ANA ANGELITA COSTA DA ROCHA - Questionando o Questionário-uma Análise de Currículo e Sentido de Geografia No ENEM

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TESE DE DOUTORADO COM FOCO NO ENEM

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  • 2. A FINA FLOR DOS VALIDADOS: TENSES E DEBATES EM TORNO DO ENEM.

    O vnculo entre a funo pblica e o indivduo, esse vnculo objetivo entre o saber da sociedade civil e o saber do Estado, o exame, no mais do que o batismo burocrtico do reconhecimento oficial da transubstanciao do saber profano em saber sagrado [] (Karl Marx, apud. Afonso, 2009:30)

    Escolho a afirmativa acima para iniciar um captulo que trata da constituio do

    ENEM, justamente porque ela traz a ideia do vnculo para atribuir um significado do

    exame. Marx, neste fragmento da Crtica ao Direito de Hegel, exps a funo social

    e poltica do exame para validar um saber (ou seu batismo!), cuja autoridade justifica

    a existncia de um grupo: a burocracia. Janela Afonso (2009: 30) resgata no seu livro a

    mesma afirmativa para evidenciar o carter poltico do exame como um vigoroso

    mecanismo de controle de certas funes do Estado, aps o Antigo Regime, para

    especialmente estabilizar e legitimar um grupo poltico. No entender de Janela Afonso

    (op.cit.), se no Antigo Regime o vnculo seria por sangue, a modernidade o primaria

    pelo mrito. Por essa razo, desconfio que o vnculo permanece sendo uma intrigante

    metfora do exame e pode servir para algumas anlises do ENEM.

    Neste texto, a opo por comear com tal interpretao do exame tem a

    inteno de problematizar um dos seus sentidos mais bvios: o do dispositivo de

    certificao. Nesta atribuio de sentido, o exame como vnculo funda um domnio

    do saber verdadeiro para legitimar imparcialmente quem e o que est habilitado

    para cumprir ou progredir em alguma coisa que socialmente importante. Da a

    necessidade do exame, com seu manto sagrado da iseno, da neutralidade e do mrito.

    Contudo, a finalidade deste exerccio explorar articulaes discursivas que procuram

    decidir uma definio de ENEM.

    Como estou de acordo com perspectivas tericas anti-essencialistas, considero

    que esse vnculo no absoluto, mas uma fundao contingente numa relao com

    saberes e as estratgias polticas para validao deles. Por isso, procuro, nas linhas a

    seguir, explorar superfcies textuais e documentos oficiais, que, talvez, busquem definir

    esse vnculo, ou garanti-lo como necessidade para aqueles egressos da Educao

    Bsica.

    76

  • Assim, considero a metfora do vnculo potente para traduzir o ttulo deste

    captulo. Numa reunio de orientao, quase na defesa de minhas ideias sobre a relao

    entre ENEM e a Geografia, fui interpelada com a seguinte pergunta: ento, voc quer

    falar da fina flor dos validados? Sem dvida, neste estudo, h a vontade de um

    exame do Exame que busque investigar as articulaes polticas para que uma prova

    reserve o poder de validar saberes ensinados e que seja representativa da educao

    bsica de todo o pas. Em outras palavras, o exerccio, aqui, procurar entender a

    ambio em torno do ENEM, para fund-lo como totalizao metafrica,

    particularmente quando se trata do aprendizado espacial. As linhas a seguir procuraram

    tensionar, questionar e tambm afirmar como o ENEM vem se tornando a fina flor

    dos validados, em funo dos objetivos a ele atribudos, em especial a partir de sua

    re-estruturao em 2009.

    Neste captulo, procuro discutir os sentidos entre avaliao e exame, para

    interpretar os processos de identificao em torno do ENEM. Desse modo, estou ciente

    de que no esgotei o debate sobre a funo poltica do exame, tampouco satisfiz uma

    completa reviso terica sobre o assunto. Pretendi, aqui, apresentar possibilidades de

    interpretao da relao entre o exame e o currculo que sustentam os sentidos de

    ENEM. Com essas possibilidades, discorro sobre a relao entre avaliao e currculo

    com a inteno de reinterpret-la no decorrer desta investigao.

    Para tanto, desenvolvi minhas ideias em cinco sees. Na primeira, intitulada

    2.1 Uma reviso terica possvel: sentidos de avaliao e sentidos de exame,

    mencionei alguns autores e estudos que procuram hegemonizar sentidos da avaliao e

    do exame, como jogo de sentidos, e busquei interpretar certas tenses e ambivalncias

    que envolvem tais definies. Na sequncia, com o ttulo 2.2 Da Avaliao para o

    Exame: explorando documentos, procurei investigar as contradies e os problemas

    da definio do ENEM, como mecanismo do desempenho do aluno. Nessa seo,

    foquei os flagrantes discursivos que procuram transformar o ENEM em uma demanda

    popular.

    Na terceira seo, chamada de 2.3 Notas sobre o discurso hegemnico da

    reformulao do ENEM, a partir de 2009, tratei brevemente das superfcies textuais

    que tencionam converter o Exame em demanda popular e tal anlise est estreitamente

    77

  • atrelada discusso sobre os saberes validados pelo Exame, especialmente geogrficos,

    objeto deste estudo. Por isso, o exerccio dessa seo prepara nossa argumentao a

    respeito de outras superfcies textuais que comunicam os validados e encarnam o

    vnculo do Exame as Matrizes - que esto no cerne da penltima reflexo,

    intitulada como 2.4 Da matriz de competncia matriz de referncia: dilemas em

    torno da organizao curricular.

    Em poucas palavras, possvel afirmar que essas sees ambicionam tratar do

    ENEM como poltica curricular, focando no vnculo que comunica os saberes validados

    a serem aprendidos e ensinados. Essa a principal razo para a anlise dos documentos

    e da bibliografia que sustenta a presente argumentao.

    2.1.UMA REVISO TERICA POSSVEL: SENTIDOS DE AVALIAO E SENTIDOS DE

    EXAME.

    Inicialmente necessrio reconhecer que a avaliao um campo de

    investigao e de desenvolvimento de polticas pblicas e que, neste texto, no tenho a

    pretenso de esgotar um mapeamento terico dessas reas. Somente para fins de redigir

    as apreciaes tericas sobre o tema, trabalho, nesta investigao, com dois planos de

    entendimentos da avaliao; e em torno deles, destacarei brevemente algumas

    discusses a fim de aproximar-me das superfcies textuais que tratam do ENEM.

    O primeiro plano de entendimento a avaliao como instrumento de

    verificao (dos resultados) do ensino. Nesse plano seria possvel reunir um campo

    semntico que denota a avaliao como processo voltado para o desenvolvimento da

    aprendizagem, o que envolve expresses como: avaliao diagnstica, avaliao

    formativa, avaliao processual, avaliao dialgica, avaliao como ato

    pedaggico. Dentre os autores que se ocupam da avaliao como instrumento do

    trabalho docente e como um ato do cotidiano escolar, destaco, por exemplo, as

    contribuies do suo Philippe Perrenoud, do brasileiro Cipriano Luckesi (1994,

    2010) e do pesquisador portugus Almerindo Janela Afonso (2008, 2009, 2010, 2012).

    Em linhas gerais, noto que h tanto divergncias quanto tangncias entre os

    autores citados, especialmente quando abordam a avaliao como instrumento

    constituinte da relao professor e aluno; com base numa perspectiva da autonomia e

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  • da individuao do processo de aprendizagem. Nessa direo, destaco ttulos como

    No mexam na minha avaliao!, Para uma abordagem sistmica da mudana

    pedaggica de Perrenoud (1999) e Avaliao da aprendizagem componente do ato

    pedaggico de Luckesi (2011), os quais sugerem que a mudana substancial da

    avaliao repercute diretamente na relao entre os sujeitos envolvidos nesse evento

    pedaggico. Nesse sentido da avaliao, percebo propostas ou arquiteturas conceituais

    que reatualizam, por exemplo, o debate sobre mudana de comportamento como

    resultante do processo de ensino, uma reflexo caracterstica e, no meu ver, mais

    inclinada concepo de currculo racional desenvolvido por Ralph Tyler (1981).

    Apenas para fins de ilustrao, recorto um trecho de Princpios bsicos de currculo e

    ensino de Tyler:

    O processo de avaliao consiste essencialmente em determinar em que medida os objetivos educacionais esto sendo realmente alcanados pelo programa do currculo e do ensino. No entanto, como os objetivos educacionais so essencialmente mudanas em seres humanos - em outras palavras, como os objetivos educacionais visados consistem em produzir certas modificaes desejveis nos padres de comportamento do estudante a avaliao o processo mediante o qual se determina o grau em que essas mudanas de comportamento esto realmente ocorrendo. (TYLER: 1981, 99)

    Sem esgotar essa interpretao, Tyler (1981) tambm uma referncia

    importante no recente trabalho de Luckesi (2011), como fica evidente em passagens

    que procuram prescrever garantias de uma eficiente avaliao em algumas regras

    para a elaborao de um adequado instrumento de coleta de dados para aprendizagem

    (2011: 362). vlido mencionar que publicaes de Perrenoud (1999; 2002)

    contriburam para a difuso do currculo por competncias, especialmente no debate

    sobre avaliao por competncia; fortalecendo a hiptese de que seja possvel

    identificar a mudana de comportamento, observando se certa habilidade fora atingida,

    a partir da aplicao adequada de um dado instrumento avaliativo (Perrenoud, 1999;

    2002). Essa leitura que fao sobre o currculo por competncias, na concepo de

    avaliao em Perrenoud (op.cit.), reconhece a marcante influncia de Ralph Tyler,

    particularmente na crena da possibilidade de mensurar objetivos educacionais,

    quando adotado um eficiente instrumento avaliativo.

    79

  • Reitero que as reflexes que anuncio nesse plano de entendimento da avaliao

    como instrumento de verificao do ensino no esto limitadas s linhas acima.

    Aposto, que, para fins de anlise das polticas de implementao e consolidao do

    ENEM, necessrio rever os debates crticos ao discurso de competncias, presentes

    em artigos como o de autoria de Antnio Flvio Barbosa Moreira (1997), que procurou

    questionar a reatualizao da abordagem de currculo de Tyler, nos trabalhos de Csar

    Coll. Convm lembrar que esse ltimo autor influente na costura poltica e terica

    dos PCNS. Com efeito, suspeito que a anlise do material emprico desta investigao

    poder fomentar o debate sobre as articulaes discursivas constituintes no debate da

    avaliao como instrumento de verificao dos resultados do ensino.

