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PARTIDO SOCIALISTA Jota Do aborto às uniões de facto, abriram discussões que anos depois foram realidade A geração 'fraturante' chegou à meia-idade Texto FILIPE SANTOS COSTA Foto TIAGO MIRANDA m 2020, os temas "fra- turantes" vão voltar a dominar a agenda eo debate político, com propostas para a des- penalização da eutaná- sia e a legalização das barrigas de aluguer. Em ambos os casos, o tiro de partida veio da esquerda da esquerda, pela mão do Bloco de Esquerda. anos que é assim: um sector mais pro- gressista pega em temas que escaldam e força a sua discussão. Nos anos 90, quando não havia Bloco, esse sector progressista da esquerda estava no PS, e tinha um jota no lugar do pê. Houve uma colheita da Juventude So- cialista ( JS) que posa "agenda fraturan- te" no topo do debate. Foi o Expresso quem lhes colou o rótulo "fraturante", mas o pai da criança foi Sérgio Sousa Pinto liderou uma direção da JS que ganhou no PS o peso suficiente para eleger um grupo parlamentar e obrigar o Parlamento a discutir temas-tabu. Em 2019, passou um quarto de século sobre a chegada dessa direção à JS. "Já passaram 25 anos?...", admirou-se Sérgio Sousa Pinto, quando o Expres- so lhe falou nisso. E admiraram-se os outros que, com ele, estiveram nessa direção. Alguns engordaram, vários acomodaram-se, uns subiram, outros eclipsaram-se. Todos envelheceram. Como diria António Guterres, que en- tão liderava o PS e teve de enfrentar essa fornada de jovens socialistas, ávida". A "jota" que não pedia licença A expectativa não era altíssima. Pelo contrário. Quando Sousa Pinto se po- sicionou para suceder a António José Seguro na liderança da JS, poucos apos- tariam que aquele rapaz magro, de ati- tude pedante e ostensivos óculos de massa faria a diferença. Uma notícia da revista "Visão" anunciava que Sérgio, "21 anos, estudante da Faculdade de Direito de Lisboa", era "fraco tribuno mas excelente teórico". Quatro anos depois, o mesmo Sérgio, que então todo o país conhecia, questionava-se

aborto uniões facto, geração 'fraturante'...Godinho, ambas ministras do atual Governo. Sousa Pinto ganhou fama de ideólogo e isso chegou-lhe para conquistar a JS. Organização

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  • PARTIDO SOCIALISTA

    Jota Do aborto às uniões de facto, abriramdiscussões que só anos depois foram realidade

    A geração'fraturante'chegou àmeia-idadeTexto FILIPE SANTOS COSTA

    Foto TIAGO MIRANDA

    m 2020, os temas "fra-turantes" vão voltar adominar a agenda e odebate político, compropostas para a des-penalização da eutaná-sia e a legalização dasbarrigas de aluguer. Emambos os casos, o tiro de

    partida veio da esquerda da esquerda,pela mão do Bloco de Esquerda. Háanos que é assim: um sector mais pro-gressista pega em temas que escaldame força a sua discussão. Nos anos 90,quando não havia Bloco, esse sectorprogressista da esquerda estava no PS,

    e tinha um jota no lugar do pê.Houve uma colheita da Juventude So-

    cialista (JS) que posa "agenda fraturan-te" no topo do debate. Foi o Expressoquem lhes colou o rótulo "fraturante",mas o pai da criança foi Sérgio SousaPinto — liderou uma direção da JS queganhou no PS o peso suficiente paraeleger um grupo parlamentar e obrigaro Parlamento a discutir temas-tabu.Em 2019, passou um quarto de séculosobre a chegada dessa direção à JS."Já passaram 25 anos?...", admirou-seSérgio Sousa Pinto, quando o Expres-so lhe falou nisso. E admiraram-se osoutros que, com ele, estiveram nessadireção. Alguns engordaram, váriosacomodaram-se, uns subiram, outroseclipsaram-se. Todos envelheceram.

    Como diria António Guterres, que en-tão liderava o PS e teve de enfrentaressa fornada de jovens socialistas, "éávida".A "jota" que não pedia licença

    A expectativa não era altíssima. Pelocontrário. Quando Sousa Pinto se po-sicionou para suceder a António JoséSeguro na liderança da JS, poucos apos-tariam que aquele rapaz magro, de ati-tude pedante e ostensivos óculos demassa faria a diferença. Uma notícia darevista "Visão" anunciava que Sérgio,"21 anos, estudante da Faculdade deDireito de Lisboa", era "fraco tribunomas excelente teórico". Quatro anosdepois, o mesmo Sérgio, que então játodo o país conhecia, questionava-se

  • sobre as consequências do que tinhafeito à frente da JS. "Será que eu souum doido varrido e arrastei o país in-conscientemente...?". Não é o tipo dequestão que um rapaz de 26 coloquehabitualmente. Mas nesta história há

    pouco de habitual.

