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AÇÃO ECONÔMICA ESTATAL E O DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUÇÃO BRASILEIRA DE 1988 ECONOMIC STATE ACTION AND DEVELOPMENT IN BRAZILIAN CONSTITUTION OF 1988 Fabiano Gomes de Oliveira Giovani Clark RESUMO A construção do mito enunciado pela Economia Clássica referente à existência de “leis naturais” capazes de regular o mercado sem a necessidade de atuação estatal, sempre opôs obstáculos a ação econômica estatal, taxada de intervenção, terminologia decorrente de preconceito do liberalismo econômico. Contudo, tal posicionamento é incoerente com a própria história da evolução do mercado, pois, a existência do mercado como instituição, somente foi possível devido à ação do Estado garantidor de sua existência e funcionamento. Conforme a Constituição Federal de 1988, de cunho desenvolvimentista, a atuação econômica do Estado brasileiro é imposta principalmente, com o objetivo de reduzir ou suprimir as diferenças sociais e regionais, dentre outros. PALAVRAS-CHAVES: ATUAÇÃO ECONÔMICA ESTATAL, DESENVOLVIMENTO, JUSTIÇA SOCIAL, LIBERALISMO, NEOLIBERALISMO DE REGULAMENTAÇÃO E NEOLIBERALISMO DE REGULAÇÃO. ABSTRACT The construction of the myth described by the Classical Economics on the existence of "natural laws" to regulate the market without the need for state action, always opposed obstacles to economic performance state, taxed to intervene, terminology due to prejudice the economic liberalism. However, this position is inconsistent with the very history of the development of the market, therefore, the existence of the market as an institution, was only possible by the action of the State which ensured its existence and operation. As the Federal Constitution of 1988, from developmental stamp, the Brazilian state's economic performance is something that is needed, mainly aiming to reduce or eliminate social and regional differences. KEYWORDS: ECONOMIC STATE ACTION, DEVELOPMENT, SOCIAL JUSTICE, LIBERAL, NEOLIBERAL OF REGULATIONS, ADJUSTMENT. 2785

AÇÃO ECONÔMICA ESTATAL E O DESENVOLVIMENTO NA … · liberdades do mercado e, ... o próprio Adam Smith, ... Seria necessário o desmonte de todo o aparato estatal do Bem-estar

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AÇÃO ECONÔMICA ESTATAL E O DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUÇÃO BRASILEIRA DE 1988

ECONOMIC STATE ACTION AND DEVELOPMENT IN BRAZILIAN CONSTITUTION OF 1988

Fabiano Gomes de Oliveira Giovani Clark

RESUMO

A construção do mito enunciado pela Economia Clássica referente à existência de “leis naturais” capazes de regular o mercado sem a necessidade de atuação estatal, sempre opôs obstáculos a ação econômica estatal, taxada de intervenção, terminologia decorrente de preconceito do liberalismo econômico. Contudo, tal posicionamento é incoerente com a própria história da evolução do mercado, pois, a existência do mercado como instituição, somente foi possível devido à ação do Estado garantidor de sua existência e funcionamento. Conforme a Constituição Federal de 1988, de cunho desenvolvimentista, a atuação econômica do Estado brasileiro é imposta principalmente, com o objetivo de reduzir ou suprimir as diferenças sociais e regionais, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVES: ATUAÇÃO ECONÔMICA ESTATAL, DESENVOLVIMENTO, JUSTIÇA SOCIAL, LIBERALISMO, NEOLIBERALISMO DE REGULAMENTAÇÃO E NEOLIBERALISMO DE REGULAÇÃO.

ABSTRACT

The construction of the myth described by the Classical Economics on the existence of "natural laws" to regulate the market without the need for state action, always opposed obstacles to economic performance state, taxed to intervene, terminology due to prejudice the economic liberalism. However, this position is inconsistent with the very history of the development of the market, therefore, the existence of the market as an institution, was only possible by the action of the State which ensured its existence and operation. As the Federal Constitution of 1988, from developmental stamp, the Brazilian state's economic performance is something that is needed, mainly aiming to reduce or eliminate social and regional differences.

KEYWORDS: ECONOMIC STATE ACTION, DEVELOPMENT, SOCIAL JUSTICE, LIBERAL, NEOLIBERAL OF REGULATIONS, ADJUSTMENT.

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1 INTRODUÇÃO

O surgimento de mitos no seio social, não tem um marco histórico ou uma explicação racional demonstrando quando e como apareceu, porém, refletem os aspectos culturais ou sociológicos de uma sociedade. Mesmo relacionados, inicialmente, a deuses e divindades, os mitos também podem se referir á outros campos do conhecimento humano, como a política, a economia, a saúde e o direito.

Ensina o jurista italiano Norberto Bobbio (1997, p. 983), quanto ao significado de mito que é "un vacío inalcanzable para la conciencia y del cual nace la estructura misma de la conciencia: podemos individualizar el mecanismo del cual nace, pero no su naturaleza".

Para este trabalho, porém, interessa o mito econômico, especialmente, os referentes às "leis naturais" do mercado, defendidas pelos autores da "Economia Clássica" ou Liberal.

Por aquele modelo econômico, a presença do Estado na economia seria uma agressão às liberdades do mercado e, por assim, às liberdades do homem (indivíduo), e deveria ser combatida a todo custo. Ora, o mercado teria condições de cuidar de si próprio, já que a livre concorrência entre os agentes econômicos, eliminando os mais fracos e ineficientes, manteria o equilíbrio necessário para o seu funcionamento.

