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Angélica Karim Garcia Simão - ibilce.unesp.br · O texto de Campos propõe-se a, a partir da tradução que faz de poemas do estadunidense Langston Hughes, discutir a tradução

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  • Anglica Karim Garcia Simo

    Maria Anglica Dengeli

    (Organizao)

    Tendncias Contemporneas dos Estudos da Traduo

    Volume 1

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas

    Cmpus de So Jos do Rio Preto

  • 2015 - Tendncias Contemporneas dos Estudos da Traduo volume 1 Todos os direitos reservados para esta edio.

    Organizao: Anglica Karim Garcia Simo e Maria Anglica Dengeli

    Projeto grfico e diagramao: Luma Almeida Seleghim

    Preparao e Reviso: Fbio Henrique de Carvalho Bertonha

    Foto da capa: Pedras de Sete Piles (Cristina Carneiro Rodrigues)

    Conselho Consultivo

    Adriana Zavaglia Universidade de So Paulo (USP)

    lvaro Luiz Hattnher

    Universidade Estadual Paulista (Unesp)

    Enilde Leite de Jesus Faulstich Universidade de Braslia (UnB)

    Lauro Maia Amorim

    Universidade Estadual Paulista (Unesp)

    Leila C. Melo Darin Pontifcia Universidade Catlica (PUC - SP)

    Mrcia do Amaral Peixoto Martins

    Pontifcia Universidade Catlica (PUC - RJ)

    Maria Viviane do Amaral Veras Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

    Marize Mattos DallAglio Hattnher Universidade Estadual Paulista (Unesp)

    Mauricio Mendona Cardozo

    Universidade Federal do Paran (UFPR)

    Paula Godoi Arbex Universidade Federal de Uberlndia (UFU)

  • Tendncias contemporneas dos Estudos da Traduo [recurso eletrnico]

    / organizado por Anglica Karim Garcia Simo, Maria Anglica Dengeli.

    - So Jos do Rio Preto:

    UNESP Cmpus de So Jos do Rio Preto, 2015.

    2 v.

    ISBN 978-85-8224-109-7 Tipo de arquivo: Texto Requisito do sistema: Software leitor de pdf

    1. Lingustica. 2. Traduo e interpretao Estudo e ensino. 3. Tradues. I. Simo, Anglica Karim Garcia. II. Dengeli, Maria

    Anglica. III. Ttulo.

    CDU 8.035

    Nesta obra respeitou-se o Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE

    UNESP - Cmpus de So Jos do Rio Preto

  • 7

    SUMRIO

    9 Apresentao Cristina Carneiro Rodrigues

    15 Uma anlise paratextual das tradues francesas de Menino de Engenho Flora Marina Figueiredo Ajala e Marta Pragana Dantas

    34 Riscando milagres: Ldio Corr e a traduo intersemitica em Tenda dos Milagres Andr Batista

    53 A traduo poltica de Langston Hughes Paula Campos

    64 Literaturas no cannicas e a traduo de antologias de contos brasileiros Janana Arajo Coutinho

    84 Traduzir La Disparition de Georges Perec para o portugus: entretraduzir: entredizer o e interditado em O Sumio Jos Roberto Andrade Fres

    99 Apreendendo a ler a traduo: consideraes acerca do projeto de traduo O Centauro Bronco, de Mauricio Mendona Cardozo Ren Wellington Pereira Fernandes

  • 8

    124

    A traduo da literatura infantil: uma anlise lingustica no par ingls/portugus brasileiro Kcila Ferreguetti e Flvia Ferreira de Paula

    155 Procedimentos tradutrios e teoria literria nas tradues de Geir Campos de Folhas de Relva, de Walt Whitman Bruno Gambarotto

    175 O bilinguismo literrio de Nancy Huston: escrita traduzida entre lnguas Gabriela Oliveira e Maria Anglica Dengeli

    191 Traite petit de titrologie : regard critique sur la traduction de titres Slav Petkov

  • 9

    Apresentao

    O Bacharelado em Letras com habilitao de Tradutor do

    Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas da Unesp, cmpus

    de So Jos do Rio Preto, foi criado em 1978 e, na poca, era o nico

    em uma instituio pblica no Brasil. Os Estudos da Traduo eram,

    ainda incipientes, por isso docentes e discentes do curso pensaram

    em abrir um espao para discutir questes tericas e prticas acerca

    da traduo. Com essa finalidade, programaram, em 1981, um

    evento que pudesse preencher essa funo, a Semana do Tradutor.

    Suas primeiras edies foram modestas em termos

    oramentrios e contaram com a participao de palestrantes e

    conferencistas da regio, principalmente da prpria Unesp.

    Inicialmente organizada quase exclusivamente pelo corpo discente,

    aos poucos, com o apoio dos docentes do curso, a Semana passou

    a contar com o auxlio de rgos de fomento e passou a receber

    grandes nomes dos Estudos da Traduo, tanto da vertente terica

    quanto da prtica.

    A partir do momento em que sua programao, mais ampla

    e diversificada do que inicialmente, comeou a ser mais divulgada,

    muitos alunos e docentes de outras instituies passaram a

    participar da Semana do Tradutor, vindos de diversas regies do

    Brasil.

    Em 2014, houve uma inovao. Em sua 34. edio, a

    Semana do Tradutor foi realizada junto com o I Simpsio

    Internacional de Traduo (SIT). discusso mais voltada para

    alunos de graduao, incorporou-se a troca de experincias entre

    pesquisadores do Brasil e do exterior.

    Nesse ano, o evento contou com mais de trezentos

    participantes inscritos, e mais de duzentos apresentaram trabalhos

  • 10

    em forma de comunicao oral. Convidados e participantes dos dois

    eventos vindos de quatorze Estados do Brasil e de dez outros pases

    (ustria, Canad, China, Colmbia, Espanha, Estados Unidos,

    Frana, Inglaterra, Itlia e Peru), apresentaram conferncias,

    workshops e comunicaes orais que envolveram diferentes

    aspectos dos Estudos da Traduo.

    A diversidade da produo dos participantes, assim como

    sua qualidade, fez nascer a ideia de publicao dos trabalhos

    apresentados. Formou-se um Conselho Consultivo que cuidou da

    seleo dos textos e as organizadoras agruparam-nos em dois eixos

    temticos.

    Neste volume incluem-se artigos que abordam crtica de

    traduo, traduo literria, assim como questes identitrias. A

    disposio dos textos, que apresento a seguir, no temtica, segue

    ordem alfabtica pelo sobrenome dos autores.

    Ajala e Dantas examinam alguns elementos paratextuais de

    duas tradues francesas de Menino de engenho (1932), de Jos Lins do

    Rego, uma publicada em 1953, outra em 2013. Concluem que a obra

    mais recente tende a evidenciar a provenincia estrangeira do texto,

    alm de ser mais informativa que a anterior.

    Tomando como base os Estudos da Traduo na ps-

    modernidade, Batista questiona as concepes tradicionais de

    originalidade, fidelidade e essncia semntica. Para faz-lo, examina

    a prtica, apresentada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, de

    encomendar a artistas populares a pintura de milagres supostamente

    realizados por santos. Como se trata de um processo que envolve a

    transformao da narrativa oral do milagre em uma imagem, ou seja,

    uma traduo intersemitica, o autor argumenta que ambas as

    atividades envolvem leitura e interpretao e o resultado um novo

    objeto, que suplementa e revitaliza o texto de partida.

  • 11

    O texto de Campos prope-se a, a partir da traduo que faz

    de poemas do estadunidense Langston Hughes, discutir a traduo

    de literatura de escritores afrodescendentes no Brasil, buscando dar

    visibilidade s semelhanas e diferenas entre o contexto do Brasil e

    o dos Estados Unidos. Suas tradues levam em considerao a

    esttica literria no cannica do autor e sua fora como ativista

    poltico e intelectual engajado.

    Considerando a traduo literria no plano da mediao nas

    trocas entre lnguas diferentes, Coutinho concebe uma obra

    traduzida como um novo produto, que passou por processos de

    adaptao no novo contexto de recepo. desse prisma que

    analisa a obra traduzida Je suis favela (2011), uma coletnea de 22

    contos brasileiros escritos por autores no cannicos, que tem como

    objeto a favela brasileira na contemporaneidade e publicada pela

    editora francesa independente Anacaona, pertencente a Paula

    Anacaona, que se encarregou da traduo. Enfoca especialmente a

    representao que se molda do Brasil e a imagem que se forma da

    literatura brasileira contempornea traduzida ao se levar aos pases

    de lngua francesa uma literatura que retrata as periferias brasileiras.

    Fres expe como entretraduz La Disparition, de Georges

    Perec, romance lipogramtico sem uma vogal e, que narra o

    desaparecimento dessa letra. Seu texto intitula-se, em portugus, O

    Sumio e nele o autor busca traduzir entre livros, religando os mais

    variados intertextos entrelaados, buscando, na maior parte das

    vezes, no traduzir as palavras em si, mas traduzir entre elas, traduzir

    o que l nas entrelinhas, a metatextualidade que as une entre si e lhes

    d razo de ser e dizer tudo tambm sem e.

    Baseado especialmente em Zilly, Arrojo, Berman e Moraes,

    Fernandes explora o projeto tradutrio de Cardozo de dupla

    traduo da novela Der Schimelreiter, do escritor alemo Theodor

    Storm. O primeiro trabalho intitula-se A assombrosa Histria do

  • 12

    Homem do Cavalo Branco, e apresenta-se com os contornos do

    estrangeiro. O segundo, sobre o qual Fernandes se debrua

    detidamente, denominado O Centauro Bronco, transformado na luta

    de um homem do serto brasileiro contra a aridez do clima

    nordestino.

    Partindo do pressuposto de que traduzir recontar e

    reescrever, Ferreguetti e Paula examinam a traduo de literatura

    infantil. As autoras analisam quatro obras com o uso de ferramentas

    da Lingustica de Corpus e com o aporte terico da Lingustica

    Sistmico-Funcional. Nas obras analisadas detectam a tendncia a

    mudanas na organizao temtica, na pontuao, no nome de

    personagens, explicitao de imagens, assim como uso de itlicos e

    caixa alta para nfase.