    Sérgio Sousa Pinto foi eleito secretá-rio-geral da JS em 1994- Em três man-datos sucessivos, a organização lançouo país em debates sobre a despena-lização do aborto, as uniões de factoincluindo as pessoas do mesmo sexo ea forma como o Estado deve encarar oconsumo de drogas. Além da ousadiadas propostas, essa JS foi a escola e amontra de quadros políticos que, comos anos, chegaram à primeira linhados socialistas — como é o caso de AnaCatarina Mendes (líder parlamentardo PS), Marcos Perestrello, João TiagoSilveira, Bernardo Trindade, FernandoRocha Andrade ou o já falecido JoãoVasconcelos (todos ex-secretários de

    Estado)."Foi uma geração de luxo", constata a

    atual líder parlamentar do PS. "Vínha-mos carregados de sonhos, fazíamospolítica com imensa alegria, e éramospoliticamente muito bem preparados,com uma agenda progressista em ques-tões de costumes, mais à esquerda do

    que a do secretário-geral António Gu-terres", recorda Ana Catarina. SousaPinto discorda da análise na geometriaesquerda/direita: "Não era uma agendaesquerdista, era progressista libertá-ria", mas concorda que foram anos afazer política com alegria e o sonhode mudar o país. Marcos Perestrello,o braço-direito de Sousa Pinto na JS,também recorda "tempos de realizaçãopessoal e felicidade enormes. Éramos

    novos, livres e tínhamos o poder defazer uma transformação social do país.E não pedíamos licença para defenderaquilo em que acreditávamos".

    Quando Sousa Pinto chegou à ribalta,o cavaquismo ainda era sinónimo depoder quase total, embora já decrépito,e Pedro Passos Coelho era um íconeda política "jovem", tanto graças ao arde galã, como por ter causado suavesincómodos ao Cavaco-todo-poderoso. AJS vinha da liderança de 'Tozé' Seguro,uma espécie de Guterres-mirim que di-zia "bué" e "fixe". Sousa Pinto integroua direção de Seguro, mas era um aliemnão sabia nem queria saber de cálculos

    A Lista K, promovida pelo Núcleo de Estudantes Socialistas da Faculdadede Direito de Lisboa (FDL) nunca venceu uma eleição, mas tinha osmelhores materiais de propaganda. Produzidos por Sérgio Sousa Pinto,tinham um grafismo ousado e mensagens irreverentes, num estilo quese aproximava das soluções gráficas de "O Independente" e da revista"Kapa", duas publicações marcantes do final dos anos 80 e início dos 90.Che Guevara era um dos ícones da Lista K, mais por razões estéticas doque ideológicas — a lista juntava socialistas e sociais-democratas, numaespécie de bloco central que se opunha à Lista O, que dominava a FDLcom um m/x de marxismo e anarquismo.

  • partidários ou de aparelho. Chegou ládepois do raríssimo feito de conquistaruma associação de estudantes para aJS. Com 16 anos, tornou-se presidenteda Associação de Estudantes do LiceuGil Vicente, em Lisboa, filiou-se na JSe foi convidado para a direção da or-ganização.

    Quando transitou para a Faculdadede Direito de Lisboa, fundou o Núcleode Estudantes Socialistas (NES), queestaria na base da Lista K. Não ganhouuma única eleição na faculdade, masformou-se ali o embrião de um movi-mento geracional com boas cabeças,ideias ousadas e um líder improvável.Num círculo de geometria variável quejuntava amigos pessoais e correligioná-rios de partido, cruzava-se com o NES

    gente como João Tiago Silveira, AnaCatarina Mendes, Marcos Perestrello,ou Alexandra Leitão e Ana MendesGodinho, ambas ministras do atualGoverno.

    Sousa Pinto ganhou fama de ideólogoe isso chegou-lhe para conquistar a JS.Organização e aparelho já havia; ideiasfora da caixa nem por isso. AscensoSimões, uns anos mais velho e membrodas direções de Seguro, foi um dos queviram no miúdo dos óculos de massa "amudança completa de paradigma" de

    que a JS precisava. Sousa Pinto afirma-va a autonomia da JS face ao partido,recusando limitar a sua agenda aos"temas jovens".

