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Página 1 de 25 A CUMULAÇÃO PROCESSUAL NO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO Sérgio Gonçalves do Cabo Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Evocação pessoal Conheci o Professor Doutor António de Sousa Franco em Janeiro de 1991, aquando do meu concurso para assistente estagiário da Faculdade de Direito de Lisboa. Na altura, coube-lhe a tarefa de arguir o trabalho que então apresentei a concurso e, aquando da sua publicação, não pude deixar de ter em conta as observações que então me fez. 1 Desde essa altura que a minha actividade académica e profissional iria ficar definitivamente marcada pela sua personalidade, quer quando me convidou para elaborar um estudo para o Tribunal de Contas sobre a fiscalização financeira do sector empresarial do Estado por Tribunais de Contas ou instituições equivalentes no direito português e no direito comparado, 2 quer quando me pediu ajuda para actualizar os capítulos sobre finanças locais e regionais das lições de Finanças Públicas II 3 e quando me convidou para participar no livro sobre Finanças Europeias. 4 Em todas essa ocasiões tive oportunidade de o conhecer mais de perto e de passar a admirar a sua inteligência fulgurante, a sua cultura fora do vulgar e as suas qualidades pessoais e humanas. Ainda hoje recordo as sessões de mestrado das duas disciplinas em que foi meu professor (Finanças Públicas e Direito Económico Comunitário) e a forma brilhante e ao mesmo tempo desconcertante para nós, com que abordava os diversos temas que iam sendo apresentados – nem se sentia o passar das horas… Mais tarde, vim a colaborar profissionalmente com o Professor Doutor António de Sousa Franco como adjunto do seu Gabinete no XIII Governo Constitucional, quando desempenhou as funções de Ministro das Finanças. Tive então oportunidade de conhecer a sua faceta de homem de Estado e de servidor da causa pública. A sua capacidade de trabalho, a forma como sabia envolver todos os que com ele colaboravam, directa e indirectamente, e o respeito e admiração que granjeava de entre funcionários a dirigentes do Ministério, deixaram-me profundamente impressionado. Mesmo depois de ter cessado funções como adjunto do Gabinete para ocupar um lugar a que concorri no Instituto Monetário Europeu, que depois seria substituído pelo Banco Central Europeu, continuei a acompanhar a sua actividade como Ministro das Finanças e a sua intervenção cívica após ter cessado essas funções. 1 Cfr. Sérgio Gonçalves do Cabo, A Concessão de Exploração de Empresas Públicas, Lisboa, AAFDL, 1992, p. 13. 2 Sérgio Gonçalves do Cabo, A Fiscalização Financeira do Sector Empresarial do Estado por Tribunais de Contas ou Instituições Equivalentes – Estudo de Direito Português e de Direito Comparado, Lisboa, Tribunal de Contas, 1993. 3 António de Sousa Franco, Finanças do Sector Público – Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, AAFDL, 1991., p. 769. 4 António de Sousa Franco, Rodolfo Lavrador, J. M. Albuquerque Calheiros, S. Gonçalves do Cabo, Finanças Europeias – Introdução e Orçamento, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1994.

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A CUMULAÇÃO PROCESSUAL NO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO

Sérgio Gonçalves do Cabo

Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Evocação pessoal

Conheci o Professor Doutor António de Sousa Franco em Janeiro de 1991,

aquando do meu concurso para assistente estagiário da Faculdade de Direito de

Lisboa. Na altura, coube-lhe a tarefa de arguir o trabalho que então apresentei a

concurso e, aquando da sua publicação, não pude deixar de ter em conta as

observações que então me fez.1 Desde essa altura que a minha actividade académica e

profissional iria ficar definitivamente marcada pela sua personalidade, quer quando me

convidou para elaborar um estudo para o Tribunal de Contas sobre a fiscalização

financeira do sector empresarial do Estado por Tribunais de Contas ou instituições

equivalentes no direito português e no direito comparado,2 quer quando me pediu ajuda

para actualizar os capítulos sobre finanças locais e regionais das lições de Finanças

Públicas II3 e quando me convidou para participar no livro sobre Finanças Europeias.

4

Em todas essa ocasiões tive oportunidade de o conhecer mais de perto e de passar a

admirar a sua inteligência fulgurante, a sua cultura fora do vulgar e as suas qualidades

pessoais e humanas. Ainda hoje recordo as sessões de mestrado das duas disciplinas

em que foi meu professor (Finanças Públicas e Direito Económico Comunitário) e a

forma brilhante e ao mesmo tempo desconcertante para nós, com que abordava os

diversos temas que iam sendo apresentados – nem se sentia o passar das horas…

Mais tarde, vim a colaborar profissionalmente com o Professor Doutor António

de Sousa Franco como adjunto do seu Gabinete no XIII Governo Constitucional,

quando desempenhou as funções de Ministro das Finanças. Tive então oportunidade de

conhecer a sua faceta de homem de Estado e de servidor da causa pública. A sua

capacidade de trabalho, a forma como sabia envolver todos os que com ele

colaboravam, directa e indirectamente, e o respeito e admiração que granjeava de

entre funcionários a dirigentes do Ministério, deixaram-me profundamente

impressionado. Mesmo depois de ter cessado funções como adjunto do Gabinete para

ocupar um lugar a que concorri no Instituto Monetário Europeu, que depois seria

substituído pelo Banco Central Europeu, continuei a acompanhar a sua actividade

como Ministro das Finanças e a sua intervenção cívica após ter cessado essas funções.

1 Cfr. Sérgio Gonçalves do Cabo, A Concessão de Exploração de Empresas Públicas, Lisboa, AAFDL, 1992, p. 13. 2 Sérgio Gonçalves do Cabo, A Fiscalização Financeira do Sector Empresarial do Estado por Tribunais

de Contas ou Instituições Equivalentes – Estudo de Direito Português e de Direito Comparado, Lisboa, Tribunal de Contas, 1993. 3 António de Sousa Franco, Finanças do Sector Público – Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, AAFDL, 1991., p. 769. 4 António de Sousa Franco, Rodolfo Lavrador, J. M. Albuquerque Calheiros, S. Gonçalves do Cabo, Finanças Europeias – Introdução e Orçamento, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1994.

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Quando regressei a Portugal, em meados de 2001, tive oportunidade de voltar a

colaborar com o Professor Sousa Franco na sua qualidade de jurisconsulto e mais uma

vez pude testemunhar a sua profunda preparação científica e cultural, que não se

limitava ao mundo do direito, mas que se alargava à economia, à história, à filosofia, à

teologia, à sociologia e a muitos outros domínios.

A sua profunda consciência cívica e o seu sentido de responsabilidade social

levaram-no a abraçar muitas causas, o que constitui para mim um exemplo de coragem

e de integridade na defesa dos valores da democracia e de dedicação aos outros.

O presente estudo é uma humilde mas sentida homenagem à sua memória e à

escola de finanças públicas e direito financeiro que deixou na Faculdade de Direito de

Lisboa.

Nunca o esquecerei!

Sumário: 1. Colocação do problema. 2. Fundamentos da cumulação

processual. 3. Formas de cumulação processual: cumulação de pedidos e

cumulação de impugnações. 4. Idem: cumulação subjectiva. 5. A cumulação

processual no contencioso tributário. 6. O requisito da identidade da

natureza dos tributos: a posição de Jorge Lopes de Sousa. 7. Idem: a

jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. 8. Idem: a posição de

Isabel Marques da Silva. 9. Idem: a nossa posição. 10. Conclusão

1. Colocação do problema

1.1. – Admita-se que na sequência de uma acção de inspecção tributária são apuradas transacções cujo valor real é superior ao valor declarado para efeitos de IVA, o que determina correcções na matéria colectável de IVA e, consequentemente, na matéria colectável de IRS ou de IRC, consoante o tipo de sujeito passivo e as operações em causa. Nessa sequência, são praticados diversos actos tributários: a liquidação de IVA e correspondentes juros compensatórios e a liquidação de IRS ou IRC e consequentes juros compensatórios.5 Admita-se agora que o contribuinte pretende impugnar aquelas liquidações por discordar das correcções à matéria colectável de IVA e de IRS ou IRC, conforme for o caso.

Como deverá fazê-lo? De forma conjunta, em cumulação objectiva de

impugnações, ou de forma separada, tendo em conta a “diferente natureza dos tributos”? Admita-se agora que o contribuinte pretende impugnar a autoliquidação de IRC

e a derrama municipal. Deverá fazê-lo na mesma petição inicial, atendendo à relação de

dependência entre ambos os tributos, ou de forma separada, tendo em conta a diferente natureza do sujeito activo e do facto tributário?

E se estiver em causa a liquidação de direitos aduaneiros e de imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas. Deverá o contribuinte apresentar duas impugnações

5 Nos termos do artigo 35.º da Lei Geral Tributária (LGT), «são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».

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diferentes, atendendo à diversidade dos tributos e dos sujeitos activos, ou poderá cumular as impugnações com base na compatibilidade dos pedidos e na identidade de

natureza dos tributos? A questão da cumulação de pedidos e de impugnações no contencioso tributário,

depois de um período relativamente longo, em que foi regulada pelas normas aplicáveis (supletivamente) do processo civil e do contencioso administrativo (cfr. alínea c) do § único do artigo 1.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos e alíneas b) e f) do artigo 2.º do Código de Processo Tributário), conheceu uma solução autónoma no Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT)6 nos termos da qual a cumulação de pedidos pode ter lugar «nos termos legais», conquanto se verifique a «identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão» (artigo 104.º do CPPT).

Esta solução foi igualmente adoptada no procedimento tributário,7 onde se prevê a possibilidade de cumulação de pedidos na reclamação graciosa «quando o órgão instrutor entenda, fundamentadamente, não haver prejuízo para a celeridade da decisão», conquanto se verifique «a identidade do tributo e do órgão competente para a decisão, bem como dos fundamentos de facto e de direito invocados» (artigo 71.º do CPPT), e projecta-se no regime da coligação de reclamantes, a qual só é admissível «quando o órgão instrutor entenda fundamentadamente não haver prejuízo para a celeridade da decisão» e desde que se verifique a «identidade do tributo e do órgão competente para a decisão, bem como dos fundamentos de facto e de direito invocados» (artigo 72.º do CPPT).