O indivíduo seria o único capaz de saber como aplicar o seu capital da melhor forma e, assim, ao procurar o melhor para si, indiretamente, buscaria o melhor para a sociedade. Desta forma, a presença do Estado é rejeitada e desnecessária, cabendo a ele, apenas, preservar a paz e proteger a propriedade, esta acima de tudo.

Era o laissez-faire dos anos da Revolução Industrial inglesa, bem como os ideais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", mote da Revolução Francesa, da classe burguesa em ascensão, estabelecendo seus princípios como os próprios pilares do Estado de Direito.

O liberalismo clássico era o projeto de vida burguesa, que abominava (hipoteticamente) a interferência estatal na vida do indivíduo, bem com nos seus negócios e, por conseguinte, no próprio mercado, considerando, assim, qualquer ingerência como indevida e uma violação às "leis naturais", impedindo a "justa" acumulação de riqueza pelo "próprio" trabalho.

Esta linha de pensamento, se estende por todo o século XIX e início do XX, com óbvios reflexo no direito, tão profundos, que a interferência do Estado na economia ganha o nome de "intervenção", sintetizando a idéia de total separação entre Estado e Sociedade, como se um fosse oposto ao outro, inexoravelmente.

Todavia a rejeição da presença estatal no mercado é contrária à própria história econômica, pois, o surgimento do mercado como instituição, deve-se, sobretudo, ao nascimento do Estado Nacional. Se não fossem as leis estatais, criando, limitando, regulando e protegendo, o mercado por si só, não teria conseguido desenvolver-se ao ponto de, incoerentemente, tentar impedir a presença do Estado em seu meio.

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O mercado, então, não tem nada de natural. Os poderes públicos sempre agiram na vida socioeconômica, inclusive na era do liberalismo clássico. Segundo as lições de Coelho (2007), o próprio Adam Smith, em sua obra "A Riqueza das Nações", pregava a necessária ação estatal para viabilizar a produção energética das maquinas (carvão a época) e para garantir o trabalho da força laboral (política agrícola), além dos casos de omissão, desinteresse e incapacidade do setor privado. Ensina ainda Clark (2001):

Apesar de uma intervenção denominada negativa no Estado Liberal, encontramos inúmeros exemplos de atuação econômica positiva do Estado, até mesmo sistemática, neste modelo. Como a Lei do Trigo, na Inglaterra, que garantia um preço mínimo para o seu produto, buscando incentivar o agricultor, como a sujeição deste a certas regras de importação; e, ainda, as barreiras colocadas pelos Estados Unidos e Alemanha, por volta de meados de 1800, para a importação de mercadorias, no intuito de desenvolver e proteger a infantil indústria local contra os produtos da potente indústria inglesa (HUBERMAN, 1986) ( p. 21-22)

Com o tempo, a sobre-exploração dos trabalhadores, criando revoltas "contraproducentes" ao capital, as crises cíclicas do capitalismo e o advento do socialismo real, o liberalismo clássico, de forma a preservar o próprio modelo capitalista, possibilitou a expansão da atuação do Estado na vida econômica, com uma série de ações sociais e econômicas.

Exemplos maiores foram o New Deal norte-americano após a grande depressão e o Estado de Bem-estar Social europeu após a II Grande Guerra, estabelecendo a reconstrução econômica e social da Europa em ruínas. Era o Estado Social ou Econômico.

No entanto, as idéias liberais não haviam morrido, ressurgindo com força, nos anos de 1970, após algumas décadas em "sono irriquieto", num ambiente de grave crise econômica, motivada pelo primeiro choque do petróleo, quando os Estados produtores resolveram tomar o controle de suas principais riquezas.

Nesta oportunidade, os defensores do liberalismo, agora chamado de neoliberais reguladores, apresentaram suas receitas para o restabelecimento da ordem "natural" do mercado, única forma possível de restaurar o vigor econômico, principalmente, nos EUA e Europa ocidental.

Seria necessário o desmonte de todo o aparato estatal do Bem-estar Social, como a flexibilização dos direitos dos trabalhadores, enfraquecendo seus movimentos; privatização em massa das empresas estatais; regras monetárias rígidas; bem como equilíbrio orçamentário e fiscal, correspondendo a uma redução dos "gastos" sociais.

Aqueles fatos eram em resumo, o receituário do neoliberalismo de regulação, oferecido como o meio correto de reencontrar o dinamismo do mercado, conforme a forma de produção capitalista, que havia sido afastado de suas "leis naturais". Era a decretação do

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fim do neoliberalismo de regulamentação, ou seja, do Estado empresário com forte presença na vida socioeconômica.

Neste contexto, sopram os ventos da "globalização", que impõem aos Estados nacionais uma submissão ao capital, que, agora, exige a abertura das economias dos países ao mercado mundial; abolição de quaisquer regras de controle do fluxo de capital; orientação ao modelo exportador, principalmente, para as nações não desenvolvidas exportadoras de matérias-primas; além da necessária desregulamentação econômica, com uma contida presença estatal na economia.

Assim, a possibilidade de implantar políticas de desenvolvimento com a modificação das estruturas sociais, ficou inviável, principalmente, para os Estados nacionais em desenvolvimento, jogando suas populações ainda mais para a miséria.

