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A crítica de Gonzaga-Duque e a reprodução do real nas artes plásticas Elizeu do Nascimento Silva Considerada em conjunto, a produção artística é uma expressão cultural de épocas e lugares determinados, refletindo não apenas a estética predominante na sociedade onde vem à luz, como também sua ética e seus valores, seu modo de pensar e de se relacionar com o meio. Vista desta perspectiva, a apreensão de seus significados deveria constituir-se num processo natural para a sociedade contemporânea e conterrânea do artista, favorecida pela proximidade na visão de mundo, nos valores e nas formas de relações com o meio. Além disso, quanto mais se torna abstrata, mais a arte se universaliza o que, em tese, a tornaria também mais decifrável. Sabe-se, contudo, que não é assim. Espíritos livres, os artistas atuam na esfera do devir, sem compromisso com o cognoscível imediato. É uma visão particular que se pretende universal, exigindo a participação de todos os atores do jogo da arte 1 relatado por CAUQUELIN (2005:98), jogo este no qual as imagens (tropos) apenas sugerem seus significados e a organização da obra não se sujeita a uma sintaxe rígida e universal. Para além dos aspectos lúdicos, o jogo da arte avança para o campo filosófico em busca das relações entre o sujeito e o objeto artístico, cuja totalidade é condição indispensável para a existência da obra. A obra como ‘jogo’ só brota com a condição de participação ativa, de interpenetração, de um diálogo no qual o que advém enquanto se dialoga é a verdade do diálogo, o fato de ele ocorrer e que, ocorrendo, consegue representar seu próprio ser de diálogo; o que se tem em vista não é a verdade que resultaria de uma argumentação, nem a verdade no sentido de uma correspondência entre real e ficção, nem a verdade ‘científica’, mas um ‘jogo como verdade’, um jogo que só é verdade quando está sendo jogado. (2005:99) Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-UNESP), professor universitário na Universidade de Mogi das Cruzes, jornalista e editor. 1 Constituição hermenêutica de sentido da arte baseada na experiência estética “desenvolvida na confrontação permanente de si e do outro” CAUQUELIN (2005:98).

A crítica de gonzaga duque e a reprodução do real nas artes plásticas

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Luiz Gonzaga Duque Estrada, ou simplesmente Gonzaga-Duque, foi um destacado crítico de arte brasileiro que alcançou a condição de importante referência nos estudos sobre arte brasileira do final do século XIX e começo do XX.

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A crítica de Gonzaga-Duque e a

reprodução do real nas artes plásticas

Elizeu do Nascimento Silva

Considerada em conjunto, a produção artística é uma expressão cultural de épocas e

lugares determinados, refletindo não apenas a estética predominante na sociedade onde vem

à luz, como também sua ética e seus valores, seu modo de pensar e de se relacionar com o

meio. Vista desta perspectiva, a apreensão de seus significados deveria constituir-se num

processo natural para a sociedade contemporânea e conterrânea do artista, favorecida pela

proximidade na visão de mundo, nos valores e nas formas de relações com o meio. Além

disso, quanto mais se torna abstrata, mais a arte se universaliza – o que, em tese, a tornaria

também mais decifrável.

Sabe-se, contudo, que não é assim. Espíritos livres, os artistas atuam na esfera do

devir, sem compromisso com o cognoscível imediato. É uma visão particular que se

pretende universal, exigindo a participação de todos os atores do jogo da arte1 relatado por

CAUQUELIN (2005:98), jogo este no qual as imagens (tropos) apenas sugerem seus

significados e a organização da obra não se sujeita a uma sintaxe rígida e universal. Para

além dos aspectos lúdicos, o jogo da arte avança para o campo filosófico em busca das

relações entre o sujeito e o objeto artístico, cuja totalidade é condição indispensável para a

existência da obra.

A obra como ‘jogo’ só brota com a condição de participação ativa, de interpenetração, de

um diálogo no qual o que advém enquanto se dialoga é a verdade do diálogo, o fato de ele

ocorrer e que, ocorrendo, consegue representar seu próprio ser de diálogo; o que se tem

em vista não é a verdade que resultaria de uma argumentação, nem a verdade no sentido

de uma correspondência entre real e ficção, nem a verdade ‘científica’, mas um ‘jogo

como verdade’, um jogo que só é verdade quando está sendo jogado. (2005:99)

Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-UNESP), professor

universitário na Universidade de Mogi das Cruzes, jornalista e editor. 1 Constituição hermenêutica de sentido da arte baseada na experiência estética “desenvolvida na confrontação

permanente de si e do outro” CAUQUELIN (2005:98).

