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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL NÚCLEO DE PSICOLOGIA SOCIAL, TRABALHO E SUBJETIVIDADE GRUPO DE ESTUDOS SOBRE TRABALHO PRECOCE A RELAÇÃO DO TRABALHO PRECOCE COM O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. OLÍVIA MARIA COSTA GRANGEIRO DE SOUSA JOÃO PESSOA-PB NOVEMBRO/2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIALNÚCLEO DE PSICOLOGIA SOCIAL, TRABALHO E SUBJETIVIDADE

GRUPO DE ESTUDOS SOBRE TRABALHO PRECOCE

A RELAÇÃO DO TRABALHO PRECOCE COM O PROCESSO DE

ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

OLÍVIA MARIA COSTA GRANGEIRO DE SOUSA

JOÃO PESSOA-PBNOVEMBRO/2006

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OLÍVIA MARIA COSTA GRANGEIRO DE SOUSA

A RELAÇÃO DO TRABALHO PRECOCE COM O PROCESSO DE

ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia Social da

Universidade Federal de Paraíba, sob a

orientação da Professora Dra. Maria de Fátima

Pereira Alberto.

João Pessoa - PBNovembro/2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIALNÚCLEO DE PSICOLOGIA SOCIAL, TRABALHO E SUBJETIVIDADE

A RELAÇÃO DO TRABALHO PRECOCE COM O PROCESSO DE

ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

AUTORA: Olívia Maria Costa Grangeiro de Sousa

Dissertação aprovada em: ___/ ___/___/

______________________________________________Profª. Drª. Maria de Fátima Pereira Alberto (orientadora)

Universidade Federal da Paraíba

Banca Examinadora

______________________________________________Profª. Drª. Nádia Ribeiro Salomão (leitora)

Universidade Federal da Paraíba

______________________________________________

Prof. Dr. Edil Ferreira Silva

Universidade Estadual da Paraíba

_______________________________________________

Profª. Drª. Ângela Maria Dias Fernandes

Universidade Federal da Paraíba

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DEDICATÓRIA

A Deus, senhor da minha vida e provedor do meu conhecimento.

A minha grandiosa e querida família Marcus Luíz, Melissa Rejane e Luíza Maria, minhas inesgotáveis fontes de amor, esperança e força.

A meus pais Odízio Grangeiro (In memoriam) e Lindete Costa, princípio de minha existência.

A todas as crianças e adolescentes trabalhadores precoces, cuja formação tenha na escola, e não no trabalho, o seu maior referencial.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho é fruto de um esforço pessoal na busca de um ideal, contudo sem a

contribuição de tantos, ele estaria incompleto. Agradeço:

A Deus, fonte de todo o conhecimento;

A Marcus, meu esposo amado, que, com paciência e estímulo, compartilhou comigo todas

as etapas para a concretização deste ideal;

À Melissa, filha amada e prestativa, que sempre me ajudou na execução do mesmo;

À Luíza, minha querida filhinha Lulu, que, na inocência de sua infância, me trouxe alegria

e ânimo para enfrentar os momentos difíceis;

À professora Fátima Pereira, cuja orientação, competência e solicitude ímpar foram

essenciais para a realização deste;

À professora Nádia Salomão, pelas sugestões pertinentes na leitura deste trabalho;

À professora Mônica Correia, pelo empréstimo generoso de material para este trabalho;

Ao professor Francisco de Assis Dantas pela revisão criteriosa da língua pátria;

Às colegas: Rejane, Tatiana, Cristiane, Celinha, Deliane, companheiras de estudo e força

na busca por este ideal;

Aos colegas: Orlando, Gabriel, Nozângela e Daniele, pela solicitude com que sempre me

acolheram;

Ao corpo docente deste mestrado, pela competência com que sempre conduziu seus

ensinamentos;

À Vitória e a Graça, cujos préstimos me foram de fundamental importância;

Aos colegas do Grupo de Estudos sobre Trabalho Precoce;

Aos colegas de estudo do mestrado.

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LISTAS DE SIGLAS

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍTICA

FEPET – FÓRUM NACIONAL DE PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

IPEC – PROGRAMA INTERNACIONAL PARA ELIMINAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

LDBEN – LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

MEC – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

ONG – ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL

PCNs. - PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

PNAD – PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRAGEM DE DOMICÍLIOS

UNICEF – FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA

SAEB – SISTEMA DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA

SEF – SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL

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RESUMO:

Esta dissertação analisa a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, trabalhadores precoces nas atividades informais em condição de rua nesta cidade. Aborda-se os aspectos mais implícitos: a subjetividade forjada sobre o trabalho e a escola; e os aspectos mais explícitos: o processo de escolarização e o domínio de conteúdos básicos em língua portuguesa e matemática. Adota-se como embasamento teórico a Abordagem Histórico-Cultural de Vygotsky com o objetivo de compreender as condições sócio-históricas subjacentes a esta situação, assim como, as implicações em termos cognitivos. Nesse sentido, contempla-se a dimensão sócio-histórica, em que se dá a transformação do objetivo em subjetivo a partir do social; a dimensão escolar, enfatizando-se a importância do período escolar para a aprendizagem e o desenvolvimento intelectual; e a dimensão lúdica, o brincar, enquanto um momento que viabiliza e potencializa esse desenvolvimento. Como procedimento metodológico optou-se pela: análise documental, (dados numéricos), entrevista individual semi-estruturada (processos subjetivos em relação ao trabalho e à escola) e análise do domínio de conteúdos (conhecimentos básicos nas matérias de língua portuguesa e matemática). A amostra constituiu-se de vinte e uma crianças e adolescentes de 7 a 14 anos e de ambos os sexos, estudantes e trabalhadores precoces nas atividades informais em condição de rua: vendedores, engraxates, olheiros e fretistas. De acordo com os dados empíricos, há uma prevalência de sujeitos do sexo masculino na faixa etária entre 10 e 14 anos em atividades do setor de serviços. A necessidade constitui um dos principais motivos do ingresso precoce no trabalho, seguido da satisfação pessoal e da ocupação do tempo. As implicações decorrentes da condição de trabalhar e estudar abrangem desde aspectos escolares específicos, dentre os quais: leitura pouco interpretativa, conhecimentos aritméticos elementares, escrita aquém das regras gramaticais e ortográficas básicas; até vivências subjetivas ambíguas, como o reconhecimento do valor do estudo e, igualmente, a angústia velada da necessidade de trabalhar sob uma condição duplamente estigmatizada: a precocidade na idade e a lida em atividades socialmente desvalorizadas.

Palavras-chave: trabalho precoce, escolarização, crianças, adolescentes.

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ABSTRACT:

This paper analyses the relation between precocious work and the schooling process of children and adolescents, precocious workers on informal activities on street conditions in this city. It is approach the most implicits aspects: the subjectivity which permeates the necessity of working and studying; and the most explicits ones: the schooling process and the domain of basic contents in Mathematics and Portuguese Language. It is adopted a basic theoretical Historic-Cultural Approach of Vygotsky, as the purpose of comprehend the social-historical conditions underlying to this situation, as well, the implication in cognitive term. In this meaning, it is given a certain importance to the social-historical dimension, in which the transformation of the objectives occurs in subjective starting from the social status, the school dimension, emphasize the importance of the school period to learning and to the intellectual development; and the ludical dimension, the playing, while in a moment that makes it possible and gives potential to this development. As methodological conduct, it was opted by: documental analysis, numbers data, semi-structured individual interview (subjectivies process related to school and work) and content dominion analyses (basic knowledge of the Portuguese Language and Mathematics). The sample constitutes of twenty-one children and adolescents from 7 to 14 years old and from genders, students and precocious workers in the informal activities in street conditions: vendors, shoe polish workers, watchers and carriers. According empiric data, there is a prevalence of individuals of male gender from 10 to 14 years old in activities of service sector. This necessity constitutes in one of the main reasons of the starting in precocious work, followed by the pessoal satisfaction and the time occupation. The implications from this condition of working and studying embraces since specific school aspects from: little interpretation reading, arithmetic elementary knowledge, writing beyond the grammatical rules and basic orthography, even ambiguous subjective experience as the recognition of study value and equally, the determinate anguish of the needy of working of extremely stigmatized condition: the precocious age and the daily working in the activities socially devalued. Key-words: precocious work, schooling, children and adolescents.

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SÚMARIO:

Introdução..................................................................................................................... 12

PARTE I – ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS........................................... 17

Capítulo I – O Trabalho e suas implicações sócio-históricas................................... 17

1.1 Trabalho: conceito e histórico................................................................................. 17

1.2 O Trabalho em idade precoce na história................................................................ 23

1.3 O Trabalho precoce no Brasil.................................................................................. 25

1.4. A categoria Trabalho Precoce................................................................................. 29

1.4.1 Definição de trabalho precoce.................................................................. 29

1.4.2 Causas do trabalho precoce....................................................................... 31

1.5 O Trabalho no setor informal: uma das piores formas do trabalho precoce............ 34

Capítulo II – Educação, escolarização e direitos: relações históricas e repercussões

sociais............................................................................................................................. 37

2.1. A educação escolar na história................................................................................ 37

2.2. A educação escolar no Brasil................................................................................... 40

2.3. Dos direitos humanos aos direitos da infância e da adolescência.................. 46

2.3.1. Evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente............. 48

2.3 2 A legislação internacional.................................................................. 50

2.3.3. A legislação nacional......................................................................... 51

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2.4. A criança e o adolescente como sujeitos de direitos........................................ 54

2.5. A criança e o adolescente como protagonistas das políticas sociais................. 58

Capítulo III – A perspectiva sócio-histórica e o processo de construção do

sujeito.................................................................................................................. 63

3.1. A dimensão sócio-histórica da subjetividade.......................................................... 63

3.2. A dimensão escolar................................................................................................. 67

3.2.1. A relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento cognitivo.... 69

3.2.2. A idade escolar e o desenvolvimento intelectual...................................... 73

3.3. A dimensão do brincar............................................................................................. 77

3.3.1. A brincadeira e o desenvolvimento.......................................................... 78

PARTE II – ASPECTOS METODOLÓGICOS E RESULTADOS

Capítulo IV – Aportes Metodológicos......................................................................... 81

4.1. Perspectiva Metodológica....................................................................................... 81

4.2. Participantes............................................................................................................ 82

4.3. Instrumentos........................................................................................................... 83

4.4. Procedimentos.............................................................................................. 92

4.5. Análise de dados.................................................................................................... 96

Capítulo V – Resultados e Discussão................................................................. 99

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5.1.Trabalho precoce informal em condição de rua: aspectos demográficos, sócio-

históricos, psicológicos........................................................................................... 99

5.2.Trabalhadores precoces: aspectos de sua escolarização........................................ 122

5.3.Alunos trabalhadores precoces e o domínio de conteúdos escolares.................... 129

5.3.1. Análise do domínio de conteúdo em língua portuguesa........................ 130

5.3.2. Análise do domínio de conteúdo em matemática.................................. 138

Considerações Finais.................................................................................................. 145

Referências.................................................................................................................. 150

Anexos.......................................................................................................................... 166

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INTRODUÇÃO

O uso da criança e do adolescente como força de trabalho vem desde tempos

remotos. Historicamente, o trabalho em idade precoce é um fato que remonta às

civilizações antigas. Atualmente, apesar de toda a legislação que protege crianças e

adolescentes, a exploração desses sujeitos como mão-de-obra é uma constante em todo

mundo (OIT, 2001). A sociedade contemporânea se volta para a referida questão, cujas

repercussões têm adquirido status de problema social, passando a ser tema de debates e

preocupação, e, nessa perspectiva, tem sido abordada por vários segmentos, como: órgãos

governamentais e não governamentais (ONGs.), imprensa, universidades, movimentos que

lutam pela erradicação, principalmente, a partir das três últimas décadas.

Compartilhando da concepção de Alberto (2002), neste estudo, a categoria trabalho

precoce é utilizada em referência às atividades de trabalho desempenhadas por crianças ou

por adolescentes até os dezesseis anos de idade. Todavia, considerar-se á a faixa etária que

compreende o período da escolaridade obrigatória, que é de sete a quatorze anos. Esta

última, corresponde à idade mínima para ingressar no trabalho (na condição de aprendiz) e

a máxima para a escolaridade obrigatória, conforme determinação da Convenção nº138 da

Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Constituição Federal do Brasil e do

Estatuto da Criança e do Adolescente.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2001), há no mundo

aproximadamente 250 milhões de crianças trabalhadoras, cuja maioria absoluta se encontra

nos países “em desenvolvimento1”. São 17 milhões na América Latina e Caribe, o que

1 Termo aplicado aos países pobres que passam a apresentar algum progresso em sua economia, em termos de industrialização (Sandroni, 1989).

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corresponde a 7%; 80 milhões na África, correspondendo a 32%; e 153 milhões na Ásia,

constituindo um percentual de 61%, com exceção do Japão.

Não obstante, embora as estatísticas não mencionem os países desenvolvidos, há um

contingente significativo de crianças e adolescentes que trabalham em situações de riscos,

por exemplo, na Europa, em países como Inglaterra e Holanda, em virtude das mudanças

econômicas ocorridas no Leste europeu. Forastieri (1997) refere-se, ainda, aos países

industrializados, nos quais o trabalho em idade precoce vem sendo identificado em

decorrência da recessão econômica e do aumento do desemprego.

No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD,

2003), do total de 43,1 milhões de crianças e de adolescentes na faixa etária de 5 a 17 anos,

5,4 milhões trabalham. Destas, cerca de 2,3 milhões se encontram na região Nordeste. Na

Paraíba, das 992.820 crianças e adolescentes na faixa etária de 5 a 17 anos, 129.571 são

trabalhadores2, o que corresponde a 13, 04%. Dentre esses, 60% estavam no ramo de

atividades agrícola; 15,8%, em atividades de setor serviços; e 15,8%, em atividades de

comércio (Kassouf, 2004).

Em João Pessoa, são 5.204 crianças e adolescentes inseridas em situação de trabalho

precoce. Fato que lhe confere o 1º lugar no ranking do estado em número de crianças e

adolescentes trabalhando (Alberto e cols., 2006b).

Para além das repercussões estatísticas, a discussão sobre a referida temática

abrange questões amplas. Tais questões se referem tanto aos aspectos de caráter legal, no

tocante à dimensão jurídica, quanto aos aspectos de caráter físico, psicológico e social, a

dimensão biopsicossocial, em que se insere o processo de educação formal oferecido pela

escola.

2 Trabalhadores para o IBGE referem-se a pessoas que desenvolviam uma ocupação na semana de referência.

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Nessa perspectiva, discutir sobre o trabalho precoce implica não só discorrer sobre

os direitos básicos do cidadão, cujos fundamentos se encontram inseridos nos princípios

dos Direitos Humanos, enquanto direitos comuns a todos os indivíduos, e, no Brasil,

assegurados na Constituição Federal; mas, sobretudo, questionar o acesso de crianças e

adolescentes no processo de educação formal, em particular, dos milhões de crianças e

adolescentes brasileiros das classes populares que, na condição de trabalhadores precoces,

têm restringidas suas possibilidades de formação escolar regular e de qualidade, bem como,

de participação social coerente com seus direitos de cidadania.

Em se tratando da população de crianças e adolescentes, no que se refere aos

segmentos Trabalho e Educação, existe todo um aparato legal que determina e assegura

direitos em reconhecimento à condição daqueles como sujeitos em fase de desenvolvimento

biológico e psicossocial e, por isso, com necessidades específicas a esse período. Contudo,

se por um lado, existe uma legislação que lhes confere o status de sujeitos de direitos,

determinando medidas de proteção, como o direito à Educação Básica e a proibição do

Trabalho; por outro lado, a inserção no trabalho em idade precoce chama atenção para que

se reveja até que ponto esses direitos, que em tese são conquistas legais, os é, também, para

a infância e a adolescência das classes populares3.

Além disso, a situação de trabalho precoce, em que se encontra um número

significativo de crianças e adolescentes em todo o mundo, traz implicações que refletem

não só na dimensão mais visível, como por exemplo, a predisposição para fadiga,

enfermidades e acidentes de trabalho (Forastieri, 1997), baixo nível de escolaridade, pois,

no processo de escolarização desses sujeitos são comuns histórias de reprovação, repetência

3Coletivo socialmente heterogêneo cuja unidade é alcançada, não no plano orgânico de seu papel em nível de produção, mas diretamente no plano da política, e, que sua contribuição só ocorre no campo de uma ampla aliança social e política (Moisés, 1982).

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e defasagem escolar (Cervini & Burger, 1991; Rizzini & cols., 1996; Alberto; 2002); mas

também, na dimensão latente da subjetividade, enquanto uma categoria de trabalho que

imprime exclusão e sofrimento, principalmente no anonimato da informalidade.

Nesse sentido, a importância em se abordar essa problemática está relacionada à

necessidade de apresentar contribuições empíricas sobre a relação do trabalho precoce com

o processo de escolarização de crianças e adolescentes, especialmente em termos da

subjetividade desses sujeitos, enquanto atores sociais que trabalham e estudam, e,

igualmente, enquanto alunos. Destarte, sob essa última condição, espera-se que dominem

os conteúdos didáticos trabalhados, requisitos essenciais aos indivíduos das sociedades

escolarizadas.

Diante do exposto, o objetivo do presente estudo é analisar a relação do trabalho

precoce com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, a partir dos aspectos

mais implícitos, qual seja a subjetividade forjada sobre o trabalho e a escola, e os aspectos

mais explícitos que permeiam o desenvolvimento da escolaridade, tais como: o domínio de

conteúdos escolares básicos, nas disciplinas de língua portuguesa e matemática, e o

histórico de reprovação, de repetência, de defasagem idade-série e abandono escolar.

Sob essa perspectiva, buscou-se compreender as condições sócio-culturais

subjacentes à relação do trabalho precoce com o processo de escolarização de crianças e

adolescentes. Como embasamento teórico, utilizou-se a concepção dialética da abordagem

histórico-cultural proposta por Vygotsky, que, em Psicologia, tem como fundamento básico

o princípio de que o conteúdo da consciência é formado a partir da apreensão do real num

movimento dialético por meio do qual o objetivo se transforma em subjetivo (Palangana,

1994). Assinalando-se, ainda, a concepção vygotskyana sobre a relevância do ensino

escolar e do brincar para o desenvolvimento intelectual do indivíduo.

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Destarte, esta dissertação encontra-se organizada em duas partes: a primeira, em que

constam os aspectos históricos e teóricos sobre a temática em estudo, e a segunda, os

aspectos metodológicos e os achados relativos ao trabalho de campo da pesquisa.

A primeira parte compõe-se de três capítulos. O capítulo I apresenta uma análise

histórico-conceitual sobre o trabalho, bem como, a delimitação do trabalho precoce em

termos de evolução histórica e das características que assume na sociedade atual. O capítulo

II discorre sobre as relações entre educação, escolarização e direitos, enquanto elementos

de interação recíproca e implicações sociais. O capítulo III apresenta os aportes teóricos

que fundamentam o presente estudo, a saber: a abordagem histórico-cultural de Vygotsky,

contemplando seus pressupostos sobre a dimensão sócio-histórica e a construção da

subjetividade do sujeito, a dimensão escolar, e o brincar.

A segunda parte é constituída de dois capítulos. O primeiro, se refere aos aspectos

metodológicos que foram utilizados na pesquisa e, o segundo, apresenta a análise e a

discussão dos resultados encontrados ao longo do desenvolvimento deste estudo. Em

seguida, constam as considerações finais, as referências e os anexos.

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PARTE I – ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS

Capítulo I

O TRABALHO E SUAS IMPLICAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS

Abordar a temática do Trabalho significa adentrar-se em uma discussão ampla,

cujas implicações remetem à própria história da humanidade, uma vez que o trabalho é

indispensável à existência do homem (Marx, 1987). Sob essa perspectiva, o referido

capítulo aborda o trabalho a partir de três vertentes, quais sejam: conceito, histórico e

construção de uma categoria, a de trabalho precoce, com o objetivo de delimitar o objeto

de estudo da presente pesquisa ante a complexidade do tema.

1.1 Trabalho: conceito e histórico

Etimologicamente, a palavra “trabalho” remete ao latim tripalium, nome de um

instrumento formado por três estacas utilizadas para manter presos bois ou cavalos difíceis

de ferrar. No latim vulgar, a referida palavra significa “pena ou servidão do homem à

natureza” (Carmo, 1992).

Em termos conceituais, Marx. (1987), define trabalho como:

(...) dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e por

outro lado, dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um

determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valôres-

de-uso (p. 54).

O conceito marxista sobre trabalho ressalta o pressuposto ontológico da

sociabilidade, segundo o qual o Homem torna-se homem à medida que vive e trabalha em

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sociedade, de outra forma seria um animal (Marx, 1987). Sob essa perspectiva, o trabalho é

considerado o motor de todo processo histórico, em que a essência humana é forjada na

produção material com base nas relações do homem com a natureza e nas relações sociais.

Nesse sentido, o trabalho também assume um caráter humanizador, pois, uma vez que o

homem se define através do seu trabalho, quando produz, produz a si mesmo como ser

humano.

O modo pelo qual uma determinada sociedade se organiza para o trabalho e o tipo

de relações decorrentes da produção, tanto completa o indivíduo, contribuindo para seu

desenvolvimento como ser humano, como também, o desumaniza e aliena

(Marx, 1987), uma vez que, existem trabalhos que embrutecem e deformam. Nestes, a

exploração do trabalhador inviabiliza a possibilidade de humanização, assim como, as

condições de melhoria de vida pessoal, familiar e social, conforme se constata com as

crianças e adolescentes que ingressam precocemente no trabalho.

Nesse sentido, entende-se que o trabalho precoce, embora não constitua,

necessariamente, uma relação de transformação da natureza, configura-se como uma

atividade produtiva realizada dentro dos parâmetros formais de produção, pois, implica

trabalho útil que requer o dispêndio de força física com vistas a atingir um determinado

fim, qual seja a própria manutenção da sobrevivência.

Historicamente, o trabalho é considerado um denominador comum e uma condição

de toda vida humana em sociedade, que supõe uma variedade de comportamentos sociais e

de regras, determinadas no curso da História (Friedmann & Naville, 1973).

Concomitantemente, o valor atribuído ao trabalho, assim como a sua configuração, tem

sofrido constantes alterações. Estas, pelas características que assumem e pelas relações

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materiais que estabelecem, demarcam o mundo do trabalho da sociedade antiga em relação

à sociedade contemporânea (Friedmann & Naville, 1973; Arendt, 1999; Lira, 2003).

Há cerca de 500 mil anos, o homem que habitava as cavernas já exibia uma marca

essencialmente humana: o trabalho. A colheita de raízes e de frutas é a mais remota

referência ao trabalho de que se tem notícia, cuja finalidade se encontrava estritamente

relacionada à sobrevivência, ou seja, antes se trabalhava apenas para ter o que comer

(Lucci, 2002).

Ao longo do processo histórico-social de organização das sociedades, o Homem

criou a necessidade de transformar outros elementos da natureza e de armazenar os bens

produzidos, fato que possibilitou a criação de um excedente, e a partir disso o surgimento

de classes sociais com interesses diferenciados. Assim, quando a produção atingia uma

escala superior à simples manutenção da subsistência, o homem passava a comercializar o

que produzia através do seu trabalho. A comercialização do excedente, produzido através

do trabalho, permitiu um maior intercâmbio entre os povos e o desenvolvimento de relações

de produção cada vez mais complexas, porém não menos conflitantes. Em referência a essa

questão, Arendt (1999) aponta que desde a época das sociedades antigas o labor era (...)

ocupação das classes livres, somente para levar a estas as obrigações das classes servis

(p.142).

De acordo com Carmo (1992), um dos grandes contrastes entre a sociedade atual e a

Grécia antiga é o endeusamento do trabalho. Na Grécia, enquanto a elite se entregava aos

prazeres do corpo ou à investigação e à contemplação das coisas do espírito, os escravos

trabalhavam nas tarefas servis. Para os gregos, o trabalho era considerado uma atividade

menor por ter como fim apenas a satisfação das necessidades físicas do homem. A noção de

trabalho estava relacionada à condição deste constituir uma atividade simplista, sem técnica

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e criatividade, que dispensava qualificação e, que, por outro lado, imprimia uma rotina

monótona com jornadas de longa duração. Nessa perspectiva, o trabalho tinha um caráter

servil.

Na Idade Média, embora não houvesse uma exaltação do trabalho como fonte de

satisfação e nobreza, este passou a ser considerado um valor socialmente necessário, que

representava a garantia da sobrevivência. Todavia, nessa época não existia, ainda, o

interesse para a produção de excedentes (Carmo, 1992).

Por outro lado, com a doutrina instituída pela Igreja cristã, presente durante todo o

decorrer do período medieval, o trabalho passou a ser valorizado na medida em que

contribuía para afastar as tentações humanas de fornicação, servindo como resignação cristã

e pureza da mente. Assim, o trabalho, a despeito de ser considerado uma maldição ou efeito

de um pecado, também o era como meio de salvação. Sob essa concepção, (...) se encarava

o trabalho principalmente pelo prisma moral e, naturalmente, teológico (Friedmann &

Naville, 1973).

A partir do século XVIII, a Revolução Industrial estabeleceu um novo modelo

econômico: o modelo capitalista de produção. Esse modelo instituiu mudanças

significativas em relação às posturas medievais, entre as quais, a valorização do trabalho

como única fonte de riqueza e a ênfase na produtividade. O surgimento do capitalismo

consolidou, por um lado, a ascensão e hegemonia da burguesia como classe social detentora

dos meios de produção; e, por outro lado, a presença da classe trabalhadora detentora da

força de trabalho.

Posto que naquela época o capitalismo emergente pautava-se, assim como

atualmente, em um modelo de produção cuja essência é a busca da acumulação de riquezas,

tornou-se imprescindível difundir a ideologia do trabalho como forma de garantir a

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sustentação desse novo sistema econômico. Nesse sentido, o trabalho passou a ser objeto

específico de profundas reflexões filosóficas e econômicas, impulsionando, assim, o

surgimento de doutrinas como o liberalismo, que exaltava a liberdade do cidadão para

vender sua força de trabalho; o taylorismo, que defendia o aumento da produtividade

através da noção de “tempo útil”; o fordismo que intensificou o nível de mecanização do

trabalho.

Conforme Antunes (2000), o binômio taylorismo/fordismo, vigorou ao longo de

praticamente todo o século XX. A partir do início dos anos 70 teve início a crise estrutural

do capital, caracterizada pelo grande deslocamento do capital oriundo do setor industrial

para o setor de finanças, a qual se refletiu fortemente no mundo do trabalho –

particularmente entre os países capitalistas avançados, com repercussões nos países de

Terceiro Mundo.

Segundo Carmo (1992), a História tem mostrado que a cada ação do capital há uma

reação no mundo do trabalho. As sucessivas mudanças estruturais na configuração do

trabalho abrangem desde as formas de gestão e organização deste, até as relações sócio-

econômicas decorrentes, refletindo não só no valor atribuído ao trabalho, enquanto

atividade em que o homem cria e transforma, mas também, no debate teórico relativo à sua

centralidade ou não (Antunes, 1997; Castel, 1998; Gorz, 1985; Offe, 1989).

Num dos pólos desse impasse, autores como Gorz (1985) e Offe (1989) afirmam o

fim do trabalho como categoria central nas relações sócio-econômicas; por outro lado,

autores como Castel (1998), Antunes (1997, 2000), defendem a tese da centralidade do

trabalho.

Na primeira linha de pensamento, Gorz (1985), considera que o mundo

contemporâneo, principalmente as classes superdesenvolvidas e o neoproletariado pós-

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industrial, vivenciam uma inversão da ordem de prioridades, em que o trabalho social é

subordinado à expansão de atividades autônomas, perdendo, assim, sua centralidade

enquanto fonte de identidade, de sentido e de poder. Segundo Offe (1989), o trabalho foi

deslocado de seu status central, tanto no aspecto objetivo, quanto na própria motivação dos

trabalhadores, tendo em vista a inexpressividade do trabalho formal, a perda de valorização

do trabalho decorrente do desemprego, e a própria insuficiência, enquanto categoria social,

para explicar a realidade.

Numa perspectiva diferente, Castel (1998) ressalta que, mesmo na atualidade, o

destino da grande maioria dos atores sociais desenrola-se em torno do trabalho, seja ele

precário ou garantido. Segundo Castel, a relação com o trabalho mudou, mas este continua

a ser uma categoria central, uma vez que permanece no centro das preocupações da maior

parte das pessoas.

De acordo com Antunes (2000), a idéia do “descentramento da categoria trabalho”,

mais proeminente nas três últimas décadas, constitui um fato curioso, uma vez que tem se

ampliado enormemente o conjunto de seres sociais que vivem de sua força de trabalho. O

referido autor, ao contestar a tese em que se defende o fim do caráter central do trabalho,

aponta o quão ressoa paradoxal concluir pela perda da centralidade do mesmo, dentro do

universo de uma sociedade produtora de mercadorias. Além disso, a despeito do processo

de heterogeneização, complexificação e fragmentação vivenciada pela classe trabalhadora

ao longo da crise do capital, as possibilidades de superação dessa crise se originam

centralmente no mundo do trabalho.

Como respostas do capital à crise dos anos 70, intensificaram-se as transformações

no processo de produção afetando diretamente o mundo do trabalho. Entre essas

transformações, constatou-se um aumento acentuado, em escala mundial, das inúmeras

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formas de subproletarização ou precarização do trabalho. Estas por sua vez, decorrentes

do trabalho parcial, temporário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia informal

ou ao setor de serviços, entre os quais a expansão dos níveis de trabalho infantil em várias

partes do mundo, como Ásia e América Latina (Antunes, 2000).

Nesse sentido, em que se pese a questão de que o termo subproletarização faz

referência a nova representação da classe operária industrial tradicional nos dias atuais

(Antunes, 1997), pode-se considerar que o trabalho de crianças e adolescentes também se

insere nesta representação, uma vez que o trabalho precoce, especialmente nas atividades

informais em condição de rua, é, predominantemente, expressão de trabalho em tempo

parcial, temporário, precarizado e subcontratado, cujo anonimato da informalidade

constitui um campo fértil para obscurecer os direitos mínimos desses cidadãos, entre os

quais a proibição legal do trabalho de crianças e da proteção ao trabalho dos adolescentes

(Art.227 da Constituição Federal; Art.60 a 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Destarte, é no contexto histórico da contemporaneidade que cada vez mais o

trabalho em idade precoce, sobretudo o trabalho informal em condição de rua, se delineia

como uma realidade social que tem na pobreza (Cervini & Burger, 1991); no desemprego

estrutural (Antunes, 1997); no processo migratório (Moreira & Targino, 1997); e na própria

ausência do Estado em desenvolver políticas de atendimento à criança e ao adolescente

(Alberto, 2002), as principais condições para sua existência e manutenção na sociedade

atual.