O desastre econômico e social pela combinação perniciosa do neoliberalismo regulador e globalização, não seria difícil de prever, no entanto, este pensamento tornou-se hegemônico e impositivo na agenda econômica de qualquer Estado, para transformar-se em um mito, cerceando críticas que pudessem surgir.

Contudo, a nova crise financeira (2008/2009) instalada, iniciada pela especulação irresponsável dos agentes financeiros internacionais, conhecida em sua origem como "Crise do Subprime", com fortes reflexos, hoje, na economia real, resultando em um período recessivo, demonstra a incapacidade auto-regulatória do mercado e a necessidade da presença estatal na economia, inclusive, no socorro às instituições à beira da falência com vultosas quantias em dinheiro do Estado.

Desta forma, este trabalho pretende, primeiro, verificar a existência de "leis naturais" do mercado e, segundo, se a ação estatal na economia é, realmente, necessária, tanto direta como indiretamente.

E ao final, a partir das análises feitas refletir se a atuação do Estado na economia, pode ser confundida com simples intervenção efêmera e ocasional, especialmente, diante da realidade brasileira, exigindo sua presença como agente indutor e promotor do desenvolvimento econômico e social, atendendo à ideologia constitucional de observância obrigatória, extraída, principalmente, dos artigos 170 a 192 da Constituição Federal.

2 DIREITO E ECONOMIA

2.1 "LEIS NATURAIS" DE QUEM?

Para esta parte do trabalho, toma-se emprestado o título do Capítulo XVII da obra de Huberman (1986), "História da Riqueza dos Homens", com a intenção de demonstrar a estreita e íntima relação entre Estado e Mercado, afastando, portanto, a existência das chamadas "leis naturais" da Economia Clássica.

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Nada mais irreal do que supor que o mercado, conforme a idéia dos direitos naturais, seria deste decorrente atrelado ao próprio destino do homem: a liberdade plena e total. Assim, no campo da metafísica, próprio do jusnaturalismo, o mercado surgiria e seria regulado por "leis naturais", num processo de auto-regulamentação eficiente, descartando ou mesmo repudiando, qualquer tipo de interferência estatal.

Na verdade, o surgimento e consolidação do mercado estão umbilicalmente ligados à construção do Estado Nacional, ainda numa fase pré-capitalista, quando houve a centralização de todo o poder tributante e da violência, nas mãos de um único soberano, alijando os demais nobres (senhores feudais) de parte do poder que outrora detinham.

Era a presença de senhores diferentes em diferentes lugares ao longo das estradas comerciais que tornava os negócios tão difíceis. Necessitava-se de uma autoridade central, um Estado nacional. Um poder supremo que pudesse colocar em ordem o caos feudal. Os velhos senhores já não podiam preencher sua função social. Sua época passara. Era chegado o momento oportuno para um poder central forte. (HUBERMAN, 1986, p. 65)

Isto porque com a evolução e a força econômica da classe dos comerciantes, os "burgueses", os mesmos perceberam que a divisão do território em vários centros de poder legislativo, tributante, com pesos, medidas e moedas diversas, diminuía a possibilidade dos lucros a serem auferidos. Preleciona Grau (2005):

(...) a exigência de um sistema de normas jurídicas uniformes e de um sistema de decisões políticas integrado em relação a determinado território é essencial para o funcionamento e o desenvolvimento dos mercados, ou, de modo mais geral, da sociedade civil, isto é, da coletividade que participa da distribuição dos bens e das oportunidades que nascem dos mercados. (p. 31)

Posteriormente, com o avanço do capitalismo, substituindo o processo mercantilista, ocorre a súbita tomada de poder pela classe burguesa, inaugurando, assim, uma nova fase política e econômica: o Estado burguês ou de Direito.

Os burgueses constituíam-se numa classe que se construiu ao longo dos séculos, basicamente, por comerciantes e, com o tempo, por profissionais autônomos e funcionários públicos. Localizavam-se na pirâmide social, entre os camponeses (mais pobres) e o clero e a nobreza (mais ricos), detentores do poder político. Já dominavam a economia ao tempo da Revolução Francesa e queriam o poder político.

Huberman (1986) explica, claramente, quem constituía esta classe:

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Quem era a burguesia? Eram os escritores, os doutores, os professores, os advogados, os juízes, os funcionários - as classes educadas; eram os mercadores, os fabricantes, os banqueiros - as classes abastadas, que já tinham direitos e queriam mais. Acima de tudo, queriam - ou melhor, precisavam - lançar fora o jugo da lei feudal numa sociedade que realmente já não era feudal. Precisavam deitar fora o apertado gibão feudal e substituí-lo pelo folgado paletó capitalista. (...) (p. 136)

Com a tomada do poder pelos revolucionários, via a Revolução Francesa por exemplo, a classe vitoriosa, a única para ser exato, foi a burguesia, assim "o Privilégio de nascimento foi realmente derrubado, mas o privilégio do dinheiro tomou seu lugar" (HUBERMAN, 1986, p. 138). Nascia, assim, o Estado Moderno, burguês por excelência, capitalista por essência.

A grande contradição do movimento revolucionário burguês era que desejava tomar o Estado para tirá-lo de cena da vida socioeconômica (teoricamente), isto é, queriam controlar o Estado conforme suas necessidades. Com a ascensão da classe burguesa surge outro poder, tão forte e arrogante, quanto o poder real absolutista do antigo regime, trata-se do poder econômico, traduzido pelos agentes de mercado.

