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CRIPTICOS 2 ANSEIOS PAULO LEMINSKI

Anseios cripticos 2 revisado com capa

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CRIPTICOS2

ANSEIOS

PAULO LEMINSKI

ANSEIOS CRIPTICOS 2

Paulo Leminski

Paulo Leminski Filho nasceu em Curitiba, em 24 de agosto de 1944. O pai descendia de poloneses e, a mãe, Áurea Pe-reira Mendes, de portugueses, índios e negros. Aos 8 anos, fez o primeiro poema. Dos 12 aos 14 anos permaneceu como oblato no Mosteiro de São Bento/SP. Aos vinte anos já participa de eventos relacionados à literatura. Iniciou duas faculdades — direito e letras —, abandonando ambas. Foi professor de cursinho, jornalista, redator de publicida-de, tradutor, compositor, letrista. Traduziu, entre outros, Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Sol e aço, de Mishima, e Satyricon, de Petronius. Foi parceiro de Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes e Ivo Rodrigues. Como compositor, teve canções gravadas por Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre ou-tros. Apresentou o polêmico Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, em 1988. Catatau (“prosa experimental”) foi publicado em 1975. Seus poemas estão em vários livros: Quarenta cliques, 1979, Polonaises, 1981, Caprichos e relaxos, 1983, Agora é que são elas, 1984, Distraídos venceremos, 1987, Guerra dentro da gente, 1988,Não fosse isso e era menos/Não fosse tanto e era quase, 1980.

Paulo Leminski

Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski or-ganizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu ta-lento de polemista-ensaísta-demolidor-criador: seus anseios. O resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais, cópias de posfácios e prefácios, e textos datilografados. O primei-ro volume — Anseios Crípticos 1 / anseios teóricos — foi edita-do em 1986. O segundo, os anseios práticos, deveria sair no ano seguinte. No entanto, só hoje chega aos leitores. Por um lado, os azares dos planos econômicos colocaram a Criar numa quarente-na da qual só retornou em outubro de 2000.

Por outro, em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimensões. Não bastasse, os originais sumiram, resistindo a três mudanças e, 15 anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual deveriam estar apenas exemplares de antigos suple-mentos literários.São estes os anseios/ensaios que publicamos agora. Diferente-mente dos que estão no primeiro volume, no qual Leminski dizia ter reunido as noções “teóricas” básicas a partir das quais pensa-va, estes, os “práticos”, estão voltados para a análise de obras e de autores.

Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem que Le-minski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud, Haroldo de Campos, Sartre, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon, Mishima, Be-cket, Joyce, Petrônio. Alguns são inéditos, outros são inéditos em livro, outros foram publicados em jornais e revistas de circulação nacional (Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saíram em jornais de tiragem restrita ao Paraná (Gazeta do Povo, Correio de Notícias).Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talen-to, colocando em questão as obviedades literárias do momento, do que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando o pensamento único nos provoca infindáveis bocejos de tédio.

Préfacio

Sumáriom, de memória

latim com gosto de vinho tintoum texto bastardo

taiyo to tetsu: entre o gesto e o textolennon rindo

ferlinguete-se!o uivo e o silêncio

jarry, supermodernofolhas de relva forever: a revelação permanente

méxicosertões anti-euclidianos

trans/paralelassignificado do símbolo

o veneno das revistas da invençãogrande ser, tão veredas

e o vento levou a divina comédiapoeta roqueiro

aventuras do ser no nada: quem tem náusea de Sartre?tímidos e recatados

tradução dos ventosprosa estelar

bonsai: niponização e miniaturização da poesia brasileirahistória mal contada

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Paulo Leminski

m, de memória.

Os livros sabem de cormilhares de poemas.

Que memória!Lembrar, assim, vale a pena.Vale a pena o desperdício,

Ulisses voltou de Tróia,assim como Dante disse,

o céu não vale uma história.Um dia, o diabo veio

seduzir um doutor Fausto.Byron era verdadeiro.

Fernando, pessoa, era falso.Mallarmé era tão pálido,mais parecia uma página.

Rimbaud se mandou pra África,Hemingway de miragens.Os livros sabem de tudo.Já sabem deste dilema.

Só não sabem que, no fundo,ler não passa de uma lenda.

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Paulo Leminski

Latim com gostode vinho tinto

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1as veias abertas da roma antiga

“De C. Petrônio não há muito que dizer. Dormia o dia inteiro e dedicava a noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos ficam famosos por seus empenhos (industria). Ele era famoso por sua preguiça (ignavia). Não era considerado um homem que corre atrás do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxu). Tudo que dizia e fazia era descontraído e sem esforço, e sua simpli-cidade cativava como uma gentileza. Mas soube ser enérgico quando no serviço público, primeiro como procônsul na Ásia, depois como cônsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vícios favoritos e, como tal, foi aceito no círculo mais ínti-mo do imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro árbi-tro da elegância (el egantiae arbiter). Nero nada fazia sem an-tes consultar seu sofisticado cortesão. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro cortesão, que contra Petrônio arma uma intri-ga, envolvendo seu nome com conspiradores. Sabendo-se per-dido, antes da ordem do príncipe, Petrônio decide suicidar-se, abrindo as veias do braço. Um médico grego abria-as, o sangue corria, e ele as fechava depois. Voltava a abri-las, e as fechava, assim muitas vezes. Enquanto isso, impávido, Petrônio não se entregava a conversas sobre a imortalidade da alma. Na realida-de, fazia versos lúbricos e fúteis. E assim fazendo morreu, com a maior naturalidade. Nunca lisonjeou os poderosos, nem o pró-prio Nero. Ao contrário. Escreveu uma narrativa onde descreve os excessos do imperador, atribuindo-os a jovens depravados. E ao morrer enviou-lhe a narrativa.” Assim Tácito, o maior dos historiadores romanos, descreveu, em seus Anais, a vida e o fim de Petrônio, e a gêneses do Satyricon.

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2 Poucos livros têm biografia tão acidentada como este

Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais escandalosa-mente original da literatura latina. Oficialmente, consta como sendo o romance escrito por Caius Petronius dito Arbiter, cortesão e íntimo do imperador Nero, que este condenou ao suicídio, no ano de 65, por se achar envolvido na conspiração da família dos Pisões contra o louco imperador poeta. Mas na ficha do Satyricon, tudo são conjecturas e hipóteses que já produziram rios de tinta entre os sábios, do Renascimento para cá: o livro, aliás, foi um dos primeiros textos impressos; sua primeira edição, em Milão, é de 1477. O texto que hoje temos é, certamente, parte de um texto maior, que se perdeu nos azares da História, talvez um quinto apenas do original (fragmentos dos capítulos XV e XVI). Mesmo assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira. A autoria também não é segura. Toda a argumentação sobre a autoria se baseia num célebre trecho do historiador ro-mano Tácito, que viveu por volta de 120 da nossa era, cinqüenta e cinco anos depois da morte de Caius Petronius. Nele, Tácito fala do cortesão voluptuoso que, conde-nado ao suicídio por Nero, escreve ao morrer uma longa sátira para zombar do ridículo tirano. Certas evidências, porém, laboram contra a identifi-cação do Satyricon, que temos hoje, com essa sátira do cortesão de Nero. Primeiro, porque não é verossímil que um homem pouco antes de morrer tenha forças para compor uma obra que, no original, deveria ter algo como duas mil páginas. Depois, há indícios de linguagem e estilo que acusam, me parece, a presença de giros e palavras característicos de

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épocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter sido introduzidos pela pregação cristã.

Por fim, há o estranho silêncio dos escritores romanos posteriores (Marcial, Suetônio, Plínio, Juvenal, Quintiliano) so-bre uma obra que deveria ter causado grande impacto na época em que surgiu. Os primeiros escritores latinos que mencionam o Satyri-con, entre eles, São Jerônimo, já são do século III da nossa era.

Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao Satyri-con uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do século V!

Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra era mesmo Satyricon.

Em meio a todas essas brumas de dúvidas, só uma cer-teza perm neceu unânime. É a obra mais original da literatura latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de um autor.

Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obraspri-mas.

3 Não adianta. A literatura latina é pálido reflexo da grega, com a qual mantém uma relação espetacular, de original para espelho. Virgílio já está todo em Homero e Teócrito. Horácio é Alceu, Safo e Píndaro. Cícero é Demóstenes. Ovídio é uns ale-xandrinos. Tácito e Tucídides. Todo escritor romano parece al-gum grego.

Claro. Em literatura, é a forma que é social. E o elemen-to material transmissível, a concretude do processo criativo. As formas e que são o material herdável. E da literatura grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs de texto. Seus

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programas. Seu software morfológico. Suas configurações dese-jáveis. Suas Gestalts significativas.

Nesse quadro de dependência semiótica, alguns momen-tos de originalidade romana: o teatrólogo Plauto, o poeta Catu-lo, o satírico Marcial, o elegíaco Propércio, quem sabe.

Isso tudo, porém, talvez, não tenha muita importância. Em arte, o conceito de originalidade é muito recente,

tendo surgido com a Revolução Industrial e o romantismo, que a expressa.

A maior parte do que chamamos “obras de arte” são aproximações a um modelo considerado padrão de performan-ce: a humanidade é clássica, um mundo romântico é indesejá-vel, porque ingovernável. A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em latim, as proezas e feitos de algum escri-tor grego do passado, que ele tivesse tomado por paradigma.

Nesse sentido, a literatura romana é clássica por exce-lência. Para nós, homens do século XX, esse mundo reflexo lem-bra o folclore, onde a tradição é tudo e a insurreição do arbitrá-rio do talento individual é vista e tratada como tal, um ligeiro desequilíbrio que o peso da inércia logo tratará de reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma, aceitável e reconhecível por todos. Mas isso são complicações modernas. Os romanos não sofriam com isso. Seu universo verbal e literá-rio era bilíngüe, grego e latim. E era na Grécia, dominada mili-tarmente, que os jovens romanos iam completar sua educação, como, hoje, vamos fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.

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4roma romance

Pelo menos no Ocidente (a China é outra história), o romance, enquanto forma, parece ter nascido das variações re-tóricas escolares em torno de fatos históricos, prática habitual no ensino da oratória no mundo greco-romano. Ironia: a história (a ficção literária) nasce da Histo-riografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da História. Nesse caso, dá pra dizer que a “mentira” nasceu da “verdade”, da qual a mentira não passaria de uma versão ro-manceada. Depois de Tucídides, seco, racional, “científico”, a historiografia grega começa a ser influenciada pela linguagem altamente cultivada das escolas de retórica, e vai virar alguma coisa a meio caminho entre a ciência e a arte, entre a “verdade dos fatos” e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romanoQuintiliano pôde dizer que os historiadores gregos “tomavam tantas liberdades quanto os poetas”. Neste território furta-cor, nesta twilight zone, entre a História e a história, nasceu o romance. A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por exemplo, produziu toda uma linhagem de “histórias” meio-reais,meio-fantásticas, híbridos centauros, sereias, esfinges, das quais, só nos chegaram notícias. Mas o precursor grego de Petrônio teriam sido as Milé-sias, ficciones erótico-pornográficas, ambientadas na cidade de Mileto e atribuídas a um certo Aristides de Mileto (século II a.C).

Quem não gosta de sacanagem? As Milésias tiveram grande irradiação no mundo mediterrâneo, e chegaram a ser a leitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um

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século antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indi-ca, o precursor imediato de Petrônio. Além das Milésias, este texto romano parece dever a outra vertente helênica, de maior complexidade textual, a cha-mada sátira menipéia, tipo de texto que alternava partes em prosa com partes em poesia, criando uma espécie de diálogo, intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos dis-tintos, o chamado prosimetrum, cuja invenção os antigos atri-buíam ao filósofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do século III a.C. Uma das características da menipéia era o monólogo, muito freqüente no Satyricon. Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do romance de Caius Petronius: até segunda ordem, o Satyricon é a primeira obra da literatura ocidental que podemos chamar propriamente de romance. Dele descendem todos, do Decame-ron de Bocaccio à picaresca espanhola do barroco, do romance inglês do século XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce. Há, portanto, uma espécie de justiça etmológica no fato de o vocábulo “romance” trazer dentro de si o nome de Roma. Como se sabe, a palavra “romance”, vem do advérbio latino medieval romanice, isto é, “em romântico”, em língua vulgar, palavra cunhada na Idade Média quando as narrativas de ficção eram escritas em língua vulgar, em contraste com as obras ditas sérias, escritas em latim. Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon que o homem ocidental começou a apanhar a vida através dessa for-ma muito singular que, só no século XIX, se transformou numa espécie de O Maior de Todos os Gêneros, a epopéia burguesa da iniciativa privada e da vida particular. Poucos livros tiveram tão próspera descendência.

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baixo latim, baixo-ventre: o código dionisíaco

Parece haver algum mistério no fato de, do Satyricon, só nos ter chegado, essencialmente, o Banquete de Trimalcião, fragmentos dos capítulos XV e XVI da obra original.

O Satyricon, para nós, é um texto onde, sobretudo, se come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo, animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, um ape-tite universal, absoluto, até o limite da fome. Bebia-se vinho em quantidades inverossímeis.

E Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo mediterrâneo, o trigo da Sicília e do Egito, os figos da África, o mel da Grécia, a pimenta do Oriente.

A devoração do mundo, a elefantíase do desejo e da gula. O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o sig-

no da orgia, da bacanal, da embriaguez, de Dionísio, da confusão carnavalesca de todos os apetites. Este código devoratório do Satyricon encontra sua contrapartida numa espécie de complemento excretório: o Sa-tyricon é todo percorrido por alusões ao ato de cagar, vomitar e mijar. Trimalcião chega ao ponto de comentar suas dificuldades de evacuar diante de seus convivas que devoram um javali.

Comer, cagar: o Satyricon come e caga. Como todo ser vivo.

6menipéia, picaresca, carnaval

Quem nunca leu Petrônio não conhece as delícias do latim,

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o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim ágil, vivo, vul-gar, malandro, espertíssimo, único. O latim que aprendemos nas escolas (quando havia la-tim) era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio, Horário, Tito Lívio. Mal conseguimos imaginar a milionária riqueza verbal da cultura greco-latina, baseada na retórica, na tradição esco-lar da oratória, meticulosa acumulação de saberes verbais, que começa no século V antes de Cristo e só termina com a queda do Império Romano, no século V depois de Cristo. Mil anos de repertório!

Até as vanguardas do início do século XX, pouca coisa inventamos de novo em relação à civilização greco-latina: re-cursos de estilo, figuras de linguagem, a distinção entre poesia e prosa, gêneros literários, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar, esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos ombros estamos trepados.

Essa cultura, claro, era altamente aristocrática. Uma aristocracia cria, naturalmente, uma linguagem

aristocrática que a expresse enquanto grupo social. No caso de Roma, do que nos chegou, pouquíssima coisa tem sabor popular, quase nada sabemos de como se falavanas ruas, nos mercados, nas tabernas, nos lupanares, nas ofi-cinas, nas esquinas, no interior das casas. E é desse latim que descendem o italiano, o francês, o espanhol, o português...

Traços de latim vivo, vulgo latim vulgar: o comediógrafo. Plauto, o lírico Catulo, cartas de Cícero, o satírico e epigramáti-co Marcial. E só.

Nesse quadro, Petrônio discrepa. Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de Tri-

malcião, vemos desfilar um latim vivo, direto, o raro do reles,

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enfim, diante de nós. Expressões corriqueiras. Torneios familiares. Locuções proverbiais. Frases feitas. A língua viva, na boca de pessoas vi-vas. Por isso mesmo, o latim de Petrônio, apesar da sua preci-são, é particularmente difícil, um latim concentrado, onde cada palavra remete a uma instituição, a um hábito da época, a um gesto preciso. Pragas. Invocações religiosas. Fórmulas mágicas. O Satyri-con é rico de raridades.

Nenhuma obra da literatura romana que nos chegou apresenta número tão elevado daquilo que a filosofia chama apax legomena, palavras que só aparecem uma vez, nesse autor, numa dada obra. Em nenhuma outra obra da literatura latina, encontramos palavras como baliscus, matus, carica, embasiceuta, scordalia, mixcix, bucolesias, caldicerebrius, laecasin e centenas de outras que se perderam no tempo, como plumas ao vento.

O texto de Petrônio, refletindo uma cultura bilíngüe, grega e latina, está eivado de palavras e expressões gregas, que deviam ser correntes no meio em que ele vivia.

Tanto que os nomes dos personagens do Satyricon são todos gregos, com subsentidos significativos para seu público. Ascilto, em grego, quer dizer “infatigável”. Eumolpo, “canta bem”. Giton quer dizer “semelhante”. Encolpo dá a idéia de“passividade”. Outros personagens se chamam “Psyche”, “Her-meros”, “Echion”, “Agamenon”, “Phileros”, todos nomes helê-nicos, que funcionam como máscaras verbais no carnavalesco e carnavalizado romance de Petrônio.

O nome de Trimalcião (Nero?) é um composto burlesco greco-semita: tri, “três vezes grande”, e malkion, em semita, “rei”, o imensamente ridículo três vezes rei.

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No caso de Petrônio, esse latim, salpicado de grego, es-tava a serviço de um talento (ou diremos gênio?) narrativo, de que mal podemos fazer idéia, dada a natureza fragmentária do Satyricon.

Seja como for, ainda não foi superada a capacidade de Petrônio em marcar o caráter, e até a profissão e a origem so-cial, de um personagem pela linguagem que usa. O Satyricon é uma galeria de tipos, o liberto arrivista e cúpido, o mestre de retórica, pedante e livresco, o eunuco bêbado, o ridículo nou-veau riche, o cínico, o amoral aproveitador dos esbanjamentos de uma sociedade absurdamente desigual, um carnaval de más-caras e fantasias, uma polifonia.

Acrescenta à riqueza do texto o fato de o Satyricon con-ter em seu fluxo de prosa inúmeros trechos em poesia, metrifi-cados: é o que se chama de “menipéia”, uma forma mista, com-pósita, híbrida, coincidentia oppositorum. No Satyricon, entre outras coisas, uma sátira ao ensino retórico, a prosa é plana, vulgar, popular, coloquial. Os poemas são inflados de uma retórica beirando o burlesco e o ridículo. Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma tarefa ingrata.

Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois,único modo de não trair ninguém. A concisão extrema do latim obriga a alongar certas fra-ses para que não se tornem incompreensíveis ao leitor atual. I Impossível entender o Satyricon sem ter alguma noção das instituições da Roma escravagista, tão distintas das nossas.

Gestos, hábitos, significados, tudo nos é tão estranho quanto num romance de ficção científica. O que nos aproxima de Petrônio, e nos une, é a presença forte de uma condição humana, uma humanidade feita de gran-dezas e baixezas, de esplendores e misérias, coisa, aliás, que o

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romance vem fazendo desde que o Satyricon nasceu, e deu o primeiro exemplo.

Paulo Leminski

Um texto bastardo

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1 Joyce é o maior prosador do século XX. Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contesta-ção, extr mos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka.

Thomas Mann. — Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. — Solidão aristocrática. — Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. — Elitismo hermético. — Intelectualismo pedante e cosmopolita.

Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. — Maior que Cervantes? E Quevedo? — E Balzac? — E Stendhal? E Flaubert? — E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina mate-rial com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu

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imprimir ao conjunto de sua obra o autor de Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914), Ulysses (1922) e Finne-gans Wake (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um romance de formação (um Bildungsro-man, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as Confissões, de S. Agostinho), os Du-blinenses e o Retrato ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. Ulysses, porém, é puro século XX, o século das megaló-poles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cine-ma, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o Wake. Mas o Ulysses ainda é, apesar de tantas inovações, um romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os romances, do dito célebre. O Wake já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? Ulysses foi difícil (é cada vez menos). O Wake, cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto). A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertó-rio comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incor-porado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em best-seller mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda. Ulysses /Joyce é influência determinante na prosa criativa deste século. E a lista dos influenciados, direta ou indiretamen-te, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Vir-gínia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch (A Morte de Virgílio), Guimarães Rosa, Cario Emílio Gadda, Augusto Roa

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Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

2 Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce. Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica. O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e hu-moristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo re-trógrado, castrador, aldeão. O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido. Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua ob-sessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia fixa, agenbite of inwit, memória, o único tempo possível. Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, cres-cendo, dos Dublinenses ao Wake. Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

3Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora. Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro. Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monólogo

interior, o Dia, a História. Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o den-

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tro, pura linguagem, a Noite, o Sonho. Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras

-primas, Giacomo Joyce faz às vezes, talvez, de um filho bastar-do, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica.

Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music e Tomes Penyeach, performances líricas de uma maestria mé-trica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S. Eliot.

Ou com Exiles, a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.

Mas, por favor, não façamos pouco de Giacomo Joyce. Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grávido do Ulysses, já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Eu-ropa.

Em Giacomo Joyce, já dá pra ver o surgimento dos ger-mes do monólogo interior, a técnica central do Ulysses e uma das grandes conquistas da ficção do século XX.

Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro roman-ce francês do século passado, Les Lauriers Sont Coupés (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista. Esse monólogo interior parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índi-ces do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor.

A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, lingüisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de

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Deus, o narrador onisciente.O monólogo interior representa um princípio de econo-

mia narrativa. E, conseqüentemente, um aumento de velocida-de no tempo do texto e da leitura.

Alguns traços dele em O Vermelho e o Negro, de Sten-dhal (1830).

E em Dostoiesvski (1821-1881). O monólogo interior, de resto, representa uma espécie

de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar.Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaço tempo, sem antes nem depois. No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz alguémquer falar com a senhorita já comparece sem aviso, como uma página de Ulysses.

4Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que

fale Richard Ellmann.Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia ita-

liana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão. Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que co-nhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele mo-mento. Giacomo Joyce é uma novela, cinematográfica, ideogrâ-mica, como uma peça No, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.

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Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou, orquestran-do relâmpagos.

Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.

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Paulo Leminski

taiyo to tetsuentre o gesto e o texto

guerra sou euguerra é você

guerra é de quemde guerra for capaz

guerra é assuntoimportante demais

para ser deixadona mão dos generais

(p. leminski, 85)

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1 Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do Japão estamparam em suas colunas policiais uma notícia, no mínimo, inquietante. No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de artes marciais tinha invadido, com violência, as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio. O líder do grupo, um homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de um jovem, chegou até o gabinete do Comandante da praça, diante do qual os dois cometeram harakiri, o suicídio ritual da classe samurai. Antes do gesto supremo, acrescentaram os periódicos, o líder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no local uma proclamação onde denunciava violentamente a ocidenta-lização, a decadência dos códigos de honra tradicionais do País do Sol Nascente. E a tropa pôs-se a rir. O grupo invasor era o Tate no Kai, a Sociedade do Escudo, um exército privado de cultores de artes marciais, organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima1, que, assim, declarava guerra, sozinho, ao Exército japonês.

1

Na manhã do dia quando se matou, Mishima enviou a seu editor o último

volume da sua tetralogia, O Mar da Fertilidade.

Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) nasceu em Tóquio, de família samurai, em 14 de janeiro de 1925, filho de um oficial do Ministério da Agricultura. Formou-se em Direi-to e, depois do sucesso de seu romance Confissões de uma Más-cara (Kamen no Kokuhaku), em 1949, entregou-se à literatura e outros excessos. Sua obra compreende mais de doze roman-

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ces, Confissões de uma Máscara, Sede de Amor (Ai no Kawaki), Morte no Meio do Verão, Kinkakuji, Sei no Jida, Kinjiki, Higyo, focalizando a dissolução dos costumes tradicionais no Japão do pós-guerra. Deixou mais de uma centena de narrativas curtas. E peças para o teatro Nô e Kabuki, os estilos ancestrais do teatro nipônico (Peças Modernas para o Nô).

Em 1952, Mishima faz uma viagem à Grécia, onde, em contato com a beleza da estatuária helênica antiga, seu pessi-mismo de derrotado toma nova direção com a descoberta do próprio corpo e da “força do corpo humano exposto à luz do sol”.

Foi ator num filme de gangsters. Gravou discos. E parti-cipou de debates em programas de TV, tornando-se uma cele-bridade nacional. Uma viagem a Nova Iorque enriquece ainda mais o com-plexo de suas idéias. É quando, conhecendo o existencialismo, desenvolve o “nihilismo ativo”, doutrina na qual o suicídio apa-rece como o supremo gesto de liberdade humana.

Seu homossexualismo de tipo dórico, militar, más-culo, tinge-se cada vez mais de colorações sadomasoquistas, transparentes em seu exibicionismo narcisista de tantas fotos, onde se compraz em posar nu, a musculatura de halterofilista saltando sob a pele, a espada samurai a meio caminho entre a bainha e o olhar do observador, objeto sexual absoluto, sujeito sexual absoluto.

Em Mishima, realiza-se, em carne viva, o drama essen-cial da inter-subjetividade, no qual olhar é um ato agressivo de apropriação do objeto pela consciência de outro, no qual ser olhado é sinônimo de estar morto. No pleno exercício do existir, as pessoas são invisíveis. Só a morte lhes dá a opaca presen-ça absoluta de um objeto do mundo, de uma obra de arte, por exemplo.

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Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte, entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de sentido, condi-ção natural de todos os seres deste mundo sub-lunar. Da fase novaiorquina de Mishima são Gogo no Eiko (1963) e Sado Koshakufujin (1965). Sol e Aço, de 1970, manifesto e síntese de seu pensamento final, foi seu último livro. Com tanto texto, engana-se, porém, quem imaginar Mishi-ma como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu tra-balho literário, nos moldes erasmianos do scholar ocidental, úl-timo descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o céu e o texto, Além e Signo. Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o aço. Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazi halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais conheci-das, quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem pronto para a batalha final consigo mesmo. Que perdeu-ganhou. Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação, que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens das conversações e negociações, próprias da classe dos comer-ciantes. Mishima era “um primitivo”. Um primitivo sofisticadís-simo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma coisa pela qual vale a pena morrer. Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós? Será que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?

2 O isolamento insular e a benigna (porque buscada, não imposta) influência cultural chinesa criaram no Japão uma das

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civilizações mais originais da História, cultura de uma coerên-cia interna única. Onde todos os aspectos da vida estão (esta-vam?) integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, reli-gião, arte. Uma civilização que é, ela toda, uma gigantesca obra de arte viva de mil anos. Por isso ou por pura sorte geográfica, o Japão foi a única cultura da África, América e Ásia que escapou incólume da agressão planetária que o Ocidente gosta de cha-mar, pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de rapina da História. Assim que percebeu o que significava a chegada dos navegadores e missionários, a elite governante do Japão, o Xogun à frente, fechou o país, ferozmente, a qualquer contato com o exterior. Um ovo que só a Revolução Industrial em 1865 começou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japão foi o país não europeu que melhor soube deglutir a Revolução Industrial.

Era a integridade de uma cultura que Mishima defendia quando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de Tó-quio, escrevendo com aço na pele da sua vida as letras de san-gue que diziam: EU NÃO CONCORDO. Mishima pertence a uma espécie particular de revolta-dos, encontradiça entre os artistas: os revolucionários para trás, os utópicos nostálgicos. “Os artistas são as antenas da raça”, de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista, “progressista”, pra frente. O que talvez seja um equívoco. Nem Pound era tão “progressista” assim... Como não o eram Fernan-do Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimarães Rosa, Drieu, e, curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de ter-reno baldio por todas as instalações industriais da Itália. Mishima era um artista. E os artistas são particularmen-te sensíveis às alterações do meio ambiente.

O que não leva necessariamente a um triunfalismo fu-turista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra lá na

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frente? O progresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!) é uma invenção da burguesia dos séculos XVIII e XIX, que sempre confundiu avanço da Humanidade com a prosperidade dos (seus) negócios.3 Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviação, num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota norte-americana do Pacífico, em Pearl Harbor, no Havaí, o samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando, à sombra dos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão se rendeu, depois de anos de vitórias, senhor do Extremo Oriente. O Império do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos Estados Unidos, que desmilitarizaram o país e incluíram-no em sua esfe-ra de influência, depois de obrigar o Imperador, até ali um deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituição que in-troduzia bruscamente as instituições parlamentares anglosaxãs num país ainda meio feudal, apesar da industrialização. Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou adulto, um mundo estraçalhado, uma cultura estuprada, um campo de ruínas, algo comparável ao México dos aztecas, depois da vitó-ria de Cortez. A obsessão pela morte tem raízes nesse quadro histórico e na tradição da sua classe social, na qual o seppuku, o suicí-dio ritual harakiri, sempre foi distinção e privilégio de casta: tamanha a rigidez das relações sociais no Japão tradicional que os conflitos não permitiam negociações nem compromissos, exigindo a pura auto-eliminação dos envolvidos. Nisso, o Japão é único: não há paralelos em nenhuma civilização humana de uma institucionalização tão radical do suicídio. Nisso, a solução final de Mishima se distingue, essencialmente, do suicídio de um Maiakovski ou de um Iessiênin. De Drieu La Rochelle (pare-cido com ele, em tantos traços). De Stephan Zweig. De Virgínia

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Wolf. De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba. A auto-imolação, para ele, era uma obra de arte, algo a ser preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de uma vida, um clímax. Ou, para falar em jargão freudiano, um orgasmo de Tâna-tos. Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres, desenvolvendo os músculos, treinando artes marciais, desen-volvendo ao máximo suas potencialidades, enquanto matéria. Quando a lâmina, fazendo um L, entrou em sua barriga, naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tóquio, a morte, longamente namorada, recebia um presente régio: um corpo atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua força, como ele queria. E uma mente lúcida, cultivada, perfeita-mente sabedora do que fazia.

Em Sol e Aço, acompanhamos a luta minuciosa de Mishi-ma para ultrapassar as contradições entre corpo e espírito.

E, com ele, aprendemos que só a morte supera, para sempre, essa contradição.

4“Literatura” é um conceito (ou preconceito) ocidental

moderno, uma categoria européia, baseada na produção textual da França, principalmente com a concorrência, meio discrepan-te, da tradição anglo-saxã, milionária de valores e performan-ces textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alemã, a italiana, a russa, apesar de cumes insuperáveis, sempre fica-ram como coisa ligeiramente periférica e subsidiária. Quantos gênios e obras-primas não ficaram desconhecidos e obscuros apenas porque tiveram a desgraça de acontecer em húngaro, em sueco, em gaélico, em albanês, em íidisch, em polonês, em

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galego, em finlandês, em holandês, em tcheco, em português...Como avaliar, valorar, com critérios ocidentais, franco-

cêntricos, obra de uma literatura tão remota e autônoma quan-to a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura chinesa, mas autóctone na criação de formas como o Nô e o haiku, exclu-sivamente nipônicas? Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo. Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguar-das e modernidade. Esse quadro histórico nos é tão cômodo quanto um chinelo velho. E baseia-se na evolução da literatura francesa. Quando abordamos a literatura japonesa, porém, esse esqueminha mental que mediterrânea e subterraneamente, di-rige nossa lógica, simplesmente não funciona.

Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o Ja-pão sofreu o impacto literário de algumas novidades ocidentais. Mas só o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A literatura japonesa em geral é de caráter meio lírico, meio fantástico, do teatro à ficção, da poesia ao diário (gênero maior, no Japão).

Com seu credo de “literatura colada à vida cotidiana imediata”, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do projeto de vida burguês para dentro da literatura: o realismona-turalismo é o triunfo da razão burguesa, contábil, pragmática, imediatista, imanente. Os textos de Mishima respiram um outro tempo cultural.

Sol e Aço não sabemos dizer se é poesia ou prosa, livro de memórias ou ensaio filosófico, confissões de uma máscara que traz por trás de si outra máscara, outra máscara, outra, másca-ras sobre máscaras. Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros diários do grande haikaisista Bashô (séc. XVII). A diferença é que, em Bashô, há tristeza e melancolia por trás da beleza.

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Em Mishima, há desespero. O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na guerra.

Um desespero que quer chegar perto da vida, tão perto quanto chegou do coração do samurai aquela lâmina, naquele dia de novembro de 1970.

5Sol e Aço é, basicamente, a reflexão de um poeta e atleta

sobre as relações entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a superfície. O dentro e o fora. A vida mental e a existência cor-pórea. Para nós, ocidentais do século XX, esse tipo de reflexão não pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, ascatedrais conceptuais de Husserl, Valéry, Sartre ou Merleau- Ponty, horas e horas de cerrado raciocínio metódico tentando flagrar, com exatidão, os misteriosos matrimônios e divórcios entre o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e a selvagem liberdade do mundo que é pensado.

Mas que diferença entre as teias puramente lógicas dos mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima!

O espírito dos ocidentais pensa a matéria, o Fora. Num gesto muito mais genial, porque mais global, es-

sencialmente radical, Mishima resolve o problema transfor-mando seu espírito em matéria, matéria pensante, inteligente, quando se entrega de corpo e alma à prática do kendô, do kara-tê e do halterofilismo.

Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa. Essa sabedoria o Japão já tinha, sob a forma de “Bushi-dô”, o cami-nho do guerreiro, aquele código global de postura e compor-tamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os japoneses em geral). Um dia, no Japão, o maior dos mestres de

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haikai sentenciou:

NÃO SIGAM AS PEGADAS DOS ANTIGOS.PROCUREM OS QUE ELES PROCURARAM

No melhor estilo oriental, Mishima apenas descobriu sozi-nho o tesouro que estava enterrado debaixo dos seus pés.

6 Vírgulas. Dois pontos. Ponto de interrogação. De exclama-ção. Travessão.Aspas. Essas coisas gutenberguianas não existem no japonês clássico, onde as frases não começam com maiúscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e só terminam diante do vazio zen da página, como se todas as frases terminas-sem num precipício de reticências. A mente nipônica se move num universo material regido por leis distintas das que regem nosso mundo textual e concep-tual. Mal conseguimos conceber um universo textual onde as marcações gráficas consagradas pela imprensa não têm vigên-cia:no texto japonês nem há espaço separando cada palavra, con-tinuum ininterrupto como na fala, sílaba após sílaba forçando jogos de palavras, ressonâncias, ecos colidindo, palavras e sen-tidos se acavalando em polinômios vaporosos. Com a ocidentalização depois da Era Meiji (1867), o Japão adotou as convenções da imprensa gutenberguiana, na medi-da do possível. Mishima é um japonês do século XX, até mui-to influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis, Amiel, Yeats, Ícaro!). Mas o estilo dos movimentos do seu pen-samento acusa um acentuado sabor nipônico. As categorias da lógica de Aristóteles, hoje sabemos, eram apenas as categorias da língua grega. Outra é a “lógica” de quem

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pensa em japonês. A língua japonesa, por sua própria natureza, favorece os longos períodos, com muitos gerúndios, ligados, em subordina-ção, por uma máquina de conjunções que não correspondem exatamente aos nossos “mas”, “porque”, “se”, “logo”, “embo-ra”, “por isso”. E é nessa máquina que se monta qualquer lógica, esse sinônimo de sintaxe. Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em Sol e Aço, a lógica peculiar com que Mishima sai de um pensamento para o outro, de um fato para uma conclusão, de uma premissa para sua conseqüência. Até que ponto esse meu desconcerto vem das singularidades da língua e da lógica japonesas, até que ponto vem do próprio Mishima, não sei ao certo. De qualquer forma, quem quer que já tenha estudado uma língua muito antiga ou muito remota sabe que não existe uma “lógica universal” sobre a qual as línguas se conformariam mais ou menos: cada idioma (ou família de línguas) postu-la uma lógica particular, exclusiva, intransferível, um mini-universo fechado de significados. Palavras como “problema”, “ironia”, “lógica”, “natureza”, “hipótese”, “culpa”, “honra”, “forma”, “contradição”, “essên-cia”, “conceito”, “abstrato”, “causa”, “efeito”, “ordem”, para nós tão óbvias e indispensáveis para pensar o mundo e a vida, são apenas conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrâneos, e podem não ter equivalentes em outros sistemas lingüísticos-culturais2.

2 Conceitos são artefatos, coisas (coisas não estão sujeitas a tradução):

“Páscoa”, “filosofia”, “alienação”, “ying”, “yang”, “zen”, “jazz”, “totem” (do

ojibua, língua pele-vermelha), “tabu” (do polinésio), “jihad”, “mitzvah”, “fas-

lnefas”, “milagre”, “axé”, “domingo”, “panema”, “esprit de corps”, “românti-

co”, “júri”, “guilate”, “missa”, “dengo”, “xodá”, “harakiri”.