    Gambarotto parte da convergncia entre estratgias e

    procedimentos tradutrios e uma visada do objeto literrio

    orientada pela histria e a teoria literrias para analisar duas

    diferentes verses dos poemas de Folhas de relva, de Walt Whitman,

    publicadas pelo tradutor e poeta brasileiro Geir Campos, uma em

    1964, outra em 1983. Como seu interesse investigar as

    possibilidades de incorporao da teoria literria e da histria crtica

    prtica tradutria, discorre sobre a recepo de Whitman no Brasil

    para, ento, examinar as duas tradues de Campos. Em sua

    avaliao, as diferenas que se apresentam so menos fruto de

    posturas tradutrias que da cultura e produo literria que as

    informa. Ao evidenciar um tradutor preso a seu(s) tempo(s), conclui

    que o trabalho de traduo no se dissocia de uma recepo

    assujeitada a determinaes histrico-sociais.

    Fundamentadas na concepo de que bilinguismo um

    acontecimento que atravessa a subjetividade dos que, por diversas

    razes, partilham a experincia de viver entre lnguas e culturas,

    Oliveira e Dengeli examinam a questo da autotraduo, ou

  • 13

    reescritura, realizada pela autora canadense Nancy Huston.

    Evidenciam que a tarefa evoca o entre-lnguas e a alteridade, que a

    escritora est na posio de sujeito entrelnguas, transpassada pelas

    lnguas que a constituem.

    Petkov trata de ttulos, das diferentes maneiras de nomear

    textos, filmes, sries televisivas, estudo que Hoek e Genette

    denominaram titulologia.1 Considera que a teoria da traduo

    deveria incorporar o estudo dos ttulos, exemplificando com uma

    breve anlise de alguns ttulos em francs, ingls e blgaro.

    Temos, assim, representadas neste volume algumas das

    principais tendncias dos Estudos da Traduo contemporneos,

    tanto em termos de fundamentao terica quanto de objetos

    examinados.

    Cristina Carneiro Rodrigues

    Referncia bibliogrfica GENETTE, Grard. Paratextos editoriais. Traduo de lvaro Faleiros. Cotia: Ateli Editorial, 2009.

    1 Adoto aqui a traduo de lvaro Faleiros para titrologie (Genette, 2009, p. 55).

  • 14

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    15

    UMA ANLISE PARATEXTUAL DAS TRADUES

    FRANCESAS DE MENINO DE ENGENHO

    Flora Marina Figueiredo AJALA

    Marta Pragana DANTAS

    1. Introduo

    O presente artigo consiste em uma anlise paratextual de

    duas tradues da obra Menino de engenho (1932), de Jos Lins do

    Rego, para o francs. Tem por objetivo comparar as escolhas

    tradutrias e verificar o avano nos Estudos da Traduo a partir

    dos paratextos presentes em LEnfant de la plantation (1953 e 2013).

    A anlise se baseia no modelo descritivo de traduo literria

    desenvolvido por Jos Lambert e Hendrik Van Gorp (2011),

    permitindo descrever as tradues e examinar as estratgias em

    diferentes aspectos, bem como nas reflexes de Genette (2009)

    sobre os paratextos editoriais elementos que contribuem para a

    produo de sentido e orientam a recepo de uma obra. A partir

    do modelo proposto por Lambert e Van Gorp, a presente anlise

    das tradues francesas se detm nas seguintes questes

    preliminares propostas pelos autores: os elementos que compem

    capa, coleo, pgina de rosto e quarta capa.

    UFPB, Programa de Ps-Graduao em Letras, Brasil, [email protected] UFPB, Universidade Federal da Paraba, Brasil, [email protected]

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    16

    A anlise tem por finalidade verificar as implicaes das

    escolhas tradutrias em LEnfant de la plantation. Busca-se, dessa

    forma, contribuir para a reflexo sobre a produo de tradues de

    obras literrias, mostrando a importncia dos paratextos para a

    contextualizao de uma obra estrangeira.

    2. Modelo descritivo de traduo literria

    Para a realizao da anlise proposta, adotou-se o modelo de

    descrio de traduo desenvolvido por Jos Lambert e Hendrik

    Van Gorp, em 1985. O modelo prtico elaborado pelos autores

    objetiva uma anlise textual que descreva e examine as estratgias

    tradutrias. Segundo os pesquisadores, seu modelo proposto tem

    como principal vantagem a possibilidade de ignorar as ideias

    tradicionais que se relacionam a fidelidade e qualidade

    tradutria, ideias essas que priorizam o texto-fonte.

    O esquema para a descrio de traduo (Quadro 1)

    apresentado pelos autores se divide em: dados preliminares;

    macronvel; micronvel; e contexto sistmico. Sendo que cada um

    deles subdividido em aspectos mais especficos.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    17

    Quadro 1 Reproduo do esquema sintetizado para a descrio de traduo.

    UM ESQUEMA SINTETIZADO PARA A

    DESCRIO DE TRADUO

    1. Dados preliminares: - Ttulo e pgina-ttulo (por exemplo, presena ou ausncia da indicao de gnero, nome do autor, nome do tradutor); - Metatextos (na pgina-ttulo; no prefcio; nas notas de rodap no texto ou separado); - Estratgia geral (traduo parcial ou completa). Esses dados preliminares deveriam levar a hipteses para anlise posterior tanto no nvel macroestrutural como no nvel microestrutural.

    2. Macronvel: - Diviso do texto (em captulos, atos e cenas, estrofes); - Ttulo dos captulos, apresentao dos atos e cenas; - Relao entre os tipos de narrativa, dilogos, descrio; entre dilogo e monlogo, voz solo e coro; - Estrutura narrativa interna (enredo episdico, final aberto); intriga dramtica (prlogo, exposio, clmax, concluso, eplogo); estrutura potica (por exemplo, contraste entre quartetos e tercetos em um soneto); - Comentrio autoral, instrues de palco. Esses dados macroestruturais devem levar a hipteses sobre as estratgias microestruturais.

    3. Micronvel (isto , mudanas nos nveis fnico, grfico, microssinttico, lxico-semntico, estilstico, elocucionrio e modal): - Seleo de palavras; - Padres gramaticais dominantes e estruturas literrias formais (metro, rima); - Formas de reproduo da fala (direta, indireta, fala indireta livre); - Narrativa, perspectiva e ponto de vista; - Modalidade (passiva ou ativa; expresso de incerteza; ambiguidade); - Nveis de linguagem (socioleto; arcaico/popular/dialeto; jargo). Esses dados sobre estratgias microestruturais deveriam levar a um confronto renovado com as estratgias macroestruturais e, em seguida, a consideraes em termos do contexto sistemtico mais amplo.

    4. Contexto sistmico: - Oposies entre micro e macronveis e entre texto e teoria (normas, modelos); - Relaes intertextuais (outras tradues e obras criativas); - Relaes intersistmicas (por exemplo, estruturas de gnero, cdigos estilsticos).

    Fonte: LAMBERT; VAN GORP, 2011, p. 222-223.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    18

    Pelo fato de o esquema ser abrangente e apresentar vrias

    relaes especficas, Lambert e Van Gorp afirmam que a tarefa do

    estudioso ser estabelecer quais relaes so as mais importantes

    (ibid., p. 211). Dessa forma, entre os dados preliminares, elegemos o

    ttulo e pgina-ttulo como elementos de anlise. O ttulo e a pgina

    ttulo abrangem aspectos como: capa, coleo, pgina de rosto e

    quarta capa.

    2.1 Dados preliminares

    A anlise dos dados preliminares aqui proposta se baseia na

    reflexo de Genette (2009) sobre o paratexto editorial. Inicialmente,

    resume paratexto como aquilo por meio de que um texto se torna

    livro e se prope como tal a seus leitores (Genette, 2009, p. 9),

    afirmando que o texto

    raramente se apresenta em estado nu, sem o esforo e o acompanhamento de certo nmero de produes, verbais ou no, como um nome de autor, um ttulo, um prefcio, ilustraes, que nunca sabemos se devemos ou no considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresent-lo, no sentido habitual do verbo, mas tambm em seu sentido mais forte: para torn-lo presente, para garantir sua presena no mundo, sua recepo e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro (ibid., p. 9, grifos no original).

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    Genette (2009) afirma que o paratexto uma zona

    indecisa entre o interior (o texto) e o exterior (o discurso do mundo

    sobre o texto) e faz referncia a Philippe Lejeune, que nomeia os

    paratextos como franja do texto impresso que, na realidade,

    comanda toda a leitura. Genette conclui,

    [...] com efeito, essa franja, sempre carregando um comentrio autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona no apenas de transio, mas tambm de transao: lugar privilegiado de uma pragmtica e de uma estratgia, de uma ao sobre o pblico, a servio, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados (ibid., p. 10, grifo no original).

    O autor afirma que o paratexto desdobra-se em duas

    modalidades: peritexto e epitexto. O peritexto consiste nos

    elementos paratextuais que se situam em torno do texto, no espao

    do mesmo volume, como o ttulo, o prefcio, as notas de rodap

    etc. J o epitexto concerne aos elementos paratextuais que se

    encontram a certa distncia do texto, que se situam na parte externa

    do livro, um suporte miditico (conversas, entrevistas etc.) ou uma

    comunicao privada (correspondncias, dirios etc.).

    Genette (2009) tambm aborda a questo de uma obra se

    encontrar inserida em uma coleo e comenta que essa insero tem

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    20

    seus objetivos e significados, inclusive a ausncia de coleo,

    segundo o autor, sentida pelo pblico. Segundo o autor,

    [o] selo de coleo, mesmo sob essa forma muda, , pois, uma duplicao do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que gnero de obra tem a sua frente: literatura francesa ou estrangeira, vanguarda ou tradio, fico ou ensaio, histria ou filosofia etc. (ibid., p. 26).

    A capa apresenta algumas informaes que so praticamente

    obrigatrias, como: nome do autor, ttulo da obra e selo do editor.

    Alm dessas informaes, outras podem aparecer, entre elas:

    indicao genrica, nome do tradutor, nome do prefaciador, retrato

    do autor, ilustrao especfica, endereo do editor, preo de venda.

    Na pgina de rosto, encontram-se geralmente ttulo, nome do autor,

    nome do tradutor e da editora, podendo conter indicao genrica,

    epgrafe e dedicatria (GENETTE, 2009).

