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Aplicação da Pena - Rodrigo Duque Estrada Roig - 2015.pdf

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    limites, princpios e nouos parametros

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    Data de fechamento da edi~Ao: 1102014

    Indice paro catlogo sistemtico: l. Brasil: Oireito penol 343 (81)

    COU343 (81)

    Roig, Rodrigo Duque Estrada Aplico~iio do peno : limites, princpios e novos

    porometros / Rodrigo Duque Estrado Roig. - 2. ed. rev. e ompl. - Sao Paulo : Sorolvo, 2015.

    Bibliografa. l. Oireito penol 2. Direito penol Brasil l. Ttulo.

    ISBN 9788502616196

    Produfo grfica Morfi Rompim

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    3. Limites a aplicaco das penas privativas de liberdade. Urna nova proposta discursiva.................................... 49 3.1. Urna nova proposta discursiva: a real importan-

    cia dos principios constitucionais penais e o de- ver jurdico-constitucional de minimizaco da afetaco do indivduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

    3.2. Princpios limitadores da nterpretaco da lei penal quanto a aplicaco da pena....................... 57 3.2.1. Principio da Humanidade 60 3.2.2. Principio da Legalidade........................... 71 3.2.3. Princpio da Fundamentaco da Pena.... 77 3 .2.4. Princpio da Lesividade. .. . .. .. . .. .... .. .. . .. ..... 86

    2. Critrios e atuais orentaces da aplicaco das penas pri- vativas de liberdade no Brasil.................................... 27

    aplcaco da pena 17 1. Ccnslderaces iniciais: bases para um novo discurso da

    Introduco, .. . .. . ... . . . .. .. . ... . .. .. .. . .. . . .. .. .. . .. . . .. .. . .. .. . . .. ... .. .. . .. ..... 13 Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    SUMRIO

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    205

    190 5 .1. Tendencia exasperadora da pena (agravantes,

    qualificadoras e causas de aumento) . 5.2. Tendencia mitigadora da pena (atenuantes e

    d d. . . - ) causas e lillllllll.~ao .

    189

    5. Os grandes vetares da aplicaco da pena privativa de li- berdade: "tendencia exasperadora" e "tendencia miti- gadora'' .

    4. Novos parmetros para a xaco da pena-base............. 115 4.1. Incompatibilidade constitucional das finalidades

    de "reprovaco e prevenco do crime", tracadas pelo art. 59 do Cdigo Penal.............................. 117

    4.2. Sentido e conforrnaco constitucional das cir- cunstancias judiciais do art. 59 do Cdigo Penal 134 4.2.1. Culpabilidade do agente . . .. .. . . . .... .. .. . .. ..... 136 4.2.2. Antecedentes do agente.......................... 143 4.2.3. Conduta social do agente....................... 153 4.2.4. Personalidade do agente......................... 158 4.2.5. Motivos do crime. .. ... .... ... .... ... .... .... ... ..... 167 4.2.6. Circunstancias do crime.......................... 174 4. 2. 7. Consequncias do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 4.2.8. Comportamento da vtima..................... 183

    3 .2 .5. Princpio da Intervenco Mnima . . . . . ... . . . . 89 3.2.6. Princpio da Culpabilidade...................... 93 3.2.7. Princpio da Transcendencia Mnima..... 97 3.2.8. Princpio da Proporcionalidade 99 3.2.9. Princpio da Individualizaco da Pena.... 107 3.2.10. Princpio da Presunco de Inocnca.i..; 112

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    Referncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 Conclusa o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281

    6. A crise do dogma da pena mnima e a necessidade de construco de um novo modelo interpretativo de aplica- ~ da pena privativa de liberdade ...... ........ ...... ......... 261

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    Autor de um dos melhores estudos sobre execuco penal (Direi to e prtica histrica da execudio penal no Brasil, Ria de Janeiro: Revan, 2006), Rodrigo Duque Estrada Roig concentrou seu tra- balho doutoral na espinhosa questo da aplicaco da pena. O resultado, contido neste livro, representa a mais criativa contri- buico brasileira a matria, coerentemente ancorada na teoria negativa da pena.