Por outro lado, os requisitos da cumulação de pedidos e de impugnações no procedimento e no processo tributário condicionam a possibilidade da apensação de

processos, a qual só é admitida no procedimento tributário «se houver fundamento para a cumulação de pedidos ou para a coligação de reclamantes» e «o procedimento estiver na mesma fase», não havendo prejuízo para a sua celeridade (cfr. artigo 74.º do CPPT) e no processo judicial tributário caso se verifiquem os pressupostos da cumulação de

6 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, entretanto alterado pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 160/2003, de 19 de Julho e pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro. 7 Utilizamos as expressões procedimento e processo tributário com o sentido que lhes foi atribuído nos artigos 54.º e 95.º e 101.º da LGT, correspondendo o primeiro à sucessão ordenada de actos dirigida à declaração dos direitos tributários pela Administração (compreendendo as acções de informação e fiscalização, a liquidação dos tributos, a revisão dos actos tributários, o reconhecimento ou revogação dos benefícios fiscais, a emissão ou revogação de actos administrativos em matéria tributária, as reclamações e os recursos hierárquicos, a avaliação directa ou indirecta dos rendimentos ou valores patrimoniais e a cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial) e o segundo ao conjunto de meios de acesso à justiça tributária, enquanto concretização do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva a que alude o artigo 268.º, n.º 4 da Constituição (compreendendo a impugnação judicial, a acção para reconhecimento de direitos ou interesses legítimos em matéria tributária, os recursos de actos de aplicação de coimas e sanções acessórias e de actos praticados na execução fiscal, os procedimentos cautelares de arrolamento e de arresto, os meios acessórios de intimação para consulta de processos ou documentos administrativos e passagem de certidões, a intimação para um comportamento, a impugnação das providências cautelares adoptadas pela administração tributária e os recursos contenciosos de actos relativos a questões tributárias que não impliquem a apreciação do acto de liquidação).

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pedidos ou da coligação de autores e «desde que o juiz entenda não haver prejuízo para o andamento da causa» (cfr. artigo 105.º do CPPT).8

1.2. – Pretendemos através do presente trabalho analisar os problemas suscitados

pelo actual regime de cumulação processual no contencioso tributário,9 procurando mostrar, em especial, as insuficiências e os prejuízos da solução encontrada no plano da concretização do direito à tutela jurisdicional efectiva e no plano da eficácia e economia processual, apontando o princípio da livre cumulação de pedidos e de impugnações consagrado no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)10 como o caminho a seguir na reforma do contencioso tributário, que tarda em chegar, mau grado as sucessivas autorizações legislativas concedidas pelo artigo 46.º da Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2004, pelo artigo 40.º, n.º 5 da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2005 e pelo artigo 18.º da Lei n.º 39-A/2005 de 29 de Julho, que alterou a Lei n.º 55-B/2004 (Orçamento do Estado para 2005).11

Não constitui, por isso, objecto do presente trabalho, o problema da cumulação processual no procedimento tributário, muito embora as considerações que faremos e as conclusões alcançadas possam com facilidade ser transpostas para o procedimento tributário, atento o carácter unitário das soluções consagradas no CPPT em matéria de cumulação processual (cfr. artigos 71.º, 72.º, 74.º, 104.º e 105.º do CPPT).

8 O artigo 105.º do CPPT admite a apensação dos processos de impugnação judicial «sem prejuízo dos restantes casos de apensação previstos na lei e desde que o juiz entenda não haver prejuízo para o andamento da causa». Esta referência “aos restantes casos de apensação previstos na lei” tem suscitado dúvidas (cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, Lisboa, Vislis Editores, 2003, pp. 471-472), uma vez que a lei processual tributária não prevê quaisquer outros casos de apensação, pelo que o sentido útil daquela remissão teria que se encontrar nas normas de processo administrativo e processo civil. De qualquer forma, teriam que se verificar os requisitos da «identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão» para que, mesmo recorrendo às normas de processo administrativo e processo civil, pudesse haver apensação de processos. 9 Um primeiro levantamento crítico dos problemas que suscita a interpretação e aplicação dos artigos 71.º e 104.º do CPPT pode ser encontrado em Isabel Marques da Silva, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de

Março de 2004 (Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS), CTF, n.º 414 (Jul.-Dez. 2004), pp. 371-377. 10 Aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, alterada Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro. Sobre o princípio da livre cumulação de pedidos e de impugnações no contencioso administrativo cfr. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso

Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 67-79. 11 Essas autorizações legislativas (entretanto caducadas) são reproduzidas na proposta de lei n.º 40/X/1 relativa ao Orçamento do Estado para o ano de 2006, que contém um artigo com o seguinte teor: «Fica o Governo autorizado a proceder à harmonização entre as normas dos códigos tributários e as normas da lei geral tributária e do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, ou entre este e aquela lei, bem como destes diplomas com as alterações no âmbito do Código de Processo Civil e da reforma do contencioso administrativo, relativamente a matérias de caducidade e prescrição, de recursos e procedimento de revisão da matéria tributária, de juros de mora, compensatórios e indemnizatórios, de responsabilidade subsidiária, de penhoras, de vendas, de citações, de notificações, de prazos, de certidões, de competências e de acções sujeitas a regras específicas do contencioso tributário» (cfr. artigo 58.º da proposta de lei n.º 40/X/1).

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2. Fundamentos da cumulação processual 2.1. – O litisconsórcio e a coligação de autores e réus, a cumulação de pedidos e

a apensação de processos correspondem a um conjunto de possibilidades reconhecidas pela ordem jurídico-processual de, no mesmo processo, serem resolvidas questões que, na sua fisionomia, dizem respeito a uma pluralidade de partes ou que, sendo autónomas, se apresentam numa relação de prejudicialidade ou interconexão.12 Por isso, o Código de Processo Civil (CPC) admite que quando a relação material controvertida respeite a várias pessoas, simultaneamente, a acção possa ser proposta «por todos ou contra todos os interessados», distinguindo aquelas situações em que tal propositura corresponde a uma exigência legal ou convencional, ou à necessidade de assegurar o efeito útil normal da decisão (litisconsórcio necessário) daquelas outras situações em que fica na disponibilidade das partes a composição subjectiva da lide, uma vez a falta de um ou mais interessados não impede o tribunal de conhecer o mérito da causa (litisconsórcio voluntário).13 Além disso, naqueles casos em que existe uma pluralidade de relações materiais controvertidas é permitida «a coligação de autores contra um ou vários réus» de modo a que um autor possa «demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência» (artigo 30.º, n.º 1 do CPC). Mesmo nos casos em que a causa de pedir seja diferente, é admitida a coligação quando «a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas» (artigo 30.º, n.º 3 do CPC).14

Por maioria de razão, «se forem propostas separadamente acções que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser reunidas num único processo, será ordenada a junção delas, a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na junção, ainda que pendam em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação» (artigo 275.º, n.º 1 do CPC).

Estas soluções foram, de algum modo, transpostas para o contencioso administrativo pelos artigos 4.º, 12.º, 28.º, 47.º e 61.º do CPTA, embora com as adaptações exigidas pelas especialidades desse contencioso,15 e todas elas envolvem a possibilidade de dedução cumulativa, contra o mesmo réu ou réus ou contra o mesmo

12 Existem outras possibilidades de intervenção de terceiros na relação processual que se podem reconduzir à cumulação, como sucede com a intervenção principal (artigos 320.º a 329.º do Código de Processo Civil), mas tal já não será o caso da intervenção acessória e da oposição (cfr. artigos 330.º a 359.º do Código de Processo Civil). 13 Cfr. artigos 27.º, 28.º e 29.º do CPC. Sobre esta matéria pode consultar-se Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pp. 151-174. 14 Excede o objecto deste trabalho uma caracterização detalhada do debate doutrinário em torno da distinção entre litisconsórcio e coligação, nomeadamente quanto aos critérios da unidade ou pluralidade de interesses, unidade ou pluralidade de relações jurídicas ou unidade ou pluralidade de pedidos. Sobre essa matéria pode ver-se João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume, Lisboa, AAFDL, 1987, pp. 253 e segs. 15 Cfr., a este respeito Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao

Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2005, anotações aos artigos 4.º, 12.º, 28.º, 47.º e 61.º do CPTA.

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autor ou autores (em reconvenção), de vários pedidos (em alternativa, em acumulação ou subsidiariamente), com o objectivo de assegurar a justa composição do litígio, garantindo a plenitude da tutela jurisdicional e a economia processual.