Cabe à crítica participar do jogo refletindo sobre a arte e seus processos, bem como

sobre as conexões com a história e com o pensamento filosófico. Desta forma, a crítica

realiza a mediação tanto ilustrando os meandros da arte às vezes impenetráveis para o leigo,

como contextualizando-a num sistema filosófico e cultural mais amplo. Por outro lado,

desafia o artista a trilhar caminhos inexplorados e a experimentar processos inovadores,

desempenhando o seu papel numa atuação de mão dupla.

Luiz Gonzaga Duque Estrada, ou simplesmente Gonzaga-Duque, foi um destacado

crítico de arte brasileiro que alcançou a condição de importante referência nos estudos

sobre arte brasileira do final do século XIX e começo do XX. Nascido em 1863, viveu até

1911, quando faleceu vítima de enfarte fulminante. Filho de uma brasileira com um suíço, a

quem não conheceu, Gonzaga-Duque não frequentou cursos universitários. Adquiriu

respeito exercendo o jornalismo cultural, publicando críticas e crônicas em veículos como

O Paiz, A Semana, Diário de Notícias, Folha Popular, Kósmos e Fonfon, entre outros. As

informações são apresentadas pela pesquisadora Cristina Pierre de França, no artigo

“Gonzaga Duque: Crônicas dos salões na Revista Kósmos”, publicado na revista eletrônica

Dezenove & Vinte.2

Dezoito anos após a morte de Gonzaga-Duque, uma parte considerável de seu

trabalho foi organizada e publicada na forma de coletânea, sob o título “Contemporâneos”,

com textos que vão de 1901 a 1908. Segundo o ensaísta Tadeu Chiarelli (GONZAGA-

DUQUE, 1995:46), nesta obra Gonzaga-Duque canaliza seus comentários para as soluções

plásticas adotadas pelos artistas em detrimento da temática mais marcante em sua atuação,

a questão da arte nacional. Chiarelli afirma que Gonzaga-Duque assimilou o valor

cosmopolita da arte brasileira, postura que fez dele o “primeiro crítico no país a entender

que a arte brasileira se caracterizaria mais pelo diálogo que ela poderia estabelecer com a

arte internacional”. Entretanto, ele recuaria desta posição alguns anos depois, voltando a

defender a necessidade de uma arte genuinamente brasileira, “baseada nos sentimentos das

‘três raças formadoras’.” (GONZAGA-DUQUE, 1995:48-50). O crítico que se revela nas

páginas de “Contemporâneos” é um indivíduo de posições claras, que não hesita em tecer

rasgados elogios ou disparar condenações mortais, conforme suas convicções indiquem o

merecimento de cada artista.

2 http://www.dezenovevinte.net

De Rodolpho Amoedo, afirma ser “o mestre”, comparável a Eugène Delacroix não

apenas no domínio das técnicas da pintura e na qualidade do trabalho, mas também no

“conhecimento exacto da sua arte e de tudo quanto lhe está relacionado, a philosophia, a

literatura, as escolas, os modos, os caprichos de cada época [...]”3. (p. 9)

Sobre a tela Más Notícias, pintada em 1895, Gonzaga-Duque afirma ser ela

“attestado das excepcionaes qualidades do mestre”, destacando a capacidade na pintura de

revelar o “flagrante d’alma feminina, um instantâneo maravilhoso do tormento de um

coração que a carta amarrotada nas suas lindas garras de airosa dama senão de deusa

contrariada, acaba de sangrar”. (p. 18). Da exposição de Elyseu Visconti, aluno de grandes

mestres, entre os quais Rodolpho Amoedo, afirma ter sido “uma das mais completas, das

mais importantes exposições de arte aqui franqueadas ao público”. (p. 19). Uma obra,

especificamente, merece longo comentário do crítico. Referindo-se à tela Oréadas, pintada

em 1899, Duque escreve:

Interpretando assumpto de tão remota creação, o artista procurou dar-lhe o

tom característico [...]

O aspecto sadio desses corpos em que a adolescencia está desabrochando

com o frescor d’uma Veiga em Maio, a plastica rythmica de seus

movimentos, a alegria franca de seus rostos innocentes, compõem um todo

adoravel de ingenuidade e jubilo, de bucolismo e venturas, a que serve de

adequado, perfeito, imprescindível enquadramento, por contraste, a

discreta e risonha paizagem do scenario. (p. 23)

Na crítica branda endereçada a Antônio Parreiras a propósito da tela “Sem

trabalho”, integrante da exposição de 1905, Gonzaga-Duque revela mais uma vez a sua

preferência pela arte figurativa que procura reproduzir iconograficamente a cena possível:

[...] se as expressões do pobre pae e da misera mulher estão flagrantemente

reproduzidas nas posturas e nas physionomias, com especialidade a figura

do homem, cujo rosto traduz a dor sem lagrimas, sobre possuir n’attitude

do corpo a authenticidade da sua condição social... (p. 47)

De Hélios Seelinger, afirma não ser ele naturalista:

3 Nos excertos de “Os Contemporâneos” será respeitada a grafia da época, como registrado no livro.

O que o tóca no centro emotivo, o que o commove e o leva da idéa á

imagem, é esse natural depurado na sua imaginativa. E essa se nos

desvenda nos bizarrismos duma superexcitação, dum estado hypernervoso

que determina phases geraes da psychopathia. (p. 53)

No entanto, Gonzaga-Duque não poupa críticas ao irmão de Pedro Américo, Aurélio

de Figueiredo, na exposição deste. A propósito do quadro “Redempção do Amazonas”, o

crítico acusa o pintor de ter-se deixado guiar pela fantasia.