    Resumidamente, pretendo apresentar um segundo plano de entendimento da

    avaliao como poltica de controle simblico. Nesse plano de entendimento, tanto a

    poltica de avaliao, como a poltica de currculo podem ser percebidas como

    mecanismos indissociveis que regulam projetos de validade do conhecimento a ser

    ensinado. Desse modo, cito o ttulo Avaliao Educacional regulao e

    emancipao, de Almerindo Janela Afonso. Resultante de seu estudo de

    doutoramento, o livro tece um amplo painel da sociologia da avaliao e emprega

    anlises de estudos de caso para caracterizar polticas de avaliao, considerando

    distintas matrizes tericas do campo educacional e da sociologia.

    Outro estudo que ajuda a compor esse plano de entendimento seria o artigo A

    performatividade nas polticas de currculo: o caso do ENEM de Lopes e Lpez,

    publicado em 2010. Revisando o debate de cultura da performatividade em autores

    como Stephen Ball, as autoras argumentam que o ENEM o resultado do cenrio da

    administrao pblica, que vem fortalecendo os sentidos de reforma educacional no

    Ensino Mdio. Percebo tangncias entre os trabalhos dessas autoras com as concluses

    de Janela Afonso (2009) especialmente na reflexo sobre a deciso de aplicao do

    Exame pelas instituies governamentais, que envolveria distintas e complementares

    escalas da ao poltica. Para fortalecer esse argumento, sugiro ilustr-lo com o

    fragmento de Lopes e Lpez, cuja interpretao dos documentos do ENEM nos

    influenciou para uma primeira anlise da constituio e implementao desse exame.

    80

  • Dessa forma, o ENEM, como um sistema avaliativo que condensa os princpios da Reforma Educacional do Ensino Mdio brasileiro, se constitui como um dispositivo que entrelaa e interpenetra o processo de ensino-aprendizagem em mltiplos nveis, j que, a partir dele, so engendrados tanto resultados globais (relativos s redes de ensino), quanto locais (referentes s unidades locais) e individuais (relativos ao aluno). Igualmente, o ENEM participa do fortalecimento e da circulao dos princpios da reforma, pois, em seu entrelaamento e em seu processo de negociao com os mltiplos contextos com os quais se relaciona, produz efeitos mais ou menos convergentes de adeso a seus princpios. (LOPES & LPEZ, 2010, p. 104)

    Com efeito, trabalho com esse argumento como pressuposto das anlises da

    empiria, particularmente, na direo de questionar o impacto da perspectiva do controle

    na validao na seleo de saberes, na medida em que a cultura da performatividade

    no seria externa, mas, sim, integrante desse processo (LOPES & LPEZ, 2010, p.

    105). No meu entender, a avaliao, mais especificamente o exame, pode ser tomada

    como um instrumento estruturante na regulao da produo, seleo, organizao e

    distribuio dos saberes escolares.

    Menciono ainda o artigo de Cardoso (1999), que defende o enunciado ou item

    (ou a questo da prova) como texto passvel de ser um poderoso objeto de anlise para

    inferir sentidos de ensinar e aprender. Essa interpretao da avaliao est presente, por

    exemplo, nesse artigo, quando o autor sugere a apropriao do enunciado para

    pesquisas sobre a avaliao, procurando mensurar, em suas anlises, nveis de

    eficincia de um modelo de ensino. Para Cardoso (1999), essa seria uma discusso j

    presente nos trabalhos voltados exclusivamente para observar a eficincia de um

    modelo de avaliao e para efetuar mudanas no programa, ou seja, o autor considera

    os itens dos testes como instrumentos de comunicao da mudana curricular (1999:

    83) .

    Embora as discusses projetadas nesta investigao tendam a divergir da

    apropriao metodolgica do enunciado (item) com o fim primordial para anlise da

    eficincia do exame, estou de acordo com Cardoso, principalmente, quando ele afirma

    que o enunciado um veculo que comunica a mudana curricular. Tal percepo ser

    problematizada na anlise dos documentos do ENEM como discurso da legitimao do

    exame em escala nacional.

    81

  • Com base na reviso da literatura acerca da avaliao, Janela Afonso (2009)

    conclui que h retomada dos testes estandartizados (um modelo inicialmente idealizado

    pela administrao empresarial do inicio do sculo XX) nas polticas educacionais

    europeias dos anos 1990. Ele observa a estreita associao entre a lgica liberal e a

    adoo do que ele define como avaliao normativa para produo de indicadores,

    com o fim de mensurar a qualidade da educao. O texto desse autor, alm de uma

    extensa reviso terica, oferece o debate sobre os impactos das polticas de avaliao

    no cenrio mais amplo de polticas educacionais, no final do sculo XX.

    Outrossim, o Professor Luiz Carlos de Freitas (2011) tem se dedicado

    recentemente s anlises das polticas implementadas pelo INEP, revisitando, por

    exemplo, o debate de autores como Michael Apple, que, j nos fins dos anos 1970,

    interrogava sobre a relao entre polticas educacionais e o estreitamento curricular.

    Como exemplo da discusso de Apple, cabe mencionar o livro Ideologia e currculo

    e o artigo A poltica do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currculo

    nacional? Para Freitas (2011, 2012), os conceitos de responsabilizao, globalizao,

    reformadores empresariais e neoliberalismo so basilares na sua reflexo de denncia

    do que chama de avaliao de alto impacto. O autor atualmente um importante

    difusor da literatura americana crtica adoo do modelo instrumental de avaliao.

    Um dos autores recorrentemente mencionado por Freitas (2011, 2012) Diane

    Ravitch47, com o livro Vida e morte do bom sistema educacional norte-americano,

    em que reviu a trajetria e os limites da poltica de responsabilizao educacional

    estadunidense, No child left behind48, implementada pela gesto Bush e continuada por

    Obama.

    Chama minha ateno o fato de que, mesmo sendo autores com posies

    divergentes, tanto nesse livro de Janela Afonso (2009) quanto naquele de Luckesi

    (2011) h a inteno de marcar a diferena entre os conceitos de exame e de avaliao.

    Em Luckesi (2011: 376), a diferena reside no que ele chama de postura pedaggica,

    47RAVITCH, D. The death and life of the great American school system. New York: Basic Books, 2011.

    48No que tange a esta poltica educacional estadunidense que, segundo Freitas, influenciou instituies governamentais brasileiras, o autor assim a descreveu: Editada em 2002, a Lei determinava que at 2014 todas as crianas americanas deveriam ser proficientes em leitura e matemtica. O fracasso da proposta era previsvel. Entretanto, ela teve um grande efeito na promoo do fechamento das escolas pblicas e sua transferncia para a iniciava privada, j que estabeleceu os mecanismos legais para justificar esta transferncia (Congresso dos Estados Unidos, 2002). (2012: 395)

    82

  • pois seria o exame uma interveno, um ato de examinar, que prima pela

    verticalidade da relao educador-educando e pela finalidade da classificao (2011:

    427). Janela Afonso, por sua vez, tece apreciaes muito prximas as de Luckesi,

    considerando, no entanto, a fundamentao terica da sociologia da avaliao, citando

    criticamente estudos anglfilos, como os de Michael Scriven (1991).

    Neste momento da investigao, prefiro uma postura mais cautelosa, no que diz

    respeito a decidir por definies sobre avaliao e exame. Isso porque provvel que a

    articulao discursiva em torno da avaliao possa fixar sentidos que dependam do

    exame como corte antagnico. Portanto, a diferenciao entre avaliao e exame uma

    articulao poltica que cria efeitos de sentidos, no apenas no debate da literatura

    especializada, mas tambm no panorama da poltica educacional como a do ENEM,

    por exemplo. Ou seja, a lgica diferencial produz a prpria definio do exame, que

    necessariamente se d na equivalncia entre reivindicaes polticas.

    Essa reflexo, no meu ver, ilustra o problema da definio do exame e

    igualmente indica que, na medida em que se adensa a anlise do ENEM, poderei

    interpretar sentidos em disputa em torno do Exame, fazendo emergir dilogo com e

    contra as concepes e abordagens tratadas na literatura. Com essa ordem de ideias,

    aponto a necessidade de ampliar e aprofundar a agenda de estudo que trata da avaliao

    como da prpria teoria poltica a fim de desenvolver anlises que sublinhem as disputas

    para definir o Exame nas polticas em torno do ENEM. Esse o principal propsito da

    prxima seo que buscar interpretar as definies do ENEM (em suas contradies) a

    partir dos documentos oficiais disponibilizados, tanto pelo MEC, quanto pelo INEP.

    2.2. DA AVALIAO PARA O EXAME: EXPLORANDO DOCUMENTOS.

    O estudante tem uma referncia para si, mas a universidade usa porque quer selecionar os melhores alunos. Se o ENEM avalia bem o estudante, serve para a universidade. Se os pais querem escolher a escola, eles vo optar pela escola em que os alunos vo bem. O resultado no deve ser atribudo s escola, pois quando conclui o ensino mdio o aluno traz consigo toda a bagagem que adquiriu desde o primeiro ano escolar.

    (Reynaldo Fernandes, ex- Presidente do INEP, 2007)

    83

  • Comeo esta seo com a resposta do ex Presidente do INEP pergunta:

    ento, o exame avalia o desempenho do aluno, da escola, serve para o ingresso na

    Universidade, tem variadas funes? A dita entrevista fora publicada num veculo de

    divulgao do ENEM, a Revista do ENEM49, organizada pela Assessoria de Imprensa

    do MEC50. Na fala do ex-presidente, possvel interpretar as finalidades do exame, as

    quais levam em considerao a centralidade do desempenho, da performance, nessa

    poltica de escala.

    Nesta seo, h o exerccio de interpretar documentos das ltimas gestes

    federais para nortear a anlise, tanto do sistema de avaliao, quanto do prprio sentido

    da avaliao. Nessa direo, busco analisar os objetivos do exame e, com isso, as

    disputas em torno do problema de definio do ENEM. A seleo do material emprico

    que subsidia este estudo responde necessidade do desenvolvimento da pesquisa em

    comparar as superfcies textuais dos documentos com o fim de interpretar articulaes

    discursivas de mudanas e estabilidades no Exame Nacional do Ensino Mdio, desde

    sua implementao em 1998. Desse modo, pretendo acumular discusses para refletir

    sobre a relao entre saberes geogrficos e o item da prova, que objeto primordial

    deste estudo.

