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Anglica Karim Garcia Simo
Maria Anglica Dengeli
(Organizao)
Tendncias Contemporneas dos Estudos da Traduo
Volume 1
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas
Cmpus de So Jos do Rio Preto
2015 - Tendncias Contemporneas dos Estudos da Traduo volume 1 Todos os direitos reservados para esta edio.
Organizao: Anglica Karim Garcia Simo e Maria Anglica Dengeli
Projeto grfico e diagramao: Luma Almeida Seleghim
Preparao e Reviso: Fbio Henrique de Carvalho Bertonha
Foto da capa: Pedras de Sete Piles (Cristina Carneiro Rodrigues)
Conselho Consultivo
Adriana Zavaglia Universidade de So Paulo (USP)
lvaro Luiz Hattnher
Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Enilde Leite de Jesus Faulstich Universidade de Braslia (UnB)
Lauro Maia Amorim
Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Leila C. Melo Darin Pontifcia Universidade Catlica (PUC - SP)
Mrcia do Amaral Peixoto Martins
Pontifcia Universidade Catlica (PUC - RJ)
Maria Viviane do Amaral Veras Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Marize Mattos DallAglio Hattnher Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Mauricio Mendona Cardozo
Universidade Federal do Paran (UFPR)
Paula Godoi Arbex Universidade Federal de Uberlndia (UFU)
Tendncias contemporneas dos Estudos da Traduo [recurso eletrnico]
/ organizado por Anglica Karim Garcia Simo, Maria Anglica Dengeli.
- So Jos do Rio Preto:
UNESP Cmpus de So Jos do Rio Preto, 2015.
2 v.
ISBN 978-85-8224-109-7 Tipo de arquivo: Texto Requisito do sistema: Software leitor de pdf
1. Lingustica. 2. Traduo e interpretao Estudo e ensino. 3. Tradues. I. Simo, Anglica Karim Garcia. II. Dengeli, Maria
Anglica. III. Ttulo.
CDU 8.035
Nesta obra respeitou-se o Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa
Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
UNESP - Cmpus de So Jos do Rio Preto
7
SUMRIO
9 Apresentao Cristina Carneiro Rodrigues
15 Uma anlise paratextual das tradues francesas de Menino de Engenho Flora Marina Figueiredo Ajala e Marta Pragana Dantas
34 Riscando milagres: Ldio Corr e a traduo intersemitica em Tenda dos Milagres Andr Batista
53 A traduo poltica de Langston Hughes Paula Campos
64 Literaturas no cannicas e a traduo de antologias de contos brasileiros Janana Arajo Coutinho
84 Traduzir La Disparition de Georges Perec para o portugus: entretraduzir: entredizer o e interditado em O Sumio Jos Roberto Andrade Fres
99 Apreendendo a ler a traduo: consideraes acerca do projeto de traduo O Centauro Bronco, de Mauricio Mendona Cardozo Ren Wellington Pereira Fernandes
8
124
A traduo da literatura infantil: uma anlise lingustica no par ingls/portugus brasileiro Kcila Ferreguetti e Flvia Ferreira de Paula
155 Procedimentos tradutrios e teoria literria nas tradues de Geir Campos de Folhas de Relva, de Walt Whitman Bruno Gambarotto
175 O bilinguismo literrio de Nancy Huston: escrita traduzida entre lnguas Gabriela Oliveira e Maria Anglica Dengeli
191 Traite petit de titrologie : regard critique sur la traduction de titres Slav Petkov
9
Apresentao
O Bacharelado em Letras com habilitao de Tradutor do
Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas da Unesp, cmpus
de So Jos do Rio Preto, foi criado em 1978 e, na poca, era o nico
em uma instituio pblica no Brasil. Os Estudos da Traduo eram,
ainda incipientes, por isso docentes e discentes do curso pensaram
em abrir um espao para discutir questes tericas e prticas acerca
da traduo. Com essa finalidade, programaram, em 1981, um
evento que pudesse preencher essa funo, a Semana do Tradutor.
Suas primeiras edies foram modestas em termos
oramentrios e contaram com a participao de palestrantes e
conferencistas da regio, principalmente da prpria Unesp.
Inicialmente organizada quase exclusivamente pelo corpo discente,
aos poucos, com o apoio dos docentes do curso, a Semana passou
a contar com o auxlio de rgos de fomento e passou a receber
grandes nomes dos Estudos da Traduo, tanto da vertente terica
quanto da prtica.
A partir do momento em que sua programao, mais ampla
e diversificada do que inicialmente, comeou a ser mais divulgada,
muitos alunos e docentes de outras instituies passaram a
participar da Semana do Tradutor, vindos de diversas regies do
Brasil.
Em 2014, houve uma inovao. Em sua 34. edio, a
Semana do Tradutor foi realizada junto com o I Simpsio
Internacional de Traduo (SIT). discusso mais voltada para
alunos de graduao, incorporou-se a troca de experincias entre
pesquisadores do Brasil e do exterior.
Nesse ano, o evento contou com mais de trezentos
participantes inscritos, e mais de duzentos apresentaram trabalhos
10
em forma de comunicao oral. Convidados e participantes dos dois
eventos vindos de quatorze Estados do Brasil e de dez outros pases
(ustria, Canad, China, Colmbia, Espanha, Estados Unidos,
Frana, Inglaterra, Itlia e Peru), apresentaram conferncias,
workshops e comunicaes orais que envolveram diferentes
aspectos dos Estudos da Traduo.
A diversidade da produo dos participantes, assim como
sua qualidade, fez nascer a ideia de publicao dos trabalhos
apresentados. Formou-se um Conselho Consultivo que cuidou da
seleo dos textos e as organizadoras agruparam-nos em dois eixos
temticos.
Neste volume incluem-se artigos que abordam crtica de
traduo, traduo literria, assim como questes identitrias. A
disposio dos textos, que apresento a seguir, no temtica, segue
ordem alfabtica pelo sobrenome dos autores.
Ajala e Dantas examinam alguns elementos paratextuais de
duas tradues francesas de Menino de engenho (1932), de Jos Lins do
Rego, uma publicada em 1953, outra em 2013. Concluem que a obra
mais recente tende a evidenciar a provenincia estrangeira do texto,
alm de ser mais informativa que a anterior.
Tomando como base os Estudos da Traduo na ps-
modernidade, Batista questiona as concepes tradicionais de
originalidade, fidelidade e essncia semntica. Para faz-lo, examina
a prtica, apresentada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, de
encomendar a artistas populares a pintura de milagres supostamente
realizados por santos. Como se trata de um processo que envolve a
transformao da narrativa oral do milagre em uma imagem, ou seja,
uma traduo intersemitica, o autor argumenta que ambas as
atividades envolvem leitura e interpretao e o resultado um novo
objeto, que suplementa e revitaliza o texto de partida.
11
O texto de Campos prope-se a, a partir da traduo que faz
de poemas do estadunidense Langston Hughes, discutir a traduo
de literatura de escritores afrodescendentes no Brasil, buscando dar
visibilidade s semelhanas e diferenas entre o contexto do Brasil e
o dos Estados Unidos. Suas tradues levam em considerao a
esttica literria no cannica do autor e sua fora como ativista
poltico e intelectual engajado.
Considerando a traduo literria no plano da mediao nas
trocas entre lnguas diferentes, Coutinho concebe uma obra
traduzida como um novo produto, que passou por processos de
adaptao no novo contexto de recepo. desse prisma que
analisa a obra traduzida Je suis favela (2011), uma coletnea de 22
contos brasileiros escritos por autores no cannicos, que tem como
objeto a favela brasileira na contemporaneidade e publicada pela
editora francesa independente Anacaona, pertencente a Paula
Anacaona, que se encarregou da traduo. Enfoca especialmente a
representao que se molda do Brasil e a imagem que se forma da
literatura brasileira contempornea traduzida ao se levar aos pases
de lngua francesa uma literatura que retrata as periferias brasileiras.
Fres expe como entretraduz La Disparition, de Georges
Perec, romance lipogramtico sem uma vogal e, que narra o
desaparecimento dessa letra. Seu texto intitula-se, em portugus, O
Sumio e nele o autor busca traduzir entre livros, religando os mais
variados intertextos entrelaados, buscando, na maior parte das
vezes, no traduzir as palavras em si, mas traduzir entre elas, traduzir
o que l nas entrelinhas, a metatextualidade que as une entre si e lhes
d razo de ser e dizer tudo tambm sem e.
Baseado especialmente em Zilly, Arrojo, Berman e Moraes,
Fernandes explora o projeto tradutrio de Cardozo de dupla
traduo da novela Der Schimelreiter, do escritor alemo Theodor
Storm. O primeiro trabalho intitula-se A assombrosa Histria do
12
Homem do Cavalo Branco, e apresenta-se com os contornos do
estrangeiro. O segundo, sobre o qual Fernandes se debrua
detidamente, denominado O Centauro Bronco, transformado na luta
de um homem do serto brasileiro contra a aridez do clima
nordestino.
Partindo do pressuposto de que traduzir recontar e
reescrever, Ferreguetti e Paula examinam a traduo de literatura
infantil. As autoras analisam quatro obras com o uso de ferramentas
da Lingustica de Corpus e com o aporte terico da Lingustica
Sistmico-Funcional. Nas obras analisadas detectam a tendncia a
mudanas na organizao temtica, na pontuao, no nome de
personagens, explicitao de imagens, assim como uso de itlicos e
caixa alta para nfase.