O poder econômico, hipoteticamente, não admitia a interferência estatal na economia, pois, desta forma, desarranjaria o "equilíbrio natural" regulado pelo próprio mercado. Cabia ao Estado apenas preservar a paz e proteger a propriedade. Este era o espírito sob o qual, inclusive, forjou-se o direito, com profundos reflexos até os tempos atuais. Souza (2005) explica a relação entre poder econômico e direito, quando diz:

O poder econômico exprime, antes de tudo, uma concepção de "natureza política", pois que representa uma das manifestações do poder. Simbolizando uma forma de "domínio" no relacionamento entre pessoas ou entidades da mais diversa natureza, envolve, ao mesmo tempo, o aspecto jurídico que estabelece o regime dessas "relações". "Direitos" e "Obrigações" a elas estão presentes na mais variada gama, indo da imposição e do domínio absoluto até os relacionamentos democráticos e igualitários. (p. 236)

As "leis naturais", portanto, foram concebidas para o favorecimento do capital, impedindo, teoricamente, qualquer atuação estatal no campo econômico, promovendo, pela "natural" concorrência, a sobrevivência do mais forte e eficiente, com a eliminação do mais fraco e ineficiente, inclusive, relativamente à relação capital-trabalho, regulada, por sua vez, pela "lei natural" da oferta e da procura, o que permitia todos os tipos de abusos e excessos.

Neste contexto, mostrava-se razoável acreditar que "(...) a idéia de 'intervenção' tem como pressuposta a concepção da existência de uma cisão entre Estado e sociedade civil" (GRAU, 2005, p. 21), nada mais equivocado, pois, tratam-se ambos de manifestações da realidade humana quando da associação dos próprios homens com outros homens (GRAU, 2005).

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A partir da segunda metade do século XIX, o sistema de plena liberdade já demonstrava, claramente, suas imperfeições pelo próprio excesso do poder econômico, submetendo todo o mercado a concentrações pelos mais fortes, com monopólios, oligopólios ou duopólios, minando a concorrência e colocando à deriva o próprio capitalismo. Induzindo assim a "intervenções" do Estado, cada vez mais ostensivamente, para regulá-lo, pois, "o fato é que, a deixarmos a economia de mercado desenvolver-se de acordo com as suas próprias leis, ela criaria grandes e permanentes males" (GRAU, 2005, p. 30). Exemplo típico foi a norte-americana Lei Sherman, de 1890, de combate à concentração de mercado por poderosos agentes econômicos.

Ademais, os movimentos reivindicativos dos trabalhadores cansados da exploração e o aparecimento da teoria socialista de Karl Marx, força à tomada de posição do Estado de "intervir" mais fortemente no mercado, surgindo assim as primeiras Constituições Econômicas expressas, na transição do século XIX para o XX, culminando com as constituições sociais do México de 1917 e de Weimar (austríaca) de 1919.

Este movimento pendular do capital ao social, porém, tem apenas o intuito de estabelecer a sobrevivência do sistema capitalista, controlando os movimentos dos trabalhadores, ou minimizar o colapso das crises dos mercados, afastando o risco do socialismo real e, evitando o fim do processo concorrencial.

O capitalismo, assim, se autopreserva, aceitando a "intervenção" estatal na economia, o que é necessário, aliás, para a evolução daquele. Diz Clark (2008):

Assim sendo, existe uma simbiose entre Estado e economia de mercado. Não existe esta última sem o primeiro. Por intermédio de inúmeras ações realizadas através dos tempos, o Estado ora dilata sua intervenção no domínio econômico como no período das políticas econômicas mercantilistas, patrocinadas pelos Estados absolutistas do século XVII ou, então, a restringe como nas políticas econômicas liberais construídas pelos Estados de Direito do século XIX. (p. 75)

Fica descaracterizado, assim, o mito das "leis naturais" do mercado, o qual é, sem dúvidas, uma instituição jurídica (GRAU, 2005), criado, mantido e regulado pelo Estado, não, podendo, portando, seja por inexistência de condições, seja por instinto de preservação, existir e manter-se sem o seu criador.

2.2 NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO - REGULAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO

Com a superação do liberalismo, surge nova fase do capitalismo, caracterizado pela aguda "intervenção" do Estado na economia e no plano social, com discurso "socializante" já anunciado pelas Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919), instaurando assim o chamado de Estado do Bem-estar Social ou Welfare State ou Estado Providência.

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Materialmente, ele se manifesta no New Deal norte-americano, no período logo após a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 e o início da grande depressão, pelo qual o Estado tentava reerguer a economia, como um verdadeiro agente econômico, em direção oposta à tradição liberal dos EUA.

Mais intenso que o modelo norte-americano, a Europa no pós-guerra consolidou e aparelhou o Estado como agente indutor e promotor da economia, além de promover os necessários investimentos em educação, saúde, previdência e construção de uma ampla rede de proteção social, no contexto de uma sociedade arrasada pelo conflito da 2ª Grande Guerra.

Entretanto, é no pós-guerra que o ideal neoliberal regulador começa a ser desenhado por ideólogos que se colocavam como adversários férreos do chamado intervencionismo estatal na economia, considerado "(...) como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política" (ANDERSON, 2007, p. 9).