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Qual nossa possibilidade, por exemplo, de tradução do conceito sânscrito-hindu de “karma”? Em hebraico antigo, havia uma forma verbal que re-presentava, ao mesmo tempo, o pretérito e o futuro. Ainda em hebraico, a mesma palavra “dabar” designa “palavra” e “coisa”: como vivenciar um mundo em que palavra e coisa se dizem com a mesma palavra (ou a mesma coisa?) E que dizer das línguas, como o chinês, ou o tupi, onde não existe o verbo “ser”? O único esperanto, senhores, é a tecnologia industrial. Toda tradução, de certa forma, uma impossibilidade, é sempre uma agressão, um ato de violência, uma brutalidade: toda a mensagem deveria ser deixada em paz no idioma em que foi concebida.

7No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem

um conto, La Señora Mayor, que me lembra muito o destino que contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me lembrou La Señora Mayor? Borgeanamente, prefiro não sa-ber.

La Señora Mayor é a fábula de Maria Justina Rubio de Jáuregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da Indepen-dência argentina.

No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos, la única hija de guerreros de la Independencia que no había muer-to aún, no dizer do mais inventivo ficcionista que a América La-tina já produziu . Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de

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civismo e história pátria. Passados alguns dias, arrasada de tan-ta emoção, La Señora Mayor veio a falecer, la última víctima, diz Borges, de uma batalha que aconteceu no Peru, há quase cem anos atrás.

Mishima, suicidando-se em 1970, é a última baixa do Exército Imperial Japonês da Segunda Guerra Mundial, a guerra que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem de-mais na época. Quando Mishima pratica “harakiri”, o mundo que ele defende já é, há muito tempo, um universo de fantas-mas: o Japão é um dos países capitalistas mais avançados, alta-mente industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado, dependendo dos Estados Unidos até para sua defesa externa. Para essa morte-protesto, morte de mártir, morte de mon-ge budista se queimando vivo no Vietnã, Mishima se preparou durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhação. De de-gradação nacional e raiva impotente. De ódio surdo e dentes cerrados. Anos de estupro, invasão e ocupação.

Anos de muito texto, romances, contos, peças de teatro. Mas, sobretudo, anos de sol e de aço: anos de halteres, de

milhares de quilômetros corridos, de flexões, de apoio de frente sobre o solo, de suor saindo com a força com que sai o sangue de uma veia cortada.

De morte, não. Sol e Aço é uma afirmação da vida. De uma vida tão tensa e tão forte que só o Fim poderia ser o Signi-ficado.

Nem venham com esquemas Freud-psicanalíticos sobre a obsessão de Mishima pelo suicídio. De que valem esses esque-mas no interior de um grupo social onde o suicídio não é um fenômeno patológico, uma carência, mas o sinal de uma pleni-tude, como entre os antigos filósofos estóicos gregos e romanos, que viam na auto-imolação uma afirmação dos poderes da cons-ciência sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Maso-

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quismo. Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em “ismo” com que tentamos dar algum sentido à nossa pobre vida feita de alguns lucros e vagas esperanças não fazem nenhum efeito quando batem nos mús-culos poderosos de Sensei Mishima. Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencíveis.8 Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no aço das es-padas e halteres, entre o doentio da razão pura e os esplendo-res da pele bronzeada e dos músculos conduzidos a seu máximo desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, às mil maravilhas, com as sinuosidades da língua japonesa que, ao contrário da chinesa, dura, seca e simétrica, parece se com-prazer em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso, donde extrai sua beleza específica, uma formosura, digamos assim, olfativa, atmosférica, ambiental, em fluida luta contra a morte que o conceito puro representa. O texto de Mishima é todo perfumado de parece-me, tive a impressão de que poderia sentir, nada mais me restava a não ser entregar-me ã necessidade de vir a pensar que, formulações extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refrações como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquidão totalitária de um o homem é uma paixão inútil, a religião é o ópio do povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Luís XIV, o estilo ocidental de emitir o conceito, lapidar concisão herdada da dura lex sed lex do latim, idioma de legisladores e adminis-tradores, nossa mãe e superego.

O que Mishima apresenta não é uma generalidade. É uma experiência pessoal, intransferível como uma dor de den-te, como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo.

Sol e Aço: a luta com as palavras. A luta com as armas. A

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luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol.O texto/testamento do samurai está à altura do gesto.

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Paulo Leminski

lennon rindo

business manmake as many business

as you canyou will never know

who i amyour mother

says noyour fathersays never

you’l never knowhow the strawberry fields

il will be forever(Caprichos e Relaxos)

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1“que pode

um pobre rapaz pobre fazera não ser

cantar numa banda de rock?” (Mick Jagger, dos Rolling Stones, “Street Fighting Man”)

Este livro são dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas mis-celâneas de textos de natureza vária, flash-contos, esboços de peças, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todos marcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao absurdo por um humor sarcástico e cínico. Quando os escreveu, John estava à frente de uma banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles, trocadilho que ele inventou, montando beetles, “besouros”, em inglês, com beat, “batida de percussão”, e, certamente, beat generation, beatniks.

Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente, o impacto da criatividade de Bob Dylan, músico, escritor e de-senhista como ele. Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais sofisti-cado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as coisas, “ouvindo Dylan, descobri que letra de música não precisa ser papo furado”, confessou o beatle que, no princípio, assinava le-tras que diziam apenas “I Want To Hold Your Hand” ou “She Loves You”.

Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia fa-zer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. E, daí, partiria para o vôo solitário de Imagine, Mind Games, até o maravilhoso e fatídico Double Fan-tasy.

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Lennon foi figura de proa numa geração que produziu, entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças (Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano Ve-loso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo, pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das trans-formações, artistas abertos a outras artes, agitadores culturais, bons de som, de poesia e de conceito.

Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no qua-dro da criação textual da segunda metade do século XX. Pela linguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical dos prosadores do século, o Joyce das inovações de Ulysses e das montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saí-ram, os livros de Lennon foram traduzidos para várias línguas. E consta até que, na Finlândia, traduziu-os o próprio tradutor finlândes de Ulysses.

O “walrus”, porém, declarou que, quando os escreveu, não conhecia Joyce. Sua fonte maior de influência era o Lewis Carrol, da Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, influência fundamental sobre Joyce. A ser verdade essa declaração, Lennon saiu da mesma fonte do pai do Wake. Daquele bizarro professor de matemática que gostava de fotografar menininhas, tinha o estranho hábito de acasalar palavras em híbridos que chamou de portmanteau words, pa-lavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o senhor de todas as lógicas.

2“o humor é a vitória do ego

sobre o princípio da realidade”(Freud)

“quem não tem senso de humor

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nunca vai entender a dialética”(Brecht)

O humor da linguagem, traço muito inglês de Lennon e o grande obstáculo para o tradutor, depende de alguns recursos-chave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum atra-vés da alteração da expressão idiomática. Mas também através do bizarro e do inesperado na lógica ficcional.

Além disso, John é muito chegado numa de alterar, a seu babel prazer, a grafia das palavras, criança que estivesse brin-cando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das pa-lavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, é a especiali-dade de Renato Aragão, o maior palhaço brasileiro vivo, exímio em arrancar as gargalhadas que se dá diante da informação nova, com uma alteração arbitrária do modo de dizer as pala-vras, graça fonética do Didi dos Trapalhões.

Como amostra de estranhamento do lugar-comum, valha o próprio título dos dois livros de Lennon. No primeiro Lennon On His Own Write, acontece a superposição de duas ex-pressões: “in his own right”, no seu direito, e “in his own writ-ting”, com seu próprio punho, montagem que procurei traduzir para “Lennon Com Sua Própria Letra”. No segundo, o jogo é ain-da mais complexo: A Spaniard In The Works, “Um Espanhol Nas Obras”, é, na realidade, uma corruptela da expressão idiomática “a spanner in the works”, ao pé da letra, “uma chave-de-fenda nos mecanismos”, mas que designa uma dificuldade súbita, um obstáculo que não estava nos planos. Alguma coisa que tem que ver com as origens da palavra francesa sabotage. Em francês, sabot é “tamanco”. E sabotar, na origem, é “jogar um taman-co para danificar o mecanismo de uma máquina”. Tanto a ex-pressão inglesa “a spanner in the works”, quanto a sabotagem francesa pertencem ao mundo da Revolução Industrial, e tra-zem conotações de luta de classes, “ludditas”, entre operários,

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os patrões e suas máquinas1.

1 A partir do nome John Ludd, que teria destruído máquinas têxteis por volta

de 1780, a expressão “ludditas” designou os membros de um movimento

operário inglês (1811) que se organizou para destruir as máquinas das fábri-

cas onde trabalhavam, já que elas provocaram o desemprego e a diminuição

da qualidade dos produtos.

“A spanner in the works”: (botar) Formiga no Pudim (de al-guém), uma mosca na sopa, por essa você não esperava,

uma pedra no caminho?

Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o imbatível (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho.

3O específico do discurso de Lennon parece ser uma sub-

versão sistemática dos códigos de registro da escritura, bem dentro do juvenil espírito de quebra-quebra que caracterizou os anos 60.

John não escreve errado: ele, moleque, escreve “erros”. E subverte a grafia dos vocábulos, introduzindo neles ruídos ar-bitrários, grafitti, deformando a gestalt ortográfica das palavras deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstícios das fra-ses. Uma escrita “fria”, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa, como a TV, que convida à participação.

Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beat-le faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os lugares-comuns. E, trapalhão, atrapalha todo o andamento do trabalho: uma gota da baba de Dadá, no comportamento tex-tual do “Working Class Hero”.

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Nenhuma fórmula verbal escapa da verve cínica e sar-cástica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, “somos mais populares que Jesus Cristo”.

O conto. A anedota. O poema. A estória da carochinha. De detetive. A peça de teatro. A carta do leitor. A entrevista. O anúncio. A frase de TV. A notícia de jornal. A canção de ninar. Um Atrapalho é caleidoscópio de todas as formas verbais imagi-náveis, erodidas e erotizadas como paródia.

Mas o humor do “Nowhere Man” não é um bom humor.É a graça que nasce do azedume (não há sexo na prosa

de Lennon).Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a esta-

dos caógenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligível e o ininteligível (“Dividido Davi”, “Os Famosos Cinco Através das Ruínas de Eagora”, “Linda Linda Cremilda”, “Mr. Boris Norris”, “Elerico e Eurique”), o desfecho é sempre trágico ou melancóli-co, com toques às vezes sádicos e mórbidos, teratológicos.

O beatle máximo era, hoje sabemos, um “maior abando-nado”, aquela pessoa profundamente insegura, poço de angús-tias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria mun-dial em escala nunca vista.

4“For the benefit of Mr. Kite

there will be a show tonight on trampoline.The Hendersons will all be there

late of Pablo Fanques Fair — what a scene”(“Being for the benefit of Mr. Kite”, LP “SgtPeppers”)

O universo ficcional do “fool on the Hill” está superpo-voado de nomes próprios, onoma-personagens que só existem porque têm um apelido, como se o beatle quisesse encher seu

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mundo de gente, dando uma festa textual, criações da fantasia de Lennon, nomes burlescos, portando segundos sentidos, tro-cadilhos onomásticos, “rabelaisianos”.

Sua tradução oferece problemas particulares. Diante de mim, duas opções extremas: traduzi-los todos

ou mantê-los na íntegra, em inglês. Nada impede que se verta “Judro Bathing” por Germano

Amano ou “Large John Saliver” por Zé Grandão Gouveia. O problema é que, traduzindo todos os nomes, o texto ia

ficar brasileiro demais, jagunço, perdendo um sabor britânico que é essencial em Lennon. Saí da dificuldade optando pela solução média: ora tra-duzir, ora não traduzir os nomes próprios, o que só acrescenta estranheza a estes textos ínvios. Tenho certeza que Lennon aprovaria minha decisão. Afinal, é para ele que estou tendo esse trabalho todo.

5“Mal e mal possuímos os rudimentos de uma teoria

da tradução, de um modelo de como funciona a mente quandopassa de uma língua a outra. A o falar da tentativa de tradução

aoinglês de um conceito filosófico chinês, o lingüista I. A. Ri-

chards feza seguinte observação: é possível que aqui estejamos em pre-

sençado tipo mais complexo de evento até agora ocorrido na histó-

ria douniverso.”(Georg Steiner, Extraterritorial)

Casos-limite como o da prosa de Lennon forçam o em-prego de uma modalidade particular de tradução. A co-criação. A trans-criação, diria Haroldo de Campos. Nesses casos, uma

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tradução apenas pelo sentido é a pior das traições. Para fazer justiça ao teor de surpresa do texto original, precisa descriar e reproduzir os efeitos materiais, gerando análogos, universos sígnicos instavelmente paralelos, ora secantes, ora tangentes, à figura original.

O que as línguas têm de mais próprio é intraduzível, como a poesia, é a poesia dos povos, suas expressões idiomáti-cas, aquelas que ou você entende no original, ou adeus. Poesia, afinal, não tem sinônimo.

Traduções criativas, re-criações, são as mais idôneas (e enriquecedoras) quando devidamente acompanhadas de cote-jos entre o texto de origem e o texto de chegada.

O ideal é sempre, como aqui, uma edição bilingüe, uma pedra da Rosetta.

Em Um Atrapalho, reduzi a um mínimo as notas ao pé da página para não tirar a fluência da leitura nem o leve espírito juvenil que anima a criatividade “primitiva” do beatle.

Quem acompanhar, porém, o original com este análogo, vai ver que não pulei por cima de nenhuma dificuldade, achan-do jeito de passar para o brasileiro todo e qualquer efeito do texto de Lennon.

6“... it’s like a portmanteau... there are two meanings

packed up in one word”. Assim definiu Lewis “Humpty Dump-ty”

Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, asuperpalavra com dois sentidos vivendo dent

WAntonin Artaud teve uma relação freudiana de amorrepulsa. Artaud chegou a começar a tradução de L’Arve et L’Aume, como ele verteu Jabberwocky: “Il était roparant, e les vliqueux tarands Allainet en gi-broyant et en brimbulkdriquant...” Não passou da primeira estrofe.

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Artaud perdeu. E declarou: “Nunca gostei desse poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...”, “(...) o Jabberwocky não tem alma”. Natural esse desentendimento. Afinal, Artaud era um es-quizoparanóide. Carroll, apenas, um neurótico. Alice enfrenta Jabbe-rwocky, ou Jammerwoch, ou Jaseroque, Jaguadarte, ou Gaberbocchus, ou Urrofruto, o monstro da linguagem que faltou no Manual de Zoolo-gia Fantástica de Jorge Luís Borges (gravura de JohnTeniel para o texto original de Through the Looking Glass, tradução de Sebastião Uchoa Leite, ed. Fontana/Summus, 1977).

A primeira estrofe, na trans-criação de Augusto de Campos,

Era briluz. As lesmolisas touvasRoldavam e relviam nos gramulvos.Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos,dá bem uma idéia do que é uma palavra portmanteau em ação. No primeiro verso, em inglês, “deslesmolisa”, a palavra slithy, montagem de lithe, “ágil” e simy, “viscoso” (Carrol pega, alhu-res, as palavras snake, “cobra”, e shark, “tubarão”, e monta a palavra snazrk, onde as duas imagens ocupam o mesmo lugar no espaçotempo).

Não tenho notícia de antecedentes para isso em qual-quer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser uma invenção de Lewis Carroll.

O princípio de síntese e velocidade que ela representa tem muito a ver com a velocidade das máquinas da Revolução Industrial, que explode na Inglaterra no século XIX.

Convém acrescentar que a língua inglesa sempre teve uma tendência natural para a produção desses híbridos. A fi-lologia desconfia, inclusive, que o verbo bash, por exemplo,

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“amassar”, resulta do cruzamento dos verbos bang, “percutir” e smash, “esmagar”. O verbo clash seria o encontro dos verbos clang e crash. Flurry, “agitação”, um misto de fluster, “excita-ção”, e hurry, “apressado”.

A imprensa londrina do início do século cunhou a pala-vra-montagem smog, mistura de smoke, “fumaça”, e fog, “ne-blina”, para designar a espessa nebulosidade que envolveu a capital da Inglaterra na época. E a palavra pegou e ficou.

O verbo chortle, “rir alto”, é uma palavra-montagem de Carrol (chuckle sobre snort), que o uso e os dicionários adota-ram e legitimaram.

Portmanteau é “motel”, onde o motel e o hotel se encon-tram como duas paralelas, infinito mistério do amor entre sons e sentidos.

Entre nós, palavras como “salafrário”, “barafunda”, “estapafúrdio”, “geringonça”, “espalhafato”, “escalafobético”, “lambisgóia”, “sorumbático” parecem apontar para essa dire-ção.

Se, no Brasil, é espécie relativamente nova como recurso literário, a palavra-montagem não é rara na linguagem popular, oral, no linguajar despoliciado, na fala, na gíria, lugares onde ela é uma das maneiras que a língua utiliza para enriquecer seu vocabulário.

“Estrambólico”, na fala brasileira, designa alguma coisa fora das normas, estranho, esquisito, singular, bizarro, extrava-gante, irreal.

Vem do italiano strambotico, de strambotto, o terceto a mais que se acrescentava a um soneto completo para continu-arlhe o sentido. E a quebra da métrica.

No Brasil, aclimatado, o vocábulo italiano sofreu a in-terferência de uma série “bola”, e virou o portmanteau natural

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“estrambólico”. O fenômeno da “etimologia popular” é responsável por

um bom número de “palavras-valise” “naturais”. Na palavra “sumitério”, comum na zona rural, percebe-se que o falante vinculou “cemitério”, palavra grega estranha ao seu universo verbal, ao verbo “sumir”, que lhe é familiar e cotidiano.

As parlendas infantis e a liberdade carnavalesca da lin-guagem jocosa criam outros. Para causar riso, gente do povo deforma “observar” em “urubu-servar”.

“Presunto”, a palavra da gíria policial carioca para de-signar o prisioneiro executado por Esquadrões da Morte, é um sinistro portmanteau de “preso” e “defunto”.

