 14-15 dez. 1996. p. 07.

_____. Santo Ângelo, 18 dez. 1996. p. 14.

BINDÉ, W. C. Santo Ângelo: terra de muitas histórias. Santo Ângelo: Multicor, 2006.

JORNAL DAS MISSÕES. Filho de Prestes visita a URI. Santo Ângelo, 25 fev. 1995. p. 10.

_____. Santo Ângelo, 28 mai. 2002. p. 11.

_____. Projeto “Memorial à Coluna Prestes” em andamento. Santo Ângelo, 28 ab. 1995.

p. 02.

_____. Editorial. Memorial a Prestes resgata a História. Santo Ângelo, 28 nov. 1996. p. 02.

_____. Cidade Alerta. Santo Ângelo, 12 dez. 1996. p. 02.

_____. Orgulho para os santo-angelenses. Santo Ângelo, 21 dez. 1996, p. 09.

LOUREIRO, A. M. Adroaldo Mousquer Loureiro: depoimento [nov. 1998].

Entrevistadores: Claudete Boff e Dione Mello Lenz. Arquivo de Entrevistas do Centro de

Cultura Missioneira (CCM).

______. Adroaldo Mousquer Loureiro: depoimentos [dez.2011]. Entrevistador: Amilcar

Guidolin Vitor.

MEIHY, J. C. S. B.; BIAZO, G. C. F. O retorno de Luiz Carlos Prestes a Santo Ângelo.

Santo Ângelo: Ediuri, 2002.

MEOTTI, F. “Ele nunca se conformou em aceitar a situação”. Jornal das Missões. Santo

Ângelo, 25 jul. 2009. p. 05.

MULLER, E. Coluna Recanto do Sabiá. A Tribuna Regional. Santo Ângelo, 12 dez. 2009.

Cad. Cultura, p. 06.

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PRESTES, A. L. Coluna Prestes: uma epopeia brasileira. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1995.

______. A Coluna Prestes. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

SANTOS, E. Coluna Prestes ganha Memorial em Santo Ângelo. Jornal das Missões. Santo

Ângelo, 14 dez. 1996. Cad. Fim de Semana, p. 04.

SILVA, J. Farrapos de nossa história: marcha da Coluna Prestes, do extremo sul às

cabeceiras do rio Apa. São Nicolau: Tipografia O Debate, 1959.

TAVARES, G. P. Memorial à Coluna Prestes será inaugurado no dia 17. A Tribuna

Regional. Santo Ângelo, 14-15 dez. 1996. p. 07.

_____. Coluna Prestes inaugura seu Memorial na terça-feira. A Tribuna Regional. Santo

Ângelo, 14-15 dez. 1996. Cad. Turismo, p. 04.