    A quarta capa um lugar considerado estratgico e seu

    contedo pode variar. Pode apresentar o nome do autor e do ttulo

    da obra novamente, uma nota biogrfica, um release, uma relao de

    obras de uma coleo, citaes da imprensa, comentrios elogiosos,

    preo de venda, entre outros (GENETTE, 2009).

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    21

    3. Anlise dos dados preliminares

    A partir do modelo de descrio de traduo proposto por

    Lambert e Van Gorp (2011), e das reflexes de Genette (2009),

    sero considerados para fins de anlise: a capa, a coleo, a pgina

    de rosto e a quarta capa das duas tradues do romance de Jos Lins

    do Rego.

    3.1 Capa

    A capa da primeira traduo de J. W. Reims (1953)

    considerada clssica, j que contm as informaes que, segundo

    Genette (2009), so praticamente obrigatrias (nome do autor, ttulo

    e editora) e outras informaes que, segundo o autor, podem

    constar na capa. Em destaque, na metade superior da capa, aparece

    o ttulo da obra em uma fonte maior.

    J a capa da segunda traduo (2013), de Paula Anacaona,

    apresenta, alm das informaes consideradas praticamente

    obrigatrias, uma ilustrao que preenche grande parte do espao

    disponvel. A importncia dada ilustrao no perceptvel apenas

    no espao disponibilizado para a mesma, mas tambm na opo

    feita pela xilogravura, arte presente na literatura de cordel2

    2 O Centre de Recherches Latino-Amricaines da Universit de Poitiers, na Frana (http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/), torna conhecida, atravs de colquios e jornadas de estudos internacionais, essa manifestao literria e popular brasileira.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    22

    nordestina e na representao de um ambiente rural, oferecendo

    indcios sobre o enredo da obra.

    Figura 1: Capas de LEnfant de la plantation 1953 e 2013

    As demais informaes presentes na capa das obras se

    apresentam no Quadro 2.

    Quadro 2 Levantamento de informaes presentes nas duas capas

    Informao L'Enfant de la plantation (1953)

    L'Enfant de la plantation (2013)

    Coleo Collection Rive Ouest Collection Terra

    Autor Jos Lins do Rego Jos Lins do Rego

    Ttulo L'Enfant de la plantation L'Enfant de la plantation

    Indicao genrica Roman -

    Prefcio Prsent par Blaise Cendrars -

    Editora Deux Rives Anacaona

    A capa da edio de 1953 no fornece qualquer informao

    sobre a origem estrangeira da obra, nem mesmo indica que se trata

    de uma traduo. A nica informao que d um carter estrangeiro

    obra diz respeito ao nome do autor.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    23

    Como dito anteriormente, a capa da edio de 2013 fornece,

    a partir da ilustrao, um carter estrangeiro obra, precisando

    ainda, para os que conhecem a xilogravura e a literatura de cordel, a

    origem nordestina e rural do romance. Como na primeira edio,

    outra informao presente na capa que d um carter estrangeiro

    obra o nome do autor. Diferentemente da primeira traduo, no

    h indicao sobre a autoria do prefcio na capa, e o mesmo

    assinado pela prpria Paula Anacaona.

    importante salientar que a traduo de 2013 foi publicada

    por uma pequena casa editorial independente e que a tradutora Paula

    Anacaona acumula as funes de editora, tradutora e prefaciadora

    da obra; diferentemente da edio de 1953, com a traduo de J. W.

    Reims e prefcio de Blaise Cendrars3 prefcio que serve como

    indcio de que a Deux Rives era uma editora provavelmente de porte

    maior que a Anacaona.

    3.2 Coleo

    A primeira traduo francesa de Menino de engenho se encontra

    inserida na Collection Rive Ouest. Nas pesquisas feitas para

    contextualizao da editora, no foram encontradas informaes

    sobre o perfil dessa coleo. Porm, na quarta capa encontra-se uma

    lista das obras da mesma coleo, provenientes de outros pases e

    3 Novelista e poeta suo, segundo relata Carelli (1994), possui uma histria particular com o Brasil, pas reconhecido por ele como sua segunda ptria e onde permaneceu durante a dcada de 1920.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    24

    literaturas (Quadro 3).Os ttulos no apresentam ligao especfica

    com o Brasil; apenas sugerem que se trata de uma coleo de obras

    estrangeiras contemporneas. A forma como opera a coleo ao

    introduzir a obra traduzida em um novo contexto, induzindo a sua

    recepo, objeto de anlise de Adriana Pagano (2001) em seu

    estudo exemplar sobre tradues e colees de editoras no contexto

    editorial do Brasil e da Argentina entre 1930 e 1950. Para a autora

    (2001, p. 179-181) as colees organizam a recepo da obra,

    estabelecendo critrios de classificao que expressam a posio

    ideolgica de determinado grupo (os editores) e filtram as escolhas

    feitas em meio a obras da literatura mundial a serem inseridas no

    repertrio nacional. Apoiando-se em Stewart (1993), a pesquisadora

    afirma que a coleo um espao a-histrico que organiza e

    categoriza. A diversidade dos autores que so apresentados em

    conjunto, reunidos em uma mesma categoria, revela esse efeito

    descontextualizante e a-historicizante que supe a constituio das

    colees, como ilustra o caso aqui analisado da Collection Rive Ouest.

    Quadro 3 Levantamento das obras presentes na Collection Rive Ouest Collection Rive Ouest

    Autor Obra Ttulo original Pas de origem

    H.-G. Wells

    Dolors, Roman (1946)

    Le coin du Rve, Un songe (1946)

    Les Enfants dans la Fort, Roman (1947)

    Apropos of Dolores (1938)

    The Happy Turning (1945)

    Babes in the Darkling Wood

    (1940)

    Inglaterra

    Emil Ludwig Quatuor, Roman (1946)

    Quartet (1938) Alemanha

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    25

    Diana Frederics

    Diana, Roman (1946) Diana: A Strange Autobiography

    (1939)

    Estados Unidos da Amrica

    Hart Stilwell Ville frontire, Roman (1947)

    Border City (1945) Estados Unidos da Amrica

    Christina Stead

    Vent damour, Roman (1947)

    For Love Alone (1944)

    Austrlia

    D.-H. Lawrence

    Lady Chatterley, Roman (1947)

    Lady Chatterley's Lover (1928)

    Inglaterra

    Marg. Campbell-

    Barnes

    Anne de Cleves, 4 femme de Henri

    VIII (1947)

    My Lady of Cleves: A Novel of Henry VIII and Anne of

    Cleves (1946)

    Inglaterra

    Harry Reasoner

    Douce Marys, Roman (1950)

    Tell Me About Women (1946)

    Estados Unidos da Amrica

    Gore Vidal Un garon prs de la rivire, Roman (1949)

    The City and the Pillar (1948)

    Estados Unidos da Amrica

    A segunda edio, por sua vez, encontra-se inserida na

    Collection Terra e evidencia o aspecto estrangeiro da coleo ao

    manter o termo Terra em portugus (lngua estrangeira para o

    pblico-alvo da traduo), alm de situar a obra em um contexto

    rural a partir da ilustrao da capa. Alm disso, na Collection Terra

    esto inseridas outras obras brasileiras de temtica rural, tais como:

    Nossos ossos, de Marcelino Freire (Nos os, 2014), O quinze, de Rachel

    de Queiroz (La terre de la soif, 2014) e Bernarda Soledade A tigre do

    serto, de Raimundo Carrero (Bernarda Soledade, Tigresse du serto,

    2014).

    3.3 Pgina de rosto

    Na pgina de rosto da primeira edio, repetem-se as

    informaes constantes na capa sobre a coleo, o autor, o ttulo, a

    indicao genrica, o prefcio e a editora. Os elementos

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    26

    acrescentados informam o carter estrangeiro da obra: o ttulo

    original Menino de Engenho abaixo do ttulo traduzido e a indicao

    Traduit par J. W. Reims.

    No entanto, o que chama a ateno nessa edio, tanto na

    capa como na pgina de rosto, o fato de:

    Na capa: encontra-se a informao sobre o prefaciador,

    Blaise Cendrars;

    Na pgina de rosto: repete-se a informao sobre o

    prefaciador, cujo nome se encontra acima da indicao do

    tradutor.

    O reconhecimento da autoridade do poeta suo no campo

    literrio francs e a sua relao com o Brasil conferem validade ou

    crdito ao que ele afirma sobre a obra. Ao prefaciar o romance,

    Cendrars empresta-lhe prestgio, em uma operao de transferncia

    de capital simblico4 conforme descrito por Bourdieu (2002). J a

    informao sobre o tradutor se restringe s letras iniciais e ao

    sobrenome, J. W. Reims.

    A traduo de J. W. Reims (1953) no informa o texto de

    partida utilizado, mas tudo indica que tenha sido uma traduo

    4 Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu para se referir ao crdito ou prestgio atribudo a determinado agente (indivduo, instituio etc.) ou prtica social (a literatura sendo uma delas) e que se traduz em vantagem efetiva na disputa pelo reconhecimento e pela legitimao no espao social.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    27

    direta do portugus, tendo em vista o acesso de Blaise Cendrars

    obra5.

    Na pgina de rosto da segunda edio mantida a ilustrao

    presente na capa, repetem-se as informaes sobre o autor, o ttulo

    e a editora, mas suprime-se a informao sobre a coleo. A

    informao acrescentada torna claro o carter estrangeiro da obra e

    indica o texto de partida utilizado para a traduo, por meio da

    meno: Traduit du brsilien par Paula Anacaona.

    Figura 2: Pginas de rosto de LEnfant de la plantation 1953 e 2013

    5 Conforme o prefcio da primeira traduo francesa (1953) escrito por Blaise Cendrars: Menino de Engenho de 1932. Doidinho de 1933. Bangu de 1934. Em 1935, Paulo Prado me dando, em Paris, o Ciclo da Cana-de-Acar de Jos Lins do Rego disse-me: [...]. (traduo nossa de: Menino de Engenho est de 1932. Doidinho de 1933. Bangu de 1934. En 1935, Paulo Prado en me donnant Paris O Ciclo de Cana de Assucar de Jos Lins do Rego me dclarait: [...]).