“Bofélia” é “mulher feia”, misto de “bofe” com “Ofélia”. E a montagem de palavras é cada vez mais corriqueira

na onomástica popular brasileira, onde Florisvaldo é filho de Florisbela e Oswaldo, Claudionor, filho de Cláudio e Leonor, Di-vonei, filho de Diva e Nei.

Hoje, por fim, seria infinito enumerar todas as palavras-montagem que dão nome a produtos industriais, empresas, es-tabelecimentos comerciais, serviços especiais, repartições pú-blicas, programas de rádio e TV, LPs, shows, as coisas do mundo urbano-industrial.

Ver as montagens que a publicidade cria todo dia: tran-qüilometragem, primaverão, sexacional.

A palavra-montagem é mais “natural” do que uma men-te conservadora poderia imaginar.

Montagens por justaposição (lado a lado) são recurso comum nas línguas indo-européias. Em sânscrito, é possível montar superpalavras de até 20 componentes. O grego clássi-co, se não chega a tanto, permite a montagem de palavras com até cinco componentes. Em latim, o comediógrafo Plauto pode cunhar superpalavras como thesaurocrypsonichocrysides, e

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outras tão vastas. É quase proverbial a capacidade da língua alemã de permitir a montagem de compostos complexos como weitanschauungenwahlverwandtschaften para dizer “afinida-des eletivas entre as visões do mundo”.

As línguas neolatinas não herdaram essa riqueza (que já não era muito forte em latim). O italiano, o francês, o espanhol, o português são línguas analíticas, onde essas macrocombina-ções de palavras soam estranhas e artificiais.

Mas, em todos esses casos, trata-se de montagens por justaposição.

Ora, um portmanteau é uma montagem por superposi-ção (sobre-impressão).

Duas palavras são projetadas uma dentro da outra, pro-duzindo uma terceira, nova totalidade, uma unidade poemática.

Entra muito de acaso e de sorte na confecção de um port-manteau feliz.

Tudo depende das possibilidades sonoras e semânticas da língua com que se lida.

Nesse sentido, o portmanteau compartilha o destino da rima e do tracadilho, dois efeitos rigidamente determinados, idiomaticamente falando.

Quando monto “insensatisfeito”, dependo da existên-cia em português das palavras “insensato” e “satisfeito”, e das coincidências sonoras que apresentam. Ou quando faço “uni-versário”, “plânico”, “opóstolo”, “fecundário”, “guerrilhotina”, “arquívoco”, “pornomenores”, “manusgrito”, “estratejitória”, “redondavia”, “hospitálculo”, “rodopiária”, “empenhasco”, “demoquátrico”, “ativitudes”, “gritantesco”, “ostranauta”, “li-teratorturas”, “cometalinguagem”, “obgestos”.

Para encontrar algo parecido, tem que procurar na lite-ratura japonesa, onde um efeito chamado kakekotoba, “palavra pendurada”, desempenha papel nobre na poesia lírica e na lin-

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guagem do teatro Nô. “O kakotoba não é, exatamente, um trocadilho. É mais a

passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela dei-xando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade.” (Bashô — A Lágrima do Peixe, Paulo Leminski, p. 39).

Na expressão shiranámi por exemplo, “brancas ondas”, em japonês, uma mente nipônica pode captar uma alusão a shi-ránu, “desconhecido”, ou a namida, “lágrimas”, num só gesto de leitura. No kakekotoba, o processo de dupla (ou tripla) lei-tura é “natural”, produzido pelo próprio modo de ser da língua japonesa.

Já o portmanteau é um artefato, um produto do fazer hu-mano, como um poema, como o mínimo poema que é.

Neste século, Joyce viria a empregar a invenção de Car-roll como o principal recurso de linguagem do Finnegans Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece, onde pontificam camiba-listics, aeropagods, brasilikerks, allbegeneses, joyicity e outros portentos de linguagem, produzidos aos milhares pela inesgo-tável criatividade verbal do gênio irlandês.

A spaniard in the works in progress, saindo diretamente de Carroll e do Jabberwocky, John Lennon trouxe o portman-teau das culminâncias máximas de alta literatura rara para as planícies da cultura pop. Um portmanteau beat. Ou beatle.

Na prática textual brasileira, a história do portmanteau pode muito bem começar com o sex appeal-genário Oswald de Andrade, das nada “tris-tris-tristes” Memórias Sentimentais de João Miramar. Ganha status de jagunço poliglota com o “hipos-trélico” Guimarães Rosa das “engenhingonças”, “perséquitos”, “malandrajos”, “descrevivendo”. Resquícios de ouro no aurita-birano Drummond da Lição de Coisas ou do poema “Os Mate-riais da Vida”. A história atinge o clímax com os “equivocábulos” da poesia

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concreta paulista (que influenciou Lição de Coisas). As trans-criações de trechos do Finnegans Wake, feitas pelos Irmãos Campos. O Livro das Galáxias, de Haroldo de Campos (“servissalário”, “cabaleulístico”, “sobrescravo”). E deságua na música popular em letras do “acrilírico” Caetano Veloso (“Ou-tras Palavras”, “homenina nelparaís de felicidadania”) e de Gil-berto Gil, tantas vezes “zanzibárbaro”, duas vezes Gil, anfíbio Logunedé.

Em 1975, publiquei o “Catatau”, monólogo cartesiano, que me tomou oito anos, onde o portmanteau desempenha pa-pel principal.

Nem é preciso ser profeta para sentir que a “palavrapor-ta- palavra” veio pra ficar, um recurso afim à era da compressão da informação, das micro-células portadoras de macro-infor-mação, das distâncias mínimas em velocidades máximas. Zune algo de informático-eletrônico nesse recurso, que a retórica e a estilística antigas não conheceram, espécie de retrato verbal (holográfico) da nossa época.

Quanto a Caroll, sua prática do portmanteau não pode ser distinguida de outras singularidades deste padre-matemá-ticofotógrafo.Deste reverendo que desenhava figuras que, de pontacabeça, davam outro desenho. Escrevia cartas no espelho, ao contrário. Ou as começavam pela última palavra, a penúltima, a antepe-núltima, e assim por diante, às avessas, na direção contrária.

Enxadrista, Carroll (ou Dodgson) era muito hábil em prestidigitação. Colecionava caixinhas de música que adorava tocar de trás para diante. E espelhos com defeito, que deformas-sem a imagem.

Como matemático, gostava de tratar “classes nulas” (um conjunto sem membros) como coisas existentes: “ninguém”, para Carroll, podia ser um personagem.

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Uma mente de vanguarda, moderníssima, perdida (ou achada?) na Inglaterra vitoriana.

7Muita coisa do espírito infantil e jocoso de Carroll, de

Joyce e de Lennon está ligada a duas formas da literatura oral inglesa: as nursery rhymes e o limerick.

Nursery rhymes são poemas ou histórias metrificadas para crianças.

Hickory,dickory,dock,The mouse ran up the clock.

The clock struck one,Themouse ran down,

Hickory, dickory, dock.

Ou:Pat-a-cake, pat-a-cake, baker’s man,

Bake me a cake as fast as you can.

O limerick é um pequeno poema humorístico, de cinco linhas, esquema de rimas normalmente AABBA, com umase-mântica em grau de nonsense.

There was a young lady of Riga,Who rode with the smile of a tiger.

They returned from the rideWith the lady inside,

And the smile on the face of the tiger.

Neste limerick, o duplo sentido (double-entendre) é o próprio tema:

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There was an old man at BoulogneWho sang a most topical song,

It wasn’t the wordsWhich frightened the birds,

But the horrible double-entendre.

Limerick, nome de uma região da Irlanda, foi dado a essa forma a partir de um espécime que começa dizendo

Will you come up to Limerick?, dito ou cantado em ocasiões festivas, comilanças ou bebedeiras.

Desse espírito de saudável nonsense, saem os poemas, que emergem, aqui e ali, ao longo de Um Atrapalho.

Ora, só o sentido pode ser traduzido. O sem-sentido é opaco como uma escultura abstrata, um passo de dança ou um happening, coisas que só significam a si mesmas.

Felizmente, “poetry is to inspire”, disse Bob Dylan. Do nonsense de Lennon, às vezes em puro grau zero de

sentido, extraí apenas a espessa noite semântica que presidiu minhas transcriações, braçadas desesperadas do nadador que afunda nas confusas águas do in-significaldo.Às vezes uma sombra de método atravessa a loucura de Lennon.

Em “The Faulty Bagnose”, “A Falsa Amordaça”, vislum-bra-se um clima de crítica à hipocrisia eclesiástica, pelas alu-sões religiosas que cercam o “Mungle” (pilgriffs, religeorge, bless, bless the loaf, give us thisbe our daily tit).

A estratégia do tradutor, nesses casos, é pegar o espírito geral da coisa e se atirar de cabeça na aventura, pedindo socor-ro, aqui e ali, a uma palavra, um conceito, um jogo de palavras do original.

Foi o que fiz, fiel, infiel, à irregular métrica regular dos contra-sensos poéticos do beatle, onde a lógica é substituída à altura por valores puramente rítmicos e musicais.

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8Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece radi-

calizar seus processos (palavras-montagem, deformações orto-gráficas, anomalias sintáticas, arbitrariedades morfológicas). “Silly Norman”, já no final do segundo livro, “Simples Mendes”, foi a ficción que mais me deu (a) trap/balho. O texto de base, que fornece o fio da intriga, está quase irreconhecível, inscri-ção antiga corroída por uma pesada estática, hendrix-distor-ções no material verbal (quem reconheceria “what can I do”, naquele “wart canada”?), como ler tanta fumaça dentro de ta-manha neblina?

Trans-duzindo, é claro.

9A integração nipônica, antes de Ioko, entre desenho e

texto, como num haikai. A recuperação de um espírito “infan-til”, caligráfico, que lembra Oswald de Andrade ou o Maiakowski das cartas a Lili Brik, que Maiakowski assinava com o ideogra-ma naïf, ingênuo, de um cachorrinho. O caráter pop-urbano-cosmopolita da coisa de Lennon, que pressupõe o cinema, os quadrinhos, o cartum. O desprezo pelas formas canonizadas do sistema literário vigente, com suas espécies definidas, o roman-ce, a novela, o conto, a crônica, a poesia lírica, o ensaio.

Os livro-livros de Lennon são uns cadernos de textos e desenhos de natureza heterogênea, coerentes apenas naquilo que são fragmentos de uma mesma explosão.

John Lennon, “um atrapalho no trabalho”: a unidade não é mais possível. Rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída.

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10Existe alguma coisa de propositalmente desajeitado,

awkward, clumsy, gauche, na linguagem de Lennon. Como se, como Oswald de Andrade, ele temesse escrever “certo demais”. Só isso bastaria para fazer dele um escritor de relevo, num mun-do, como a literatura, onde ainda e sempre acabam imperando a frase certa, a gramática “correta”, a ortografia ortodoxa e os efeitos garantidos, o terno e a gravata.

Mas só as estrepolias, peraltices e malcriações de lingua-gem não bastariam para definir a arte textual do beatle.

É genial sua fantasia fabular e ficcional, capaz de urdir enredos e pequenas intrigas com ingredientes ínfimos, sem-pre sob o signo do imprevisto tragicômico. Através de um es-pírito lúdico, muitas vezes, aparentemente, destrambelhado e arbitrário, passa todo o sopro do nosso tempo: a irreverência de uma época postutópica, cética, crítica, cínica, que já riu de todos os deuses, e transformou a vida em espetáculo e show, enquanto The Day After não vem.

Na prosa de Lennon, está toda a Inglaterra careta, onde a Beatlemania e a revolução dos jovens caiu como uma bomba H. A galeria dos pais e senhores, que pensam conhecer o signi-ficado da vida.

A mediocridade canalha da vida política (“General Erec-tion”).

A mediocridade doméstica do dia-a-dia da pequena clas-se média.

As mães megeras. Os homens de negócios e pais operá-rios que não sabem que tudo mudou e que os filhos adolescen-tes riem de seus códigos de postura, sua moral, sua tabela de objetivos na vida, as filhas menores fazem sexo grupal, os filhos dão a bunda e tomam pico, todos candidatos a uma “Magical Mistery Tour” em direção a “Strawberry Fields”, como mem-

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bros groupies ou tietes de uma das “Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, que pululariam às centenas de milhares.

O garotão de origem operária que fumou maconha no banheiro do Palácio de Buckingham, um pouco antes da Rainha condecorar os Beatles com a mais alta comenda do Reino Unido, brincava em serviço.

E brincava alto, brincava pesado, brincava leve, brinca-va brabo, brincava lindo, Lennon rindo. Vamos brincar com ele

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Paulo Leminski

Ferlinguete-se!

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1Um filme, “The Last Waltz”, dirigido por Martin Scorse-

se, a turnê/show de despedida da The Band, a banda que acom-panhou Bob Dylan durante anos.

Apocalypse now, the dream is over, “la banda está bor-racha”, uma parte do sonho morria ali naquele palco cheio de estrelas, algumas legítimas, Joni Mitchel, algumas de menos quilates, Neil Diamond, e amigos, muitos amigos de Dylan e de tudo que Dylan representou: o enterro de um faraó.

No meio do show final, apoteose-orgasmo-agonia, num momento de silêncio, de repente, entra no palco aquele velhi-nho magro e alto, cabelos totalmente brancos, andando muito lento, chega no microfone e lê um poema em inglês incompre-ensível, cheio de esses e erres carregados, como na fala de um irlandês.

Quem é, quem não é, era Lawrence Ferlinghetti. Tinha vindo ler um poema em inglês arcaico, em anglo-

saxão antigo, para os seus netos, seus queridos netinhos, grande coisa insignificante. E se retirou, tão irreal quanto viera.

Primeira e última vez que vi Ferlinghetti.

2Em “A Coney Island Of the Mind”, predominam os longos

poemas orais, que é de rigor imaginar recitados em enfumaça-das salas meio existencialistas, contra um fundo de jazz, Charlie Bird Parker, quem sabe?, um bongô solitário marcando o com-passo.

Os longos poemas falam, o apodrecimento do sonho americano, a solidão urbana, o consumismo desenfreado, a fé nas promessas traídas, tudo podia ser melhor.

Tudo isso numa linguagem assimétrica, solta, “prosai-ca”, o discurso “beat”, neo-romântico, ligeiramente surrealista.

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Nem se pense, porém, que a poesia de Ferlinghetti é puro derramamento verbal, sob o signo da entropia, o “enxa-me de sentimentos inarticulados”, que Ezra Pound desprezava, e que parece ser o estereótipo, a opinião pública sobre a poesia “beat”. Sobre isso, o próprio Ferlinghetti se equivocava nesse “PoesiaModerna é Prosa”, constante do “Work in Progress”, en-saiotentativade reflexão teórica, tão cheio de intuições ilumina-das quanto de limitações: sua poesia é muito menos “prosa” do que ele imaginava.

Pegue um poema de “A Coney Island Of The Mind”, como, digamos, “The Pennycandystore Beyon The El”, que tra-duzi como “A Loja de Bombom Barato Além do El”, basta pegar um poema como esse para ver de quanta artesania e domínio da matéria verbal Ferlinghetti é capaz (e, afinal, para que servem os poetas a não ser para escrever melhor, mais fundo, mais exa-to,mais inesquecível que todo mundo?).

O fluxo verbal de Ferlinghetti é rico de todos os efeitos que fazem de uma frase poesia e não prosa, ecos sonoros, refle-xos fonéticos, paralelismos, aliterações, alto grau de fusão do magma verbal.

The pennycandystore beyond the Elis where I first

fell in lovewith unreality

A rima interna entre “El” e “fell”. O atrito entre “first” e “fell”. O jogo de L entre “El”, “fell”, “love” e “unreality”. Decidi-damente, isto não é prosa.

A escritura poética de Ferlinghetti é mais “savante” do que ele a julgava xavante.

Que dizer do sinfônico arranjo fonético de dois versos como:

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Jellybeans glowed in the semi-gloomof that september afternoon?

Ou daquele momento supremo?A girl ran in

Her hair was rainy

Como não ouvir a coerência interna das moléculas fonéticas destes dois versos? Quem não vê que, entre tantas tranças, “ran in” esta dentro de “rainy”?

Ou aquilo:Her breasts were breathless,

que eu teria feito melhor traduzindo por

Seus foles sem fôlego,

isso, é claro, se eu não tivesse certos compromissos e responsa-bilidades de sentido que nunca nos deixam, a nós, tradutores, fazer o que queremos, em matéria de música.

Desafio aqueles que pensam que traduzir poesia “beat”seja apenas questão de verter “sentidos”, não trans-criação, a me passar para o vernáculo coisas como estas do poema “En-dless Life”,

Brave the beating heart of flaming lifeits beating and pulsings and flame-outs,

apenas (?) pelo sentido, passando por cima da fina tapeçaria harmônica no acorde de B/FL/P/PL/FL: traduzir não é deixar mais barato, nenhum original merece ser passado para um re-pertório mais baixo, cultura é subir crescendo, para o mais rico, o mais raro, o mais forte, o mais radioativo, “para que luza sobre

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todos os que estão na casa”. Poesia é uma coisa muito material, afinal, o espírito da

matéria, aquele espírito que, no fundo, a matéria é, ou não? No meio, de repente, algo como “Dove Sta Amore...”, raro

momento de raro construtivismo, pedra no caminho do tradu-tor:

Dove sta amoreWhere lies laveDove sta amoreHere lies love

The ring dove loveIn lyrical delight

Hear love’s hillsongLove’s true willsongLove’s low plainsongToo sweet painsongIn passages of night

Dove sta amoreHere lies love

The in dove loveDove sta amoreHere lies love

The ring dove loveDove sta amoreHere lies love

Não é qualquer poeta que consegue esse fantástico tro-cadilho bilíngüe entre “dove”, onde, em italiano, e “dove”, pom-ba, em inglês, onde está a pomba, a doce ave de Vênus, a deusa do amor? “Hillsong”, “wilsong”, “plainsong”, “painsong”, é des-se Ferlinghetti que eu vou lembrar sempre, capaz de uivo ecapaz de silêncio.

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Paulo Leminski

o uivo e o silêncio

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1A poesia “beat” é uma vanguarda?

Se considerarmos o Uivo (Howl) de Ginsberg (1956) como uma espécie de manifesto (manusgrito, obgesto) da po-esia “beat”, ela é praticamente contemporânea da Poesia Con-creta brasileira, cujo Plano Piloto é exatamente de 1958.