1.2 O Trabalho em idade precoce na história

O ingresso precoce de crianças e adolescentes no mundo do trabalho é um fato que

se perpetua ao longo do desenvolvimento histórico das sociedades, cuja incidência remonta

o período da Antigüidade. Nas civilizações grega e romana, por exemplo, uma vez que a

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escravidão humana era comum entre os povos, crianças e adultos eram, indistintamente,

utilizados como mão-de-obra, sem nenhuma proteção estatal (Minharro, 2003).

De acordo com Nogueira (1993), nas sociedades antiga e medieval, não existia

proibição legal, ou mesmo moral, no uso da força de trabalho da criança ou do adolescente,

quer no ambiente rural, quer no ambiente urbano. No meio rural, sob a tutela familiar, não

raro a criança se ocupava de tarefas como capinar o terreno, revolver o feno e guiar o

rebanho. Na casa de terceiros, ela era empregada na agricultura e no auxílio das atividades

domésticas. No espaço urbano, seu ambiente de trabalho era a oficina do artesão, na qual

desempenhava a função de aprendiz, ao lado do oficial e sob a orientação do mestre.

Conforme Alberto (2002), nessas épocas, o trabalho apresentava um caráter

formador e tinha como principal objetivo introduzir a criança e o adolescente na

aprendizagem de um oficio, incluindo a formação profissional para a vida. Pois, durante

esse período não havia a preocupação com a inserção profissional, tendo em vista que o

processo de tecnologização não demandava essencialmente escolarização, mas experiências

práticas.

No séc. XIX, o desenvolvimento industrial introduziu mudanças sem precedentes na

História. A produção advinda do trabalho familiar e manual, que prevalecia nas oficinas4,

passou a ser substituída pela produção mecanizada a partir do uso das máquinas. Fato que

decorreu do declínio do sistema feudal e da ascensão do modelo capitalista de produção.

Segundo Marx (1987), para os capitalistas, o uso da maquinaria representou um

ponto estratégico para aumentar a oferta de mão-de-obra: lançar todos os membros da

família do trabalhador no mercado de trabalho. Além disso, foi na era do maquinismo,

4 Pequenos agrupamentos produtivos, com menos de cinco pessoas, que gozavam de certa independência: dispunha da posse das ferramentas e da matéria-prima; assim vendiam o produto do seu trabalho e não a sua força de trabalho para outrem.

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(...) que o trabalho obrigatório para o capital tomou o lugar dos folguedos infantis

e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro de limites

estabelecidos pelos costumes (p. 450).

Nessa perspectiva, a Revolução Industrial instituiu um caráter exploratório ao

trabalho infantil, em que o emprego de crianças e adolescentes se tornou uma estratégia dos

fabricantes para diminuir suas despesas com força de trabalho, uma vez que pagavam

baixíssimos salários às mesmas. Além disso, a habilidade das mãos infantis foi preferida

por ser mais adequada na lida com as máquinas (Nogueira, 1993).

Nesse sentido, percebe-se que, ao longo da história, gradativamente, o trabalho em

idade precoce passou a constituir um elemento de exploração e marginalidade. Pois, se em

épocas passadas, as crianças e os adolescentes que trabalhavam o faziam com vistas a uma

formação para a vida e sob os limites da demanda familiar (Marx, 1987; Nogueira, 1993);

hoje o fazem em vista da própria necessidade de sobrevivência. Fato que contribui para a

inserção em atividades precarizadas, de baixa remuneração e pouca valorização social,

cujas conseqüências os deixam à margem da produção de capital cultural para a inserção

profissional quando adultos (Alberto, 2002), e dos direitos básicos de cidadania.

1.3 O Trabalho precoce no Brasil

No Brasil, a história do trabalho precoce também não é recente. Segundo Ramos

(2002), há registros sobre o trabalho de crianças e adolescentes desde os primórdios de

nossa colonização, quando estes foram trazidos de Portugal para o povoamento das terras

brasileiras. De acordo com este autor, a falta de mão-de-obra de adultos para se ocupar nos

serviços dos navios, fazia com que os recrutados se achassem entre os órfãos desabrigados

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e as famílias de pedintes; famílias portuguesas pobres; e meninas pobres dos orfanatos de

Lisboa e Porto. Assim, crianças e adolescentes subiam a bordo das embarcações

portuguesas quinhentistas na condição de tripulantes, como os: grumetes, os pajens, as

órfãs do Rei; e na condição de passageiros, quando embarcados na companhia dos pais ou

de algum parente.

Os grumetes eram crianças lusitanas pobres e crianças judias arrancadas à força de

seus pais. Entre os embarcados, os grumetes eram os que tinham as piores condições de

vida. Embora, quando muito não passassem de adolescentes, esses pequenos tripulantes

eram encarregados dos trabalhos mais pesados e perigosos nas embarcações, sem, contudo,

dispor de um espaço decente para se acomodar. Uma vez que eram alojados a céu aberto no

convés, ficando expostos ao sol e à chuva (Ramos, 2002).

Os pajens, crianças da mesma faixa etária ou que eram um pouco mais jovens do

que os grumetes, tinham um cotidiano menos árduo. Eles eram responsáveis por tudo o quê

estivesse relacionado ao conforto dos oficiais da nau, exercendo tarefas mais leves e pouco

arriscadas. Por sua vez, era a proximidade que os pajens gozavam junto aos oficiais que

lhes garantiam proteção física e eventuais gratificações. Além disso, embora muitos dos

pajens tivessem sido recrutados entre famílias portuguesas pobres, a maioria advinha de

setores médios urbanos, de famílias protegidas pela nobreza ou de famílias da baixa

nobreza (Ramos, 2002).

As órfãs do Rei, meninas pobres dos orfanatos de Lisboa e da cidade do Porto com

idade entre 14 e 17 anos, eram enviadas ao Brasil para constituir família e, embora não

trabalhassem a bordo, não raro eram vítimas de estupros por parte dos marujos e oficiais

(Ramos, 2002).

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Já as crianças passageiras, geralmente com menos de cinco anos ou ainda de colo,

diferentemente das outras tinham mais privilégios por não terem que trabalhar, contudo,

nem por isso eram menos vulneráveis aos estupros e às doenças (Ramos, 2002).

Assim, era o cotidiano das crianças embarcadas, quer como tripulantes, trabalhando

exaustivamente em substituição à mão-de-obra adulta e em condições sub-humanas de

sobrevivência, enfrentando: fome, sede, fadiga, doenças, abusos sexuais, e humilhações;

quer como passageiros, à mercê do universo adulto. Nesse sentido, o cotidiano infantil a

bordo das embarcações portuguesas foi uma história marítima trágica, cujo registro

apresenta de fato (...) uma história de tragédias pessoais e coletivas (Ramos, 2002, p. 49).

Com a chegada dos jesuítas às terras brasileiras, a despeito do interesse desses em

inculcar os ensinamentos religiosos aos nativos (Chambouleyron, 2002), há registros que

também indicam o trabalho dos indígenas em comunhão com as atividades de instrução. De

acordo com Del Priore (1996), os meninos índios obedeciam a uma rotina de instrução

jesuítica em que precisavam prover a sua subsistência. Nessa perspectiva, trabalhavam para

garantir o que comiam.

Durante o período da Colônia e do Império a história se repete. Dessa vez, com os

pequenos oriundos do continente africano. De acordo com Minharro (2003), uma vez que

nessa época pouco se discutia acerca da questão do trabalho infantil, comumente os filhos

de escravos trabalhavam, mesmo que não tivessem desenvolvimento físico para tanto.

Segundo Góes & Florentino (2002), era comum a criança escrava, desde a mais

tenra idade, entre os quatro e os onze anos, ter o tempo paulatinamente ocupado pelo

trabalho. Para os pequenos escravos, desde os (...) 14 anos a freqüência em desempenhar

atividades, cumprir tarefas e especializar-se em ocupações era a mesma dos escravos

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adultos (p. 185). Assim, trabalhar na infância era o lema perverso que permeava a vida das

crianças escravas, em detrimento da brincadeira e do riso (Del Priore, 2003).

Conforme Rizzini (2002), as crianças pobres sempre trabalharam no Brasil. Assim o

foi com o advento da industrialização brasileira, quando ocorreu a implantação da indústria

e sua conseqüente expansão, em que a fábrica tornou-se o destino para uma parcela

significativa de crianças e adolescentes das classes menos abastadas. Em São Paulo, para

além dos limites da cidade e do estado, assim como em outras partes do mundo, o cotidiano

da infância e da adolescência operárias encontrava-se fortemente condicionado pelo mundo

do trabalho (Moura, 2002).

Sob essa perspectiva, Passetti (2002), aponta que:

(...) bastava permanecer na porta de qualquer fábrica, à hora de principiar ou de

cerrar a laboração, para se constatar, que uma enorme legião de crianças entre os nove e

os quatorze anos, se definha e atrofia, num esforço impróprio à sua idade, para enriquecer

os industriais gananciosos, os capitalistas ladrões e bandoleiros (p. 352).

De acordo com Neto & cols. (2002), na sociedade brasileira contemporânea, o

trabalho em idade precoce é caracterizado pela informalidade, em que o setor informal

configura-se como um “abrigo natural” para o mesmo, tendo em vista à falta de

regulamentação nas relações de trabalho, no caso do adolescente aprendiz, e a própria

omissão do Estado em ações fiscalizadoras, no setor rural ou urbano. Segundo os referidos

autores, em países como o Brasil, a informalidade assume um caráter perverso,

especialmente quando se trata de crianças e adolescentes trabalhadores, cujo ingresso

precoce se dá, geralmente, em atividades estreitamente vinculadas à ilegalidade

(narcotráfico, prostituição, trabalho doméstico); à insalubridade e ao risco (pedreiras,

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carvoarias, olarias, lixões), bem como à baixa ou nenhuma remuneração (no caso dos

olheiros, fretistas e vendedores ambulantes).

Todavia, sob todas essas condições, os trabalhadores precoces constituem, desde a

experiência da escravidão, mais uma opção de mão-de-obra dócil, barata, adaptável e, sob a

ótica do capitalismo atual, menos resistentes à exploração e mais suscetíveis à trabalhos em

que se estabelecem muitos deveres e poucos direitos (Rizzini, 2002).

Não obstante, é em relação ao desenvolvimento intelectual que crianças e

adolescentes, trabalhadores precoces, apresentam maior suscetibilidade a perdas. Segundo

Alberto (2002), o ingresso precoce no trabalho contribui para o analfabetismo de jovens,

promove o baixo nível de escolaridade e a defasagem escolar. Além disso, o trabalho

compromete o estudo porque leva os meninos e as meninas, trabalhadores precoces, a não

freqüentar a escola regularmente, gerando, assim, desestímulo para estudar e propensão

para o abandono escolar.

1.4 A categoria Trabalho Precoce

1.4.1 Definição de trabalho precoce:

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2001), o trabalho

infantil, geralmente, é definido como aquele realizado por crianças e adolescentes.

Ressalta-se, contudo, que a permissão ou a proibição para o ingresso desses indivíduos no

mercado de trabalho é determinada por Lei, segundo a idade. Não obstante, esse

procedimento varia conforme a sociedade e a compreensão que esta apresenta sobre a

consideração do que seja infância e adolescência. Para a OIT, o termo trabalho infantil

refere-se ao trabalho realizado por crianças e adolescentes até os 18 anos de idade.

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No Brasil, a categoria criança e a categoria adolescente são definidas a partir do

Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90). De acordo com este, criança é

a pessoa que tem até doze anos de idade, e adolescente aquela que está entre os doze e os

dezoito anos de idade (Art. 2º).

Com relação a esse aspecto, segundo o Art. 60 do Estatuto, é proibido qualquer

trabalho aos menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. Entretanto,

a Emenda Constitucional nº20 (Brasil, 1998) e a modificação infraconstitucional na

Consolidação das Leis do Trabalho, Lei nº10 097/2000, ampliaram o limite de idade para

dezesseis anos, em que foi determinada (...) a proibição de trabalho noturno, perigoso ou

insalubre aos menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis

anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Tomando por base a colocação de Alberto (2002), no tocante à discussão sobre a

menoridade para o exercício da atividade de trabalho, que é considerada pela Lei segundo o

critério da idade, a proibição do trabalho até dezesseis anos atinge tanto a infância quanto a

adolescência. Nesse sentido, a categoria correta não seria trabalho infantil, mas trabalho

precoce, o que implica considerar as atividades de trabalho desenvolvidas por crianças ou

por adolescentes até os dezesseis anos de idade.

Desse modo, tendo em vista que as categorias trabalho infantil e trabalho precoce

não se encontram ainda definidas conceitualmente e construídas sociologicamente de

maneira uniforme, adotar-se-á a definição de Aberto (2003), segundo a qual o trabalho

precoce é entendido como o exercício da atividade socialmente útil ou esquemas de

profissionalização divergentes: tráfico e prostituição, praticados com a intenção de se

receber alguma forma de pagamento (p.161). Nesse sentido, conforme aponta a referida

autora, o que o trabalhador e a trabalhadora precoce fazem são atividades variadas, cuja

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ação está inerente o propósito de se obter pagamento, que pode ser em espécie ou em

gênero.

1.4.2 Causas do trabalho precoce:

Estudos mostram que, atualmente, a principal causa de exploração da mão-de-obra

da infância e da adolescência é a pobreza (Minharro, 2003). Todavia, a inserção precoce de

crianças e adolescentes no trabalho chama atenção para uma situação complexa, em que

determinantes sociais, econômicos e culturais encontram-se intimamente relacionados.

De acordo com Cervini & Burger (1991), o trabalho precoce decorre de duas ordens

de macrofatores, quais sejam: a pobreza, em que as famílias são impelidas a tomar

determinadas decisões, como a de mandar seus filhos para o mercado de trabalho; e a

estrutura do mercado de trabalho, cuja configuração oferece condições apropriadas para a

absorção desse tipo de mão-de-obra. Nessa perspectiva, a pobreza e a estrutura de mercado

constituem fatores que operam através de duas unidades básicas de decisão,

respectivamente, a família e a empresa, esta última entendida num sentido amplo, podendo

ser exercida pela família ou pela própria criança, no caso do trabalho autônomo.

Na esfera familiar, as condições concretas de existência, na qual a família se

encontra inserida, geralmente, permitem aos adultos o poder de decidir sobre quem e

quando participa das atividades no mercado de trabalho.

Na esfera do mercado de trabalho, as peculiaridades desse tipo de mão-de-obra

(crianças e adolescentes), como: baixo custo, características biológicas, docilidade

reivindicativa, definem a demanda ou a incorporação dos mesmos no mercado de trabalho

(Cervini & Burger, 1991; Rizzini, 2002).

Para Alberto (2002), as causas do trabalho precoce encontram-se relacionadas a

múltiplos fatores, quais sejam: fatores sociais, políticos e econômicos. No contexto urbano,

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esses fatores referem-se ao avanço da tecnologia e a flexibilização do mercado de trabalho,

que promovem o desemprego estrutural; ao acirramento das forças produtivas, que gera a

concentração de renda; ao estabelecimento de políticas públicas recessivas, que contribui

para o fechamento de postos de trabalho e a desvalorização salarial; e ainda, às crescentes

transformações nas relações e condições de trabalho.

Conforme Moreira & Targino (1997), o processo de modernização e as mudanças

nas relações de trabalho no campo, a inserção de mulheres, crianças e jovens na agricultura,

em substituição a figura masculina que migra para as cidades, também devem ser

consideradas como significativas no crescimento do trabalho precoce no espaço urbano.

Por outro lado, deve-se considerar, ainda, uma terceira ordem de fatores, qual seja: o

fator ideológico, cujo sistema geral de valores dominantes na sociedade é formador de

opinião e, como tal, fundamenta preferências e comportamentos, define as condições de

oferta de determinados bens e serviços sociais, e influencia a regulamentação e o controle

por parte do Estado e da sociedade civil.

Aliados a esses fatores há, ainda uma série de condições que facilitam o uso da

mão-de-obra infantil e adolescente no trabalho, quais sejam:

• A existência de um mercado que oportuniza a absorção desse tipo de mão-de-obra,

conforme ocorre com o trabalho doméstico urbano, que, devido à inexistência de

creches faz com que a própria se comunidade utilize do trabalho das meninas (Alberto

& cols. 2006a);

• A perpetuação de uma cultura pró-trabalho infantil, segundo a qual, para as classes

baixas o trabalho da criança e do adolescente diz respeito ao significado da infância, de

modo que o gozo de determinados privilégios no seio da família são perdidos à medida

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que crescem e passam a ter condições de fazer algumas tarefas. Sob essa configuração,

a infância para as classes pobres acaba mais cedo (Dauster, 1992; Sarti, 1995; Stengel

& Moreira 2003);

• A concepção do trabalho como elemento socializador que estimula o uso do trabalho de

todos os membros em prol do conjunto familiar (Alberto & cols., 2006a);

• A falta de escolas ou a inadequação da mesma para atender a esse grupo, bem como, a

ausência de políticas sociais, como lazer e formação profissional, no caso do

adolescente (Alberto & cols. e);

Sobre esse último aspecto, Alberto (2002) chama atenção para a ineficácia ou

inadequação das políticas sociais estatais. Nessa perspectiva, os fatores que contribuem

para a existência do trabalho precoce na sociedade atual são agravados pela ausência do

Estado em não assegurar a garantia dos direitos desses sujeitos em processo de

desenvolvimento, mediante a oferta de ações mais efetivas, como a criação de programas

sócio-educativos, o funcionamento permanente de creches e de instituições escolares.

Diante dessa realidade, a questão do trabalho precoce na sociedade brasileira urge

ser aprofundada, não somente pelas proporções que assume, cerca de 5,1 milhões de

crianças e adolescentes (IBGE, 2004), e pelas conseqüências que acarreta: implicações

físicas (vulnerabilidade às doenças e aos acidentes de trabalho) e psicossociais (defasagem

do nível de escolaridade, baixa auto-estima, adultização precoce), mas, principalmente,

porque lesam esses indivíduos em um dos seus direitos mais importantes para o exercício

da cidadania: o direito à educação, que permite, dentre outros o acesso ao conhecimento

científico sistematizado pelo ensino escolar, e uma formação cidadã crítica e participativa.

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1.5 O Trabalho no setor informal: uma das piores formas do trabalho precoce

O conceito de “setor informal” foi definido, no início dos anos 70, para se referir às

atividades econômicas de pequenas proporções destinadas a propiciar rendas de

subsistência a novos habitantes das cidades provenientes do êxodo rural. Dentro dessa

perspectiva, o termo “setor informal” foi utilizado em caráter pioneiro pela OIT nos

relatórios sobre países africanos. Posteriormente, o referido conceito foi ampliado para

designar o conjunto de atividades que permanecem à margem da legislação e das diversas

formas de registros, especialmente estatísticos (Neto & cols. 2002).

Segundo Hugon (1997), o setor informal pode ser definido através das seguintes

características:

• Estatístico: atividades não registradas, em que não há localização fixa, nem pagamento

de impostos, nem contabilidade;

• Da unidade de produção: propriedade familiar das empresas em escala restrita de

operações, qualificação aprendida na prática, mercados sem regulamentação;

• Das rendas: geralmente no nível da subsistência;

• Do trabalho: empregos familiares, pequenos ofícios, atividades temporárias no setor

moderno;

• De intensidade de capital: o capital fixo é em geral muito reduzido;

• Da organização social e jurídica: mercado de trabalho não protegido, sistemas de

segurança social inexistentes, concorrência não regulamentada;

• Das condições de vida: rendas baixas e irregulares, falta de identidade espacial e

cultural.

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Segundo a OIT (2001), o trabalho informal pode se dar em qualquer dos setores

econômicos, quais sejam: agrícola, de serviços, de comércio, da indústria, e de

extrativismo. Destarte, são entre os três primeiros setores onde mais se identifica o uso da

mão-de-obra infantil e adolescente.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (UNICEF,

2004), ao analisar a evolução do trabalho infantil no Brasil, de 1991 a 2001, destaca que, na

faixa etária de 10 a 15 anos, predominavam os setores serviço (24%) e comércio (15%). Na

faixa etária de 16 a 17 anos, predominava o setor serviços (35%). Fato que é possível de se

compreender considerando-se que no Brasil e no Nordeste, em especial, há um conjunto de

fatores facilitadores desse acesso, conforme já anteriormente sinalizado.

No Estado da Paraíba, os dados indicam que o agrupamento por grupos de setores

econômicos confirma a tendência de pesquisas nacionais (Moreira & Targino, 1997;

Kassouf, 2004), segundo as quais a agropecuária constitui o setor que concentra a maior

porcentagem de trabalho precoce, seguido, respectivamente, pelo setor de serviços;

comércio, indústria e construção civil, em cujos setores observam-se a incidência do

trabalho informal.

No caso do setor de serviços urbano informal, setor que concentra a maior

porcentagem de trabalho precoce depois da agropecuária, as atividades que abrangem o

trabalho informal de rua são, dentre outras: olheiro de carro, transportador de água,

transportador de lenha, frentista, limpador de túmulos, auxiliar de pedreiro, pintor de

túmulos, engraxate e auxiliar de serviços gerais; no setor de comércio identificam-se

atividades de: feirante, fretista, vendedor, feirante e vendedor, feirante e fretista (Alberto &

cols. d). Observando-se, assim, a combinação de mais de uma atividade de trabalho.

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Todavia, o trabalho no setor informal urbano predispõe as crianças e adolescentes a

uma série de riscos que as tornam suscetíveis a situações de perigo e exploração, tais como:

abuso por parte dos clientes; roubo ou extorsão de mercadorias e ganhos; acidentes de

trânsito; perseguição da polícia e negociantes; vulnerabilidade aos traficantes de drogas e

ao uso de substâncias tóxicas, como a cola de sapateiro; aquisição de doenças, provocadas

pela coleta do lixo; danos psicológicos pelo isolamento em trabalhos realizados em casa;

lesões musculares e vertebrais por carregar cargas pesadas (Marcus & Harper, 1998).

Para além dos riscos citados, Alberto (2002) aponta que a inserção precoce no

mundo do trabalho, aliada à condição de rua também acarretam implicações psicossociais,

cuja repercussão, nefasta, se dá através dos seguintes aspectos: adultização precoce,

imagem negativa de si e baixa auto-estima, prejuízo à escolaridade, socialização desviante e

incerteza em termos das perspectivas de futuro.

No que se refere aos prejuízos causados à escolaridade, elemento de interesse para

este estudo, as implicações abrangem desde aspectos físicos e subjetivos como: cansaço do

corpo, baixa auto-estima, adultização precoce (Alberto, 2002); desmotivação para estudar,

dificuldade de concentração nas aulas (Estrela, 2004); até aspectos relacionados às

competências exigidas pela escolaridade formal, tais como, habilidades de leitura e de

interpretação, de escrita e de cálculos. Cujo déficit contribui para a redução de ingresso na

vida ativa adulta (OIT, 1996).

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Capítulo II

EDUCAÇÃO, ESCOLARIZAÇÃO E DIREITOS: RELAÇÕES HISTÓRICAS

E REPERCUSSÕES SOCIAIS

Tendo em vista o foco deste estudo no processo de escolarização de crianças e de

adolescentes trabalhadores precoces, este capítulo aborda a historicidade subjacente à

questão da Educação a partir de duas vertentes, quais sejam: a escolar, em que a escola

constitui o lugar, por excelência, onde ocorre o processo de educação formal; e a legal, cujo

arcabouço determina os direitos fundamentais da criança e do adolescente relativos à

questão da educação e do trabalho.

2.1 A educação escolar na história

De acordo com Ariès (1981), durante muito tempo a escola permaneceu indiferente

à repartição e à distinção das idades, acolhendo indiferentemente crianças, jovens e adultos,

precoces ou atrasados. Para os pedagogos da Idade Média, a educação escolar era

confundida com a cultura, por isso a primeira se estendia ao longo de toda a vida, sem que

necessariamente fosse dispensado um valor privilegiado à infância ou à juventude, ou

ainda, especificado a participação por idades.

A partir do século XV, sobretudo nos séculos XVI e XVII, a escola começou a se

dedicar essencialmente à educação inspirando-se em elementos da psicologia – o sentido da

particularidade do infante, o conhecimento da psicologia infantil – e a preocupação com um

método adaptado a essa psicologia. A escolaridade passou a ser considerada uma questão

de crianças e adolescentes que não mais se prolongava por toda a vida, como na Idade

Média (Ariès, 1981). Não obstante, o fato de a escola, passar a ser reconhecida como o

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melhor meio de preparação para a vida, não atingiu as todas as classes sociais, uma vez que

nesses séculos não existiam preocupações com a educação popular (Marcílio, 2005).

Segundo Ariès (1981), a partir do século XVIII, surgiram os primeiros anúncios de

uma divisão social através da escolarização, cuja ideologia vigente era (...) limitar a uma

única classe social o privilégio do ensino longo e clássico, e condenar o povo a um ensino

inferior, exclusivamente prático (p.193). Sob essa nova configuração, a escola única foi

substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia não a uma

idade, mas a uma condição social: o liceu ou o colégio, através do ensino secundário, era

destinado aos burgueses; e a escola, através do ensino primário, ao povo.

Todavia, foi a partir da instituição do ciclo escolar longo que se beneficiar da

educação formal tornou-se inviável para aqueles que, por sua condição, profissão dos pais

ou fortuna, não podiam dar continuidade a sua instrução até o fim. Assim, foi sob essa

conjuntura, que o curso da educação escolar da criança burguesa e da criança do povo

passou a ser um importante elemento legitimador de diferenças entre as classes sociais

(Ariès, 1981).

Conforme Marcílio (2005), acontecimentos como a Revolução Francesa, a

Revolução Industrial, as lutas e as políticas públicas dos Estados europeus foram

determinantes para a instituição de uma escola universal, gratuita e sob o controle do poder

público, acalentada como sonho pelas categorias mais pobres e esquecidas. Sob essa

perspectiva, foi criado o Sistema de Ensino Mútuo ou monitorial5, cuja proposta

pedagógica constituía um meio de resolver a questão da instrução das massas levando à

educação escolar aos alunos carentes sem maiores gastos. Nesse sentido, tal sistema

5Método lancasteriano de ensino, em que este acontecia mediante ajuda mútua entre os alunos mais adiantados e menos adiantados, sob a orientação de um inspetor, não necessariamente com experiência no magistério (Ghiraldelli, 2003).

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difundiu-se rapidamente passando a atender (...) as amplas categorias até então

praticamente excluídas das aulas existentes (p.38).

Por outro lado, a Revolução Industrial só veio reforçar a condição de uma escola a

serviço da classe em ascensão, a burguesia. Mesmo com a implantação da escola pública,

gratuita e obrigatória para todos, em plena metade do século XIX, a instrução escolar da

infância trabalhadora continuava insuficiente e inoperante. Se, do lado da oferta, existia a

recusa da burguesia, temerosa dos efeitos perigosos da formação, em oferecer recursos à

disposição de um serviço de ensino adequado; do lado da demanda, era incontestável a

impossibilidade da clientela, as crianças e adolescentes trabalhadores, em beneficiar-se dos

ensinamentos escolares após as longas e penosas jornadas de trabalho a que estavam

submetidas (Nogueira, 1993).

Nessa perspectiva, verifica-se que embora o século XIX, período no qual se deu a

dualidade de sistemas de educação escolar – o elementar de caráter popular, e o secundário

para as classes mais abastadas – seja considerado o século da escola fundamental leiga,

obrigatória e pública (Marcílio, 2005), nem por isso a educação escolar ocorreu por vias

menos seletiva e excludente, em que o sistema de ensino se constituiu como um dos seus

instrumentos ideológicos mais poderosos.

De acordo Frigotto (1999), ao longo dos séculos XIX e XX, observaram-se

reformas educacionais, mudanças de perspectivas pedagógicas, massificação e elevação dos

níveis de escolarização, principalmente nos países europeus. Hobsbawn (1992; citado por

Frigotto, 1999) se refere à crescente intelectualização e a elevação dos patamares

educacionais em todo mundo, como uma das mudanças mais significativas desse período.

Paradoxalmente, na medida em que, (...) o sistema capitalista se solidifica e os sistemas

educacionais se estruturam, assume nitidez a defesa da universalização dualista,

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segmentada: escola disciplinadora e adestradora para os filhos dos trabalhadores e escola

formativa para os filhos das classes dirigentes (Frigotto, 1999, p.213).

Destarte, os acontecimentos dão contam que historicamente a educação escolar

esteve muito vinculada à questão do acesso à educação, cujo ingresso e permanência na

escola, ainda hoje, se dão em face da condição social e material do indivíduo. Nesse

sentido, a contemporaneidade depara-se com um cenário no qual ter acesso à escola, não

significa, necessariamente, que todos tenham acesso ao mesmo tipo de escolarização

(Gentili, 2001). No caso das crianças e adolescentes que trabalham, são as condições

materiais em que estão inseridas, implicadas sobremaneira pela condição de serem

trabalhadores precoces, que contribuem para que esses sujeitos assumam características

psicológicas de insegurança, baixa auto-estima, desmotivação, passividade. Elementos, tais,

que muitas vezes definem não só as oportunidades de acesso à Escola e manter-se nela,

mas, principalmente, de ter êxito e oportunidades de mobilidade e de ascensão social.

2.2 A educação escolar no Brasil:

No Brasil, a condição de acesso à escola retrata um processo intrinsecamente

relacionado à condição de classe social ocupada por determinado segmento. Nesse sentido,

pode-se considerar que a oferta do ensino escolar nem sempre ocorreu de forma eqüitativa,

mas de maneira diferenciada, em função da pertença a núcleos sociais distintos, tais como:

os livres e os escravos; os que viviam em ambiente rural e em ambiente urbano; os ricos e

os pobres; os órfãos e abandonados e os que tinham família.

De acordo com Marcílio (2005), o único ensino formal existente no Brasil até

meados do século XVIII era aquele oferecido pelos padres da Companhia de Jesus, o qual

era altamente elitista, só atendendo a uma ínfima camada de jovens brancos, proprietários,

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de família da elite colonial. Ou, ainda, introduzindo nas primeiras letras e no catecismo

elementar as crianças índias das aldeias jesuíticas.

Nesse sentido, nos primórdios da colonização brasileira predominavam as escolas

dos jesuítas, cuja clientela era os indígenas e os filhos de portugueses. Quanto aos filhos de

escravos, embora até os sete anos pudessem compartilhar os mesmos espaços privados dos

filhos de senhores, a partir dessa idade a escola não se inseria nessa condição, pois

enquanto os primeiros iam trabalhar, os segundos iam estudar (Del Priore, 2002).

No decorrer do período colonial, a oferta de escolas era escassa e discriminatória no

Brasil. Havia poucas escolas, e a educação para os maiores de sete anos não era obrigatória,

o que contribuía para que grande parte das crianças brasileiras não recebesse qualquer tipo

de educação formal. As crianças negras, por exemplo, uma vez excluídas dos bancos

escolares, começavam a trabalhar ainda criança e, quando na idade de 13 anos, já eram

considerados pequenos adultos (Dourado & Fernandez, 1999).