Gambarotto parte da convergncia entre estratgias e
procedimentos tradutrios e uma visada do objeto literrio
orientada pela histria e a teoria literrias para analisar duas
diferentes verses dos poemas de Folhas de relva, de Walt Whitman,
publicadas pelo tradutor e poeta brasileiro Geir Campos, uma em
1964, outra em 1983. Como seu interesse investigar as
possibilidades de incorporao da teoria literria e da histria crtica
prtica tradutria, discorre sobre a recepo de Whitman no Brasil
para, ento, examinar as duas tradues de Campos. Em sua
avaliao, as diferenas que se apresentam so menos fruto de
posturas tradutrias que da cultura e produo literria que as
informa. Ao evidenciar um tradutor preso a seu(s) tempo(s), conclui
que o trabalho de traduo no se dissocia de uma recepo
assujeitada a determinaes histrico-sociais.
Fundamentadas na concepo de que bilinguismo um
acontecimento que atravessa a subjetividade dos que, por diversas
razes, partilham a experincia de viver entre lnguas e culturas,
Oliveira e Dengeli examinam a questo da autotraduo, ou
13
reescritura, realizada pela autora canadense Nancy Huston.
Evidenciam que a tarefa evoca o entre-lnguas e a alteridade, que a
escritora est na posio de sujeito entrelnguas, transpassada pelas
lnguas que a constituem.
Petkov trata de ttulos, das diferentes maneiras de nomear
textos, filmes, sries televisivas, estudo que Hoek e Genette
denominaram titulologia.1 Considera que a teoria da traduo
deveria incorporar o estudo dos ttulos, exemplificando com uma
breve anlise de alguns ttulos em francs, ingls e blgaro.
Temos, assim, representadas neste volume algumas das
principais tendncias dos Estudos da Traduo contemporneos,
tanto em termos de fundamentao terica quanto de objetos
examinados.
Cristina Carneiro Rodrigues
Referncia bibliogrfica GENETTE, Grard. Paratextos editoriais. Traduo de lvaro Faleiros. Cotia: Ateli Editorial, 2009.
1 Adoto aqui a traduo de lvaro Faleiros para titrologie (Genette, 2009, p. 55).
14
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
15
UMA ANLISE PARATEXTUAL DAS TRADUES
FRANCESAS DE MENINO DE ENGENHO
Flora Marina Figueiredo AJALA
Marta Pragana DANTAS
1. Introduo
O presente artigo consiste em uma anlise paratextual de
duas tradues da obra Menino de engenho (1932), de Jos Lins do
Rego, para o francs. Tem por objetivo comparar as escolhas
tradutrias e verificar o avano nos Estudos da Traduo a partir
dos paratextos presentes em LEnfant de la plantation (1953 e 2013).
A anlise se baseia no modelo descritivo de traduo literria
desenvolvido por Jos Lambert e Hendrik Van Gorp (2011),
permitindo descrever as tradues e examinar as estratgias em
diferentes aspectos, bem como nas reflexes de Genette (2009)
sobre os paratextos editoriais elementos que contribuem para a
produo de sentido e orientam a recepo de uma obra. A partir
do modelo proposto por Lambert e Van Gorp, a presente anlise
das tradues francesas se detm nas seguintes questes
preliminares propostas pelos autores: os elementos que compem
capa, coleo, pgina de rosto e quarta capa.
UFPB, Programa de Ps-Graduao em Letras, Brasil, [email protected] UFPB, Universidade Federal da Paraba, Brasil, [email protected]
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
16
A anlise tem por finalidade verificar as implicaes das
escolhas tradutrias em LEnfant de la plantation. Busca-se, dessa
forma, contribuir para a reflexo sobre a produo de tradues de
obras literrias, mostrando a importncia dos paratextos para a
contextualizao de uma obra estrangeira.
2. Modelo descritivo de traduo literria
Para a realizao da anlise proposta, adotou-se o modelo de
descrio de traduo desenvolvido por Jos Lambert e Hendrik
Van Gorp, em 1985. O modelo prtico elaborado pelos autores
objetiva uma anlise textual que descreva e examine as estratgias
tradutrias. Segundo os pesquisadores, seu modelo proposto tem
como principal vantagem a possibilidade de ignorar as ideias
tradicionais que se relacionam a fidelidade e qualidade
tradutria, ideias essas que priorizam o texto-fonte.
O esquema para a descrio de traduo (Quadro 1)
apresentado pelos autores se divide em: dados preliminares;
macronvel; micronvel; e contexto sistmico. Sendo que cada um
deles subdividido em aspectos mais especficos.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
17
Quadro 1 Reproduo do esquema sintetizado para a descrio de traduo.
UM ESQUEMA SINTETIZADO PARA A
DESCRIO DE TRADUO
1. Dados preliminares: - Ttulo e pgina-ttulo (por exemplo, presena ou ausncia da indicao de gnero, nome do autor, nome do tradutor); - Metatextos (na pgina-ttulo; no prefcio; nas notas de rodap no texto ou separado); - Estratgia geral (traduo parcial ou completa). Esses dados preliminares deveriam levar a hipteses para anlise posterior tanto no nvel macroestrutural como no nvel microestrutural.
2. Macronvel: - Diviso do texto (em captulos, atos e cenas, estrofes); - Ttulo dos captulos, apresentao dos atos e cenas; - Relao entre os tipos de narrativa, dilogos, descrio; entre dilogo e monlogo, voz solo e coro; - Estrutura narrativa interna (enredo episdico, final aberto); intriga dramtica (prlogo, exposio, clmax, concluso, eplogo); estrutura potica (por exemplo, contraste entre quartetos e tercetos em um soneto); - Comentrio autoral, instrues de palco. Esses dados macroestruturais devem levar a hipteses sobre as estratgias microestruturais.
3. Micronvel (isto , mudanas nos nveis fnico, grfico, microssinttico, lxico-semntico, estilstico, elocucionrio e modal): - Seleo de palavras; - Padres gramaticais dominantes e estruturas literrias formais (metro, rima); - Formas de reproduo da fala (direta, indireta, fala indireta livre); - Narrativa, perspectiva e ponto de vista; - Modalidade (passiva ou ativa; expresso de incerteza; ambiguidade); - Nveis de linguagem (socioleto; arcaico/popular/dialeto; jargo). Esses dados sobre estratgias microestruturais deveriam levar a um confronto renovado com as estratgias macroestruturais e, em seguida, a consideraes em termos do contexto sistemtico mais amplo.
4. Contexto sistmico: - Oposies entre micro e macronveis e entre texto e teoria (normas, modelos); - Relaes intertextuais (outras tradues e obras criativas); - Relaes intersistmicas (por exemplo, estruturas de gnero, cdigos estilsticos).
Fonte: LAMBERT; VAN GORP, 2011, p. 222-223.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
18
Pelo fato de o esquema ser abrangente e apresentar vrias
relaes especficas, Lambert e Van Gorp afirmam que a tarefa do
estudioso ser estabelecer quais relaes so as mais importantes
(ibid., p. 211). Dessa forma, entre os dados preliminares, elegemos o
ttulo e pgina-ttulo como elementos de anlise. O ttulo e a pgina
ttulo abrangem aspectos como: capa, coleo, pgina de rosto e
quarta capa.
2.1 Dados preliminares
A anlise dos dados preliminares aqui proposta se baseia na
reflexo de Genette (2009) sobre o paratexto editorial. Inicialmente,
resume paratexto como aquilo por meio de que um texto se torna
livro e se prope como tal a seus leitores (Genette, 2009, p. 9),
afirmando que o texto
raramente se apresenta em estado nu, sem o esforo e o acompanhamento de certo nmero de produes, verbais ou no, como um nome de autor, um ttulo, um prefcio, ilustraes, que nunca sabemos se devemos ou no considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresent-lo, no sentido habitual do verbo, mas tambm em seu sentido mais forte: para torn-lo presente, para garantir sua presena no mundo, sua recepo e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro (ibid., p. 9, grifos no original).
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
19
Genette (2009) afirma que o paratexto uma zona
indecisa entre o interior (o texto) e o exterior (o discurso do mundo
sobre o texto) e faz referncia a Philippe Lejeune, que nomeia os
paratextos como franja do texto impresso que, na realidade,
comanda toda a leitura. Genette conclui,
[...] com efeito, essa franja, sempre carregando um comentrio autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona no apenas de transio, mas tambm de transao: lugar privilegiado de uma pragmtica e de uma estratgia, de uma ao sobre o pblico, a servio, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados (ibid., p. 10, grifo no original).
O autor afirma que o paratexto desdobra-se em duas
modalidades: peritexto e epitexto. O peritexto consiste nos
elementos paratextuais que se situam em torno do texto, no espao
do mesmo volume, como o ttulo, o prefcio, as notas de rodap
etc. J o epitexto concerne aos elementos paratextuais que se
encontram a certa distncia do texto, que se situam na parte externa
do livro, um suporte miditico (conversas, entrevistas etc.) ou uma
comunicao privada (correspondncias, dirios etc.).
Genette (2009) tambm aborda a questo de uma obra se
encontrar inserida em uma coleo e comenta que essa insero tem
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
20
seus objetivos e significados, inclusive a ausncia de coleo,
segundo o autor, sentida pelo pblico. Segundo o autor,
[o] selo de coleo, mesmo sob essa forma muda, , pois, uma duplicao do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que gnero de obra tem a sua frente: literatura francesa ou estrangeira, vanguarda ou tradio, fico ou ensaio, histria ou filosofia etc. (ibid., p. 26).
A capa apresenta algumas informaes que so praticamente
obrigatrias, como: nome do autor, ttulo da obra e selo do editor.
Alm dessas informaes, outras podem aparecer, entre elas:
indicao genrica, nome do tradutor, nome do prefaciador, retrato
do autor, ilustrao especfica, endereo do editor, preo de venda.
Na pgina de rosto, encontram-se geralmente ttulo, nome do autor,
nome do tradutor e da editora, podendo conter indicao genrica,
epgrafe e dedicatria (GENETTE, 2009).