O ideário do neoliberalismo de regulação é, então, o combate à forma anterior de organização da economia pelo Estado e o solidarismo, pregando um capitalismo isento a todo e qualquer tipo de regramento eliminador da liberdade do mercado. Ou melhor, uma técnica renovada de ação estatal na vida socioeconômica mais complacente com os interesses dos donos do dinheiro.

O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos do bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. (ANDERSON, 2007, p. 11)

A grande oportunidade do movimento neoliberal regulador adveio com o declínio da experiência do Estado de Bem-estar Social a partir da década de 1970, principalmente após o choque do petróleo acentuando sobremaneira aquele declínio, surgindo, assim, uma nova sociedade, pautada pelo pensamento dos ideólogos do novo liberalismo econômico ou neoliberalismo regulador. Caracterizando esta sociedade, escreve Silva (1997):

A sustentação básica do Welfare State - pleno emprego, crescimento econômico e família estável - está ruindo na nova sociedade marcada pela hegemonia da técnica, com afrouxamento da relação produção-trabalho humano. O que se tem é o advento de uma sociedade dual, composta, de um lado, por pessoas muito bem empregadas e, de outro,

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por um contingente mais amplo de pessoas desempregadas ou precária e instavelmente empregadas. (p.14)

Esta nova configuração social resulta das profundas modificações econômicas, facilmente caracterizada na precarização das relações de trabalho, com a flexibilização das garantias do emprego, o crescimento do desemprego e o elevado aumento dos níveis de pobreza, incluindo o surgimento da "nova pobreza" (SILVA, 1997, p. 18).

De acordo com Silva (1997, p. 21), o fenômeno da "nova pobreza" é associado ao deslocamento de pessoas e famílias para padrões de vida (inferior) ou classes sociais nas quais nunca estiveram, diferentemente daquela pobreza geracional, isto é, herdada, transmitida de pai para filho, de geração em geração.

Para os reguladores "(...) existe uma incompatibilidade original entre o mercado e a justiça social e que, evidentemente, a atitude científica e racional ordena que se escolha o mercado em detrimento da justiça social" (AKTOUF, 2007, p. 35). Assim, a conseqüência social da aplicação da teoria econômica do neoliberalismo de regulação, não poderia ser diferente da descrita por Therborn (2007):

Ela se manifesta na destruição social criada pelo poder do mercado. Vemos em todos os países, não somente na América Latina, tendências a um desemprego de massas de caráter permanente, uma reprodução da pobreza e, também, o surgimento de altos graus de desesperança e de violência, inclusive nos países escandinavos. Esta tendência autodestrutiva da competição atual no capitalismo, geradora de mecanismos cada vez mais intensos de exclusão social de uma grande parte da população, é um aspecto central desta contradição sociológica. (p. 47)

Têm-se, então, duas pobrezas disputando as migalhas da dinâmica do mercado, a antiga e a nova, a hereditária e a "nova pobreza". Este fenômeno toma proporções drásticas, não escolhendo nações, sejam as em desenvolvimento latino-americanas, sejam as sociais-democracias européias, podendo ser chamado de "genocídio econômico".

O genocídio econômico é executado atualmente com uma eficácia espantosa, via políticas econômicas públicas e privadas, no Terceiro Mundo, as eternas colônias, pelos senhores dos lucros. Evidentemente, em nome da glória do capital nos reservaram as trevas do inferno, logicamente sem a aquiescência dos deuses. (SOUZA; CLARK, 2008, p. 36)

O modelo neoliberal divide-se em duas orientações paradigmáticas, quando considerados o Estado Mínimo e o Estado Máximo, na medição que se faz da presença

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estatal na economia: o neoliberalismo regulador e o regulamentador. Souza (2005) descreve estas duas orientações:

Quando dirigido no sentido de mais ampla presença do poder econômico do Estado no domínio econômico, ou seja, do Estado Máximo, temos o Estado "dirigente", "planejador", "regulamentador", impropriamente chamado "intervencionista", como se verá adiante. Quando a sua presença se torna menor, configura-se o Estado Mínimo, livre-concorrencial e, quando muito, "regulador". (p. 315)

A orientação reguladora age no sentido do Estado abster-se (teoricamente apenas) de intrometer-se nas questões "naturais" do mercado, afastando-se do modelo do Bem-estar Social ou de sua atuação direta como empresário. Desta forma, apenas regularia (via normas jurídicas estatais produzidas, inclusive pelas agências reguladoras) o funcionamento do mercado, deixando este em maior liberdade de atuação, retomando (supostamente), assim, velhas máximas do liberalismo econômico, isto é, o Estado Mínimo, todavia, sem conseguir tal intento. Uma interpretação equivocada do art. 174 conjugado ao art. 173, ambos da Constituição Federal - CF, pode levar ao entendimento de que este é o papel reservado ao Estado brasileiro, não dando espaço à possibilidade de sua atuação econômica direta.

Já o modelo neoliberal regulamentador, adotado no Brasil até a década de 1990, é o que coloca o Estado na condição de empresário, criando empresas para atuar, na condição de pessoa jurídica de direito privado, de igual forma aos particulares, com os mesmos direitos e obrigações em geral (SOUZA, 2005, p. 350). Nesse modelo, a atuação estatal é ostensiva via legislação (intervenção indireta) e empresas estatais (intervenção direta).