    O objetivo central , pois, a anlise de documentos oficiais que regulam a

    definio do Exame Nacional do Ensino Mdio. A pertinncia do presente estudo

    reside na proposta de contribuir para o debate acerca da avaliao institucional,

    considerando o carter poltico do discurso sobre qualidade da educao. Com base na

    teoria do discurso desenvolvida por Laclau e Mouffe (2005, 2006), este texto est

    inserido no debate ps-fundacional do campo do currculo e procura - com a

    explorao de evidncias empricas - se comprometer com a interpretao da luta

    hegemnica entorno das atribuies desta poltica de avaliao e seus impactos no

    currculo do Ensino Mdio.

    49REVISTA DO ENEM. Braslia: INEP, 2007, p. 9.

    50Na apresentao dessa edio da revista, fica evidente uma das finalidades dessa divulgao, como se observa neste trecho: Esta revista para ajudar o professor a estimular os alunos a que tenham bom desempenho. Porque reconhecemos o valor, a importncia dos professores, ratificamos nossa confiana no trabalho dos responsveis diretos pela educao brasileira. (MEC, 2007, grifos nossos)

    84

  • Inspirada na teorizao laclauniana, entendo que tais superfcies textuais

    suturam a flutuao de sentidos em torno dos significantes51 avaliao e exame, o que

    um efeito poltico da fixao do sentido de avaliao, isto , o efeito de uma

    articulao discursiva hegemnica. Expondo a argumentao aqui apresentada, destaco

    a caracterstica da teoria que subsidia minhas anlises para quem todo processo de

    significao contingencial.

    Para ordenar as interpretaes aqui defendidas, trago para discusso prticas

    articulatrias em torno do significante avaliao em documentos como artigos de LDB

    9394/96, LEI 9448/97, Portaria MEC no 438, de 28 de maio de 1998; Portaria INEP no

    109, de 27 de maio de 2009; e Portaria MEC no 807, de 18 de junho de 2010. A escolha

    desse material, diante dos cerca de mais de 4052 documentos elaborados pelo Estado

    para garantir a consolidao do ENEM, reside no fato de que os citados textos

    articulam definies sobre a avaliao.

    Acho oportuno comear uma interpretao das prticas articulatrias acerca

    desses significantes pela anlise da LEI 9448/97, que converteu a Medida Provisria

    1.568 de 1997 em LEI e redefine as atribuies do INEP, rgo responsvel, desde

    incio, pelo desenvolvimento do ENEM. Com as atribuies do INEP, o artigo primeiro

    define funes voltadas para consolidao do sistema de avaliao e do

    desenvolvimento de indicadores. Mesmo sendo longo, reproduzo o artigo na ntegra

    para sinalizar provisrias interpretaes.

    Art. 1 Fica o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, rgo integrante da estrutura do Ministrio da Educao e do Desporto, transformado em Autarquia Federal vinculada quele Ministrio, com sede e foro na cidade de Braslia - DF, tendo como finalidades:I - organizar e manter o sistema de informaes e estatsticas educacionais;

    51Nesta seo, importa explorar sentidos de avaliao em documentos oficiais. Contudo, cabe sublinhar que a literatura vem produzindo a respeito da relao avaliao e estatstica e poltica pblica, que nos limites deste trabalho no irei esgotar. A respeito dessa farta literatura, convm ilustr-la com a contundente afirmativa de Veiga Neto: Em termos j no mais restritos ao currculo, a avaliao articulou-se com a Estatstica e ambas se tornaram uma fonte de ndices e tabelas que funcionam como um instrumento eficaz para a governamentalidade liberal. (2012, 11).52Para o nmero acima destacado, fao alguns esclarecimentos. Entendo por documentos, textos polticos com finalidades polticas e de autoria institucional. Todos os documentos foram coletados nos portais do MEC e INEP. Muitas das atualizaes dos portais, retiraram do ar, por exemplo, as revistas ou os links relacionados s edies mais antigas. Considerando este fato, estou certa de que no coletei a totalidade de documentos de divulgao do ENEM. No anexo II, listei os documentos mais usados na investigao.

    85

  • II - planejar, orientar e coordenar o desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliao educacional, visando o estabelecimento de indicadores de desempenho das atividades de ensino no Pas;III - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municpios no desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliao educacional;IV - desenvolver e implementar, na rea educacional, sistemas de informao e documentao que abranjam estatsticas, avaliaes educacionais, prticas pedaggicas e de gesto das polticas educacionais;V - subsidiar a formulao de polticas na rea de educao, mediante a elaborao de diagnsticos e recomendaes decorrentes da avaliao da educao bsica e superior;VI - coordenar o processo de avaliao dos cursos de graduao, em conformidade com a legislao vigente;VII - definir e propor parmetros, critrios e mecanismos para a realizao de exames de acesso ao ensino superior;VIII - promover a disseminao de informaes sobre avaliao da educao bsica e superior;IX - articular-se, em sua rea de atuao, com instituies nacionais, estrangeiras e internacionais, mediante aes de cooperao institucional, tcnica e financeira bilateral e multilateral. (BRASIL: LEI 9448/97, grifos meus.)

    A partir dos incisos acima destacados, proponho, ainda de forma preliminar,

    sublinhar o discurso da avaliao como organizador das atribuies dessa autarquia

    federal. Com a anlise da Lei e com o fato de que teria sido uma converso de Medida

    Provisria, e, ainda, com a constatao de que h fixao de discursos organizadores da

    constituio de sistema de avaliao, da anlise do desempenho do estudante brasileiro

    em diferentes nveis de ensino e o consequente desenvolvimento de indicadores,

    concluo que h, nesse texto poltico, articulaes hegemnicas que sero estruturantes

    na implementao do ENEM, definida, no ano de 1998, pela Portaria MEC no. 438.

    Com a argumentao acima, no tenho a ousadia de esgotar a discusso sobre a

    reestruturao do INEP, um processo em vigncia desde a Gesto de Fernando

    Henrique Cardoso. Contudo, proponho, sim, seguir com a reflexo sobre o destino do

    significante em textos polticos que dizem respeito instituio e consolidao do

    ENEM. Para anlise, ainda preliminar do destino do significante, no inciso VI do artigo

    9 da LDB (9394/96) possvel inferir que o significante avaliao articulado

    expresso rendimento escolar:

    assegurar o processo nacional de avaliao do rendimento escolar no ensino fundamental, mdio e superior, em colaborao com os sistemas de ensino, objetivando a definio de prioridades e a

    86

  • melhoria da qualidade do ensino (...) (BRASIL: LEI 9394/96, grifo nosso).

    Tal disputa em torno da significao de rendimento escolar s possvel em

    funo da centralidade do sentido avaliao como poltica de escala (significao

    suturada no texto do mesmo inciso) e que est sendo suplementada53 pelo sentido da

    performance (equivalendo ao rendimento). Contudo, os sentidos em torno da

    expresso rendimento escolar esto a ser suturados por outras lutas polticas, sejam

    de escala nacional, sejam de escala local, como a unidade escolar. Nessa argumentao,

    entendo que o significante avaliao (afirmada como nacional) exige a performance

    como seu suplemento, que articulado discursivamente no rendimento escolar.

    O artigo 1 da Portaria MEC no 438 (quando da implementao do exame em

    1998) pode ser interpretado como sendo uma superfcie textual projetada para definir

    as atribuies do exame e o relaciona diretamente proposta de organizao curricular

    do Ensino Mdio, o que tambm pode ser percebido como uma poltica que anuncia a

    finalidade da educao bsica.

    Instituir o Exame Nacional do Ensino Mdio ENEM, como procedimento de avaliao do desempenho do aluno, tendo por objetivos: I conferir ao cidado parmetro para auto-avaliao, com vistas continuidade de sua formao e sua insero no mercado de trabalho; II criar referncia nacional para os egressos de qualquer das modalidades do ensino mdio;III fornecer subsdios s diferentes modalidades de acesso educao superior;IV constituir-se em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes ps-mdio. (BRASIL, MEC, 1998, grifos meus)

    Com o inciso II do mesmo artigo, fica evidente a escala da poltica,

    confirmando, assim, a argumentao aqui exposta: criar referncia nacional para os

    egressos de qualquer das modalidades do ensino mdio (op.cit). A articulao

    discursiva em torno do ENEM retoma a articulao do texto da LDB (citado nesta

    seo) estabilizando o sentido de avaliao suplementado pelo rendimento escolar,

    53Nesta investigao, adoto uma interpretao de suplemento a partir dos escritos de Laclau (2005).

    Vale destacar que ele se remete discusso de suplementoem Derrida para tratar da indecidibilidade na lgica hegemnica (LACLAU, 2005, MOUFFE, 2005, DERRIDA, 2005). Na argumentao de Laclau, o suplemento constituinte da interao poltica, ou seja, estruturante da operao metonmica. Resultado da apropriao que Laclau realiza de Derrida, o suplemento pode ser percebido como ato poltico exigido na construo da cadeia de equivalncia, o que me permite empreg-lo no exerccio de explorao dos documentos sobre o ENEM.

    87

  • que, no primeiro artigo da Portaria em destaque, qualificado, agora, pela expresso

    desempenho do aluno.

    No mesmo artigo, fixado, como objetivo do ENEM, o parmetro da

    autoavaliao. No meu ver, isso evidencia a fixao de um significante que age como

    suplemento, ou seja, atua como preenchimento do sentido de rendimento escolar e

    que, na lgica da equivalncia, sustentaria discursos pedaggicos voltados para

    avaliao dialgica, em que o aluno o sujeito do processo de avaliao da

    aprendizagem. Nessa operao metonmica, h o antagonismo do exame que mensura,

    que indica uma classificao. Com esse argumento, destaco um indcio para

    interpretao do mesmo texto poltico: sua caracterstica paradoxal para definir um

    exame que mobiliza escalas, tanto como instrumento de diagnstico nacional da

    concluso da Educao Bsica, quanto como instrumento local de autorreferncia do

    processo do aprendiz. Tais efeitos de sentidos so constitutivos de um momento

    nevrlgico do sistema educacional brasileiro.