No Brasil, em 1956, Décio Pignatari fazia “Terra”, Harol-do de Campos dava à luz seu “SI LEN CIO” e Augusto de Campos compunha “Tenso”. Nunca os astros de Estados Unidos e Brasil estiveram em tão rigorosa oposição.

Lá, a vanguarda, representada por um Ginsberg, um Fer-ling11hetti, um Corso, passava-se numa pauta oral.

Aqui, a vanguarda concreta representava, sobretudo, uma radicalização da dimensão visual da poesia.

A poesia concreta é o “poster”, o “out-door”, os anúncios luminosos, e, hoje, o vídeo-texto.

A poesia “beat” é o recital, o poema feito para ser falado, caudalosas torrentes esperando uma voz.

Duas poesias, duas vanguardas: duas médias distintas? Outras coisas, ainda, distinguem as duas.

A poesia “beat” é indissolúvel de um gesto comporta-mental, que foi a vida “beatnik”, da qual é a legítima expressão lírica.

A poesia concreta brasileira resultou de um trabalho in-telectual, realizado com alta ênfase na racionalidade, nas fron-teiras entre a arte e a ciência. Uma textosignovisão global.

E produziu sua própria teoria, a reflexão sobre si mesma, o aprofundamento do ser-poesia, enquanto signo, enquanto có-digo, enquanto matéria e consciência de linguagem.

Já a poesia “beat”, pela própria natureza da sua propos-ta, não poderia produzir teóricos nem ensaístas. E seu alcance e

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abrangência intelectual é, necessariamente, menor do que a da poesia concreta brasileira, sua contemporânea.

A título de paradoxo, daria para constatar que, nesse mo-mento, a poesia norte-americana buscava o que o Brasil, país de analfabetos, tem de sobra, a oralidade. E o Brasil, ao contrário, no setor mais radical da sua poesia, buscava aquilo que a civi-lização tecnológica norte-americana produzia de mais vivo, na área de comunicação de massas. Estranhas inversões, destinos cruzados.

Com tudo isso, a poesia “beat” produziu, sim, poetas e poemas de primeira qualidade.

Ginsberg, Ferlinghetti e Corso são vozes que, enquanto a alma humana tiver ouvidos para “a voz que é grande dentro da gente”, não vai faltar amor pra eles.

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Paulo Leminski

jarry, supermoderno

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1A folhas tantas do seu Manifeste du Surréalisme (1924),

André Bréton rascunha um esboço de árvore genealógica do movimento da “escrita automática” e do sonho acordado, de que sempre foi uma espécie de Papa:

“Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral.

Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência.

Jarry é surrealista no absinto.”

Alfred Jarry (1873-1907), porém, foi mais que um sim-ples bebedor da terrível bebida, quase psicodélica, que levava os poetas ao delírio, antes de matá-los em algum sanatório.

Antes de morrer, aos 34 anos, ele teve tempo para deixar atrás de si uma esteira de lendas de excentricidade e extrava-gância, a Patafísica, “ciência das soluções imaginárias”, meia dúzia de livros e uma contribuição definitiva para a história do teatro, na figura do “Ubu Rei”.

Dramaturgo e teatrólogo, como é mais conhecido, Jarry é precursor das práticas teatrais mais avançadas do século XX, o século em que, sob o impacto do cinema, do circo e do tea-tro exótico (Nô, Kabuki), Meyerhold, Piscator, Brecht, Antonin Artaud, Beckett e Ionesco dariam nova vida à arte de Sófocles, Shakespeare, Racine e Ibsen.

Seu ensaio De l’Inutilite du Théatre au Théatre (1896) expõe os princípios da sua dramaturgia: esquematização dos caracteres, das ações, do cenário, repudio ao “realismo” e à psi-cologia.

Como vai ser lindo o século XX.

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2Rabelais. Sade. Nerval. Lautréamont. Rimbaud. Corbière.

Raymond Roussel. Duchamp. Artaud. Bréton. Drieu. Céline. Ponge. Queneau. Butor. Existe, de tocaia, uma linhagem louca naquela literatura que, estabilizada por Malherbe e Boileau, teve um começo legal na Academia, fundada pelo cardeal de Richelieu, e parece ser a mais “careta” das literaturas, uma lite-ratura normal e normalizadora, muito zelosa pela estabilidade de certas formas, pelo equilíbrio, pela manutenção de um certo “bom gosto”, decoro canonizado com “o Gosto”, o “génie latin” de Anatole France.

Nessa linguagem, Jarry não foi o menos “louco”. Nascido em Laval, no Noroeste da França, Jarry deixou a

lenda de uma vida tão bizarra quanto suas produções.A fábula das suas singularidades corria de boca em boca,

na Paris da belle-époque. Pescava seu almoço no Sena. Aficionado por matemática

e física, estudava heráldica horas a fio. Quando lhe pediam fogo, puxava um revólver, que Picasso depois veio a obter e guardava como uma relíquia.

Sua fotografia mais conhecida mostra-o andando de bi-cicleta, invenção recente, que era uma das suas paixões (tendo um papel fundamental em O Supermacho, onde o superalimen-to do cientista americano é experimentado nos ciclistas que fa-zem a Corrida das Dez Mil Milhas, hipérbole sobre duas rodas da potência sexual infindável do “Indiano”).

Para nós, brasileiros, sua figura não pode deixar de lem-brar a de Santos Dumont, tão excêntrico quanto ele, que vivia e tentava voar naquela mesma Paris da primeira década do século XX, quando viajar pelos ares parecia ser uma obsessão emble-mática daquele momento de espantosas novidades e ilimitados horizontes tecnológicos.

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Jarry também voou. Não em balões ou dirigíveis. Mas em criações dramáticas e textuais muitos pés acima do chão de seus contemporâneos, cabeça enfiada alguns quilômetros para den-tro do futuro.

O verdadeiro culto que Dadá e os surrealistas lhe tribu-taram é mais que justificado: na rigorosa hierarquia poundiana, Jarry, supermoderno, é um “inventor”, um dos escritores mais originais deste século, “herói fundador” de tantas singularida-des que, depois de virarem moda, viraram sistema.

Centauro de fantasia erótica com romance de ficçãocien-tífica, O Supermacho, de 1902, chamado pelo autor “romance moderno”, faz par com Messalina de 1901 “romance da antiga Roma”.

Nos dois “romances”, um no passado, outro no futuro, o herói é, num, um homem, no outro, uma mulher, dotados da capacidade de praticar o amor físico além dos limites humanos, “indefinidamente”. Priapismo e ninfomania: hipérboles da se-xualidade.

Cenas de evidente marcação teatral. Jogos de palavras, de árdua decifração e recriação. O fio do enredo sustentado por trocadilhos. Um espírito lúdico libertado de amarras lógicas. A pontuação arbitrária e caprichos tom meio erudito, meio cir-cense. As imagens e comparações insólitas e delirantes. Alguma coisa demuito criança com qualquer coisa de muito velho.

A escritura de Jarry é de alta imprevisibilidade. Não era provável que, em 1902, alguém chamado Alfred

Jarry publicasse esse romance que vocês acabam de ler, vocês não acham?

Paulo Leminski

folhas de relva forever(a revelação permanente)

“Whitman é, para minha pátria,o que Dante é para a Itália.”

(Ezra Pound)

“Ninguém vai entender meus versos,se quiser interpretá-los como performances literárias.”

(Walt Whitman)

“Whitman, que numa redação do Brooklyn,Entre o cheiro de tinta e de cigarro,Toma e não diz a ninguém a infinita

Decisão de ser todos os homensE de escrever um livro que seja todos.”

(“El Pasado”, “El Oro de Los Tigres”, Jorge Luis Borges)

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Toda revolução digna deste nome produz seu grande po-eta.

“Antena da raça”, o poeta capta, nos tempos de comoção social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes trans-formações coletivas, em seu momento agudo, revolucionário ou insurrecional. Assim, se Maiakovski é o poeta da RevoluçãoRus-sa, não é exagero dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes do seu nascimento. Da revolução que expressa, a poesia de Whit-man herdou todos os traços fundamentais: o libertarismo in-dividualista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do capitalismo na América, o otimismo ativista de um povo de vikings, a vertigem da abertura de inimaginadas fronteiras geo-gráficas, econômicas e técnicas. E também emocionais, existen-ciais e pessoais. “This is a big country”. “This is a free country”. Nessas frases, que decoramos em filmes de faroeste, condensa-se o essencial da ideologia que informa os versos do pai do verso livre, o pai do verso louco, o pai do verso novo.

Assim como a Revolução e o Sonho Americano liberta-ram, nos EEUU, o indivíduo (se devidamente branco) dos entra-ves do feudalismo, assim Whitman libertou o verso dos duros deveres da métrica, convencionais como os aparatosos cerimo-niais das cortes do Velho Mundo.

Whitman, a rigor, o primeiro poeta a fazer versos livres, é o libertarismo da jovem república, fronteira aberta a oeste, projetado em plano formal.

Para realizar, no texto, tudo isso, o poeta de “Whispers of Heavenly Death” desenvolveu um poderoso híbrido, em ma-téria de linguagem.

Uma dicção algo entre a poesia e a prosa, determinada por um movimento retórico (retórico, aqui, significando, no sentido grego original, de rétor, orador, envolvido num proces-

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so de convencer, dissuadir ou persuadir uma platéia, através da palavra viva e dita).

Ouve-se, por trás das tempestades verbais de Whitman, alguns raios e relâmpagos dos sermões de igreja, vociferados por furibundos pastores apocalípticos de pequenas comunida-des religiosas dos Estados Unidos, todas heréticas em relação a algum credo tradicional (presbiterianismo, calvinismo, purita-nismo, luteranismo), tudo dentro da melhor tradição do frag-mentarismo localista das igrejas protestantes. A mãe de Whit-man era “quaker”.E transmitiu-lhe a fé, tipicamente “quaker”, na luz interior. Sem entender a fé “quaker”, não se entende Walt Whitman.

A seita fundada pelo inglês George Fox (1624-1691) ca-racterizou-se pela recusa radical a toda liturgia religiosa e sa-cerdócio, confiando apenas na presença do Espírito Santo na consciência individual. Na inspiração. Além ou contra as au-toridades.

Muito forte a autoridade do movimento “quaker”, na formação dos Estados Unidos, no século XVII e XVIII.

Tão forte, talvez, quanto a influência, sobre à poesia mo-derna, do primeiro grande poeta da Revolução Industrial.

Essa influência se estende por caminhos desconcertan-tes. Mas todos indo dar na estrada da melhor poesia do século XX.

A incorporação da máquina ao mundo poético, o futuris-mo de Marinetti, no início do século, apenas consolidou-a.

Já está lá, no Whitman de “A uma Locomotiva no In-verno”, “signo do moderno”, “beleza de voz feroz”, mecânica musa, prenunciando os biônicos tempos que vivemos e vocês ainda não viram nada.

O ímpeto oratório de Maiakovski ecoa o tom da voz do “easy rider” Walt Whitman, audível na fluente grandiloquência

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de vastos poemas do bardo russo. Whitmaniana, em Maiako-vski, ainda, via Marinetti e futurismo, uma certa mecanolatria, zombada por Trotsky, em Literatura e Revolução, onde diz que os futuristas russos só idolatravam as máquinas porque a Rús-sia não as tinha.

E já se vê no poeta de Song for Myself algo do gigantis-mo narcisista de Maiakovski, que se dá, simplesmente, como o centro do universo, a coisa mais importante que a vida tenha produzido neste planeta.

Com o panteismo populista e democrata (meio budista) do eremita de Long Island, até o europeizado e aristocratizante Ezra Pound teve que fazer“Um Trato”:

APACT

Um trato com você, Walt Whitman.Já te detestei o bastante.

Hoje, cresci.Já posso chegar na tua frente.

Idade eu tenho para tantaVocê cortou a madeira nova.

Tá na hora de esculpir.Tua seiva é a minha, tua raiz.

(Ezra Pound, 1913; tradução Leminski)

O próprio fôlego homérico dos “Cantos” (ou “Cantares”) de Pound, sua obra máxima, composta, de 1917, até sua morte, em 1972, tem algo, nos “Cantos”, que parece respirar pelos épi-cos pulmões whitmanianos, órgãos afeitos a inspirar o infinito oxigênio das mais amplas pradarias que olho humano já des-cortinara.

O fato (ou o fado ?) de as revoluções apodrecerem, por

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mais altos que sejam seus ideais, pouco afeta a poesia dos que as exaltaram, por elas exaltados, em seu momento puro, em sua hora plena, em seu meio-dia.

Whitman. Maiakovski.Que importa que seus sonhos não se incarnem nem se

enquadrem na estúpida evidência da “Real Politik”? Dai-nos, hoje, Senhor, a utopia de cada dia.Walt Whitman coloca em andamento toda uma lingua-

gem vitalista norte-americana do escritor não como “scholar” ou mandarim, mas como homem de ação, da estrada, da aven-tura e do mundo (Jack London, Hemingway, John Reed, Kerouac, Norman Mailer, e, naturalmente André Malraux, o mais norte-americano escritor da mais anti-norte-americana das literatu-ras).

Homossexual, enfermeiro na Guerra da Secessão como Hemingway na Guerra Civil Espanhola, recebendo, quakermen-te, o Espírito Santo da poesia, livre como um pele-vermelha, como Thoreau, como um garimpador de ouro, nas Montanhas Rochosas, barbudo como um arbusto da beira do rio, Whitman, o primeiro “beatnik”, vive da longa vida que só uma grande po-esia (ou uma grande revolução) irradia.

WITH THE MANaqui

no oestetodo homem tem um preço

uma cabeça a prêmioíndio bom é índio morto

sem empregoreferência

ou endereçotenho toda a liberdade

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pra traçar meu enredonasci

numa cidade pequenacheia de buracos de balas

porres de uísquegrandes como o grand canyon

tiroteios noturnosentre pistoleiros brilhantescomo o ouro da Califórnia

me segue uma estrelano peito do xerife de denver

Paulo Leminski

méxico

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O apocalipse para a civilização mexicano-asteca teve uma data precisa. Em 1518, um coletor de impostos chegou às pressas na capital Tenochtitlán para relatar ao imperador Moc-tezuma coisas espantosas: estavam vindo do mar torres com asas, trazendo homens com caras brancas e muita barba.

Eram os espanhóis, os navios espanhóis, sob o comando de um gênio chamado Hernán Cortez, que concentrava em sua pessoa, em grau máximo, as melhores e as piores qualidades da raça castelhana: coragem pessoal e crueldade sem limites, re-sistência aos reveses e teimosia, imaginação administrativa e ambição, idealismo e fanatismo cego. Nesse momento, o mundo asteca encontrava-se no auge do seu poder. Elite militar invaso-ra, os astecas, recém-vindos do Norte, dominavam, pelo terror e pela guerra, inúmeros povos muito mais civilizados que eles.

Quando os bárbaros astecas chegaram no México, tolte-cas e olmecas, há mais de mil anos, construíam cidades de pe-dra, esculpiam ídolos, faziam cálculos astronômicos exatos e desenvolviam uma escrita. Como os romanos fizeram com os gregos, os astecas se apossaram desse tesouro civilizatório,“mexicanizando-se” culturalmente, mas exercendo um brutal imperialismo militar e econômico sobre dezenas de povos vizi-nhos, muitos vivendo em cidades de pedra, com reis, dinastias, templos e bibliotecas, organizações administrativas complexas, luxos e artes.

Diante da superioridade técnica da Europa (cavalos, pól-vora, armas de fogo, estratégia), o “império” asteca evaporou, num passe de mágica. Os povos oprimidos pelos “assírios do Novo Mundo” aliaram-se ao invasor espanhol. Assim começou o México, quando foi derrotado e convertido aquele povo que sacrificava ao sol, ao alto de pirâmides, milhares de prisionei-ros de guerra, coração arrancado com facas de obsidiana por sacerdotes que se cobriam com a pele extraída de vítimas vivas,

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em homenagem ao deus Tláloc, para que não faltasse chuva aos milharais, dos quais dependia a vida de todos.

Acontece que esse povo tinha uma escrita, bibliotecas, uma literatura. Seus livros de caráter mítico e litúrgico, pinta-dos sobre cascas de árvores, foram queimados aos milhares, em gigantescos “autos de fé” pelos missionários espanhóis. Sobrou pouca coisa, alguns códigos que foram, como curiosidades, pa-rar em bibliotecas européias: o Códex Bórgia, o Fejervary-Mayer, e mais meia dúzia.

Esse mundo, porém, era tão rico que espanhóis e mes-tiços de espanhol com índio mexicano registram dados de sua literatura, que nos aparece tão estranha como se fora de uma civilização extra-terrena, num livro de ficção científica.

Lingüisticamente, os astecas falavam uma língua da grande família nahuatl (pronunciar “náualt”). Em O Pensa-mento Cosmológico dos Antigos Mexicanos, o etnólogo Jacques Soustelle esclarece: “(em nahualt), cada palavra, quando em-pregada num contexto mitológico ou mágico, é susceptível de receber uma multidão de significados mais ou menos esotéricos (...) A palavra quáultli, águia, designa igualmente, na linguagem esotérica dos sacerdotes, o sol e os guerreiros. O sol é o deus dos guerreiros, que o nutrem com o sangue das vítimas. Na escrita ideogrâmicohieroglífica dos astecas, a pena da águia é o ideo-grama da guerra e dos sacrifícios humanos”. Nesse universo de ecos de sentido, quáuhnochtli, “figo da águia” é o coração das vítimas sacrificadas ao sol; quauhteca, “povo da águia”, são as vítimas sacrificadas, transformadas em companheiros do sol. O nome (nefasto) do último imperador asteca, Quáuhtemoc, “águia que cai”, quer dizer “sol poente, crepúsculo”.

Neste texto religioso muito antigo, dedicado ao deus Xipe Totec, recolhido por um espanhol da época da conquista, dá para ver em ação essa proliferação de sentidos metafóricos

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na imagética da poesia asteca: Senhor tua pedra-preciosa-água desceu Ah cipreste-quetzal Ah serpente-fogo-quetzal.

“A pedra verde preciosa e a pluma verde do pássaro quetzal são símbolos da riqueza e da fertilidade agrícola. O deus mandou a chuva. A serpente de fogo, símbolo da seca e da fome, transformou-se numa “serpente de plumas”, um quetzal-coatl, que representa a abundância”.