O Brasil sofreu e sofre intensamente ao aderir a estes modelos, principalmente, o regulador. Não obstante a já gigantesca desigualdade social, tem-se que tal situação toma contornos dramáticos, principalmente com a introdução de reformas no ordenamento jurídico-constitucional, em meados da década de 1990, para permitir a adaptação da Nação às exigências do neoliberalismo regulador empurrado, ainda, pelos ventos da globalização, numa mistura perniciosa de crescimento modernizante e injustiças sociais.

Sobre a globalização, Santos (2002) assim explica:

As implicações destas transformações para as políticas económicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientações ou exigências: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços locais devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da dívida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrões nacionais

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de especialização, a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela actuação do mercado. (p. 35)

O Estado é chamado para ser eficiente, competitivo, lucrativo, obrigando a justificar o provável retorno de cada gasto realizado ou pretendido (AKTOUF, 2004, p. 22), isto é, seu funcionamento deve ser nos moldes de uma empresa privada, não importando o sofrimento social provocado.

Esta é a lógica da conjugação do neoliberalismo regulador e globalização, uma incessante busca pelo lucro, sem importar com a crescente exclusão social, pobreza e marginalização de parcelas cada vez maiores da população, principalmente, dos países mais pobres e vulneráveis, ou mesmo com a falência de Estados soberanos, como o ocorrido com a Argentina em 2002, levando a decretação da moratória de sua dívida externa, devido a sua total insolvência.

Contudo, há estudiosos que entendem que o "processo de internacionalização das últimas décadas não é nem tão abrangente e nem tão novo quanto sugerem os arautos da globalização" (BATISTA JR., 2002, p. 40), completando que o "grau de integração da economia internacional nas décadas recentes é comparável, e em alguns aspectos até inferior, ao observado no período anterior à Primeira Guerra" (BATISTA JR., 2002, p. 40).

Porém, a globalização dos tempos atuais se dá pela forte financeirização do mercado, "isso significa passar do setor (ou organização) de produção de serviços e de utilidades da economia real para a posição de holding financeira cujo único objetivo é multiplicar, por toda parte, o dinheiro pelo dinheiro, custe o que custar" (AKTOUF, 2004, p. 22), não tendo o poder econômico nenhum outro objetivo, além dos ganhos do capital, "não se preocupando nem com o emprego, nem com o bem-estar da sociedade e nem, ainda menos, com a preservação da natureza" (AKTOUF, 2004, p. 22).

No entanto, é inegável que o pensamento hegemônico neoliberal regulador globalizante provoca nas sociedades e nos governos, a construção do mito, conforme descrito por Batista Jr. (2002):

Um dos efeitos práticos da mitologia da "globalização", em especial da idéia de que estamos submetidos à ação de forças econômicas globais incontroláveis, é paralisar as iniciativas nacionais, que passam a ser rotuladas como ineficazes, sem maior discussão. A mensagem central é que as políticas nacionais têm de se curvar aos imperativos da "nova economia global". Qualquer desvio em relação aos supostos consensos da "globalização" é imediatamente tachado de inviável em face do julgamento e das sanções dos mercados internacionais, vistos como todo-poderosos. (p. 38)

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O Estado, portanto, deve controlar das forças privadas do mercado, agindo economicamente, direta ou indiretamente, na tentativa de desviar a direção da economia do objetivo único de proporcionar lucro para poucos, mas, permitir a redistribuição da riqueza e melhoria de vida da maioria das populações. A crise financeira atual mostra cabalmente essa necessária ação estatal na vida socioeconômica, inclusive para coibir os abusos, a ganância e a incompetência privada no mercado.

No caso do Brasil isto é um dever do Estado, pois, conforme a ideologia constitucional, extraída do caput do art. 170 da Constituição Federal, a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna com justiça social.

2.3 AÇÃO ESTATAL E A BUSCA PELO DESENVOLVIMENTO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988.

Por ação econômica estatal pode-se entender o exercício do poder econômico pelo Estado, que se dará numa forma mínima ou máxima, conforme a orientação jurídica-política de determinada a nação em certo tempo.

Neste aspecto, deve ficar claro, neste trabalho, o que se considera como ação econômica estatal, gênero, do que se chama intervenção econômica, espécie daquela e com a qual não se confunde, já que significa, apenas, atuação estatal esporádica e extraordinária na vida econômica.

A terminologia "intervenção" se origina da noção do Estado burguês das ações econômicas estatais na economia, desta forma "(...) traduz mais propriamente um preconceito liberal, pois nesse caso o Estado estar-se-ia fazendo presente contra aquela ideologia, o que somente seria admitido como 'exceção'" (SOUZA, 2005, p. 316).

Porém, como já se discutiu anteriormente, a idéia passada pela terminologia "intervenção", quando referindo à atuação econômica estatal, é a de uma cisão sociedade-Estado (GRAU, 2005), que, na realidade, é equivocada por considerar os dois entes como decorrentes de invenções humanas desconexas, quando, no fundo, tem a mesma natureza, isto é, a da formalização de associações entre homens, variando, apenas, o grau e conformação a ser realizada. Assim, contrariamente ao termo consagrado, utilizar-se-á a expressão "ação econômica estatal" para aludir-se ao legítimo exercício do Poder Econômico pelo Estado, seja como agente direto, seja indiretamente nas suas funções regulatórias, fiscalizatórias ou de planejamento.