    Com o intuito de seguir com a anlise dos documentos que tratam do ENEM,

    considero o paradoxo uma evidncia das distintas lutas para defini-lo. Com essa

    afirmao, sugiro a leitura na ntegra dos artigos das recentes Portarias do INEP e MEC

    (nos. 109 e 807, respectivamente) que tratam dos objetivos do ENEM.

    Art. 2o- Constituem objetivos do Enem:I - oferecer uma referncia para que cada cidado possa proceder sua auto-avaliao com vistas s suas escolhas futuras, tanto em relao ao mundo do trabalho quanto em relao continuidade de estudos;II - estruturar uma avaliao ao final da educao bsica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de seleo nos diferentes setores do mundo do trabalho; III - estruturar uma avaliao ao final da educao bsica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes, ps-mdios e Educao Superior; IV - possibilitar a participao e criar condies de acesso a programas governamentais;V - promover a certificao de jovens e adultos no nvel de concluso do ensino mdio nos termos do artigo 38, 1o- e 2o- da Lei no- 9.394/96 - Lei das Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB); VI - promover avaliao do desempenho acadmico das escolas de ensino mdio, de forma que cada unidade escolar receba o resultado global; VII - promover avaliao do desempenho acadmico dos estudantes ingressantes nas Instituies de Educao Superior. (BRASIL, PORTARIA INEP N0.109 de 27 de maio de 2009, grifos meus. )

    88

  • Art. 2 Os resultados do ENEM possibilitam:I - a constituio de parmetros para auto-avaliao do participante, com vistas continuidade de sua formao e sua insero no mercado de trabalho; II - a certificao no nvel de concluso do ensino mdio, pelo sistema estadual e federal de ensino, de acordo com a legislao vigente; III - a criao de referncia nacional para o aperfeioamento dos currculos do ensino mdio; IV - o estabelecimento de critrios de participao e acesso do examinando a programas governamentais; V - a sua utilizao como mecanismo nico, alternativo ou complementar aos exames de acesso Educao Superior ou processos de seleo nos diferentes setores do mundo do trabalho; VI - o desenvolvimento de estudos e indicadores sobre a educao brasileira. (BRASIL, Portaria MEC no. 807, 18 de junho de 2010.)

    Em primeiro lugar, afirmo que retomarei esses dois documentos na prxima

    seo, a fim de tratar dos sentidos em torno da reestruturao do ENEM, na Gesto

    Lula. Por hora, chamo ateno dos incisos que afirmam a finalidade do ENEM para

    sinalizar a disputa por significaes entre projetos divergentes e convergentes na

    definio (ou na deciso de hegemonizar) das finalidades desta poltica educacional.

    Chamo ateno, ainda, para o fato de que a primeira Portaria autorizada pelo

    Presidente do INEP, enquanto a segunda trata da legitimidade do prprio Gabinete do

    Ministro. Tal hierarquia para definir o Exame um exemplo potente da dimenso da

    importncia recebida pelo Exame, especialmente nas suas ltimas edies (como irei

    desenvolver mais frente). A extenso da cadeia de equivalncia para garantir a

    consolidao do exame ilustrada pela amplitude de suas finalidades (o que tambm

    tratarei mais adiante). Aqui pretendo destacar um entendimento dos significantes que

    procuram preencher o sentido de rendimento escolar como prtica articulatria

    suturada no sentido de desempenho do aluno e desempenho acadmico.

    Nas anlises dos documentos citados, possvel inferir indcios da estabilidade

    do significante avaliao, tendo o destino de sentido no desempenho do aluno. As

    recentes Portarias do INEP e MEC (nos. 109 e 807, respectivamente, j na gesto Lula,

    fortalecendo o ENEM como poltica de escala) so textos lidos aqui como os que

    estabilizam o significante avaliao, envolvendo distintas reivindicaes. Isso permite

    perceber que, na nossa anlise dos documentos, h uma continuidade entre avaliao e

    exame, por assegurar o destinto de sentidos que tecem metonimicamente a

    autoavaliao ao diagnstico do sistema, ainda que essa relao para alguns (como

    Freitas, 2011) seja irreconcilivel. O significante acadmico, por exemplo,

    89

  • hegemoniza o sentido de qualificar ou suturar o sentido de rendimento escolar que

    preenche o significante avaliao e d legitimidade aos grupos e sujeitos que

    valorizam a formao cientfica na etapa de concluso da educao bsica.

    Essa anlise anuncia a articulao poltica presente na mudana do ENEM, o

    fortalecendo como instrumento de acesso s instituies de Ensino Superior. Mesmo

    que tal atribuio do ENEM j fosse anunciada, no texto poltico de 1998, somente a

    partir da gesto Lula, quando da implementao das Portarias, houve/h condio para

    tal articulao poltica. Isso evidencia a ampliao da cadeia de equivalncia em torno

    das demandas do ENEM como resultado de condies polticas para atender aos

    interesses das Instituies de Ensino Superior. Interpreto que o discurso hegemnico

    est na articulao poltica que demandou o sentido acadmico para suplementar o

    rendimento escolar.

    Com essa interpretao dos suplementos que fixam sentido em torno do

    significante avaliao, explorei, aqui, textos das polticas educacionais que

    hegemonizam o desempenho acadmico como destino de sentido de avaliao, um

    suplemento hegemnico do significante rendimento escolar. Isso porque, se na LDB

    9394/96 evidente a articulao poltica (leia-se cadeia discursiva) que fixa a avaliao

    nacional, possvel afirmar que, somente nas Portarias do INEP e do MEC

    (especialmente nas de nos 109 e 807), h lutas polticas para fixar o suplemento de

    rendimento escolar, via o desempenho acadmico.

    Entendo que o suplemento do rendimento escolar suturado nas finalidades do

    ENEM qualifica, sobretudo, projetos em torno da organizao curricular do ensino

    mdio, porque hegemoniza a metonmia do desempenho do aluno como desempenho

    acadmico. Em suma, como vimos, nas referidas Portarias, comunidades epistmicas

    tm a sua demanda atendida, quando o rendimento escolar significado pelo

    desempenho acadmico. Essa interpretao, inclusive, retrata a afirmao do ex-

    Presidente do INEP que inicia esta seo.

    Com esse argumento, pretendi refletir como as reivindicaes de grupos

    polticos em torno das polticas educacionais hegemonizam o discurso da avaliao.

    Percebo que, nas Portarias INEP E MEC nos. 109 e 807, respectivamente, h lutas que

    90

  • hegemonizam o sentido de rendimento escolar para atenderem as distintas

    reivindicaes que tornam possvel uma cadeia de equivalncia ao redor da avaliao,

    ou seja, na luta para estabelecer a avaliao como poltica organizadora de outras

    polticas educacionais, h outras lutas em torno da significao do que venha a ser

    rendimento escolar.

    Considerando a argumentao aqui desenvolvida, pretendo, na prxima seo,

    explorar os sentidos de reformulao do ENEM que fundam as Portarias citadas, a

    partir de 2009. Essa anlise me ser til para interpretar e tambm inventariar os

    sentidos da Matriz e, com base nesta reflexo, buscarei discutir os sentidos de

    saberes geogrficos fixados no Exame, tema a ser explorado nos prximos captulos.

    2.3. NOTAS SOBRE O DISCURSO HEGEMNICO DA REFORMULAO DO ENEM, A

    PARTIR DE 2009.

    O Ministrio da Educao apresentou uma proposta de reformulao do Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem) e sua utilizao como forma de seleo unificada nos processos seletivos das universidades pblicas federais. A proposta tem como principais objetivos democratizar as oportunidades de acesso s vagas federais de ensino superior, possibilitar a mobilidade acadmica e induzir a reestruturao dos currculos do ensino mdio. (PORTAL DO INEP, ACESSO abril/2009, grifos nossos)

    O fragmento transcrito, retirado do portal do INEP, flagra interessantes

    demandas que permitem a articulao discursiva do que seria a reestruturao do

    exame. Suturada em outros documentos do ENEM que antecedem a dita

    reestruturao, chamo a ateno para a demanda de induzir a reestruturao dos

    currculos do ensino mdio. Nas anlises das recentes polticas pblicas educacionais

    brasileiras, o estreito vnculo entre o exame com o currculo do Ensino Mdio fora

    tratado por outros autores (destaco Freitas, 2011 e Lopes e Lpez, 2010) e tem

    atravessado esta investigao, mas, especificamente nesta seo, me preocupo com as

    prticas articulatrias de significao ocupadas com a hegemonizao em volta do

    sentido de desempenho acadmico na reformulao do exame.

    Para argumentar sobre articulao em torno dessa demanda, selecionei os

    seguintes documentos: Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das

    91

  • Instituies Federais de Ensino Superior (da Assessoria de Imprensa do MEC), as

    notas pblicas do Comit de Governana do ENEM 2009, alm do edital convocando

    s IPFES para participarem do BNI, em 2011, as novas DCNEM, publicada em 2012

    com artigo especfico dedicado ao ENEM e nota pblica da nova gesto do INEP,

    divulgada pelo portal eletrnico da instituio. No que diz respeito seleo desses

    documentos, usei banco de notcias do Portal MEC e do Portal do INEP, com recorte

    temporal de 2009 a 2012, perodo em que se intensifica a denominada re-estruturao.

    A seleo dos documentos acima listados decorreu dessa investida em funo da

    publicidade das notcias produzidas pela Assessoria de Imprensa do MEC e do INEP.

    Como possvel observar, todos os documentos listados so pblicos e ficam

    disponveis no Portal do INEP e no Portal MEC.

    O meu interesse por tais documentos responde necessidade de refletir sobre as

    condies polticas para organizao e seleo dos saberes a serem validados e

    exigidos pelo exame, a partir dos projetos de reform-lo em 2009. Uma preocupao

    que justifica, pois, a comparao entre as superfcies textuais das matrizes do ENEM,

    exerccio de interpretao que ocorrer na prxima seo. Para ordenar a interpretao

    dos documentos, optei por sinalizar indcios daqueles norteados ou dirigidos ou pela

    ANDIFEs (Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino

    Superior) e aquele de adeso do CONSED (Conselho Nacional das Secretarias de

    Estado de Educao) ao comit de Governana do novo Enem 2009.