Esse jogo de imagens, evidentemente, está ligado à na-tureza da árdua escrita hieroglífico-ideogrâmica, com que os astecas grafavam, até hoje só em parte decifrada.Em náhuatl, poesia se dizia através de uma metáfora e de um ideograma, que significavam “flor e canção”, “flor canção”, “florcanção”.

Nas cortes dos imperadores astecas, figuravam poetas entre muitos outros ofícios. Desconcerta constatar nesse povo, que levou os sacrifícios humanos a um grau nunca visto, a exis-tência de uma delicada lírica voltada para a beleza das flores, a brevidade da vida humana, a efemeridade da juventude e o amor pelas crianças.

Poesia praticada inclusive pelos reis. Como este Ne-zahualcoyotl, rei da cidade asteca de Texcoco, em cuja corte flo-resceram artistas e poetas. Outras “pólis” nahualt (aliadas dú-bias ou inimigos da capital Tenochtitlán) produziram, na corte dos seus reis, focos de intensa vida poética, artística e intelectu-al, paralelos e perfeitos das cortes da Itália da Renascença, luga-res onde elites cultivadas, livres dos afazeres da sobrevivência, podiam entregar-se à vida superior do espírito. Tais foram as cortes de Tecayehuatzin, rei da cidade de Huexotzinco, e do rei de Tecamachalço, Ayocuan.

Todas estas cidades eram centros náhuatl muito mais an-tigos que a capital Tenochtitlán, a Nívive dos Assurbanípal, don-de saíam os exércitos astecas para extorquir tributos, capturar

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mão-de-obra escrava e — sobretudo — arrebanhar prisioneiros para serem sacrificados aos milhares ao deus do milho Tláloc, ou a Huitzilopóchtli, deus da guerra e do sol, nume tutelar da tribo dos astecas, sempre sedento de sangue humano. “Guerra florida” chamava Tenochtitlán às expedições periódicas para captura de prisioneiros destinados ao sacrifício ritual.

Homens-Águia, homens-Jaguar se entrelacem, príncipes Escudos contra escudos fazem sinfonia,

Lá vai colher prisioneiros a primeira companhia (...)

Guerreiros terríveis, temidos por todos os povos vizi-nhos, os astecas produziram uma poesia bélica, exaltando os prazeres do combate.

Nesse rosário-galáxia de “pólis” (mais ou menos) inde-pendentes em volta de Tenochtitlán, nas cidades em volta, no entanto, as coisas eram um pouco mais complicadas.

Os bárbaros astecas sabiam: o que tinham, culturalmen-te, de melhor, deviam ao que tinham encontrado quando chega-ram, os toltecas, a cultura tolteca.

Entre os astecas, este hino ao tlacuilo, o pintor-escriba dos códices, dos livros astecas, dos maravilhosos livros hierogli-fico-ideogrâmicos, da multidão dos quais só nos chegou meia-dúzia:

Um bom desenho, um tolteca, um artista.Com tinta vermelha e preta,

quem pinta melhor?Até com água, ele pinta,

Sábio é o bom pintor,um deus no seu coraçãoEle põe deus nas coisas,

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conversando com o coração.Sabe das cores,

colora e sombreia.Dos pés à cabeça,sombreia e coloraA ele a perfeição.

Pois ele pinta as cores de todas as florescomo se fosse um tolteca.

Outro hino asteca exalta a habilidade do oleiro tolteca, o povo anterior, o povo vencido, o povo superior:

Quem dá vida à argila,seu olho vê a maravilha,

senhor da terra mole.O ótimo oleiro

sofre em sua obra.Ensina a argila a mentir.

Com seu coração, conversa.E chama as coisas a vida.

Tudo sabe, como se fosse um tolteca.

A Texcoco de Nezahualcóyotl era muito mais tolteca que Tenochtitlán. Destroços que nos chegaram sobre o rei de Tex-coco nos reportam o retrato de um cacique, meio poeta, meio-filósofo, reformador religioso como o faraó Ikhanaton.

Parece que tentou, como Ikhanaton no Egito, estabelecer uma espécie de monoteísmo, sintetizando o politeísmo asteca num dualismo, numa Dupla Absoluta, uma Dualidade, em vez de uma Trindade. Um dos componentes desta Dupla, era, sem dúvida, o deus Quetzalcóatl (pronunciar “quetzal-cóaut”), deus mais antigo, adversário de Huitziopóchtli, o deus da guerra dos astecas.

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“Quetzal-Cóatl”, “pluma-serpente”, ou a Serpente de Plumas, o deus civilizador, Sumé, mexicano, Oanes babilônio, era um nume da vegetação molhada pela chuva, do verde das plantas, do milho, da abundância agrícola.

A inovação teológica de Nezahual-cóyotl foi registrada por um cronista mestiço, Fernando de Alva Ixlilxochitl, descen-dente do rei de Texcoco, e, portanto, suspeito.

Conforme este cronista, Nezahual o Coiote (pois do náhuatl nos vem a palavra “coiote”) opôs-se aos sacrifícios hu-manos, propondo, em seu lugar, o sacrifício de cobras e borbo-letas e a destruição de objetos de jade.

O testemunho é suspeito. O que não pode ser posto em dúvida, porém, é a condição de poeta do rei Nezahualcóyotl. Dele, esta queixa sobre a impermanência de todas coisas:

Vivermos, será que na vida se vive?Não para sempre na terra,

só um pouco no tempo.Jade sela, jade quebra,

ouro, desdoura,pena de quetzal, pena voa.Não para sempre na terra,

só um pouco no tempo.(Nezahualcóyotl, rei de Texcoco, séc. 15)

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sertões anti-euclidianos

Paulo Leminski

sertões anti-euclidianos

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nenhum livroteve sobre a cultura brasileira letradao impacto de “os sertões”com eleeuclides da cunhamilitarengenheiropositivista como toda a oficialidaderepublicanatraumatizouuma literatura feita por bacharéisornamental“sorriso da sociedade”brilho dos salões do 2º impérioA leitura para ioiôs e iaiássurto de espinhas no rosto imberbe dosacadêmicos de direitoócio de aposentadosprenda domésticada elite de um país de analfabetoscom eleum brasil outroum brasil novoo brasil verdadeiro do interiorsaltava na cara das nossas elites letradasconcentradas nas cidadesno eixo rio-são paulocentrífugaseuropocêntricasproduzindo uma literatura francesa notrópicopara branco ver

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canudos foi uma revelaçãoo despertar da consciência brasileirao satori nacionalum acontecimento histórico de muitasconseqüênciasdas quais a mais importanteum livro chamado “os sertões”dele descendem“macunaíma”“vidas secas”“o tempo e o vento”toda nossa prosa regionalistaaté o sertão máximo“grande sertão: veredas”onde o gênio de guimarães rosadá ao sertão uma dimensão cósmicanum texto rico como os de joyceencerrando com chave de ouroo ciclo mais fecundo da literatura brasileirao texto de “os sertões”tem uma históriauma biografia essencialpara a compreensão do livronasceu das anotaçõesdo engenheiro militar euclides da cunhajornalista correspondente de “o estado de s. paulo”no próprio local das operações da guerrajagunços e fanáticos do antonioconselheirocontra as tropas da repúblicadas anotações às reportagense destas ao texto final de “os sertões”

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um longo percurso textualonde euclides apostou tudo que tinhapreparo científicoperícia de linguageme maestria dos recursos estilísticos dalínguao retorcidoo tortuosoo caudalosoo barroco positivista de euclides“estilo de cipó”é prosa em dramaisomórfica com o drama que presentificadiscurso deformado e informado pelo assuntoo impacto que canudos provocou em euclidesnão foi apenas históricogeográficoantropológicosociológicofoi também semiótico/poéticode linguagemem canudoseuclides descobriu a fala natural do sertãoa linguagem popular“errada”antinormativauma linguagemcheia de giros própriosdizeres e falares jagunçosmuito distantes do “sermio nobilis” da capitaleste impactoescapou aos exegetas de euclides

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a revelação da linguagem dos sertõesestá documentadana “caderneta de campo” de Euclidescaderno de bolso editado recentementepela cultrixnascedouro de “os sertões”onde euclides fazia anotações de geografiageologiaoperações militaresepisódios e incidentes da guerramuitas folhas do “caderno”estão juncadas de listas de palavras eexpressões que Euclides ouvia na boca jagunça dopovolinguagem/poesia vivaexplodindo em seus tímpanos civilizadosalgumas dessas expressõesverdadeiros fósseispalavras e giros arcaicosmantidos no isolamento do sertãouma volta ao passado da línguaeuclides recolheu no “caderno”poemas popularescomo o “abc de incredulidade”cordel de guerrade um homero anônimoonde a crueza das idéias e expressõesse expressa em bárbara ortografiao código ortográficoconstitui a primeira camada protetora dalíngua dominantesua primeira linha de defesas

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muralha da china contra a invasão dopopulardo poéticodo novoeuclidesperante a tortografia socialpsicológicalingüísticafaz uma viagem psicanalítica ao passadodo Brasile dánome ao nosso malele se chama alienaçãonenhuma paideuma brasileira(escolha de um elenco de autores vitais)que deixe fora “os sertões”pode se pretender completacom eleo euclidiano (matematicamente falando)euclidesdescobre o avessoantieuclidianamentee nos descobre.

Paulo Leminski

trans/paralelas

DEDICATÓRIA

Se acaso uma alma se fotografasseDe sorte que, nos mesmos negativos,A mesma luz pusesse em traços vivos

O nosso coração e a nossa face;E os nossos ideais, e os mais cativos

De nossos sonhos... Se a emoção que nasceEm nós, também nas chapas se gravasse

Mesmo em ligeiros traços fugitivos;Amigo! tu terias com certeza

A mais completa e insólita surpresaNotando — deste grupo bem no meio —

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardenteDestes sujeitos é precisamente

O mais triste, o mais pálido, o mais feio.(Euclides da Cunha, 1905)

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Traduzir de uma língua para outra é apenas um caso par-ticular de tradução. A possibilidade da tradução está na própria raiz da natureza do signo que, diz Peirce, é “qualquer coisa que possa ser entendida através de outros signos”, numa definição tautológica, bem ao gosto do neo-positivismo.

Sendo assim, pode-se entender como “tradução” todas as aproximações do tipo da paródia (=canto paralelo), que tem intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções sérias, da adaptação (de um texto para o cine ou o teatro), da diluição de uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menosafastados do seu protótipo.

São da mesma natureza todos os fenômenos que afetam a área da “influência”, na literatura e na arte comparadas.

Influência de Sterne em Machado de Assis, traduções de Machado.

Influência do realismo socialista em Jorge Amado. Influência da poesia espanhola (a quadra em rimas toan-

tes) em João Cabral.Traduções.Mais literais, mais “espirituais” (conforme o “espírito”,

não a letra), a vida da cultura é um processo de traduções contí-nuas e constantes, em que traduções se transformam em novos originais, por sua vez, traduzidos, para repertórios mais altos ou mais baixos, vindo a constituir originais novos, e assimpor diante.

euclides da cunha/raimundo correia

Uma das mais extraordinárias traduções da poesia brasi-leira é aquela que Euclides da Cunha fez, parodiando um soneto de Raimundo Correia.

Nesse poema, de 1905, Euclides introduz (a 1ª vez?) a

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recém-nascida arte da fotografia na petrarquesca velharia do soneto, falando em “negativos”, em “gravação”, em “chapas”, emprestando uma súbita modernidade técnica ao fácil filosofis-mo do parnasiano acadêmico.

O que torna mais extraordinária a “tradução” de Eucli-des é que há uma complementariedade forma/fundo (isomor-fismo) entre a técnica da paródia e a da fotografia.

A paródia, com efeito, é uma espécie de fotografia (dis-torcida) de um original.

Ela é, em termos de Peirce, um ícone de um original (mas como a fotografia, um ícone, tendo um índice, por suporte: o soneto-paródia de Euclides aponta diretamente para o soneto de Raimundo Correia, a ele, materialmente, contíguo).

Parece carregado de significado o fato de a tradução em pauta ter sido feita por um poeta-engenheiro, o militar e positi-vista Euclides da Cunha, que com o monopólio poético e cientí-fico de Os Sertões, reduziu a mero beletrismo a literatura de sua época, amenidades anódinas bordadas por bacharéis verbalistas e ornamentais. Euclides era um homem dos novos tempos, da inteligência técnica, científica e industrial.

Sua tradução/paródia é a tradução entre dois mundos, o artesanal de Raimundo Correia e o industrial, que o cientifi-cismo positivista anuncia (o positivismo de Comte é aideologia industrial burguesa do século XIX, assim como o marxismo, a ideologia proletária correspondente).

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Paulo Leminski

significado do símbolo

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Vamos despir a experiência sígnica dos Simbolistas, le-vantando os 7 véus de Isis em que eles a vestiram.

A experiência é extraordinariamente concreta.Mas eles a mitificaram, camuflando-a. Simularam-se hierofantas, Celebrantes de um Rito Eso-

térico. Monges, praticantes de uma solidão aristocrática. Filó-sofos gregos, cultores de um saber: o culto do oculto.

Que se esconde por detrás da parafernália simbolista? Que concreta experiência sígnica?

A Chave dos Grandes Mistérios simbolistas é encontrada pela análise semiótica, ao nível dos signos. A experiência simbo-lista consistiu, basicamente, na descoberta do signo icônico. Na capacidade de ler/escrever o signo neo-verbal.

Os simbolistas foram os primeiros modernos. Neles, a produção de textos poéticos se resolve em problemática do sig-no, resolução emblematizada no próprio nome-totem do movi-mento, o primeiro a ter nome semiótico.

O que os simbolistas chamaram de Símbolo era, nada mais, nada menos, que o ícone. O Oculto, que o curitibano Dario Vellozo cultuava, apenas, a irredutibilidade do signo icônico ao signo verbal.

Ícones dizem sempre mais que as palavras (símbolos) com que tentamos descrevê-los, esgotá-los, reduzi-los.

O Ícone é o signo, parcialmente motivado, que tem algo em comum com seu referente, eco, rima, reflexo, harmonia ex-pressiva, visual ou acusticamente, no plano material dos signos, no significante.

Este mistério da participação do signo icônico na natu-reza do seu referente, mistério material, produz uma taxa de informação estética incomparavelmente maior do que aquela que conseguem gerar os símbolos, signos imotivados, arbitrá-rios, meras convenções imateriais.

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As palavras (símbolos) dos simbolistas apontam para ou-tra família de signos, os ícones.

Não-verbal, o ícone nunca é exaustivamente coberto pe-las palavras, restando sempre uma área transversal, uma mais-valia, um sexto-sentido além das palavras. Os simbolistas intuí-ram essa terra de-ninguém-que-seja-palavra. E nela, plantaram sua bandeira.

Daí, seu célebre “amor ao vago”. O problema do texto poético simbolista é a programação do indeterminado, a “de-terminação da indeterminação”, como mostrou Décio Pignata-ri, sobre Mallarmé.

Sensível-criativamente, os simbolistas anteciparam-se a uma das mais revolucionárias produções da Física Moderna, o princípio da incerteza, formulado por Heisenberg: o observa-dor, ao observar, perturba a coisa observada (ler = escrever).

À luz do verbo, todo ícone é inesgotável. Nem com todas as palavras do mundo se pode esgotar a abertura, o plural, a multivalência semântica de um desenho, um esboço, uma foto, um esquema, uma rima ícones.

As palavras estarão sempre aquém, sempre menos; além, um campo de possíveis, “oculto”, “mistério”, “inefável”.

“Mistério” é palavra grega que vem de um radical que significa “fechar a boca”. Só há mistérios para o código verbal.Melhor dizendo: para o interpretante do signo icônico que o aborda com os preconceitos logocêntricos da contiguidade.

ícone: antes de tudo, uma polissemia

As teorias do código verbal (gramática, retórica, estilísti-ca) cedo se ocuparam do fenômeno da polissemia, a capacidade de um signo (verbal) comportar mais de um significado.

No verbal, a polissemia é uma anomalia. Um desvio. Um

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caso patológico. Prova disso a presença de polissemias na retó-rica, como se sabe, um elenco de desvios e infrações, em relação a um grau zero, o discurso “natural” e “normal”.

Tais são a metalepse (o antecedente pelo conseqüente, sinônimo contextualmente impróprio, semanticamente in-correto), a ironia (faz uma palavra significar o oposto do que significa), a paronomásia (o jogo de palavras, o trocadilho), a antanáclase (dar à mesma palavra um sentido diferente), o enantiosema (palavra com dois sentidos contrários, uma pa-lavra que tenha um oxímoro como significado). A polissemia, anomalia para o código verbal(símbolos tendem a ser unívocos), é o estado normal dos icôni-cos, seu natural semântico.

Uma imagem vale por mil palavras (as palavras tem que usar palavras para dizer isso às palavras, os signos, sendo, sa-bem disso).

Outro fenômeno da esfera da polissemia verbal é a cono-tação, o significado segundo que se estrutura sobre um signifi-cado anterior. A conotação, opondo-se à denotação (o sentido do dicionário), é um fenômeno de sobressignificado.

A conotação é de natureza icônica. Além do seu significado-padrão, registrado em dicioná-

rio, toda palavra tem um halo de ecos, uma aura ectoplásmica, campos elétricos de significados difusos em volta do núcleo de-notativo.

Secundária quando se usa a linguagem com função práti-ca ou referencial, a conotação passa a ser matéria-prima quando se faz uso poético da linguagem, quando pretendemos produzir estados estéticos numa cadeia ou superfície verbal.

As misteriosas reações sígnicas chamadas polissemia ou conotação só o são para o código verbal. No plano do ícone, são naturais e normais, integrantes da própria definição de ícone.

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São responsáveis por climas, atmosferas, verdadeiras ambiências sígnicas, estados de baixa definição e alta conta-minação recíproca. A consciência icônica dos simbolistas pode ser observada em ação nos poemas mais conseqüentes do mo-vimento: no “L’Aprés Midi d’un Faune”, de Mallarmé; na “An-tífona”, de Cruz e Sousa; em “Horas Igneas”, de Kilkerrey; em “Palingenésia”, de Dario Vellozo...