A quarta capa um lugar considerado estratgico e seu
contedo pode variar. Pode apresentar o nome do autor e do ttulo
da obra novamente, uma nota biogrfica, um release, uma relao de
obras de uma coleo, citaes da imprensa, comentrios elogiosos,
preo de venda, entre outros (GENETTE, 2009).
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
21
3. Anlise dos dados preliminares
A partir do modelo de descrio de traduo proposto por
Lambert e Van Gorp (2011), e das reflexes de Genette (2009),
sero considerados para fins de anlise: a capa, a coleo, a pgina
de rosto e a quarta capa das duas tradues do romance de Jos Lins
do Rego.
3.1 Capa
A capa da primeira traduo de J. W. Reims (1953)
considerada clssica, j que contm as informaes que, segundo
Genette (2009), so praticamente obrigatrias (nome do autor, ttulo
e editora) e outras informaes que, segundo o autor, podem
constar na capa. Em destaque, na metade superior da capa, aparece
o ttulo da obra em uma fonte maior.
J a capa da segunda traduo (2013), de Paula Anacaona,
apresenta, alm das informaes consideradas praticamente
obrigatrias, uma ilustrao que preenche grande parte do espao
disponvel. A importncia dada ilustrao no perceptvel apenas
no espao disponibilizado para a mesma, mas tambm na opo
feita pela xilogravura, arte presente na literatura de cordel2
2 O Centre de Recherches Latino-Amricaines da Universit de Poitiers, na Frana (http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/), torna conhecida, atravs de colquios e jornadas de estudos internacionais, essa manifestao literria e popular brasileira.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
22
nordestina e na representao de um ambiente rural, oferecendo
indcios sobre o enredo da obra.
Figura 1: Capas de LEnfant de la plantation 1953 e 2013
As demais informaes presentes na capa das obras se
apresentam no Quadro 2.
Quadro 2 Levantamento de informaes presentes nas duas capas
Informao L'Enfant de la plantation (1953)
L'Enfant de la plantation (2013)
Coleo Collection Rive Ouest Collection Terra
Autor Jos Lins do Rego Jos Lins do Rego
Ttulo L'Enfant de la plantation L'Enfant de la plantation
Indicao genrica Roman -
Prefcio Prsent par Blaise Cendrars -
Editora Deux Rives Anacaona
A capa da edio de 1953 no fornece qualquer informao
sobre a origem estrangeira da obra, nem mesmo indica que se trata
de uma traduo. A nica informao que d um carter estrangeiro
obra diz respeito ao nome do autor.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
23
Como dito anteriormente, a capa da edio de 2013 fornece,
a partir da ilustrao, um carter estrangeiro obra, precisando
ainda, para os que conhecem a xilogravura e a literatura de cordel, a
origem nordestina e rural do romance. Como na primeira edio,
outra informao presente na capa que d um carter estrangeiro
obra o nome do autor. Diferentemente da primeira traduo, no
h indicao sobre a autoria do prefcio na capa, e o mesmo
assinado pela prpria Paula Anacaona.
importante salientar que a traduo de 2013 foi publicada
por uma pequena casa editorial independente e que a tradutora Paula
Anacaona acumula as funes de editora, tradutora e prefaciadora
da obra; diferentemente da edio de 1953, com a traduo de J. W.
Reims e prefcio de Blaise Cendrars3 prefcio que serve como
indcio de que a Deux Rives era uma editora provavelmente de porte
maior que a Anacaona.
3.2 Coleo
A primeira traduo francesa de Menino de engenho se encontra
inserida na Collection Rive Ouest. Nas pesquisas feitas para
contextualizao da editora, no foram encontradas informaes
sobre o perfil dessa coleo. Porm, na quarta capa encontra-se uma
lista das obras da mesma coleo, provenientes de outros pases e
3 Novelista e poeta suo, segundo relata Carelli (1994), possui uma histria particular com o Brasil, pas reconhecido por ele como sua segunda ptria e onde permaneceu durante a dcada de 1920.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
24
literaturas (Quadro 3).Os ttulos no apresentam ligao especfica
com o Brasil; apenas sugerem que se trata de uma coleo de obras
estrangeiras contemporneas. A forma como opera a coleo ao
introduzir a obra traduzida em um novo contexto, induzindo a sua
recepo, objeto de anlise de Adriana Pagano (2001) em seu
estudo exemplar sobre tradues e colees de editoras no contexto
editorial do Brasil e da Argentina entre 1930 e 1950. Para a autora
(2001, p. 179-181) as colees organizam a recepo da obra,
estabelecendo critrios de classificao que expressam a posio
ideolgica de determinado grupo (os editores) e filtram as escolhas
feitas em meio a obras da literatura mundial a serem inseridas no
repertrio nacional. Apoiando-se em Stewart (1993), a pesquisadora
afirma que a coleo um espao a-histrico que organiza e
categoriza. A diversidade dos autores que so apresentados em
conjunto, reunidos em uma mesma categoria, revela esse efeito
descontextualizante e a-historicizante que supe a constituio das
colees, como ilustra o caso aqui analisado da Collection Rive Ouest.
Quadro 3 Levantamento das obras presentes na Collection Rive Ouest Collection Rive Ouest
Autor Obra Ttulo original Pas de origem
H.-G. Wells
Dolors, Roman (1946)
Le coin du Rve, Un songe (1946)
Les Enfants dans la Fort, Roman (1947)
Apropos of Dolores (1938)
The Happy Turning (1945)
Babes in the Darkling Wood
(1940)
Inglaterra
Emil Ludwig Quatuor, Roman (1946)
Quartet (1938) Alemanha
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
25
Diana Frederics
Diana, Roman (1946) Diana: A Strange Autobiography
(1939)
Estados Unidos da Amrica
Hart Stilwell Ville frontire, Roman (1947)
Border City (1945) Estados Unidos da Amrica
Christina Stead
Vent damour, Roman (1947)
For Love Alone (1944)
Austrlia
D.-H. Lawrence
Lady Chatterley, Roman (1947)
Lady Chatterley's Lover (1928)
Inglaterra
Marg. Campbell-
Barnes
Anne de Cleves, 4 femme de Henri
VIII (1947)
My Lady of Cleves: A Novel of Henry VIII and Anne of
Cleves (1946)
Inglaterra
Harry Reasoner
Douce Marys, Roman (1950)
Tell Me About Women (1946)
Estados Unidos da Amrica
Gore Vidal Un garon prs de la rivire, Roman (1949)
The City and the Pillar (1948)
Estados Unidos da Amrica
A segunda edio, por sua vez, encontra-se inserida na
Collection Terra e evidencia o aspecto estrangeiro da coleo ao
manter o termo Terra em portugus (lngua estrangeira para o
pblico-alvo da traduo), alm de situar a obra em um contexto
rural a partir da ilustrao da capa. Alm disso, na Collection Terra
esto inseridas outras obras brasileiras de temtica rural, tais como:
Nossos ossos, de Marcelino Freire (Nos os, 2014), O quinze, de Rachel
de Queiroz (La terre de la soif, 2014) e Bernarda Soledade A tigre do
serto, de Raimundo Carrero (Bernarda Soledade, Tigresse du serto,
2014).
3.3 Pgina de rosto
Na pgina de rosto da primeira edio, repetem-se as
informaes constantes na capa sobre a coleo, o autor, o ttulo, a
indicao genrica, o prefcio e a editora. Os elementos
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
26
acrescentados informam o carter estrangeiro da obra: o ttulo
original Menino de Engenho abaixo do ttulo traduzido e a indicao
Traduit par J. W. Reims.
No entanto, o que chama a ateno nessa edio, tanto na
capa como na pgina de rosto, o fato de:
Na capa: encontra-se a informao sobre o prefaciador,
Blaise Cendrars;
Na pgina de rosto: repete-se a informao sobre o
prefaciador, cujo nome se encontra acima da indicao do
tradutor.
O reconhecimento da autoridade do poeta suo no campo
literrio francs e a sua relao com o Brasil conferem validade ou
crdito ao que ele afirma sobre a obra. Ao prefaciar o romance,
Cendrars empresta-lhe prestgio, em uma operao de transferncia
de capital simblico4 conforme descrito por Bourdieu (2002). J a
informao sobre o tradutor se restringe s letras iniciais e ao
sobrenome, J. W. Reims.
A traduo de J. W. Reims (1953) no informa o texto de
partida utilizado, mas tudo indica que tenha sido uma traduo
4 Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu para se referir ao crdito ou prestgio atribudo a determinado agente (indivduo, instituio etc.) ou prtica social (a literatura sendo uma delas) e que se traduz em vantagem efetiva na disputa pelo reconhecimento e pela legitimao no espao social.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
27
direta do portugus, tendo em vista o acesso de Blaise Cendrars
obra5.
Na pgina de rosto da segunda edio mantida a ilustrao
presente na capa, repetem-se as informaes sobre o autor, o ttulo
e a editora, mas suprime-se a informao sobre a coleo. A
informao acrescentada torna claro o carter estrangeiro da obra e
indica o texto de partida utilizado para a traduo, por meio da
meno: Traduit du brsilien par Paula Anacaona.
Figura 2: Pginas de rosto de LEnfant de la plantation 1953 e 2013
5 Conforme o prefcio da primeira traduo francesa (1953) escrito por Blaise Cendrars: Menino de Engenho de 1932. Doidinho de 1933. Bangu de 1934. Em 1935, Paulo Prado me dando, em Paris, o Ciclo da Cana-de-Acar de Jos Lins do Rego disse-me: [...]. (traduo nossa de: Menino de Engenho est de 1932. Doidinho de 1933. Bangu de 1934. En 1935, Paulo Prado en me donnant Paris O Ciclo de Cana de Assucar de Jos Lins do Rego me dclarait: [...]).