Com efeito, são razões de economia processual e de uniformidade de julgados, mas também preocupações ligadas à unidade da jurisdição e à necessidade de assegurar o efeito útil das decisões, que apontam para a cumulação processual, sempre que exista uma única relação material controvertida com pluralidade de agentes no lado activo ou no lado passivo ou com pluralidade de pedidos (embora aqui se possa falar em cumulação aparente) ou quando existam diversas relações materiais controvertidas, com pluralidade de agentes no lado activo ou no lado passivo e com pluralidade de pedidos, que se apresentem numa relação de conexão recíproca, devido à identidade da causa de pedir ou à unidade dos factos a apreciar ou do direito a aplicar ao caso concreto (falando-se aqui em cumulação real).16

2.2. – No contencioso tributário (e no procedimento tributário) optou-se por

restringir fortemente a cumulação processual, fazendo depender a cumulação de pedidos e de impugnações da identidade da natureza dos tributos (cfr. artigos 71.º, 72.º, 74.º, 104.º e 105.º do CPPT).17

Trata-se de uma regra que dificilmente se compreende no plano da justa

composição do litígio, da concretização do direito à tutela jurisdicional efectiva18

e da eficácia e economia processual, e que ainda mais dificilmente se aceita quando foi

16 Sobre a diferença entre cumulação real e aparente, cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código

de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1946, pp. 149-151. Trata-se, no entanto, de matéria controvertida, uma vez que a doutrina mais recente, por abordar a questão na perspectiva da unidade ou pluralidade de pretensões e da disponibilidade privada do objecto processual, não parece admitir casos de cumulação aparente. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O Concurso de Títulos de Aquisição

da Prestação, Coimbra, Almedina, 1988, pp. 101-108, 217-249. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA refere-se à cumulação real e aparente a propósito da determinação do valor da causa, considerando que só há cumulação real quando os vários pedidos formulados correspondem à realização de diferentes utilidades económicas e que, quando assim não sucede, a cumulação é meramente aparente (cfr. Cumulação de

Pedidos e Cumulação Aparente no Contencioso Administrativo, CJA, 34 (Jul.-Ago., 2002), pp. 37-39). Como resulta do texto, utilizamos as noções de cumulação real e aparente a propósito da unidade ou pluralidade de objectos processuais, sem ter em atenção as questões relativas à determinação do valor da causa. 17 O que se possa entender por identidade da natureza dos tributos é matéria controvertida, entendendo o Supremo Tribunal Administrativo (STA) que a classificação a ter em conta é a que respeita ao elemento material do facto tributário e, por conseguinte, não têm a mesma natureza os impostos sobre o rendimento, os impostos sobre o património e os impostos sobre o consumo (Cfr. acórdão do STA de 27 de Abril de 2005, processo n.º 1891/03). Em consequência, haverá cumulação ilegal de pedidos sempre que se impugne, no mesmo processo, a liquidação de IVA e a liquidação de IRC. Em sentido diferente pronuncia-se ISABEL MARQUES DA SILVA (Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004

(Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS), cit., pp. 373-374), entendendo que o requisito da identidade da natureza dos tributos proíbe a cumulação da impugnação de impostos e taxas, «esses sim tributos de natureza diversa». 18 A concretização legislativa do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição foi considerada, a múltiplos títulos, como a razão de ser de grande parte das soluções consagradas no CPTA, mormente no que diz respeito ao regime da livre cumulação de pedidos e impugnações. Cfr. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do

Contencioso Administrativo, 3.ª edição, cit., p. 67, Miguel Teixeira de Sousa, Cumulação de Pedidos e

Cumulação Aparente no Contencioso Administrativo, cit., p. 34 e José Carlos Vieira de Andrade, Justiça

Administrativa, 7.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 179-181.

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consagrado no nosso ordenamento jurídico-tributário o princípio da celeridade da

justiça tributária, de acordo com o qual «o direito de impugnar ou de recorrer contenciosamente implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo e a possibilidade da sua execução» (artigo 97.º da LGT).

Efectivamente, como teremos oportunidade de verificar, fazer depender a cumulação processual, no contencioso tributário, do preenchimento do requisito da identidade da natureza dos tributos, tem como consequência, as mais das vezes, sujeitar a processos distintos questões que se apresentam conexionadas, actos tributários em relação de dependência ou prejudicialidade, e relações jurídico-tributárias que importam a apreciação dos mesmos factos e a aplicação das mesmas regras jurídicas, com prejuízo claro para a eficiência processual e para concretização do direito à tutela jurisdicional

efectiva.19 Com efeito, a doutrina20 e a jurisprudência21 têm entendido que a exigência da

identidade da natureza dos tributos não permite, no contencioso tributário, a impugnação conjunta de uma liquidação adicional de IVA, baseada numa correcção à matéria tributável, e de uma liquidação adicional de IRC, fundada na mesma correcção, mesmo existindo uma conexão material relevante entre as duas liquidações (v. g., por se tratar de actos emitidos na sequência do mesmo procedimento tributário), devido à diferente natureza dos tributos.

Consequentemente, de acordo com esta interpretação, não seria possível, impugnar, na mesma petição inicial, a autoliquidação de IRC e a derrama municipal, mesmo sendo segura a relação de dependência existente entre ambas as liquidações, mas já seria viável, cumular a impugnação de vários actos de liquidação de imposto de selo, mesmo que não exista qualquer outra conexão entre eles para além de serem devidos pelo mesmo sujeito passivo, e desde que os fundamentos de facto e de direito invocados e o tribunal competente para a decisão sejam os mesmos.

A compreensão desta posição doutrinária e jurisprudencial exige que se proceda a algumas distinções em matéria de cumulação processual, de modo a poder apreender em toda a sua extensão o regime da cumulação processual no contencioso tributário, tal como vem sendo concretizado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo desde a entrada em vigor do CPPT.22

19 Assim ISABEL MARQUES DA SILVA (Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004

(Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS), cit., pp. 375-376), considerando mesmo a norma do artigo 104.º do CPPT orgânica e materialmente inconstitucional. 20 Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., pp. 469-470. 21 Cfr. o acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) de 11 de Março de 2003, processo n.º 7382/02, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf?OpenDatabase e os acórdãos da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 26 de Março de 2003, processo n.º 131/03, de 2 de Julho de 2003, processo n.º 538/03, de 10 de Março de 2004, processo n.º 1911/03, de 2 de Fevereiro de 2005, processo n.º 974/04, de 2 de Março de 2005, processo n.º 1336/04, de 10 de Março de 2005, processos n.ºs 1022/04 e 1390/04, de 27 de Abril de 2005, processo n.º 1891/03 e de 25 de Maio de 2005, processo n.º 400/05, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase. 22 A este respeito é sintomático o acórdão do STA de 2 de Março de 2005 (processo n.º 1336/04), quando decidiu que o artigo 104.° do CPPT não é aplicável a processos instaurados no domínio do CPT, no âmbito dos quais são subsidiariamente aplicáveis as normas do artigo 38.°, n.° 1 da LPTA e do artigo 470.º do CPC, segundo as quais é viável a cumulação de pedidos e de impugnações de actos que estejam entre si numa relação de dependência ou de conexão; tendo, por isso, considerado lícita a cumulação da

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3. Formas de cumulação processual: cumulação de pedidos e cumulação de impugnações

3.1. – A cumulação de pedidos corresponde à possibilidade que é reconhecida ao

autor (ou ao réu, em reconvenção), pela ordem jurídico-processual de, no mesmo processo, deduzir cumulativamente contra o mesmo réu (ou contra o mesmo autor, em caso de reconvenção), vários pedidos (em acumulação), com o objectivo de que todos sejam considerados pelo tribunal (no seu conjunto). Distingue-se, assim, dos pedidos

alternativos ou subsidiários, em que o autor (ou o réu, em reconvenção) apenas pretende que o tribunal dê provimento, em alternativa, a uma ou a outra pretensão (caso dos pedidos alternativos) ou apenas considere uma pretensão (subsidiária) para o caso de o pedido principal não proceder.23

3.2. – Já a cumulação de impugnações, se bem que tenha ligações intrínsecas ao

fenómeno da cumulação de pedidos, na medida em que à acumulação de pretensões pode corresponder uma acumulação real de acções, afasta-se dela nos casos em que a relação material controvertida é única ou unitária. Com efeito, para haver cumulação de impugnações é necessário que esteja em causa a impugnação de diferentes actos tributários, correspondentes a diferentes relações jurídicas de imposto – o que, de acordo com o critério da identidade da natureza dos tributos, tal como vem sendo interpretado pelo STA, corresponderia apenas a admitir a cumulação de impugnações de vários actos de liquidação do mesmo imposto.

Quando que se cumula o pedido de anulação de um acto tributário (por hipótese, de liquidação de IRS) com o pedido de restituição do indevido e com o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, 24 existe seguramente cumulação de pedidos, mas não existe cumulação real de impugnações, uma vez que está em causa a impugnação de um único acto tributário produzido no quadro da mesma relação jurídico-tributária. Neste caso, o que verdadeiramente ocorre é uma situação de cumulação aparente de

impugnação das liquidações de IRC e IVA, do exercício de 1993, «efectuadas na sequência de uma fiscalização à escrita da impugnante, que concluiu pela «existência de determinadas facturas indevidamente consideradas custos da actividade» e dedução indevida de IVA, «com indícios de que os documentos referidos titulam operações simuladas». 23 Sobre o fenómeno da cumulação de pedidos e sua distinção de figuras afins continuam a ser fundamentais as obras de Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, Tomo I, Braga, 1940, pp. 174-210 e José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1946, pp. 126-170. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (As Partes, O Objecto e a Prova na Acção

Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pp. 134-155) trata o fenómeno da cumulação de pedidos no quadro das relações entre objectos processuais, distinguindo as relações de identidade, relações de concurso e relações de cumulação e, dentro destas últimas, a cumulação inicial e sucessiva (em função do momento processual em que se verifica) e a cumulação simples (que corresponde ao caso analisado no texto), a cumulação alternativa (que corresponde aos pedidos alternativos) e a cumulação subsidiária (que corresponde aos pedidos subsidiários). Cfr. também Miguel Teixeira de Sousa, Cumulação de Pedidos e

Cumulação Aparente no Contencioso Administrativo, cit., pp. 34-37. 24 Nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

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pedidos, utilizando a distinção consagrada por PAULO CUNHA25 mas seguindo o

entendimento sufragado por JOSÉ ALBERTO DOS REIS,26 de acordo com o qual o pedido de restituição do indevido e o pedido de pagamento de juros indemnizatórios não corresponderiam a pedidos associados a verdadeiras relações jurídico-tributárias substantivas diferenciadas, mas apenas e tão só à consequência executiva da anulação do acto tributário, pelo que a cumulação de pedidos seria meramente aparente.