Ora, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, isto é, a essência da Nação, a base sobre a qual se ergue como Estado, é a dignidade da pessoa humana, de acordo com o inciso III, art. 1º da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, consagra a dignidade da pessoa humana, como o fim da ordem econômica e financeira, conforme o caput do art. 170 da Constituição Federal.

Este princípio, evitando-se definições de conotações, meramente, meta-jurídicas, o que levaria à perda de sua eficácia como norma jurídica, pode ser considerado como aquele

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que concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, afastando, ainda, concepções transpessoalistas de Estado e Nação em prejuízo às liberdades individuais (MORAES, 2005, p. 16).

Grau (2005, p. 196) aprofunda a definição ao considerar que "embora assuma concreção como direito individual, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio, constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos".

Cruz, apesar de enquadrá-los num conjunto normativo principiológico e, por isto, acarretando uma conceitualidade aberta (2001, p. 213), aponta, ainda, que os direitos fundamentais como normas jurídicas, são os que vão garantir as pretensões à realização e construção da dignidade do ser humano.

Dignidade humana expressa resumidamente a força motriz do novo paradigma do Estado Democrático de Direito. A luta por dignidade leva a sociedade, de uma postura passiva para uma atitude francamente ativa. O cliente do Estado-Providência desiste de esperar. Levanta-se e se organiza. Os limites da vontade institucional/estatal e da vontade informal/privada desaparecem. Já não há mais uma clara separação entre Estado e Sociedade, uma vez que seus canais de comunicação mesclam-se de modo atordoante. (CRUZ, 2001, p. 223)

Assim, a relação entre Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais é orgânica, pois, sem o respeito a estes não se tem o primeiro e, no cerne dos direitos fundamentais, vamos encontrar como sua essência a dignidade da pessoa humana que, por último, passa a ser então, o próprio princípio estruturante do Estado moderno e, especificamente, da República Federativa do Brasil como ente politicamente organizado.

Desta forma, para a compreensão da Constituição Econômica, vale o considerado anteriormente, principalmente, em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, isto porque a ordem econômica "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social", como estabelece o caput do art. 170 da Constituição Federal. É isto que a Constituição Econômica pretende, observando a ideologia exalada de seu Texto. Para alguns doutrinadores, em relação a sua ideologia, a Constituição tem contorno definido inegável.

A nossa Constituição Econômica de 1988 adotou uma ideologia constitucional neoliberal, ou seja, a economia de mercado; mas os seus pressupostos priorizam o capital nacional e sujeitam aquela à intervenção direta e indireta do Estado, no intuito de buscar os seus fins (art. 170, caput, da CF) e os objetivos fundamentais da República (art. 3º, CF). (CLARK, 2001, p. 108)

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Ademais, na visão de Grau (2005), o texto constitucional adota o modelo capitalista, entretanto, configurado no sistema do Estado do Bem-estar Social (ou Welfare state).

Certo é, porém, que a essência de sua ideologia, quando se trata da Constituição Econômica, é assegurar a existência digna a todos, nos termos da justiça social, como fala o caput do art. 170 da Constituição Federal, em observância ao próprio fundamento da República brasileira, entre eles, o da dignidade da pessoa humana (inciso III, art. 1º, CF).

Todos os outros aspectos da ideologia de coloridos matizes presentes à Assembléia Constituinte, reflexo da própria complexidade pós-moderna da sociedade brasileira, deverão gravitar ao redor do princípio da dignidade da pessoa humana, no momento em que se buscar o entendimento da ordem econômica.

Nesta sua segunda consagração constitucional, a dignidade da pessoa humana assume a mais pronunciada relevância, visto comprometer todo o exercício da atividade econômica, em sentido amplo - e em especial, o exercício da atividade econômica em sentido estrito - com o programa de promoção da existência digna, de que, repito, todos devem gozar. (GRAU, 2005, p.197)

E o não atendimento a este princípio, isto é, "o exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação ao princípio duplamente contemplado na Constituição" (GRAU, 2005, p.197), o que vale para os agentes econômicos públicos e privados.

Apesar de se adotar o sistema econômico de mercado, ou seja, capitalista, não é a sua lógica que deve prevalecer quando tensões ocorrerem entre os diversos princípios constitucionais econômicos, simplesmente, porque a ordem econômica constitucional não o contemplou como o seu fim ou objetivo, mas, sim, a necessidade de assegurar a existência digna a todos conforme os ditames da justiça social.

Pode-se dizer, portanto, que a ideologia constitucionalmente adotada orienta-se pelos seguintes parâmetros: uma economia de modelo capitalista, ou seja, de mercado, cujos fundamentos são a valoração do trabalho humano e a livre iniciativa, porém, com objetivos de assegurar a todos uma existência digna conforme a justiça social, com inexorável viés desenvolvimentista, decorrendo, então, o dever do Estado brasileiro de atuar no campo sócio-econômico a fim de efetivar as diretrizes constitucionais. Esta é, portanto, a ideologia constitucionalmente adotada.

Por outro lado, a Constituição Federal ao construir a estrutura da ordem econômica, sempre apontou que sua ideologia somente seria alcançada pela busca do desenvolvimento nacional (art. 3º, II; art. 174, §1º; art. 182; art. 192, todos da Constituição Federal).