Compartilhando essa colocação, Reis (2002), descreve que no Brasil colônia a

escola era completamente integrada às necessidades de uma sociedade estratificada,

agrícola e latifundiária, em que, para as elites, a tônica da educação escolar era a erudição, e

para os colonos e índios, o incentivo à catequese.

Todavia se, por um lado, se tem conhecimento que alguns escravos aprenderam a ler

e a escrever com os padres jesuítas (Del Priore, 2003), por outro lado, não é inverdade o

fato de que às crianças escravas era reservado o mais completo alheamento de um processo

formal de ensino escolar. Para elas, o aprendizado passava sempre pelas vias do trabalho,

sendo este, portanto, o campo privilegiado da pedagogia senhorial (Góes & Florentino,

2002).

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Com a expulsão da Companhia de Jesus em 1759, e a ascensão do marquês de

Pombal, foi instituído o ensino público brasileiro, mantido pelo Estado e desvinculado de

uma ordem religiosa como até então (Ghiraldelli, 2003).

Entretanto, conforme Del Priore (2003), a criação do ensino público deu-se de

forma precária, pois, os cuidados com a evasão, com o ensino da religião cristã e das

obrigações civis, os chamados “Estudos Maiores”, não atingiam as necessidades de uma

parcela significativa da população – os filhos dos forros6. Nesse sentido, assim como em

períodos anteriores, nos documentos da época não constam registros sobre a educação de

crianças negras, salvo a instrução educativa destinada à formação religiosa, denotando que

(...) a desigualdade social e racial inscrevia-se, portanto, nas origens do ensino público

que não era para todos. Mas para alguns (p. 10).

Conforme Ghiraldelli (2003), no Brasil Império, embora a Constituição de 1824

inspirasse a idéia de um sistema nacional de educação, no plano prático mantiveram-se os

descompassos entre as necessidades e os objetivos propostos, como por exemplo, a adoção

do método lancasteriano de ensino, em que a insuficiência de escolas e de professores

indicava a insuficiência mínima para a educação nacional.

Durante a 1ª República, as poucas escolas existentes nas cidades eram freqüentadas

pelos filhos das famílias de classe média; os ricos, ou contratavam preceptores que

ministravam o ensino aos seus filhos em casa, ou os enviavam para os poucos colégios

particulares que existiam. No período da 2ª República, a Carta Magna de 1934 determinou

uma melhor aceitação de idéias democráticas em torno da educação do que a Constituição

de 1891, a exemplo da garantia e gratuidade do ensino público primário integral, bem

como, do reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino (Ghiraldelli, 2003).

6Liberto, alforriado, livre.

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A publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, trouxe à

tona o plano geral de educação em defesa do acesso à educação escolar, em todos os graus.

Atingindo, assim, os cidadãos a quem a estrutura econômica do país mantinha em

condições de inferioridade, visando obter o máximo desenvolvimento de acordo com suas

aptidões vitais. Nessa perspectiva, propunha-se a escola para todos, ou seja, uma escola

comum ou única (Marcílio, 2005).

Todavia, segundo Ghiraldelli (2003), a questão da “escola única” que aparecia no

Manifesto não foi assumida em nenhum momento, pelo menos referente à escola pública.

Nesse sentido, o Manifesto estabeleceu claramente dois tipos de escolas: a “escola

tradicional”, voltada para a satisfação de interesses classistas, esse tipo de escola colocava a

educação como um privilégio advindo da situação econômica e social do indivíduo; e a

“escola socializada”, que condicionava à educação ao caráter biológico do indivíduo,

considerando o direito a ser educado a partir das aptidões naturais, independentemente de

razões sócio-econômicas.

Freitag (1986), afirma que, com a implantação da política educacional do Estado

Novo em 1937, a dualidade do sistema educacional contribuiu cada vez mais para

consolidar a dicotomia da estrutura de classes de forma mais explícita do que no período

anterior, sobretudo, como forma de manipulação das classes subalternas. Pois, para o

Estado, o objetivo maior era conciliar os interesses e as necessidades das empresas privadas

com o treinamento profissionalizante da mão-de-obra de que elas necessitavam. Daí o

porquê da criação de escolas de aprendizagem para os filhos de seus empregados.

Sobre essa questão, Ghiraldelli (2003) coloca que Carta Magna do Estado Novo, a

Constituição de 1937, reforçava explicitamente esse dualismo educacional, em que os ricos

proveriam seus estudos através do sistema público ou particular, e os pobres, sem usufruir

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desse sistema, teriam como destino as escolas profissionalizantes, onde o ensino era

previamente voltado para os menos favorecidos. Todavia, o período que se seguiu ao

Estado Novo, não foi muito diferente. O sistema público de ensino continuou a oferecer

percursos diferenciados em função da classe social: para as classes mais abastadas, do

primário ao ginásio e deste para qualquer curso superior; para as crianças das classes

populares que, porventura, conseguissem chegar e permanecer na escola, o caminho seria

do primário aos diversos cursos profissionalizantes.

A promulgação da Constituição de 1946, em meio ao fim do Estado Novo, esboçou

em seu texto a necessidade de elaboração de novas leis e diretrizes para a educação

brasileira, em substituição àquelas já ultrapassadas do período anterior. Assim, sob o

contexto da decadência do Estado Novo, o crescimento da rede pública de ensino, desde

1930, e o crescente conflito entre os defensores do ensino público e os partidários da escola

privada, surge a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em

1961, Lei nº4024/61.

De acordo com Saviani (1998), a Constituição Federal de 1946, uma vez que definiu

a educação como direito de todos, o ensino primário como obrigatório e gratuito nas

escolas públicas e delegou à União a tarefa de fixar as diretrizes e bases da educação

nacional, configurou-se na possibilidade de organização e instalação de um sistema

nacional de educação como instrumento de democratização da educação pela via da escola

básica. Contudo, a LDBEN de 1961 não correspondeu a essa expectativa.

A despeito de demais limitações, o próprio texto da referida Lei, contraditoriamente

à proposta de democratização do acesso ao ensino, atestava em seu bojo a existência de

uma realidade limitadora sem oferecer, porém, os mecanismos para superá-la. Nesse

sentido, o “comprovado estado de pobreza do pai ou responsável” e a “insuficiência de

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escolas”, constavam entre os motivos de isenção da responsabilidade quanto ao

cumprimento da obrigatoriedade escolar (Saviani, 1998).

A LDBEN seguinte, a Lei nº5692/71, não reverteu tais limitações. Na tentativa de

corrigir a dualidade do ensino médio, determinada na Lei anterior, que reservava às elites o

ensino preparatório para o ingresso no nível superior, e, à população, o ensino profissional

destinado ao exercício de funções subalternas, instituiu a formação profissional como regra

geral do ensino de segundo grau a ser seguida indistintamente. Todavia, introduziu a

distinção entre a terminalidade ideal ou legal, que correspondia à escolaridade completa do

primeiro e segundo graus com duração de onze anos, e a terminalidade real, prevendo a

antecipação da formação profissional para àqueles que não conseguissem chegar ao

segundo grau ou concluir o primeiro. Desse modo, garantia-lhes algum preparo profissional

para ingressar no mercado de trabalho, e legalizava-se que, para a população de um modo

geral, a terminalidade real resultaria abaixo da legal (Saviani, 1998).

A atual LDBEN, Lei nº9394/96, cuja elaboração se deu em decorrência da

determinação da Carta Magna de 1988 (Ghiraldelli, 2003), desencadeou importantes

inovações normativas, organizativas e pedagógicas (Marcílio, 2005). Nessa perspectiva, a

referida Lei, em seu Artigo 2, proclamou como princípio básico a finalidade da educação

em proporcionar o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Todavia, chama-se atenção para a contradição que esse aspecto representa para os

alunos trabalhadores precoces, cujo processo de escolarização, além de ser influenciado

pelas questões que decorrem da condição de trabalhar e estudar, entre as quais a própria

falta de recursos econômicos que os impele a uma escolarização medíocre, implicada pela

rotina exaustiva e adultizada que o trabalho impõe; se deparam com as limitações do

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próprio organismo institucional de ensino, a escola. Tendo em vista que a falta

estabelecimentos escolares ou até mesmo a inadequação destas para atender as

necessidades desse grupo (Alberto & cols., 2006c), constituem mais um, entre tantos outros

obstáculos, que lhes inviabiliza o desenvolvimento intelectual e, conseqüentemente, as

possibilidades de um exercício profissional digno na vida adulta.

2.3 Dos direitos humanos aos direitos da infância e da adolescência

Assim como a concepção de uma educação pelo trabalho, para a criança e o

adolescente das classes menos abastadas, alimenta e mantém concepções ideológicas

enraizadas ao longo do processo histórico da sociedade, igualmente se constata em relação

à evolução dos Direitos Humanos em defesa desses sujeitos. Os quais se desenvolveram ao

longo de demandas sociais específicas, sob um processo histórico onde a construção das

relações sociais foi influenciada por questões políticas, econômicas e culturais, e, nessa

perspectiva, assumiram funções historicamente atribuídas.

De acordo com Tosi (2005), o direito (dikeaion em grego, jus em latim) existe, pelo

menos, desde que a humanidade começou a ter um Estado, quando se constituíram as

primeiras civilizações. Entretanto, os Direitos Humanos são tipicamente modernos e

ocidentais, cujo surgimento se deu na Europa a partir do século XVI/XVII.

No século XVIII, entre os acontecimentos que marcaram o desenvolvimento dos

direitos humanos destacam-se a Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, e

a Revolução Francesa de 1789, enquanto movimentos que contribuíram significativamente

como desencadeadores para a Declaração Universal dos Direitos do Homem já em épocas

mais recentes(Tosi, 2005).

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Na sociedade atual, Tosi (2005) coloca que os Direitos Humanos caracterizam uma

prática que beneficia a inclusão social e a proteção da sociedade, especialmente, os direitos

de grupos socialmente mais vulneráveis como: mulheres, homossexuais, negros, índios e as

crianças. Segundo o referido autor, os direitos humanos são frutos de um processo histórico

que abrange tanto a história social: os acontecimentos, lutas, revoluções e movimentos

sociais; como a história conceitual: as doutrinas filosóficas, éticas, políticas e religiosas.

Nessa perspectiva, os direitos humanos são estabelecidos historicamente, a partir do próprio

desenvolvimento da sociedade e das relações sociais e, por tal, subordinados às demandas

histórico-sociais que vigoram em cada época.

Ao longo desse processo histórico, social e conceitual, os princípios dos direitos

humanos foram especificados e determinados nos diversos protocolos, tratados e

convenções internacionais, cujo conteúdo serve de base para orientações éticas, programas

de ação e se convertem em obrigações jurídicas. A dimensão jurídica dos direitos humanos

consiste num conjunto de direitos positivos que vinculam as relações internas e externas

dos Estados, são incorporados pelas Constituições e, através delas, pelas leis ordinárias

(Tosi, 2005).

Não obstante, para além da questão estritamente jurídica, os direitos humanos

implicam num conjunto de valores que abrange várias dimensões, quais sejam: a dimensão

ética, política, econômica, social, histórico-cultural, e a educativa, enquanto elementos

inter-relacionados e norteadores na construção da cidadania.

Em se tratando dos direitos da criança e do adolescente, elementos de interesse para

o presente estudo, eles assumem o status de direitos fundamentais da pessoa humana,

entendidos como sendo comuns a todos os seres humanos, sem qualquer forma de

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distinção, como: raça, etnia, nacionalidade, sexo, classe social, religião, opção política,

nível de instrução, orientação sexual e julgamento moral.

2.3.1 Evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente:

As mudanças na concepção de infância, tratadas ao longo do desenvolvimento da

sociedade, bem como os determinantes sociais e históricos específicos de cada época, têm

influenciado sobremaneira a formulação de documentos que tratam dos direitos da criança e

do adolescente.

De acordo com Ariès (1981), o entendimento da infância é uma construção histórica

que esteve ausente nas civilizações ocidentais pelo menos até a Idade Média. Nesta, o

reconhecimento da condição infante estava relacionada à capacidade de sobrevivência nos

primeiros anos de vida e, quando da superação dessa fase, a criança passava a ser tratada

como adulto. Destarte, a forma como se concebe a infância atualmente emerge no século

XVIII. A partir dessa época, começou a existir uma nova orientação social no tratamento

desse período evolutivo, cujas características tiveram como base a preocupação com a

educação, a saúde e a higiene dos mesmos.

No que concerne às medidas legais de proteção dos direitos da infância e da

adolescência, segundo Arrazola (1997), podem ser apontados diversos momentos na

história, que tiveram início no século XIX e atravessaram o século XX, em que crianças e

adolescentes ascendem igualmente à condição de seres humanos individualizados, e, com

isso, conquistando autonomia crescente, ainda que parcial, frente à família e à sociedade.

Em se tratando das medidas de proteção ao trabalho em idade precoce, a exploração

desenfreada do trabalho de crianças e adolescentes, a partir da Revolução Industrial, e suas

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graves conseqüências, motivaram o aparecimento de legislações específicas para a

regulamentação da utilização dessa mão-de-obra. Fato que contribuiu para uma maior

fiscalização do trabalho nas fábricas, bem como para o surgimento das primeiras

preocupações com o trabalho em idade precoce (Arrazola, 1997).

Na Europa do século XIX países como Inglaterra e França tornaram-se os pioneiros

na publicação de leis que tratavam do trabalho de crianças e adolescentes. Data de 1848, na

Inglaterra, a promulgação da primeira dessas leis, sob a influência das atividades da

Children´s Employment Commission. Todavia, somente no século XX, chamado de o

“século das crianças”, é que teve início uma maior sistematização na lida dos direitos e

problemas relativos à infância e à adolescência (Arrazola, 1997).

Não obstante, se por um lado o século XX foi o século da descoberta, valorização,

defesa e proteção da criança, assim como do adolescente, em que foram formulados direitos

básicos e reconhecidos, através desses, se tratar de sujeitos possuidores de características

específicas e de direitos próprios (Marcílio, 1998); por outro lado, constata-se que, a

despeito das referidas medidas de proteção direcionadas à infância e à adolescência, a

sociedade contemporânea se depara com grandes paradoxos em relação a essa questão.

Nessa perspectiva, se assinala a situação de trabalho em que se encontra um número

significativo de crianças e adolescentes, cuja configuração põe em xeque e vai de encontro

com toda a legislação vigente em defesa desses sujeitos. Pois, o trabalho da criança é

legalmente proibido, e o do adolescente, sancionado apenas na condição de aprendiz, deve

obedecer a determinados critérios, conforme se constata nos instrumentos legais que tratam

dessa questão.

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2.3.2 A legislação internacional:

A criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, teve como

principal objetivo a luta pela melhoria das condições de trabalho no mundo. Em se tratando

do trabalho em idade precoce, a OIT entende que este, além de não constituir trabalho

digno, imprime danos à saúde e infringe o direito à educação.

A partir da criação da OIT, a temática sobre a inserção da criança e do adolescente

no trabalho recebeu um expressivo volume de regulamentações, convenções,

recomendações e resoluções para tratar da referida questão. Já no mesmo ano de sua

criação e, em pleno auge da indústria, a OIT instituiu a Convenção nº5, que fixou em 14

anos a idade mínima de acesso ao trabalho industrial, e a Convenção nº6, que proibiu o

trabalho noturno na indústria para os menores (Silva & cols., 2002).

Além desses, outros documentos criados pela OIT estabeleceram o desenvolvimento

de ações no combate ao trabalho precoce, entre os quais:

• A Convenção nº138 (1973), cujo objetivo é abolir totalmente o trabalho precoce. Nessa

perspectiva, dispõe sobre a idade mínima para o trabalho, determinando que esta não

seja inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória;

• A Recomendação nº146 (1973), que estabelece, entre outros, garantias de ingresso e

permanência da criança e do adolescente no ensino fundamental, através da implantação

de medidas que venham a assegurar à família condições de vida e de renda de forma a

tornar desnecessário o trabalho de suas crianças e adolescentes;

• A Convenção nº182 (1997), que dispõe sobre as piores formas de trabalho infanto-

juvenil, definindo-as como: prostituição, tráfico de crianças, trabalho forçado ou

escravo, tráfico de drogas;

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• A Recomendação nº190 (1999), que acompanha a convenção anterior e indica linhas de

ação para extinguir as piores formas de trabalho (Farias, 2003).

Ainda em termos da legislação internacional, outro documento de igual importância

para a causa do combate ao trabalho em idade precoce foi a Declaração de Genebra sobre

os Direitos da Criança, feita pela Liga das Nações7 em 1924. Essa declaração correspondeu

a uma das iniciativas pioneiras na convicção da importância em se propiciar à infância e à

adolescência proteção especial (Castro & Castro, 2002; Estrela, 2004).

Posteriormente, a Declaração de Genebra foi consubstanciada na Declaração dos

Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1959, passando

a constituir a base para a subscrição da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da

Criança. Esta, adotada pela comunidade internacional em 1989, foi ratificada pelo Brasil

através do Decreto Legislativo nº28, de 14.09.90.

2.3.3 A legislação nacional:

Em termos nacionais, os registros dão conta de que somente no século XX foram

estabelecidas políticas públicas de forma a contemplar crianças e adolescentes como

sujeitos de direitos.

De acordo com Costa (1990), durante os quatro primeiros séculos no Brasil o

desenvolvimento de políticas públicas de atendimento à infância e à adolescência

caracterizou-se por obras de benemerência desenvolvidas pela Igreja, por irmandades, por

confrarias e por congregações.

No tocante à proteção ao trabalho, o Decreto-Lei 1313 de 1891 foi a primeira norma

legal de proteção ao trabalho infanto-juvenil. Esta proibia o trabalho de indivíduos com 7 Organização antecessora da Organização das Nações Unidas, atual ONU.

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menos de 12 anos de idade, fazia restrições a certas operações com maquinários e limitava

a jornada em 7 horas diárias, além de proibir o trabalho noturno (Cosendey 2002).

A partir do século XX, durante os anos 20, as políticas estatais brasileiras pautavam-

se em medidas assistencialistas e interventoras para com a infância e a adolescência pobres,

tais como: o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), criado nos anos 40, e a Fundação

Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), fundada nos anos 60. Além disso, ao

longo dessa época, foram sancionadas as primeiras leis que regulamentaram o trabalho dos

“menores” nas fábricas, quais sejam: a criação do Juizado de Menores do Distrito Federal,

em 1923; e em 1927, o primeiro Código de Menores, cujo objetivo era assistir e proteger

“os menores” de ambos os sexos, abandonados e delinqüentes (Arrazola, 1997).

A publicação do Código de Menores de 1927 também anunciava preocupações com

o trabalho de crianças e adolescentes. A partir dele foi proibido o trabalho para indivíduos

até doze anos; em logradouros públicos, os que tivessem até quatorze anos; e em trabalhos

noturnos, os menores de dezoito anos (Farias, 2003).

Todavia, conforme ocorreu o estabelecimento de regras legais, cuja tônica era a do

desvio social, buscava-se justificar a intervenção do Estado na família brasileira,

especialmente na família pobre e seus filhos. Nesse sentido, constata-se a mudança do

termo menor, que na virada do século passou a assumir não só uma nomenclatura jurídica

baseada na faixa etária, mas uma implicação social, enquanto categoria classificatória da

infância e da adolescência pobres, diferenciada de outros segmentos infantis da época

(Graciani 1997).

Conforme Londoño (1996), se antes a utilização da palavra menor estava

relacionada à demarcação dos limites etários para exercer direitos jurídicos e

responsabilidades civis, em que menor era sinônimo de criança, adolescente ou jovem;

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posteriormente, passou a ser utilizada pelos juristas brasileiros para referir-se às crianças e

adolescentes pobres das cidades, ou aquelas consideradas abandonadas por não estarem sob

a tutela dos pais ou tutores. Assim,

(...) eram, pois, menores as crianças abandonadas que povoavam as ruas do centro

das cidades, os mercados, as praças e que por incorrer em delitos freqüentavam o xadrez e

a cadeia, neste caso passando a serem chamados de menores criminosos (p. 135).

A aprovação de um novo código de menores, o Código de 1979, substituiu a

Doutrina do Direito do Menor, cuja ênfase era voltada ao tratamento necessário ao menor

infrator, distinguindo-o do órfão e do abandonado, pela Doutrina da Situação Irregular. Esta

última passou a designar, assim, crianças e adolescentes que se encontrassem privadas das

condições mínimas de sobrevivência, vítimas de maus tratos e castigos, em situação de

perigo moral, privadas de representação tutelar perante a lei, sob desvios de condutas, ou

ainda, autoras de atos infratores (Silva, s/d).

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1991) passou a

substituir o Código de Menores de 1979, até então vigente, regulamentando as conquistas

consubstanciadas na Constituição Federal, entre elas a mudança terminológica – criança e

adolescente, ao invés de menor, conferindo-lhes a condição de sujeito de direitos

(Silva & cols., 2002). Destarte, outro mérito da referida legislação foi romper com a

doutrina da Situação Irregular, adotando a doutrina da Proteção Integral, segundo a qual

crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, devendo ser respeitados em todas as

relações sociais, e por isso, receber proteção especial e prioridade nas políticas públicas.

Todavia, a partir do referido Estatuto, a questão do trabalho em idade precoce

passou a ser tratada tendo em vista a existência de um conjunto de leis com a finalidade de

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proteger os direitos de crianças e adolescentes que se encontram sob tal condição. Nesse

sentido, a categoria criança passou a ser utilizada para referir-se aos indivíduos com até

doze anos e adolescentes os de 12 até 18 anos. Além disso, foi vetado qualquer trabalho

para menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos, Emenda

Constitucional nº20 (Brasil, 1998).

2.4 A criança e o adolescente como sujeitos de direitos

A consideração das categorias sociais: criança e adolescente como sujeitos de

direitos encontram-se corporificadas na “Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral

à Infância”, composta pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Esta

Convenção constitui um instrumento fundamental na compreensão mais ampla e

operacional em defesa dos direitos da infância e da adolescência, tendo em vista se tratar de

uma fase de desenvolvimento que demanda necessidades específicas para a formação física,

psicológica, social e cultural do indivíduo.

De acordo com Graciani (1997), a referida Convenção trouxe ganhos significativos

em termos de políticas jurídicas nacionais destinadas à infância e à adolescência, entre os

quais:

• Instituição da Doutrina da Proteção Integral, cuja essência é o reconhecimento da

criança e do adolescente como sujeitos plenos de direitos, e, conseqüentemente, a

ruptura com a Doutrina da Situação Irregular, segundo a qual as categorias criança e

adolescente eram indiferentes perante a legislação, à exceção daqueles em conflito com

a lei, para quem eram imputadas penalidades;

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• Promulgação de leis nacionais em relação às crianças e adolescentes, contribuindo para

a mudança de visão dos poderes executivo e judiciário sobre mobilizações sociais;

• Criação de iniciativas governamentais e não governamentais, assim como, a adequação

formal aos princípios e filosofias das propostas da Convenção.

Em termos da dimensão formativa, a Convenção Internacional trouxe determinações

relativas ao direito à educação, ao lazer e à proteção no trabalho, além de demais

segmentos. Nesse sentido, destacam-se:

• O artigo 28, que estabelece princípios relacionados à educação, entre os quais, o

reconhecimento do direito à educação, tendo em vista a adoção de medidas que

estimulem a freqüência às escolas e a redução do índice de evasão escolar, bem como

de iniciativas que contribuam para o acesso aos conhecimentos científicos e técnicos e

aos métodos modernos de ensino;

• O artigo 31, que trata do direito ao descanso e ao lazer, estabelecendo a criação de

oportunidades adequadas, e em condições de igualdade, para a participação na vida

cultural, artística, recreativa e de lazer;

• O artigo 32, que apresenta o posicionamento da Comunidade Internacional em relação

ao trabalho da criança e do adolescente, determinando: a) o direito de proteção contra a

exploração econômica e de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir na

educação, ou que seja nocivo à saúde ou ao desenvolvimento físico, mental, espiritual,

moral ou social de crianças e adolescentes; b) a adoção de medidas legislativas, sociais

e educacionais com vistas a assegurar a aplicação do presente artigo; c) o

estabelecimento de uma idade ou idades mínimas para admissão em emprego, no caso

do adolescente aprendiz, assim como, a regulamentação apropriada do horário e das

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condições empregatícias; d) a aplicação de penalidade ou outras sanções apropriadas a

fim de assegurar o cumprimento efetivo do presente artigo.

No âmbito nacional, o Brasil possui um dos ordenamentos jurídicos mais completos

no que tange à proteção da criança e do adolescente (Silva & cols., 2002). Nessa

perspectiva, considera-se a Constituição Federal Brasileira, a Consolidação das Leis do

Trabalho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional, os principais instrumentos legais brasileiros, cujos princípios norteadores

delimitam a questão teoria-prática em defesa dos direitos da infância e da adolescência.

A atual Constituição Federal (Brasil, 1988) traz vários artigos visando tutelar os

interesses da criança e do adolescente, entre os quais: o Artigo 227, que determina os

deveres da família, da sociedade e do Estado em relação à infância e à adolescência,

ratificando as recomendações da OIT sobre a proibição e eliminação do trabalho em idade

precoce; os Artigos 205 e 208 que versam sobre a Educação, determinando

respectivamente, como meta principal, o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo

para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, o direito ao ensino

fundamental, obrigatório e gratuito, e, o dever do Estado em oferecê-lo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, representou uma

preocupação mais científica em abordar a realidade da infância e da adolescência

(Graciani, 1997). Além disso, contribuiu para uma mudança de paradigma na concepção

sobre esse período de desenvolvimento, pois, enquanto instrumento legal, reza pelos

direitos da criança e do adolescente concebendo-os como cidadãos, e por tal, determinando-

lhes o pleno direito ao desenvolvimento físico, mental, moral espiritual e social, em

condições de liberdade e dignidade.

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No tocante às questões relativas à educação e ao trabalho, elementos sobre os quais,

neste estudo, se tecem relações com o trabalho precoce, o Estatuto reitera todas as

conquistas dos documentos anteriores, acrescentando, ainda, conforme os artigos citados

abaixo, as respectivas contribuições:

• Capítulo IV, Artigos 53 a 59: este capítulo versa sobre o direito à educação

considerando o caráter central desta para a formação integral do sujeito (Art.53);

determina a educação como um direito do cidadão criança e adolescente e como dever

do Estado e da sociedade em assegurá-lo (Art. 54); define os segmentos responsáveis

em assegurar a educação para esses sujeitos e as condições em que deve ocorrer (Art.

55 e segs.).

• Capítulo V, Artigos 60 a 69: totalmente relacionado à questão do trabalho da criança e

do adolescente, este capítulo traz as determinações que abrangem o critério da idade

(Art. 60); às condições em que este deve ocorrer (Art. 63); à proteção no trabalho, no

caso do adolescente aprendiz (Art. 67); e o incentivo de programas governamentais e

não governamentais sobre o trabalho, na qualidade de caráter educativo, como uma

extensão da aprendizagem pedagógica recebida na escola (Art.68).

Outro instrumento legal, particularmente importante para o referido estudo, é a Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, Lei 9.394/1996, que dispõe sobre

as diretrizes e as bases da educação nacional, no que se refere aos processos formativos nas

instituições de ensino. Assim como as demais legislações (Constituição, Estatuto), a

LDBEN determina a obrigatoriedade da escolaridade básica, a qual compreende: a

educação infantil, primeira etapa da educação básica, o ensino fundamental e o ensino

médio, última etapa da educação básica (Marcílio, 2005).

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No tocante à escolaridade, segundo a Convenção 138 da OIT, a idade mínima de

ingresso no mercado de trabalho não deve ser inferior à idade em que cessa a

obrigatoriedade escolar (Graciani, 1997). No Brasil, enquanto um país signatário da

referida Convenção, a proibição para ingressar no mercado de trabalho também se encontra

diretamente relacionada à conclusão da educação básica, a qual, conforme colocado,

compreende as fases evolutivas da infância à adolescência.

Todavia, tendo em vista que a referida legislação também determina a obrigação do

Estado em garantir um ensino fundamentado nos princípios de igualdade de condições para

o acesso e permanência na escola (Art.3º inciso I), reconhece-se a lacuna que vigora em

relação a esta determinação. Pois, pesquisas têm constatado a falta de escolas e até mesmo

a inadequação desta para atender as necessidades de alunos trabalhadores precoces, Cujos

aspectos, são, também, fatores explicativos da manutenção de crianças e adolescentes no

trabalho (Alberto & cols. e).

2.5 A criança e o adolescente como protagonistas das políticas sociais

Segundo Costa (1990), as políticas sociais se referem à estrutura de leis propósitos,

compromissos, princípios e valores que norteiam a organização e o funcionamento do ramo

social do Estado com vistas à satisfação das necessidades básicas dos cidadãos. Nessa

perspectiva, seu objetivo define-se a partir da ação estatal de duas instâncias principais,

quais sejam: as políticas básicas implantadas para o conjunto da população em segmentos

sociais, como: trabalho, educação, saúde, habitação, entre outros; e os programas e ações de

assistência social direcionados às pessoas e coletividades privadas das condições de acesso

a patamares mínimos de bem-estar e dignidade.

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Sob a configuração dessa última vertente, se insere a trajetória de elaboração e

atuação das políticas sociais em prol da infância e da adolescência, cujo principal vetor foi

o próprio empenho da sociedade civil, enquanto compromisso das iniciativas privadas que,

ao longo do tempo, impulsionou a adoção de políticas governamentais destinadas a essa

parcela da sociedade. (Graciani, 1997).

Todavia, o atendimento público às crianças e adolescentes é recente na história do

Brasil. E quando da existência desse atendimento, o mesmo caracterizou-se pelo caráter

assistencialista e filantrópico (Costa, 1990).

Reportando-se aos séculos XVI e XVII, quando da participação dos jesuítas na

formação educativa durante o período colonial, se assinalam às primeiras iniciativas no

desenvolvimento de ações assistenciais à criança e ao adolescente. Não obstante, tais

iniciativas apresentavam um caráter muito elementar, ou seja, como o embrião do que

viriam se constituir as políticas públicas posteriores.

No século XVIII, a Roda dos Expostos8 constituiu a principal política de

atendimento que vigorou do período colonial ao período republicano. De acordo com

Faleiros (1995), os expostos, recolhidos e assistidos pelo sistema da Roda, eram conduzidos

ao trabalho precoce e explorado, como forma de ressarcir ao Estado ou a seus criadores os

gastos com sua criação.