Por outras palavras, mesmo que o impugnante não cumulasse o pedido de anulação com os pedidos de restituição do indevido e de pagamento de juros indemnizatórios, nem por isso o Tribunal deixaria de poder decretar a restituição do indevido e o pagamento de juros indemnizatórios, por se tratar de uma consequência legal da anulação do acto tributário (artigos 30.º, n.º 1, alínea c), 43.º n.º 1, 100.º e 102.º da LGT). Mais: mesmo que o Tribunal se limitasse a anular o acto tributário, a restituição do indevido e o pagamento de juros indemnizatórios corresponderia ao cumprimento por parte da Administração Tributária de um dever geral de execução das

decisões dos tribunais (cfr. artigos 205.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição, 100.º e 102.º da LGT, que remete para o regime de execução de sentenças dos tribunais administrativos). Isto porque no contencioso tributário não vigora o princípio do dispositivo ou da disponibilidade privada do objecto processual em termos equivalentes aos do processo civil (cfr. artigos264.º, 265.º, 661.º e 664.º do CPC), podendo o tribunal «realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer» e estando os particulares estão obrigados a prestar colaboração «nos termos da lei de processo civil» e todas as autoridades ou repartições públicas «obrigadas a prestar as informações ou remeter cópia dos documentos que o juiz entender necessários ao conhecimento do objecto do processo» (cfr. artigo 99.º da LGT e artigos 13.º e 114.º do CPPT).27

3.3. – Assim sendo, os casos de cumulação real de pedidos hão de corresponder

à verdadeira acumulação de relações jurídico-tributárias substantivas e, por conseguinte, à acumulação de impugnações, permitindo-se ao autor, no mesmo processo e por razões de economia e unidade processual, impugnar, simultaneamente, vários actos tributários, relacionados com distintas relações jurídico-tributárias, mas que se apresentam interligadas entre si devido à relação de prejudicialidade ou dependência entre os actos tributários ou devido à unidade da causa de pedir ou dos fundamentos de facto e de direito subjacentes à pluralidade de relações jurídicas substantivas em apreciação (identidade dos factos e do direito aplicável).

É claro que existem limites à cumulação real de pedidos: desde logo os que respeitam à competência do tribunal e à forma de processo,28 mas também os que se 25 Processo Comum de Declaração, Tomo I, cit., pp. 203-210. 26 Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, cit., pp. 149-151. 27 Salientando este aspecto particular do contencioso tributário, cfr. Saldanha Sanches, Manual de Direito

Fiscal, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2002, pp. 315-316. 28 Os limites relativos à forma de processo estão hoje bastante esbatidos, quer porque não impede a cumulação a diversidade de formas de processo que derive unicamente do valor da causa, quer porque é permitido ao juiz autorizar a cumulação, quando, apesar da diversidade de formas de processo, a sua tramitação não seja «manifestamente incompatível» e sempre que haja «interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio» (artigo 31.º, n.ºs 1 e 2 do CPC) quer porque, no CPTA, a diversidade de formas de processo não impede, em caso algum, a

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prendem com a necessidade de assegurar a unidade do objecto processual, entendida como a proibição de cumular impugnações de actos que não se encontrem em relação de prejudicialidade ou dependência ou cuja análise não importe a apreciação dos mesmos factos e a interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas (conexão materialmente relevante).

Nalguns dos exemplos figurados supra é evidente a identidade dos fundamentos de facto e de direito subjacentes à pluralidade de relações jurídicas substantivas em apreciação:

– Quando, na sequência de uma acção de inspecção tributária são apuradas transacções cujo valor real é superior ao valor declarado para efeitos de IVA, o que determina correcções na matéria colectável de IVA e, consequentemente, na matéria colectável de IRS ou de IRC, consoante o tipo de sujeito passivo e as operações em causa, não pode oferecer dúvidas que a impugnação, no mesmo processo, dos diferentes actos de liquidação de IVA, de IRS ou de IRC, conforme o caso, corresponde não só a uma cumulação objectiva de impugnações, mas também a uma cumulação real

de pedidos, uma vez que está em causa a apreciação de diferentes actos que se apresentam numa relação de prejudicialidade ou de dependência, maxime por estarem inseridos no mesmo procedimento ou porque da existência ou validade de um depende a existência e a validade do outro;

– Também no caso da impugnação da autoliquidação de IRC e da derrama municipal, haverá cumulação objectiva de impugnações e cumulação real

de pedidos atendendo à relação de prejudicialidade ou dependência entre

ambos os tributos.

Já no caso da liquidação de direitos aduaneiros e de imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, não se verificando essa relação de prejudicialidade ou de dependência, nem sendo segura a unidade da causa de pedir ou dos fundamentos de facto e de direito, não se verificam os pressupostos de economia e unidade processual que justificam a admissibilidade da cumulação objectiva, pelo que o contribuinte não terá outra alternativa senão a de apresentar duas impugnações diferentes, em dois processos autónomos.

4. Idem: cumulação subjectiva 4.1. – A cumulação objectiva de pedidos e de impugnações, que supõe uma

pluralidade de relações jurídicas substantivas resolvidas em acumulação no mesmo processo judicial tributário e que se distingue da cumulação meramente aparente de pedidos, onde não está em causa qualquer pluralidade de relações jurídicas substantivas,29 pode coexistir com a pluralidade de partes. cumulação, seguindo-se os termos da acção administrativa especial, com as necessárias adaptações (cfr. artigo 5.º, n.º 1 do CPTA). 29 Embora no processo civil se discutam os critérios distintivos das diversas formas de cumulação de partes e de pedidos (cfr. Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, Tomo I, cit., pp. 174-240; João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume, cit., pp. 253 e segs. e Miguel Teixeira de Sousa,

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Sendo várias as partes e várias as relações jurídicas substantivas em apreciação, teremos uma situação de coligação processual, ao passo que, sendo várias as partes mas una a relação jurídica substantiva, teremos uma situação de litisconsórcio processual.30

Significa isto que a cumulação objectiva de pedidos e de impugnações pode coincidir com situações de coligação processual de impugnantes, caso em que haverá uma cumulação real, objectiva e subjectiva.

Já no caso do litisconsórcio processual, a cumulação objectiva e subjectiva será meramente aparente, quer porque à pluralidade de partes não corresponde qualquer pluralidade de relações substantivas, quer porque o acto tributário impugnado é o mesmo, conforme se procura demonstrar na matriz que a seguir se apresenta.

(1) Objectiva

(singularidade de partes)

(2) Subjectiva

(pluralidade de partes)

(A) Cumulação Real de

Pedidos

� Diferentes relações jurídico-tributárias substantivas;

� Diferentes actos tributários interligados por relações de prejudicialidade ou dependência, ou cuja validade possa ser apreciada com base nas mesmas circunstâncias de facto e nos mesmos fundamentos de direito.

Coligação processual

(B) Cumulação Aparente de Pedidos

� A mesma relação jurídico-tributária substantiva;

� O mesmo acto tributário.

Litisconsórcio processual

O Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação, cit., pp. 101-108 e As Partes, O Objecto e a Prova na

Acção Declarativa, cit., pp. 59-96 e pp. 134-155) a verdade é que, no contencioso tributário, atendendo à natureza paradigmática do processo de impugnação, que equivalerá ao processo comum do contencioso tributário devido às inúmeras remissões para a sua tramitação (cfr. artigos 145.º, n.º 4 e 211.º, n.º 1 do CPPT), a cumulação de partes e de pedidos não poderá deixar de corresponder à impugnação de diferentes actos tributários (impugnação da liquidação dos tributos, impugnação da fixação da matéria tributável, impugnação do indeferimento das reclamações graciosas dos actos tributários; impugnação dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação, impugnação do agravamento à colecta e impugnação dos actos de fixação de valores patrimoniais) aos quais estão subjacentes diferentes relações jurídico-tributárias. Neste sentido, parece difícil admitir, no contencioso tributário, outro critério de distinção entre as diversas formas de cumulação processual que não passe pela unidade ou pluralidade de relações jurídico-tributárias. O critério da unidade ou pluralidade de pedidos, por seu turno, apresenta as dificuldades que decorrem do princípio do inquisitório e dos efeitos ope legis da decisão favorável ao sujeito passivo (cfr. artigos 99.º e 100.º da LGT). 30 Sobre a diferença entre o litisconsórcio e a coligação e os seus critérios cfr. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume, cit., pp. 253 e segs., Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pp. 159-170; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, cit., pp. 151-174 e As Partes, O Objecto e a

Prova na Acção Declarativa, cit., pp. 59-96.

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4.2. – As situações mais frequentes no contencioso tributário corresponderão à cumulação real objectiva (situação A-1), em que o mesmo contribuinte impugna vários actos de liquidação correspondentes a diferentes relações jurídico-tributárias agregadas pela causa de pedir ou pelos fundamentos de facto e de direito da impugnação, ou pela relação de dependência ou conexão existente entre os actos tributários impugnados (cfr. exemplos supra) e, consequentemente, a diferentes pedidos em cumulação real.

Porém, não são de excluir situações de cumulação real objectiva e subjectiva (que corresponderão à cumulação real de pedidos e impugnações e à coligação processual de impugnantes – situação A-2), nem tão pouco situações de cumulação aparente objectiva e subjectiva (situações B-1 e B-2) em que, a propósito da mesma relação jurídico-tributária, são feitos diversos pedidos por um ou por diversos impugnantes em situação de litisconsórcio.

Pode configurar-se como exemplo de cumulação real objectiva e subjectiva (situação A-2) uma situação em que várias empresas impugnam, em coligação processual, os actos de liquidação de IVA e IRC resultantes de correcções à matéria colectável desses impostos, apuradas em acções de inspecção tributária de diversas transações realizadas entre si (v. g., preços de transferência ou outras operações entre empresas), atendendo à relação de dependência ou conexão entre os diversos actos tributários impugnados e à unidade da causa de pedir ou dos fundamentos de facto e de direito.

Constitui exemplo de cumulação processual aparente, objectiva e subjectiva (litisconsórcio [voluntário]), a impugnação de um acto tributário ou a oposição à execução fiscal por parte dos obrigados solidários (artigos 21.º e 22.º da LGT e artigos 9.º, n.º 4 e 153.º do CPPT), como poderá suceder no caso do regime especial de tributação dos grupos de sociedades (artigos 63.º e 107.º do CIRC) ou da pluralidade de responsáveis subsidiários que respondem solidariamente pelas dívidas de outrem, em caso de insuficiência patrimonial do devedor principal (cfr. artigos 23.º, 24.º e 27.º da Lei Geral Tributária). Neste caso, em lugar do paralelismo de relações tributárias que se detecta na cumulação processual real, existe uma única relação fiscal caracterizada

pela pluralidade de obrigados tributários e uma cumulação aparente de pedidos caso se pretenda obter a restituição do indevido e juros indemnizatórios, além da anulação ou declaração de nulidade ou inexistência do acto tributário.