    Neste exerccio, para discutir a reforma do ENEM, a partir de 2009, comeo

    pela nota da ACS (Assessoria de Comunicao Social do Ministrio da Educao)

    ANDIFES, denominada de Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das

    Instituies Federais de Ensino Superior. A seguir, selecionei trechos destacados,

    para problematizar o discurso da reestruturao dos currculos, considerando a

    modalidade e estratgias de convocao da Instituio de Ensino Superior para adeso

    ao Enem.

    Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade, importncia e legitimidade do vestibular. O que se quer discutir so os potenciais ganhos de um processo unificado de seleo, e a possibilidade concreta de que essa nova prova nica acene para a reestruturao de currculos no ensino mdio. [...](Proposta

    92

  • Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    [...] Da mesma forma, a influncia dos vestibulares tradicionais nos contedos ministrados no ensino mdio tambm deve ser objeto de reflexo. [...] (Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    Um exame nacional unificado, desenvolvido com base numa concepo de prova focada em habilidades e contedos mais relevantes, passaria a ser importante instrumento de poltica educacional, na medida em que sinalizaria concretamente para o ensino mdio orientaes curriculares expressas de modo claro, intencional e articulado para cada rea de conhecimento.[...] (Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    A alternativa descentralizao dos processos seria, ento, a unificao da seleo s vagas das IFES por meio de uma nica prova. A racionalizao da disputa por essas vagas, de forma a democratizar a participao nos processos de seleo para vagas em diferentes regies do pas, uma responsabilidade social tanto do Ministrio da Educao quanto das instituies de ensino superior, em especial as IFES. (Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    Destaquei os trechos que sinalizam suturas, isto , fundamentos contingentes

    que valorizam a mudana do ENEM, bem como da prpria estrutura da prova. Importa

    observar, por exemplo, que a nota da Assessoria de Comunicao no prope (ou evita)

    o debate sobre o acesso Instituio de Ensino Superior via avaliao do desempenho

    do aluno por meio da prova, uma afirmativa, alis, percebida nesses textos como

    pressuposto. Analisando o documento, com o suporte da teoria poltica, possvel

    identificar ainda a emergncia do antagnico (que seria o prprio vestibular

    tradicional) para ampliar a cadeia de equivalncia em torno do ENEM: Outra

    caracterstica do vestibular tradicional, ainda que involuntria, a maneira como ele

    acaba por orientar o currculo do ensino mdio (op.cit.).

    Aqui se nota, nesses trechos, que h articulao hegemnica da promoo do

    ENEM como catalizador de mudanas curriculares e que (paradoxalmente) denuncia o

    vestibular tradicional pela mesma racionalidade: a de orientar o currculo do ensino

    mdio. Outro elemento que denota o paradoxo para suturar o sentido de ENEM a

    articulao hbrida necessariamente acionada para descrever a organizao dos saberes

    93

  • selecionados na prova focada em habilidades e contedos mais relevantes. Nessa

    afirmativa, h hibridao entre projetos distintos (no necessariamente divergentes) de

    organizar e de selecionar os saberes vlidos a serem cobrados pela prova. Tal

    argumento ser necessariamente retomado para a nossa discusso sobre as Matrizes do

    ENEM.

    Os argumentos tecidos nesta seo operam com a suspeita de que a

    reformulao do ENEM depende de estratgias polticas de torn-lo uma reivindicao

    popular. Logo, cabe brevemente expor a definio de demanda popular,

    desenvolvida por Laclau em seu livro La Razn Populista (2009). Segundo sua

    teoria, em qualquer configurao poltica, as demandas comeam sempre isoladas, e a

    construo equivalencial, necessria e dependente do exterior que as constituem,

    permite a estabilidade de uma subjetividade popular, entendida por ele como demanda

    popular (2009:97). Em suma, o autor projeta um enfoque alternativo, uma reviso e

    ressignificao do populismo que, segundo suas palavras, um modo de construir o

    poltico (2009:11, traduo livre).

    Com efeito, o ato de transformar o ENEM em demanda popular se d na

    reivindicao de democratizar54 o acesso ao ensino superior, via um sistema

    unificado de exame e distribuio de vagas, vivel somente pela adeso universal do

    Exame. Nos trechos acima, possvel interpretar o discurso da universalizao do

    ENEM como forma de acesso s IES, o que contribui para a sua metamorfose em

    demanda popular, flagrada na seguinte afirmativa: democratizar a participao nos

    processos de seleo para vagas em diferentes regies do pas. A seguir, destaco

    ainda outro fragmento que testemunha a ampliao da cadeia de equivalncia em torno

    do novo ENEM, articulando discursos como incluso, protagonismo, autonomia,

    por exemplo, e favorecendo, ento, a diluio entre e de certas fronteiras polticas para

    garanti-lo como demanda popular.

    A nova prova do ENEM traria a possibilidade concreta do estabelecimento de uma relao positiva entre o ensino mdio e o ensino superior, por meio de um debate focado nas diretrizes da prova. Nesse contexto, a proposta do Ministrio da Educao um chamamento. Um chamamento s IFES para que assumam necessrio papel, como entidades autnomas, de protagonistas no processo de repensar o ensino mdio, discutindo a relao entre contedos exigidos

    54No confundir com demanda democrtica que, para Laclau (Idem), a reivindicao particular,isolada, que aspira ser universal, ser popular. Nesse caso, esclareo que identifico o processo de converso do ENEM em demanda popular como a estratgia poltica organizada em torno do significante privilegiado que seria a democratizao do Ensino Superior.

    94

  • para ingresso na educao superior e habilidades que seriam fundamentais, tanto para o desempenho acadmico futuro, quanto para a formao humana. (Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    (...)Aliar a capacidade tcnica do INEP, no que diz respeito tecnologia educacional para desenvolvimento de exames, excelncia acadmico-cientfica das IFES, de suma importncia nesse momento. Trata-se no apenas de agregar funcionalidade a um exame que j se consolidou no Pas, mas da oportunidade histrica para exercer um protagonismo na busca pela re-significao do ensino mdio. (Proposta Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior, da Assessoria de Imprensa do MEC, grifos meus)

    possvel interpretar ainda nesses trechos, em especial no significante

    chamamento, uma condio de modalidade, uma convocao que procura a

    hegemonizao do discurso do desempenho acadmico como estratgia de significao

    do ENEM. possvel notar, por exemplo, a importncia do atendimento s demandas

    das IES para seguir com o debate focado nas diretrizes da prova, por portarem, claro,

    a excelncia acadmico-cientfica. Vejo nos chamamentos a extenso da cadeia de

    equivalncia, hegemonizando a re-significao do ensino mdio a partir da

    universalizao do Exame, por meio da unificao do acesso s IPFES.

    No decorrer dessas exploraes das superfcies textuais, procuro indcios dessa

    ampliao da cadeia de equivalncia de demandas para garantir a re-estruturao do

    ENEM, tarefa que nos leva, tambm, aos documentos do Comit de Governana do

    ENEM, institudo com a finalidade de legitimar o Exame em escala nacional. Agora,

    destaco flagrantes discursivos da nota pblica CONSED (Conselho Nacional das

    Secretarias de Estado de Educao) e que dizem respeito relevncia dessa entidade e

    de seu compromisso em relao ao projeto de universalizao, ou melhor, de converso

    do ENEM em demanda popular. Convm ilustrar inicialmente o poder de representao

    do apoio dessa entidade reforma do ENEM, inclusive sua repercusso nos rgos de

    imprensa oficial do governo federal.

    O CONSED entende que o novo formato da prova permitir a reestruturao do ensino mdio e que, com isso, o currculo dessa etapa do ensino passar a orientar os processos seletivos de acesso educao superior, no o contrrio, como ocorre hoje. (PORTAL MEC, 13 DE MAIO DE 2009, grifos meus)

    95

  • O ingresso do CONSED no comit, segundo o ministro, o ponto de partida para o incio da reforma do currculo do ensino mdio com vistas ao novo Enem e s expectativas das universidades. O ministro tambm destacou o crescimento do nmero de universidades que esto adotando o exame como nota nica de ingresso. Mesmo as instituies que no participaro este ano, diz, certamente se integraro em 2010.55 (PORTAL MEC, 13 DE MAIO DE 2009, grifos meus)

    O Comit de Governana do novo ENEM, pelas representaes do CONSED e do MEC reunidas em 14 de maio de 2009, aprovou os seguintes princpios:1. Que o novo ENEM, no formato proposto pelo MEC/INEP, importante instrumento de reestruturao do Ensino Mdio;2. Que, em funo disso, deve-se vislumbrar a possibilidade de universalizao da aplicao do Exame aos concluintes do Ensino Mdio em futuro prximo;3. Que a edio de 2009 deve se fundamentar na atual organizao do Ensino Mdio e nos seus exames - ENEM e Exame Nacional de Certificao de Competncias de Jovens e Adultos (ENCCEJA), respeitando-se o itinerrio formativo dos estudantes matriculados no Ensino Mdio. (Nota pblica do Comit de Governana do novo ENEM, grifos nossos).

    Nesses trechos dos documentos, particularmente da nota pblica, possvel

    refletir que, com a representatividade do CONSED, o Comit de Governana do novo

    ENEM favorece a publicidade e o fortalecimento do Exame, ao contar com o apoio

    daquela entidade representativa da gesto pblica dos Estados brasileiros. A partir do

    dilogo com a leitura poltica laclauniana (especialmente com a discusso de demanda

    presente em Razn populista, 2009), me arrisco a afirmar que o Comit de Governana

    procurou (e procura) transformar o ENEM em uma demanda popular, nestas

    articulaes polticas. Essa interpretao da nota composta pelo poder e pela

    representatividade do CONSED aponta a construo da cadeia de equivalncia

    necessria para sustentar o novo ENEM. Para ilustrar o argumento, sublinho o ponto 2

    da Nota pblica: deve-se vislumbrar a possibilidade de universalizao da aplicao

    do Exame aos concluintes do Ensino Mdio em futuro prximo.

    As notas pblicas do COMIT DE GOVERNAA DO NOVO ENEM (que

    apresentam a MATRIZ DE REFERENCIA DO ENEM, no portal do INEP56) podem

    ser percebidas como um importante flagrante das disputas pela definio da

    organizao curricular da Matriz de Referncia. Ficam evidentes as disputas para 55 Disponvel em: portal.mec.gov.br (acesso: maio de 2009).