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
28
3.4 Quarta capa
O espao da quarta capa tido como um lugar estratgico
do peritexto editorial. Na primeira edio, encontram-se nesse
espao informaes sobre as obras editadas pela Deux Rives,
presentes em outras colees da editora (ditions de luxe e Collection
De quoi vivaient-ils?), e as demais obras inseridas na Collection Rive
Ouest. Na parte inferior dessa mesma zona, encontra-se um
endereo, provavelmente da editora. Segundo Genette (2009), entre
as informaes presentes na capa de uma obra, poderia figurar o
endereo do editor/casa editorial; no presente caso, a informao
em questo disponibilizada na quarta capa.
Na quarta capa da segunda edio, encontra-se um trecho
do prefcio de Blaise Cendrars La voix du sang presente na primeira
traduo, retomando-se a estratgia de transferncia do prestgio de
Cendrars, considerado uma autoridade no sistema literrio francs.
O texto escrito por Cendrars e com referncias ao Brasil (Todo o
Brasil est nesse livro transparente6) atesta o carter estrangeiro da
obra, marcando-a como uma traduo. Alm do texto, a quarta capa
apresenta uma ilustrao que, semelhana da capa, trata da obra
revelando o contexto rural ao qual faz referncia. Outra informao
presente nessa zona o preo de venda, localizado no canto inferior
esquerdo, prximo ao cdigo de barras e ao endereo eletrnico da
editora.
6 Cujo ttulo em francs Tout le Brsil est dans ce livre transparent.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
29
Figura 3: Quartas capas de LEnfant de la plantation 1953 e 2013
A partir da capa e da quarta capa da primeira edio,
possvel depreender a apresentao sbria e mais clssica da obra,
direcionada a um pblico restrito7. A quarta capa no apresenta
informao sobre a obra em si, optando por contextualiz-la em
relao aos ttulos publicados na mesma coleo, bem como s
outras colees da editora, conforme j mencionado, em uma
estratgia de orientar a recepo no contexto de chegada e de
divulgar o acervo para o pblico. Sobre a capa e a quarta capa da
segunda traduo percebe-se a agradabilidade visual, se comparada
com a primeira edio, mais sbria. Ao apresentar as ilustraes em
xilogravuras, a traduo de 2013 busca, segundo a tradutora, fazer
a Revoluo da Literatura, e comenta:
[...] Na Frana, os livros so muito feios, muito clssicos e se as pessoas agora vo comprar e-book, porque realmente o livro com um papel vagabundo, com uma capa feia, no atrai.
7 Noo desenvolvida por P. Bourdieu para designar o escritor, o artista e mesmo o erudito, escrevem no apenas para um pblico, mas para um pblico de pares (BOURDIEU, 2007, p. 108). A noo de pblico restrito se contrape de grande pblico.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
30
Penso que isso [ilustrar os livros] uma maneira de salvar o papel e tambm porque eu constatei que todos os meus amigos no leem, eu sou a nica que l [...] ideia era atrair um pblico mais jovem, que pode ser seduzido pelas imagens (AJALA, 2013, p. 41).
O quadro recapitulativo (Quadro 4) sintetiza os aspectos dos
dados preliminares, com o intuito de fornecer uma viso geral do
que foi analisado.
Quadro 4 Quadro recapitulativo Aspectos Deux Rives (1953) Anacaona (2013)
Ilustrao na capa No Sim
Coleo Rive Ouest Terra
Ttulo LEnfant de la plantation LEnfant de la plantation
Indicao genrica na capa
Sim (roman) No
Nome do prefaciador na capa
Sim (Blaise Cendrars) No
Meno origem brasileira ou
estrangeira na capa
Nome do autor Nome do autor, nome da coleo e
ilustrao
Ligao explcita entre a coleo e o
Brasil
No Sim
Quarta capa Obras editadas Trecho do prefcio de Blaise
Cendrars
Pgina de rosto Coleo, autor, ttulo, indicao genrica, prefcio, ttulo original e indicao do
tradutor
Autor, ttulo e indicao do
tradutor
O resultado dessa anlise evidencia o carter assumidamente
estrangeiro da segunda traduo (2013), por meio da ilustrao na
capa (e pgina de rosto), da coleo com um termo em francs
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
31
(Collection) e outro em portugus (Terra). A coleo tambm rene
outras obras brasileiras e rurais, e no apenas estrangeiras, como o
caso da Collection Rive Ouest, na qual a primeira traduo (1953) est
inserida.
4. Concluso
A partir das reflexes de Genette (2009), e feita anlise dos
dados preliminares, possvel confirmar a importncia dos
paratextos para a contextualizao de uma obra traduzida. Como
observado, as escolhas presentes na segunda traduo (2013), alm
de revelarem o carter estrangeiro por meio da ilustrao e do nome
da coleo com um termo em lngua estrangeira, contextualizam o
ambiente do enredo por meio de elementos presentes na ilustrao.
Considerando o avano nos Estudos da Traduo, tambm,
verificou-se que o perodo de sessenta anos que separa uma
traduo da outra significativo para a produo e apresentao da
obra. O modo como a traduo em 1953 produzida e apresentada
menos estrangeira, sbria e sem ilustrao contrasta com a
traduo de 2013, assumidamente estrangeira e informativa;
possibilitando ao leitor uma contextualizao em um coup d'il.
Por meio da anlise descritiva possvel refletir sobre as
escolhas nas tradues e o significado delas na produo e insero
de uma obra estrangeira em determinado pas. As escolhas
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
32
tradutrias podem revelar a relao existente entre os pases
envolvidos nessa troca cultural.
Referncias bibliogrficas AJALA, Flora Marina Figueiredo. Menino de engenho (Jos Lins do Rego) na Frana: um estudo descritivo-comparativo de duas tradues. Joo Pessoa, 2013. 69 f. Monografia (Bacharelado em Traduo) Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraba. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas: introduo, organizao e seleo Sergio Miceli. 6. ed. So Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Les conditions sociales de la circulation internationale des ides. In : Actes de la recherche en sciences sociales, n 145, p. 3-8, 2002. Disponvel: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_2002_num_145_1_2793. Acesso em: 27 jul. 2013. CARELLI, Mario. Culturas cruzadas: intercmbios culturais entre Frana e Brasil. Traduo de Ncia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1994. CENDRARS, Blaise. La voix du sang. In: REGO, Jos Lins do. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux-Rives, 1953. GENETTE, Grard. Paratextos editoriais. Traduo de lvaro Faleiros. So Paulo: Ateli, 2009. LAMBERT, Jos; VAN GORP, Hendrik. Sobre a descrio de tradues. In: GUERINI, A.; TORRES, M.H.C.; COSTA, W.C. (Org.) Literatura e traduo: textos selecionados de Jos Lambert. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 208-223.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
33
PAGANO, Adriana S. An Item Called Books: Translations and Publishers Collections in the Editorial Booms in Brazil and Argentina from 1930 to 1950. Crop, n 6, 2001. p. 171-194. REGO, Jos Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: Adersen-Editores, 1932. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux Rives, 1953. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Paula Anacaona. Paris:
ditions Anacaona, 2013.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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RISCANDO MILAGRES: LDIO CORR E A TRADUO INTERSEMITICA EM TENDA DOS MILAGRES
Andr BATISTA
Tenda dos Milagres, romance escrito pelo baiano Jorge
Amado, publicado em 1969, uma narrativa basilar para se
compreender os principais componentes da produo literria
amadiana. O livro trata de discriminao, intolerncia religiosa, mito
da democracia racial e sociedade de consumo, entre outras questes.
O romance , segundo o prprio Jorge Amado, dentre os livros que
escreveu, o seu favorito, e Pedro Archanjo, personagem principal da
trama, aquele que mais se assemelha ao seu criador apesar de ter
sido baseado tambm em outras figuras da vida real, como Manuel
Querino e Miguel de Santana.
No entanto, o ttulo do romance est diretamente ligado a
outro e tambm importante personagem da narrativa: Ldio
Corr, o melhor amigo de Pedro Archanjo. A Tenda dos Milagres,
situada na Rua do Tabuo, n 60, prximo ao Largo do Pelourinho,
era o ateli onde Ldio Corr exercia seu ofcio de artista plstico
cuja razo do nome est relacionada ao tipo de trabalho que ele
exercia Ldio era riscador de milagres. Seu ofcio se configurava da
seguinte forma: algum que estivesse passando por um problema de
difcil soluo principalmente, casos de doena fazia uma
UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
35
promessa para determinado santo e, alcanada a graa, ou milagre
como tambm era conhecido o feito , o devoto ia at o riscador,
narrava-lhe de que forma o milagre havia ocorrido e encomendava
uma pintura que o representasse.
Quem fez promessa a Nosso Senhor do Bonfim, a Nossa Senhora das Candeias, a outro santo qualquer, e foi atendido, mereceu graa, benefcio, vem s tendas dos riscadores de milagres para lhes encomendar um quadro a ser pendurado na igreja, em grato pagamento (AMADO, 1969, p. 17).
Os quadros nos quais se riscam milagres so formalmente
conhecidos como tbuas votivas, compostos por uma pintura e uma
legenda. Segundo Klebson Oliveira,
dividem-se em trs planos: no tero inferior, a legenda com o nome do miraculado e as circunstncias e data em que ocorreu o milagre; no tero mdio, a figura do milagrado, em seu quarto, geralmente deitado em posio pr-morturia; no plano superior, habitualmente esquerda, representa-se a divindade, geralmente envolta em raios ou nuvens, que propiciou a graa (OLIVEIRA, 2008, p. 47).