5 Sentidos, 5 Códigos

A consciência icônica inovadora do Simbolismo não se revela apenas na inconização do verbal, como na grafia fanta-sista da palavra “lírio” grafada pelos simbolistas como “lyrio”, a letra Y funcionando como ícone da flor/referente.

Revela-se, ainda, na revolução que associamos às “Cor-respondances” de Baudelaire ou ao soneto das vogais de Rim-baud.

No poema de Baudelaire, a natureza “é um templo”, onde o homem passa “através de florestas de símbolos” e “os perfumes, as cores e os sons se respondem”.

Rimbaud, por sua vez, atribui cor a cada som vogal, numa fonética cromática, aparentemente arbitrária, fútil e gratuita. O fenômeno da tradução do código de um sentido (ouvir, som etc.) para outro (ver, cor etc.) é a sinestesia, uma operação inter-semiótica (como a tradução de um idioma para outro ou de uma família de signos para outra família de signos).

Toda tradução é icônica: reproduz partes de um original (o original traduzido, um Primeiro). Só informações documen-tais eventuais, nos idiomas naturais, são traduzíveis “ao pé da letra” (isto é, por contigüidade).

Ícones, não tendo sinônimos, não são traduzíveis.O que se chama, impropriamente, de tradução é a cons-

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trução de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia (= canto paralelo), ao Primeiro.

Poesia, numa mensagem, é o que se perde na tradução.Poesia é uma substância frágil demais (ou sólida demais)

para ser transportada sem danos ou perdas irreparáveis.Esta intersemioticidade sensorial, explicitada por Bau-

delaire, nas “Correspondances”, incorporada pelo programa simbolista, ocorre em plano trans, infra ou ultraverbal, no pla-no icônico, no plano do Mistério e do Oculto, para quem olha os signos com telescópios verbais.

Paulo Leminski

o veneno das revistas da invenção

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Consolem-se os candidatos.Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente.São revistas.Que obras semicompletas para ombrear com o veneno

e o charme policromático de uma “Navilouca”? A força cons-trutivista de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O sa-fado pique juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um “Jornal Dobrabil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada.

poesia, uma coisa pra nada

Lavra, faz tempo, um “boom” poético, nestas partes pu-dendas, descobertas por Cabral. Livros. Livretos. Folhas.Folhetos. Grafitis. Gravetos. Vagas. Ondas. E, sobretudo, poetas.

Índice, eu acho, de uma insatisfação com a(s) lingua-gem(ns) vigentes e seus limites.

Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido so-bre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qual-quer malandro percebe, geram conteúdos novos.

Para a poesia, alargar as fronteiras do expressável. Um poema — um dia, respondi a um repórter que queria saber — é o contrário de uma notícia de jornal.

Uma notícia de jornal diz coisas previsíveis e, portanto, possíveis: Irã Sequestra Corpo Diplomático dos Estados Unidos. URSS invade o Afeganistão. Direita Vence Eleições em El Salva-

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dor. Recrudesce a Luta no Oriente Médio.Já a poesia fala de coisas que ninguém previa, impossí-

veis, nadas:“Tinha uma pedra no meio do caminho” (Drummond).Quem diria que um súbito obstáculo iria sustar a marcha

do bardo? “A Carne é Triste e eu Li Todos os Livros” (Mallarmé). Ninguém poderia imaginar que a carne e os livros poderiam sair juntos na mesma notícia. Querem mais uma nãotícia? “Tu pisavas nos astros distraída” (Orestes Barbosa). Ora, vamos e venhamos, mas essa da nêga pisar em estrelas é dose. E distraída, ainda por cima! Não param aí os absurdos. Quando você menos espera, vem um português magrinho, bê-bado, que diz, detrás de um bigodinho chaplin-hitleriano: “O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fin-gir que é dor/a dor que deveras sente”. Aí é demais. O desres-peito pela santidade da lógica e da realidade é de molde a fazer qualquer leitor, medianamente instruído, torcer o nariz. Nisso, o Augusto de Campos chega e encerra o assunto, mandando aquele abraço para o espaço cósmico: “Abra a janela e veja/o pulsar quase mudo/abraço de anos-luz.” Abraço de anos-luz! Chega. Eu passo.

É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz.E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de todos, da poesia à prosa. Subversivamente.

Nos anos 70, a poesia que mais fez isso foi a que esteve nas revistas. As revistas são a obra-prima da poesia brasileira, na década que acabou de passar. Mas não pára. Porque na vida dos signos superiores, gratuitos, o que passa, fica. E só fica o que passou, forte.

O subversivo dessa linguagem casou, de véu e grinalda, com a era das nanicas jornalísticas (“Pasquim”, “Movimento”, “Coojornal”, “Em Tempo”, “Versus”, “Repórter”), e críticohu-

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morísticas (“Ovelha Negra”, “Raposa”, “Risco”, “Pato Macho”), alternativas-quixote para o sanchopança do jornalismo oficial, acadêmico e rotineiro, conformado e auto-satisfeito.

Jorraram nanicas na Idade das Trevas, sob a sombra do AI-5. Foi a idade da imprensa pobre, “povera”, precária, aquém dos padrões empresariais da banana-maçã (ou ouro) da impren-sa vigente; E muito além dela quanto independência de opini-ões, contacto com as bases, contundência crítica e originalidade criativa. As migalhas de dinheiro que caíram das mesas da far-tura do “milagre brasileiro”, talvez, consigam explicar alguma coisa da facilidade com que os pequenos jornais e revistas pro-liferaram nos anos 70.

Com a alta do petróleo e a carestia geral, aventuras como as nanicas começaram a se tornar, financeiramente, menos prováveis. As bombas nas bancas, intimidando o intermediário, agravaram ainda mais o quadro clínico das nanicas. Quantas vão bem das pernas hoje?

nanicas na produção

Par e passo com as nanicas de consumo (tipo “Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela) assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de dizer, di-zendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais, que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite (essa foi de lascar, hein, Régis?).

Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas, coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa

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etária dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia.

Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do fa-zer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas me-nos que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do provisório, a arte e a vida do horizonte do provável, a renúncia e o repúdio do eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o sucesso. Assim como não há mais lugar para a emo-ção. Só para o suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um repertório mais alto de informação plástico-visual. Aquelas com programação visual nível gráfico-técnico inferior à média das publicações correntes, meros suportes-ex-cipientes de poemas, impressos corriqueiramente, sem a cons-ciência da plasticidade do texto-página. E aquelas que, de cer-ta forma, herdaram o apuro industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigandres”, “Invenção”).

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Paulo Leminski

grande ser, tão veredas

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A pois. E não foi, num vupt-vapt, que as altas histórias gerais da jagunçagem deram de ostentar suas prosápias e bizar-rias no tal horário nobre da caixinha de surpresas, pro bem e pro mal, Rede Globo chamada?

Compadre mano velho, mire e veja as voltas que o mun-do dá. Quem haverá de dizer que toda essa aprazível gente ci-dadã ia botar gosto em saber das fabulanças daqueles tempos, quando o desmando e a contra-lei atropelavam os descampados do Urucuia, lá praquelas bandas brabas, onde tanto boi berra?

Só dizendo mesmo, a bem dizer, como proclamava meu compadre de Andrade, Oswald, dito e falado, lauto fazendeiro de S. Paulo: a massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico. A graça que ia nisso! Tinha muita graça meu compa-dre de Andrade. Mas o senhor, que é homem instruído, não faça pouco nem ponha reparo nas facéias do compadre Oswald. Era homem sabido de esperto, e quando parecia que estava mais se rindo, mais se estava falando sério. Tudo questão de tino, coisa que é que nem coragem, que tem, como tem gente que não vai ter nunca.

De modos que esse brazilzão todo, rol de gente de nunca acabar, está ficando sabendo, devagarinho, das andanças do ja-gunço Riobaldo Tatarana, ao lado do seu querido Reinaldo, vale dizer Diadorim. Só que tem um desconforme. A gente não sa-bia de principio, que Reinaldo era mulher, que nem a gente já fica sabendo nas televisivas fabulanças. E se bem me alembro, a memória tem dessas coisas, Reinaldo não era tão bonito como essa beleza de dona Bruna, Lombardi chamada, italiana tirana de tanta boniteza. Semelhava assim, no psico do olho, uns jeitos de garoto nos seus quinze, o mais tardar seus dezessete anos, emborasmente mais judiado, que a jagunça vida nasceu pra dar formosura pra ninguém.

Nem ninguém jagunceia por picardia, jagunceia por pre-

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cisão.Tarcísio Meira? Meira, dos Meida de Buritis-Altos? Ah,

não. A pois. Veja você, que a gente de prol e de escol, mire e veja.Não assemelha o Hermógenes. Não, Deus esteja. T’arrenego, e esconjuro! O cão com o cão, e faca na mão! Aquilo não era criatura de Deus, quem viu, viu sabendo, e bem sabido. Era feio como a necessidade, ninguém nunca deitou os olhões num indi-víduo mais puxado a sapo, que até cascavel, pra quem gosta, até tem lá suas graças e desenhadas cores.

E, despotismo de calamidades! Teve o fim que mereceu, que o diabo escolhe quem quer, Deus só escolhe os seus.

Do Diabo? Diá? Diadorim? Do diabo, não se fala. Que dia-bo hoje não faz pavor na gente cidadã. Que diabo, que nada! o coisa-ruim, o que-nem-se-diga, o diantre, o dívida-externa, o Aids, o inflação, o Delfim-Netto! Acreditar não digo que a gente acreditava. Difícil era achar quem duvidasse, o senhor releve a sutileza, que é cortesia de jagunço velho, mor de não estragar apontaria.

Pontaria, pontaria mesmo, quem teve nunca deixou de ter, foi Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa, esse o nome cabal e completo, homem de muitas letras, nenhum igual ninguém nunca nem viu. A pois, mano velho. Tino e siso era ali, jagunço de caudaloso cabedal, tiro certeiro no olho da onça jaguareté, pau a pau, pum e pum.

Quem dissera? Nem quem diria! Aquela parolagem toda, jaguncismo de lei, no tal nobre horário da Rede Globo chama-da... Custoso é o mundo de entender, custosa a fala de Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa. Aquilo é falar de cristão, cruz-credo, me persigno!? Nem nenhuma lei de sã gramática aquele jagun-ço reverenciava, e era tudo um redemoinho de sustos, que gente como nós é minuciosa nas artes do sem-sobreaviso. Surpresa só. Vá que a gente cidadã nos seus nobres horários vá saber o que

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a gente só dizia no oco do toco, o senhor que é de lá me diga... e a caixa de surpresa, televisão chamada, não tem validade de forças pra suflagrar no durante e no seguinte, os cafundós de filosofismo que Tatarana Guimarães Rosa enredava naqueles ci-pós lá dele...que esse Tatarana fosse o Homero desses brasis todos, Homero, o senhor sabe, o Adão dos cantadores...

Divago. Mas não disperso. Esse rural acabou. A pois. Mas que foi muita coragem desse tal siô Avancino, Avancini, o se-nhor me corrija e reja, de ponhar em vídeo e áudio tanto caudal primitivo, que isso foi, foi macheza, ninguém duvida, quem ha-verá de? Eh, mão de obra!

Efetuar proezas é da vida, e o que for do homem, o bicho não come. Contar é que empecilha, a lembrança não pousa nun-ca no mesmo lugar, e o dito nunca fica como foi, nem o escrito, que só vem muito depois.

Consoamente meu compadre falecido Tatarana, na glória esteja! Costume e tenho bom uso de dizer, que com ele aprendi, “viver é muito perigoso”.

Vê lá se televisionar não haverá de ser!

Paulo Leminski

e o vento levou a divina comédia

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E aí também aconteceu a Messer Alighieri, até a ele, aquele comum destino de morrer, e no leito de morte, no amar-go exílio, Alighieri falou pela última vez, e disse a seus filhos:

— Deus me perdoe por tudo o que eu fiz.Dito isto, crispou o rosto com uma última dor, e entregou

a alma aos outros mundos, onde prossegue a vida humana.Na Comédia que deixava, Alighieri tinha se fantasiado como o único homem que, vivo, tinha percorrido os domínios depois da morte.

Em ficção, em texto, tinha estado no Inferno, no Purga-tório e no Paraíso, antes de morrer. Impossível idéia maior.

Durante toda a sua vida, Messer Alighieri sofreu com a idéia de que tinha tido uma idéia excessiva, uma intuição poéti-ca tão alta e tão funda que só podia ser pecado.

Pecador que era, teceu os tercetos da sua Comédia du-rante cinqüenta anos, eu, pecador, me confesso, estou escre-vendo o poema que não deveria estar sendo escrito, eu estou imaginando o inimaginável.

Agora, era a hora de prestar contas da vida, dos pensa-mentos e das obras.

Mereceria o Inferno, pelo orgulho de se imaginar, vivo, atravessando os três reinos depois da morte? Era demais. Não é possível. A misericórdia divina sabia, a vaidade dos escritores é a fortaleza dos fracos, daqueles que não conseguiram poder pelas armas, pelo dinheiro ou pelas influências junto aos mag-natas.

Purgatório, talvez? Esse reino intermédio parece o lugar perfeito para Dante, como o é para todos nós que pecamos ape-nas um pouco, a destinação dos pecadores razoáveis, aqueles que, entre a virtude heróica dos eremitas e a depravação extre-ma dos artistas de teatro, escolheram a dourada mediania dos pequenos vícios, das infâmias mínimas, os medíocres em vício

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e virtude.Não pode ser o lugar para Dante. Com seu poema, ele

pede ou a glória ou a danação. Nada menos que isso seria digno dessas estrofes, perfeitas, absolutas, divinas.

Mas Deus, que é justo, porque é pai, decretou diferente, muito além da nossa justiça lógica.

Dante foi condenado a ser amado pelos homens, e seu poema blasfemo e sacrílego a ser repetido por todos os séculos dos séculos, amém.E assim será para todo sempre:

“No meio do caminho da vida,me vi no meio de uma via transviada,

o resto era tudo estrada.”

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Paulo Leminski

poeta roqueiro

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Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud se-ria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mike Jagger, dos Rolling Stones. “Na estrada”, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão “contemporânea” quanto o gatão e “vidente” Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária — obras-primas entre os 15 e os 18 anos. De repente, largou tudo, Europa, civilização ocidentalcristã, literatura e, cometa, se mandou para a Abissí-nia, na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odia-va, levou a vida de mercador árabe, traficando armas, varando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infan-til, pré-figurada em seu nome de rei lendário. Breve durou esse Camelot. Da África, o rei Arthur voltaria à França para amputar uma perna e morrer, de câncer, num hospital de Marselha, de-lirando poesia, cercado por padres e sua irmã, ávidos pela con-fissão desse blasfemo.

Claro que uma vida assim não caberia em versinhos. E uma ampla prosa, de sopro largo e rebelde a todas as medidas, que Rimbaud escreveu Uma Temporada no Inferno e Ilumina-ções, agora, mais uma vez, à disposição do público brasileiro, na apaixonada tradução do poeta Ledo Ivo. A indisciplinada e ge-nial verborragia infanto-juvenil desse precursor dos surrealis-tas não levantaria maiores percalços a seu tradutor. O texto de Rimbaud, no caso, é uma prosa fluente, trepidante de arroubos e entrecortada de interjeições sem muitos acidentes de métrica ou armadilhas de arquitetura e engenharia.

Nada que exigisse as proezas, digamos, dos irmãos pau-listas Haroldo e Augusto de Campos, com suas insuperáveis transfigurações de textos impossíveis para o repertório e ocon-sumo brasileiros. Uma Temporada no Inferno traz poemas de métrica regular. Mas, nestes, o tradutor de Rimbaud pisou na

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bola, não lhes conseguindo a métrica que não se cobra do tra-dutor comum mas, sim, de um que tem nome de poeta nas an-tologias escolares, caso de Ledo Ivo. A despeito do português um pouco “escrito” demais para Rimbaud (como certos “ten-de”, “voltais”, “dar-lhe-ia”), o poeta, sem ledo engano, se saiu bem da empresa. A garotada que pinta agora tem muita sorte de ter essa tradução, para curtir e aprender com seu irmão mais velho de um século atrás — auxiliada pela estudiosa introdução de Ledo Ivo pelos meandros de uma das mais portentosas peri-pécias poéticoexistenciais do Ocidente.

Enfim, como diz o próprio poeta: “Eu é um outro”. A me-lhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do “sucesso”, a escolha do “fracasso”, a derrota da litera-tura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse.

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Paulo Leminski

aventuras do ser no nada (quem tem náuseas de Sartre?)

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— Vim te matar.— A essa hora? Pra quê?— Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre.— É pecado?— Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre.— Com o perdão dessa arma apontada para mim, não sei

o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou a vida mijando nas calças, num pileque contínuo.

— Vê lá como fala.— Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como

você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na Resis-tência?

— Esse não me interessa.— Ah, você prefere o Sartre das palavras.— Fora das palavras, não há salvação.— Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente aí e vamos

conversar sobre.— Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si

em em-si.— Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu ter-

minasse de ler isso aqui?— Sobre o que é?— Adivinhe.— Ah, sei.— Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo

grega Depois dele, só são possíveis MacLuhans”.— Não acho nada.— “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e

pela militância um amor não correspondido: todas as suas agi-tações políticas, em termos de ação, sobre a sociedade francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”.

— Continue.

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— “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crimesupremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individu-al, anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo, Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a ficção transformou-se no gênero literário (textu-al) do existencialismo, veículo ideal de seus princípios”.

— Prossiga. Ainda lhe concedo uma página.— “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o

escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer for-ma, o autor de A náusea deu à literatura o status e a dignidade da filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época, moeda comum. A expressão “engajamento”, foi ele que criou.“Autencidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...”

— Pare aí, senão...— Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela União

Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional, fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS stalinis-ta. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa do profeta das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus filhos, de-pois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus netos, os “hippies”. O existencialismo é a metafísica do individualismo ocidental e capitalista”.

— Páre, senão eu atiro.

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— Não atire. Eu me rendo. Digo aqui que “O problema teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o mar-xismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o sin-dicato, o Estado. O particular e o individual não passam de abs-trações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo indica, não tem solução”.

— Fique aí onde está.— “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófi-

code grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seuteatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkega-ard”.— Mais uma dessa não vou aturar.

— “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro his-tórico da França do pós-guerra”.