Somente no final do século XIX, a questão da criança e do adolescente passou a ser

assumir uma conotação social. Nesse período, foram criadas as primeiras medidas efetivas

dos poderes públicos em termos de legislação sobre a infância e a adolescência pobres,

sobretudo no plano educacional. Todavia, a despeito da preocupação com a formação

educacional, em que se incentivou a abertura de escolas, e, igualmente, o acesso da criança

8Equipamento cilíndrico rotativo onde eram colocadas as crianças enjeitadas anonimamente (Graciani, 1997).

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pobre à mesma, persistia o estigma da problematização, dado o grande número desses

sujeitos na rua, em virtude das circunstâncias da época, como a abolição da escravatura e a

chegada dos imigrantes europeus (Rizzini, 1995).

No século XX, as denúncias de exploração da mão-de-obra infantil levaram a uma

maior mobilização dos sindicatos em torno das reivindicações vinculadas à infância e à

adolescência em repúdio à política de atendimento assistencialista e classista. Sob os

parâmetros dessa política, coexistiram duas modalidades educativas para as crianças e

adolescentes das classes populares: de um lado o ensinamento moral e, de outro, a

preparação para o trabalho (Graciani, 1997).

Com a evolução dos acontecimentos, verificou-se, a partir de 1920, a criação de

instrumentos jurídicos de proteção à infância e à adolescência, por meio de código de

menores. Durante as décadas de 30 e 40, houve uma maior participação do Estado na

regulamentação da vida social da criança e do adolescente; bem como, a introdução de

iniciativas internacionais de repercussão nacional, como a instauração do Unicef no Brasil,

em 1948, que trouxe novos organismos de luta em defesa dos direitos desses sujeitos, a

saber: as organizações não governamentais – ONGs. (Graciani, 1997).

Destarte, foi a partir das propostas de entidades não governamentais, criadas

prevalentemente ao longo das décadas de 70 a 80 (Graciani, 1997), que se estruturaram

movimentos e foram concretizadas as reivindicações mais contundentes em defesa dos

direitos de cidadania da criança e do adolescente e da implantação de políticas públicas

direcionadas aos mesmos.

Nessa perspectiva, assinala-se, em termos de conquistas sociais, o Movimento dos

Meninos e Meninas de Rua, constituído em 1986, cuja luta foi decisiva para a incorporação

dos princípios básicos da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente na

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Constituição de 1988 – Art. 227 (Arrazola, 1997). Em termos de educação, as Conferências

Brasileiras de Educação (CBE), movimentos de educadores que, entre 1980 e 1988,

defenderam a importância da escola pública de qualidade e acessível a todos,

reivindicações que serviram de parâmetro para a consolidação de posições em defesa da

melhoria do ensino público e gratuito. Em relação ao trabalho em idade precoce, o Fórum

Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, criado em 1994, tem como o

objetivo de discutir ações de prevenção e erradicação do mesmo (OIT, 2001).

No tocante à política pública de enfrentamento do trabalho precoce, o Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), criado pelo Governo Federal em 1996, ressalta a

centralidade da educação em ações de prevenção, combate e erradicação do mesmo. Sua

finalidade é retirar crianças e adolescentes de 7 a 15 anos do trabalho penoso, insalubre e

degradante, tendo como principal diretriz a participação da criança e do adolescente num

processo educativo amplo, através da jornada ampliada.

Assim, além da assiduidade no ensino regular em um turno, a criança e o

adolescente devem freqüentar a jornada ampliada no outro. Esta consiste em um conjunto

de atividades com a finalidade de subsidiar o desenvolvimento de potencialidades das

crianças e adolescentes com vistas à melhoria do seu desempenho escolar e inserção no

circuito de bens, serviços e riquezas sociais (Brasil, 2000).

A implantação de programas sócio-educativos reitera à importância da educação nas

ações de prevenção e erradicação do trabalho precoce, ressaltando, assim, a necessidade de

se desenvolver atividades de caráter lúdico, artístico, cultural, recreativo. Outrossim,

comunga da recomendação da OIT (2001), segundo a qual o cumprimento do direito à

educação não deve restringir-se apenas ao processo de ensino escolar, mas também, a

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inserção em programas cuja metodologia integre a dimensão social e cognitiva na formação

do sujeito.

Nesse sentido, é no bojo das políticas sociais que a formação escolar se insere no

caráter de centralidade do processo educativo, em que a formalização da educação por meio

de uma instituição – a escola – assume um papel sócio-integrador, convergindo políticas

públicas e projetos cultural-pedagógicos de incentivo à escolaridade. Nessa perspectiva, a

educação consiste num mecanismo tanto de preparação para o conhecimento científico,

cultural e político, como também, no caso dos trabalhadores precoces, necessário ao

desenvolvimento integral e ao alcance da cidadania.

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Capítulo III

A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E O PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DO SUJEITO

Este capítulo aborda os pressupostos teóricos sobre os quais se encontra

fundamentado o presente estudo. Apropriando-se de algumas das proposições da Psicologia

Histórico-Cultural de Vygotsky, cujos postulados têm como princípios básicos a

contextualidade social, procurou-se enfocar o processo de construção do sujeito criança e

do sujeito adolescente trabalhador precoce, sob um olhar multíplice, de forma a permitir

uma compreensão do objeto em estudo a partir de suas diferentes dimensões e

complexidade, quais sejam: a dimensão sócio-histórica da subjetividade, a dimensão

escolar e a dimensão lúdica, contemplada em referência ao brincar.

3.1. A dimensão sócio-histórica da subjetividade

Segundo Gonçalves (2002), a partir das concepções de Vygotsky, com a proposta de

uma Psicologia Histórico-Cultural, a Psicologia passou a ter a possibilidade de um

caminho, cujo enfoque adotou a subjetividade como seu objeto e a historicidade como

característica fundamental das coisas. Nessa perspectiva, Homem e realidade passaram a

ser abordados considerando-se o caráter histórico do contexto social sob um movimento

dialético em que a relação entre objetividade e subjetividade é entendida enquanto unidade

de contrários em constante transformação e evolução.

Todavia, conforme coloca González Rey (2003), embora o termo subjetividade não

tenha aparecido de forma explícita, quando da estruturação da psicologia soviética, nos

estudos de Vygotsky, seus pressupostos se fundamentavam dentro de uma concepção

histórico-cultural do psiquismo humano, em que os processos psicológicos, historicamente

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tratados de forma dicotômica e excludente: o cognitivo e o afetivo, o social e o individual,

foram compreendidos sob uma visão de interação e simultaneidade. Assim, sob a

concepção de Vygotsky, tinha-se (...) a representação da psique humana como processo

subjetivo, instância em que o social e o biológico não desapareciam, mas entravam como

momentos de um novo sistema qualitativo (p.77).

Esse novo entendimento proposto por Vygotsky sobre o sujeito e sua subjetividade

como produções históricas na relação dialética com a realidade objetiva, constituiu um dos

principais fundamentos da Psicologia Sócio-Histórica. Conforme seus pressupostos, a

subjetividade é forjada numa dimensão ampla, convergindo o nível individual e social em

que a própria cultura, constituída e constituinte do sujeito, representa um sistema subjetivo,

gerador de subjetividade (González Rey, 2003).

De acordo com Vygotsky (1998), a transição entre o biologicamente dado e o

culturalmente adquirido remete à relação do homem com o mundo e com os outros homens,

a qual não é direta, mas, sobretudo, uma relação mediada por signos e instrumentos. Estes

últimos constituem os meios através dos quais o homem controla e domina a natureza. Sob

essa perspectiva, a função do instrumento é servir como um condutor da influência humana

sobre o objeto da atividade, ou seja, ele é orientado externamente para gerar mudanças nos

objetos. Os signos, por sua vez, constituem meios auxiliares em atividades psicológicas

como: lembrar, comparar, relatar, escolher. O signo é orientado internamente para o

controle do próprio indivíduo, não modificando em nada o objeto da operação psicológica.

Conforme Vygotsky (1998), se, por um lado, o uso de instrumentos amplia de forma

ilimitada a gama de atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem

operar, por outro lado, as operações com os signos são as bases sobre as quais acontecem a

reconstrução da atividade psicológica na internalização de formas culturais de

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comportamento. E o indivíduo, enquanto sujeito ativo, usa sua capacidade de reconstrução

para criar novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura.

Nessa perspectiva, sob a concepção vygotskyana, a história humana constitui-se

pelo domínio cada vez maior do homem sobre a natureza, através da invenção de

instrumentos e do aperfeiçoamento da tecnologia, assim como, pela história do controle

gradual do homem sobre si mesmo através da invenção cultural dos signos. Estes, por sua

vez, quando incluídos no funcionamento mental referem-se ao que Vygotsky considerou

como processos psicológicos “instrumentais”, “culturais” ou “superiores”

(Van Der Veer & Valsiner, 1991).

De acordo com Oliveira (1997), as idéias centrais do pensamento de Vygotsky para

a Psicologia dizem respeito às funções psicológicas superiores ou processos mentais

superiores, os quais se referem ao controle consciente do comportamento, à ação

intencional e a liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do

espaço presente. Outrossim, as funções psicológicas superiores se referem ao modo de

funcionamento psicológico tipicamente humano, tais como: a capacidade de pensamento,

linguagem, planejamento, memória voluntária e imaginação.

Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores têm um suporte biológico, pois

são produtos da atividade cerebral, em que o indivíduo traz consigo uma estrutura básica

estabelecida ao longo da evolução da espécie (filogênese – história da espécie), o cérebro.

Segundo Vygotsky, o cérebro constitui uma estrutura plástica, um sistema aberto cuja

disposição e modos de funcionamento são moldados ao longo da história da espécie e do

próprio desenvolvimento individual (ontogênese). Desse modo, o funcionamento

psicológico, em que o cérebro constitui o substrato material da atividade psíquica,

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fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior através de um

processo histórico (Van Der Veer & Valsiner, 1991; Rego, 1995; Oliveira, 1997).

Todavia, a concepção de Vygotsky a respeito do funcionamento psicológico do

indivíduo, ressalta como uma das suas principais contribuições a ênfase que atribuiu ao

papel dos sistemas de signos, produzidos na cultura, na construção da subjetividade

humana. Sob esse ponto de vista, para além dos mecanismos biológicos que se encontram

na origem das funções naturais e se que perpetuam ao longo da evolução filogenética do

indivíduo, os signos exercem um papel fundamental enquanto elementos formadores da

atividade psicológica (Castorina, 2000).

Nessa perspectiva, tomando por base os pressupostos da psicologia histórico-

cultural, os quais caracterizam a concepção sócio-interacionista do pensamento de

Vygotsky, ressalta-se neste estudo a interação dialética entre o social e o individual como

dimensões que se integram e se influenciam mutuamente. Nesse sentido, entende-se que a

construção da subjetividade das crianças e dos adolescentes trabalhadores precoces decorre

das experiências sociais vivenciadas por eles, cujas condições biopsicossociais tornam-se

os elementos formadores de sua subjetividade.

Diante disso, entende-se que o conteúdo da consciência dos trabalhadores precoces

se expressa a partir da apreensão da realidade material em que estão inseridos, numa

interação dialética e recíproca em que o significado social sobre o trabalho e a escola

adquire um sentido pessoal, idiossincrático, forjando a subjetividade que caracteriza seu

comportamento ativo frente ao meio (Palangana, 1994). Todavia, as vivências enquanto

trabalhadores precoces passam a se tornar o quadro de referência sobre o qual os

conhecimentos, os sentimentos e as ações compõem sua subjetividade perante a escola e o

trabalho.

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Sob esse ponto de vista, reitera-se a relevância do processo de escolarização

enquanto parte integrante da dimensão social que, através da escola, pode oferecer ao

sujeito a inclusão de um conjunto de signos culturais, tais como: palavras, sistemas de

escrita, números, símbolos algébricos, mapas, entre outros, os quais consistem em

elementos essenciais na constituição de sua subjetividade (Castorina, 2000) e implicam

importantes aquisições cognitivas e psicológicas (Van Der Veer & Valsiner, 1991).

3.2 A dimensão escolar

Tendo em vista a ênfase deste estudo na importância do processo de escolarização

para o desenvolvimento intelectual dos trabalhadores precoces, retoma-se a relevância

atribuída por Vygotsky à dimensão escolar, segundo a qual a escola constitui o espaço

essencial para a evolução das funções psicológicas superiores.

De acordo com Vygotsky (1998), o processo de educação escolar é qualitativamente

diferente do processo de educação em sentido amplo, pois é na escola que o indivíduo passa

a compreender a base dos conceitos científicos. Além disso, a instrução escolar viabiliza a

aprendizagem de conceitos mais elaborados, resultando em desenvolvimento mental.

Segundo Vygotsky (1989), os anos escolares desempenham um papel fundamental

no desenvolvimento intelectual do sujeito, pois são, no todo, o período ideal para o

aprendizado de habilidades essenciais à sua formação cognitiva, entre os quais:

• O estudo da gramática e da escrita, que possibilita o contato com novas formas e

estruturas gramaticais e sintáticas, propiciando ao aluno que, antes do ingresso na

escola lidava com o uso de sua língua materna de forma inconsciente e automática,

passe a dominá-la no plano arbitrário, intencional e consciente;

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• A formação de conceitos, o emprego específico da palavra e a operacionalização do

signo, cujo desenvolvimento pode ser estimulado através de meios auxiliares presentes

no ensino escolar, promovendo a passagem dos pré-conceitos, como por exemplo, os

conceitos aritméticos do aluno escolar, para os verdadeiros conceitos do adolescente, os

conceitos algébricos;

• O desenvolvimento das relações de generalidade e de equivalência dos conceitos, o quê

amplia a independência do conceito em face da palavra, do sentido, da expressão,

proporcionando, assim, um maior complexo semântico na expressão verbal;

• A passagem de habilidades intelectuais do campo das funções psíquicas inferiores para

o das funções superiores, como por exemplo, a aprendizagem da aritmética que

estimula a atenção, a memória, o raciocínio, etc.

Nessa perspectiva, o ensino escolar, enquanto procedimento explícito e

sistematizado sob regras e conceitos, leva num primeiro momento, ao uso de determinados

modos de pensar dentro de áreas específicas e, posteriormente, de forma mais ampla,

permitindo, assim, a evolução do pensamento do indivíduo de um nível elementar para um

nível mais alto. Além disso, o ensino formal contribui para a tomada de consciência e o uso

deliberativo de regras subjacentes ao comportamento, cuja principal influência centra-se no

processo de evolução desses aspectos durante a adolescência, passando a constituir as

realizações mais importantes desse período da vida (Vygotsky, 2000).

A importância com que Vygotsky considera à escola relaciona-se à questão do

aprendizado gerado pelo ensino escolar, o qual prepara e impulsiona o processo de

desenvolvimento mental e cognitivo. Nesse processo, configuram-se situações

particularmente relevantes como: o contato com os conceitos científicos, os quais

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proporcionam um tipo novo e superior de pensamento; o treinamento de habilidades

metacognitivas (controle consciente de conceitos, uso deliberado das operações mentais,

desenvolvimento da arbitrariedade); os procedimentos de instrução deliberada, cuja

transmissão integra conceitos em sistemas de conhecimento articulados pelas diversas

disciplinas científicas; a intervenção pedagógica, a qual provoca avanços na aprendizagem

que não ocorreriam espontaneamente, e o próprio convívio com os pares, em que a

interação entre os alunos estimula a troca de conhecimentos e estratégias que são legítimas

promotoras de aprendizado na escola (Van Der Veer & Valsiner, 1991; Oliveira, 1992).

Vygotsky (2000) atribuiu, ainda, particular importância ao processo de imitação, o

qual também se faz presente no contexto escolar, tendo em vista a orientação do professor e

a interação com os pares. Conforme Vygotsky, a imitação, concebida em sentido amplo, é

a forma principal em que se realiza a influência da aprendizagem sobre o desenvolvimento

(p. 331). Sob essa perspectiva, através da imitação o sujeito aprende a fazer o que lhe vem a

ser acessível da instrução escolar, sob a orientação do professor e em cooperação com os

companheiros. Neste processo, as possibilidades intelectuais conscientes levam-no a uma

reconstrução individual do aprendizado, cujo aperfeiçoamento contribui para o próprio

desenvolvimento cognitivo.

3.2.1 A relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento cognitivo

Um dos postulados de Vygotsky particularmente importante para o presente estudo,

é a relação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento cognitivo, os quais constituem

dimensões integrantes e mutuamente dependentes, em que os processos de aprendizagem

impulsionam os processos de desenvolvimento. Todavia, se, por um lado, não existe

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simultaneidade entre esses dois processos, dado que o desenvolvimento cognitivo progride

de forma mais lenta e atrás do processo de aprendizado, por outro lado, eles estão inter-

relacionados desde o primeiro dia de vida do sujeito (Vygotsky, 1998).

Segundo Vygotsky (1998), o aprendizado é um aspecto necessário e universal do

processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e

especificamente humanas. Além disso, quando adequadamente organizado, resulta em

desenvolvimento mental colocando em movimento vários processos internos que, de outra

forma, seriam impossíveis de ocorrer.

O desenvolvimento, por sua vez, caracteriza-se como uma transformação qualitativa

que ocorre sobre uma base de acumulações quantitativas a partir da interação entre os lados

biológico e social (Vygotsky, 1989; citado por Van Der Veer & Valsiner, 1991). Nessa

perspectiva, a dimensão social, ou seja, o contexto sócio-cultural em que o sujeito está

inserido se configura como a matéria-prima sobre a qual o processo de aprendizagem é

operacionalizado para potencializar os processos de desenvolvimento.

Em se tratando do contexto escolar, embora os processos de aprendizagem e de

desenvolvimento não coincidam, eles se encontram em complexas inter-relações

(Vygotsky, 2000). Nesse sentido, Vygotsky aponta a existência de um código interior de

processos de desenvolvimento que são desencadeados pelos processos da aprendizagem

advinda do ensino formal, cujo delineamento apresenta a existência de três aspectos

fundamentais, quais sejam:

• Identidade significativa de base psicológica da aprendizagem de diferentes matérias

que, por si só, assegura a possibilidade de influência de uma disciplina sobre a outra,

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em que a aprendizagem de uma dada matéria predispõe para a aprendizagem de uma

disciplina de qualquer outra matéria;

• Influência inversa da aprendizagem sobre o desenvolvimento das funções psicológicas

superiores, em que a aprendizagem vai além dos limites do conteúdo específico e do

material de uma disciplina em particular;

• Interdependência e interligação entre funções psíquicas isoladas envolvidas quando se

estuda uma dada disciplina, configurando, assim, um processo complexo e indiviso de

base comum a todas as funções psicológicas superiores, cujo desenvolvimento constitui

a formação básica da idade escolar.

Concomitantemente à importância da interação entre os processos de aprendizado

escolar e de desenvolvimento cognitivo, a zona de desenvolvimento imediato9 constitui um

elemento imprescindível para a compreensão do desenvolvimento das funções psíquicas

superiores, sem o qual o papel da aprendizagem no desenvolvimento não teria o aspecto

essencial de despertar e, conseqüentemente, desenvolver vários processos intelectuais

internos.

De acordo com Vygotsky (2000), a zona de desenvolvimento imediato consiste na

discrepância entre a idade mental real ou o nível de desenvolvimento atual, o qual se refere

à capacidade do sujeito para resolver problemas de forma autônoma, e o nível que ele

atinge ao resolvê-lo sem autonomia e com o auxílio de outrem.

No contexto da escola, a zona de desenvolvimento imediato serve como um

referencial para a devida estruturação do processo de ensino-aprendizagem, de forma que

este possibilite ao aluno a compreensão do mundo a partir do que já traz como

9Conceito traduzido no Brasil como zona de desenvolvimento proximal

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conhecimento, e tendo como perspectivas etapas posteriores ainda não alcançadas

(Oliveira, 1997).

Nesse sentido, dentro do espaço escolar, a zona de desenvolvimento imediato é

estimulada tendo em vista dois aspectos principais: a interação e a instrução formal. No

tocante ao primeiro aspecto, os pares e o professor constituem os elementos mediadores no

qual de desenvolvem os processos de aprendizagem, seja através da realização das

atividades escolares, seja nos momentos de socialização. Em termos da instrução, a zona de

desenvolvimento imediato encontra-se relacionada à disciplina formal de cada matéria

escolar enquanto espaço peculiar em que se realiza a influência da aprendizagem sobre o

desenvolvimento. Nessa perspectiva, a estimulação da zona de desenvolvimento imediato

se dá por meio dos procedimentos regulares de ensino: demonstração, assistência,

instruções, experiências.

Ainda sob o alcance da instrução formal, Vygotsky (2000) ressalta a importância de

estruturar o processo de ensino-aprendizagem, sob uma dimensão prospectiva, uma vez

que,

(...) a aprendizagem só é boa quando está à frente do desenvolvimento, neste caso

ela motiva e desencadeia para a vida toda uma série de funções que se encontravam em

fase de amadurecimento e na fase de desenvolvimento imediato (p.334).

Nessa perspectiva, Vygotsky (2000) chama atenção para o caráter inacabado de

determinados processos de desenvolvimento, cujo aspecto constitui condição indispensável

para que a fase de desenvolvimento imediato possa ser estimulada. Nesse sentido, as

funções básicas envolvidas na aprendizagem adquirida através do ensino formal na escola,

se configuram como eixo de novas formações essenciais à idade escolar, entre os quais: a

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formação dos conceitos, que são elementos essenciais para o desenvolvimento do

pensamento verbal, uma vez que evoluem como significados das palavras (Vygotsky,

2000); o desenvolvimento dos conceitos científicos, os quais levam às habilidades

metacognitivas, ao domínio consciente do sistema conceitual e uso deliberado das

operações mentais (Vygotsky, 2000); o domínio inicial das quatro operações aritméticas, as

quais fornecem a base para o desenvolvimento subseqüente de vários processos internos

altamente complexos (Vygotsky, 1998).

Destarte, a despeito da relevância que Vygotsky (2000) atribuiu ao contexto escolar

para a zona de desenvolvimento imediato, igualmente se reconhece em relação ao contexto

social. Assim, conforme seus pressupostos, as diferenças quanto à capacidade de

desenvolvimento potencial das crianças devem-se, em grande parte, às diferenças

qualitativas no ambiente social em que vivem. Nesse sentido, a diversidade nas condições

sociais leva o sujeito a uma aprendizagem igualmente diversificada, em que são ativados

diferentes processos de desenvolvimento (Palangana 1994).

3.2.2 A idade escolar e o desenvolvimento intelectual

Para além da importância com que são consideradas as vivências sócio-culturais no

desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky também enfatiza a relevância da idade escolar,

bem como do papel da escola para o seu desenvolvimento intelectual, sobretudo, das

funções psicológicas superiores. Sob esse ponto de vista, a educação, veiculada pelo ensino

formal e sistemático da escola, se insere no âmbito das experiências sociais significativas

que levam à aprendizagem e, conseqüentemente, propiciam o desenvolvimento cognitivo

do sujeito (Van Der Veer & Valsiner, 1991).

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De acordo com Vygotsky (2000), a idade escolar é o período optimal de

aprendizagem ou a fase sensível em relação às disciplinas que se apóiam ao máximo nas

funções intelectualizadas, ou seja, que são mediadas pela tomada de consciência e pela

arbitrariedade do pensamento, que, por sua vez, constituem momentos de um mesmo

processo de transição para funções psicológicas superiores.

Nessa perspectiva, o aprendizado das disciplinas escolares assegura as melhores

condições para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores que se encontram na

zona de desenvolvimento imediato. Além disso, o aprendizado advindo do ensino formal

pode interferir no curso do desenvolvimento e exercer um papel determinante, levando

essas funções, que não se encontram maduras até o início da escolaridade, evoluírem com a

aprendizagem escolar. Esta, por sua vez, organiza o processo sucessivo do desenvolvimento

e determina seu destino (Vygotsky, 2000).

Outro aspecto relevante do processo escolar para o desenvolvimento intelectual do

sujeito, refere-se à colaboração sistemática entre o aluno e o professor, na qual ocorre o

amadurecimento das funções psicológicas superiores (memória, atenção, pensamento

abstrato) sob a condução e orientação deste último. Esse amadurecimento manifesta-se na

crescente relatividade do pensamento causal e na evolução de um determinado nível de

arbitrariedade do pensamento científico, cujo nível é criado pelas condições de ensino,

passando a fazer parte da zona das possibilidades imediatas em relação aos conceitos

espontâneos (Vygotsky, 2000).

Segundo Rego (1995), para explicar o papel da escola no processo de

desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky fez uma importante distinção entre os

conhecimentos construídos na experiência pessoal, concreta e cotidiana, os quais

constituem os conceitos espontâneos, e os conhecimentos construídos em sala de aula a

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partir de sistemas de conhecimentos hierarquicamente relacionados e que compõem os

conceitos elaborados, ou conceitos científicos. Com base nessa consideração, a escola, onde

as atividades educativas ocorrem de forma sistemática, planejada e intencional, é valorizada

enquanto um espaço que permite ao indivíduo (...) a apropriação do saber sistematizado, a

construção de funções psicológicas sofisticadas, de atuação e transformação de seu meio

social e de condições para a construção de novos conhecimentos (p. 105).

Outrossim, o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e científicos são

momentos intimamente interligados, constituindo-se um processo único de formação de

conceitos e de influências recíprocas, em que o desenvolvimento dos conceitos científicos

tende a sustentar-se em um dado nível de maturação dos conceitos espontâneos, por sua

vez, influenciando-os (Vygotsky, 2000).

Particularmente em relação à escolaridade, a idade escolar constitui um momento

relevante para o desenvolvimento dos conceitos. Nessa fase, os conceitos científicos de tipo

superior não podem surgir senão a partir de generalizações elementares já existentes

anteriormente, próprias dos conceitos espontâneos. A relevância desse momento pode ser

constatada no campo da memória e da atenção, em que o sujeito em idade escolar descobre

a capacidade para a tomada de consciência e a arbitrariedade através da transição das

funções inferiores de atenção e de memória para as funções superiores da atenção arbitrária

e da memória lógica. Destarte, o desenvolvimento dessa capacidade é o que constitui o

conteúdo principal de toda a idade escolar (Vygotsky, 2000).

Todavia, as atividades desenvolvidas na escola, assim como, os conceitos

aprendidos a partir do ensino escolar, introduzem novos modos de operação intelectual,

viabilizando ao sujeito em idade escolar realizar abstrações e generalizações cada vez mais

coerentes sobre a realidade. Além disso, o acesso ao conhecimento científico produzido ao

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longo da evolução humana, e que é repassado pela escola, possibilita o desenvolvimento de

habilidades consideradas fundamentais nas sociedades escolarizadas, quais sejam: o

domínio da leitura, da escrita, de cálculos, bem como, das ciências sociais e naturais.

Tomando por base a concepção de Vygotsky sobre o papel essencial que o contexto

escolar desempenha no desenvolvimento intelectual do indivíduo, pode-se considerar que a

não ida à escola, em detrimento do trabalho, traz implicações desfavoráveis ao

desenvolvimento cognitivo do sujeito. Pois, tendo em vista que, na situação de trabalho

precoce, as interações sociais não apresentam a sistematização e a intencionalidade

direcionada à promoção do conhecimento científico, o desenvolvimento das habilidades

cognitivas do sujeito torna-se limitado, em termos da aquisição de uma série de funções

intelectuais superiores, como: a atenção arbitrária, a memória lógica, a abstração, a

comparação e a discriminação. Funções estas, que são estimuladas no ensino formal,

através do processo de escolarização, e que viabilizam aspectos essenciais à formação

intelectual, tais como: a aquisição de um sistema lingüístico capaz de dar forma ao

pensamento, a capacidade de generalização, o raciocínio verbal, o aprimoramento de

estruturas lógicas, bem como, o desenvolvimento do pensamento conceitual

(Vygotsky, 2000; Van Der Veer & Valsiner, 1991; Rego, 1995; Oliveira, 1997; Alberto,

2002).

Concomitante a esse aspecto, pode-se acrescentar, ainda, que segundo Vygotsky, a

questão do desenvolvimento cognitivo também ocorre em função da qualidade do contexto

social em oferecer experiências significativas na relação com o ambiente. Nesse sentido, o

meio tanto contribui para o prosseguimento do processo de desenvolvimento, oferecendo as

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condições para tal, assim como, para o recuo deste, quando da ausência daquelas

(Van Der Ver & Valsiner, 1991).

Assim, considerando que, no cotidiano dos trabalhadores precoces, prevalece a

necessidade do trabalho em detrimento do direito de estudar, constata-se que suas

experiências, longe serem significativas, são negativas e estigmatizadas, tais como: os

déficits de escolaridade, os elevados índices de evasão escolar (Cervini & Burger, 1991;

Rizzini & cols., 1996), as dificuldades de aprendizagem e de concentração nas aulas

(Alberto,2002; Estrela, 2004), e o não acesso ao conhecimento científico produzido pela

humanidade, ou seja, o capital cultural (Bourdieu & Passeron, 1992). Sob esse ponto de

vista, as implicações desses aspectos se refletem, sobremaneira, na inserção política e social

desses sujeitos na sociedade letrada atual, bem como, na participação na vida adulta no

mercado profissional, cuja demanda requer cada vez mais formação escolar e

conhecimento. Diante disso, não raro os trabalhadores precoces têm suas perspectivas de

futuro inviabilizadas.

3.3 A dimensão do brincar:

Para além dos momentos de lazer e diversão, o brincar é uma atividade que traz

implicações para o desenvolvimento social, cognitivo e afetivo do sujeito. Nesse sentido, o

brincar oportuniza a interrelação entre o real e o ideal permitindo a organização e a

representação da realidade, bem como a construção do conhecimento e a elaboração das

emoções nas experiências vivenciadas.

Considerando que o brincar viabiliza o desenvolvimento cognitivo e, sob essa

perspectiva, possibilita a interação com o mundo e o outrem, assim como o alcance de

formas mentais superiores (o pensamento abstrato, o raciocínio lógico, a linguagem

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socializada), pretende-se assinalar a importância da brincadeira para a formação do sujeito.

Em especial, do sujeito criança e adolescente, enquanto indivíduos em processo de

desenvolvimento biopsicossocial.

3.3.1 A brincadeira e o desenvolvimento

Em suas considerações sobre o brinquedo Vygotsky (1998) enfoca-o num sentido

amplo, abrangendo desde o brinquedo em si ao ato de brincar, a brincadeira (Rego, 1995).

Segundo Vygotsky (1998), é através da brincadeira que o sujeito aprende a agir

numa esfera cognitiva simbólica, ao invés de apenas numa esfera visual externa. Além

disso, o brinquedo possibilita lidar com as regras, traz oportunidade para o preenchimento

de necessidades irrealizáveis e também a possibilidade para exercitar-se no domínio da

imaginação. Agir sob uma dimensão imaginária, por sua vez, permite que o sujeito em

desenvolvimento aprenda a dirigir seu comportamento de forma reflexiva, com base não

apenas na percepção imediata, mas, principalmente, no significado da situação.