Cada obra servia de modelo para riscos posteriores, apesar
do seu compromisso de representar um acontecimento, os
riscadores, em muitos casos, exerciam sua imaginao de forma
consideravelmente livre, particularmente, quando quem
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
36
encomendava a obra no fornecia uma narrativa detalhada do
milagre, embora, em geral, seguissem, de alguma forma, um padro
estabelecido. As tbuas votivas, por serem produzidas por artistas
oriundos das camadas mais populares e, geralmente, encomendadas
por fiis pertencentes ao mesmo extrato social, no eram
consideradas propriamente manifestaes artsticas. O material com
o qual os quadros eram confeccionados variava desde os de melhor
qualidade, como algum tipo de madeira nobre, at os mais
improvisados, feitos com pedaos de caixote. Normalmente, as
peas encomendadas no possuam grandes dimenses, o que
tornava o custo acessvel pra os devotos (SCARANO, 2004, p. 75).
A figura do riscador de milagres era bastante popular no
Brasil at a metade do sculo XX. O risco do milagre
(representao pictogrfica de uma graa concedida por uma
divindade catlica) um dos vrios tipos de ex-voto, isto , um
quadro, imagem, inscrio ou rgo de cera ou madeira etc. que se
oferece e se expe numa igreja ou numa capela em comemorao a
um voto ou a promessa cumprida (FERREIRA apud OLIVEIRA,
2008, p. 5). A variedade dos tipos de ex-voto vasta, desde os mais
provveis e condizentes com o sagrado at os mais inslitos. Alm
dos quadros pintados pelos riscadores e das esculturas talhadas
pelos santeiros, existem cartas, placas, objetos orgnicos, esculturas
trabalhadas em alta reprodutibilidade (OLIVEIRA, 2009, p. 3). Em
inmeras religies, h uma relao mercadolgica entre os fiis e
as divindades, configurada em constantes barganhas pagas por meio
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
37
de oraes, bnos, sacrifcios, milagres, penitncias e graas. No
mbito do catolicismo brasileiro, o ex-voto uma dessas
importantes moedas de troca dessa relao. A principal distino
entre o risco do milagre e os demais tipos de ex-votos o fato de
que um procura comunicar-se, informando determinada
ocorrncia e o outro intenciona apenas uma reverncia
(VALLADARES apud OLIVEIRA, 2009, p. 4). Restam, no Brasil,
poucos riscadores de milagres, a marca da evoluo da histria
econmica clara. Hoje, conclumos que a fotografia veio sobrepor
pintura (OLIVEIRA, 2008, p. 6), talvez pela sua praticidade e
imediatismo, talvez pelo seu custo relativamente baixo, ou ainda,
por produzir uma representao mais documental e verossmil.
Atualmente, os tipos de ex-votos mais recorrentes so os
escultricos, principalmente, aqueles que representam as partes
afetadas do corpo humano e para as quais a graa pedida.
Dentre as diferentes formas de ex-votos, a pintura a que
mais aproximava o devoto do objeto, no que diz respeito sua
feitura. A exigncia da existncia de um relato to minucioso
quanto possvel do milagre fazia do asceta um contador de
histrias, alm disso, a relevncia que atribua ao santo e ao milagre
era refletida na sua eloquncia e na riqueza de detalhes para que o
riscador pudesse captar, sem falhas, o carter do milagre. O
contador tornava-se, ento, o autor de uma narrativa, construtor de
uma verdade palpvel a partir de outra, de cunho metafsico,
supondo que o riscador, construtor de um terceiro discurso,
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
38
reproduziria aquela narrativa inicial, pois acreditava que essas
verdades fossem nicas.
O riscador de milagres era, portanto, responsvel por recriar
uma narrativa oral em forma pictogrfica, ou seja, por traduzir de
um sistema de signos (linguagem oral) para outro (pintura). A esse
tipo de transcriao, Roman Jakobson chamou de traduo
intersemitica, definindo-a como a interpretao dos signos verbais
por meio de sistemas de signos no verbais (JAKOBSON, 2000,
p. 65). Poder-se-ia supor, portanto, que o trabalho do riscador seria
captar a essncia do relato e transp-la para a tela.
Por ser uma traduo intersemitica, transcriao, ou, ainda
segundo Jakobson, uma transmutao, o trabalho do riscador de
milagres uma recriao, uma ressignificao da narrativa do
devoto. Trata-se de uma nova narrativa, um novo olhar, uma
construo a partir daquilo que j uma construo o relato do
milagre. Construo, porque tudo o que se tem no momento do
relato a palavra de quem conta (nica referncia ao fato). Essa
construo, ou representao, uma interpretao do
acontecimento, uma traduo do fato plasmada a partir de um
determinado ponto de vista, ideologicamente fundamentado,
interessado, permeado pelas idiossincrasias do contador, assim
como o que narra o milagre a Ldio Corr: foi milagre de primeira,
seu Corr, aquilo no era uma ona, era um despropsito de bicho
sem entranhas, os olhos, acredite, uma iluminao (AMADO, 1969
p. 102). O evento ganha ares de grandeza na voz do narrador, o que
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
39
justificaria a splica, a relevncia da intercesso do santo, conferindo
grandeza ao milagre, a gratido do devoto e sua relao de dbito
com o santo e, como consequncia, a responsabilidade do riscador
em recontar, com seus traos, o feito da divindade, sem deixar de
incluir os detalhes mais significantes e ainda assegurar a qualidade
esttica de que o milagre era digno.
A pintura ou risco do milagre uma leitura e uma
interpretao do relato, sendo, portanto, uma releitura e reescritura
do fato, ou seja, uma nova construo, um novo texto, que tem
como referncia inicial uma narrativa anterior. Para muitos, o fato
de a pintura ter como ponto de partida o relato pressupe uma
dvida, uma obrigao de fidelidade ao milagre alcanado. Tal
pressuposto, porm, suscita alguns questionamentos, haja vista ser
o relato do milagre uma interpretao do acontecimento, a
construo de uma verdade, tecida a partir da perspectiva de, pelo
menos, um indivduo, carregada de elementos do consciente e do
inconsciente desse sujeito que se somam ao contexto histrico e
cultural em que est imerso. Em outras palavras, uma leitura parcial
leia-se parcial no como deficitria, mas como no absoluta ou
definitiva. Octavio Paz afirma que a linguagem torna-se paisagem
e esta paisagem, por sua vez, uma inveno, a metfora de uma
nao ou de um indivduo (PAZ, 2009, p. 19). A paisagem que a
narrativa do milagre descreve revela no apenas o prprio milagre,
mas o contador e a comunidade do qual parte e porta-voz. Ora, se
o relato do milagre produto de uma leitura parcial, como
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
40
estabelecer uma relao de fidelidade entre a narrativa oral e o
fato? A fidelidade, portanto, no nos parece cabvel.
Poder-se-ia argumentar que a fidelidade esperada estaria
entre a narrativa oral e o risco do milagre, sendo a narrativa o
texto original e o risco, sua traduo. Se o relato do milagre
consiste numa construo passvel de questionamentos quanto
veracidade ou integralidade do fato, desestrutura-se o conceito
de originalidade, como visto tradicionalmente, pois nem o
original puro, ou seja, nenhum texto inteiramente original,
porque a prpria linguagem em sua essncia j uma traduo (id.,
ibid., 2009, p. 13). Como vimos anteriormente, a representao
pictrica do milagre uma leitura interpretativa do relato, ou seja,
uma reconstruo do acontecimento, uma ressignificao desse
milagre e, assim, outro texto. Portanto, ainda que seja uma traduo,
a pintura do milagre uma obra original, pois, todos os textos so
originais porque cada traduo distinta. Cada traduo , at certo
ponto, uma inveno e assim constitui um texto nico (id., ibid.,
2009, p. 15). Essa outra obra , tambm, carregada de sensibilidade,
percepo, impulsos e ponderaes do artista aliados a seu lugar de
fala. A obra de arte, alm de se construir sobre os rastros da narrativa
de partida, relaciona-se com todo o repertrio de histrias,
experincias afetivas, sociais, polticas, culturais, artsticas e
sensoriais do autor, afinal, cada elemento se constitui a partir do
rastro dos outros elementos da cadeia ou do sistema (DERRIDA
apud RODRIGUES, 2000, p. 198). Esses elementos se relacionam
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
41
guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se j
moldar com o elemento futuro (id., ibid., 2000, p. 198). Deparamo-
nos, ento com a impossibilidade de se estabelecer uma relao de
fidelidade ou de pura e simples repetio do que foi narrado, tal
qual pretendia um dos clientes de Ldio Corr quando ordenou:
Quero um quadro com tudo que contei, tudo, sem tirar nem pr
(AMADO, 1969, p. 102).
Essa impossibilidade pode ser explicada, tambm, pelo fato
de que o texto original no um objeto estvel, transportvel,
de contornos absolutamente claros, cujo contedo ns podemos
classificar completa e objetivamente (ARROJO, 1986, p. 12).
Ainda a esse respeito, Rodrigues afirma que o pressuposto da
equivalncia [...] s teria lugar em um sistema em que houvesse um
centro, um ponto fixo (RODRIGUES, 2000, p. 200), e o milagre,
a cada vez que contado oralmente, sofre algum grau de modificao,
no tendo, portanto, uma essncia determinvel, um significado
absoluto que possibilitasse uma correspondncia linear entre as
diferentes formas de significao. A pesquisadora tambm defende
que a traduo s poderia ser uma operao que transfere, ou
transporta significados, se houvesse a possibilidade do significado
transcendental [...] (id., ibid., 2000, p. 192).
No campo da traduo, incluindo-se a traduo
intersemitica, a busca pela fidelidade pauta de uma discusso
contnua, fundamentada numa hierarquia platnica entre o texto de
partida e a traduo. No caso do ofcio de Ldio Corr, o milagre
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
42
estaria no nvel do ideal, a essncia do acontecimento, assim, o
relato oral seria a representao, a materialidade justa que nos
acessvel, desprovida de essncia, porm, autorizada pela sua
proximidade factual com o acontecimento. O risco do milagre,
na condio de representao da narrativa oral, seria, portanto, um
simulacro, imitao afastada no terceiro grau da verdade
(PLATO, 2005, p. 374). A fico amadiana confirma a crena de
que uma traduo deve ser subserviente, pois est sempre em dbito
com o texto de partida. Esse um pensamento corrente quando se
avalia uma traduo intersemitica ou adaptao, como
comumente chamada. Temos, como exemplo, inmeros filmes
baseados em romances os quais, por inmeros fatores, so
considerados infiis obra que lhes deu origem, sendo,
consequentemente, tratados como inferiores. Em contrapartida,
Robert Stam acredita haver uma interminvel permutao de
textualidades, ao invs de fidelidade de um texto posterior a um
modelo anterior (STAM, 2006, p. 21).