Corresponde também a um caso de litisconsórcio (necessário) a impugnação do acto tributário ou a oposição à execução fiscal por parte dos herdeiros do responsável tributário (originário ou subsidiário – artigos 22.º, 23.º 29.º n.º 2 da LGT e artigos 9.º, n.º 4 e 153.º do CPPT), ou dos comproprietários em Imposto Municipal sobre Imóveis (artigos 21.º, n.º 1 da LGT e 8.º do CIMI) muito embora se trate de uma cumulação processual aparente, subjectiva e objectiva, atendendo à unidade da relação jurídico-tributária.

5. A cumulação processual no contencioso tributário

5.1. – Tendo configurado as diversas possibilidades de cumulação processual no

contencioso tributário, importa agora verificar a sua admissibilidade face às soluções adoptadas pelo legislador, de modo a comprovar a afirmação feita supra n.º 2.2. de que no contencioso tributário (e no procedimento tributário) optou-se por uma solução

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fortemente restritiva da cumulação processual, em termos que se afiguram incompatíveis com a concretização do direito à tutela jurisdicional efectiva e com os princípios da eficácia e economia processual, e da celeridade da justiça tributária.

5.2. – Com efeito, até à entrada em vigor do CPPT a questão da cumulação real

de impugnações no contencioso tributário resolvia-se por aplicação subsidiária do artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA)31 e a questão da cumulação aparente de pedidos pela aplicação subsidiária do § 3.º do artigo 835.º do Código Administrativo de 1940 (CA) e do artigo 470.º do Código de Processo Civil (CPC).32 33 34

Com efeito, nos termos das alíneas b) e f) do artigo 2.º do Código de Processo Tributário (CPT)35 «são de aplicação supletiva no processo tributário, de acordo com a natureza do caso omisso» as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e fiscais e o CPC.

O critério da natureza do caso omisso apontava, decisivamente, para a aplicação das normas do artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 da LPTA à cumulação de impugnações ou à pluralidade de objectos processuais, e para a aplicação do § 3.º do artigo 835.º do CA e do artigo 470.º do CPC, como direito subsidiário, aos casos de cumulação de pedidos, 36 31 Decreto-Lei n.º 267/85 de 16 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 4/86 de 6 de Janeiro, pela Lei n.º 12/86, de 21 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 326/89, de 26 de Setembro e pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro. 32 Observe-se que a Parte IV do CA (artigos 796.º a 862.º) que tratava do contencioso administrativo, apesar de ter sido tacitamente derrogada pela Constituição (artigo 290.º, n.º 2), pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, que aprovou o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, que aprovou a LPTA, só foi objecto de revogação expressa pelo artigo 6.º, alínea b), da Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o CPTA. Sobre esta matéria, apresentando a evolução do contencioso administrativo português durante a III República pode ver-se Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Volume I, Lisboa, Lex, 2005, pp. 533 e segs.. 33 O § 3.º do artigo 835.º do CA ao permitir a cumulação, no mesmo recurso, de pedidos que sejam compatíveis e entre si conexos ou dependentes, em especial o pedido de anulação de um acto administrativo como o de indemnização de perdas e danos ou de condenação em multa, regulava a cumulação de pedidos e não a cumulação de impugnações. Por seu turno, o artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 da LPTA respeitava à cumulação de impugnações ao permitir a impugnação de «actos que estejam entre si numa relação de dependência ou de conexão». 34 Observe-se que a norma do § 3.º do artigo 835.º do CA, corresponde, materialmente, ao regime da cumulação de pedidos em processo civil, que desde o CPC de 1939 aponta para a possibilidade de, num só processo, o mesmo autor deduzir contra o mesmo réu vários pedidos, desde que estes sejam compatíveis, correspondam à mesma forma de processo e o tribunal seja competente para a sua apreciação (cfr. artigo 274.º do CPC de 1939 e artigo 470.º do CPC de 1961). 35 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril e alterado pelo Decreto-Lei n.º 282/92, de 19 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 303/93, de 1 de Setembro, pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 47/95, de 10 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 165/95, de 15 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 7/96, de 7 de Fevereiro, pela Lei n.º 4/96, de 27 de Fevereiro, pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, pelo Decreto-Lei n.º 125/96, de 10 de Agosto, pela Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 20/97, de 21 de Janeiro, Decreto-Lei n.º 23/97 de 23 de Janeiro. 36 A referência ao CPC justifica-se para quem entenda, como parece ser o caso de JOÃO CAUPERS e JOÃO

RAPOSO (Contencioso Administrativo Anotado e Comentado, Lisboa, Editorial Notícias, 1994, p. 277) que o § 3.º do artigo 835.º do CA foi tacitamente revogado pelo artigo 38.º da LPTA. No entanto, como o primeiro trata da cumulação de pedidos (assim Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9.ª edição, Tomo II, Lisboa, 1972, p. 1352) e o segundo da cumulação de impugnações, parece-nos preferível o entendimento de que não ocorreu a referida revogação tácita. De todo o modo, atendendo à identidade

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37 como de resto foi reconhecido pelo STA em acórdão de 2 de Março de 2005 (processo n.º 1336/04).

Com efeito deixou de ser aplicável o critério da ordem de indicação das fontes que constava da alínea c) § único do artigo 1.º Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI), onde se dispunha que «nos casos omissos, recorrer-se-á, pela ordem indicada, aos seguintes diplomas e preceitos de natureza processual: a) A organização dos serviços de justiça fiscal e a da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos; b) As leis tributárias que melhor se coadunam com a relação fiscal controvertida; c) As normas de processo civil ou, quanto ao processo de transgressão, as de processo penal».

Deste modo, com entrada em vigor do CPT, passaram a ser aplicáveis, a título subsidiário, no contencioso tributário, a par das normas de processo civil – que constituíam a única fonte de direito subsidiário no CPCI – as «normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e fiscais», o que aponta para um regime de cumulação de pedidos e impugnações no contencioso tributário conformado, a título subsidiário, pelo CA e pelo CPC, no que respeita à cumulação de pedidos e pela LPTA, no que respeita à cumulação de impugnações.

O regime que daí resultava pode ser esquematizado nos termos seguintes:

– Admissibilidade da cumulação, no mesmo processo de impugnação judicial, de pedidos que sejam compatíveis e entre si conexos ou dependentes, em especial o pedido de anulação da liquidação como o de restituição do indevido e de pagamento de juros indemnizatórios (§ 3.º do artigo 835.º do CA e do artigo 470.º do CPC). Está aqui em causa a cumulação meramente

aparente, uma vez que se trata de pedidos emergentes da mesma relação jurídica substantiva e, no caso da restituição do indevido e do pagamento de juros indemnizatórios, de pedidos que correspondem à fase executiva do contencioso tributário de anulação;

– Admissibilidade da cumulação de impugnações de «actos que estejam entre si numa relação de dependência ou de conexão» desde que o tribunal seja competente em razão da matéria e da hierarquia e a impugnação siga a mesma forma de processo (artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 da LPTA). Admissibilidade da coligação de recorrentes quando «impugnem o mesmo acto ou, com os mesmos fundamentos jurídicos, actos contidos num único despacho ou outra forma de decisão» (artigo 38.º, n.º 2 da LPTA). Está aqui em causa a cumulação real objectiva (o mesmo recorrente, impugna vários actos – situação A-1 supra), a cumulação aparente subjectiva (vários recorrentes impugnam o mesmo acto) e a cumulação real objectiva e subjectiva quando vários recorrentes, com os mesmos fundamentos jurídicos, impugnam

de soluções consagradas no § 3.º do artigo 835.º do CA e nos artigos 274.º do CPC de 1939 e 470.º do CPC de 1961, o regime da admissibilidade da cumulação de pedidos no contencioso tributário, até à entrada em vigor do CPPT, seria, fundamentalmente, o mesmo, por remissão do CPT para o processo administrativo ou para o processo civil. 37 Também LIMA GUERREIRO e SILVÉRIO MATEUS entendem que «é a natureza do caso omisso que determina a busca da norma que há-de operar a integração da lacuna» (Código de Processo Tributário

Comentado, 2.ª edição, Fisco, 1991, p. 27) embora se deva observar que, em bom rigor, não há integração de lacunas quando o próprio ordenamento contém uma solução para o caso através da remissão para regimes legais supletivos (assim Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição, Coimbra, Almedina, 2005, p. 383).

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diversos actos «contidos num único despacho ou outra forma de decisão». Dir-se-á que, neste caso, a cumulação real objectiva e subjectiva é limitada por um elemento formal que corresponde ao facto de os diversos actos impugnados deverem estar «contidos num único despacho ou outra forma de decisão».

Temos, assim, que na ausência de uma solução própria e autónoma de direito

processual fiscal, a cumulação de pedidos e de impugnações seguia o regime do CA, do CPC e da LPTA, o que apontava para a admissibilidade da cumulação aparente,

objectiva e subjectiva, e para a admissibilidade da cumulação real objectiva e

subjectiva, embora, neste último, caso houvesse que contar com a limitação formal decorrente da exigência de os diversos actos impugnados deverem estar «contidos num único despacho ou outra forma de decisão».38

Nesta conformidade, na impugnação dos actos tributários era possível, ao mesmo ou a vários recorrentes, cumular o pedido de declaração de inexistência ou nulidade ou de anulação com o pedido de restituição do indevido e com o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, em cumulação aparente, subjectiva e objectiva (§ 3.º do artigo 835.º do CA e artigo 470.º do CPC).

Por outro lado, era lícito cumular a impugnação judicial de vários actos tributários, conquanto fosse possível ao recorrente demonstrar que os mesmos se encontram «numa relação de dependência ou de conexão» e a tal não se opusessem as regras sobre a competência do tribunal e sobre a forma de processo, em cumulação real objectiva (artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 da LPTA), sendo igualmente admissível a coligação de recorrentes quando «impugnem o mesmo acto ou, com os mesmos fundamentos jurídicos, actos contidos num único despacho ou outra forma de decisão» em cumulação real objectiva e subjectiva (artigo 38.º, n.º 2 da LPTA).