Em termos dos processos cognitivos, Vygotsky (1998) ressalta a importante

contribuição do brinquedo enquanto propiciador da zona de desenvolvimento imediata na

criança. De acordo com Vygotsky, esta tende a se comportar num nível mais avançado do

que o comportamento habitual, como se fosse maior do que é na realidade. Nessa

perspectiva, o brinquedo constitui um elemento potencializador do desenvolvimento, que

impulsiona conceitos e processos em expansão.

De acordo com Vygotsky (1998), o brinquedo promove o amadurecimento de

aspectos fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, seja por causa das interações

sociais que a situação de brincadeira propicia, seja em vista da ampliação de processos

cognitivos internos, em que a utilização de regras e a imitação de ações promovem a

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reconstrução do conhecimento apreendido no ambiente. Além disso, a criação de uma

situação imaginária pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento

abstrato.

Por outro lado, tendo em vista que o atributo essencial do brinquedo é que uma

regra torna-se um desejo, Vygotsky (1998) considera que as maiores aquisições morais de

uma criança são conseguidas através do mesmo, uma vez que estas (...) no futuro tornar-se-

ão seu nível básico de ação real e moralidade (p.131). Sob esse ponto de vista, entende-se

que o brinquedo ensina a relacionar desejo e realidade com base em regras, regras estas que

decorrem de processos internos do sujeito e, portanto, contribuem para o desenvolvimento

do autocontrole, das intenções voluntárias, da formação dos planos da vida real e das

motivações volitivas (Vygotsky, 1998).

Todavia, nos momentos em que o brinquedo leva ao contato com as regras, observa-

se uma importância singular desse acontecimento para o contexto da escola, cuja

contribuição se refere à adoção de comportamentos adequados ao mesmo. Nessa

perspectiva, o desenvolvimento progressivo das regras conduz a ações (...) com base nas

quais torna-se possível a divisão entre trabalho e brinquedo, divisão esta encontrada na

idade escolar como um fato fundamental (Vygotsky, 1998, p. 136).

Destarte, para além das implicações do papel do brinquedo na idade escolar e

considerando-se uma dimensão mais ampla dessas implicações, constata-se a importância

deste para o desenvolvimento do sujeito, particularmente, quando este se encontra em

processo de desenvolvimento. A situação lúdica advinda da brincadeira permite lidar com

regras, imaginar, abstrair as características dos objetos reais, separar objeto e significado,

elaborar conceitos e pensamentos, cuja essência é a criação de uma nova relação entre o

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campo do significado e o campo da percepção visual, ─ ou seja, entre situações no

pensamento e situações reais (Vygotsky, 1998).

Nessa perspectiva, convém questionar até que ponto as crianças e adolescentes,

trabalhadores precoces, por não desfrutarem efetivamente dos momentos de brincadeira e

de contato com o lúdico, não apresentam, igualmente, essa lacuna em seu processo de

desenvolvimento, e, até mesmo, de escolarização. Pois, a brincadeira impulsiona o

desenvolvimento de regras na idade escolar, as quais conduzem a ações fundamentais para

a distinção das diversas situações relacionadas ao contexto da escola.

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PARTE II – ASPECTOS METODOLÓGICOS E ACHADOS

Capítulo IV

APORTES METODOLÓGICOS

Tendo em vista a natureza do objeto de pesquisa deste estudo, a relação do trabalho

com o processo de escolarização de crianças e adolescentes trabalhadores precoces, o qual

compreende um fenômeno histórico, social e de implicações subjetivas, significado

atribuído ao trabalho e à escola face à condição de trabalho precoce, foram utilizados

procedimentos metodológicos dos modelos de pesquisa qualitativo e quantitativo. Todavia,

foi considerada como perspectiva metodológica predominante a pesquisa qualitativa.

4.1 Perspectiva Metodológica

De acordo com Minayo & Sanches (1993), o conhecimento científico é uma busca

de articulação entre uma teoria e a realidade empírica, e o método constitui o fio condutor

para que essa articulação seja formulada.

Do ponto de vista metodológico, o modelo de pesquisa a ser adotado é definido em

função da natureza do problema a ser estudado, bem como dos objetivos que orientam a

investigação. Nesse sentido, a abordagem qualitativa é considerada a mais adequada às

Ciências Sociais (Godoy, 1995; Minayo, 1993).

Segundo Godoy (1995), na abordagem qualitativa, a compreensão de um dado

objeto em estudo não pode prescindir do entendimento do contexto onde ocorre e do qual

faz parte, assim como, das pessoas envolvidas, considerando-se todos os pontos de vista

relevantes.

Sob esse ponto de vista, a pesquisa no modelo qualitativo enfoca valores, crenças,

representações, hábitos, atitudes, vivências, experiências, processos subjetivos e opiniões

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buscando aprofundar a complexidade desses fenômenos em relação com os processos

particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados em extensão. Outrossim,

esse modelo de pesquisa, busca a interpretação da ação social a partir dos significados

atribuídos pelos sujeitos pesquisados, em que a linguagem comum da vida cotidiana é

valorizada enquanto reveladora de condições estruturais, de sistema de valores, normas e

símbolos.

Todavia, a ênfase nos procedimentos metodológicos da pesquisa qualitativa ao

longo do desenvolvimento desta pesquisa, se deu em função de que eles se configuram

como os mais adequados para a apreensão do objeto a ser investigado, permitindo analisar a

realidade social na perspectiva dos sujeitos que a vivenciam. No caso, as crianças e

adolescentes trabalhadores informais em condição de rua.

4.2 Participantes

A amostra foi constituída por 21 sujeitos, crianças e adolescentes de 7 a 14 anos e

de ambos os sexos, estudantes e trabalhadores precoces nas atividades informais em

condição de rua, tais como: vendedores em feiras livres, engraxates, olheiros (olha veículos

em estacionamentos), fretistas (carregadores de frete em feiras livres), na cidade de João

Pessoa. A escolha da referida amostra no contexto urbano deu-se pelo fato de neste a escola

ser presumivelmente mais acessível, e, no segmento do setor informal, devido à larga

utilização da mão-de-obra infantil e adolescente neste setor, especialmente, nas atividades

de comércio e de serviços, conforme colocado no 1° capítulo desta dissertação. Optou-se

pela faixa etária dos de 7 a 14 anos, pelo fato desta corresponder ao período em que a

escolaridade é obrigatória, segundo a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do

Adolescente e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

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Para a seleção dos sujeitos participantes do estudo foram observados os seguintes

critérios: ter idade mínima de sete anos e máxima de quatorze anos; estudar, estando

freqüentando regularmente a escola; trabalhar nas atividades informais em condição de rua,

conforme descritas anteriormente, na cidade de João Pessoa.

4.3. Instrumentos

Foram utilizados instrumentos da metodologia qualitativa e da metodologia

quantitativa. Da metodologia qualitativa, adotou-se a análise documental, as entrevistas

individuais semi-estruturadas e a análise do domínio de conteúdos. Da metodologia

quantitativa, realizou-se um levantamento numérico de dados gerais sobre a população a

qual se refere à amostra. Em relação à amostra propriamente dita, realizou-se também o

levantamento de informações referentes aos aspectos sócio-demográficos, ao processo de

escolarização (número de reprovações, de repetências, defasagem e abandono escolar), e ao

cotidiano de trabalho (tempo de trabalho, jornada diária).

4.3.1 Análise documental

De acordo com Alves-Mazzotti & Gewandsznajder (2002), numa análise de

documentos, considera-se qualquer registro escrito que possa ser usado como fonte de

informação, tais como: regulamentos, arquivos, entre outros. No caso de uma análise que

envolva dados referentes ao processo de escolarização, também são passíveis de análise os

registros escolares, os programas de curso e os planos de aula.

Nesta pesquisa, a análise documental foi realizada a partir dos arquivos do IBGE e

do mapeamento do trabalho infantil na Paraíba (realizado em convênio com a OIT). Os

dados advindos dessa análise foram utilizados com a finalidade de caracterizar a população

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à qual se refere a amostra, crianças e adolescentes trabalhadores precoces, segundo suas

características sócio-demográficas: idade, sexo, escolaridade; perfil de escolarização:

reprovação, repetência, defasagem série-idade e abandono escolar; e de trabalho (idade de

ingresso no trabalho, tempo de trabalho, jornada).

Outrossim, a análise documental também foi utilizada para fundamentar o

instrumento de análise do domínio de conteúdos, a partir de documentos relativos à

propostas curriculares, planejamento e avaliação escolar, da Secretaria de Educação do

Estado da Paraíba e da Secretaria de Educação do Município de João Pessoa.

4.3.2 As entrevistas individuais semi-estruturadas

De acordo com Szymansk (2002), a entrevista tem sido empregada em pesquisas

qualitativas como um instrumento que possibilita o estudo de significados subjetivos e de

tópicos complexos demais para serem investigados por instrumentos fechados num formato

padronizado.

Corroborando esta concepção, Alves-Mazzotti & Gewandsznajder (2002),

enfatizam que a natureza interativa da entrevista permite tratar de temas complexos,

explorando-os em profundidade, que dificilmente poderiam ser investigados

adequadamente através de questionários.

Segundo Minayo (1993), a entrevista é entendida como uma situação que

compreende não apenas um momento técnico da pesquisa, a coleta de dados, mas,

sobretudo, uma situação de interação na qual as informações dadas pelos sujeitos podem

ser aprofundadas pela natureza de suas relações com o entrevistador (p.114). Assim,

propõe-se uma compreensão ampla sobre a situação e os eventos envolvidos na entrevista,

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de forma a assegurar uma aproximação mais efetiva da “região interior” do entrevistado,

bem como, o controle das informações exteriorizadas.

Considerando-se a validade contundente desta técnica, foram realizadas entrevistas

individuais semi-estruturadas com 21 crianças e adolescentes, trabalhadores precoces nas

atividades informais em condição de rua na cidade de João Pessoa, com a finalidade de

obter informações relativas ao objeto deste estudo, a saber: a relação do trabalho precoce

com o processo de escolarização desses sujeitos.

O número de entrevistas realizadas foi definido com base no critério de saturação,

segundo o qual o número-limite das entrevistas se dá quando da repetição dos temas

suscitados, cuja ocorrência pouco acrescenta ao conteúdo significativo das entrevistas (Sá,

1998).

Destarte, foi elaborado um roteiro (ANEXO 2) no sentido de propor questões

norteadoras para enfocar os seguintes aspectos:

• Dados sócio-demográficos;

• Processo de escolarização;

• Trabalho;

• Relação trabalho-escola;

• Perspectivas de futuro.

Ao longo das entrevistas, a comunicação verbal dos sujeitos, a fala, assim como,

outras formas de comunicação, não necessariamente verbais, como: silêncio, choro, riso,

pausa, constituíram-se elementos relevantes na análise. Nesse sentido, esses elementos

foram também considerados tendo em vista a compreensão da relação entre o trabalho e a

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escola, das implicações do trabalho precoce na escolarização, e ainda, da subjetividade que

permeia o sentido do trabalho e da escola face à condição de trabalho precoce.

4.3.3 A análise do domínio de conteúdos

O referido instrumento, análise do domínio de conteúdos, foi elaborado

particularmente para atender aos objetivos deste estudo, com vistas a permitir a análise do

domínio de conteúdos escolares básicos em língua portuguesa e matemática, disciplinas da

base nacional comum, conforme o Art. 26 da LDBEN/1996. Tal objetivo foi delineado a

partir da necessidade de se verificar como os alunos trabalhadores precoces, tendo em vista

um histórico recorrente de reprovação, repetência, defasagem e abandono escolar no

processo de escolarização, cuja constância decorre da inserção precoce no trabalho,

apresentam as habilidades escolares para ler, escrever e contar segundo os critérios da

instrução formal.

Nesse sentido, buscou-se respaldo nos instrumentos legais que tratam diretamente

da questão, LDBEN/1996 (Art. 32, inciso I), a qual determina como um dos objetivos do

Ensino Fundamental, período escolar em que se encontram os sujeitos desse estudo, a

capacidade de aprender tendo como meios básicos a leitura, a escrita e o cálculo; assim

como, aqueles que tratam dos aspectos afins, como, por exemplo, a Constituição Federal

(Art.6º; Art.7º, inciso XXXIII; Art.205; Art.227); Estatuto (Capítulos IV e V). Cujas

determinações reiteram o direito à educação e a proteção no trabalho, este último em

caráter de aprendizagem para adolescentes a partir dos quatorze anos.

Tinha-se também como objetivo identificar os aspectos envolvidos no processo da

aprendizagem escolar, mais afetados pela inserção precoce no trabalho, uma vez que a

LDBEN/1996 e os PCNs. (1997a) concebem que:

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• O papel do ensino é propiciar a formação básica para a cidadania tendo como meios

básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo (LDBEN/1996);

• A língua portuguesa é fundamental para uma participação social efetiva através da

comunicação e do acesso à informação (PCNs., 1997b).

• A matemática desempenha um papel essencial na formação de capacidades intelectuais,

na estruturação do pensamento e na agilização do raciocínio dedutivo (PCNs., 1997c).

Nessa perspectiva, esse instrumento encontra-se organizado a partir do protocolo que

segue:

Protocolo para a Análise do Domínio de Conteúdo

Instrumento: Análise do domínio de conteúdos em língua portuguesa e

matemática.

Objetivos:

Analisar o domínio de conteúdos em língua portuguesa e matemática.

Língua Portuguesa: O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para uma

participação social efetiva através da comunicação e do acesso à informação (PCNs,

1997a). Nesse sentido, para a análise dos conteúdos de língua portuguesa, foram elaboradas

questões para analisar a linguagem oral (leitura) e a linguagem escrita (ortografia),

respectivamente, através de questões de leitura, interpretação e gramática (ANEXO 3). Esse

instrumento encontra-se organizado a partir dos seguintes pontos:

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Eixo Temático Conteúdo Objetivos PropostosLinguagem Oral Leitura e interpretação de

texto: entonação das frases,

pontuação e pronúncia correta das

palavras.

Ler com ritmo e entonação a fim de

apreender o sentido do texto.

Linguagem EscritaEscrita de letras, palavras,

frases, compondo uma mensagem

coerente.

Encontro vocálico e encontro

consonantal.

Escrever corretamente as

palavras, associando a pronúncia à

escrita.

Identificar o encontro entre duas

vogais e duas consoantes,

distinguindo-os.

Matemática: A matemática desempenha um papel essencial na formação de

capacidades intelectuais, na estruturação do pensamento e na agilização do raciocínio

dedutivo (PCNs, 1997b). Nessa perspectiva, na análise dos conteúdos de matemática foram

elaboradas questões para analisar as interações entre os conteúdos matemáticos e o

cotidiano, através da resolução de situações-problema (ANEXO 4). Esse instrumento

encontra-se organizado a partir dos seguintes pontos:

Eixo Temático Conteúdo Objetivos PropostosNúmeros e Operações Números naturais Ampliar e reconhecer o

significado dos números naturais e

sua relação no contexto diário.Situações-problema Resolução de problemas

envolvendo as quatro operações

fundamentais: adição, subtração,

multiplicação e divisão.

Resolver problemas simples de

operações fundamentais a partir de

situações cotidianas, exercitando

uma operação de cada vez.

Fundamentação:

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A construção do referido instrumento foi fundamentada a partir dos seguintes

elementos:

•A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN:

A LDB (Lei Federal nº 9.349), cuja proposta de ensino é definida em função do

objetivo maior do ensino fundamental, que é o de propiciar a formação básica para a

cidadania a partir da criação, na escola, de condições de aprendizagem. Dentre essas, o

desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios básicos o pleno domínio da

leitura, da escrita e do cálculo.

•Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs.:

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs. 1997a), os quais correspondem a uma

proposta de estruturação dos currículos escolares, tendo em vista um melhor planejamento

escolar para a formação de alunos-cidadãos. De acordo com os Parâmetros, os objetivos

gerais do ensino fundamental constituem as grandes metas educacionais que orientam a

estruturação curricular.

Nessa perspectiva, para a Área de Língua Portuguesa, os PCNs. ressaltam a

necessidade do desenvolvimento da capacidade de compreender textos orais e escritos, de

usar a palavra (se expressar) e produzir textos. Para a Área de Matemática, os PCNs.

enfatizam, dentre outros, que os conteúdos matemáticos devem ser contextualizados em

função das necessidades e interesses do aluno, levando em consideração a relevância social

e a contribuição para o desenvolvimento intelectual do mesmo.

•O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB:

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O SAEB (2005), que consiste num exame de avaliação de desempenho dos alunos

brasileiros das séries finais do ensino fundamental I e II, e do ensino médio. Neste processo

avaliativo são utilizados dois instrumentos, quais sejam: os questionários, usados para a

coleta de informações sobre o contexto social, econômico e cultural dos alunos, e ainda

para identificar a trajetória de sua escolarização; e os testes, usados para medir o

desempenho dos alunos nas disciplinas de Língua Portuguesa, com foco na leitura, e

Matemática, com ênfase na resolução de problemas. Outrossim, o referido exame tem como

principais objetivos as seguintes metas:

• Oferecer subsídios à formulação, reformulação e monitoramento de políticas públicas e

programas de intervenção ajustados às necessidades diagnosticadas;

• Identificar os problemas e as diferenças regionais do ensino;

• Produzir informações sobre os fatores do contexto socioeconômico, cultural e escolar

que influenciam o desempenho dos alunos;

• Proporcionar aos agentes educacionais e à sociedade uma visão clara dos resultados dos

processos de ensino e aprendizagem e das condições em que são desenvolvidos;

• Desenvolver competência técnica e científica na área de avaliação educacional,

ativando o intercâmbio entre instituições educacionais de ensino e pesquisa.

•A Proposta Curricular da Rede Estadual e Municipal de Ensino:

Essas propostas, que se encontram baseadas no conjunto de proposições dos

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs,1997a), sob a recomendação do MEC

(Ministério da Educação), definem os conteúdos mínimos obrigatórios a serem estudados

nos componentes curriculares de Língua Portuguesa e Matemática. De acordo com as

referidas propostas, além dessa seleção de conteúdos, são sugeridas atividades práticas para

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os alunos realizarem de forma precisa e objetiva, de modo a permitir uma avaliação mais

completa sobre o nível de aprendizagem dos mesmos. Nessa perspectiva, para o ensino da

língua portuguesa, o objetivo geral propõe o desenvolvimento da escrita, da leitura e a

interpretação de diversos tipos de textos; e para o ensino da matemática, a proposta

curricular apresenta como objetivo geral a compreensão das quatro operações fundamentais

(adição, subtração multiplicação e divisão) e dos respectivos sinais, com a finalidade de

resolução das situações-problema enfrentadas no cotidiano. Assim, com base nesses

referenciais elaborou-se:

• Um intrumento para análise do domínio de conteúdos de língua portuguesa, com

questões versando sobre: texto, em que foi solicitada a leitura e a interpretação do

mesmo, sendo esta registrada através da linguagem escrita; sobre gramática, solicitando

a identificação de encontros vocálicos e encontros consonantais; e, por último, de

ortografia, em que os sujeitos escreveram palavras do seu vocabulário diário, a saber:

dinheiro, feira, freguês, trabalho, cansaço, mercado, as quais eram ditadas ditadas pela

pesquisadora (ANEXO 3);

• Um intrumento para análise do domínio de conteúdos de matemática, contendo

questões de situações problema, cada uma enfocando uma operação aritmética, a saber:

adição, subtração, multiplicação e divisão. Para a resolução, solicitava-se: a leitura do

problema, a interpretação, o cálculo na forma de algoritmo (modelo formal da

matemática escolar), e, a partir deste, a resposta do problema registrado em linguagem

escrita (ANEXO 4).

4.4. Procedimentos

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Inicialmente o projeto foi enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa com seres

Humanos do CCS (Centro de Ciências da Saúde) da UFPB, conforme determina a

resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, com a finalidade de se avaliar os

parâmetros éticos da pesquisa, tendo recebido parecer de aprovação para realização da

mesma (ANEXO 1).

A seleção da amostra foi realizada entre crianças e adolescentes trabalhadores

precoces nas atividades informais (olheiro, engraxate, fretista, vendedores na feira) em

condição de rua, que estudavam e estavam freqüentando regularmente as aulas. Nesse

sentido, o estudo foi organizado a partir das seguintes etapas:

4.4.1 Análise documental

Inicialmente foi realizada a análise documental, a partir dos arquivos do IBGE, para

levantamento dos dados numéricos referentes ao trabalho precoce no Brasil e no Nordeste.

Em relação ao estado da Paraíba e à cidade de João Pessoa, utilizou relatórios do

mapeamento do trabalho precoce (Alberto & cols., 2006 a; b; c).

Realizou-se, ainda, análise documental junto à Secretaria de Educação do Estado da

Paraíba e Secretaria de Educação do Município de João Pessoa. Os dados documentados

junto às referidas secretarias foram utilizados para fundamentar o instrumento de análise do

domínio de conteúdos, através das propostas curriculares das mesmas, as quais definem os

conhecimentos mínimos a serem apreendidos pelos alunos nas disciplinas da base nacional

comum: língua portuguesa e matemática (LDBEN, n°9.394/96).

4.4.2 Territorialização:

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Antes do contato propriamente dito com os sujeitos, foi realizada a técnica da

territorialização. A territorialização constitui uma técnica específica de aproximação entre

a pesquisadora e os sujeitos pesquisados no espaço da rua, com o objetivo de conhecer o

espaço de vivência dos mesmos, bem como, a utilização que fazem desse espaço, de modo

que o pesquisador compreenda a forma e o momento mais apropriado para abordá-los.

Nesse sentido, trata-se de facilitar o contato entre ambos (pesquisadora e sujeitos), uma vez

que o pesquisador é uma pessoa estranha àquele território (Alberto 2002).

De acordo com Graciani (1997), a noção de território é utilizada na tentativa de se

organizar e produzir um entendimento sobre as crianças, os adolescentes e os jovens de e na

rua, uma vez que o território da rua representa um espaço vivido ou um sistema percebido,

no seio do qual o sujeito se sente “em casa”. Sob essa perspectiva, o território se configura

como o conjunto de projetos e representações nas quais se desenvolve, pragmaticamente,

uma série de comportamentos, de investimentos nos tempos e nos espaços sociais,

culturais, estéticos e cognitivos (p. 115).

A territorialização foi feita em locais onde os trabalhadores precoces se concentram,

comumente, para exercer sua atividade de trabalho, tais como: estacionamentos de

supermercados, no calçadão da praia de Tambaú, e, principalmente, em feiras livres, devido

à intensa concentração deles em atividades de vendedor, de olheiro, de fretista e de

engraxate. Ademais, tendo em vista a grande concentração de trabalhadores precoces nas

feiras livres e a facilidade para abordá-los naquele local, este foi um dos locais mais

utilizados para a realização da pesquisa, em especial a feira do Mercado Central no centro

da cidade, a feira de Jaguaribe e a feira dos Estados, respectivamente, nos bairros de mesmo

nome.

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A territorialização constituiu-se um procedimento eficaz para o desenvolvimento

desse estudo, pois, tendo em vista que o ambiente da rua é predominantemente implicado

por diversos fatores como: barulho, agitação e contato superficial entre as pessoas, esta

técnica possibilitou não apenas a identificação dos sujeitos, mas também, a aproximação

entre eles e a pesquisadora sob um contexto de relativa empatia e confiança.

Deste modo, urge serem colocadas algumas considerações relativas ao

desenvolvimento da territorialização como o surgimento de esquiva e desconfiança por

parte dos trabalhadores precoces e das pessoas que mantinham relação de conhecimento

com os eles. Tais comportamentos em relação à figura da pesquisadora devia-se ao fato de

acreditarem que aquela era uma pessoa do Conselho Tutelar, do Juizado de Menores ou,

ainda, a serviço de alguma instituição escolar realizando fiscalização. Em decorrência desse

fato, muitos sujeitos abordados se negaram a participar da pesquisa.

Além disso, um acontecimento peculiar contribuiu para despertar, ainda mais, a

desconfiança desses sujeitos em relação aos objetivos da pesquisa e a intenção da

pesquisadora, qual seja: o fato de nessa época a imprensa estar abordando, com grande

ênfase, a temática sobre o trabalho precoce. Num dado programa de rádio, o

pronunciamento do arcebispo da Igreja Católica do Estado da Paraíba sobre a referida

temática suscitou polêmicas e questionamentos sobre a questão do trabalho na infância e na

adolescência. Diante desse fato, muitos sujeitos ficaram ainda mais desconfiados da

presença da pesquisadora naquele local, o mesmo acontecendo com as pessoas que

costumavam estar pelas imediações. Não obstante, a continuidade do processo de

territorialização, permitiu aos trabalhadores precoces habituar-se mais com a pesquisadora,

o que facilitou os contatos.

105

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4.4.3 Entrevistas individuais semi-estruturadas

Após a territorialização, foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas, com o

objetivo de se obter informações sobre o trabalho e a escola, a partir da perspectiva das

crianças e adolescentes trabalhadores precoces. Essas entrevistas foram realizadas no

próprio espaço de trabalho desses sujeitos, ou seja, na rua (feiras livres, estacionamento de

supermercado e calçadão da praia de Tambaú).

Conforme anteriormente colocado, após o período da territorialização os sujeitos, já

familiarizados com o motivo da presença da pesquisadora (aluna da universidade que

estudava a relação trabalho/escola para crianças e adolescentes trabalhadores precoces),

foram convidados para a realização da entrevista. Na ocasião procurava-se um espaço um

pouco mais reservado e distante do barulho peculiar ao ambiente, o que nem sempre se

conseguia com sucesso. No caso das entrevistas que foram realizadas nas feiras, foi comum

a interrupção da entrevista, por alguns momentos, devido o excesso de estímulos sonoros.

Uma vez convidado a conceder a entrevista, cada sujeito era informado dos

objetivos da pesquisa e do sigilo das informações transmitidas. Fazia-se uso de um

gravador, após a devida permissão do sujeito. Com relação ao tempo de duração da

entrevista, este variava de 15 à 20 minutos, dependendo das características de cada

participante, como: timidez, facilidade em se expressar, desinibição.

4.4.4 Análise do domínio de conteúdos

A análise do domínio de conteúdos foi realizada após ter decorrido algum tempo

(cerca de um mês) depois do contato com os trabalhadores precoces na entrevista. Na

ocasião conseguiu-se contatar com onze sujeitos, dos vinte e um que foram entrevistados.

Assim, retomou-se o contato mantido anteriormente, informando que esta constituía mais

106

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uma etapa da pesquisa, em que era necessária a participação deles através da realização de

dois exercícios escolares: um de língua portuguesa e outro de matemática. Deste último,

além da parte escrita (anteriormente colocada) constava um exercício de caráter lúdico, em

que era solicitada a realização de cálculos, sem o uso de papel e lápis, através da simulação

de uma situação envolvendo procedimentos de pagamento e de troco.

Após a realização do exercício escrito, quando os sujeitos tinham concluído as

questões propostas no exercício de língua portuguesa e de matemática, realizou-se a

atividade lúdica, simulando a situação de pagamento e de troco envolvendo a

operacionalização de cálculos matemáticos. Para o desenvolvimento dessa atividade, a

pesquisadora ofereceu cédulas e moedas representativas do dinheiro em uso (o real), além

de fichas com gravuras de diferentes objetos e o respectivo preço. Era solicitado ao sujeito

que indicasse o objeto que gostaria de adquirir. Em seguida, a pesquisadora lhe oferecia

uma dada quantia do “dinheiro” indagando se a mesma era suficiente ou não para comprá-

lo. A partir da resposta, o sujeito indicaria: quanto precisaria para efetuar a compra, caso o

valor dado fosse insuficiente, ou quanto precisaria devolver, caso o valor dado ultrapassasse

o custo do objeto (ANEXO 5).

4.5. Análise de dados

Para a análise dos dados qualitativos, a saber: o conteúdo das entrevistas individuais

semi-estruturadas, foi empregada a técnica de análise de conteúdo temático, enfatizando-se

a ausência ou a presença do tema a despeito de sua freqüência, em que a fala constituiu um

importante elemento revelador.

Segundo Bardin (1994), a análise de conteúdo corresponde à:

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(...) um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por

procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,

indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos

às condições de produção/recepção (variáveis inferidas), destas mensagens (p. 42).

Durante a análise das entrevistas individuais semi-estruturadas foram realizados os

seguintes procedimentos:

• Transcrições das entrevistas – com a finalidade de registrar e organizar o material

(discurso) coletado na entrevista;

• Leitura flutuante – com a finalidade de estabelecer contato com as transcrições

realizadas;

• Tabulação das falas transcritas – com a finalidade de fazer o recorte das unidades

temáticas;

• Codificação – com a finalidade de agrupar o recorte das unidades temáticas, para a

construção das categorias;

• Categorização – com a finalidade de apresentar uma representação simplificada do

conteúdo emergido no discurso do sujeito;

• Inferência – com a finalidade de explicar os resultados encontrados;

• Interpretação – com a finalidade de estabelecer relações entre os fundamentos teóricos

adotados e os dados empíricos encontrados.

Com relação à análise do domínio dos conteúdos em língua portuguesa e

matemática, a análise do desempenho obtido por cada sujeito na realização dos exercícios

propostos foi realizada com base nos critérios de avaliação determinados pelas propostas

curriculares das Secretarias de Educação do Estado e do Município de João Pessoa. Estas,

108

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por sua vez, fundamentadas na recomendação do MEC, através dos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs, 1997a). Nessa perspectiva, foram observados os seguintes

critérios:

• Para o exercício de língua portuguesa – em termos de leitura: ler com entonação

adequada à pontuação do texto de forma a compreender o quê leu e interpretá-lo

coerentemente na linguagem oral e na linguagem escrita, Nesta última, atentar para as

regras gramaticais de estruturação de um período (letra maiúscula no início, uso da

pontuação); nas questões de gramática: identificar e distinguir vogais e consoantes e, a

partir disso, reconhecer um encontro vocálico e consonantal numa palavra; nas questões

de ortografia: escrever corretamente as palavras associando a pronúncia à escrita;

• Para o exercício escrito de matemática – resolver situações problema com as quatro

operações fundamentais (adição +; subtração –; multiplicação x; e divisão ÷), de forma

a: identificar a operação utilizada naquela situação; relacionar a operação ao cálculo na

forma de algoritmo corrrespondente; utilizar corretamente os sinais matemáticos

respectivos a cada operação.

• Para a atividade lúdica de matemática – resolver a situação problema proposta,

exercitando o raciocínio matemático a partir de uma situação concreta, no caso,

envolvendo procedimentos de pagamento e de troco.

A análise dos dados quantitativos, relativos aos dados sócio-demográficos, foi

realizada a partir de estatísticas descritivas com a finalidade de traçar o perfil da amostra

segundo a idade, o gênero, o processo de escolarização (nível de escolaridade, reprovação,

repetência, defasagem, abandono escolar) e o trabalho (tempo de trabalho, atividade em que

trabalha, jornada diária).