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    28

    3.4 Quarta capa

    O espao da quarta capa tido como um lugar estratgico

    do peritexto editorial. Na primeira edio, encontram-se nesse

    espao informaes sobre as obras editadas pela Deux Rives,

    presentes em outras colees da editora (ditions de luxe e Collection

    De quoi vivaient-ils?), e as demais obras inseridas na Collection Rive

    Ouest. Na parte inferior dessa mesma zona, encontra-se um

    endereo, provavelmente da editora. Segundo Genette (2009), entre

    as informaes presentes na capa de uma obra, poderia figurar o

    endereo do editor/casa editorial; no presente caso, a informao

    em questo disponibilizada na quarta capa.

    Na quarta capa da segunda edio, encontra-se um trecho

    do prefcio de Blaise Cendrars La voix du sang presente na primeira

    traduo, retomando-se a estratgia de transferncia do prestgio de

    Cendrars, considerado uma autoridade no sistema literrio francs.

    O texto escrito por Cendrars e com referncias ao Brasil (Todo o

    Brasil est nesse livro transparente6) atesta o carter estrangeiro da

    obra, marcando-a como uma traduo. Alm do texto, a quarta capa

    apresenta uma ilustrao que, semelhana da capa, trata da obra

    revelando o contexto rural ao qual faz referncia. Outra informao

    presente nessa zona o preo de venda, localizado no canto inferior

    esquerdo, prximo ao cdigo de barras e ao endereo eletrnico da

    editora.

    6 Cujo ttulo em francs Tout le Brsil est dans ce livre transparent.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    29

    Figura 3: Quartas capas de LEnfant de la plantation 1953 e 2013

    A partir da capa e da quarta capa da primeira edio,

    possvel depreender a apresentao sbria e mais clssica da obra,

    direcionada a um pblico restrito7. A quarta capa no apresenta

    informao sobre a obra em si, optando por contextualiz-la em

    relao aos ttulos publicados na mesma coleo, bem como s

    outras colees da editora, conforme j mencionado, em uma

    estratgia de orientar a recepo no contexto de chegada e de

    divulgar o acervo para o pblico. Sobre a capa e a quarta capa da

    segunda traduo percebe-se a agradabilidade visual, se comparada

    com a primeira edio, mais sbria. Ao apresentar as ilustraes em

    xilogravuras, a traduo de 2013 busca, segundo a tradutora, fazer

    a Revoluo da Literatura, e comenta:

    [...] Na Frana, os livros so muito feios, muito clssicos e se as pessoas agora vo comprar e-book, porque realmente o livro com um papel vagabundo, com uma capa feia, no atrai.

    7 Noo desenvolvida por P. Bourdieu para designar o escritor, o artista e mesmo o erudito, escrevem no apenas para um pblico, mas para um pblico de pares (BOURDIEU, 2007, p. 108). A noo de pblico restrito se contrape de grande pblico.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    30

    Penso que isso [ilustrar os livros] uma maneira de salvar o papel e tambm porque eu constatei que todos os meus amigos no leem, eu sou a nica que l [...] ideia era atrair um pblico mais jovem, que pode ser seduzido pelas imagens (AJALA, 2013, p. 41).

    O quadro recapitulativo (Quadro 4) sintetiza os aspectos dos

    dados preliminares, com o intuito de fornecer uma viso geral do

    que foi analisado.

    Quadro 4 Quadro recapitulativo Aspectos Deux Rives (1953) Anacaona (2013)

    Ilustrao na capa No Sim

    Coleo Rive Ouest Terra

    Ttulo LEnfant de la plantation LEnfant de la plantation

    Indicao genrica na capa

    Sim (roman) No

    Nome do prefaciador na capa

    Sim (Blaise Cendrars) No

    Meno origem brasileira ou

    estrangeira na capa

    Nome do autor Nome do autor, nome da coleo e

    ilustrao

    Ligao explcita entre a coleo e o

    Brasil

    No Sim

    Quarta capa Obras editadas Trecho do prefcio de Blaise

    Cendrars

    Pgina de rosto Coleo, autor, ttulo, indicao genrica, prefcio, ttulo original e indicao do

    tradutor

    Autor, ttulo e indicao do

    tradutor

    O resultado dessa anlise evidencia o carter assumidamente

    estrangeiro da segunda traduo (2013), por meio da ilustrao na

    capa (e pgina de rosto), da coleo com um termo em francs

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    31

    (Collection) e outro em portugus (Terra). A coleo tambm rene

    outras obras brasileiras e rurais, e no apenas estrangeiras, como o

    caso da Collection Rive Ouest, na qual a primeira traduo (1953) est

    inserida.

    4. Concluso

    A partir das reflexes de Genette (2009), e feita anlise dos

    dados preliminares, possvel confirmar a importncia dos

    paratextos para a contextualizao de uma obra traduzida. Como

    observado, as escolhas presentes na segunda traduo (2013), alm

    de revelarem o carter estrangeiro por meio da ilustrao e do nome

    da coleo com um termo em lngua estrangeira, contextualizam o

    ambiente do enredo por meio de elementos presentes na ilustrao.

    Considerando o avano nos Estudos da Traduo, tambm,

    verificou-se que o perodo de sessenta anos que separa uma

    traduo da outra significativo para a produo e apresentao da

    obra. O modo como a traduo em 1953 produzida e apresentada

    menos estrangeira, sbria e sem ilustrao contrasta com a

    traduo de 2013, assumidamente estrangeira e informativa;

    possibilitando ao leitor uma contextualizao em um coup d'il.

    Por meio da anlise descritiva possvel refletir sobre as

    escolhas nas tradues e o significado delas na produo e insero

    de uma obra estrangeira em determinado pas. As escolhas

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    32

    tradutrias podem revelar a relao existente entre os pases

    envolvidos nessa troca cultural.

    Referncias bibliogrficas AJALA, Flora Marina Figueiredo. Menino de engenho (Jos Lins do Rego) na Frana: um estudo descritivo-comparativo de duas tradues. Joo Pessoa, 2013. 69 f. Monografia (Bacharelado em Traduo) Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraba. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas: introduo, organizao e seleo Sergio Miceli. 6. ed. So Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Les conditions sociales de la circulation internationale des ides. In : Actes de la recherche en sciences sociales, n 145, p. 3-8, 2002. Disponvel: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_2002_num_145_1_2793. Acesso em: 27 jul. 2013. CARELLI, Mario. Culturas cruzadas: intercmbios culturais entre Frana e Brasil. Traduo de Ncia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1994. CENDRARS, Blaise. La voix du sang. In: REGO, Jos Lins do. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux-Rives, 1953. GENETTE, Grard. Paratextos editoriais. Traduo de lvaro Faleiros. So Paulo: Ateli, 2009. LAMBERT, Jos; VAN GORP, Hendrik. Sobre a descrio de tradues. In: GUERINI, A.; TORRES, M.H.C.; COSTA, W.C. (Org.) Literatura e traduo: textos selecionados de Jos Lambert. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 208-223.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    33

    PAGANO, Adriana S. An Item Called Books: Translations and Publishers Collections in the Editorial Booms in Brazil and Argentina from 1930 to 1950. Crop, n 6, 2001. p. 171-194. REGO, Jos Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: Adersen-Editores, 1932. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux Rives, 1953. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Paula Anacaona. Paris:

    ditions Anacaona, 2013.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    34

    RISCANDO MILAGRES: LDIO CORR E A TRADUO INTERSEMITICA EM TENDA DOS MILAGRES

    Andr BATISTA

    Tenda dos Milagres, romance escrito pelo baiano Jorge

    Amado, publicado em 1969, uma narrativa basilar para se

    compreender os principais componentes da produo literria

    amadiana. O livro trata de discriminao, intolerncia religiosa, mito

    da democracia racial e sociedade de consumo, entre outras questes.

    O romance , segundo o prprio Jorge Amado, dentre os livros que

    escreveu, o seu favorito, e Pedro Archanjo, personagem principal da

    trama, aquele que mais se assemelha ao seu criador apesar de ter

    sido baseado tambm em outras figuras da vida real, como Manuel

    Querino e Miguel de Santana.

    No entanto, o ttulo do romance est diretamente ligado a

    outro e tambm importante personagem da narrativa: Ldio

    Corr, o melhor amigo de Pedro Archanjo. A Tenda dos Milagres,

    situada na Rua do Tabuo, n 60, prximo ao Largo do Pelourinho,

    era o ateli onde Ldio Corr exercia seu ofcio de artista plstico

    cuja razo do nome est relacionada ao tipo de trabalho que ele

    exercia Ldio era riscador de milagres. Seu ofcio se configurava da

    seguinte forma: algum que estivesse passando por um problema de

    difcil soluo principalmente, casos de doena fazia uma

    UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    35

    promessa para determinado santo e, alcanada a graa, ou milagre

    como tambm era conhecido o feito , o devoto ia at o riscador,

    narrava-lhe de que forma o milagre havia ocorrido e encomendava

    uma pintura que o representasse.

    Quem fez promessa a Nosso Senhor do Bonfim, a Nossa Senhora das Candeias, a outro santo qualquer, e foi atendido, mereceu graa, benefcio, vem s tendas dos riscadores de milagres para lhes encomendar um quadro a ser pendurado na igreja, em grato pagamento (AMADO, 1969, p. 17).

    Os quadros nos quais se riscam milagres so formalmente

    conhecidos como tbuas votivas, compostos por uma pintura e uma

    legenda. Segundo Klebson Oliveira,

    dividem-se em trs planos: no tero inferior, a legenda com o nome do miraculado e as circunstncias e data em que ocorreu o milagre; no tero mdio, a figura do milagrado, em seu quarto, geralmente deitado em posio pr-morturia; no plano superior, habitualmente esquerda, representa-se a divindade, geralmente envolta em raios ou nuvens, que propiciou a graa (OLIVEIRA, 2008, p. 47).

    Cada obra servia de modelo para riscos posteriores, apesar

    do seu compromisso de representar um acontecimento, os

    riscadores, em muitos casos, exerciam sua imaginao de forma

    consideravelmente livre, particularmente, quando quem

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    36

    encomendava a obra no fornecia uma narrativa detalhada do

    milagre, embora, em geral, seguissem, de alguma forma, um padro

    estabelecido. As tbuas votivas, por serem produzidas por artistas

    oriundos das camadas mais populares e, geralmente, encomendadas

    por fiis pertencentes ao mesmo extrato social, no eram

    consideradas propriamente manifestaes artsticas. O material com

    o qual os quadros eram confeccionados variava desde os de melhor

    qualidade, como algum tipo de madeira nobre, at os mais

    improvisados, feitos com pedaos de caixote. Normalmente, as

    peas encomendadas no possuam grandes dimenses, o que

    tornava o custo acessvel pra os devotos (SCARANO, 2004, p. 75).