    56Disponvel em: http://portal.inep.gov.br/web/enem/sobre-o-enem

    96

  • definir a forma de distribuir os contedos: entre uma proposta visando a um projeto de

    integrao via competncia e uma proposta de valorizao disciplinar. De fato, os

    trechos acima testemunham a estreita relao entre ENEM e Ensino Mdio, por

    exemplo, com a afirmao de que o formato do novo ENEM tenha simultaneamente o

    compromisso de reestruturar o Ensino Mdio e de refletir a organizao curricular em

    vigor nas federaes.

    Interessante notar, ainda, a composio do Comit de Governana do Novo

    Enem, que fora responsvel pelas alteraes do modelo e das finalidades do Exame. As

    entidades representadas e citadas nos primeiros documentos so: MEC, INEP E

    ANDIFES e CONSED. A nota justifica a mudana do Novo Enem resultando em Nova

    matriz de referncia, consubstanciada pelos objetos de conhecimento a ela associada.

    Outrossim, a composio atual do Comit denota o esforo poltico em estend-lo, o

    que, no nosso ver, sublinha mais uma vez a percepo de que o novo ENEM atualiza

    seu projeto de converso em demanda popular, j aspirado desde sua configurao

    original, em 1998. Para tanto, convm neste momento, reproduzir nota pblica do

    INEP, que comunica a atual composio do Comit de Governana do ENEM.

    Tendo em conta a importncia de que se reveste o Exame para a melhoria da qualidade do ensino mdio e para a democratizao das oportunidades de acesso educao superior, o INEP entende que imprescindvel manter o dilogo profcuo com as principais instituies representativas da educao no Pas, visando ao seu aperfeioamento constante.Assim, em abril de 2012, o Comit de Governana do ENEM foi novamente institudo, de forma ampliada, contando com a representao das seguintes instituies:Secretaria de Educao Bsica SEB/MEC Secretaria de Educao Tecnolgica SETEC/MEC Secretaria de Educao Superior SESU/MEC Conselho Nacional de Secretrios de Educao CONSED Unio Nacional de Dirigentes Municipais de Educao UNDIME Conselho Nacional das Instituies da Rede Federal de Educao

    Profissional, Cientfica e Tecnolgica CONIF Associao Nacional de Dirigentes das Instituies Federais de

    Educao Superior ANDIFES Associao Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e

    Municipais ABRUEM (Extrado do Portal do INEP, ACESSO SETEMBRO DE 2012).

    97

  • Como anunciado anteriormente, o fragmento acima expe a vontade politica em

    torno do ENEM, como projeto universal para remodelao do Ensino Mdio. Ademais,

    seria possvel seguir nesta seo com evidncias empricas que expem tal proposio,

    contudo, procuro somente apresentar, ainda que brevemente, um painel atual da

    configurao do ENEM que repercute decisivamente na estruturao da prova. a

    partir de 2009 que o Exame estruturado em uma redao e, como denominadas pelo

    edital, as quatro reas do conhecimento (Cincias Humanas e suas Tecnologias, da

    Natureza e suas tecnologias, Matemtica e linguagens), distribudas em duas provas a

    serem realizadas em dias consecutivos.

    Convm, todavia, sublinhar recentes documentos que portam reivindicaes

    que vo na direo do fortalecimento da universalidade do ENEM, especialmente,

    quando se trata do debate de incorpor-lo ao Sistema De Avaliao da Educao

    Bsica (SAEB), previsto na nova resoluo das DCNEM (CNE/CEB, 2012). Nesse

    documento, h artigo especfico que define as atribuies do Exame, o legitimando em

    seu carter censitrio e obrigatrio.

    Art. 21. O Exame Nacional do Ensino Mdio (ENEM) deve, progressivamente, compor o Sistema de Avaliao da Educao Bsica (SAEB), assumindo as funes de:I - avaliao sistmica, que tem como objetivo subsidiar as polticas pblicas para a Educao Bsica; II - avaliao certificadora, que proporciona queles que esto fora da escola aferir seus conhecimentos construdos em processo de escolarizao, assim como os conhecimentos tcitos adquiridos ao longo da vida;III - avaliao classificatria, que contribui para o acesso democrtico Educao Superior. (CNE/ CEB, Resoluo 2/2012)

    A superfcie textual acima, no meu ver, condensa a universalidade do ENEM a

    partir do ato de nome-lo como avaliao sistmica, certificadora e classificatria,

    autorizando, ento, a converso do Exame como vnculo obrigatrio para concluso da

    Educao Bsica. A respeito dessa afirmao, convm retomar seo anterior, quando

    pude esclarecer que, nas superfcies textuais em torno da definio do ENEM, havia

    uma continuidade entre avaliao e exame. Por essa razo, entendo que o fragmento

    acima expe esta operao significativa. Interessante notar que, no obstante

    proposio do ENEM nas DCNEM, segue o debate a respeito da incorporao do

    ENEM ao SAEB, que para alguns estudiosos implicaria na mudana metodolgica do

    98

  • Sistema. Isto significa que o SAEB, sendo composto por srie histrica com

    abordagem amostral, ao incorporar o ENEM, passaria a adotar carter censitrio. Alm

    disso, o ENEM, em sua configurao atual, envolve reas do conhecimento que no

    seriam variveis para anlise do Sistema, como o caso das Cincias Humanas e suas

    Tecnologias. Por fim, a incorporao do ENEM ao SAEB encarna primordialmente a

    discusso sobre o Exame como relao de vnculo entre a Educao Bsica e o projeto

    de democratizao do Ensino Superior, tendo, o organismo federal, a atribuio de

    garantir a culminncia dessa etapa da escolarizao. Tais fatos levaram o INEP

    mdia impressa57, para prestar esclarecimentos a respeito das futuras atribuies do

    Exame, conforme se verifica, tambm, em seu portal:

    O bom debate trazido pelas reflexes propostas uma tima oportunidade para se discutir e apresentar solues para os grandes desafios que temos na educao brasileira, especialmente no ensino mdio. Por essa razo o ministro solicitou, sem aodamento, estudos tcnicos adequados para posterior debate, escrutnio e dilogo com especialistas e a sociedade. Com o bom debate ganhamos todos, com a polmica perde o Brasil. (Luiz Cladio Costa, atual presidente do INEP, 2012)

    Esse fragmento, assim como os outros apresentados, neste captulo expe os

    conflitos em torno da definio do ENEM o que, de certo, favorece a leitura poltica

    sobre o Exame. Com esse fim, tratei aqui brevemente das superfcies textuais que

    tencionam converter o Exame em demanda popular e tal anlise est estreitamente

    atrelada discusso sobre os saberes validados pelo Exame, especialmente geogrficos,

    objeto deste estudo. Por isso, o exerccio desta seo prepara nossa argumentao a

    respeito de outras superfcies textuais que comunicam os validados e encarnam o

    vnculo com Exame as Matrizes, que estaro no cerne da prxima reflexo.

    2.4 DA MATRIZ DE COMPETNCIA MATRIZ DE REFERNCIA: DILEMAS EM TORNO

    DA ORGANIZAO CURRICULAR.

    Informamos que as provas aplicadas no decnio 1998/2008 foram estruturadas a partir de uma matriz de 21 habilidades, em que cada uma delas era avaliada por trs questes. Assim, a parte objetiva das provas at 2008 era composta por 63 itens interdisciplinares aplicados em um caderno. A partir de 2009 as provas objetivas esto estruturadas em quatro matrizes, uma para cada rea de

    57Refiro-me ao artigo A metodologia de avaliao da educao de autoria do atual presidente do INEP publicado no jornal Folha de So Paulo, em 13 de setembro de 2012. Disponvel em: http://portal.inep.gov.br/c/ournal/view_article_contentgroupId=10157&articleId=100084&version=1.4 . Acesso em: fevereiro, 2013.

    99

  • conhecimento. Cada uma das quatro reas composta por 45 questes. Cada um dos cadernos, na nova edio do exame [2009], composta por 2 reas de conhecimento. (Portal INEP, acesso setembro, 2011, grifos meus)

    A citao acima expe a centralidade do discurso da reestruturao ENEM a

    partir da reviso da organizao do prprio exame. Retirada do Portal do INEP, ela

    apresenta as mudanas estruturais da prova, a partir de 2009. Interessa-me, aqui,

    explorar essas mudanas, considerando suas caractersticas polticas e os projetos

    disputados no que diz respeito organizao curricular. Em resumo, nesta seo, tenho

    interesse em refletir sobre os sentidos de Matriz do ENEM, desde a sua criao em

    1998. Portanto, estarei focada em dois documentos: a Portaria MEC NO. 438/1998,

    cujo segundo artigo apresenta lista de competncias e habilidades; e a Portaria INEP

    no. 109/2009, que nomeia a Matriz como de Referncia, enumerando reas de

    conhecimentos, competncias, habilidades e objetos de conhecimento.

    Nos limites desse exerccio, proponho sublinhar algumas interpretaes das

    caractersticas desse documento curricular que torna pblica a seleo de saberes

    validados e exigidos pelo ENEM. Considero essa anlise necessria para seguir

    explorando a discusso mais especfica sobre os saberes geogrficos no ENEM. Como

    j fora dito, somente para fins de redao das interpretaes, seguirei a ordem

    cronolgica de publicao dos documentos, portanto, comeo pela discusso do artigo

    2, da Portaria MEC no. 438/1998 que institui o ENEM e apresenta os contedos a

    serem cobrados na prova.

    Artigo 2 - O ENEM, que se constituir de uma prova de mltipla escolha e uma redao, avaliar as competncias e as habilidades desenvolvidas pelos examinados ao longo do ensino fundamental e mdio, imprescindveis vida acadmica, ao mundo do trabalho e ao exerccio da cidadania, tendo como base a matriz de competncias especialmente definida para o exame.