109

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Capítulo V

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste capítulo abordar-se-ão os dados empíricos que emergiram na pesquisa de

campo. Assim, constarão os aspectos relativos à caracterização sócio-demográfica da

amostra, à apresentação dos resultados encontrados e as respectivas discussões relativas ao

tema abordado, qual seja a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização.

5.1.Trabalho precoce informal em condição de rua: aspectos demográficos, sócio-

históricos e psicológicos:

5.1.1 Gênero

No que se refere ao gênero, dentre os 21 participantes, 19 são do sexo masculino e 2

do sexo feminino. Nota-se uma prevalência expressiva do número de meninos, o que vem

corroborar com estudos anteriores, segundo os quais o índice da participação dos meninos

no setor informal de rua é maior do de que meninas, o que é universalmente observado

(Barros& cols., 1991; Alberto & cols ,2006a). A explicação para isso deve-se, dentre outros

fatores, aos de caráter cultural, tais como: os meninos estão mais nas atividades de rua,

enquanto as meninas mais inseridas nas atividades domésticas; fatores familiares,

permissão da família para certas ocupações, locais ou horários de trabalho; além de fatores

financeiros, em que os baixos salários oferecidos pelo trabalho na rua não atraem as

meninas (Barros & cols., 1991; Cervini & Burger, 1991).

Percebe-se, ainda, uma inserção significativa de meninas em atividades de

exploração comercial sexual. Um sério agravante de tal situação é o fato de essas meninas

não serem consideradas trabalhadoras precoces (Alberto, 2002).

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Vários autores analisam a relação trabalho e gênero em relação ao trabalho precoce.

Especificamente (Cervini & Burger, 1991; Madeira, 1997; Tavares, 2002; Alberto, 2002),

referem-se à existência de uma divisão social e sexual de gênero. Sob essa perspectiva,

Alberto (2002) aponta que a distribuição de setores e atividades de trabalho no contexto

informal de rua, está condicionada às relações sociais de sexo, cujas raízes advêm da

concepção histórico-cultural segundo a qual o espaço público é destinado ao masculino.

Nesse sentido, pode-se questionar até que ponto a maior participação dos meninos

no mercado de trabalho também não implica maiores perdas em relação à escolaridade. De

acordo com Relatório sobre trabalho precoce informal em condição de rua (Alberto & cols.

2006a), constatou-se que as meninas apresentam menos tempo de defasagem do que os

meninos, indicando que, ao longo do processo de escolarização, eles ou são mais

reprovados ou desistem mais do que as meninas. Além disso, conforme será tratado mais

adiante, é fato que trabalhadores precoces adolescentes (Barros & cols., 1991; Rizzini,

1996) são mais vulneráveis à desistência aos estudos. Nesse sentido, o que dizer então

daqueles do sexo masculino.

Por outro lado, não se pode considerar que, uma vez que as meninas têm menor

participação no trabalho informal e urbano, são menos atingidas em sua escolaridade. Pois,

o trabalho doméstico, em que geralmente encontram inseridas, absorve quase que

integralmente o tempo delas com as atividades do lar, o que contribui para uma dedicação

restrita aos estudos e, conseqüentemente, para maiores dificuldades escolares e

probabilidade de se evadirem da escola (Rizzini, 1996; Tavares, 2002; Alberto & cols.

2006b).

Além disso, Tavares (2002), em análise da escolarização de crianças e adolescentes

empregadas domésticas, constatou que com o aumento da idade, aumenta, igualmente, a

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tendência de abandonar os estudar sem terem completado, pelo menos, às quatro primeiras

séries de escolarização. Nesse sentido, a incompatibilidade para conciliar o trabalho e a

escola foi um dos motivos mais apontados entre os participantes desse estudo.

5.1.2 Idade

Em relação à faixa etária dos sujeitos pesquisados, a idade mínima foi de 10 anos de

idade e a máxima de 14 anos. Sendo esta última, a de maior predominância. Os achados

corroboram dados dos demais municípios da Paraíba, onde a faixa etária de 10 a 14 anos é

apontada como a mais significativa para a inserção no trabalho precoce (Alberto & cols. e).

O fato de se encontrar sujeitos trabalhando nessa faixa etária denota uma situação

irregular, com implicações tanto para o processo de desenvolvimento do sujeito, quanto

para o exercício de sua cidadania, uma vez que transgride a legislação internacional, e as

Leis brasileiras, respectivamente: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (Art.

32); a Constituição Federal (Art. 227), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Art. 60);

A inserção no trabalho ao longo dessa faixa etária (10 e 14 anos) traz graves

conseqüências para a escolaridade. De acordo com Cervini & Burger (1991), é

precisamente no início da faixa etária de 10 a 14 anos que aumenta a incorporação desses

sujeitos no mercado de trabalho e a incidência de abandono escolar entre os mesmos. Nesse

período, há uma tendência da escola tornar-se menos atrativa em função de um conjunto de

fatores, tais como: os constantes fracassos escolares; a crescente atração pelo mercado de

trabalho; a maior independência dos recursos da unidade doméstica; e, ainda, a

independência em tomar determinadas decisões em termos de acesso a locais e horários,

antes proibidos (Barros & cols. 1991).

112

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Essa faixa etária, segundo a estruturação do sistema de ensino nacional, se insere na

educação básica, que compreende o ensino fundamental I e II. Em termos evolutivos, essa

fase relaciona-se ao período em que a aprendizagem de conteúdos escolares básicos, tais

como: leitura, escrita, aritmética, noções de ciências sociais e naturais, constituem

requisitos importantes para o desenvolvimento de habilidades e competências intelectuais

futuras, pois se tratam de elementos imprescindíveis para a aquisição de conhecimentos

mais complexos (Vygotsky, 1989; Vygotsky, 1998; Vygotsky, 2000).

Destarte, devido ao trabalho, os trabalhadores precoces não conseguem acompanhar

regularmente os estudos, o que compromete a aquisição dos conceitos científicos, presentes

na instrução formal. Nesse sentido, tendem a não dominar os conhecimentos mais

complexos e abstratos, próprios da evolução natural dos conteúdos escolares, apresentando

defasagens no desenvolvimento de funções psicológicas superiores, tais como: memória,

atenção, generalização, entre outras que são imprescindíveis na aprendizagem dos

conteúdos das diversas disciplinas escolares, contribuindo assim, para serem reprovados,

repetentes e, não raro, evadirem-se do universo escolar.

5.1.3 Escolaridade

De acordo com os dados, o nível de escolaridade das crianças e adolescentes

trabalhadores precoces e participantes deste estudo esboça uma situação em que a questão

da defasagem escolar ocorre de forma significativa. Mais de 50% dos sujeitos participantes

encontram-se cursando séries do ensino fundamental I: 3ª e 4ª séries, sendo esta última a

série de maior prevalência. Constata-se, assim, que aproximadamente 70% deles se

encontram em situação de defasagem escolar. Além disso, tendo em vista a prevalência da

idade de 14 anos, em tese, esses indivíduos deveriam estar freqüentando a 8ª série do

113

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ensino fundamental. Contudo, dos dez sujeitos que têm essa idade, oito estão em séries

anteriores. E o que é mais grave, dentre esses oito sujeitos, cinco ainda estão cursando a 4ª

série, o que implica dizer que mais da metade deles apresenta uma defasagem de quatro

anos na escolaridade. Nesse sentido, constata-se, a mais das vezes, que o trabalho precoce

imprime adversidades e fracassos ao processo de escolarização desses alunos.

Sob essa perspectiva, estudos como os de Ferreira (1979); Bataglia (1993);

Nogueira (1993), Rizzini & cols. (1996); Alberto (2002); Tavares (2002); Estrela (2004);

corroboram com os achados desta pesquisa: o trabalho precoce é incompatível com a

escolarização, tendo em vista o comprometimento da atenção e da participação nas aulas

em função do cansaço físico, o acompanhamento irregular dos conteúdos em função das

constantes faltas, o tempo restrito de se dedicar às tarefas de casa, entre outros aspectos que

dificultam e, até mesmo, impedem a realização das atividades formativas nela inseridas.

Os estudos que versam sobre a relação escola/trabalho entre a população de crianças

e adolescentes, indicam, por sua vez, que o baixo nível de escolaridade tem repercussões

tanto em termos pessoais, uma vez que o indivíduo que não estuda torna-se um adulto com

pouca qualificação profissional e, por isso, mal remunerado; quanto em termos sociais, em

que o nível de escolaridade constitui um indicador significativo da transmissão

intergeracional de pobreza, pois realimenta as desigualdades sociais e perpetua a condição

de miséria das famílias mais pobres (Barros & Santos, 1991; Rizzini, 2002).

Além disso, a vivência do trabalho, em detrimento da escolarização, passa a se

tornar a referência primeira em termos de conhecimentos, ao invés dos referenciais

escolares, os quais constituem um dos principais propulsores do desenvolvimento

intelectual e cognitivo do sujeito (Vygotsky, 2000). Nessa perspectiva, os trabalhadores

precoces, enquanto, alunos, se atêm prevalentemente, ao conhecimento do senso comum e

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das experiências cotidianas, contribuindo para que se tornem leigos no domínio dos

conhecimentos científicos e no capital cultural requerido nas sociedades escolarizadas.

Diante disso, fracassam na escola, pois nesta são exigidas habilidades pautadas em

parâmetros que somente a educação formal poderá oferecer, entre as quais: o raciocínio

lógico, o pensamento abstrato, a linguagem conceitual, os conceitos aritméticos e

algébricos, as generalizações.

Todavia, o comprometimento do processo de escolarização em função do trabalho,

especialmente na faixa etária de 7 a 14 anos, período de escolaridade obrigatória que

abrange o ensino fundamental I e II, traz à tona, também, questionamentos contundentes no

que se refere à legislação específica. Segundo a LDBEN (1996), a oferta do ensino

fundamental deve ser garantida pelo Estado em caráter gratuito e obrigatório, com

características e modalidades adequadas às necessidades e disponibilidades do educando,

através de uma educação que contribua para seu desenvolvimento e inserção social.

Entretanto, o que os dados empíricos apontaram abre precedentes para se questionar até que

ponto o direito à escolaridade fundamental, o qual se encontra inserido no direito mais

amplo da Educação, está sendo cumprido efetivamente, sobretudo, em relação a

determinados segmentos das classes sociais, no caso, as crianças e os adolescentes

trabalhadores precoces.

Ademais, tendo em vista a contaminação do estudo pelo trabalho, observa-se, no

âmbito nacional, o não cumprimento de princípios determinados no Estatuto da Criança e

do Adolescente (Brasil, 1991), Artigos 53 a 59, bem como, no internacional, em se tratando

da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (Convenção, 1989). Essa violação

denuncia o mau funcionamento do organismo estatal brasileiro, respectivamente, por quê:

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• Não está adotando medidas que estimulem a freqüência escolar e a redução do índice de

evasão escolar, especialmente em relação às crianças e adolescentes que trabalham (Art.

28);

• Não cria as oportunidades adequadas e condições de igualdade para a inserção e

participação desses sujeitos na vida cultural da sociedade (Art. 31);

• Não resguarda as crianças e os adolescentes da exploração econômica que interfere na

educação, no desenvolvimento físico, mental e social (Art. 32).

5.1.4 Trabalho

Os sujeitos participantes dessa pesquisa indicaram que trabalhavam como fretistas,

vendedores, olheiro e engraxate, inseridas, portanto, no grupo das atividades informais

urbanas em condição de rua.

Quando do desenvolvimento da territorialização, teve-se a oportunidade de se

observar os diferentes momentos que compõem o desenvolvimento das atividades de

trabalho desses sujeitos.

Os vendedores e os fretistas, cuja territorialização deu-se nas feiras de Jaguaribe, do

Mercado Central e do Bairro dos Estados, estavam sempre em movimento por toda a feira,

pois se fazia necessário que estivessem sempre atentos em oferecer os seus serviços para os

diversos transeuntes daqueles locais. Diante disso, se pôde observar a intensa demanda de

movimentos físicos para esses sujeitos. Assim, fosse para oferecer seus produtos, no caso

dos vendedores, fosse para carregar a feira e o peso das mercadorias nela contidas, no caso

dos fretistas; o cansaço do corpo e a indisposição para estudar seriam inevitáveis.

“Me sinto cansado, o corpo doído” (A., fretista, 14 anos - 3ªsérie).

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“Cansado. Tudo morto” risos (T. B, vendedor de verdura, 12 anos- 6ªsérie).

Não muito diferente acontecia com o trabalhador precoce que engraxava sapatos.

Este ficava constantemente oferecendo o seu serviço aos diversos freqüentadores dos bares

na orla marítima de Tambaú. O qual, quando aceito, igualmente lhe demandava esforço

físico e posturas inadequadas à sua fase de crescimento. A chegada desse trabalhador

precoce àquele local se dava, geralmente, por volta das 19h30min. /20h00min. E sua

partida, depois das 22h30minh. Do que se pode inferir o quanto tal situação o expunha a

uma série de riscos e perigos, agravados, sobremaneira, pela inexperiência da idade.

Com relação ao sujeito que trabalhava como olheiro, seu ambiente de trabalho era

no estacionamento de um supermercado. Comumente, chegava às 13h30min. e só dava por

encerrada a sua jornada quando não houvesse mais cliente estacionando no referido

estabelecimento, por volta 20h00min. Como olheiro, sua atividade de trabalho consistia em

orientar as manobras dos motoristas, fosse para eles estacionarem ou saírem de marcha ré, o

quê lhe exigia constantes movimentos com os braços. Também ajudava em colocar a feira

do cliente no carro, como forma de reforçar o merecimento por algum trocado.

Em termos ocupacionais e econômicos, as referidas atividades abrangem o setor do

comércio (vendedor) e o setor de serviços (olheiro, fretista e engraxate), com destaque para

esse último, cuja representação é de 77% da amostra, uma vez que dos 21 participantes,

quatorze sujeitos trabalham com fretista, cinco sujeitos como vendedores, um como olheiro

e um como engraxate.

A incidência das atividades informais urbanas, em condição de rua, no setor de

serviços, vem sendo constatada por diversos segmentos. Na Paraíba, das 992.820 crianças e

adolescentes na faixa etária de 5 a 17 anos, 129.571 eram trabalhadores, ou seja, 13, 04%;

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sendo que 60% estavam no ramo de atividades agrícola; 15,8%, no setor serviços; e 15,8%,

na atividade comércio (Kassouf, 2004).

Em João Pessoa, 84,1% das crianças e adolescentes inseridas no mercado de

trabalho encontra-se no setor de serviços, cuja tendência, é uma maior concentração de

indivíduos do sexo masculino, com 44,1%, nas atividades desse setor

(Alberto & cols., 2006a).

Esse fato não é recente. Estudos sobre os tipos de atividades desempenhadas por

trabalhadores precoces no Brasil urbano dos anos 80 apontavam que a maioria desses

trabalhadores se concentrava na prestação de serviços, especialmente, em ocupações menos

qualificadas, tais como: vendedores de rua, engraxates, lavadores e guardadores de carro,

catadores de papel, carregadores de feiras (Cervini & Burger, 1991; Rizzini & Rizzini,

1991).

Na atualidade, conforme coloca Antunes (2000), em decorrência da crise estrutural

do capital10, o trabalho passou a assumir novas configurações e abranger outros contextos,

entre os quais a própria expansão do setor de serviços, e, neste, a inclusão precoce de mão-

de-obra de crianças e adolescentes através de trabalhos precarizados. Não obstante, a

configuração da referida mão-de-obra no dias atuais, denota o caráter de exclusão destes

indivíduos em relação aos seus direitos básicos de cidadania, assim como a omissão do

Estado em termos de uma fiscalização mais efetiva desta situação.

• A idade de ingresso no trabalho:

Os dados mostraram que a faixa etária de ingresso no trabalho varia de 5 a 14 anos,

sendo a idade de 12 anos a de maior prevalência. A despeito da grande concentração na

10Assunto tratado no capítulo sobre trabalho.

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faixa de 8 a 13 anos, com 77%, apareceu a faixa de 5 a 6 anos com 15% e, ainda, aqueles

que declararam ter começado a trabalhar no início do ano corrente, e até no próprio dia da

entrevista. Esses sujeitos demonstraram-se pouco à vontade em declarar que já

trabalhavam, denotando, assim, omissão e vergonha em ter que assumir uma condição que

os impele para uma situação duplamente estigmatizada: o ingresso precoce no trabalho e a

lida em atividades socialmente desvalorizadas, conforme se constata no discurso abaixo,

quando indagados sobre quando começaram a trabalhar:

“... Aqui na feira eu cumecei agora mesmo” (W., vendedor de dindim, 11 anos-

6ªsérie).

Esse mesmo sujeito, quando indagado, posteriormente, sobre a idade com que

começou a trabalhar, entrou em contradição respondendo:

“... Com uns dez anos. Não, acho que com uns nove ano”.

Um outro discurso ilustrativo dessa situação pode ser verificado na fala abaixo, em

que o sujeito deixa transparecer a vergonha de trabalhar, esboçando uma explicação

antecipada sobre seu trabalho, cuja resposta não requeria, necessariamente, a informação

que ele expressou. Este sujeito, quando indagado sobre como é trabalhar e estudar, relatou:

“... Bem né? Mas vô trabalha só até o São João. São João eu vô pará e istudá de

manhã.” (E., fretista 14 anos-5ªsérie).

Por outro lado, entre aqueles que ingressaram com cinco anos, a justificativa mais

comum para a precocidade em trabalhar relacionava-se à necessidade ou ao querer de

acompanhar os pais, principalmente, os que trabalhavam em feiras livres como vendedores

no “negócio da família” (banca de venda de frutas, debulho e venda de feijão verde). Nesse

sentido, verificou-se que o que antes era uma contribuição informal no desenvolvimento de

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algumas atividades e, por isso, sem a conotação de dever, com o aumento da idade e da

capacidade de realizar algum trabalho, tornou-se um elemento determinante para uma

participação mais efetiva nas obrigações familiares, e, progressivamente, para uma inserção

mais definida nas atividades de trabalho. Fatos que vem a ratificar com a cultura do

trabalhador, segundo a qual, para os filhos das classes populares, o trabalho, mesmo em

idade precoce, é uma forma de ocupar o tempo e aprender um ofício. Nessa perspectiva, o

trabalho é entendido não só como uma necessidade, mas também como uma virtude (Vogel

& Mello, 1991).

Destarte, sob essa perspectiva, têm-se delineadas as condições de infância das

crianças de classes populares, dados também assinalados nos estudos de Dauster (1992),

Sarti (1995), Moreira & Stengel (2003). De acordo com esses autores os “privilégios”

próprios do período da infância, entre os quais a liberação das obrigações de trabalho, são

perdidos à medida que crescem, dando lugar a realização de algumas tarefas no cotidiano,

geralmente, em detrimento do brincar, e, não raro do estudar.

• Motivos da inserção precoce no trabalho:

Na retórica das justificativas que as crianças e adolescentes apresentaram a respeito

de sua inserção precoce no trabalho, o caráter de necessidade encontra-se muito presente

em seus discursos. Tais necessidades assumem conotações que abrangem desde a mais

completa precisão, tendo em vista a indispensabilidade da contribuição de seu trabalho para

o sustento familiar, até a satisfação de necessidades pessoais, como a vontade de ganhar o

próprio dinheiro e ter uma ocupação, o quê denota ter uma ampla aceitação por parte da

família.

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Dentre aqueles que apontaram como motivo a ajuda no sustento da família, mais de

50% dos sujeitos, a necessidade de comprar alimentos foi sobremaneira significativa.

Constatou-se, ainda, o sofrimento que essa situação impõe, fosse de forma mais explícita,

através das lágrimas que saltavam dos olhos, fosse de forma mais implícita, através da

própria expressão do olhar ou, em alguns momentos que o silêncio repentino tomou o lugar

da fala. Assim, quando indagados sobre o porquê de trabalhar, responderam:

“Porque eu divia (no sentido de precisava). Divia ter trabalhado pra ajudá meu pai.

Pra comprá cumida.” – Choro. (J., engraxate, 13 anos - 4ªsérie).

“Porque na minha casa tava precisando”. Quando indagado sobre o quê estava

precisando, respondeu:“Precisando de alimentação”. – Silêncio (R., fretista, 10 anos -

4ªsérie).

“Porque eu quis trabalhá mesmo, pra mim dá de comê a minha mãe, meus irmão.”–

Silêncio. (A., fretista, 14 anos - 3ªsérie).

Quando a iniciativa de começar a trabalhar parte da própria criança ou do

adolescente, entram em jogo motivos familiares e pessoais. Assim, não somente a questão

da necessidade de ter que contribuir com o orçamento familiar é relevante, mas também, a

vontade de possuir ou usufruir coisas que, ante a impossibilidade dos pais em suprir, o

ganho advindo do trabalho pode proporcionar. Sob essa configuração, os discursos

expressavam os seguintes motivos para o ingresso no trabalho:

“Porque quando a pessoa quisesse, a pessoa tinha as coisa da pessoa. Não precisava

de ninguém pra comprá pra pessoa. Pra num sê humilhado.” (W., fretista, 11 anos - 3ªsérie).

“Pra comprar minhas roupas, porque eu preciso. Comprar os livro quando precisar.”

(J., fretista, 14 anos - 8ªsérie).

“Porque eu quiria ganhá dinheiro.” (D., olheiro, 13 anos - 4ªsérie).

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“Porque peu tá sem dinheiro ? Aí tinha de trabalhá pra comprá meus negoço.” (W.,

fretista, 10 anos - 4ªsérie).

De acordo com Vogel & Mello (1991), a carência e a percepção de que se está

passando necessidade engendram a precisão, fazendo com que seja concebida, tanto pela

família quanto pelo próprio sujeito (criança ou adolescente), a decisão de obter recursos no

mercado de trabalho.

No caso de a decisão partir da família, “incentivando” os filhos ao trabalho,

“permitindo” que eles trabalhem, ou, ainda, “colocando-os para trabalhar”, esta não é

considerada apenas uma estratégia de sobrevivência para prover a insuficiência das

condições materiais, mas também, uma forma de ratificar a concepção cultural segundo a

qual, é chegado o momento em que, não só se precisa, como se deve trabalhar (Vogel &

Mello, 1991; p. 138). Nessa perspectiva, os discursos dão conta dos seguintes motivos:

“Ah porque minha mãe que trazia eu. – Silêncio. Trazia eu desde piquena.” (J.,

vendedora na feira, 14 anos - 7ªsérie).

“Porque eu gosto de ajudá a minha mãe e a meu pai Aí tinha de trabalhá pra comprá

meus negoço.” (G., fretista, 14 anos - 8ªsérie).

Além desses aspectos, verificou-se, ainda, o trabalho como uma forma de ocupação

para preencher o tempo, o quê vem a corroborar com estudos anteriores

(Rizzini & Rizzini, 1991; Vogel & Mello, 1991; Rizzini, 2002). Nessa perspectiva, os

discursos que seguem ilustram tal situação:

“Porque eu num gosto de ficar parado em casa não.” (T.B., vendedor na feira, 12

anos - 6ªsérie).

“Porque é bom, é milhó do que ficá em casa o dia todim sem fazer nada.” (J.,

fretista, 14 anos - 5ªsérie).

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Todavia, a despeito de uma análise simplista sobre tal motivo, é preciso entender

que ocupar o tempo trabalhando não é apenas uma entre tantas opções, mas a única opção

que se apresenta a esses sujeitos ante as condições em que estão inseridos, condições essas

implicadas sobremaneira por fatores culturais, como a disseminação de uma apologia ao

trabalho entre as classes populares; por fatores econômicos, qual seja a falta de recursos da

própria família em prover atividades educativas para ocupar-lhes o tempo, como o custeio

de esportes, cursos de língua, de informática; e a própria omissão do Estado, no sentido de

adotar políticas públicas que promovam a participação da criança e do adolescente em

programas sócio-educativos, e não no trabalho, principalmente quando este se dá em

detrimento da formação intelectual viabilizada pela escola.

Além disso, a busca de uma ocupação para as crianças e adolescentes das classes

trabalhadoras, geralmente, se dá através do trabalho. Para esses sujeitos, à medida que

ficam com mais idade, perdem o privilégio de não trabalharem passando da condição de

“sustentados” para contribuir no orçamento familiar. Nessa perspectiva, se observa que

para eles a infância acaba mais cedo (Stengel & Moreira, 2003; Sarti, 1995; Dauster, 1995).

• A jornada de trabalho:

Sob a perspectiva da precariedade que permeia o trabalho precoce, a jornada de

trabalho configura-se como exemplo dessa situação. Conforme as evidências empíricas, a

jornada de trabalho dos sujeitos pesquisados é de 5 a 6 horas por dia. Foram identificadas,

também, jornadas diárias que ultrapassavam oito horas, carga horária determinada por Lei

para um trabalhador comum. Todavia, em se tratando do trabalho da criança, o qual é

legalmente proibido, e do adolescente, que deve obedecer a determinadas prescrições,

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constata-se uma situação que viola duplamente esses sujeitos: na infringência dos direitos

de cidadania, e na desconsideração de conseqüências biopsicossociais, dentre essas as que

têm implicações cognitivas e afetivas.

Sobre esse aspecto, Moura (1995) assinala que crianças e adolescentes quando

submetidos a uma organização de trabalho (jornada, ritmos de trabalho, exigências de

produção) inadequada até para os adultos, estão predispostos a seqüelas que ficam para o

resto de suas vidas. Por outro lado, essas seqüelas não abrangem apenas a dimensão física,

provocando deformações no sistema ósteo-articular e muscular; mas igualmente, a

dimensão psíquica, gerando conflitos e frustrações; e a dimensão cognitiva, restringindo o

desenvolvimento de habilidades cognitivas que tem, na infância e na adolescência, o seu

período ideal para acontecer.

Observou-se, ainda, que a intensidade da jornada de trabalho varia em função dos

seguintes aspectos:

• A fase de desenvolvimento: os adolescentes se vêem com maior necessidade de

trabalhar do que as crianças, seja para ajudar a família, seja pela vontade de ganhar o

próprio dinheiro;

• O dia da semana: há determinados dias na semana nos quais a oportunidade de trabalho

é mais intensa, o que demanda uma jornada de trabalho maior. Como é o caso das

crianças e adolescentes que trabalham como carregadores de frete ou como vendedores

nas feiras livres11, e aqueles que olham carro nos estacionamentos de supermercados.

11 É comum existir um dia específico para a realização da feira em determinados bairros da cidade, nesse dias não raro a jornada de trabalho se estende ao longo dos três turnos.

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• A participação da família: quando os sujeitos trabalham com a família por perto,

principalmente na comercialização de produtos, em que demais membros da família

também estão inseridos (irmãos, primos), existe uma tendência em se delimitar o tempo

de cada um, numa espécie de rodízio. O quê não se observou entre os trabalhadores

precoces que trabalham como olheiros de carro, fretistas e engraxates, os quais se

encontram sozinhos no ambiente onde trabalham, e a necessidade do ganho é que define

a hora de parar.

Nessa perspectiva, ressalta-se que o dia de trabalho dos trabalhadores precoces lhes

impõe uma rotina que implica cansaço físico (dores no corpo, na cabeça), mental

(sobrecarga de responsabilidades, falta de coragem - desânimo) e, sobretudo, privações do

brincar, do estudar, face às longas e exaustivas jornadas de trabalho diárias e semanais,

enfim, da própria condição de ser criança e adolescente. Sob tais circunstâncias, se constata

mais uma vez a dificuldade que é para esses sujeitos conciliar trabalho e escola, cujas falas

indicam a dimensão de quão incompatível é essa relação.

“Porque a pessoa vai cansado pro colégio, num olha direito a tarefa. Assim...

(silêncio) num faz as prova direito. Só pensa de i pra casa durmi. Aí num faz a prova

direito.” (A., vendedor na feira, 14 anos - 4ªsérie).

“Difícil. Porque eu chego im casa mais, aí tenho que ir pro colégio cansado. Aí lá eu

discanso no colégio” (A., fretista, 13 anos - 4ªsérie).

Diante do exposto, se tem uma noção do quanto conciliar trabalho e estudo é

realmente difícil para esses alunos, a começar pela própria condição física e biológica, que

tem no cansaço e no sono os principais desafios. Nessas condições, infere-se que a hora da

aula, longe de ser um momento de aprendizagem e atenção, torna-se uma, entre as poucas,

oportunidades de descanso.

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Nesse sentido, entende-se a razão por que para todos os sujeitos, sem exceção,

mesmo para aqueles que não têm uma jornada de trabalho que se estende pelos três turnos

do dia, o trabalho é, pelo menos no plano ideal, preterido pelo estudo. Fato que se

comprova nos depoimentos que seguem, quando os sujeitos foram indagados sobre o que

acham de trabalhar e estudar:

“Trabalhar é bom, eu tô ganhando meu dinheirim. Sendo que eu tô me prejudicando

também porque eu trabalhando tô deixando também de estudar.” (W., vendedor de dindim,

11 anos- 6ªsérie).

“Trabalhar e estudar é uma responsabilidade muito grande. Porque a gente trabalha

e estuda ao mesmo tempo... Eu gosto muito de estudar. Se eu pudesse só estudava.... aí eu

vou ter uma vida que todas as crianças pode ter: estudando” (J., vendedora de feijão verde,

14 anos- 7ª série).

“Muito difícil. Porque eu trabalho olhando carro e fico muito cansado.” (D., olheiro,

13 anos- 4ªsérie).

A realidade escolar dos trabalhadores precoces esboça uma situação paradoxal.

Numa época em que crianças e adolescentes ascendem à condição de sujeitos de direitos e,

portanto, cidadãos, fato legalizado desde que o Estatuto da Criança e do Adolescente

passou a vigorar em 1990, o processo de escolarização desses sujeitos é sobremaneira

implicado por situações que vão de encontro às suas determinações legais. Tomando por

base os capítulos IV e V do referido documento que tratam, respectivamente, do direito à

educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; e do direito à profissionalização e a proteção no

trabalho, é patente a lacuna que há entre o que existe de direito, mas não se concretiza

enquanto fato. O mesmo também se constata em relação à Constituição Federal,

especialmente no que se refere à defesa dos direitos sociais; e à LDBEN, enquanto a

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legislação nacional específica para a educação. Deste modo, a despeito de tantos outros

aspectos, a própria jornada de trabalho que cansa, limita e interfere na vida escolar desses

sujeitos (Alberto, 2002; Stengel & Moreira, 2003; Tavares, 2003; Estrela, 2004) denuncia

tal paradoxo.