— Não é o bastante. Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.

Paulo Leminski

tímidos e recatados

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Só o respeito por seu teatro extraordinariamente inven-tivo e, talvez, um preconceito ideológico ainda nos fazem ver no alemão Bertolt Brecht (1898-1956) um grande poeta, no século que produziu exageros bem maiores. Com certeza. A obra poé-tica do gênio teatral que inventou o célebre “distanciamento” não suporta confronto com a obra de um Vladimir Maiakovski, um Velimir Khliebnikov, um Ezra Pound, um T. S. Eliot, um E. E. Cummings, um Fernando Pessoa. Comparada com a destes gi-gantes, a poesia de Brecht é tímida formalmente e pedestre em seus achados. Inútil procurar nela os mergulhos abissais dos fu-turistas russos nos abismos da linguagem ou as infratoras aven-turas gráficas de um Cummings.

Nem teria sentido procurar na poesia deste comunista ortodoxo as onginalidades metafísicas e existenciais que seu credo político, certamente, repudiaria como alienações bur-guesas Não que Brecht fosse adepto do simplismo estético e literário do famigerado realismo socialista. Contra o teórico Georg Lukács, por exemplo, defensor da tradição literária, Bre-cht sempre manteve as mais corajosas posições de vanguarda artística, aliada à militância política de esquerda. Mas isso di-zia respeito principalmente ao teatro, arte onde Brecht inovou como poucos.

A lírica brechtiana, porém, sempre se moveu num ter-ritório muito estreito, indo do primarismo métrico do poema Do Pobre B. B., injustamente célebre, a registros circunstanciais, notáveis apenas porque saltam da mesma mente que criou pe-ças como O Senhor Puntila ou Mãe Coragem. Isso, no entanto, não é um juízo definitivo. Há quem veja exatamente nessa sim-plicidade e nesse aparente à vontade uma marca de suprema excelência poética.

Há, sem dúvida, um lastro muito grande de prosa na po-esia de Brecht, aquele lastro discursivo de quem carrega uma

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ideologia e se crê porta-voz dela. Em Brecht, encontramos luci-dez e ironia, sarcasmo e relâmpagos críticos. Mas também mo-mentos ridiculamente retóricos, como nesse O Grande Outubro, poesia celebrativa da pior espécie, ode ginasiana em louvor da Revolução Russa. Ou em poemas ingênuos, como aquele cha-mado Rapidez da Construção do Socialismo, que parece ter sido encomendado por Stalin.

Esta edição dos poemas de Brecht é bem o momento de dizer um “basta” a uma idolatria indevida. Como poeta, Bre-cht não merece a fama que desfruta. É um poeta ocasional, que dedicou seu gênio a outra arte. O grande poeta de esquerda é Maiakovski. Esse sim soube ver (e fazer) que “não há arte re-volucionária sem forma revolucionária”. Brecht, porém, nos suscita uma questão inquietante. A velha questão sobre o que é poesia. E suas brevidades prefiguram certas tendências da poe-sia do século XX, o registro relaxado de certas vivências, o frag-mentarismo da dicção, o coloquial sem nobreza.

Em seus melhores momentos, Brecht realiza uma poe-sia que se sustenta apenas na idéia. No saque. Numa fulgurante intuição, que ilumina a realidade e a vida. E parece que isso foi o que ele procurou atingir enquanto poeta. Atingir esse Brecht através de uma tradução não parece tarefa fácil. No caso, a ta-refa coube a Paulo César Souza, professor de alemão e íntimo da língua de Goethe. Sua tradução, porém, é apenas literal, não-criativa, uma transposição pelo sentido, sem muita atenção aos elementos formais, materiais, do texto de Brecht. Mas é, nesse sentido, uma tradução idônea e competente. Para os poemas de Brecht, esse grau de competência basta.

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tradução dos ventos

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Os japoneses estão chegando. Desta vez, não é mais um clássico como o haikaisista Matsuo Bashô, já conhecido do pú-blico letrado brasileiro. Ou um Prêmio Nobel como Kawabata.Ou um genial samurai de direita como Mishima. É o terno Taku-boku Ishikawa, autor destes Tankas, carinhosamente publica-dos, em edição bilingüe, com transcrição alfabética, para aque-les que querem, além da palavra, a música e a imagem da poesia.

Quando Ishikawa nasceu, filho de um religioso budista, em 1885, fazia vinte anos que o Japão, aberto para o comércio com o Ocidente, industrializava-se em alta velocidade. Nesse mundo de rápidas transformações, Ishikawa, como bom poe-ta romântico, amargou seus 27 anos, levando uma vida de tu-berculoso, infernizada por dificuldades econômicas, confusões amorosas e familiares, além de fundas tensões ideológicas. As idéias socialistas eram uma novidade no Japão e a elas Ishikawa se atirou com todo o seu entusiasmo juvenil.

É significativo da sua época ver um poeta japonês, pra-ticante de uma forma aristocrática de poesia como o tanka, veiculando idéias de revolução e solidariedade com a classe trabalhadora. Nada mais estranha à literatura japonesa do que “preocupação com problemas sociais”. Além disso, os círculos literários que Ishikawa freqüentou estavam profundamente in-fluenciados pela literatura que se fazia no Ocidente, na época: Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Zola.

Mas foi numa forma ancestralmente nipônica que Ishi-kawa traduziu os vários ventos que sopraram sobre ele. O tanka (ou waka), que ele praticava, é o primo rico do haikai, que o Oci-dente já conhece há um século. Mais velho de, pelo menos, mil anos que o haikai, o tanka é uma forma fixa ligeiramente mais longa (31 sílabas) do que as parcas dezessete sílabas do hai-kai.Sempre foi a forma nobre da poesia japonesa, praticada nos cír-culos aristrocráticos e imperiais. Nas mãos de Ishikawa, o tanka

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funde a pungência do passado com as pressões do irremediável presente que acabava de chegar:

Há dias em que eu pensoSer minha linguagem,

Talvez, a do ventaA respeitável tradução brasileira, conduzida por dois

poetas, um japonês e um brasileiro, dão conta muito bem do significado básico do original dos Tankas. Não se trata, porém, de uma transcriação. Não foi recriada em português a fina tessi-tura de jogos sonoros que fazem a graça específica de Ishikawa e da poesia japonesa em geral, espelhismos sonoros onde as palavras se refletem como reflexos da lua na água. E passaram inadvertidos muitos jogos contidos nos ideogramas do original. Mas o essencial, talvez, já está conosco:

Mostrar um milagre qualquerE desaparecer

Enquanto estiverem surpresos

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Paulo Leminski

prosa estelar

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Os astronautas do texto que se preparem. Depois de 21 anos de trabalho e navegação, finalmente brilham as Galáxias do poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos. No início da viagem, o autor era um dos promotores da poesia concreta, e foi na extinta revista Invenção que publicou o plano de vôo e os primeiros fragmentos dessa sua “prosa longa”. Ampliando as fronteiras do projeto concreto, até então voltado principalmen-te para o poema curto, a carta de navegação espacial de Haroldo de Campos previa um livro de 100 páginas, permutáveis como as cartas de um baralho. Ele não chegou às 100 páginas, mas montou textos que não precisam ser lidos em sequência, regis-trando, no todo, o monólogo exterior de um poeta.

Galáxias é um livro difícil — num fluxo contínuo e sem pontuação, o escritor vai do “raro ao reles”, num trajeto que se expande para todos os lados, englobando experiências senso-riais e intelectuais, leituras e aventuras, vida e literatura num só momento textual. Ou, como escreve o próprio Haroldo de Campos:

Um livro de viagem em que o leitor seja a viagem um livro-a-reia escorrendo entre os dedos.

Completado o percurso, cabe a pergunta: Galáxias é pro-sa ou poesia? Entre a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia, esse livro representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em dire-ções opostas. Nessa experiência literária, Haroldo de Campos partiu também de extremos opostos, como a contenção poéti-ca das últimas obras do poeta francês Stéphane Mallarmé, e a prosa alucinada do Finnegans Wake, o derradeiro romance do irlandês James Joyce. No final, a prosa parece sair ganhando por pouco no livro de Haroldo de Campos. E, no ambiente da prosa,

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Galáxias representa a experiência mais radicalmente inovadora levada a cabo no Brasil desde 1956, quando foi publicado Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa.

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bonsai

niponização e miniaturização da poesia brasileira

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Felizmente, não se realizou a profecia de Rudiard Ki-pling: “O Ocidente é o Ocidente, o Oriente é o Oriente, jamais se encontrarão”.

Por desencontrários caminhos e variadas encontrovér-sias, Oriente e Ocidente, cada vez mais trocam sinais, apressan-do a unidade cultural da espécie humana, agora, em velocidades cibernéticas.

Todos os homens são, enfim, herdeiros da produção cul-tural de todos os homens, de todos os povos, de todas as épocas.

Os hindus são meio ingleses. A China adota Marx, e o chi-neseia. Os beatniks e os hippies da Califórnia e do mundo desco-brem o continente-zen.

A Ásia incorpora a tecnologia e a ciência européias. Mas o Ocidente é inundado pela yoga, pelas artes marciais, pela ma-crobiótica, por técnicas de massagem, pela acupuntura, pelo IChing, pela ginástica “tai-chi”, por mantras, nirvanas, “gurus” e “hare-krishnas”.

No plano horizontal, a influência do Ocidente, infinito da técnica, de horizonte a horizonte, como esta frase que escrevo, na horizontal, da esquerda para a direita.

O Oriente, o vertical, o mergulho nos abismos simbóli-cos dos signos ancestrais, os mantras, o inconsciente coletivo, a “alma”, o universo esquecido, lá em baixo (na escrita chinesa e japonesa, as frases são escritas de cima para baixo).

O Japão é o olho-do-ciclone do entrecruzamento Orien-te/Ocidente, horizontal/vertical.

Estranho de tudo é que as mais recentes conquistas da arte ocidental coincidam com características da arte japonesa mais tradicional:

— montagem atrativa (Eisenstein): ideograma, nô, ka-búki;

— distanciamento épico (Brecht): Nô, kabúki;

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— port-manteau-words, montagens verbais lewis-car-roljoycianas:-”kakekotaba”, as “palavras penduradas”, da literatura japone-sa (Nô, waka, tanka, senryu, haikai;).

— música “minimal” (Glass): música japonesa tradicio-nal;

— miniaturização e síntese poética (e. e. cummings, Pou-nd, Wiliam Carlos Wiliams, Oswald, poesia concreta) haikai, waka, tanka.

— linguagem analógica, ideogrâmica, não discursiva (Mc Luhan, poesia concreta).

No Brasil, a primeira influência direta da poesia japonesa parece ter sido sobre os Modernistas de 22, através de traduções francesas.

Guilherme de Almeida, nos anos 20, fez os primeiros “haikais”, adotando as três linhas (versos com cinco, sete e cin-co sílabas), mas introduzindo um artificioso e maneirista siste-ma de rimas, que não existem em japonês (o superego parnasia-no do soneto era muito forte...).

Oswald de Andrade, amigo e parceiro de Guilherme, deve ter tirado do haikai a idéia para seus “poemas-minuto”, milio-nários segundos de ultra-informação.

O ideal de brevidade advindo do haikai não morreu com 22. Encontramo-lo no Drummond em cujo caminho havia uma certa pedra...

Ou no Drummond, que se perguntava: “Stop. A vida pa-rou. Ou foi o automóvel?”

O imagismo do haikai ainda compareceria na poesia alta-mente icônica de Murilo Mendes. Ou na do isolado Mário Quin-tana.

A soneteira e suporífica Geração de 45 demonstrou todo o seu baixo repertório, ignorando-o.

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Nos anos 50, a palavra “hai-kai” é incorporada ao voca-bulário brasileiro, através do humorista Millôr Fernandes, que popularizou a palavra entre nós. Millôr é autor de inúmeros haikais notáveis.

Nessa mesma década, em S. Paulo, a poesia concreta pro-clamou a excelência do pensamento ideogrâmico, como método de composição poética. E começou a praticar uma poesia breve, sintética, anti-discursiva, verdadeiros hai-kais industriais.

Nos anos 70, por fim, a garotada da poesia marginal ou alternativa, crescida com manchetes de jornal, frases de “ou-t-door” e grafittis nas paredes das cidades que inchavam, co-meçou a fazer “hai-kais”, até sem querer. Waly, Chico Alvim, Chacal, Régis, Ana Cristina César, Alice Ruiz, todos o fizeram. Fazem. E farão.

Hai-kai é o nosso tempo, baby. Um tempo compacto, um tempo “clip”, um tempo “bip”, um tempo “chips”.

Essas brevidades lembram aquelas árvores japonesas, as árvores “bonsai”, carvalhos criados dentro de vasos minúscu-los, signos e seres vivos, produtos da arte e da paciência Expli-que quem puder. Os japoneses já estavam lá.

Paulo Leminski

história mal contada

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Neste Natal, você, leitor brasileiro, descontente com os rumos da ficção nacional, pode prestar um grande serviço às nossas letras. Dê a seu ficcionista favorito uma máquina foto-gráfica e um manual de instruções. Ele vai ficar radiante por po-der realizar sua verdadeira vocação secreta. E nós vamos ficarlivres de tantos contos e romances que se querem literatura mas não passam de jornalismo enfeitado com plumas e paetês do estilo mais em voga.

O mal é de família. Foi no século passado que a ficção brasileira contraiu o vírus do naturalismo, uma espécie de AIDS literária, que não deixa o escritor tirar os pés do chão. Desde então, a obsessão da narrativa brasileira é “refletir” a realidade nacional, como se a literatura pertencesse ao ramo da comer-cialização de espelhos. Nesse ponto, a ficção latinoamericana em geral dá um baile de bola em nossos contadores de histórias. Não admira o sucesso que tiveram entre nós, e continuam ten-do, os Borges, os Cortázar, os Rosa e os Bastos, os Lezama Lima, os Juan Rulfo da vida e da literatura. Comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latinoamericana pa-rece uma literatura que enlouqueceu.

Nós raramente enlouquecemos. Um certo bom senso lusitano pesa em nós como uma lei da gravidade que sempre nos devolve à terra a um nível imaginativo digno do dono do armazém da esquina. Boa parte da nossa ficção é contabilidade. Peguem o caso do chamado romance social dos anos 30. Tirando o caso de Graciliano Ramos (o de São Bernardo, não o de Vidas Secas), aquilo é naturalismo puro, aspergido com as águas ben-tas do realismo socialista.

No plano da linguagem, não há nada naqueles Lins do Rêgo, naquelas Rachel de Queiroz, naqueles José Américo de Al-meida, naqueles Érico Veríssimo que já não estivesse em Flau-bert, em Émile Zola, em Eça de Queirós ou em Aluísio Azevedo.

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Em Jorge Amado, uma certa ebulição imaginativa e lírica, pro-vocada, talvez, pela pimenta baiana, escapou, às vezes, dessa maldição fotográfico-naturalista que, como a liberdade do hino, abre as asas sobre nós. E produziu esse fenômeno: Jorge, o es-critor menos amado pela crítica e pelos intelectuais, é, até hoje, um campeão imbatível de vendagens e nossa única ameaça sé-ria ao Prêmio Nobel.

A evolução fotográfica da nossa ficção, com sua compul-são acadêmica, deixou de lado algumas de nossas riquezas na-turais. Machado de Assis, por exemplo, essa esfinge negra que até hoje ri de todos nós. Nunca vou me conformar com o fato de que o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, um romance de vanguarda em 1881, seja também o fundador e primeiro pre-sidente da Academia Brasileira de Letras. Machado, realmente, tinha muito senso de humor, esse humor que, dizem os enten-didos, é a forma superior da inteligência.

Humor era o que não faltava ao paulista Oswald de An-drade quando, nos idos de 20, publicou suas Memórias Senti-mentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, romances em mosaico, brincando com todas as formas e fórmulas. Nossa ficção atual, infelizmente, não descende de Machado nem de Oswald. Descende do realismo socialista, acadêmico e natura-lista, dos anos 30 e conta com o apoio irrestrito do mercado, natural patrocinador de todas as tendências médias, vale dizer, vendáveis. A historinha acessível, com começo, meio e fim, che-ga muito mais fácil à lista dos best-sellers, ao cinema, à rede Globo, aos nossos milhões de queridos ouvintes. Para que com-plicar as coisas?

Os tempos estão difíceis. A inflação é alta. Os escritores, como todo mundo, precisam vender, fazer sucesso e, se possí-vel, comer e tomar Chivas Regall, como qualquer pessoa neste país, já não tão tropical, mas sempre abençoado por Deus e bo-

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nito por natureza.A abertura do mercado internacional, via traduções,

também não aliviou nosso lastro naturalista e fotográfico. Ao contrário, europeus e americanos gostam mesmo é de Carnaval, mulata e samba. Em termos de linguagem, isso significa mais naturalismo, mais fotografia, menos experimentação e mais fi-delidade a um certo padrão de literatura em que o típico e o exótico sejam servidos numa bandeja contendo acarajé, licor de pequi, doce de goiaba e o abacaxi de Carmen Miranda.

É o Brasil rural que triunfa, com três gols de Jeca Tatu. A experiência urbana, em termos de linguagem e de vida, ain-da não tem status, literário, pelo menos a vivência da solidão e da solidariedade da metrópole ainda não teve seu narrador. Há uma estranha força conservadora na ficção. As grandes re-voluções literária brasileiras, que nem são tantas assim, envol-veram principalmente a poesia e os poetas. A prosa de ficção ficou assim sempre como um lugar onde as coisas se mantêm. O lugar do bom senso e do bom gosto e, sobretudo, o da forma de sucesso garantido.

Mas até nesse terreno as queixas prosseguem. A ficção brasileira atual não está conseguindo realizar a única coisa que justificaria sua existência — a criação de boas histórias. Daque-las histórias tão redondas que traduzissem a experiência uni-versal numa forma particular. A última grande fábula brasileira é a de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. E um roman-ce de 1956. De lá para cá, nossos ficcionistas se debatem entre o naturalismo e a máquina fotográfica. Entre a dificuldade de narrar uma realidade nova e a tirania de uma linguagem velha. Neste país, não é só a História, com maiúscula, que vai mal. A história, no sentido literário, também não anda muito bem das pernas.Talvez, um dia, isso tudo dê um bom romance. Ou um filme.

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