    Aplicaco da pena um problema moderno, que chega a reflexo penalstica com a pena do capitalismo industrial, ou seja, a priso. Nao existiu como problema no direito romano, no qual, de modo geral, as penas nao eram divisveis e mensurveis - e isso bastaria - e, tambm, no qual, a partir da superaco do processo das questiones pela cognitio extra ordinem (supera

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    Sabemos como a reaco as penas judiciais voluntariosas do absolutismo consistiu, na esteira da ideia matriz de legalidade, num sistema de penas frxas estabelecidas na lei para um juiz que fosse apenas, como disse Montesquieu, a sua boca. O exemplo mais acabado foi o Cdigo Penal revolucionrio de 1791, porm nosso Cdigo imperial de 1830 observou essa linha.

    meticulosas tarifas composicionais da tradico germnica regu- lavam suficientemente o valor da Busse. Por outro lado, o poder punitivo senhorial prescindia de limites; j no baixo medievo, di- reitos locais reivindicavam fossem as sances aplicadas secundum legis et consuetudinis, visando tambm reduzir os casos nos quais o ru estarla abandonado in miseri.cordiam aos impulsos punitivos do senhor.

    Aplicaco da pena nao existe, pois, como questo poltico- -criminal ou como questo jurdica, na Antiguidade nem na Ida- de Mdia. As condices histricas de seu aparecimento sao mo- dernas. Com a manufatura e a industrializaco, surge a novidade punitiva que dominar a cena: a priso, o dispositivo disciplinar do proletariado, mensurvel, como o salrio, pelo tempo. Assis- tiramos lago ao fracionamento do prncipe. No ancien rgime, o prncipe engolfava a lei e a sentenca: pelo princpio da justice rete nue, podia ele em qualquer momento intervir e decidir sobre qualquer processo criminal. A separaco de poderes, enunciada no sculo XVIII, transferirla do prncipe para o juiz, em tese, aquele que Hobbes considerou o maior de todos os poderes pos- sveis, o "poder do gldo", o poder punitivo. Nao cabe aqui re- volver os estratagemas, alguns contemporneos, para que essa transferencia ficasse no discurso e na aparencia; recordemo-nos tao somente de que a polcia judiciria se subordina - e nao h como ser diferente - ao executivo.

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    Foi no auge do positivismo criminolgico e durante o par- to das medidas de seguranc;a, para as quais urna ntervenco pu- nitiva com duraco fixa seria disfuncional, que surgiu o paradig- ma da individualizaco da pena, de urna espcie de contabilidade do merecimento penal do condenado. O livro de Saleilles de 1898, e ostentava um prefcio de Tarde. Argumentos positivis- tas fundamentavam profusamente essa contabilidade, irrigados pelo prevencionismo especial de autor.

    Mas para um rigoroso direito penal do fato sobraria um novo problema, precisamente o problema da aplicaco da pena ... a partir de critrios positivistas. Olhem para nosso art. 59: ressal- vada a vox culpabilidade, nao parece urna cesta de lixo de detritos e sobras do positivismo?

    Enfrentar e desconstruir esses elementos tarefa a qual al- guns poucos penalistas brasileiros vm se dedicando. Menciono Salo, Amilton e Juarez Cirino como representantes destacados desse grupo, ao qual vem agora agregar-se Rodrigo Duque Es- trada Roig.

    O Autor projeta o problema nas garantias constitucionais - nas quais est situada a prpria individualizaco - e nos prin- cpios bsicos do direito penal, lidos pela tica de urna dogmtica funcional teleologicamente redutora. A partir dessa projeco, mediatizada por urna teoria que se afasta da seita retribucionista e das mentiras prevencionistas, abre-se o exame particularizado das chamadas circunstancias judiciais, das atenuantes e agravan- tes e das minorantes e maj orantes, dentro da dinmica trifsica desde a reforma de 1984 inquestionvel.