    A figura do riscador de milagres era bastante popular no

    Brasil at a metade do sculo XX. O risco do milagre

    (representao pictogrfica de uma graa concedida por uma

    divindade catlica) um dos vrios tipos de ex-voto, isto , um

    quadro, imagem, inscrio ou rgo de cera ou madeira etc. que se

    oferece e se expe numa igreja ou numa capela em comemorao a

    um voto ou a promessa cumprida (FERREIRA apud OLIVEIRA,

    2008, p. 5). A variedade dos tipos de ex-voto vasta, desde os mais

    provveis e condizentes com o sagrado at os mais inslitos. Alm

    dos quadros pintados pelos riscadores e das esculturas talhadas

    pelos santeiros, existem cartas, placas, objetos orgnicos, esculturas

    trabalhadas em alta reprodutibilidade (OLIVEIRA, 2009, p. 3). Em

    inmeras religies, h uma relao mercadolgica entre os fiis e

    as divindades, configurada em constantes barganhas pagas por meio

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    37

    de oraes, bnos, sacrifcios, milagres, penitncias e graas. No

    mbito do catolicismo brasileiro, o ex-voto uma dessas

    importantes moedas de troca dessa relao. A principal distino

    entre o risco do milagre e os demais tipos de ex-votos o fato de

    que um procura comunicar-se, informando determinada

    ocorrncia e o outro intenciona apenas uma reverncia

    (VALLADARES apud OLIVEIRA, 2009, p. 4). Restam, no Brasil,

    poucos riscadores de milagres, a marca da evoluo da histria

    econmica clara. Hoje, conclumos que a fotografia veio sobrepor

    pintura (OLIVEIRA, 2008, p. 6), talvez pela sua praticidade e

    imediatismo, talvez pelo seu custo relativamente baixo, ou ainda,

    por produzir uma representao mais documental e verossmil.

    Atualmente, os tipos de ex-votos mais recorrentes so os

    escultricos, principalmente, aqueles que representam as partes

    afetadas do corpo humano e para as quais a graa pedida.

    Dentre as diferentes formas de ex-votos, a pintura a que

    mais aproximava o devoto do objeto, no que diz respeito sua

    feitura. A exigncia da existncia de um relato to minucioso

    quanto possvel do milagre fazia do asceta um contador de

    histrias, alm disso, a relevncia que atribua ao santo e ao milagre

    era refletida na sua eloquncia e na riqueza de detalhes para que o

    riscador pudesse captar, sem falhas, o carter do milagre. O

    contador tornava-se, ento, o autor de uma narrativa, construtor de

    uma verdade palpvel a partir de outra, de cunho metafsico,

    supondo que o riscador, construtor de um terceiro discurso,

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    38

    reproduziria aquela narrativa inicial, pois acreditava que essas

    verdades fossem nicas.

    O riscador de milagres era, portanto, responsvel por recriar

    uma narrativa oral em forma pictogrfica, ou seja, por traduzir de

    um sistema de signos (linguagem oral) para outro (pintura). A esse

    tipo de transcriao, Roman Jakobson chamou de traduo

    intersemitica, definindo-a como a interpretao dos signos verbais

    por meio de sistemas de signos no verbais (JAKOBSON, 2000,

    p. 65). Poder-se-ia supor, portanto, que o trabalho do riscador seria

    captar a essncia do relato e transp-la para a tela.

    Por ser uma traduo intersemitica, transcriao, ou, ainda

    segundo Jakobson, uma transmutao, o trabalho do riscador de

    milagres uma recriao, uma ressignificao da narrativa do

    devoto. Trata-se de uma nova narrativa, um novo olhar, uma

    construo a partir daquilo que j uma construo o relato do

    milagre. Construo, porque tudo o que se tem no momento do

    relato a palavra de quem conta (nica referncia ao fato). Essa

    construo, ou representao, uma interpretao do

    acontecimento, uma traduo do fato plasmada a partir de um

    determinado ponto de vista, ideologicamente fundamentado,

    interessado, permeado pelas idiossincrasias do contador, assim

    como o que narra o milagre a Ldio Corr: foi milagre de primeira,

    seu Corr, aquilo no era uma ona, era um despropsito de bicho

    sem entranhas, os olhos, acredite, uma iluminao (AMADO, 1969

    p. 102). O evento ganha ares de grandeza na voz do narrador, o que

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    39

    justificaria a splica, a relevncia da intercesso do santo, conferindo

    grandeza ao milagre, a gratido do devoto e sua relao de dbito

    com o santo e, como consequncia, a responsabilidade do riscador

    em recontar, com seus traos, o feito da divindade, sem deixar de

    incluir os detalhes mais significantes e ainda assegurar a qualidade

    esttica de que o milagre era digno.

    A pintura ou risco do milagre uma leitura e uma

    interpretao do relato, sendo, portanto, uma releitura e reescritura

    do fato, ou seja, uma nova construo, um novo texto, que tem

    como referncia inicial uma narrativa anterior. Para muitos, o fato

    de a pintura ter como ponto de partida o relato pressupe uma

    dvida, uma obrigao de fidelidade ao milagre alcanado. Tal

    pressuposto, porm, suscita alguns questionamentos, haja vista ser

    o relato do milagre uma interpretao do acontecimento, a

    construo de uma verdade, tecida a partir da perspectiva de, pelo

    menos, um indivduo, carregada de elementos do consciente e do

    inconsciente desse sujeito que se somam ao contexto histrico e

    cultural em que est imerso. Em outras palavras, uma leitura parcial

    leia-se parcial no como deficitria, mas como no absoluta ou

    definitiva. Octavio Paz afirma que a linguagem torna-se paisagem

    e esta paisagem, por sua vez, uma inveno, a metfora de uma

    nao ou de um indivduo (PAZ, 2009, p. 19). A paisagem que a

    narrativa do milagre descreve revela no apenas o prprio milagre,

    mas o contador e a comunidade do qual parte e porta-voz. Ora, se

    o relato do milagre produto de uma leitura parcial, como

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    40

    estabelecer uma relao de fidelidade entre a narrativa oral e o

    fato? A fidelidade, portanto, no nos parece cabvel.

    Poder-se-ia argumentar que a fidelidade esperada estaria

    entre a narrativa oral e o risco do milagre, sendo a narrativa o

    texto original e o risco, sua traduo. Se o relato do milagre

    consiste numa construo passvel de questionamentos quanto

    veracidade ou integralidade do fato, desestrutura-se o conceito

    de originalidade, como visto tradicionalmente, pois nem o

    original puro, ou seja, nenhum texto inteiramente original,

    porque a prpria linguagem em sua essncia j uma traduo (id.,

    ibid., 2009, p. 13). Como vimos anteriormente, a representao

    pictrica do milagre uma leitura interpretativa do relato, ou seja,

    uma reconstruo do acontecimento, uma ressignificao desse

    milagre e, assim, outro texto. Portanto, ainda que seja uma traduo,

    a pintura do milagre uma obra original, pois, todos os textos so

    originais porque cada traduo distinta. Cada traduo , at certo

    ponto, uma inveno e assim constitui um texto nico (id., ibid.,

    2009, p. 15). Essa outra obra , tambm, carregada de sensibilidade,

    percepo, impulsos e ponderaes do artista aliados a seu lugar de

    fala. A obra de arte, alm de se construir sobre os rastros da narrativa

    de partida, relaciona-se com todo o repertrio de histrias,

    experincias afetivas, sociais, polticas, culturais, artsticas e

    sensoriais do autor, afinal, cada elemento se constitui a partir do

    rastro dos outros elementos da cadeia ou do sistema (DERRIDA

    apud RODRIGUES, 2000, p. 198). Esses elementos se relacionam

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    41

    guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se j

    moldar com o elemento futuro (id., ibid., 2000, p. 198). Deparamo-

    nos, ento com a impossibilidade de se estabelecer uma relao de

    fidelidade ou de pura e simples repetio do que foi narrado, tal

    qual pretendia um dos clientes de Ldio Corr quando ordenou:

    Quero um quadro com tudo que contei, tudo, sem tirar nem pr

    (AMADO, 1969, p. 102).

    Essa impossibilidade pode ser explicada, tambm, pelo fato

    de que o texto original no um objeto estvel, transportvel,

    de contornos absolutamente claros, cujo contedo ns podemos

    classificar completa e objetivamente (ARROJO, 1986, p. 12).

    Ainda a esse respeito, Rodrigues afirma que o pressuposto da

    equivalncia [...] s teria lugar em um sistema em que houvesse um

    centro, um ponto fixo (RODRIGUES, 2000, p. 200), e o milagre,

    a cada vez que contado oralmente, sofre algum grau de modificao,

    no tendo, portanto, uma essncia determinvel, um significado

    absoluto que possibilitasse uma correspondncia linear entre as

    diferentes formas de significao. A pesquisadora tambm defende

    que a traduo s poderia ser uma operao que transfere, ou

    transporta significados, se houvesse a possibilidade do significado

    transcendental [...] (id., ibid., 2000, p. 192).

    No campo da traduo, incluindo-se a traduo

    intersemitica, a busca pela fidelidade pauta de uma discusso

    contnua, fundamentada numa hierarquia platnica entre o texto de

    partida e a traduo. No caso do ofcio de Ldio Corr, o milagre

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    42

    estaria no nvel do ideal, a essncia do acontecimento, assim, o

    relato oral seria a representao, a materialidade justa que nos

    acessvel, desprovida de essncia, porm, autorizada pela sua

    proximidade factual com o acontecimento. O risco do milagre,

    na condio de representao da narrativa oral, seria, portanto, um

    simulacro, imitao afastada no terceiro grau da verdade

    (PLATO, 2005, p. 374). A fico amadiana confirma a crena de

    que uma traduo deve ser subserviente, pois est sempre em dbito

    com o texto de partida. Esse um pensamento corrente quando se

    avalia uma traduo intersemitica ou adaptao, como

    comumente chamada. Temos, como exemplo, inmeros filmes

    baseados em romances os quais, por inmeros fatores, so

    considerados infiis obra que lhes deu origem, sendo,

    consequentemente, tratados como inferiores. Em contrapartida,

    Robert Stam acredita haver uma interminvel permutao de

    textualidades, ao invs de fidelidade de um texto posterior a um

    modelo anterior (STAM, 2006, p. 21).