    (Portaria MEC no. 438/1998, grifos meus)

    Chamo ateno para o fato de que, j na referida Portaria, mais particularmente

    nesse artigo, so listadas as competncias e habilidades, alm de ser destacada a

    estrutura da prova: mltipla escolha com redao. valido sublinhar, tambm, que, no

    100

  • mesmo artigo, justificada a prova, isto , suas finalidades so reiteradas. Com esse

    argumento, considero importante o exerccio de comparao entre distintas superfcies

    textuais para interpretar como so disputadas e suturadas as formas de organizar essa

    mesma seleo. Ao longo da Portaria citada, o projeto da competncia pode ser

    percebido como discurso hegemnico que organizaria a seleo de saberes. Com isso,

    afirmo que, na Portaria MEC no. 438/1998, a opo poltica pelo projeto de

    competncia resultou naquela seleo dos saberes nomeados como habilidades e vistos,

    aqui, como operao metonmica. Com base na teoria do discurso, ento, interpreto a

    superfcie textual destacada como aquela estruturada pela operao metonmica, em

    que se encadeia a seleo de contedos com a da habilidades. Em resumo, a seleo

    no deixa de tratar dos contedos, mas, na articulao poltica, a condio de fundar a

    seleo se faz pela afirmao das habilidades, como ilustro no fragmento abaixo:

    IV dada uma situao-problema, apresentada em uma linguagem de determinada rea de conhecimento, relacion-la com sua formulao em outras linguagens ou vice-versa; V a partir da leitura de textos literrios consagrados e de informaes sobre concepes artsticas, estabelecer relaes entre eles e seu contexto histrico, social, poltico ou cultural, inferindo as escolhas dos temas, gneros discursivos e recursos expressivos dos autores; VI com base em um texto, analisar as funes da linguagem, identificar marcas de variantes lingusticas de natureza sociocultural, regional, de registro ou de estilo, e explorar as relaes entre as linguagens coloquial e formal (Op. Cit.)

    Nesta seo, destaco novamente que tema ou contedo no seriam

    significantes excludos da metonmia para afirmar a seleo curricular do ENEM,

    porm, eles convivem com a dimenso saber-fazer das competncias, como atestam

    as marcas textuais dos verbos analisar, relacionar e explorar. Isso porque

    percebo, nessa condio poltica, uma prtica ambgua de condenao e de afirmao

    dos projetos de ensinar e aprender contedos no Ensino Mdio. Ou melhor, os

    contedos podem ser tomados como um corte antagnico e, quando qualificados como

    tradicionais e obsoletos, servem para suturar o projeto de competncia. Nessa mesma

    condio poltica de significao da Matriz de 1998, em que esto atuantes prticas

    articulatrias para a implementao de uma poltica de avaliao e que depende desse

    corte antagnico, definido como discurso da prova tradicional e conteudista, h, pois,

    uma operao metonmica que revitaliza os contedos como habilidades.

    101

  • Com os argumentos acima e considerando primordialmente o documento

    original do ENEM, possvel perceber que a articulao hegemnica em torno da

    organizao curricular por competncia sutura politicamente uma estruturao do

    Exame fundamentada na situao-problema, para julgar as aprendizagens na concluso

    da educao bsica. A concepo de conhecimento subjacente a essa matriz

    pressupe colaborao, complementaridade e integrao entre os contedos das

    diversas reas do conhecimento presentes nas propostas curriculares das escolas

    brasileiras de ensino fundamental e mdio e considera que conhecer construir e

    reconstruir significados continuamente, mediante o estabelecimento de relaes de

    mltipla natureza, individuais e sociais. O ENEM, de acordo com o documento oficial,

    busca verificar como o conhecimento assim construdo pode ser acionado e praticado

    pelo participante por meio da demonstrao de sua autonomia de julgamento e de

    ao, de atitudes, valores e procedimentos diante de situaes-problema que se

    aproximem, o mximo possvel, das condies reais de convvio social e de trabalho

    individual e coletivo. (BRASIL, MEC/INEP, Documento Bsico do ENEM, 2002,

    grifos meus)

    Tanto a Portaria de instituio do ENEM quanto outros documentos

    referendados por ela (como o acima citado) anunciam decisivamente o seu exterior

    constitutivo, como est evidente nesse fragmento. Nesse caso, ouso afirmar que uma

    vez tendo sido hegemonizado no projeto do ENEM, o currculo por competncia,

    principalmente nas primeiras edies, depende do discurso que chamo de conteudista

    como seu corte antagnico, sua fronteira poltica para garantir a demanda particular

    oferecida pela lgica das habilidades para seleo dos saberes validados. A estratgia

    de afirmao da organizao por competncia depende do paradoxo de excluir do

    sistema um sentido de contedo e simultaneamente o incorpora nas definies das

    habilidades exigidas pelo exame.

    Desse modo, se assumo o pressuposto de que a Matriz de Competncia seja

    uma proposta oficial curricular, logo reconheo-a como resultado (ou uma deciso) da

    seleo de saberes. Com essa considerao, posso desconfiar de que, nesse texto

    curricular, h uma tentativa de universalizar o projeto de competncia para organizar os

    currculos das sries finais da educao bsica. Considero essa primeira hiptese

    102

  • parcialmente apresentada, fruto da comparao entre as superfcies textuais em torno

    de sentidos de matriz no ENEM.

    Com base nessa hiptese, pretendo me dedicar s anlises da listagem de

    competncias, tanto a publicada na Portaria MEC 438/1998, quanto na Portaria

    INEP109/200958. Parece-me, ainda, que a lista das competncias permanece vigente

    at a atual edio do exame (2012), mesmo aps a proposta de reformulao. O elenco

    das competncias caracteriza precariamente a estruturao dos saberes validados nesses

    documentos da Matriz (refiro-me, tanto da Competncia, j tratada neste texto,

    quanto da Referncia, a ser aqui explorada), tampouco, como veremos, essa

    permanncia seria uma evidencia das condies polticas estruturantes do Exame,

    cujas prticas articulatrias pretendem se afastar do modelo conteudista,

    discursivamente antagonizado, sem abandonar os contedos. Por essa razo me arrisco

    em afirmar que, mesmo aps questionamentos nos documentos recentes do Exame, o

    projeto da competncia aparece como sistema estruturante, ou melhor, um processo de

    identificao da referida poltica de avaliao educacional.

    Reconhecendo que os sentidos de Matriz podem ser compreendidos como

    espinha dorsal do Exame, um argumento potente para essa reflexo, inspirada na teoria

    poltica, considerar os projetos em suas contradies. Isso posto, acho oportuno

    considerar uma breve interpretao da lista de competncias, nas superfcies textuais

    da Matriz aqui selecionadas. Inicio com o pargrafo 1. Do artigo 2. Da Portaria 438.

    1 - So as seguintes competncias a serem avaliadas: I dominar a norma culta da Lngua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemtica, artstica e cientfica; II construir e aplicar conceitos das vrias reas do conhecimento para a compreenso de fenmenos naturais, de processos histrico-geogrficos, da produo tecnolgica e das manifestaes artsticas; III selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informaes representados de diferentes formas, para tomar decises e enfrentar situaes-problema; IV relacionar informaes, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponveis em situaes concretas, para construir argumentao consistente; V recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaborao de propostas de interveno solidria na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sciocultural. (BRASIL: Portaria MEC 438/1998)

    58 Os anexos III e IV apresentam fragmentos destas Matrizes, com destaque para competncias e habilidades que se remetem identificao do saber geogrfico escolar.

    103

  • No trecho transcrito, possvel evidenciar o discurso da competncia

    alimentando seu antagnico, ao nomear o ENEM uma prova que faz pensar, uma

    prova que prepara o aluno para a vida (um discurso constituinte tambm nas

    alteraes do ENEM, presentes na Portaria INEP no. 109/2009). Essa reflexo

    suspeita ainda que o ENEM, especialmente na sua implementao em 1998, se deu no

    bojo de outras reformas educacionais, cujos grupos envolvidos hegemonizam o

    discurso da competncia. Por essa razo, parece-me que, na perspectiva laclauniana,

    possvel sinalizar, nas linhas acima, uma estratgia de sustentar condies polticas

    para hegemonizao do projeto das competncias. valido observar que, com o slogan

    um ensaio para a vida, a reestruturao do ENEM em 2009 mantm as 5

    competncias, entretanto, faz isso a partir de uma operao metonmica, decidindo

    nome-las como eixos cognitivos, como ilustro a seguir:

    EIXOS COGNITIVOS (comuns a todas as reas de conhe- cimento) I - Dominar linguagens (DL): dominar a norma culta da Lngua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemtica, artstica e cientfica e das lnguas espanhola e inglesa. II - Compreender fenmenos (CF): construir e aplicar conceitos das vrias reas do conhecimento para a compreenso de fenmenos naturais, de processos histrico-geogrficos, da produo tecnolgica e das manifestaes artsticas. III - Enfrentar situaes-problema (SP): selecionar, organizar,relacionar, interpretar dados e informaes representados de diferentes formas, para tomar decises e enfrentar situaes-problema. IV - Construir argumentao (CA): relacionar informaes, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponveis em situaes concretas, para construir argumentao consistente. V - Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaborao de propostas de interveno solidria na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. (Portaria INEP 109/2009)

    Nota-se que, na Matriz vigente, nomeada agora como de Referncia, as

    competncias so suturadas como eixos cognitivos, entretanto, possvel inferir que

    h manuteno do discurso da competncia nessa operao metonmica, presente nos

    trechos acima. Baseada nessa reflexo, sugiro a comparao entre os eixos cognitivos

    destacados na Portaria 109 com o diagrama das matrizes de competncia,

    hegemonizada nas edies de 1998 e 1999 desse Exame.

    104

  • Fonte: Relatrio ENEM 1999.59

    Figura 2.1: Matriz de competncias/itens.

    Essa comparao permite apresentar um indcio da convivncia de projetos de

    organizao curricular na matriz de 2009 que est fixada especialmente na

    reestruturao do Enem, tendo uma das resultantes a Portaria INEP 109/2009, que

    percebida aqui como texto poltico que tem como fim a consolidao desta poltica

    educacional. Conforme destaco no fragmento abaixo, tributrio da Portaria MEC

    438/1998, o discurso da organizao disciplinar um projeto estruturante da Matriz de

    Competncia. Isso evidencia a natureza contraditria dessa poltica de avaliao que,

    na condio poltica de justificar quais seriam os validados para serem objetos de

    exame, faz negociar projetos de organizao e distribuio de saberes. Entendo que

    aqui emerge uma deciso curricular delineada pelos conflitos entre sentidos de

    organizao dos saberes, como fica evidente em outro fragmento do Documento Bsico

    de 2002.