    O exaustivo trabalho que ora vem a lume representa urna contribuico da maior relevancia para a grave questo da aplica- c;o da pena, casca de banana na qual escorregam frequentemen- te doutrinadores e tribunais. Seu reconhecimento aumentar na

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    Arpoador, 15 de agosto de 2012 NILO BATISTA

    razo direta da disperso das trevas punitivistas que hoje nos as- solam. Aqui est um livro do qual se pode dizer que, senda atual para o leitor de hoje, s-lo- mais ainda para o leitor do futuro.

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    A aplicaco da pena privativa de liberdade traduz a injunco de urna das mais graves ntervences individuais previstas em nosso ordenamento. Sua densidade sobre o projeto de vida do senten- ciado, o amplo espectro de outras penas e a necessidade de maior aprofundamento terico fazem da determinaco da pena priva- tiva de liberdade o cerne do presente trabalho.

    Antes mesmo de se discorrer acerca do tema proposto, faz- -se necessrio pontuar que esta obra somente se mantm vlida enquanto nao prescindirmos da pena privativa de liberdade e so- mente para os casos em que nao for realmente cabvel a adoco de instrumentos alternativos ao encarceramento. De posse dessa premissa e partindo de cortes tericos e prticos da aplicaco da pena privativa de liberdade, busca-se apontar possveis soluces para torn-la menos ruinosa.

    Nao caber aqui debater a problemtica dos critrios dire- tivos da cominaco da pena privativa de liberdade, tema este extremamente inquietante e complexo, que por si s merece o adequado aprofundamento terico em urna nvestgaco espe- cificamente destinada ao tema. Operado o devido corte, ele- geu-se por objeto o estudo da aplicaco da pena privativa de liberdade.

    INTRODUtAO

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    Algumas indagaces necessitam ser respondidas quando se pretende analisar a fundo a tarefa de aplicaco da pena privativa de liberdade. Como se sabe, as bases do atual critrio de injunco penal foram fundamentalmente trazidas a partir do Cdigo Pe- nal de 1940, que rompera coma tradico aritmtica da mensura- c;ao penal, em pral de parmetros subjetivos a serem adotados pelo magistrado aplicador.

    Esse modelo incutiu no pensar e proceder jurdicos a ideia de que a determinaco da pena aplicvel dentre as caminadas, bem como a fixaco, pelo juiz, da quantidade de pena aplicvel deveriam atender aos antecedentes e a personalidade do agente, aos motivos, as circunstancias e consequncias do crime, entre outros fatores ao longo do tempo acresddos. Mais tarde, sobre essa ideia aderiu-se um sistema procedimental prprio, que consis- te na diviso trifsica da aplicaco da pena privativa da liberdade.

    Surge, ento, o primeiro questionamento, que consiste em investigar se um modelo construdo h dcadas - mesmo com suas modificaces posteriores - ainda se mostra adequado aos novas paradigmas tracados pela Constituico de 1988, em espe- cial no que tange aos objetivos fundamentais de construco de urna sodedade livre, justa e solidria (art. 32, 1, da CRFB), erradi- caco da marginalzaco e reduco das desigualdades sodais ( art. 3~, 111, da CRFB) e de promoco do bem de todos (art. 3~, IV, da CRFB), bem como ao fundamento da dignidade da pessoa hu- mana (art. 1~, 111, da CRFB).

    Da resposta negativa a primeira indagaco emergeria outra, intimamente associada. Consiste na perquirico acerca da possi- bilidade de se construir um modelo de aplicaco da pena privati- va de liberdade adequado a Carta de 1988 e apontado no sentido da liberdade, justica e solidariedade sociais, na promoco do bem

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    comum e no respeito a dignidade humana. Senda vivel o dese- nho desse modelo, surge a ltima questo: sob que bases deve ser edificado? As respostas a essas tres interrogaces represen- tam o eixo central desta obra.