    Do seu discurso ainda não constavamas questões fraturantes. Numa primeirafase, apostaram na formação política enuma estratégia de promover por todoo país quadros da JS que ajudassem opartido a conquistar o voto jovem. Osmandatos de Seguro foram decisivospara a implementação orgânica da JS,e a direção seguinte fez o que faltava:"Fizemos formações políticas em todosos distritos, púnhamos a malta da JS afalar em todas as iniciativas locais dopartido, num trabalho muito maturadode puxar pelos nossos. Fomos constru-indo uma máquina impressionante",conta Rui Pereira, que teve um papelimportante nesse processo de afirma-ção dos jotas no ecossistema socialista.

    Jorge Coelho, o homem da máquinado PS, percebeu o potencial desse re-juvenescimento e alinhou. Resultado:nas legislativas de 1995, que elegeramGuterres, a JS tinha em quase todos

  • os distritos nomes bem colocados naslistas. Acabou com 12 deputados (numtotal de 112 socialistas), que ao longo dalegislatura chegaram aos 15 — tantoscomo o CDS que era o terceiro partido.

    O que fazer com esse poder? Leis.De preferência, as que o católico Gu-terres nunca faria. "Deixámos de seruma organização de cola-cartazes comreivindicações mais ou menos puerispara sermos uma organização capazde influenciar o PS numas questões enoutras apresentar propostas que oPS nunca apresentaria", resume RuiPereira. "Éramos um grupo unido quefuncionava como um think tank per-manente. Com um secretário-geral doPS conservador em questões sociais,havia uma frente política a desbravar.Tínhamos muitos deputados e assumi-mos essa responsabilidade", recordaMarcos Perestrello.

    A agenda da movida lisboeta

    A JS, tão útil ao PS na conquista do votojovem pós-cavaquismo, depressa se tor-nou um problema. Sem pedir licença aGuterres, Sousa Pinto anunciou no co-mício de rentrée de 1996 uma propostapara a despenalização do aborto. Foi orastilho para um conflito que se arras-tou por dois anos. "Deu grandes chati-ces. Nunca houve nenhuma articulação,porque eu não queria nem o Guterresqueria", confessa o então líder juvenil.

    Numa votação dramática, a primeiratentativa de despenalização do abortofoi chumbada no Parlamento por umvoto. Mas ficou o sinal: a bancada soci-alista estava alinhada com a propostada JS. À segunda tentativa, a despe-nalização passou, graças ao reforço da

    representação da JS (por substituiçãode deputados) e ao empenho da alaesquerda socialista — deputados comoManuel Alegre, Medeiros Ferreira ouHelena Roseta reconheciam em SousaPinto o ímpeto de esquerda que nãoviam em Guterres.

    Além do aborto, a JS já havia lançadooutras propostas "fraturantes", como adespenalização do consumo de drogas eo reconhecimento de todas as uniões de

    facto, incluindo de pessoas do mesmosexo. O céu parecia o limite. "Seríamoso primeiro ou segundo país da Europaa reconhecer as uniões de facto homos-sexuais. E donde é que isto vinha? Do

    círculo lisboeta puro: eu passava a vidano Frágil, tinha imensos amigos gays,não me passava pela cabeça que exis-tisse essa discriminação", conta agoraSousa Pinto.

    Não era só o líder da JS que se mo-vimentava nos círculos da moda nanoite lisboeta; quase toda a bancadados jovens socialistas tinha presençaregular na movida de Lisboa, entre oBairro Alto e a 24 de Julho. Sousa Pintotinha-se tornado uma figura, e tanto eracelebrado como rosto da conquista denovos direitos, como era insultado porser "o abortista" e "o amigo dos gays".Na altura da votação decisiva sobre aIVG, a polícia aconselhou-o a dormirfora de casa e a nunca repetir o mesmotrajeto para a Assembleia da RepúblicaO país estava mesmo partido ao meio.

    A relação com Guterres foi sempregélida, ao ponto de terem de se organi-zar autênticas cimeiras entre o Governoe a JS na residência do primeiro-mi-nistro. Mas havia quem, no Governo,se identificasse com as ideias da jota,como Jorge Coelho, Ferro Rodrigues,José Sócrates ou António Costa, en-tão secretário de Estado dos AssuntosParlamentares. Costa albergava no seugabinete quadros de topo da JS, comoMarcos Perestrello e Rocha Andrade,identificava-se com muitas das propos-tas dos jovens, mas era um pragmático:o que foi preciso travar, travou. Comoquando a JS avançou com a propostasobre uniões de facto que incluía ca-sais do mesmo sexo, uma ousadia queGuterres não admitiu e que poderia tertido consequências políticas sérias, sea JS não tivesse recuado. "Um dia, oAntónio Barreto escreveu que as crisesentre a JS e o Guterres eram falsas, só

    para neutralizar o líder da oposição,Marcelo Rebelo de Sousa. E eu só pen-sava... guerras falsas? Aquilo era umaguerra horrível", lembra Sousa Pinto.