Outrossim, uma vez que, no plano do direito existe uma legislação que não está

sendo efetivamente cumprida, os reflexos se dão no plano do contexto social. Cujas

conseqüências, entre as quais: a idade precoce para trabalhar, os motivos que levam a tal

situação e a própria jornada de trabalho, constituem adversidades que interferem,

sobremaneira, no processo de escolarização dos trabalhadores precoces. Pois que, conforme

se constatou, esses aspectos os afastam da escola, levando-os a faltar às aulas e, não raro, a

abandonar os estudos. O que compromete o desenvolvimento de habilidades intelectuais

mais elaboradas, as quais são viabilizadas pelo aprendizado escolar, em que cada assunto

tratado tem sua relação específica com o curso do desenvolvimento mental global

(Vygotsky, 1998). Nesse sentido, a escola não poderá desempenhar junto a esses sujeitos o

papel de mediação da apropriação do saber sistemático, elemento decisivo no

aprimoramento das funções psicológicas superiores, nem na construção de capacidades que

lhes permitam a transformação de sua condição social.

• O entendimento sobre o trabalho precoce e as perspectivas de futuro:

Para as crianças e os adolescentes trabalhadores precoces, a situação de trabalho é

entendida a partir da interação entre duas instâncias: a demanda da família e do próprio

sujeito. O trabalho representa tanto uma necessidade social, no caso da contribuição

compulsória no orçamento familiar, quanto uma satisfação pessoal por estar se ocupando

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em algo e, conseqüentemente, sendo útil de alguma forma, e tendo a oportunidade de

ganhar para comprar “suas próprias coisas”. Não obstante, a despeito das crianças e

adolescentes, trabalhadores precoces, verbalizarem que o trabalho lhes ocupa o tempo,

afasta-os da “vagabundagem” e é, principalmente, uma forma de ter dinheiro no bolso, o

estudo é indicado por todos como o mais importante para a vida futura. Sob essa

perspectiva, quando foram indagados sobre a preferência entre trabalhar e estudar, esta

última, constituiu a aspiração maior, denotando o quão o ingresso precoce no trabalho é

prevalentemente mais uma questão de precisão do que de opção.

Percebeu-se, ainda, uma significativa valorização do estudo em relação ao trabalho,

bem como, a concepção de que este é um das formas principais de conseguir um trabalho

melhor, conforme se constata nas seguintes falas.

“(...) a pessoa tem de istudá primero pra depois trabalhar, né? Istudá é mais melhó.

Se num istudá você num arruma trabalho” (A., fretista, 13 anos- 4 ª série).

“(...) a pessoa sem estudo num arranja um emprego, né? A pessoa tem que istudar

bem pra se empregá” (E., fretista, 14 anos- 5 ª série).

“Porque estudá é um negoço muito bom. A pessoa aprende a lê, e passa de série pra

arrumá um trabalho bom, legal” (A., fretista, 14 anos- 3 ª série).

Por outro lado, a despeito do reconhecimento do estudo como um dos elementos

determinantes para se conseguir “uma vida melhor”, as perspectivas de futuro esboçadas

revelaram, em sua maioria, a lacuna existente entre o real e o ideal para esses sujeitos,

tendo em vista as condições materiais em que estão inseridos. Nesse sentido, tais

perspectivas relacionavam-se, predominantemente, à escolha de uma profissão cujo

exercício não demanda, necessariamente, o domínio de competências intelectuais nos

moldes que a formação básica escolar e acadêmica pode oferecer.

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Assim, dos vinte e um trabalhadores precoces desta pesquisa, sete expressaram a

vontade de se tornarem profissionais com uma formação universitária, tais como: medicina

(2), educação (professora-1) e direito (juiz-1; delegado-1; advogado-2). Entre os demais,

seis não esboçaram qualquer definição profissional como perspectiva de futuro, atribuindo

esta à vontade divina; um deles revelou aspirar a uma profissão considerada de celebridade:

jogador de futebol; quatro indicaram profissões de conotação heróica: policial; e três

indicaram aspirações profissional relativas à cultura do trabalho, qual seja “ser um bom

trabalhador”.

Diante do exposto, constata-se que se, por um lado, o estudo é identificado como

um elemento de mobilidade social, segundo o qual:

“... a pessoa vai estudando pra ser alguém na vida. E estudo tem futuro.” (W.,

fretista, 14 anos- 6ª série);

por outro lado, a visão da criança ou do adolescente, trabalhador precoce, em

relação ao seu futuro encontra-se condicionada à sua realidade, cujas aspirações de trabalho

são, geralmente, relativas às profissões oriundas de uma cultura do trabalhador, ou, até

mesmo, de atividades pouco qualificadas, conforme retratam as falas que seguem:

“Um bom trabalhadô, alguém na vida, manter a minha mãe, minha família é isso.”

(W., fretista, 14 anos - 6 ª série).

“Um policial.” (D., olheiro, 13 anos - 4 ª série).

Os resultados referidos acima, também encontrados em estudos anteriores,

(Rizzini & Rizzini 1991; Alberto, 2002; Lira, 2003; Estrela, 2004), denunciam mais uma

vez a dissonância do que está determinado na Lei, entre as quais a Lei 8.069/1990, segundo

a qual: A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno

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desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para

o trabalho... (Art. 53); e o que é cumprido efetivamente.

Nesse sentido, se, por um lado, no âmbito dos direitos sociais das crianças e dos

adolescentes trabalhadores precoces, a consolidação dos mesmos tem se mostrado distante

diante da realidade que se apresenta; no âmbito da formação cognitiva não é muito

diferente. Pois, considerando-se que as Leis em defesa desses sujeitos não estão sendo

cumpridas, o quê constitui uma violação dos seus direitos, também não lhes são

asseguradas às condições necessárias a um desenvolvimento intelectual de qualidade. Este,

segundo Vygotsky, ocorre, principalmente, em função da qualidade do contexto social em

oferecer experiências significativas na relação com o ambiente, cuja concretização tanto

contribui para o prosseguimento do processo de desenvolvimento, quanto, para o recuo

deste, quando da ausência daquelas (Van Der Ver & Valsiner, 1991).

Nessa perspectiva, é a escola um dos principais elementos propiciadores de

experiências significativas, seja porque nela se dá a interação social com os pares e adultos

mais capazes, seja pela instrução explícita em sala de aula, que amplia as situações de

colaboração e imitação e, conseqüentemente, a zona de desenvolvimento imediato, que por

sua vez, impulsiona a transição das funções psicológicas inferiores para funções superiores

cada vez mais aprimoradas. Assim, a não ida à escola, bem como a inconstância em

freqüentá-la, interfere na construção de elementos importantes, como a zona de

desenvolvimento imediato, em que se realiza a influência da aprendizagem sobre o

desenvolvimento.

• O trabalho precoce e o tempo de brincar:

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Para além das implicações escolares, em que o trabalho precoce dificulta, quando

não impede, o processo de escolarização formal, o tempo que o brincar ocupa no cotidiano

das crianças e adolescentes participantes desta pesquisa só vem a corroborar o que outros

estudos identificaram como oportunidades perdidas (Marcus& Harper, 1998). Pois, a

realidade das crianças e adolescentes trabalhadores precoces mostra que o tempo de brincar

não consiste numa atividade que faça parte da rotina diária dos mesmos.

A despeito de alguns sujeitos, participantes do estudo, predominantemente as

crianças, relacionarem o tempo de brincar aos momentos de folga do trabalho (no intervalo

entre um frete e outro, “quando o movimento está fraco” – para vender, olhar carro ou

engraxar sapatos), percebeu-se que estes são momentos fortuitos, em que a brincadeira

constitui mais um “jeitinho” de lidar com o cansaço e a ansiedade, na espera pelo próximo

cliente, do que um momento genuíno de descontração.

Todavia, autores como Graciani (1997) ressaltam o equívoco em se considerar que o

brincar pode ocorrer em qualquer circunstância, pois, embora o caráter de ludicidade da

brincadeira seja um elemento presente na vida das crianças, para que haja a expressão

genuína desta atividade é imprescindível a suspensão da obrigação e do constrangimento.

Fato que vai de encontro com as lacunas de tempo no trabalho e na escola que caracterizam

o momento disponível para as brincadeiras das crianças e adolescentes trabalhadores

precoces.

Constatou-se, ainda, que se, por lado as crianças identificaram que brincam, quer

seja à noite quando chegam em casa, quer na hora do recreio da escola; por outro lado,

entre os adolescentes, percebeu-se que é como se para muitos deles o brincar e a

brincadeira não fizessem mais parte da sua rotina. Mesmo aqueles que verbalizaram sobre o

seu tempo de brincar, apontaram-no como uma atividade esporádica, que só acontece nos

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finais de semana, geralmente aos domingos. Além disso, constatou-se que a televisão,

especialmente a programação novelística, vem ocupando o lugar da brincadeira para as

meninas.

“Num tenho hora de brinca, só no domingo mesmo.” (G., fretista na feira, 14 anos -

8ªsérie).

“As veis né? No domingo. Amanhã mermo eu vô lá pu alto, aeroporto. Pá piscina

né? Pelo menos um dia na semana.” (W., fretista, 14 anos - 6ªsérie).

“Eu num brinco não, mais não, eu num gosto não. Só assistir” (A., vendedor na

feira, 11 anos - 5ªsérie).

Nessa perspectiva, verifica-se que as responsabilidades prematuras e as demandas

de uma vida adulta tomaram o lugar das brincadeiras. Sobre este aspecto, autores assinalam

o quão a infância das crianças e adolescentes que trabalham acaba cedo dando lugar ao

trabalho (Stengel & Moreira, 2003); bem como, um processo de adultização precoce em

que estes sujeitos assumem papéis sociais destinados ao adulto, pois, lhes é imposto o papel

de provedor do grupo que pertence (Alberto, 2002). Nesse sentido, uma vez que se deparam

com obrigações, numa fase da vida em que o estudo deveria ser a única atividade que lhes

exigisse dedicação, são cerceados da vivência de momentos necessários ao

desenvolvimento afetivo e cognitivo, entre os quais àqueles propiciados pela brincadeira

(Vygotsky, 1998).

Outrossim, segundo Sampaio & Ruiz (1996), o indivíduo que não brinca ou não

dispõe de tempo especulativo e de observação desinteressada, não se estrutura enquanto um

adulto psiquicamente saudável, que desenvolva sua inteligência no sentido de equilibrar, de

forma crítica e criativa, os elementos cognitivos e emocionais. Além disso, quando da

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inserção precoce na produção, sobretudo na produção desqualificada, se torna um sujeito

passivo, adestrado e tolhido em suas potencialidades.

Conforme suscitado nos aportes teóricos deste estudo, é importante reiterar a

relevância que Vygotsky (1998) atribui ao brincar, entendido num sentido amplo e

abrangendo desde o brinquedo em si ao ato de brincar – a brincadeira, enquanto momento

de fundamental importância para o processo de desenvolvimento cognitivo e afetivo do

indivíduo. Assim, são através das brincadeiras, que crianças e adolescentes organizam seus

conflitos e emoções, forjando a base afetiva do convívio com outrem, bem como,

apreendem e reelaboram conceitos da realidade objetiva para compor parâmetros cognitivos

fundamentais ao seu desenvolvimento intelectual.

Destarte, a despeito de este estudo respaldar-se teoricamente nos pressupostos de

Vygotsky, entre os quais os que se referem ao brincar (Vygotsky, 1998), não se pretende

fazer uma análise do desenvolvimento cognitivo a partir do mesmo, até porque a questão

central neste é a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização. Todavia, o

fato de alguns sujeitos dessa pesquisa não mais vivenciarem momentos de brincadeira, ou o

fazê-lo de forma inconstante e restrita, remete às implicações apontadas por Vygotsky que

se refletem no desenvolvimento escolar. Nesse sentido, assinala-se a importância da

brincadeira para o desenvolvimento de aspectos relevantes no processo de escolarização,

tais como: a linguagem escrita, através do uso do simbolismo e do sistema de signos; o

pensamento abstrato, relacionado à criação das situações imaginárias, próprias do brincar

(Vygotsky, 1998); assim como, a zona de desenvolvimento imediato, uma vez que na

brincadeira, o sujeito se comporta num estágio mais adiantado do que no comum

(Vygotsky, 1998; Van Der Ver & Valsiner, 1991).

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5.2.Trabalhadores precoces: aspectos de sua escolarização

O trabalho precoce tem implicações no processo de escolarização da criança e do

adolescente porque contamina o tempo da escola os afastando-os da mesma. Entre as

justificativas apresentados para os fracassos escolares, a questão do trabalho é sempre

colocada, seja explicitamente: “Repeti porque eu vim pegá frete pra comprá o remédio da

minha mãe.” (E., fretista, 14 anos - 5ªsérie); seja, ainda, implicitamente:

“Faltei muita aula. Não tinha tempo pra estudá.” (J., fretista, 14 anos - 5ªsérie).

“Faltava muito. Tinha de ajudar minha mãe.” (A., fretista, 13 anos - 4ªsérie).

Sob as circunstâncias do trabalho, são comuns histórias de reprovação, repetência,

abandono escolar, baixos níveis de escolaridade, defasagem e analfabetismo juvenil

(Cervini & Burger, 1991; Rizzini, e cols., 1996; Alberto, 2002; Kassouf, 2002). Além

disso, seja em função do tempo que vai ser preenchido pelo trabalho, seja em função do

cansaço proveniente do mesmo, as faltas são constantes:

“Eu digo à professora: professora eu num vô vim hoje, que eu vô faltá. Eu vô

trabalhá.” (A., fretista, 14 anos - 4ªsérie).

“As veis chego tarde, aí num dá pra i pra aula. Aí eu peço a ela (a professora) pra

faltá.” (A., vendedor na feira, 14 anos - 4ªsérie).

“É porque nas quarta-feira a professora num bota falta em mim não, porque ela

sabe, ela já me viu ... (na feira) aí ela num bota falta in mim não.” (R., fretista, 10 anos -

4ªsérie).

“Porque se eu saí da praia ou do centro muito tarde, quando eu chegu im casa, eu

chegu muito cansadu pra se acordá de manhã. Eu se acordo cansadu, tem dia que eu num

vô nem pru colégio istudá .” (J., engraxate, 13 anos - 4ªsérie).

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Todavia, se essas implicações não podem ser atribuídas somente ao trabalho, não se

pode ignorar que este lhes impõe sobrecargas de atividades e de responsabilidades

inadequadas à fase de desenvolvimento em que se encontram. Principalmente, quando os

motivos que levam a criança ou o adolescente ao mercado de trabalho são de natureza

compulsória como, por exemplo, a necessidade de contribuir no sustento familiar.

Conforme Rizzini & cols. (1996), quando o trabalho das crianças constitui,

predominantemente, uma estratégia de sobrevivência das famílias mais pobres, os efeitos

negativos sobre a escolarização tendem a ser mais fortes. Nessa perspectiva, entende-se que

trabalhar e estudar, além de implicar uma rotina cansativa, torna-se mais agravante quando

da carência, ou, até mesmo ausência, das mínimas condições de estrutura, tais como:

alimentação, saúde, convivência familiar, moradia, lazer.

No que se refere à amostra desta pesquisa, a despeito de todos se dizerem estar

estudando, para a maioria o “estudar” é restrito aos poucos momentos em que estão na

escola. Nesse sentido, percebe-se a questão da tarefa de casa, a qual não é vivenciada como

uma atividade diária, mas esporádica, a mais das vezes realizada à noite, nos finais de

semana, ou, ainda, entre o intervalo da escola e do trabalho. Conforme as falas que seguem:

“Quando eu chego do colégio. Dez hora. Porque de manhã num dá tempo, né ? Nem

de tarde.” (W., freista, 14 anos - 6ªsérie).

“De noite, ou se não no domingo.” (J., vendedora de feijão, 14 anos - 7ªsérie).

“Quando eu chego do colégio aí eu faço logo pra pudê vim pra cá. Eu largo de onze

hora. Eu faço logo, adepois eu tomo banho, almoço e venho pra cá.” (J., engraxate, 14 anos

- 4ªsérie).

Não obstante, esclarece-se que fazer a tarefa escolar no período noturno, não é

necessariamente inadequado ou inútil. Contudo, quando se trata de fazê-la após um dia de

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trabalho, tal fato já assume outra conotação, uma vez que a jornada de trabalho acarreta

dores físicas, cansaço do corpo, sono, aspectos que comumente se refletem no

comportamento em sala de aula através de inquietações e da própria falta de concentração

nas aulas.

Corroborando os estudos anteriores (Cervini & Burger, 1991; Rizzini & cols., 1996;

Kassouf, 2002; Alberto, 2002; Alberto & cols 2006a), constatou-se uma defasagem escolar

significativa entre as crianças e os adolescentes trabalhadores precoces que participaram

deste estudo, 14 (quatorze) deles, do conjunto dos (vinte e um) encontram-se em séries

inferiores à sua faixa de idade. Além disso, chama atenção, ainda, o tempo dessa

defasagem, que é de 3 (três) anos entre 50% dos mesmos.

Nessa perspectiva, encontrou-se entre os participantes uma prevalência de sujeitos

com idade de 14 anos (48%) e baixo nível de escolaridade, cursando séries do ensino

fundamental I, mais precisamente a 4ª série, quando já deveriam estar em séries do ensino

fundamental II. Percebeu-se, ainda, um maior número de sujeitos mais velhos nas primeiras

séries do ensino fundamental I, e a ausência, quase que diretamente proporcional, nas séries

mais adiantadas do ensino fundamental II.

Em se tratando da 4ª série, ano escolar em que se encontram nove dos vinte e um

sujeitos, dados da Secretaria de Educação e Cultura – SEDEC (Censo Escolar, 2004)12

também indicam um número significativo de sujeitos com distorção idade-série na 4ª série,

dada a predominância de alunos na faixa etária de 12 a 14 anos. Conforme o quadro que

segue:

Distorção idade-série na rede pública municipal e estadual na 4ª série do ensino fundamental I

Rede Município 12 anos 13anos 14anos Distorção Total/4ª S. %Estadual João Pessoa 612 392 256 1260 466 27,0

12Estes dados são referentes ao ano de 2003, os quais foram divulgados no final de 2004 (SEDEC).

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Municipal João Pessoa 885 533 409 1827 753 24,3Fontes: Secretaria de Educação e Cultura – SEDEC (Censo Escolar, 2004).

Considerando, ainda, que os sujeitos dessa pesquisa são, todos, alunos da rede

pública de ensino, seja em nível de estado, ou de município, pode-se inferir que eles, entre

tantos outros atores sociais que também precisam conciliar trabalho e estudo, fazem parte

da população de alunos que apresentam distorção idade-série no fundamental. Nessa

perspectiva, se reconhecem, nas sucessivas repetências, reprovações e abandonos escolares,

os principais determinantes dessa situação. Assim, quando indagados sobre os referidos

fracassos escolares, são comuns relatos como:

“Me lembro não. Foi um monte” (A., freista, 14 anos - 4ªsérie).

“Porque eu vim pegá frete e num estudei, aí eu sê reprovado.” (E., freista, 14 anos -

5ªsérie).

“É foi porque eu num tinha passsado, eu fui ripitindo direto (...)Eu num passei

porque eu perdi, eu fiquei dois ano sem estudá. Dois ano.(...) Ainda eu vô quere istudá, esse

ano ainda to estudando”. (A., freista, 14 anos - 3ªsérie).

Destarte, esse mesmo sujeito, quando contatado posteriormente para fazer a análise

do domínio de conteúdos escolares, já havia abandonado os estudos mais uma vez.

Os dados dão conta de que das 21 crianças e adolescentes desse estudo, 15 já foram

reprovados e, igualmente, 15 já repetiram de série pelo menos uma vez, o que corresponde

a mais de 70% da amostra. De acordo com os sujeitos, a série em que ocorreu o maior

número de reprovação e repetência, foi a 2ªsérie do ensino fundamental I.

Não obstante, apesar da precariedade que permeia o processo de escolarização dos

referidos sujeitos, eles ainda preservam a valorização nos estudos e persistem em estudar,

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mesmo que isso implique abandonar os estudos no ano letivo corrente e voltar a se

matricular no ano seguinte. Em relação a esse aspecto, dos vinte e um sujeitos que fizeram

entrevista, dois deles, quando contatados para realizar a análise de domínio de conteúdos,

cerca de um mês depois, verbalizaram que tinham abandonado os estudos.

O fato de esses indivíduos tentarem continuar estudando, a despeito da alternância

entre o abandono e o retorno aos estudos, esboça uma situação que tende a se modificar, à

medida que as crianças, trabalhadores precoces, tornam-se adolescentes. Segundo (Cervini

& Burger, 1991; Rizzini, 1996; Rizzini, 2002), os adolescentes são mais vulneráveis a

abandonar os estudos. De acordo com esses autores, dentre os fatores que impelem o

adolescente a optar pelo trabalho, em detrimento do estudo, são muito pertinentes àqueles

relacionados ao processo de escolarização. Assim, a entrada tardia na escola, os freqüentes

abandonos temporários, a repetência, a reprovação, o atraso etário com relação à série, são

elementos que contribuem significativamente para uma crescente preferência em trabalhar.

Sob essa perspectiva, o trabalho passa a ser visto como uma aspiração mais concreta e

imediata, ao passo que completar a escolaridade torna-se cada vez mais distante e difícil.

Outrossim, os dados desse estudo corroboram outras pesquisas ao apontarem a

crescente independência com a idade como um dos fatores propiciadores para o ingresso

precoce no mundo do trabalho (Barros & cols., 1991; Cervini & Burger, 1991). Nesse

sentido, demandas que antes não existiam, como, por exemplo, a necessidade de manter-se

em termos do vestir, do calçar, enfim, necessidades tais que a própria família não tem como

oferecer, se configuram como motivos para trabalhar. Simultaneamente a esses fatores,

estudar passa a se tornar uma atividade relegada a segundo plano, geralmente realizada à

noite e que, com o decorrer do tempo, é finalmente abandonada.

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De acordo com os dados empíricos, dos 10 sujeitos que tinham 14 anos de idade,

50% já estudavam à noite. Para esses, a tentativa de conseguir um rendimento financeiro

melhor, trabalhando nos turnos da manhã e da tarde, paradoxalmente, lhes rende um

aproveitamento escolar medíocre, decorrente do cansaço do corpo e da falta de disposição

que a jornada de trabalho, inoportunamente, lhes impõe nessa fase de desenvolvimento, e,

como não dizer, também, da vida. Pois, o trabalho invade e restringe o tempo que,

normalmente, deveria ser dedicado ao estudo e à brincadeira.

Em relação a esse aspecto, Estrela (2004) constatou que trabalhadores precoces que

estudam à noite apresentam grande indisposição, física e mental, proveniente do cansaço

em função do trabalho. Diante disso, não raro passam a freqüentar a escola de forma

irregular, o que posteriormente culmina com o abandono aos estudos.

Sob essa perspectiva, se reproduz um conjunto de circunstâncias que só vem a

tornar cada vez mais difícil a escolarização dos trabalhadores precoces. Pelo lado das

implicações biopsicossociais, trabalhar e estudar acarreta cansaço e exaustão do corpo,

responsabilidades prematuras, adultização precoce, contaminação do tempo a ser dedicado

ao estudo e ao lazer, e, sobretudo, violação dos direitos fundamentais de cidadania

(Alberto, 2002; Lira, 2003; Dantas, 2004; Estrela, 2004).

Pelo lado das implicações intelectuais, o processo de escolarização

concomitantemente à condição de trabalho, impõe significativas restrições em termos de

desenvolvimento cognitivo aos alunos trabalhadores precoces, pois uma vez que estes,

conforme colocado, assistem as aulas cansados e com sono, precisam faltar às aulas, e, às

vezes, até interrompem os estudos. Diante disso, perdem oportunidades significativas em

termos de aprendizagem escolar, cuja sistematização e planejamento fazem dos anos

escolares o período mais adequado para o domínio de funções psicológicas cada vez mais

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superiores e elaboradas, as habilidades metacognitivas, tais como: a tomada de consciência,

a memória lógica, o pensamento e a atenção arbitrária, o pensamento abstrato e o

pensamento conceitual, as quais levam às mais importantes aquisições cognitivas da

adolescência (Vygotsky, 2000; Vygotsky, 1998; Van der Veer & Valsiner, 1991; Castorina,

2000).

Todavia, não se pode desconsiderar que o contexto escolar implica socialização,

convivência com sujeitos mais experientes, interação e troca com os companheiros, os

quais são elementos mediadores de fundamental importância para o aprendizado como

propulsor do desenvolvimento cognitivo. Pois, o sujeito em idade escolar quando orientado,

ajudado e em colaboração, evolui em seu processo de aprendizagem e, conseqüentemente,

tem despertado vários processo internos de seu desenvolvimento intelectual (Vygotsky,

2000; Vygotsky, 1998).

5.3. Alunos trabalhadores precoces e o domínio de conteúdos escolares

A análise do domínio de conteúdos escolares básicos em língua portuguesa e

matemática constituiu um momento particularmente relevante deste estudo, uma vez que

possibilitou analisar como os alunos trabalhadores precoces dominam conteúdos mínimos

nas referidas disciplinas.

Uma vez que o interesse desta etapa do estudo foi analisar como os alunos dominam

conteúdos elementares de língua portuguesa e matemática, tais conteúdos foram

selecionados em função do mínimo de habilidades básicas exigidas para cada disciplina, e

não em função do conteúdo de língua portuguesa e de matemática referente a cada série

escolar.

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Com relação aos sujeitos, participaram dessa etapa da pesquisa àqueles com quem

se conseguiu manter contato após decorrido um mês da entrevista. A representatividade

desse grupo foi de onze sujeitos, correspondendo a 52% da amostra inicial. Entre esses

sujeitos, três cursavam a 3ª série, três cursavam a 4ª série, um cursava a 5ª série, um

cursava a 6ª série, um cursava a 7ª série, e dois cursavam a 8ª série. Nesse sentido, tinha-se

representante de todas as séries escolares identificadas nas entrevistas.

No tocante à disciplina de língua portuguesa, foram analisadas habilidades em

termos da linguagem oral (leitura e interpretação) e da linguagem escrita (gramática e

ortografia, respectivamente, escrita de palavras, identificação de encontros vocálicos e

consonantais).

Na disciplina de matemática, selecionou-se o uso dos números naturais em

situações-problema com as quatro operações aritméticas fundamentais (adição, subtração,

multiplicação e divisão). A análise do domínio de conteúdos envolveu dois momentos, a

saber:

1º momento – aplicação de um exercício escrito proposto no modelo formal, cuja

forma corresponde ao que é usualmente adotada na escola para as atividades didáticas.

2º momento – simulação de uma situação problema de compra e venda envolvendo

o uso das operações aritméticas.

5.3.1 Resultados da análise do domínio de conteúdos em Língua Portuguesa:

• Atividades de linguagem oral:

Conforme colocado anteriormente, o exercício de linguagem oral envolveu um texto

para ser feita leitura e interpretação do mesmo. A escolha do texto foi feita tendo em vista

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critérios como: linguagem simples, objetiva, e a contextualidade de seu conteúdo. A partir

da aplicação desse exercício, observou-se os seguintes resultados:

• Dois sujeitos: A. (fretista, 14 anos - 3ª série) e W. (fretista, 11 anos – 3ª série) não

conseguiram realizar qualquer leitura que permitisse um mínimo de interpretação sobre

o texto ou das questões afins, fosse de palavras com sílabas mais simples, fosse de

palavras com sílabas mais complexas. Esses eram alunos da 3ªsérie. Quando indagados

sobre o porquê, um deles explicou que não sabia ler direito, e o outro que não ia

conseguir responder.

Reportando-se à entrevista de A. (fretista), constata-se que o mesmo tem em seu

processo de escolarização histórico de reprovação, repetência e abandono escolar, deixou

de estudar por dois anos. Assim, encontra-se com uma defasagem escolar de 5 anos.

Quando indagado sobre se sabe ler, respondeu:

“Não, ainda não.”

Além disso, esse sujeito foi bastante enfático quando verbalizou sobre o quê achava de

trabalhar e estudar:

“É difícil, muito difícil”. Ao que explica: “Porque a pessoa tem que vim de manhã

bem cedim pa vim pa cá e depois voltá pra i pra iscola de novo. E o negoço é meio difícil.”

Com relação ao sujeito W. (fretista), este também já foi reprovado, apresentando

defasagem escolar de dois anos. Em relação ao domínio da leitura sua situação não é muito

diferente: “Lê, num sei muito não. Sei, mas num é muito”.

Destarte, reconhece no trabalho as suas limitações escolares, pois, quando indagado

sobre por que acha melhor estudar do que trabalhar, verbalizou: “Istudá é milhó. Porque

você trabalhando você num tá aprendendo a lê, tá?

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Diante do exposto, não é errôneo reconhecer que trabalhar e estudar cansa,

desestimula e interfere negativamente no processo de escolarização, impondo limites e

dificuldades às condições de aprendizagem.

• Dois sujeitos: A. (fretista, 13 anos – 3ª série) e D. (olheiro, 13 anos - 4ª série ), embora

tenham lido o texto proposto, apresentaram muitas dificuldades na leitura e na

compreensão do que estava sendo colocado, ora deixando respostas em branco, ora

apresentando respostas incoerentes.

Um dos aspectos que chamou atenção em relação a esses sujeitos foi a preferência

pelas tarefas de matemática, e a dificuldade com as de língua portuguesa. Quando

indagados sobre saber ler: “Poquinho, mais sei.” Acrescentando: “Só os devê cum as

palavra que eu erro umas letra” (A. fretista, 13 anos – 3ª série); “Sei um pouco.” (D.

olheiro, 13 anos - 4ª série).

Por outro lado, expõe o gostar pela matemática, especialmente em se tratando das

contas: “É porque eu sô avançado nessas coisa.” (A. fretista, 13 anos – 3ª série );

Tal situação indica que a despeito da facilidade com os cálculos matemáticos, tendo

em vista a vivência destes na situação de trabalho, falta a esses alunos ampliar seus

conhecimentos para além do que a situação concreta oferece. No caso da linguagem

particularmente, o ensino formal permite que a não-consciência e a não-arbitrariedade,

presentes na fase pré-escolar, evoluam para um nível superior no desenvolvimento, qual

seja o das habilidades metacognitivas. Tais habilidades, o saber fazer de forma consciente,

arbitrária e intencional, no que se refere à linguagem são adquiridas através da

aprendizagem da gramática e da escrita ao longo da instrução escolar (Vygotsky,

1934/2000).

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• Quatro sujeitos conseguiram ler o texto, porém apresentaram pouca fluência na leitura,

ou seja, liam com facilidade apenas as palavras com sílabas simples e curtas (ca/sa/co,

da/va); as palavras com inversões e dificuldades ortográficas (bu/gin/gan/gas,

en/fer/ru/ja/das,) eram lidas de forma pausada, sílaba por sílaba, e com pouca

compreensão do seu todo; conseqüentemente, apresentavam dificuldades para

interpretar as idéias principais. Suas respostas interpretativas apresentaram-se

caracteristicamente pouco elaboradas, ou seja, expressas em períodos curtos e algumas

vezes com idéias que não correspondiam ao texto. Os referidos sujeitos eram alunos da

4ª, da 5ª, da 6ª e da 8ªsérie.