    A Matriz de Competncias pressupe, ainda, que a competncia de ler, compreender, interpretar e produzir textos, no sentido amplo do termo, no se desenvolve unicamente na aprendizagem da Lngua Portuguesa, mas em todas as reas e disciplinas que estruturam as atividades pedaggicas na escola. O participante deve, portanto, demonstrar, concomitantemente, possuir instrumental de comunicao e expresso adequado, tanto para a compreenso de um problema matemtico quanto para a descrio de um processo fsico, qumico ou biolgico e, mesmo, para a percepo das transformaes de espao/tempo da histria, da geografia e da literatura.

    (INEP, Documento bsico, 2002)

    59A Figura 2, extrada de documento do INEP (1999), ilustra uma relao entre a distribuio dos itens por Competncias e Habilidades. Observe que, de acordo com a argumentao desta pesquisa, as cinco competncias constituidoras da Matriz de 1998 permanecem na Portaria INEP 109/2009.

    105

  • Considerando essa caracterstica paradoxal do Exame, desde sua

    implementao, proponho outra evidncia desse fato que, na minha opinio, poderia

    ser tomada como uma substancial mudana na organizao da prova, aps 2009. Trato

    aqui da distribuio dos itens em 4 reas do conhecimento. Em cada rea so elencadas

    especificas competncias e habilidades. Ao final da matriz, h outra listagem de

    contedos, apresentada ainda pela operao metonmica que os nomeia como

    objetos de conhecimento. Para ilustrar essa reflexo, apresento fragmento extrado

    tambm da Portaria INEP 109/2009:

    4o- No nvel de Ensino Mdio a rea de conhecimento da Prova I - Linguagens, Cdigos e suas Tecnologias e Redao - compreende os seguintes componentes curriculares: Lngua Portuguesa, Lngua Estrangeira Moderna, Artes e Educao Fsica; a Prova III - Cincias Humanas e suas Tecnologias - compreende os seguintes componentes curriculares: Histria, Geografia, Filosofia e Sociologia; e a Prova IV - Cincias da Natureza e suas Tecnologias compreende os seguintes componentes curriculares: Qumica, Fsica e Biologia. (Portaria INEP 109/2009)

    Para concluir provisoriamente esta seo, retomo a hiptese de que a estratgia

    de transformar o ENEM em demanda popular depende da articulao entre o projeto de

    organizao curricular por disciplinas e o projeto de currculo por competncias.

    Conforme destaquei na anlise do artigo da Portaria INEP 109/2009, a Matriz de

    Referncia organizada por rea, isto , obedece lgica disciplinar. Essa obedincia

    ao discurso de uma prova que ensaia para a vida permitiu a fixao do projeto de

    competncia, uma vez que cada rea apresentada por um dado conjunto de

    competncias, seguido das respectivas habilidades. Cabe acrescentar, entretanto, que

    esse formato convive com uma listagem de temas ou contedos denominados, neste

    documento, objetos de conhecimento.

    Para fins de comparao entre as superfcies textuais na construo da

    argumentao da tese, enumerei certas habilidades que explicitam suturas de

    significao da Geografia, ou seja, que destacam o vocabulrio geogrfico,

    reconhecendo nelas o potencial de identificao (logo, suturas) de Geografia. No

    Anexo III, enumerei as habilidades com alguma identificao de Geografia na Portaria

    438, complementada pela Matriz de Competncia dos relatrios do ENEM das

    primeiras edies. Repeti o mesmo exerccio com a Portaria INEP 109/2009, presentes

    no Anexo IV.

    106

  • Ao comparar as duas superfcies textuais, fragmentos das matrizes de 1998 e de

    2009 do ENEM, possvel interpretar que h continuidades e operao metonmica

    entre habilidades e contedos. Essa uma interpretao tomada aqui como evidncia

    para questionar o corte antagnico dado pelos sentidos em torno da chamada prova

    conteudista. O ENEM, articulado como um ensaio para vida, uma prova que faz

    pensar, no tradicional, busca nas matrizes comunicar os saberes autorizados no Ensino

    Mdio, necessariamente com a operao metonmica das habilidades. De fato, o que se

    destaca na Portaria de 2009, como a reformulao do ENEM a lista de contedos, o

    programa. Ou melhor, a programao, a lista de temas ou contedos ao final da matriz,

    pode ser percebida tambm como uma operao metonmica dos objetos de

    conhecimento que resultante de um processo de significao que busca suturar uma

    organizao curricular hbrida.

    Da matriz de Competncia matriz de Referncia, h estratgias polticas para

    estender a cadeia de equivalncia, acarretando a reestruturao do ENEM, expressando

    claramente a inteno da universalidade, ou seja, de sua metamorfose em demanda

    popular. Entendendo essa metamorfose como estratgia do poltico, julgo ser

    interessante explorar brevemente o Relatrio do ENEM de 1999. Esse documento,

    como se anuncia no ttulo, divulgou aes decorrentes da primeira edio da prova e

    anunciou mudanas e iniciativas para aprimorar o Exame, ainda uma incipiente poltica

    de avaliao nacional. Noto, no documento citado, estratgias para universalizar o

    exame, bem como interpreto as condies polticas favorveis e desfavorveis para

    cumprir esta finalidade de hegemonizar/popularizar o ENEM.

    Outro ponto intrigante no Relatrio de 1999 a tabela das competncias e

    habilidades, na estrutura do item da prova. Cada item deveria mobilizar 3 habilidades,

    uma vez que a matriz organizada, no por coerncia ou coeso entre contedos, o

    que caracteriza uma organizao estritamente disciplinar. Vale ressaltar que o

    mencionado relatrio valorizou o carter mtrico da aprendizagem, destacando

    intensamente a operao metodolgica das medidas padronizadas, garantidas pela

    distribuio das habilidades por itens. Com o fim de ilustrar esse argumento, recupero

    107

  • o grfico 65 dos desempenhos dos estudantes por habilidades, tambm apresentado no

    Relatrio de 1999.

    Figura 2.2 - Posio hierrquica das habilidades em relao ao desempenho dos participantes

    Fonte: Relatrio ENEM 1999.

    Suspeito que essa crtica no possa ser estendida Matriz de Referncia,

    quando opta por listar as habilidades e simultaneamente enumerar os objetos de

    contedos. Outrossim, julgo que esse documento importante para o exerccio de

    interpretao aqui proposto, por expor dados que apresentam a anlise do INEP sobre o

    processo de implementao do ENEM e por constar, nesse mesmo relato, a reviso da

    Matriz e suas implicaes no Ensino Mdio, como possvel de verificar no fragmento

    abaixo.

    Outro avano bastante significativo do Enem 1999 foi a realizao do 1 Seminrio Nacional, acontecido em Braslia, em outubro, durante o qual o INEP pde apresentar seu trabalho em toda a abrangncia de desafios que enfrentou para estruturar uma avaliao nos moldes do Enem. Foram apresentados os desafios polticos, os desafios terico-metodolgicos e os desafios tcnicos que devem ser enfrentados na elaborao de provas desta natureza. Nessa oportunidade, foram apresentados e discutidos os pressupostos da Matriz de Competncias e Habilidades e analisada sua adequao aos princpios norteadores da reforma do ensino mdio. (BRASIL, INEP. Relatrio Final do ENEM 1999, grifos meus)

    Esse fragmento interessante, porque testemunha a busca pela ampliao da

    cadeia de equivalncia em torno do ENEM como projeto educacional. Isso porque a

    instituio responsvel pela implementao dessa poltica props I Seminrio

    Nacional, ocasio em que foram discutidos e analisados os pressupostos da Matriz de

    Competncias e Habilidades e suas implicaes para a reforma do Ensino Mdio.

    108

  • Minha interpretao desse fato sugere que reside aqui uma estratgia poltica de

    consolidao desse projeto, ao ampliar o dilogo com outros atores sociais em especial

    aqueles que iriam atuar na hegemonizao dessa demanda particular que o ENEM.

    Isso fez com que se tornasse fundamental a discusso da Matriz de Competncias e

    Habilidades, documento que selecionou os saberes a serem exigidos pela prova.

    O Seminrio contou com a presena de professores universitrios, professores do ensino mdio e especialistas em avaliao. Sua repercusso foi muito positiva, o que motivou a Universidade Federal do Paran, por meio da Pr-Reitoria de Graduao, a reeditar o Seminrio Nacional em parceria com a Secretaria Estadual de Educao do Paran. O Seminrio do Paran aconteceu no princpio de novembro e mobilizou grande nmero de profissionais da educao desse Estado. A esta iniciativa, seguiram-se outras de igual importncia, seja a reedio do mesmo Seminrio em So Paulo, promovido pelo Conselho Estadual de Educao, no incio de dezembro, sejam as inmeras reunies tcnicas realizadas em instituies pblicas e privadas, de ensino superior, e com as equipes de secretarias estaduais de educao.(INEP, Relatrio Final do ENEM 1999)

    Com a interpretao do documento destacado, concluo parcialmente que no

    houve, naquela poca, condies polticas favorveis para transformar o ENEM em

    demanda popular, quando considero que somente dois Estados (Paran e So Paulo) re-

    editaram o citado Seminrio para mobilizar seus profissionais e garantir a discusso do

    ENEM, naquelas redes educacionais. Tampouco, com a explorao emprica dos

    documentos tratados nesta seo, posso afirmar que h estratgias de consolidar e rever

    essa poltica que garantam atualmente o ENEM como demanda popular, a partir de

    uma reformulao curricular hbrida.

    Nessa reflexo, interpreto que a reviso do ENEM, em especial, as mudanas -

    que resultaram na Portaria INEP 109/2009 e MEC 807/2010 - levam a entender a

    ampliao da cadeia de equivalncia em torno do ENEM. Isso implica na produo do

    texto da Matriz de Referncia, ao invs de manter o da Competncia, sendo ambos

    textos curriculares paradoxais justamente em funo das articulaes polticas no

    terreno de definio de projetos de organizar e distribuir os sentidos de mundo vlidos

    a serem ensinados e aprendidos no Ensino Mdio Brasileiro.

    109

  • Ainda observo que articulaes sobre as habilidades, nos documentos que

    tratam do ENEM podem ser percebidas como um movimento da lgica da equivalncia

    para articular hegemonicamente (legitimar) o projeto que carrega a Matriz de

    Referencia. Na minha opinio, o discurso da competncia, tanto exterior constitutivo

    da matriz