    O exemplo de Ldio Corr vai ao encontro dessa crena na

    subservincia. Pelo seu trabalho, o milagre ganhava cores, luzes e

    podia ser visto e sentido durante anos, por todos os que se

    dispusessem a contemplar a sua obra de arte. O ofcio do riscador

    perpetuava o milagre, dava-lhe sobrevida. Ldio era criativo,

    riscando o milagre portentoso, [...] deixa[va] a imaginao correr

    (AMADO, 1969, p. 102), ignorando a relao de subservincia para

    com o milagre,

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    43

    [...] no pensa na grandeza da graa concedida, na categoria do prodgio, do prprio quadro decorrem seu sorriso e seu contentamento: da luz obtida, das cores e da composio difcil, com as figuras, a fuga dos cavalos, o santo e a mata virgem (AMADO, 1969, p. 99).

    No mbito da lgica platnica, no conseguindo reproduzir

    uma suposta integralidade do relato oral, essa nova criao artstica

    no se configura como cpia, uma imagem dotada de semelhana

    (DELEUZE, 1974, p. 263), mas como um simulacro, construdo

    sobre uma disparidade, uma diferena, ele interioriza uma

    dissimilitude (id., ibid., 1974, p. 263). O risco do milagre era um

    simulacro sim. Mas no o simulacro platnico, relegado a um posto

    inferior, em eterno dbito com a essncia. Ao invs disso, o

    risco do milagre, como fora de criao, encerra uma potncia

    positiva (id., ibid., 1974, p. 267).

    Pelo menos das duas sries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como original, nenhuma como cpia. No basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste vertigem do simulacro. No h mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. No h mais hierarquia possvel: nem segundo, nem terceiro [...] (DELEUZE, 1974, p. 267).

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    44

    Ldio no negava o acontecimento, mas subvertia o status quo

    que submete o artista mera reproduo, reconstruindo o milagre

    conforme o sentia e o interpretava.

    No se pode dizer que a subverso do platonismo consista apenas em virar a pretenso do pretendente contra a fonte da pretenso, o simulacro contra o modelo; o fundamental de sua estratgia antiplatnica de glorificao dos simulacros abolir as noes de original e derivado (MACHADO, 2009, p. 48).

    Grande parte dos riscadores de milagres tinha a

    preocupao de retratar o milagre seguindo risca as palavras do

    narrador, procurando incluir, no pequeno espao do quadro, os

    pormenores da obra divina, sem deixar de dar um lugar de destaque

    divindade que havia concedido a graa ao devoto, conforme

    preconizava a cartilha do seu ofcio. A razo de ser do risco no

    era exaltar o perigo experimentado pelo fiel, nem sua recuperao

    ou sua sobrevivncia. O risco do milagre existia em funo do

    santo e de sua glria, assim, a representao pictrica da faanha s

    deveria concorrer para a exaltao da divindade. Pode-se imaginar

    que no restava margem a desvios ou interpretaes que

    parecessem muito particulares, pois os riscadores estavam no

    apenas comprometidos com os fiis que lhe encomendavam a obra,

    mas tambm presos por um lao de reverncia que os atava ao santo.

    No entanto, Ldio Corr no se prendia a essas convenes. Para

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    45

    ele, sua arte no tinha apenas valor de culto. Era a expresso da sua

    alma qual mantinha uma relao de intimidade, era a sua obra, na

    meia-luz do fim da tarde, ao roxo claro crepuscular, mestre Corr,

    sincero e comovido, admira o trabalho terminado: uma beleza

    (AMADO, 1969, p. 104). Seu encantamento pelo prprio trabalho

    chegava ao desejo de mant-lo na Tenda dos Milagres, tal o

    embevecimento provocado pelo quadro.

    Por vezes, ao trmino de um milagre riscado na arte e no capricho, mestre Ldio Corr experimenta o desejo de desistir da remunerao, de reter o quadro, de no entreg-lo, deixando-o na parede da oficina. Os mais bonitos, pelo menos (AMADO, 1969, p. 107).

    Ldio Corr tinha reverncia pelos santos, conforme

    atestado em sua pintura e nas legendas que compunham o quadro.

    Entretanto, no condicionava seu trabalho grandeza do santo. Seu

    esmero em destacar a figura da divindade no quadro poderia

    depender de quo tocante ou dramtica julgasse ter sido a proeza:

    Vou caprichar no santo, ele fez por merecer (id., ibid., 1969, p.

    103). Para Ldio, por vezes, aquilo que o encantava no relato do

    milagre no era a tenso ou o perigo de morte que rondava a cena.

    Tampouco era o clamor do devoto ou a importncia do santo. Ldio

    se desviava de uma ordem estabelecida ao dar maior proeminncia

    a elementos que normalmente estariam em segundo plano em

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    46

    relao ao santo, demonstrado quando da confeco da tela que

    trata do Senhor do Bonfim afugentando a ona:

    Volta Ldio Corr, porm, sua figura predileta e insubmissa: a ona rajada, inclemente, gigantesca, os olhos fuzilantes, e a boca, ai a boca a sorrir para o menino. O artista j fez tudo para apagar esse sorriso, essa ternura; deu ona sertaneja porte de tigre e ares de drago. superior s suas foras, por mais feroz a pinte, ela sorri; existe entre a fera e a criana um pacto secreto, antigo conhecimento, imemorivel amizade (AMADO, 1969, p. 104).

    Na tela de Corr, a ona cresce, fulgura mais que o

    resplendor do santo, torna-se a figura central do quadro,

    diferentemente do relato. Ao invs de ameaar o menino, constri

    uma cumplicidade entre os dois cujo pacto denunciado pelo

    sorriso da ona. O felino, que antes simbolizava o mal, agora, na

    tela do riscador, faz resplandecer uma luz que prpria do bem,

    sorri, terno, revelando a Ldio sua imemorivel amizade com a

    pureza, personificada pela criana. A tela pintada por Ldio Corr

    foge dos padres, subverte a lgica vigente, desestrutura os

    fundamentos de uma ordem, assim, essa a fora do simulacro.

    Reconhece o santo, mas louva o animal, trazendo das profundezas

    um antigo conhecimento, o milagre do pacto entre a criana e a

    ona. o simulacro que se recusa a ser recalcado, nega o triunfo da

    cpia, insiste em emergir e escandalizar, fazer com que o mundo

    experimente a descontinuidade.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    47

    A arte na tela tem vida prpria e no pe fim ao jogo de

    interpretao da narrativa oral. O risco de Ldio uma das muitas

    leituras possveis do mesmo milagre. Outros riscadores, que

    pintassem a graa alcanada pelo fiel, fariam-no de maneiras

    diversas, sendo que nenhum deles faria, necessariamente, melhor ou

    pior que o outro. Seriam todos fiis, no ao milagre, mas sua

    prpria interpretao do milagre, sua fora criativa. O jogo

    interpretativo no cessa, pois os signos se encadeiam em uma rede

    inesgotvel, tambm infinita, no porque repousam em uma

    semelhana sem limite, mas porque h uma hincia e abertura

    irredutveis (FOUCAULT, 2009, p. 45). Tal abertura leva cada

    intrprete a pontos cada vez mais distantes de um referencial, que

    alguns chamariam de origem ou essncia. O narrador interpreta

    o milagre, o riscador interpreta o relato, o contemplador interpreta

    o risco do milagre e o descreve a um ouvinte que, por sua vez, ir

    interpret-lo sua maneira. Essa cadeia se estende em todas as

    direes, ramifica-se, fragmenta-se, refrata-se, seus elos se

    tangenciam e se afastam novamente, resultando, nas palavras de

    Foucault, no fato de que nada h de absolutamente primeiro a

    interpretar, pois no fundo tudo j interpretao; cada signo nele

    mesmo no a coisa que se oferece interpretao, mas interpretao

    de outros signos (id., ibid., 2009, p. 47). Criam-se, assim, novos

    textos e diluem-se as possibilidades de fidelidade essncia, ao

    ponto primeiro. Se um mesmo milagre fosse relatado a riscadores

    diferentes, cada um dos quadros teria uma nova perspectiva do

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    48

    evento e permitiria a adio de um nmero infinito de outras

    interpretaes e outras obras de arte. Cada obra seria, ento, um

    suplemento, uma parte que se adiciona a um todo para ampli-lo,

    um aditamento, um acrscimo. Nesse sentido, algo extra, no

    essencial, acrescentando a algo que supostamente est completo

    (RODRIGUES, 2000, p. 208).

    A arte do riscador se une voz do narrador numa relao de

    cumplicidade e troca, sendo que o primeiro fornece a matria prima,

    o texto de partida, o acontecimento, enquanto o ltimo propicia sua

    perpetuao, a continuidade e o alcance mais amplo. Jacques

    Derrida constri a metfora da relao matrimonial: uma traduo

    desposa o original quando os dois fragmentos unidos, to diferentes

    quanto possvel, completam-se para formar uma lngua maior que

    muda todos os dois (DERRIDA apud RODRIGUES 2000, p.

    208). O milagre se transforma, ganha cores, ares e texturas que s a

    arte lhe pode dar. A tela, por sua vez, no s um receptculo de

    tinta e traos, a materialidade da graa, a manifestao da crena

    de um povo, credo que os ajuda a persistir na rdua tarefa de

    sobreviver. D-se, assim, a aliana entre o relato do milagre e a obra

    de arte, em uma transformao mtua.

    A maioria das telas de milagres no possua a identificao

    do autor, possivelmente em sinal de reverncia divindade, que,

    para a comunidade, era o autor do milagre. O milagreiro no tem

    a preocupao de assin-los ou colocar qualquer sinal que os

    identifique, razo pela qual o fazedor de ex-votos dificilmente

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    49

    reconhecido por meio do seu trabalho (CASTRO apud

    OLIVEIRA, 2008, p. 54). Ldio Corr, no entanto, fazia questo de

    assinar os quadros, marcando, assim, seu lugar de autor da obra de

    arte. Ora, se o risco do milagre, mesmo sendo uma traduo, um

    novo texto, diferente da narrativa oral, realizado por outro

    indivduo, perfeitamente coerente que se faa assinalar o lugar do

    autor dessa nova obra. Sob o ponto de vista da tradio, o tradutor

    responsvel por transportar uma carga de significados, fazendo

    com que ela chegue intacta ao seu destino [...] mas no deve

    interferir nela, no deve interpret-la (ARROJO, 1986, p. 12).