O exemplo de Ldio Corr vai ao encontro dessa crena na
subservincia. Pelo seu trabalho, o milagre ganhava cores, luzes e
podia ser visto e sentido durante anos, por todos os que se
dispusessem a contemplar a sua obra de arte. O ofcio do riscador
perpetuava o milagre, dava-lhe sobrevida. Ldio era criativo,
riscando o milagre portentoso, [...] deixa[va] a imaginao correr
(AMADO, 1969, p. 102), ignorando a relao de subservincia para
com o milagre,
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
43
[...] no pensa na grandeza da graa concedida, na categoria do prodgio, do prprio quadro decorrem seu sorriso e seu contentamento: da luz obtida, das cores e da composio difcil, com as figuras, a fuga dos cavalos, o santo e a mata virgem (AMADO, 1969, p. 99).
No mbito da lgica platnica, no conseguindo reproduzir
uma suposta integralidade do relato oral, essa nova criao artstica
no se configura como cpia, uma imagem dotada de semelhana
(DELEUZE, 1974, p. 263), mas como um simulacro, construdo
sobre uma disparidade, uma diferena, ele interioriza uma
dissimilitude (id., ibid., 1974, p. 263). O risco do milagre era um
simulacro sim. Mas no o simulacro platnico, relegado a um posto
inferior, em eterno dbito com a essncia. Ao invs disso, o
risco do milagre, como fora de criao, encerra uma potncia
positiva (id., ibid., 1974, p. 267).
Pelo menos das duas sries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como original, nenhuma como cpia. No basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste vertigem do simulacro. No h mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. No h mais hierarquia possvel: nem segundo, nem terceiro [...] (DELEUZE, 1974, p. 267).
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
44
Ldio no negava o acontecimento, mas subvertia o status quo
que submete o artista mera reproduo, reconstruindo o milagre
conforme o sentia e o interpretava.
No se pode dizer que a subverso do platonismo consista apenas em virar a pretenso do pretendente contra a fonte da pretenso, o simulacro contra o modelo; o fundamental de sua estratgia antiplatnica de glorificao dos simulacros abolir as noes de original e derivado (MACHADO, 2009, p. 48).
Grande parte dos riscadores de milagres tinha a
preocupao de retratar o milagre seguindo risca as palavras do
narrador, procurando incluir, no pequeno espao do quadro, os
pormenores da obra divina, sem deixar de dar um lugar de destaque
divindade que havia concedido a graa ao devoto, conforme
preconizava a cartilha do seu ofcio. A razo de ser do risco no
era exaltar o perigo experimentado pelo fiel, nem sua recuperao
ou sua sobrevivncia. O risco do milagre existia em funo do
santo e de sua glria, assim, a representao pictrica da faanha s
deveria concorrer para a exaltao da divindade. Pode-se imaginar
que no restava margem a desvios ou interpretaes que
parecessem muito particulares, pois os riscadores estavam no
apenas comprometidos com os fiis que lhe encomendavam a obra,
mas tambm presos por um lao de reverncia que os atava ao santo.
No entanto, Ldio Corr no se prendia a essas convenes. Para
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
45
ele, sua arte no tinha apenas valor de culto. Era a expresso da sua
alma qual mantinha uma relao de intimidade, era a sua obra, na
meia-luz do fim da tarde, ao roxo claro crepuscular, mestre Corr,
sincero e comovido, admira o trabalho terminado: uma beleza
(AMADO, 1969, p. 104). Seu encantamento pelo prprio trabalho
chegava ao desejo de mant-lo na Tenda dos Milagres, tal o
embevecimento provocado pelo quadro.
Por vezes, ao trmino de um milagre riscado na arte e no capricho, mestre Ldio Corr experimenta o desejo de desistir da remunerao, de reter o quadro, de no entreg-lo, deixando-o na parede da oficina. Os mais bonitos, pelo menos (AMADO, 1969, p. 107).
Ldio Corr tinha reverncia pelos santos, conforme
atestado em sua pintura e nas legendas que compunham o quadro.
Entretanto, no condicionava seu trabalho grandeza do santo. Seu
esmero em destacar a figura da divindade no quadro poderia
depender de quo tocante ou dramtica julgasse ter sido a proeza:
Vou caprichar no santo, ele fez por merecer (id., ibid., 1969, p.
103). Para Ldio, por vezes, aquilo que o encantava no relato do
milagre no era a tenso ou o perigo de morte que rondava a cena.
Tampouco era o clamor do devoto ou a importncia do santo. Ldio
se desviava de uma ordem estabelecida ao dar maior proeminncia
a elementos que normalmente estariam em segundo plano em
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
46
relao ao santo, demonstrado quando da confeco da tela que
trata do Senhor do Bonfim afugentando a ona:
Volta Ldio Corr, porm, sua figura predileta e insubmissa: a ona rajada, inclemente, gigantesca, os olhos fuzilantes, e a boca, ai a boca a sorrir para o menino. O artista j fez tudo para apagar esse sorriso, essa ternura; deu ona sertaneja porte de tigre e ares de drago. superior s suas foras, por mais feroz a pinte, ela sorri; existe entre a fera e a criana um pacto secreto, antigo conhecimento, imemorivel amizade (AMADO, 1969, p. 104).
Na tela de Corr, a ona cresce, fulgura mais que o
resplendor do santo, torna-se a figura central do quadro,
diferentemente do relato. Ao invs de ameaar o menino, constri
uma cumplicidade entre os dois cujo pacto denunciado pelo
sorriso da ona. O felino, que antes simbolizava o mal, agora, na
tela do riscador, faz resplandecer uma luz que prpria do bem,
sorri, terno, revelando a Ldio sua imemorivel amizade com a
pureza, personificada pela criana. A tela pintada por Ldio Corr
foge dos padres, subverte a lgica vigente, desestrutura os
fundamentos de uma ordem, assim, essa a fora do simulacro.
Reconhece o santo, mas louva o animal, trazendo das profundezas
um antigo conhecimento, o milagre do pacto entre a criana e a
ona. o simulacro que se recusa a ser recalcado, nega o triunfo da
cpia, insiste em emergir e escandalizar, fazer com que o mundo
experimente a descontinuidade.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
47
A arte na tela tem vida prpria e no pe fim ao jogo de
interpretao da narrativa oral. O risco de Ldio uma das muitas
leituras possveis do mesmo milagre. Outros riscadores, que
pintassem a graa alcanada pelo fiel, fariam-no de maneiras
diversas, sendo que nenhum deles faria, necessariamente, melhor ou
pior que o outro. Seriam todos fiis, no ao milagre, mas sua
prpria interpretao do milagre, sua fora criativa. O jogo
interpretativo no cessa, pois os signos se encadeiam em uma rede
inesgotvel, tambm infinita, no porque repousam em uma
semelhana sem limite, mas porque h uma hincia e abertura
irredutveis (FOUCAULT, 2009, p. 45). Tal abertura leva cada
intrprete a pontos cada vez mais distantes de um referencial, que
alguns chamariam de origem ou essncia. O narrador interpreta
o milagre, o riscador interpreta o relato, o contemplador interpreta
o risco do milagre e o descreve a um ouvinte que, por sua vez, ir
interpret-lo sua maneira. Essa cadeia se estende em todas as
direes, ramifica-se, fragmenta-se, refrata-se, seus elos se
tangenciam e se afastam novamente, resultando, nas palavras de
Foucault, no fato de que nada h de absolutamente primeiro a
interpretar, pois no fundo tudo j interpretao; cada signo nele
mesmo no a coisa que se oferece interpretao, mas interpretao
de outros signos (id., ibid., 2009, p. 47). Criam-se, assim, novos
textos e diluem-se as possibilidades de fidelidade essncia, ao
ponto primeiro. Se um mesmo milagre fosse relatado a riscadores
diferentes, cada um dos quadros teria uma nova perspectiva do
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
48
evento e permitiria a adio de um nmero infinito de outras
interpretaes e outras obras de arte. Cada obra seria, ento, um
suplemento, uma parte que se adiciona a um todo para ampli-lo,
um aditamento, um acrscimo. Nesse sentido, algo extra, no
essencial, acrescentando a algo que supostamente est completo
(RODRIGUES, 2000, p. 208).
A arte do riscador se une voz do narrador numa relao de
cumplicidade e troca, sendo que o primeiro fornece a matria prima,
o texto de partida, o acontecimento, enquanto o ltimo propicia sua
perpetuao, a continuidade e o alcance mais amplo. Jacques
Derrida constri a metfora da relao matrimonial: uma traduo
desposa o original quando os dois fragmentos unidos, to diferentes
quanto possvel, completam-se para formar uma lngua maior que
muda todos os dois (DERRIDA apud RODRIGUES 2000, p.
208). O milagre se transforma, ganha cores, ares e texturas que s a
arte lhe pode dar. A tela, por sua vez, no s um receptculo de
tinta e traos, a materialidade da graa, a manifestao da crena
de um povo, credo que os ajuda a persistir na rdua tarefa de
sobreviver. D-se, assim, a aliana entre o relato do milagre e a obra
de arte, em uma transformao mtua.