5.3. – Com a entrada em vigor do CPPT pretendeu-se construir uma solução

autónoma em matéria de cumulação de pedidos no contencioso tributário, porventura inspirada na ideia, bem vincada no preâmbulo Decreto-Lei n.º 433/99, que aprova o CPPT, de que este código «não se aplica apenas aos impostos administrados tradicionalmente pela Direcção-Geral dos Impostos (DGCI)» mas também se aplica «ao exercício dos direitos tributários em geral, quer pela DGCI, quer por outras entidades públicas, designadamente a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), quer inclusivamente por administrações tributárias não dependentes do Ministério das Finanças».39 40

38 JORGE LOPES DE SOUSA considera, em termos que não nos parecem totalmente coincidentes com a sua posição relativa à interpretação do requisito relativo à identidade da natureza dos tributos, que cabem no artigo 104.º do CPPT «as situações de vários impugnantes pretenderem atacar, com os mesmos fundamentos jurídicos, mais do que um acto contido no mesmo despacho ou outra forma de decisão», exemplificando com o caso «de impugnação de um acto em que se tenha liquidado I.R.C. e derrama que incida sobre a respectiva colecta» (cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., p. 470). 39 Esta ideia da aplicação transversal do CPPT teria múltiplas manifestações na configuração das soluções adoptadas, v. g., em matéria de compensação de dívidas de tributos e de cobrança de receitas não liquidadas pelas administração tributária (artigos 89.º, 90.º e 95.º do CPPT), em matéria de impostos de administração comunitária (cfr. artigo 169.º, n.º 6 do CPPT) e em matéria de execução fiscal (cfr. artigos 162.º, 163.º e 163.º do CPPT), o que se compreende à luz do disposto no artigo 1,º, n.º 3 da Lei Geral Tributária, de acordo com o qual integram a administração tributária, além da Direcção-Geral dos

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De qualquer forma é duvidoso que o facto de o CPPT se poder aplicar a um universo de entidades públicas e a um universo de relações jurídicas que ultrapassam o quadro estrito do direito fiscal, justifique a solução constante do artigo 104.º do CPPT, de acordo com o qual a cumulação de pedidos só pode ter lugar «em caso de identidade da natureza dos tributos», uma vez que os restantes requisitos, relativos à identidade «dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão», correspondem à preocupação de assegurar a unidade do objecto processual, entendida como a proibição de cumular impugnações cuja análise não importe a apreciação dos mesmos factos e a interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas, ou que correspondam à competência de diferentes tribunais.

Desde logo porque essa aplicação transversal do CPPT ocorrerá, sobretudo, no quadro da execução fiscal (cfr. artigo 155.º do Código do Procedimento Administrativo, que manda aplicar o processo de execução regulado no CPPT aos casos de execução para pagamento de quantia certa decorrentes de actos administrativos que imponham o pagamento de prestações pecuniárias) e serão raros os casos em que um ou vários contribuintes pretendam cumular, no mesmo processo, a impugnação de impostos e taxas – isto se adoptarmos como critério de interpretação daquele requisito da «identidade da natureza dos tributos» o sugerido por ISABEL MARQUES DA SILVA

41 que, como veremos, não tem sido sufragado pela doutrina e pelos tribunais, que fazem uma leitura bastante mais restrita daquela norma processual.

Acresce que, nos termos do artigo 97.º, n.º 2 do CPPT «o recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação, da autoria da administração tributária, compreendendo o governo central, os governos regionais e os seus membros, mesmo quando praticados por delegação, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos».

Nestes termos, a regra do artigo 104.º do CPPT terá aplicação nos processos de impugnação judicial da liquidação dos tributos (incluindo os parafiscais e os actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta), nos processos de impugnação judicial da fixação da matéria tributável, nos processos de impugnação judicial dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação (onde se inclui a impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos actos tributários), nos processos de impugnação judicial do agravamento à colecta, nos processos de impugnação judicial dos actos de fixação de valores patrimoniais, nos processos de impugnação judicial dos actos de apreensão de bens e de outras providências cautelares adoptadas pela administração tributária, nas Impostos, da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo e da Direcção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros, «as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e autarquias locais». 40 A aplicação transversal do CPPT parece suportar a tese defendida por ISABEL MARQUES DA SILVA (Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004 (Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS), cit., pp. 373-374), de que o requisito da identidade da natureza dos tributos apenas proíbe a cumulação da impugnação de impostos e taxas, e não a cumulação da impugnação de impostos de natureza diversa, em função de qualquer classificação legal ou doutrinal. 41 Cfr. Isabel Marques da Silva, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004 (Cumulação de

Impugnações de IVA e de IRS), cit., pp. 373-375.

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acções para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária porque seguem os termos do processo de impugnação.

Nos demais processos que não sigam a tramitação da impugnação judicial, por estar em causa o recurso de actos administrativos em matéria tributária que não envolve a apreciação da legalidade do acto de liquidação, ou por estarem em causa meios processuais acessórios (intimação para consulta de processos ou documentos administrativos e passagem de certidões, produção antecipada de prova e execução de julgados), não é aplicável o artigo 104.º do CPPT, mas sim as regras do CPTA em matéria de coligação, cumulação de pedidos e impugnações e apensação de processos (cfr. artigos 97.º, n.º 2 e 146.º, n.º 1 do CPPT e artigos 4.º, 12.º, 28.º, 47.º e 61.º do CPTA).

O artigo 104.º do CPPT também não é aplicável aos processos não impugnatórios, como a intimação para um comportamento, os embargos de terceiros e outros incidentes, e a verificação e graduação de créditos na execução fiscal, e aos processos impugnatórios que não sigam a tramitação própria da impugnação judicial, como será o caso do recurso, no próprio processo, dos actos praticados na execução fiscal (artigos 276.º a 278.º do CPPT) ou que sigam a tramitação própria da impugnação judicial apenas após o despacho liminar, como é o caso da oposição à execução (artigo 211.º, n.º 1 do CPPT).

Finalmente, o artigo 104.º do CPPT não é aplicável ao recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, uma vez que estão em causa actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportam apreciação da legalidade do acto de liquidação.

6. O requisito da identidade da natureza dos tributos: a posição de Jorge Lopes de Sousa

Circunscrito deste modo o âmbito de aplicação do artigo 104.º do CPPT importa agora considerar a identidade da natureza dos tributos enquanto requisito da cumulação processual no contencioso (e no procedimento) tributário.

Como tivemos oportunidade de observar, os requisitos relativos à identidade «dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão», correspondem à preocupação de assegurar a unidade do objecto processual, entendida como a proibição de cumular impugnações cuja análise não importe a apreciação dos mesmos factos e a interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas, ou que correspondam à competência de diferentes tribunais.

Neste sentido, estão em causa requisitos comuns da cumulação processual no processo civil e no contencioso administrativo: de facto, não faria qualquer sentido e seria mesmo contrário aos fundamentos da cumulação processual, admitir a cumulação quando falte a unidade da causa de pedir, quando os pedidos não estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, quando não esteja em causa a apreciação dos mesmos factos ou a interpretação e aplicação das mesmas regras de direito, ou quando se trate de assuntos que pertencem à competência de diferentes tribunais em razão da matéria ou da hierarquia, ou da competência internacional (cfr. artigos 31.º do CPC e 5.º do CPTA).

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Assim, a única particularidade da cumulação processual no contencioso tributário reside, precisamente, no sentido e alcance a atribuir ao requisito da identidade de natureza dos tributos que perpassa toda a cumulação processual no contencioso (e no procedimento) tributário.

Nesta matéria tem sido decisiva a posição doutrinal sustentada por JORGE LOPES

DE SOUSA, de acordo com a qual o que está em causa no artigo 104.º do CPPT é a cumulação de impugnações, de tal forma que o artigo 104.º do CPPT é norma especial face ao disposto no artigo 38.º da LPTA, entretanto substituído pelos artigos 4.º, n.ºs 4 e 5 e 47.º, n.ºs 4, 5 e 6 do CPTA e que admite, com toda a latitude, a cumulação de impugnações.

Para JORGE LOPES DE SOUSA a exigência da «identidade da natureza dos tributos» inculcaria a conclusão de que, afinal, o que o legislador teve em vista ao consagrar aquele requisito não foi a cumulação de pedidos, mas sim a cumulação de impugnações.42

Ou seja, não estaria em causa no artigo 104.º do CPPT um problema de cumulação de pedidos, mas apenas e tão só um problema de cumulação de actos tributários impugnados ou de cumulação de impugnações, o que importaria um regime próprio de direito processual fiscal em matéria de cumulação objectiva ou de pluralidade de actos tributários impugnados.

Em consequência desta interpretação, não seria viável, no contencioso tributário, a impugnação conjunta de uma liquidação adicional de IVA baseada numa correcção à matéria tributável e de uma liquidação adicional de IRC fundada na mesma correcção, mesmo existindo uma conexão material entre as duas liquidações, por serem diferentes os tributos.

Nos exemplos por nós figurados supra também não seria possível, de acordo com esta interpretação, impugnar, na mesma petição inicial, a autoliquidação de IRC e a derrama municipal, mesmo sendo segura a relação de dependência entre ambos os

tributos.43 Mas já seria viável, cumular a impugnação de vários actos de liquidação de IMI respeitantes ao mesmo ou a vários prédios do mesmo proprietário o vários actos de liquidação de imposto de selo, mesmo que não exista outra conexão entre eles para além de serem devidos pelo mesmo sujeito passivo, e desde que os fundamentos de facto e de direito invocados e o tribunal competente para a decisão sejam os mesmos.

Em síntese, de acordo com esta interpretação a solução comum do contencioso administrativo em matéria de cumulação de impugnações não seria aplicável no contencioso tributário.