Observe-se, no entanto, a diferença, de cunho qualitativo, existente entre "crescimento" ou "crescimento modernizante", quando há o incremento da atividade econômica, mas,

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sem rompimento do padrão social vivenciado, mantendo a acumulação capitalista à classe dominante, de "desenvolvimento", quando ocorre, então, a modificação na estrutura da sociedade. Neste sentido, Souza (2005) diz que:

O dado referencial, diferenciador, pode ser tomado, portanto, como a idéia de "equilíbrio", a ele prendendo-se a de "desequilíbrio". No "crescimento", tem-se o "equilíbrio" das relações entre os componentes do todo, podendo haver o seu aumento quantitativo ou qualitativo, porém mantidas as proporções dessas relações. No "desenvolvimento", rompe-se tal "equilíbrio", dá-se o "desequilíbrio", modificam-se as proporções no sentido positivo. (p. 399)

Este é o espírito constitucional, conforme sua ideologia, quando diz que a ordem econômica deve-se pautar pela "redução das desigualdades regionais e sociais" (VII, art. 170, CF); "a busca pelo pleno emprego" (VIII, art. 170, CF); além do "tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (...)" (IX, art. 170, CF), porque tais comandos são caros à efetivação do desenvolvimento.

A interpretação do caput dos artigos 173 e 174 ambos da Constituição Federal, isolados dos demais mandamentos constitucionais, ou seja, o art. 170 e seus incisos, bem como os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, previstos nos incisos dos artigos 1º e 3º, CF, respectivamente, poderia transmitir a idéia de que a ordem econômica afastaria a permissão de ação econômica estatal de forma sistemática.

Pelo art. 173, CF, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado é permitida para garantir os "imperativos da segurança nacional" ou "relevante interesse coletivo", poderia levar, inicialmente, ao entendimento de aplicação em casos excepcionais.

No entanto, a "segurança nacional", de conceituação indefinida, também se refere à independência política do país, que por sua vez, importa na escolha e implementação do modelo econômico (de natureza política) de seu desenvolvimento, livre da interferência do poder econômico supranacional globalizante, que age a seu próprio benefício, ignorando a soberania dos Estados nacionais.

Da mesma forma, pode-se entender, perfeitamente, o "relevante interesse coletivo" como a necessidade de desenvolver determinada região ou território do país (ressalte-se o inciso VII, art. 170, CF - redução das desigualdades regionais e sociais) dado à extensão continental brasileira e suas profundas diferenças regionais e socioeconômicas, exigindo a ação direta do Estado ou de interposta pessoa criada para tal fim, desempenhando atividade econômica, podendo ser industrial, financeira, comercial etc., haja vista que o objetivo primordial dos agentes econômicos privados, inegavelmente, é sempre o lucro, sem a preocupação em promover o desenvolvimento econômico e social ditada pela ordem econômica constitucional.

Nesta esteira, a atuação indireta prevista no art. 174, CF, tem o condão de dar ao Estado, o papel de agente precípuo como indutor da economia, ao fiscalizar, incentivar e

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planejar a atividade econômica, funções estatais muito sacrificadas com a imposição do neoliberalismo regulador e a primazia do mercado (SOUZA, 2005, p. 371).

A atuação do Estado na economia revelar-se-ia, portanto, com a finalidade de garantir os equilíbrios econômicos; o desenvolvimento com justiça social e não, meramente, o crescimento; regulamentação econômica, com atuação anticíclica evitando-se as grandes crises; e redução ou desaparecimento das desigualdades sociais e regionais. Objetivos inviáveis para o mercado por si só, cujos agentes buscam apenas o lucro do capital, incapazes de promoverem aqueles objetivos.

Por último, ressalte-se a natureza dirigente da Constituição Federal de 1988. Ser dirigente significa que a Constituição não é um mero conjunto de enunciados informativos ou orientadores, a ser seguido quando e na intensidade que convier ao governo do momento, ao contrário, ela impõe, ordena, obriga, submete o governante ao que estatui, com força vinculante necessária e cumprimento imediato, "(...) coordenando uma ação estatal ativa no domínio jurídico, social, político, econômico e cultural, com fundamento na implementação dos direitos fundamentais, considerados em unidade (...)" (OLIVEIRA, 2007, p.86).

Assim, a atuação econômica estatal não é anormal, ao contrário, pois, o lucro social é diferente do lucro capitalista (SOUZA, 2005, p. 344), sendo, então, dever do Estado agir economicamente para implementar a ideologia da ordem econômica, que assegura existência digna a todos, incompatível com a própria existência da economia de mercado gerido apenas pelas forças privada.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os enunciados da Economia Clássica referentes à existência de "leis naturais" capazes de regular o mercado sem a necessidade de atuação estatal, posteriormente, revigorados pelo modelo neoliberal de regulação, foram, devidamente, desconstruídos pela demonstração de que a própria existência do mercado como instituição, somente foi possível pela ação do Estado a fim de garantir sua existência e funcionamento.

Em uma relação simbiótica, o mercado existe apenas porque há um ente capaz de garantir-lhe sua sobrevivência, qual seja, o Estado, a negativa de sua atuação econômica é "antinatural". O Estado é assim, legítimo agente econômico, com plena capacidade de atuar economicamente, seja direta ou indireta.

Na realidade brasileira, contudo, esta atuação se impõe pela vontade da Constituição, de natureza dirigente, na busca pelo desenvolvimento econômico e social, haja vista as limitações das ações econômicas privadas orientadas, basicamente, para alcançar apenas os ganhos do capital, sem se importar em promover os princípios constitucionais de assegurar uma existência digna a todos conforme os ditames da justiça social.

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