    Entretanto, no h carga que chegue intacta, as intenes do

    autor do texto de partida no podem ser captadas, pois tudo o que

    afirmamos ser a inteno do autor, nada mais do que aquilo que

    supomos ser sua inteno. O que cabe, ento, ao tradutor, a

    interpretao do texto que lhe foi posto nas mos, interpretao essa

    que, como vimos anteriormente, est permeada de toda sorte de

    elementos, que compem o indivduo/intrprete. De posse dessa

    interpretao, o intrprete/tradutor constri seu prprio texto, uma

    atividade que envolve escolhas, posicionamentos, autonomia,

    opinio, tornando-se, a partir da, o autor de uma nova obra. Ldio

    Corr, talvez diferentemente de outros riscadores de milagres (os

    mais tradicionalistas, talvez) assume de bom grado sua condio de

    autor (mesmo o sendo de maneira multifacetada e refratada) e se

    utiliza dela para liberar sua expressividade e fora criativa, rejeita a

    funo de mero transportador de uma essncia semntica, talvez

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    50

    por saber ou intuir que no h uma essncia a ser captada e

    transposta. De fato, o que h so transformaes operadas

    principalmente pelo artista, na condio de autor, e nas relaes com

    o mundo que o cerca.

    luz dos Estudos Contemporneos de Traduo, o ofcio

    do riscador de milagres, de Ldio Corr, configura a traduo de

    relatos de feitos de milagres para a pintura, que, em circunstncia

    alguma, coloca-se em dbito com a narrativa oral tomada como

    texto de partida. O risco do milagre um texto novo, construdo

    nas limitaes que sua natureza pictrica lhe impe, pois a oralidade

    dispe de recursos dos quais a pintura no dispe o que evidente,

    tratando-se de diferentes linguagens, duas formas de expresso, sob

    determinado ponto de vista, antagnicas. Por outro lado, a pintura

    consegue atingir o contemplador de uma forma singular,

    despertando sensaes que apenas essa forma de arte capaz, e, no

    caso do risco do milagre, dando prtica votiva uma dimenso

    particular e uma forma de apreciao que vai alm do universo

    religioso. Desconstri-se, por essa razo, qualquer iluso de

    fidelidade ao original, ou seja, ao relato oral. Porm h, ainda,

    outros motivos pelos quais a expectativa de fidelidade cai por terra:

    a fidelidade implica pureza, mas o texto de partida j se mostra

    impuro, construdo a partir de rastros de outros textos, de saberes

    diversos, de um contexto histrico-cultural especfico. Portanto sua

    originalidade, assim como toda aura e carga valorativa, que esse

    termo possa trazer, so questionveis. Ademais, mesmo que o artista

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    51

    esteja, a priori, a servio da religio, nem sempre assume o

    sentimento de dbito que o fiel tem para com a divindade. A

    traduo uma obra nova, nica, apesar de tambm ser

    construda sobre rastros de outros textos inclusive e obviamente

    do texto de partida. Finalmente, no h no texto de partida, um

    significado absoluto que possa ser depreendido, decodificado e

    transposto para outra linguagem. A construo desse novo texto, a

    traduo para outra linguagem de signos, depende de um exerccio

    interpretativo, contnuo e mutvel. Essa perpetuidade interpretativa

    mantm o texto de partida no jogo das linguagens e das

    interpretaes. O risco na tela de Ldio Corr e de outros

    riscadores a sobrevida, a perpetuao, a multiplicao do milagre.

    Referncias bibliogrficas AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. Rio de Janeiro: Record, 1969. 338 p. ARROJO, Rosemary. Oficina de traduo: A teoria na prtica. So Paulo: tica, 1986. DELEUZE, Gilles. Plato e o simulacro. In: ___. A lgica do sentido. Traduo de Luiz Roberto Salinas. So Paulo: Perspectiva; EDUSP, 1974. p. 259-271. (Estudos) FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Traduo de Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    52

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  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    53

    A TRADUO POLTICA DE LANGSTON HUGHES

    Paula CAMPOS

    James Mercer Langston Hughes nasceu em 1902 e faleceu

    em 1967 e pde testemunhar momentos histricos importantes na

    vida social, poltica e cultural dos afrodescendentes nos Estados

    Unidos da primeira metade do sculo XX. Como a histria das

    sociedades escravocratas nos mostra, mesmo aps a abolio da

    escravatura, os africanos que foram escravizados e seus

    descendentes no tiveram direito cidadania estadunidense.

    nesse contexto histrico que Langston Hughes nasce e, neste

    mesmo momento, alguns movimentos na luta pelos direitos civis

    surgem.

    Em 1910, surge um movimento poltico chamado New

    Negro (Novo Negro) que, em sua origem, remetia aos novos

    africanos escravizados recm-chegados aos Estados Unidos. No

    incio do sculo XX, entretanto, significou uma resistncia potente

    contra a opresso, a favor do reconhecimento dos direitos humanos

    bsicos aos afrodescendentes.

    Outro movimento foi o da Associao Nacional para o

    Desenvolvimento dos Afrodescendentes que, em 1917, promoveu

    um protesto contra as terrveis condies de vida s quais os negros

    UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    54

    eram expostos naquele momento. Esse protesto ficou conhecido

    como The Silent March (Maro Silencioso)1, que foi uma caminhada a

    partir do Harlem para o centro de Manhattan.

    Alguns anos depois, nos anos de 1920, surgiu outro

    movimento dos afrodescendentes norte-americanos, chamado

    Harlem Renaissance, e o seu diferencial em relao aos movimentos

    polticos anteriores, foi ter sido um movimento de carter artstico-

    intelectual do Novo Negro. Envolto nessa atmosfera scio-

    histrica, Hughes surge como escritor promissor, mas j mostrando

    indcios de uma performance poltica aguada.

    Ainda muito jovem, aos 17 anos, junto a outros escritores

    da poca, idealizara este movimento poltico e cultural o Harlem

    Renaissance que durou de 1919 at 1935. De acordo com David

    Lewis, podemos marcar o incio do movimento em 1919 com a

    publicao de If we must die, poema de Claude McKay, e podemos

    marcar seu final em 1935, quando houve o The Harlem Riot (O motim

    do Harlem)2, em 19 de maro.

    Langston Hughes tambm foi tradutor e utilizava-se dessa

    funo de forma endereada, de forma poltica. Ele via a traduo

    como um meio de espraiar seus textos literrios e de outros

    escritores, como forma de compartilhar as experincias da dispora

    negra nos Estados Unidos, como tambm compartilhar as polticas

    efetuadas na luta pela igualdade de direitos.

    1 Traduo minha. 2 Traduo minha.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    55

    Diversos pensadores e filsofos renomados na nossa

    sociedade ocidental teorizaram sobre a traduo. A grande maioria

    viu a traduo como uma funo menor, como uma profisso no

    grata, pois, no pensamento conservador, a traduo traa o

    original e este perdia seu valor, j que haveria mais perdas do que

    ganhos.

    Um grande pensador do sculo passado, Walter Benjamin,

    escreveu, em 1923, um ensaio que se tornou um marco dentro da

    teoria literria e da teoria da traduo, pois, mesmo timidamente,

    reivindicava o valor da traduo como a grande responsvel pela

    sobrevivncia da obra traduzida, ou seja, de corruptora da obra

    literria, ela se torna a salvadora, j que por causa da traduo

    que o texto vive mais e em outras culturas.

    Muitos vieram depois, tanto para corroborar e suplementar

    essa ideia, quanto para colocar-se contra. Mas a ideia que trago

    comigo, de linha benjaminiana, da traduo como a responsvel

    pela sobrevivncia da obra e da nova vida que ela ganha na nova

    cultura de que passa a fazer parte.

    Digo isso tambm, pois tendo ou no contato com esses

    textos, Hughes agiu pensando a traduo como responsvel pela

    vida e pela sobrevida da obra literria em outras culturas. No por

    acaso que traduziu seus textos e de outros colegas afro-norte-

    americanos para outras lnguas, como traduziu obras literrias de

    autores afrodescendentes de diversas nacionalidades para a lngua

    Inglesa.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    56

    Alm da sobrevivncia da obra por mais tempo do que

    talvez vivesse se tivesse ficado em sua cultura de partida, o poder

    que a traduo de determinados textos possui dentro de uma

    sociedade imenso, inclusive, esse poder foi utilizado durante

    sculos para criar esteretipos e perpetuar preconceitos. Uma vez

    que pensamos que a traduo direcionada para um determinado

    pblico leitor, percebemos mais claramente as relaes de poder

    que perpassam a traduo. Ela pode formar identidades culturais,

    criar determinadas representaes de povos e culturas, alm de

    ajudar a construir a subjetividade desses leitores.

    Venuti (2002, p. 299) discute que, nos pases hegemnicos,

    a traduo modela imagens de seus Outros subordinados, que

    podem variar entre os polos do narcisismo e da autocrtica,

    confirmando ou interrogando os valores domsticos dominantes,

    reforando ou revendo os esteretipos tnicos, os cnones

    literrios, os padres de mercado e as polticas estrangeiras s quais

    outra cultura possa estar sujeita. Nos pases em desenvolvimento a

    traduo modela imagens de seus Outros hegemnicos e deles

    prprios que podem tanto clamar por submisso, colaborao, ou

    resistncia, que podem assimilar os valores estrangeiros dominantes

    com a aprovao ou aquiescncia, ou rev-los criticamente para

    criar autoimagens domsticas mais oposicionistas (nacionalismos,

    fundamentalismos).

    Langston Hughes v a traduo como potncia de

    resistncia, como mais uma forma de resistir ao esmagamento

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

    57

    geopoltico social. A traduo como um gesto poltico, que podia

    (pode) remarcar os territrios, apagar e escrever por cima uma nova

    imagem. um poder simblico, que muitos pases hegemnicos

    utilizaram durante sculos para fins diversos, mas, em seu maior

    propsito, subalternizar a cultura do Outro.