42 Cfr., Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., p. 469. 43 JORGE LOPES DE SOUSA parece, no entanto, admitir, a nosso ver em contradição com a sua posição relativa à interpretação do requisito relativo à identidade da natureza dos tributos, «as situações de vários impugnantes pretenderem atacar, com os mesmos fundamentos jurídicos, mais do que um acto contido no mesmo despacho ou outra forma de decisão», exemplificando com o caso «de impugnação de um acto em que se tenha liquidado I.R.C. e derrama que incida sobre a respectiva colecta» (Código de Procedimento e

de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., p. 470).

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7. Idem: a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo

Também a jurisprudência do STA44 tem entendido que o que o artigo 104.º da LPTA disciplina a cumulação de impugnações, considerando-o norma especial face ao disposto no artigo 38.º da LPTA, entretanto substituído pelos artigos 4.º, n.ºs 4 e 5 e 47.º, n.ºs 4, 5 e 6 do CPTA.

Em acórdão tirado pela 2.ª Secção do STA em 26 de Março de 2003 (processo n.º 131/03) foi decidido num caso de impugnação judicial de liquidações adicionais de IVA e IRS que o impugnante apresentou uma cumulação ilegal de pedidos uma vez que «estão em causa liquidações de IVA e de IRS que são obviamente tributos de natureza diferente» o que, nos termos do artigo 104.º do CPPT impede a. cumulação. O impugnante teve então que, no prazo de um mês a contar do trânsito em julgado da decisão, deduzir novas impugnações, considerando-se as respectivas petições apresentadas na data de entrada da primeira.

Esta jurisprudência foi seguida nos acórdãos do STA de 2 de Julho de 2003 (processo n.º 538/03), de 10 de Março de 2004 (processo n.º 1911/03), de 2 de Fevereiro de 2005 (processo n.º 974/04), de 2 de Março de 2005 (processo n.º 1336/04), de 10 de Março de 2005 (processos n.ºs 1022/04 e 1390/04) de 27 de Abril de 2005 (processo n.º 1891/03) e de 25 de Maio de 2005 (processo n.º 400/05) onde se concluiu sistematicamente, que face ao disposto no artigo 104° do CPPT, não pode cumular-se a impugnação da liquidação de IVA e da liquidação de IRS ou de IRC por não existir identidade da natureza dos tributos e por se entender que o artigo 104° do CPPT constitui norma especial face ao regime de cumulação de impugnações do contencioso administrativo.

No acórdão de 27 de Abril de 2005 (processo n.º 1891/03) o STA esclarece que «nos termos do art.º 104.º do CPPT, na impugnação judicial podem cumular-se pedidos em caso de identidade de natureza dos tributos. Logo, se os tributos não forem de idêntica natureza não pode haver cumulação de pedidos. Para efeitos desta norma temos de ter em conta uma certa e determinada classificação dos tributos. Essa classificação tem de ser a legal e não qualquer classificação doutrinal. Ora, a classificação dos tributos em razão da natureza dos mesmos é a que os divide em impostos sobre o rendimento, impostos sobre o património e impostos sobre o consumo». Em consequência «como o IVA é o imposto geral de consumo e o IRC é um imposto sobre o rendimento», o STA não deu provimento ao recurso, considerando que havia cumulação ilegal de pedidos.

As consequências desta interpretação no plano da celeridade processual e da concentração de esforços na realização do direito à tutela jurisdicional efectiva estão à vista e não admira que, confrontada com o Acórdão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 2004, onde se decidiu que «face ao estatuído no artigo 104° do CPPT, não pode cumular-se impugnação de liquidação de IVA e de

44 Cfr. o acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) de 11 de Março de 2003, processo n.º 7382/02, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf?OpenDatabase e os acórdãos da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 26 de Março de 2003, processo n.º 131/03, de 2 de Julho de 2003, processo n.º 538/03, de 10 de Março de 2004, processo n.º 1911/03, de 2 de Fevereiro de 2005, processo n.º 974/04, de 2 de Março de 2005, processo n.º 1336/04, de 10 de Março de 2005, processos n.ºs 1022/04 e 1390/04, de 27 de Abril de 2005, processo n.º 1891/03 e de 25 de Maio de 2005, processo n.º 400/05, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase.

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liquidação de IRS, por isso que inexistente identidade da natureza dos mesmos tributos», ISABEL MARQUES DA SILVA observe que «por mais que pense no assunto, não consegui ainda descobrir a ratio subjacente à norma do artigo 104.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (…), cuja aplicabilidade ao caso, com a consequente confirmação da improcedência das impugnações deduzidas cumulativamente, não suscitou qualquer dúvida ao Supremo Tribunal Administrativo»45.

De facto, a consequência desta jurisprudência é a absolvição da Fazenda Pública da instância, reconhecendo-se ao contribuinte a possibilidade aberta pelo artigo 38.º, n.º 4 da LPTA e pelos artigos 4.º, n.º 4 e 47.º, n.º 6 do CPTA, de apresentar novas petições de impugnação no prazo de um mês a contar do respectivo trânsito em julgado, considerando-se estas apresentadas na data de entrada da primeira, para efeitos da tempestividade da sua apresentação.

Ou seja, em lugar de apreciar conjuntamente dois actos de liquidação fundados na mesma matéria de facto e de direito e em relação de dependência recíproca, as instâncias vão ter que se pronunciar de forma separada sobre duas liquidações que têm exactamente o mesmo suporte factual e se encontram em relação de estrita conexão, podendo mesmo conduzir ao absurdo de nos autos da impugnação do IVA se vir a anular o respectivo acto tributário e tal não suceder nos autos de impugnação do IRS ou IRC ou vice-versa.

Observe-se que não se trata aqui de uma decisão jurisprudencial isolada mas de uma linha consistente de acórdãos que, desde 2002 tem vindo a entender que o artigo 104.º do CPPT constitui uma norma especial face às normas gerais de contencioso administrativo que admitem a cumulação de impugnações de actos administrativos em relação de dependência ou de conexão.

O impacto desta interpretação não se limita aos casos de cumulação de impugnações, mas alarga-se mesmo à apensação de processos, uma vez que nos termos do artigo 105.º do CPPT «os processos de impugnação judicial podem ser apensados ao instaurado em primeiro lugar que estiver na mesma fase, em caso de verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artigo anterior», isto é, em caso de «identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão».

8. Idem: a posição de Isabel Marques da Silva Confrontada com a jurisprudência uniforme do STA sobre esta matéria, ISABEL

MARQUES DA SILVA propõe três linhas de contra-argumentação:46

– O requisito da identidade da natureza dos tributos não diz respeito a diferentes classificações legais ou doutrinais de impostos, mas apenas e tão

45 Cfr. Isabel Marques da Silva, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004 (Cumulação de

Impugnações de IVA e de IRS), cit., p. 371 46 Cfr. Isabel Marques da Silva, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004 (Cumulação de

Impugnações de IVA e de IRS), cit., pp. 373-377.

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ao conceito amplo de tributo, pelo que apenas proíbe a cumulação da impugnação de impostos e taxas;

– Outra interpretação conduziria à conclusão de que o artigo 104.º do CPPT seria organicamente inconstitucional «porque a lei de autorização legislativa ao abrigo da qual o CPPT foi criado não autorizava o legislador a restringir os casos em que a cumulação de impugnações é admissível, sendo que os termos do exercício do direito de impugnação constitui, ao menos quando o restrinja, matéria de garantias dos contribuintes, sujeita à reserva de lei»;

– Conduziria ainda à conclusão de que o artigo 104.º do CPPT seria materialmente inconstitucional «na medida em que tal condicionamento afronta o direito fundamental de acesso ao direito e o princípio da tutela jurisdicional efectiva (...)» uma vez que a dedução de «impugnações separadas, sem que para tal exista fundamento razoável, dificulta o exercício do seu direito de acção judicial e torna-o mais oneroso, pelo menos quanto às custas processuais (...)».

E conclui que o artigo 104.º do CPPT deveria ser, «pura e simplesmente»

revogado, «passando a receber-se plenamente no contencioso tributário, por via da aplicação supletiva (...) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, as soluções consagradas para o contencioso administrativo quanto à cumulação de impugnações e de pedidos (...)».47 48

9. Idem: a nossa posição

9.1. – Em nosso entender e contrariamente à leitura que do preceito tem sido feita por JORGE LOPES DE SOUSA e pela jurisprudência do STA, o artigo 104.º do CPPT não deve ser interpretado no sentido de constituir uma norma especial em relação aos artigos 4.º, n.ºs 4 e 5 e 47.º, n.ºs 4, 5 e 6 do CPTA.

Desde logo porque se refere expressis et apertis verbis à cumulação de pedidos e à coligação de autores e não à cumulação de impugnações que, no contencioso tributário, como no contencioso administrativo, exige uma acumulação real de acções.49 Com efeito, para haver cumulação de impugnações é necessário que esteja em causa a impugnação de diferentes actos tributários, correspondentes a diferentes relações

47 Cfr. Isabel Marques da Silva, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004 (Cumulação de

Impugnações de IVA e de IRS), cit., p. 376. 48 Embora não proponha a revogação do artigo 104.º do CPPT, também MARTA REBELO entende, dentro da concepção geral de convergência entre o CPTA e o CPPT que sustenta, que será necessário proceder à revisão do artigo 104.º de modo a ampliar as possibilidade de cumulação processual (cfr. Código de

Procedimento e Processo Tributário – Algumas Anotações à luz da Reforma do Contencioso

Administrativo, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 99-101). 49 Sobre a cumulação de pedidos e de impugnações no contencioso administrativo cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais

Administrativos, cit., anotações aos artigos 4.º, 12.º, 28.º, 47.º e 61.º do CPTA e Mário Aroso de Almeida, O Objecto do Processo no Novo Contencioso administrativo, CJA, 36 (Nov.-Dez. 2002), pp. 3-16.

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jurídicas de imposto – o que, de acordo com o critério da identidade da natureza dos tributos, tal como vem sendo interpretado pelo STA, corresponderia apenas a admitir a cumulação de impugnações de vários actos de liquidação do mesmo imposto.