A maioria das telas de milagres no possua a identificao
do autor, possivelmente em sinal de reverncia divindade, que,
para a comunidade, era o autor do milagre. O milagreiro no tem
a preocupao de assin-los ou colocar qualquer sinal que os
identifique, razo pela qual o fazedor de ex-votos dificilmente
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
49
reconhecido por meio do seu trabalho (CASTRO apud
OLIVEIRA, 2008, p. 54). Ldio Corr, no entanto, fazia questo de
assinar os quadros, marcando, assim, seu lugar de autor da obra de
arte. Ora, se o risco do milagre, mesmo sendo uma traduo, um
novo texto, diferente da narrativa oral, realizado por outro
indivduo, perfeitamente coerente que se faa assinalar o lugar do
autor dessa nova obra. Sob o ponto de vista da tradio, o tradutor
responsvel por transportar uma carga de significados, fazendo
com que ela chegue intacta ao seu destino [...] mas no deve
interferir nela, no deve interpret-la (ARROJO, 1986, p. 12).
Entretanto, no h carga que chegue intacta, as intenes do
autor do texto de partida no podem ser captadas, pois tudo o que
afirmamos ser a inteno do autor, nada mais do que aquilo que
supomos ser sua inteno. O que cabe, ento, ao tradutor, a
interpretao do texto que lhe foi posto nas mos, interpretao essa
que, como vimos anteriormente, est permeada de toda sorte de
elementos, que compem o indivduo/intrprete. De posse dessa
interpretao, o intrprete/tradutor constri seu prprio texto, uma
atividade que envolve escolhas, posicionamentos, autonomia,
opinio, tornando-se, a partir da, o autor de uma nova obra. Ldio
Corr, talvez diferentemente de outros riscadores de milagres (os
mais tradicionalistas, talvez) assume de bom grado sua condio de
autor (mesmo o sendo de maneira multifacetada e refratada) e se
utiliza dela para liberar sua expressividade e fora criativa, rejeita a
funo de mero transportador de uma essncia semntica, talvez
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
50
por saber ou intuir que no h uma essncia a ser captada e
transposta. De fato, o que h so transformaes operadas
principalmente pelo artista, na condio de autor, e nas relaes com
o mundo que o cerca.
luz dos Estudos Contemporneos de Traduo, o ofcio
do riscador de milagres, de Ldio Corr, configura a traduo de
relatos de feitos de milagres para a pintura, que, em circunstncia
alguma, coloca-se em dbito com a narrativa oral tomada como
texto de partida. O risco do milagre um texto novo, construdo
nas limitaes que sua natureza pictrica lhe impe, pois a oralidade
dispe de recursos dos quais a pintura no dispe o que evidente,
tratando-se de diferentes linguagens, duas formas de expresso, sob
determinado ponto de vista, antagnicas. Por outro lado, a pintura
consegue atingir o contemplador de uma forma singular,
despertando sensaes que apenas essa forma de arte capaz, e, no
caso do risco do milagre, dando prtica votiva uma dimenso
particular e uma forma de apreciao que vai alm do universo
religioso. Desconstri-se, por essa razo, qualquer iluso de
fidelidade ao original, ou seja, ao relato oral. Porm h, ainda,
outros motivos pelos quais a expectativa de fidelidade cai por terra:
a fidelidade implica pureza, mas o texto de partida j se mostra
impuro, construdo a partir de rastros de outros textos, de saberes
diversos, de um contexto histrico-cultural especfico. Portanto sua
originalidade, assim como toda aura e carga valorativa, que esse
termo possa trazer, so questionveis. Ademais, mesmo que o artista
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
51
esteja, a priori, a servio da religio, nem sempre assume o
sentimento de dbito que o fiel tem para com a divindade. A
traduo uma obra nova, nica, apesar de tambm ser
construda sobre rastros de outros textos inclusive e obviamente
do texto de partida. Finalmente, no h no texto de partida, um
significado absoluto que possa ser depreendido, decodificado e
transposto para outra linguagem. A construo desse novo texto, a
traduo para outra linguagem de signos, depende de um exerccio
interpretativo, contnuo e mutvel. Essa perpetuidade interpretativa
mantm o texto de partida no jogo das linguagens e das
interpretaes. O risco na tela de Ldio Corr e de outros
riscadores a sobrevida, a perpetuao, a multiplicao do milagre.
Referncias bibliogrficas AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. Rio de Janeiro: Record, 1969. 338 p. ARROJO, Rosemary. Oficina de traduo: A teoria na prtica. So Paulo: tica, 1986. DELEUZE, Gilles. Plato e o simulacro. In: ___. A lgica do sentido. Traduo de Luiz Roberto Salinas. So Paulo: Perspectiva; EDUSP, 1974. p. 259-271. (Estudos) FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Traduo de Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
53
A TRADUO POLTICA DE LANGSTON HUGHES
Paula CAMPOS
James Mercer Langston Hughes nasceu em 1902 e faleceu
em 1967 e pde testemunhar momentos histricos importantes na
vida social, poltica e cultural dos afrodescendentes nos Estados
Unidos da primeira metade do sculo XX. Como a histria das
sociedades escravocratas nos mostra, mesmo aps a abolio da
escravatura, os africanos que foram escravizados e seus
descendentes no tiveram direito cidadania estadunidense.
nesse contexto histrico que Langston Hughes nasce e, neste
mesmo momento, alguns movimentos na luta pelos direitos civis
surgem.
Em 1910, surge um movimento poltico chamado New
Negro (Novo Negro) que, em sua origem, remetia aos novos
africanos escravizados recm-chegados aos Estados Unidos. No
incio do sculo XX, entretanto, significou uma resistncia potente
contra a opresso, a favor do reconhecimento dos direitos humanos
bsicos aos afrodescendentes.
Outro movimento foi o da Associao Nacional para o
Desenvolvimento dos Afrodescendentes que, em 1917, promoveu
um protesto contra as terrveis condies de vida s quais os negros
UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
54
eram expostos naquele momento. Esse protesto ficou conhecido
como The Silent March (Maro Silencioso)1, que foi uma caminhada a
partir do Harlem para o centro de Manhattan.
Alguns anos depois, nos anos de 1920, surgiu outro
movimento dos afrodescendentes norte-americanos, chamado
Harlem Renaissance, e o seu diferencial em relao aos movimentos
polticos anteriores, foi ter sido um movimento de carter artstico-
intelectual do Novo Negro. Envolto nessa atmosfera scio-
histrica, Hughes surge como escritor promissor, mas j mostrando
indcios de uma performance poltica aguada.
Ainda muito jovem, aos 17 anos, junto a outros escritores
da poca, idealizara este movimento poltico e cultural o Harlem
Renaissance que durou de 1919 at 1935. De acordo com David
Lewis, podemos marcar o incio do movimento em 1919 com a
publicao de If we must die, poema de Claude McKay, e podemos
marcar seu final em 1935, quando houve o The Harlem Riot (O motim
do Harlem)2, em 19 de maro.
Langston Hughes tambm foi tradutor e utilizava-se dessa
funo de forma endereada, de forma poltica. Ele via a traduo
como um meio de espraiar seus textos literrios e de outros
escritores, como forma de compartilhar as experincias da dispora
negra nos Estados Unidos, como tambm compartilhar as polticas
efetuadas na luta pela igualdade de direitos.
1 Traduo minha. 2 Traduo minha.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
55
Diversos pensadores e filsofos renomados na nossa
sociedade ocidental teorizaram sobre a traduo. A grande maioria
viu a traduo como uma funo menor, como uma profisso no
grata, pois, no pensamento conservador, a traduo traa o
original e este perdia seu valor, j que haveria mais perdas do que
ganhos.
Um grande pensador do sculo passado, Walter Benjamin,
escreveu, em 1923, um ensaio que se tornou um marco dentro da
teoria literria e da teoria da traduo, pois, mesmo timidamente,
reivindicava o valor da traduo como a grande responsvel pela
sobrevivncia da obra traduzida, ou seja, de corruptora da obra
literria, ela se torna a salvadora, j que por causa da traduo
que o texto vive mais e em outras culturas.
Muitos vieram depois, tanto para corroborar e suplementar
essa ideia, quanto para colocar-se contra. Mas a ideia que trago
comigo, de linha benjaminiana, da traduo como a responsvel
pela sobrevivncia da obra e da nova vida que ela ganha na nova
cultura de que passa a fazer parte.
Digo isso tambm, pois tendo ou no contato com esses
textos, Hughes agiu pensando a traduo como responsvel pela
vida e pela sobrevida da obra literria em outras culturas. No por
acaso que traduziu seus textos e de outros colegas afro-norte-
americanos para outras lnguas, como traduziu obras literrias de
autores afrodescendentes de diversas nacionalidades para a lngua
Inglesa.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
56
Alm da sobrevivncia da obra por mais tempo do que
talvez vivesse se tivesse ficado em sua cultura de partida, o poder
que a traduo de determinados textos possui dentro de uma
sociedade imenso, inclusive, esse poder foi utilizado durante
sculos para criar esteretipos e perpetuar preconceitos. Uma vez
que pensamos que a traduo direcionada para um determinado
pblico leitor, percebemos mais claramente as relaes de poder
que perpassam a traduo. Ela pode formar identidades culturais,
criar determinadas representaes de povos e culturas, alm de
ajudar a construir a subjetividade desses leitores.
Venuti (2002, p. 299) discute que, nos pases hegemnicos,
a traduo modela imagens de seus Outros subordinados, que
podem variar entre os polos do narcisismo e da autocrtica,
confirmando ou interrogando os valores domsticos dominantes,
reforando ou revendo os esteretipos tnicos, os cnones
literrios, os padres de mercado e as polticas estrangeiras s quais
outra cultura possa estar sujeita. Nos pases em desenvolvimento a
traduo modela imagens de seus Outros hegemnicos e deles
prprios que podem tanto clamar por submisso, colaborao, ou
resistncia, que podem assimilar os valores estrangeiros dominantes
com a aprovao ou aquiescncia, ou rev-los criticamente para
criar autoimagens domsticas mais oposicionistas (nacionalismos,
fundamentalismos).