    A vitória na aprovação da nova lei deinterrupção voluntária da gravidez tevefesta curta: Guterres e Marcelo cozi-nharam um referendo que chumbou,por pouco a despenalização do abortoem junho de 1998. Foi um momentodefinidor para Sousa Pinto. Conta opróprio: "Nas vésperas do primeiroreferendo estava em casa a ver as notí-cias, aquilo era uma saraivada louca deataques à despenalização do aborto, eeu só pensava: será que eu sou um doido

    varrido e desvairado, e arrastei o paísinconscientemente para uma questãoque verdadeiramente não interessa?Mesmo depois de perder achei que ti-nha razão, mas depois do referendoentrei num processo de divórcio com apolítica. Não quis recandidatar-me naJS, fui para o Parlamento Europeu, esó não desapareci por causa do [Mário]Soares."

    As vitórias... anos depois

    Enquanto liderou a JS, Sousa Pintonão triunfou em nenhuma das causasfraturantes que lançou, porém, todasse tornaram letra de lei, mas anos maistarde. "Tudo acabou por se fazer, sónão foi por nós", reconhece. "Muitasdas coisas que se alcançaram maistarde aconteceram com muito poucoruído, porque nós já tínhamos abertoessas portas."

    "O importante é que não desistimos.Não abandonámos essa bandeiras,porque eram causas que respeitavama história do PS na transformaçãoda sociedade", diz hoje Ana Catari-na Mendes. "Tivemos razão antes detempo", sintetiza Bernardo Trindade."Obrigámos o país a reconhecer pro-blemas que precisavam de respostas,e sentíamos que estávamos a dar ocontributo da nossa geração para oavanço civilizacional do país", refor-ça o antigo secretário de Estado doTurismo. "Hoje tenho consciência docontributo que demos para a trans-formação social do país. Olho para aschamadas questões fraturantes quesurgem agora e sinto um certo pater-nalismo... Abrimos a porta ao debatede grandes questões de melindre so-cial, e hoje essas questões vão sendoaprofundadas, não mais do que isso",comenta Marcos Perestrello.

    Sousa Pinto fala dos seus anos de JScomo "o período de ouro" da organi-zação, que não deixou lastro. "Foramuns malucos que por aqui passarame isso não teve sequência. Fui eleitosecretário-geral da JS com 21 anos, fiztrês mandatos, saí com 26. Fizemos umcombate de ideias, e não de aparelhos.Sem medo das consequências. O queé que isto tem a ver com o que temoshoje? Hoje insistem em arrombar por-tas que nós escancarámos..."

    [email protected]

  • CAUSAS RECONHECIDASMAIS TARDE

    Despenalização das drogasLogo em 2000, em pleno GovernoGuterres, BE e PS avançaram com adescriminalização do consumo de

    drogas. As bancadas dividiram-se: adireita foi contra, mas a lei passougraças à abstenção de alguns dos

    deputados e de toda a bancadacomunista. Dezoito anos depois, foiautorizado o consu mo de canábis parafins medicinais.

    Legalização do abortoA batalha pareciaganha em 1998,quando Sérgio Sousa Pinto conseguiuu ma margem de nove votos paradescriminalizar o aborto. MasGuterres e Marcelo Rebelo de Sousa,então líder do PSD, combinaram umreferendo: ganhou o "não", emborasem ser vinculativo. Só em 2007, umnovo referendo permitiu a interrupçãovolu ntária da gravidez, por opção damulher, até às 10 semanas de gestação.

    Reconhecimento das uniões de factoEm agosto de 1999, a proposta do PS

    para equiparar qualquer união defacto a um casamento civil foiaprovada. A lei foi sendo revista ealargada ao longo da primeira décadado século XXI.

    Uniões de facto homossexuais"Um momento histórico", disse oentão primeiro-ministro, JoséSócrates, sobre o dia 8 de janeiro de2010, quando se aprovou o casamentoentre pessoas do mesmo sexo. PSD eCDS votaram contra, mas houvefestejos nas galerias do Parlamento,

    por parte de ativistas. Isabel Moreiraque, um ano depois seria eleita

    deputada pelo PS, tatuou no braço adata da aprovação daquela lei.