    Esse poder simblico foi utilizado pelas empresas coloniais

    com o objetivo de recalcar at o quase apagamento das culturas e

    das lnguas locais a fim de destruir subjetivamente aqueles sujeitos

    que foram colonizados. Um dos grandes pensadores da diferena

    Homi Bhabha, que traz questes interessantes sobre traduo

    cultural e o papel potente que figuras com identidade hbrida tm

    dentro de sociedades sob o julgo de uma hegemonia branca.

    Seus pensamentos se coadunam com a prpria figura de

    Langston Hughes e seus escritos, pois ele trabalha com a ideia da

    potncia dos sujeitos que ocupam a posio de entre-lugar.

    Hughes esse sujeito hbrido, do entre-lugar, pois mesmo sendo

    americano nascido nesse espao geogrfico, no tinha direitos

    iguais aos outros americanos brancos e da vem sua potncia.

    Ele potente, pois se constri em meio a duas vivncias, e

    passa a agir nas fronteiras, friccionando as relaes de poder,

    rasurando os espaos que antes eram naturalmente ocupados pela

    ideia hierarquizante de matriz europeia. Podemos inclusive

    perceber essas questes claramente no poema abaixo, escrito por

    Langston Hughes.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    Eu, tambm, canto a Amrica Eu, tambm, canto a Amrica Eu sou o irmo mais escuro. Eles me mandam comer na cozinha Quando a visita chega, Mas eu gargalho, E como bem, E creso forte Amanh, Eu comerei mesa Quando as visitas vierem. Ningum ousar Dizer para mim, Coma na cozinha, Ento. Alm disso, Eles vero o quo lindo eu sou E se envergonharo- Eu, tambm, canto a Amrica.3

    A ateno de Bhaba se dirige justamente a esses sujeitos e

    s formas como eles se construram e se empoderaram. O terico

    tambm busca verificar quais as estratgias de representaes que

    utilizaram para se inserirem nessa comunidade como sujeitos e

    como produtores artsticos e culturais. Alm dos meios que

    desenvolveram para se infiltrarem e rasuraram as redes

    hegemnicas de representaes.

    Neste poema, podemos perceber estratgias como a

    reverso de certos valores: o primeiro a ideia de cidadania que era

    3 Traduo minha.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    negada aos descendentes dos africanos (fato que perdurou at 1968,

    quando da ecloso dos Movimentos de Direitos Civis, nos Estados

    Unidos). O poeta reivindica o direito de sujeito nascido naquele

    local geogrfico de participar de sua poltica e de ter direitos que a

    cidadania oferecia. Reivindica o direito de cantar, de louvar a

    Amrica, pois, mesmo sua manifestao cultural no sendo a

    central (a instituda), como nascido naquele territrio, ele tinha o

    direito de pertencer, de ser considerado irmo pelos cidados

    brancos.

    Tambm, reivindicava que suas formas culturais e

    representativas deixassem de ser marginalizadas a fim de

    participarem do jogo com o centro. Isso fica claro quando,

    metaforicamente, demonstra que suas manifestaes, sejam quais

    fossem, deviam ceder lugar para aqueles que j estavam

    originalmente, anteriormente e naturalmente ocupando um

    determinado lugar; pois quando as visitas chegavam, ele deveria se

    esconder e comer na cozinha. Porm, quando ele ri, quando

    gargalha a respeito dessa situao, ele descobre um meio ou uma

    forma de burlar aquela configurao, aquelas representaes.

    Ele diz que se fortalece e que, um dia, todo aquele arranjo

    sociorracial e os esteretipos em torno daqueles sujeitos iriam se

    transformar e, por isso, diz que, em breve, ele comer mesa, ou

    seja, far parte de uma configurao poltica, social e artstica a que

    anteriormente no pertencia, e ningum ousar dizer que no

    poder ocupar aquele espao.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    Alm da vergonha pelas atrocidades cometidas contra os

    afrodescendentes, eles descobririam sua beleza, a beleza do Outro, a

    beleza que era foradamente recalcada naquela sociedade. Alm

    dessa resposta a esse arranjo sociorracial ao qual ele estava inserido

    nos EUA, Hughes d uma resposta direta a um dos grandes poetas

    norte-americanos: Walt Whitiman, que considerado uma das

    grandes vozes nacionais.

    O poema I Hear America Singing4, de Whitiman, trata de uma

    ideia de Amrica, de nacionalismo, da qual os negros no faziam

    parte. Apesar de ser sabido que Whitman foi um defensor da

    abolio da escravatura e de colocar em seus poemas sujeitos que

    antes no eram citados, como pobres, pessoas do campo e mesmo

    os afrodescendentes, essa Amrica que cantava essa voz em busca

    de sua nacionalidade, por uma voz independente das vozes

    europeias, no incluam os descendentes dos africanos.

    Por isso, Hughes d uma resposta bastante direta,

    reivindicando seu direito de cantar a Amrica, de fazer parte da

    Amrica, visto que ele havia nascido nesse territrio. Contudo,

    mesmo sendo um cidado estadunidense, no possua direitos civis,

    como os outros. Destarte, reclama o seu direito de ser irmo, e

    ser o irmo mais escuro, como diz no poema.

    Ele cria estratgias para reconfigurar aquelas representaes

    a que estavam submetidos, por meio de sua agncia cultural,

    introduz o novo no mundo. Utilizo, como expresso, o ttulo de

    4 Eu escuto o canto da Amrica (Traduo minha).

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    um dos captulos do livro O local da cultura, de Bhabha, Como o

    novo entra no mundo. O intuito de Hughes era que esses escritos

    de autores afrodescendentes pudessem alcanar o maior nmero de

    leitores possvel e, assim, as ideias que circulavam naquele momento

    histrico pudessem ser compartilhadas com outras naes que

    tambm participaram da dispora africana.

    O meu maior desafio no processo de traduo dos poemas

    de Langston Hughes a possibilidade de perder sua fora poltica

    ou que essa voz potente fique sufocada pela minha voz. Contudo,

    a minha maior aliada a possibilidade, ou as possibilidades, que a

    traduo cultural me oferece no momento em que possibilita a

    redemarcao de posies, o movimento dos signos centrais,

    propiciando novas significaes e ampliando as possibilidades de

    representaes e de discursos.

    Esse contradiscurso da traduo cultural junto ao prprio

    posicionamento no cannico (cannico como sinnimo de forma,

    molde europeu) de Hughes, possibilita a ideia de que as diferenas

    de gnero, etnia, histria e geografia no sejam impedimento para

    que essa tentativa de sobrevivncia e vivncia textual seja feita. A

    traduo cultural tira da redoma os ideais de supremacia cultural, de

    raa, gnero e etnia, permitindo um fluxo contnuo de

    transformaes. Ela reescreve a prpria histria da histria da

    traduo.

    Escolho a mesma ferramenta (a traduo) que outrora havia

    sido utilizada para reforar esteretipos negativos sob determinados

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    povos e que espalhara discursos ideolgicos de excluso, mas que

    agora utilizo para espalhar contradiscursos como os de Langston

    Hughes. O autor/tradutor/intelectual lutou contra esteretipos

    negativos em relao aos povos da dispora africana e contra a

    violncia com que esses povos foram excludos de qualquer forma

    de existir, seja poltica, social ou culturalmente.

    E inspirada por Hughes, que enxergava a traduo como

    uma forma de sobrevivncia de seus textos e como uma ao

    poltica, que sigo no propsito de continuar um trabalho feito por

    ele durante anos e que teve tanta reverberao ao ponto de encantar

    de forma avassaladora, uma jovem latino-americana, nos anos 2000,

    fenotipicamente branca e que supostamente no seria afetada pelos

    seus escritos.

    Referncias bibliogrficas BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BRAZILLER. G. The Langston Hughes Reader. New York: Ninth Printing, 1958. DELEUZE, G. Post-scriptum sobre a sociedade de controle. In: Conversaes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DERRIDA, J. A estrutura, o signo e jogo no discurso das cincias humanas. In: A escritura e a diferena. So Paulo: Editora Perspectiva,1995.

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    FOUCAULT, M. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996. FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Mark Theareum Philosoficum. So Paulo: Princpio Editora, 1997. GILROY, P. O Atlntico negro. So Paulo: Editora 34, 2001. VENUTI, L. Globalizao. In: Escndalos da traduo: por uma tica da diferena. Traduo de Laureano Pelegrin, Lucilia Marcelino Villela, Marileide Esqueda e Valria Brando. Bauru: Edusc, 2002.

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    LITERATURAS NO CANNICAS E A TRADUO DE ANTOLOGIAS DE CONTOS BRASILEIROS

    Janana Arajo COUTINHO

    1. Introduo

    O presente artigo intenciona discutir algumas relaes entre

    a literatura no cannica brasileira traduzida para a lngua francesa,

    tendo como corpus a obra Je suis favela (2011), buscando compreender

    a relevncia desse processo para as trocas culturais entre os pases

    envolvidos. Assim sendo, discutiremos os efeitos da traduo de

    antologias de autores alocados fora do eixo sacralizado e suas

    implicaes para a formao da identidade da literatura brasileira

    contempornea por meio do gnero conto.

    Desde cedo, a literatura se apresentou como veculo capaz

    de transpor as barreiras histricas e geogrficas, fazendo com que

    as especificidades culturais dos povos pudessem interagir entre si.

    Criada para ser a concretizao da oralidade, a mesma foi utilizada

    de acordo com as necessidades de cada poca e, dessa forma,

    perpassou os campos da moralidade (literatura pedagogizante de

    Charles Perrault), do registro documental histrico, como tambm

    serviu de apoio para o ensino de lnguas. Por vezes, era concebida

    como leitura despretensiosa, isto , aquela em que se busca o prazer

    UFPB, Programa de Ps-Graduao em Letras e Artes, Brasil. [email protected]

  • TENDNCIAS CONTEMPORNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUO [VOLUME 1]

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    to somente pelo ato de ler.

    Para que fosse possvel ultrapassar barreiras lingusticas, foi

    necessrio utilizar o ato de traduzir que, como a prpria literatura,

    tambm tem sua gnese situada em tempos passados. De incio,

    tradutores experientes se dedicavam traduo literal, privilegiando-

    se o texto puro, ou seja, o conjunto de palavras e suas relaes.

    Porm, viu-se que tal escolha se punha insuficiente, uma vez que era

    necessrio levar em considerao o que vinha atrelado ao texto