Langston Hughes v a traduo como potncia de
resistncia, como mais uma forma de resistir ao esmagamento
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
57
geopoltico social. A traduo como um gesto poltico, que podia
(pode) remarcar os territrios, apagar e escrever por cima uma nova
imagem. um poder simblico, que muitos pases hegemnicos
utilizaram durante sculos para fins diversos, mas, em seu maior
propsito, subalternizar a cultura do Outro.
Esse poder simblico foi utilizado pelas empresas coloniais
com o objetivo de recalcar at o quase apagamento das culturas e
das lnguas locais a fim de destruir subjetivamente aqueles sujeitos
que foram colonizados. Um dos grandes pensadores da diferena
Homi Bhabha, que traz questes interessantes sobre traduo
cultural e o papel potente que figuras com identidade hbrida tm
dentro de sociedades sob o julgo de uma hegemonia branca.
Seus pensamentos se coadunam com a prpria figura de
Langston Hughes e seus escritos, pois ele trabalha com a ideia da
potncia dos sujeitos que ocupam a posio de entre-lugar.
Hughes esse sujeito hbrido, do entre-lugar, pois mesmo sendo
americano nascido nesse espao geogrfico, no tinha direitos
iguais aos outros americanos brancos e da vem sua potncia.
Ele potente, pois se constri em meio a duas vivncias, e
passa a agir nas fronteiras, friccionando as relaes de poder,
rasurando os espaos que antes eram naturalmente ocupados pela
ideia hierarquizante de matriz europeia. Podemos inclusive
perceber essas questes claramente no poema abaixo, escrito por
Langston Hughes.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
58
Eu, tambm, canto a Amrica Eu, tambm, canto a Amrica Eu sou o irmo mais escuro. Eles me mandam comer na cozinha Quando a visita chega, Mas eu gargalho, E como bem, E creso forte Amanh, Eu comerei mesa Quando as visitas vierem. Ningum ousar Dizer para mim, Coma na cozinha, Ento. Alm disso, Eles vero o quo lindo eu sou E se envergonharo- Eu, tambm, canto a Amrica.3
A ateno de Bhaba se dirige justamente a esses sujeitos e
s formas como eles se construram e se empoderaram. O terico
tambm busca verificar quais as estratgias de representaes que
utilizaram para se inserirem nessa comunidade como sujeitos e
como produtores artsticos e culturais. Alm dos meios que
desenvolveram para se infiltrarem e rasuraram as redes
hegemnicas de representaes.
Neste poema, podemos perceber estratgias como a
reverso de certos valores: o primeiro a ideia de cidadania que era
3 Traduo minha.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
59
negada aos descendentes dos africanos (fato que perdurou at 1968,
quando da ecloso dos Movimentos de Direitos Civis, nos Estados
Unidos). O poeta reivindica o direito de sujeito nascido naquele
local geogrfico de participar de sua poltica e de ter direitos que a
cidadania oferecia. Reivindica o direito de cantar, de louvar a
Amrica, pois, mesmo sua manifestao cultural no sendo a
central (a instituda), como nascido naquele territrio, ele tinha o
direito de pertencer, de ser considerado irmo pelos cidados
brancos.
Tambm, reivindicava que suas formas culturais e
representativas deixassem de ser marginalizadas a fim de
participarem do jogo com o centro. Isso fica claro quando,
metaforicamente, demonstra que suas manifestaes, sejam quais
fossem, deviam ceder lugar para aqueles que j estavam
originalmente, anteriormente e naturalmente ocupando um
determinado lugar; pois quando as visitas chegavam, ele deveria se
esconder e comer na cozinha. Porm, quando ele ri, quando
gargalha a respeito dessa situao, ele descobre um meio ou uma
forma de burlar aquela configurao, aquelas representaes.
Ele diz que se fortalece e que, um dia, todo aquele arranjo
sociorracial e os esteretipos em torno daqueles sujeitos iriam se
transformar e, por isso, diz que, em breve, ele comer mesa, ou
seja, far parte de uma configurao poltica, social e artstica a que
anteriormente no pertencia, e ningum ousar dizer que no
poder ocupar aquele espao.
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
60
Alm da vergonha pelas atrocidades cometidas contra os
afrodescendentes, eles descobririam sua beleza, a beleza do Outro, a
beleza que era foradamente recalcada naquela sociedade. Alm
dessa resposta a esse arranjo sociorracial ao qual ele estava inserido
nos EUA, Hughes d uma resposta direta a um dos grandes poetas
norte-americanos: Walt Whitiman, que considerado uma das
grandes vozes nacionais.
O poema I Hear America Singing4, de Whitiman, trata de uma
ideia de Amrica, de nacionalismo, da qual os negros no faziam
parte. Apesar de ser sabido que Whitman foi um defensor da
abolio da escravatura e de colocar em seus poemas sujeitos que
antes no eram citados, como pobres, pessoas do campo e mesmo
os afrodescendentes, essa Amrica que cantava essa voz em busca
de sua nacionalidade, por uma voz independente das vozes
europeias, no incluam os descendentes dos africanos.
Por isso, Hughes d uma resposta bastante direta,
reivindicando seu direito de cantar a Amrica, de fazer parte da
Amrica, visto que ele havia nascido nesse territrio. Contudo,
mesmo sendo um cidado estadunidense, no possua direitos civis,
como os outros. Destarte, reclama o seu direito de ser irmo, e
ser o irmo mais escuro, como diz no poema.
Ele cria estratgias para reconfigurar aquelas representaes
a que estavam submetidos, por meio de sua agncia cultural,
introduz o novo no mundo. Utilizo, como expresso, o ttulo de
4 Eu escuto o canto da Amrica (Traduo minha).
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
61
um dos captulos do livro O local da cultura, de Bhabha, Como o
novo entra no mundo. O intuito de Hughes era que esses escritos
de autores afrodescendentes pudessem alcanar o maior nmero de
leitores possvel e, assim, as ideias que circulavam naquele momento
histrico pudessem ser compartilhadas com outras naes que
tambm participaram da dispora africana.
O meu maior desafio no processo de traduo dos poemas
de Langston Hughes a possibilidade de perder sua fora poltica
ou que essa voz potente fique sufocada pela minha voz. Contudo,
a minha maior aliada a possibilidade, ou as possibilidades, que a
traduo cultural me oferece no momento em que possibilita a
redemarcao de posies, o movimento dos signos centrais,
propiciando novas significaes e ampliando as possibilidades de
representaes e de discursos.
Esse contradiscurso da traduo cultural junto ao prprio
posicionamento no cannico (cannico como sinnimo de forma,
molde europeu) de Hughes, possibilita a ideia de que as diferenas
de gnero, etnia, histria e geografia no sejam impedimento para
que essa tentativa de sobrevivncia e vivncia textual seja feita. A
traduo cultural tira da redoma os ideais de supremacia cultural, de
raa, gnero e etnia, permitindo um fluxo contnuo de
transformaes. Ela reescreve a prpria histria da histria da
traduo.
Escolho a mesma ferramenta (a traduo) que outrora havia
sido utilizada para reforar esteretipos negativos sob determinados
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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povos e que espalhara discursos ideolgicos de excluso, mas que
agora utilizo para espalhar contradiscursos como os de Langston
Hughes. O autor/tradutor/intelectual lutou contra esteretipos
negativos em relao aos povos da dispora africana e contra a
violncia com que esses povos foram excludos de qualquer forma
de existir, seja poltica, social ou culturalmente.
E inspirada por Hughes, que enxergava a traduo como
uma forma de sobrevivncia de seus textos e como uma ao
poltica, que sigo no propsito de continuar um trabalho feito por
ele durante anos e que teve tanta reverberao ao ponto de encantar
de forma avassaladora, uma jovem latino-americana, nos anos 2000,
fenotipicamente branca e que supostamente no seria afetada pelos
seus escritos.
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TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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LITERATURAS NO CANNICAS E A TRADUO DE ANTOLOGIAS DE CONTOS BRASILEIROS
Janana Arajo COUTINHO
1. Introduo
O presente artigo intenciona discutir algumas relaes entre
a literatura no cannica brasileira traduzida para a lngua francesa,
tendo como corpus a obra Je suis favela (2011), buscando compreender
a relevncia desse processo para as trocas culturais entre os pases
envolvidos. Assim sendo, discutiremos os efeitos da traduo de
antologias de autores alocados fora do eixo sacralizado e suas
implicaes para a formao da identidade da literatura brasileira
contempornea por meio do gnero conto.
Desde cedo, a literatura se apresentou como veculo capaz
de transpor as barreiras histricas e geogrficas, fazendo com que
as especificidades culturais dos povos pudessem interagir entre si.
Criada para ser a concretizao da oralidade, a mesma foi utilizada
de acordo com as necessidades de cada poca e, dessa forma,
perpassou os campos da moralidade (literatura pedagogizante de
Charles Perrault), do registro documental histrico, como tambm
serviu de apoio para o ensino de lnguas. Por vezes, era concebida
como leitura despretensiosa, isto , aquela em que se busca o prazer
UFPB, Programa de Ps-Graduao em Letras e Artes, Brasil. [email protected]
TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]
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to somente pelo ato de ler.
Para que fosse possvel ultrapassar barreiras lingusticas, foi
necessrio utilizar o ato de traduzir que, como a prpria literatura,
tambm tem sua gnese situada em tempos passados. De incio,
tradutores experientes se dedicavam traduo literal, privilegiando-
se o texto puro, ou seja, o conjunto de palavras e suas relaes.
Porm, viu-se que tal escolha se punha insuficiente, uma vez que era
necessrio levar em considerao o que vinha atrelado ao texto