• Apenas três sujeitos, conseguiram realizar o exercício proposto apresentando uma

leitura satisfatória e uma interpretação coerente com as idéias do texto. Dentre esses,

dois apresentaram respostas mais elaboradas, período contendo início-meio e fim, e,

ainda, uma compreensão ampla da leitura realizada ao expressar respostas cujo

conteúdo, embora não estivesse explícito no texto, era inferido de forma coerente. Estes

sujeitos cursavam, respectivamente, a 4ª, a 7ª e a 8ª série.

• Atividades de linguagem escrita:

Os resultados apresentados no exercício envolvendo linguagem escrita, questões de

gramática e de ortografia, apresentaram resultados similares aos encontrados no exercício

de linguagem oral, principalmente no tocante às questões de ortografia. A partir desses

resultados, se reconhece o fato de que os bons leitores são, geralmente, aqueles que têm

mais desenvoltura com a escrita, pois quem lê dispõe de um vocabulário mais rico e

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compreende melhor a estrutura gramatical de um texto, bem como, as normas ortográficas

da língua portuguesa. Além disso, a leitura é a matéria prima para a escrita (PCNs, 1997).

Nesse sentido, destacaram-se os seguintes pontos:

• Assim como no exercício anterior (leitura e interpretação), os dois sujeitos alunos da 3ª

série não conseguiram realizar nenhuma leitura sobre o texto, nem, igualmente,

responder às questões propostas envolvendo gramática e ortografia. Apenas assinaram o

nome e deixaram o exercício em branco;

• Os dois sujeitos, um da 3ª e o outro da 4ª série, responderam as questões propostas com

muita dificuldade. Nas questões envolvendo ortografia apresentaram erros elementares

tais como: omissão de grafemas (mecado, ao invés de mercado), inversão de sílabas

(cançaso, ao invés de cansaço), dificuldade na escrita de palavras com sílabas mais

complexas (trabai, ao invés de trabalho; dieirro, ao invés de dinheiro; ferra, ao invés

de feira). Com relação à acentuação gráfica, esta foi ignorada, tanto no exercício de

ditado, quando nas respostas de interpretação do texto. Nas questões de gramática, não

mostraram consistência no domínio do assunto, pois, invertiam as proposições – ora

apontando duas vogais juntas como sendo encontro consonantal, ora apontando duas

consoantes juntas como sendo encontro vocálico. Expressando, assim, pouco domínio

do conteúdo solicitado;

• Os demais sujeitos, dois da 4ª, um da 5ª, um da 6ª, um da 7ª e dois da 8ªsérie,

apresentaram um domínio razoável na ortografia das palavras. Contudo, também

apresentaram alguns erros ortográficos: a omissão de grafemas (dinhero ao invés de

dinheiro; trabalo ao invés de trabalho; cançaso ao invés de cansaço). Em termos de

acentuação gráfica, palavras como freguês tinha o acento ignorado. O mesmo aconteceu

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com relação ao domínio do conteúdo gramatical, denotando inconsistência na

identificação e diferenciação entre encontros vocálicos e consonantais. Além disso, foi

muito significativa à desconsideração de regras ortográficas, sendo comum nas

respostas os seguintes elementos: escrita indiferenciada de letra maiúscula e minúscula,

emprego indiscriminado do “por que” (em que o Por que – separado, é adequado na

pergunta; o Porque – junto, é adequado na resposta), ausência de pontuação no final do

período.

Os resultados das atividades de linguagem oral e de linguagem escrita indicaram

que o domínio ou não dos conteúdos solicitados não se dá, necessariamente, em função da

série escolar que está sendo cursada. Constatou-se que sujeitos que estavam em séries mais

elementares obtiveram desempenho mais satisfatório do que outros que já estavam em

séries mais adiantadas. Com base nessa consideração, delineou-se o seguinte perfil dos

onze sujeitos que fizeram as atividades de língua portuguesa:

• Sujeitos com desempenho compatível com a escolaridade:

J., fretista, 14 anos – 8ª série. Começou a trabalhar com quatorze anos (“... este

ano”), nunca repetiu série nem se reprovou ou desistiu de estudar.

J., vendedora na feira, 14 anos – 7ª série. Começou a trabalhar com onze anos, foi

reprovada uma vez (na 4ª série), repetiu esta série, mas nunca desistiu de estudar.

R., fretista, 10 anos – 4ª série. Começou a trabalhar com nove anos, não repetiu

série, nem se reprovou. Nunca desistiu de estudar.

W., fretista, 10 anos – 4ª série. Começou a trabalhar com dez anos, nunca repetiu

série, nem se reprovou ou desistiu de estudar.

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• Sujeitos com desempenho aquém da média de escolaridade:

G., vendedor na feira, 14 anos – 8ª série. Começou a trabalhar com onze anos, não

repetiu de série, nem se reprovou. Até a realização da entrevista, disse que nunca tinha

desistido de estudar. Contudo, quando contatado para participar da segunda etapa desse

estudo, a análise de domínio de conteúdo, tinha abandonado os estudos.

W., fretista, 14 anos – 6ª série. Começou a trabalhar com dez anos, foi reprovado

três vezes (na 1ª, 2ª e 3ª séries), repetiu estas séries, mas não desistiu de estudar.

E., fretista, 14 anos – 5ª série. Começou a trabalhar com treze anos, só lembra que

foi reprovado na 4ª série, não lembra quantas vezes, mas não desistiu de estudar.

D., olheiro, 13 anos – 4ª série. Começou a trabalhar com doze anos, foi reprovado

duas vezes, não lembra as séries, repetiu, mas não desistiu de estudar.

A., fretista, 13 anos – 4ª série. Começou a trabalhar com oito anos, foi reprovado

duas vezes (na 2ª e na 3ª séries), repetiu estas séries, desistiu de estudar uma vez.

• Sujeitos que não conseguiram responder:

A., fretista, 14 anos – 3ª série. Começou a trabalhar com doze anos, foi reprovado

duas vezes (na 2ª e na 3ª séries), repetiu estas séries, desistiu de estudar duas vezes, e

quando contatado para esta etapa da pesquisa, já havia abandonado os estudos novamente.

Não respondeu nenhuma questão do exercício proposto, alegando que não sabia fazer.

W., fretista, 11 anos – 3ª série. Começou a trabalhar com dez anos, foi reprovado

uma vez (na 2ª série), repetiu esta série, não desistiu de estudar. Contudo, não respondeu

nenhuma questão do exercício proposto alegando que só sabia fazer tarefa na escola com a

professora ensinando.

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Não obstante, se, por um lado, o domínio das habilidades requisitadas em termos de

leitura e escrita prescindiu da série escolar cursada, o mesmo não se aplicou em relação ao

tempo de trabalho e ao número de fracassos escolares: repetência, reprovação, abandono

escolar. Nesse sentido, verificou-se uma tendência em apresentar resultados aquém do

esperado, isto é, um domínio do conteúdo escolar em língua portuguesa incompatível com a

série que cursava, entre os sujeitos que tinha tinham mais tempo de trabalho, ou, ainda,

algum histórico de fracasso escolar.

Diante do exposto, percebem-se entre os trabalhadores precoces, especialmente,

àqueles cujo processo de escolarização reflete as implicações decorrentes do trabalho

(reprovação, repetência, abandono escolar, defasagem idade-série), as dificuldades mais

contundentes em termos de domínio dos conteúdos escolares em língua portuguesa,

refletindo entre outros:

• Leitura sem a devida interpretação, pois que o ato da leitura não pode prescindir da

interação com um leitor mais experiente (o professor), da conversa sobre os aspectos

relevantes do texto, com o professor e os pares; assim como, da leitura de textos

didáticos e textos do mundo, contextualizados na realidade em que estão inseridos, cuja

estratégia didática constitui uma das mais importantes para a prática da leitura: o

trabalho com a diversidade textual (PCNs, 1997b, p. 55);

• Elementos ortográficos incorretos. Nessa perspectiva, embora se reconheça que a

ortografia esteja fortemente relacionada à memória, trata-se de uma construção

individual para a qual a intervenção pedagógica tem muito a contribuir (PCNs, 1997b,

p. 84);

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• Dificuldades no conteúdo gramatical, no uso da pontuação e da acentuação, cujo

aprimoramento relaciona-se às diversas situações oferecidas na escola, como a

orientação do professor; a realização de atividades didáticas dirigidas, previamente

elaboradas para as necessidades específicas que se colocam; e, principalmente, a

produção de textos. Outrossim, é na situação de produção de texto, que o aluno passa a

lidar com as regras de pontuação, de acentuação de palavras, e monitora a própria

escrita para assegurar adequação, coerência, coesão e correção à sua escrita; que

ganham utilidades os conhecimentos sobre os aspectos gramaticais (PCNs, 1997b, p.

89).

Ademais, torna-se oportuno reiterar que a proposta curricular das redes municipal e

estadual de ensino, se insere nas proposições dos PCNs (1997), e, sob essa perspectiva,

adotam as mesmas considerações.

Compartilhando dos pressupostos de (Vygotsky, 2000), segundo os quais, embora o

sujeito chegue à idade escolar apresentando certo domínio da língua materna, bem como,

de suas particularidades, isso se dá de forma inconsciente. Na escola, portanto, aprende a

tomar consciência do que faz e a operar voluntariamente com as suas próprias habilidades,

uma vez que a orientação, a ajuda e a colaboração, presentes na instrução escolar, permitem

o desenvolvimento de suas potencialidades intelectuais ao estimular à zona de

desenvolvimento imediato de forma sistemática e planejada. Nessa perspectiva, reitera-se a

importância do ensino formal, em que aspectos como: as atividades propostas, as quais

favorecem o desenvolvimento de conceitos científicos; a intervenção pedagógica, que

orienta e conduz a aprendizagem por imitação; o convívio com os pares, elementos

mediadores para a construção do conhecimento; e o próprio processo ensino-aprendizagem,

abrangendo quem aprende, quem ensina e a relação social entre ambos, proporciona a

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aquisição de habilidades (de leitura, de interpretação, de escrita) que não ocorreriam

espontaneamente.

5.3.2 Resultados da análise do domínio de conteúdos em Matemática

• Situações-problema com as quatro operações fundamentais (exercício escrito)

Assim como aconteceu em relação às questões propostas de língua portuguesa, os

mesmos dois sujeitos que não conseguiram responder a nenhuma questão dessa disciplina,

também não o conseguiram em relação à matemática. Novamente, foram indagados sobre o

motivo de não responder. O sujeito W. (11 anos, 3ª série) verbalizou que só gostava de

fazer tarefa na escola porque a professora ensinava. O segundo sujeito A. (13 anos, 3ª

série), explicou que tinha deixado de estudar, mas que voltaria à escola no ano que vem (no

caso, o ano corrente-2006).

Diante de tais situações, pode-se inferir o quão atípico é o processo de escolarização

de sujeitos como esses trabalhadores precoces, pois, enquanto alunos, não raro abandonam

os estudos antes mesmo da conclusão do primeiro semestre do ano letivo, interrompendo,

assim, um processo de ensino e aprendizagem com objetivos e metas a alcançar. Por outro

lado, na perspectiva de realizar uma atividade fora dos limites da escola, sentem-se

incapazes, inseguros e bloqueados sobre o que realmente sabem. Nesse sentido, reconhece-

se o atraso desses sujeitos em seu desenvolvimento intelectual, uma vez que, por não

possuírem a base de conhecimento para lidar com tarefas que requerem o uso de

habilidades mais abstratas em termos de cálculos, recusam-se a resolver qualquer problema.

Bem como, em seu desenvolvimento cultural, o qual não oferece experiências significativas

que estimulem e orientem o prosseguimento desse processo.

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Em relação a esse último aspecto, observa-se que a diversidade de condições

culturais a que estão expostos os trabalhadores precoces, é oriunda, prevalentemente do

trabalho, e não da escola, como deveria ser. Diante disso, há um empobrecimento cultural

que se reflete no próprio desenvolvimento cognitivo.

Com relação aos demais sujeitos, foram observadas as seguintes respostas:

• Na situação-problema de adição:

Todos os sujeitos conseguiram resolvê-la mostrando o cálculo sob a forma de

algoritmo, modelo formal proposto pela escola para armar uma conta de qualquer das

quatro operações fundamentais. Além disso, apresentaram o resultado correto e

identificaram a situação proposta como sendo de uma “soma” (adição).

• Na situação-problema de subtração:

Apenas três sujeitos conseguiram fazer a relação correta entre o cálculo formal

(modelo de algoritmo) e a resposta, identificando uma situação de subtração.

Os outros seis sujeitos, embora tenham identificado a situação de subtração,

apresentando a resposta correta do problema, os mesmos não conseguiram efetuar o cálculo

de forma adequada. Entre estes, foram verificadas as seguintes situações: efetuavam de

forma errada e incoerente (o número maior subtraído do menor – 2 sujeitos); armavam a

conta como se fosse uma adição (porém com resultado de uma subtração – 2 sujeitos); ou

ainda, não conseguiram apresentar nenhuma forma de cálculo representando uma subtração

(embora tenham apresentado o resultado certo da situação – 2 sujeitos).

• Na situação-problema de multiplicação:

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Nenhum sujeito chegou a apresentar o cálculo de uma multiplicação no modelo

formal, explicando que sabiam responder sem precisar fazer a conta. Todavia, as respostas

apresentadas eram prevalentemente corretas. Quando indagados sobre a identificação da

operação utilizada, apenas um sujeito identificou a situação como sendo uma multiplicação.

Os demais a identificaram como sendo uma soma, o quê, de certa forma, não é incoerente,

uma vez que a multiplicação é uma operação que representa a soma ou a repetição de

parcelas iguais. Nesse sentido, verificou-se que os sujeitos resolveram a situação-problema

de multiplicação, mas não a compreenderam como tal, mas sim, a partir da adição, cuja

operacionalidade lhes é mais compreensível.

• Na situação-problema de divisão:

Nesta questão também não constou nenhum cálculo formal de divisão, sendo as

respostas prevalentemente corretas. Os sujeitos conseguiram respondê-la com facilidade, e,

quando indagados sobre o cálculo, responderam o mesmo (que sabiam responder sem

precisar fazer a conta). Apenas um sujeito soube identificar o problema como uma divisão.

Quanto aos demais, alguns não responderam (5), e outros a identificaram como um

problema de vezes – multiplicação (3).

• Situações-problema com as quatro operações fundamentais (atividade lúdica):

Todos os sujeitos que participaram dessa atividade, em que foi requisitada a

operacionalização das operações aritméticas através de uma situação problema delineada

num modelo prático, conseguiram realizá-la satisfatoriamente. Todavia, tendo em vista que

o objetivo desta atividade era confrontar o domínio das operações aritméticas sob duas

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configurações: o modelo formal, proposto pela escola, e o modelo prático utilizado em

outros contextos ou condições sociais, como por exemplo, para eles utilizado nas situações

de trabalho, verificou-se o predomínio deste sobre o modelo formal.

Nessa perspectiva, a facilidade que os sujeitos apresentaram para efetuar os cálculos

a partir de situações concretas, sem necessariamente fazer uso de lápis e papel, indicou que

a compreensão da matemática para eles se dá mais em função dos conhecimentos

aritméticos que lhes são familiares na situação de trabalho do que dos conhecimentos

formais adquiridos na escola.

Com base nos resultados apresentados, constata-se que o fato de esses sujeitos

conseguirem chegar a um resultado numérico ao resolver situações problema com as quatro

operações matemáticas fundamentais (adição, subtração, multiplicação e divisão), não

implica, necessariamente, a compreensão do processo de resolução no modelo formal,

próprio do ensino escolar. Nesse sentido, a despeito dos trabalhadores precoces

demonstrarem uma maior familiaridade com a matemática, pode-se inferir que esta se dá

num plano elementar, relativo à aritmética, e, sobretudo, em estreita dependência com o

aspecto concreto, ou seja, em termos da experiência cotidiana de fazer contas com o

dinheiro que manuseiam.

De acordo com Vygotsky (1998), o conhecimento aritmético antecede a própria

entrada na escola, ou seja, o sujeito já traz consigo sua própria aritmética pré-escolar ao

lidar com operações de adição, subtração, multiplicação, divisão antes mesmo de freqüentar

a escola. Diante disso, retoma-se a importância da instrução escolar, a qual propicia os

meios adequados para que o desenvolvimento das noções gerais na idade pré-escolar, os

pré-conceitos, evoluam para os verdadeiros conceitos.

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Considerando que os alunos trabalhadores precoces não vivenciam o processo de

escolarização de uma forma plena e efetiva, pois, devido ao trabalho: faltam às aulas,

estudam cansados, enfim, não dedicam tempo às atividades escolares, observa-se que seus

conhecimentos tendem a conservar-se apenas no plano das experiências concretas. Assim,

lhes torna mais difícil a possibilidade de transição para um plano novo e mais elevado de

operações lógicas e de procedimentos abstratos, mesmo quando se tratam de conhecimentos

que estão presentes em seu dia-a-dia, como os relacionados à matemática, a qual lhes é

mais familiar por causa do trabalho.

Sob tal perspectiva, chama-se atenção também para a própria estrutura do contexto

sócio cultural onde esses sujeitos estão inseridos, que à luz da abordagem histórico-cultural

assume um caráter central no desenvolvimento intelectual do sujeito. De acordo com

Vygotsky (1989), o curso do processo de desenvolvimento do pensamento infantil para o

pensamento adolescente ocorre numa direção que vai do social para o individual, nesse

sentido,

(...) onde o meio não motiva nem estimula com novos objetivos o desenvolvimento

do intelecto, o pensamento do adolescente não desenvolve todas as potencialidades que

efetivamente contém, não atinge as formas superiores ou chega a elas com um extremo

atraso (p. 171).

Sob essa perspectiva, a própria condição de trabalhadores impõe um meio de

adversidades, cujas experiências interferem, não somente, no desenvolvimento intelectual e

cognitivo, mas igualmente, na subjetividade desses sujeitos. Deste modo, se no plano das

aquisições cognitivas os alunos trabalhadores precoces têm restringidas oportunidades de

contato com o conhecimento científico produzido, de aprimoramento de habilidades

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metacognitivas, de experiências de socialização com adultos mais experientes (os

professores) e com os próprios pares, bem como, de vivências lúdicas; no plano da

subjetividade, o peso do trabalho implica em sentimentos ambíguos, cujas nuanças vão do

sofrimento ao prazer de se sentir ocupado e com algum dinheiro no bolso.

“Eu sinto uma coisa rim por mim. Porque estudar assim... estudar eu acho bom, mai

trabalhar eu acho rim. Tô muito novo ainda prá ficá trabalhando na rua.” (J., engraxate, 13

anos - 4ªsérie).

“Eu acho bom porque na escola eu tô aprendendo a ser educado, aqui eu tô

aprendendo a ganhá dinhero com meu próprio suó.” (J., fretista, 14 anos - 8ªsérie).

Essa concepção de que o trabalho é útil, formador, pode ser compreendida e

explicada baseando-se na concepção de Vygotsky, segundo a qual o social influencia no

processo de desenvolvimento do pensamento, tanto na sua estruturação quanto no seu

conteúdo, em que o contexto histórico-social no qual se vive constituirá a base de

compreensão do mundo (Palangana, 1994). Nesse sentido, os trabalhadores precoces,

contextualizados em famílias de classes populares e de origem trabalhadora, concebem o

trabalho não apenas uma necessidade, mas igualmente uma virtude (Vogel & Melo, 1991).

Destarte, assim como o ambiente social tem impacto no desenvolvimento cognitivo

(Vygotsky, citado por Palangana, 1994), a descontinuidade do processo escolar, ou até

mesmo a sua ausência, quando do abandono aos estudos, têm impacto negativo nesse

desenvolvimento. Sobretudo na evolução das funções psicológicas superiores, as quais

fornecem a base para o domínio dos conteúdos escolares e, posteriormente, para a evolução

de capacidades inerentes à vida profissional adulta.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Os dados obtidos revelaram que as crianças e os adolescentes trabalhadores

precoces, participantes deste estudo, são alunos cuja escolarização é, sobremaneira,

implicada pelo fato de terem que trabalhar. A análise da relação do trabalho precoce com o

processo de escolarização de crianças e adolescentes, cujo enfoque se deu a partir de

aspectos implícitos, quais sejam: a subjetividade forjada sobre o trabalho e a escola; e de

aspectos visíveis que permeiam o processo de escolarização: as situações de reprovação,

repetência, defasagem idade-série e abandono escolar, bem como, o domínio de conteúdos

escolares básicos, permitiram observar uma complexa inter-relação entre esses elementos.

No plano do social, o trabalho precoce implica danos e violação, respectivamente, à

escolaridade e a direitos sociais determinados em nível da legislação, respectivamente,

internacional e nacional (Convenção Internacional dos Direitos da Criança – 1989;

Constituição Federal – 1988; Estatuto da Criança e do Adolescente – 1990).

No plano do individual, as crianças e adolescentes trabalhadores precoces são

privados de condições essenciais ao seu pleno desenvolvimento nessa fase da vida, como

por exemplo, aquelas relacionadas à formação intelectual, aos momentos de lazer e de

descanso. Fato que reflete, sobretudo, o desrespeito à condição de sujeitos de direitos

determinada em termos legais.

Com efeito, no caso dos trabalhadores precoces deste estudo, o lazer, para eles

estreitamente relacionado ao brincar, e o descanso são vivenciados de forma restrita e

condicionada às demandas do trabalho. O quê, se por um lado vai de encontro aos

princípios jurídicos consubstanciados na Convenção de 1989 (Art.31); na Constituição

(Art.227) e no Estatuto (Art.4º; Art.16, inciso IV); por outro lado tem amplas implicações

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no desenvolvimento psicossocial desses sujeitos. Pois, o brincar e a brincadeira estimulam

o desenvolvimento em termos de: cognição, tendo em vista a criação de uma zona de

desenvolvimento imediato; afetividade, dado que permite o aprimoramento do autocontrole

emocional; e sociabilidade, uma vez que propicia a interação com os pares e a construção

de regras.

Em termos dos aspectos cognitivos, o trabalho precoce traz implicações à

escolaridade de crianças e adolescentes, o que se reflete diretamente no desenvolvimento de

suas capacidades intelectuais. Todavia, trabalhar e estudar intensifica as eventuais

dificuldades peculiares ao processo ensino-aprendizagem, especialmente, durante a infância

e a adolescência, cujas demandas têm, nas atividades de caráter lúdico e escolar, as

contribuições mais significativas para sua formação nesse período da vida. Além disso, o

trabalho pelo estudo esboça uma situação de transgressão aos instrumentos legais que

rezam pela defesa do direito à educação: Convenção de 1989 (Art.28); Constituição (Art.6º;

Art.205; Art.227); Estatuto (Capítulo IV).

Não obstante, aspectos comuns ao dia-a-dia dos trabalhadores precoces, como: o

cansaço, que decorre da jornada de trabalho e dificulta a atenção e o interesse pelas aulas;

às constantes faltas em vista da necessidade de trabalhar, que os fazem perder aula, e,

conseqüentemente, a seqüência explicativa sobre um dado conteúdo; o tempo gasto no

trabalho, afastando-os dos momentos que deveriam ser dedicados às tarefas escolares;

contribuem, significativamente, para que esses sujeitos, enquanto alunos, permaneçam em

estágios muito elementares no domínio dos conteúdos didáticos. Assim, são comprometidas

habilidades específicas da vida escolar, dentre essas: leitura sem a devida interpretação, não

uso de regras gramaticais e ortográficas básicas na linguagem escrita, conhecimentos

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aritméticos restritos à situação concreta, as quais refletem um conhecimento defasado,

aquém da idade em que se encontram.

Nessa perspectiva, assinala-se que, além de o trabalho contaminar e restringir o

tempo que os trabalhadores precoces deveriam dedicar às atribuições escolares, não se pode

desconsiderar as repercussões a longo prazo dessa situação. Se no hoje, no decorrer da

idade escolar, fica comprometido o desenvolvimento de aquisições cognitivas mais

elaboradas, as quais se encontram interligadas aos diversos sistemas de conhecimento de

cada disciplina, como: o pensamento conceitual, a memória lógica, a atenção arbitrária, a

abstração, a discriminação, a comparação, entre outras; tais aspectos se refletirão no futuro,

ante a inserção profissional na idade adulta, cuja demanda requer cada vez mais os

conhecimentos adquiridos ao longo da formação escolar.

Concomitantemente a esses aspectos, a subjetividade das crianças e adolescentes

trabalhadores precoces, participantes desse estudo, encontra-se diretamente relacionada às

condições sociais em que estão inseridos, cujas configurações constituem o referencial que

forja as concepções pessoais, subjetivas e idiossincráticas sobre o trabalho e a escola.

Diante disso, observou-se que a relação do trabalho precoce com o processo de

escolarização desses sujeitos, suscita a construção de processos subjetivos ambíguos sobre

esses dois segmentos, o trabalho e a escola.

Em relação ao trabalho, se, por um lado existe a necessidade de trabalhar, por outro

lado se constata certa satisfação pessoal por esta situação, que se dá tendo em vista o ganho

do dinheiro e a ocupação do tempo. Nessa perspectiva, o trabalho representa não só uma

forma de auto sustentar-se, como de afastar a ociosidade. Não obstante, trabalhar também,

representa sofrimento, traduzido pela precisão de ingressar precocemente no trabalho e,

igualmente, de assumir as responsabilidades que decorrem dessa situação; bem como, perda

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de oportunidades, pois, a despeito do ganho, embora modesto, que o trabalho traz no

presente, ele é apontado como um dos fatores que contribuem para perdas futuras. Pois,

conforme colocaram os próprios trabalhadores precoces, trabalhar restringe as chances de

aprender através dos estudos, e com isso, de ter uma formação melhor para inserir-se em

atividades profissionais socialmente valorizadas e bem remuneradas.

A escola, por sua vez, converge todos os aspectos que podem proporcionar o

desenvolvimento do sujeito em termos de capacidades intelectuais, como: ler, escrever,

fazer contas; assim como de formação pessoal: ter respeito, educação, honestidade,

bondade. Nessa perspectiva, a escola é um elemento extremamente significativo e

valorizado. Entretanto, a vivência escolar não constitui uma prioridade de fato, pois embora

se constate todo um aparato legal, conforme citado anteriormente, que determina o direito

de estudar, este é violado pelas demandas que o trabalho impõe.

A partir dos aspectos suscitados neste estudo, relativos à relação do trabalho precoce

com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, assinala-se que a referida

problemática é uma questão complexa e de implicações amplas, que abrange elementos

psicossociais, jurídicos, sócio-históricos, os quais, por sua vez, se encontram interligados e

em constante mudança, dado o seu caráter de processo.

Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de estudos que abordem questões afins, por

exemplo, a leitura que esses sujeitos fazem de sua condição de trabalhadores precoces,

tendo em vista se tratar de uma condição que vai de encontro aos seus direitos de cidadania.

Tal necessidade surge do fato de as próprias crianças e adolescentes, trabalhadores

precoces, parecem ignorar totalmente que têm direitos e que esses implicam, sobretudo,

uma responsabilidade social consubstanciada no papel do Estado enquanto instância

governamental de poder.

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Todavia, embora este estudo não tenha a pretensão de esgotar todas as questões que

permeiam a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização, assinala-se a sua

relevância enquanto literatura existente sobre o tema, de forma a propiciar informações e

orientar os profissionais, principalmente aqueles inseridos no contexto da escola. Nesta, não

raro, o corpo técnico, e até mesmo docente, nem sempre se mostra devidamente preparado

para atender e lidar com as necessidades desses alunos, geralmente adultizados e

desmotivados pelo cansaço do trabalho.

Outrossim, o referido estudo pode contribuir, ainda, enquanto um referencial acerca

dos aspectos psicossociais envolvidas nesta relação, apontando diretrizes que possam

subsidiar a elaboração de projetos e políticas públicas comprometidas com a erradicação do

trabalho precoce pela via da educação, especialmente através da inserção efetiva no

processo de escolarização.

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REFERÊNCIAS:

Alberto, M. de F. P. (2002). A dimensão subjetiva do trabalho precoce de meninos e

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__________ & col. (2006a). O trabalho infantil na atividade informal urbana em

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(IPEC) – Brasília: OIT.

__________ & cols. (2006b). O trabalho infantil doméstico em João Pessoa – PB: um

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ANEXOS

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ANEXO 2Roteiro de Entrevista

Crianças e adolescentes trabalhadores informais em condição de rua

I - Dados sócio-demográficos:4 Nome2 Idade3 Data de nascimento4 Sexo

II – Processo de Escolarização:

1- Qual a série que você estuda atualmente?2- Qual a escola que você estuda?3- Em que turno você estuda?

4- Você foi reprovado na escola?4.1 ( ) Sim ( Ir para a questão 4.3)4.2 ( ) Não4.3 Por que você foi reprovado?4.4 Quantas vezes você foi reprovado?4.5 Qual série você foi reprovado?

5- Você repetiu alguma série?5.1 ( ) Sim ( Ir para a questão 5.3)5.2 ( ) Não5.3 Por que você repetiu?5.4 Quantas vezes você foi repetiu?5.5 Qual série você repetiu?

6- Você desistiu de estudar?6.1 ( ) Sim ( Ir para a questão 6.3)6.2 ( ) Não6.3 Por que você desistiu de estudar?6.4 Quantas vezes você desistiu de estudar?

7 Que horas você vai à escola?8 O que lhe ensinam na escola?

9 Você sabe ler? ( ) Sim ( ) Não10 Você sabe escrever? ( ) Sim ( ) Não11 Você sabe fazer contas? ( ) Sim (Ir para a questão 12) ( ) Não (Ir para a questão 13)

12 Você sabe fazer contas:( ) de mais?

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( ) de menos? ( ) de vezes? ( ) de dividir?

13 Você disse que não sabe fazer contas. Mas, trabalhando você faz contas com o dinheiro que você recebe do trabalho? O quê é diferente da escola?

14 O que você acha fácil na escola? Por quê?15 O que você acha difícil na escola? Por quê?16 Qual a importância do que você aprende na escola para sua vida?

III - Perfil Trabalho:

17 Em que atividade você trabalha?18 O que você faz neste trabalho?19 Com que idade você começou a trabalhar?20 Por que foi trabalhar com essa idade?21 Por que trabalha?22 Que horas você chega para trabalhar? 23 Que horas você pára de trabalhar?24 Como você se sente após um dia de trabalho?

IV - Perfil Trabalho/Escola:25 Como é para você trabalhar e estudar?26 Se você fosse escolher hoje, escolheria trabalhar ou estudar? Por quê?27 Que tempo você faz as tarefas que a professora passa para casa?28 E o seu tempo de brincar, como é?

V - Perspectivas de Futuro:

29 O que você deseja ser no futuro?30 Para você conseguir ser o que você deseja no futuro, o que é mais importante: trabalhar ou estudar? Por quê?

OBS: Anexos 1, 3, 4, e 5 são xérox.

179