É verdade que a solução normativa constante do artigo 104.º do CPPT constituiu uma inovação face ao CPT e face ao CPCI, na exacta medida em que vem estabelecer requisitos próprios para a cumulação de pedidos e para a coligação de autores em

processo de impugnação judicial da liquidação dos tributos. Porém, uma leitura atenta deste artigo permite concluir que ele não regula integralmente a cumulação de pedidos e a coligação de autores, na medida em que remete essa matéria para a lei. Observe-se que, de facto, a primeira parte da norma tem natureza remissiva, ao admitir a cumulação de pedidos (objectiva) e a coligação de autores (subjectiva), «nos termos legais».

Ora, na ausência de quaisquer outras normas sobre a matéria no CPPT (além da norma do artigo 71.º do CPPT, mas que diz respeito ao procedimento tributário) esta remissão para a lei só pode ter como conteúdo útil a aplicação no processo judicial tributário das normas CPTA e do CPC, «de acordo com a natureza dos casos omissos», nos termos gerais definidos no artigo 2.º do CPPT.

Nesta conformidade, extrair-se-ia da primeira parte da norma do artigo 104.º do CPPT uma remissão para o regime da cumulação de pedidos no contencioso administrativo e no processo civil, desde que fossem respeitados os limites estabelecidos na segunda parte da mesma disposição legal, ou seja, desde que seja observada a regra das «três identidades»:50 identidade da natureza dos tributos, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão.

Ora, como já dissemos, destes requisitos, apenas importa considerar o que se refere à «identidade da natureza dos tributos», uma vez que os restantes correspondem à preocupação de assegurar a unidade do objecto processual, entendida como a proibição de cumular impugnações cuja análise não importe a apreciação dos mesmos factos e a interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas, ou que correspondam à competência de diferentes tribunais.

Neste sentido, ao postular identidade dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão, o artigo 104.º do CPPT não constitui uma inovação face ao quadro geral em que a cumulação processual é admitida no processo civil e no contencioso administrativo: trata-se de garantir a economia processual e a uniformidade dos julgados, como, de resto, é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência.51

A sua especialidade consiste, precisamente, na exigência da «identidade da natureza dos tributos» o que aponta, como bem observa JORGE LOPES DE SOUSA,52 para a introdução de um limite à cumulação real objectiva, ou seja, para a cumulação de impugnações, mesmo que todos os restantes requisitos da cumulação processual estejam preenchidos.

Significa isto que para surpreender o regime da cumulação processual no contencioso tributário, torna-se necessário recorrer ao regime da cumulação de pedidos e de impugnações no contencioso administrativo, que corresponde, de acordo com o

50 A expressão é de ISABEL MARQUES DA SILVA, Anotação ao Acórdão do STA de 10 de Março de 2004

(Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS), cit., p. 372. 51 Veja-se Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., p. 469 e o acórdão do pleno do STA de 13 de Julho de 1995 (processo n.º 31.129). 52 Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 4.ª edição, cit., p. 469.

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critério da natureza do caso omisso, ao ordenamento jurídico-processual que apresenta maior afinidade com o processo judicial de impugnação e, por conseguinte, deve constituir o critério de decisão do julgador na solução a dar ao caso concreto.

Assim sendo, podemos resumir do seguinte modo o regime da cumulação processual no contencioso tributário, por força da remissão dos artigos 2.º e 104.º do CPPT para o CPTA:

– Admissibilidade da cumulação de pedidos no mesmo processo de

impugnação judicial, sempre que «a causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica material» (artigos 4.º, n.º 1, alínea a), e 47.º, n.º 1 do CPTA) ou quando, «sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito» (artigos 4.º, n.º 1, alínea b), e 47.º, n.º 1 do CPTA). Está aqui em causa a cumulação aparente, objectiva e subjectiva (cfr. artigo 12.º do CPTA), uma vez que se trata de pedidos emergentes da mesma relação jurídica substantiva, o que importa identidade de objectos processuais, ou seja, não implica cumulação de impugnações;

– Admissibilidade da cumulação de impugnações de actos «que se encontrem entre si colocados numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por estarem inseridos no mesmo procedimento ou porque da existência ou validade de um deles depende a validade do outro» (artigos 4.º, n.º 5 e 47.º, n.º 4, alínea a) do CPTA) e de actos «cuja validade possa ser verificada com base na apreciação das mesmas circunstâncias de facto e dos mesmos fundamentos de direito» (artigos 4.º, n.º 5 e 47.º, n.º 4, alínea b) do CPTA). Está aqui em causa a cumulação real objectiva (o mesmo recorrente, impugna vários actos) e a cumulação real objectiva e subjectiva quando vários recorrentes, com os mesmos fundamentos de facto e de direito, impugnam diversos actos conexos entre si, apesar de se basearem em diferentes relações jurídico-substantivas, o que importa pluralidade de objectos processuais, ou seja, a cumulação de impugnações.

9.2. – Como já dissemos, a única especialidade de regime constante do artigo

104.º do CPPT consiste, precisamente, na exigência da «identidade da natureza dos tributos» para que o contribuinte possa beneficiar do regime da cumulação de pedidos e de impugnações consagrado no CPTA. Por outras palavras, sempre que os tributos a que se referem os actos tributários impugnados tiverem a mesma natureza, pode haver cumulação processual, real ou aparente, subjectiva e objectiva, no contencioso tributário.

Naturalmente que a questão que subsiste é a de saber quando é que os tributos não têm a mesma natureza e, em consequência, não se verifica o requisito positivo exigido pelo artigo 104.º do CPPT.

Nesta matéria diremos que qualquer critério é válido, porque seja qual for o elemento de diferenciação utilizado – um critério legal, assente no elemento material do facto tributário, como quer o STA, um ou outro critério doutrinário assente na distinção entre taxa e imposto, uma vez que ambos são considerados tributos à luz do artigo 3.º,

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n.º 2, da LGT, ou outro qualquer – a exigência da «identidade da natureza dos tributos» constitui um autêntico absurdo face aos fundamentos da cumulação processual e face às garantias constitucionais da plenitude da tutela jurisdicional.

Neste sentido não podemos deixar de acompanhar a posição de ISABEL

MARQUES DA SILVA quando não encontra habilitação parlamentar para a solução adoptada pelo legislador e quando considera a norma materialmente inconstitucional.

E o problema é tanto mais grave quando o requisito da «identidade da natureza dos tributos» acaba por ter como consequência a proibição relativa da cumulação real no contencioso tributário porque, na realidade, nos casos de cumulação aparente, em que apenas está em causa a cumulação de pedidos (objectiva) e a coligação de impugnantes (subjectiva) relacionados com a impugnação do mesmo acto, inserido na mesma relação jurídico-tributária, nunca se coloca um problema de cumulação de impugnações, nem um problema de diversidade na natureza dos tributos.

Só existindo vários actos tributários se coloca um problema de cumulação real e, tratando-se do mesmo tributo (imposto ou taxa) ou de tributos com a mesma natureza (como quer que se entenda), é permitida a cumulação de impugnações ou de objectos processuais; tratando-se de diferentes tributos (imposto ou taxa) ou de tributos de diferente natureza (como quer que se entenda), já não é permitida a cumulação de impugnações ou de objectos processuais.

Temos, por isso, no contencioso tributário, uma situação absurda em que se proíbe a impugnação conjunta de actos tributários conexos entre si por assentarem nos

mesmos factos ou por estarem em relação de dependência quando respeitem a

diferentes tributos ou a tributos com natureza diferente, o que afecta de forma irremediável os objectivos de economia processual e de uniformidade de decisões que estão subjacentes à figura da cumulação da impugnação de actos que estejam entre si numa relação de dependência ou de conexão, ao arrepio da tendência bem expressa nos artigos 4.º, 12.º, 28.º, 47.º e 61.º do CPTA. De resto, não se compreende em que medida a diferente natureza dos tributos pode prejudicar a sua apreciação conjunta atenta a sua inserção no mesmo procedimento, a relação de dependência em que porventura se situam ou a unidade da causa de pedir.

Acresce que, ao pronunciar-se de forma separada sobre dois actos que têm exactamente o mesmo suporte factual e se encontram em relação de dependência, os tribunais podem emitir decisões contraditórias, como porventura terá sucedido nos processos decididos pelas instâncias (cfr. supra n.º 7) quando a anulação da liquidação adicional de IVA não tenha sido acompanhada pela anulação da liquidação adicional de IRC ou vice-versa. 10. Conclusão

Numa altura em que a reforma do contencioso administrativo adoptou o

princípio da livre cumulação de pedidos e de impugnações como instrumento de garantia do direito à tutela jurisdicional efectiva, é hoje verdadeiramente incompreensível a vigência de uma proibição relativa da cumulação real de impugnações no contencioso tributário (dependendo da «identidade da natureza dos tributos»), tanto mais quanto é sabido que a generalidade dos procedimentos inspectivos acabam sempre por gerar liquidações adicionais de vários impostos, com base na

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mesma matéria de facto, o que apontaria para um modelo de impugnação unitária dos actos tributários praticados, em cumulação real de acções.

A solução vigente, além de suscitar legítimas dúvidas quanto à sua conformidade constitucional, coloca os contribuintes numa situação de desfavor face à generalidade dos administrados, coexistindo com a livre cumulação processual naquelas acções onde, não estando em causa a apreciação da legalidade do acto de liquidação, não é aplicável o artigo 104.º do CPPT, mas sim as regras do CPTA.

Em face do exposto não podemos deixar de concluir pela necessidade de rapidamente promover, neste como noutros domínios, 53 a convergência dos modos de tutela da justiça administrativa e da justiça tributaria, sem pôr em causa, naturalmente, a autonomia científica e dogmática do direito fiscal, mas assegurando o mesmo grau de acesso à justiça tributária, enquanto concretização do direito fundamental à tutela

jurisdicional efectiva a que alude o artigo 268.º, n.º 4 da Constituição.

53 Cfr., a este respeito, Marta Rebelo, Código de Procedimento e Processo Tributário – Algumas

Anotações à luz da Reforma do Contencioso Administrativo, cit..