Percebe-se unicamente agglomeração calclada de estofos, verdes, roseos,

azues, roxos; um luxo oriental de tecidos finos, sedas e vasos, perolas e

joias, e flores, sempre flores, as mais bellas, as mais viçosas por toda a

parte, n’uma apotheose á Primavera que vae surgir.

[...]

O distinto artista não quiz dar-se ao trabalho de meditar sobre o assumpto.

Fel-o confiado no seu talento. (p. 80-81)

Ainda se referindo à obra de Aurélio Figueiredo, Gonzaga-Duque demonstra sua

decepção:

Sinceramente: a concepção do quadro do Sr. Aurélio é infeliz. (p. 83)

Vê-se claramente que o artista não estudou o quadro como deveria ter feito

para conseguir obra digna do seu nome e do assumpto.

As figuras parecem feitas de cór e distribuidas á primeira impressão, em

algumas, como na do negro, o desenho é horrível, e se não fosse o

brilhantismo de colorido, uma certa graça na collocação dos grupos, o

trabalho estaria perdido. (p. 85)

Reforçando sua predileção pela figuração naturalista, afirma:

Ah! Se o artista em logar de encher a sua tela decorativa de tanta riqueza

de estofos, columnas de marmore, e tapetes e flores e amphoras, tivesse

pintado uma paysagem do Amazonas, a matta virgem d’aquella região

vastíssima!... Talvez tivesse interpretado o assumpto. (p. 86)

Quando, porém, se depara com obras por meio das quais o artista consegue

reproduzir as sensações do real, Gonzaga-Duque se sente recompensado. Ele não hesita em

elogiar a exposição de Modesto Brocos, destacando a capacidade de observação do artista:

Vê-se bem que esse trabalho requereu grande paciencia observadora, e

cada uma das figuras desse bello quadrinho, valioso tanto por seu

merecimento de arte transportadora como pelo assumpto, é um estudo de

typos conseguido com o mais feliz exito e constitue um excellente

producto...

[...]

Mas onde Modesto Brocos dá a sua nota característica, accusa a sua

decisiva tendencia, é nos retratos, de uma realidade adoravel, de uma

reprodução fidelissima. (p. 89)

A observação feita ao trabalho de Modesto Brocos – “realidade adorável, de uma

reprodução fidelíssima” – oferece ao leitor contemporâneo, afastado em um século da

época em que o crítico atuava, uma chave valiosa para a compreensão da orientação

estética seguida por Gonzaga-Duque.

Vivendo sob a influência do pensamento cientificista e da busca obstinada pela

racionalidade, orientado por uma ética que se despojava das tradições em favor do

empírico, Gonzaga-Duque se entusiasmava com trabalhos que revelavam o esmero do

artista em reproduzir com máxima perfeição a realidade visível. Obviamente a sua análise

não se limita à capacidade do artista de reproduzir o real, ocupando-se também do tema.

Entretanto, salta aos olhos na coletânea “Contemporâneos” o maior interesse do crítico pela

habilidade do artista, o que permite uma compreensão maior sobre seus pontos de vista e

seus escritos.

Bibliografia

ABRÃO, Bernadette Siqueira (org.). História da filosofia. São Paulo : Editora Nova

Cultural, 2004.

CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo : Martins Fontes, 2005.

DUQUE, Gonzaga. Contemporâneos: pintores e esculptores). Rio de Janeiro, RJ :

Typografia Benedicto de Souza, 1929

______. A arte brasileira. Campinas, SP : Mercado de Letras, 1995

Sítios na Internet

ESPINDOLA, Alexandra Filomena. Vida na arte em Gonzaga Duque. 19&20, Rio de

Janeiro, v. IV, n.4, out. 2009. Disponível em:

http://www.dezenovevinte.net/criticas/gd_afe.htm>. Página consultada em 13/12/2009.

FRANÇA, Cristina Pierre de. Gonzaga Duque: Crônicas dos Salões na Revista Kósmos.

19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em:

<http://www.dezenovevinte.net/criticas/gd_Kósmos.htm>. Página consultada em

13/12/2009.