    O presente trabalho busca, afinal, apontar urna nova viso interpretativa dos princpios penais que servem a aplicaco da pena privativa de liberdade, revisitar as circunstancias judidais e as anunciadas finalidades da pena a partir de seus cotejos coma Constituico de 1988 e reavaliar os critrios de mensuraco da pena privativa de liberdade, revolvendo o tema sob urna tica eminentemente crtica, com o propsito de contribuir para o avance de sua discusso.

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    Na jurisprudencia e em parte da doutrina brasileira ainda se en- centra enraizada a concepco de que o processo de aplicaco da pena privativa de liberdade consiste de urna tarefa procedimen- tal-subjetiva do juiz, sem que haja a necessidade de reflexo quanto a prpria legitimidade do sistema penal. Ignorando a des- Iegitimaco do sistema penal, em regra os intrpretes e aplicado- res do Direito procuram atribuir algum sentido a esta tarefa, co- mumente fazendo uso de discursos positivistas, retribucionistas ou periculosistas, muitos deles se apegando - outros simples- mente desistindo de conferir algum significado - as aclamadas funfes da pena.

    Convencionou-se, portanto, nao demandar a realizaco de aportes tericos mais profundos para a atividade sancionatria,

    A principal fu.nfao que cumpri.mos a de pr limites ao exercicio do poder punitivo. Mais ainda: ou servimos

    para isso ou nao servimos para nada. EUGENIO RAL ZAFFARONI

    Considera~oes iniciais: bases para um novo discurso

    da apllcaco da pena

    CAP'IULO 1

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    1. Verifica-se, na prtica, a comum repetico acrtica de expresses e funda- mentos positivistas ou discriminatrios consagrados na aplicaco da pena (ex. personalidade voltada para o crime, dolo intenso, crime que causa grave como- irao social), sem que sobre eles se debruce mais detalhadamente o magistrado aplicador. De fato, muitos dos fundamentos e expresses sao empregados sem que o aplicador sequer saiba como e por quem foram cunhados e difundidos. O excesso de trabalho, o exguo tempo para a elaboraco de sentencas e a ne- cessidade de produtividade tendem a eliminar juzos crticos sobre o mode- lo adotado. Em profunda crtica a burocratizaco das agencias judiciais, cf. ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio deJanei- ro: Revan, 2001, p. 142.

    A realidade anteriormente tracada demonstra que o mo- mento da aplcaco da pena continua a ser considerado secund- rio diante do caminho conducente a condenaco, Releva, na pr- tica, saber se o acusado ser ou nao condenado, passando a medico da pena a simples ato exauriente e, nao raro, meramen- te formal de se dar cabo a atuaco do juzo a quo.

    Justificvel, assim, o questionamento doutrinrio quanto a exacerbada preocupaco com a construco de um preciso sistema dogmtico quando se trata de se determinar o sim ou o nao da aplicaco de urna sanco penal, a fim de proteger o ru do arbtrio judicial, para lago em seguida, precisamente no momento da

    bastando, para que o proceder do magistrado sej a considerado apropriado, que este na prtica se valha de modelos1 de sentenca compartilhados por outros magistrados, siga o plano tracado pelo art. 68 do Cdigo Penal e nao se afaste da jurisprudencia dominante. Enfim, a supervalorizaco de um proceder automa- tizado escondeu por muito tempo a falta de urna teorzaco mais sria e sistemtica da medico da pena, encobrindo ainda a ne- cessidade de urna fundamentaco mais densa quanto as premis- sas utilizadas pelo julgador na sua opco por urna pena mais ou menos extensa.

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    2. Nesse sentido, ZIFFER, Patrcia. Consideraciones acerca de la individuali- zacin de la pena. In: VV AA. Determinacin judicial de la pena. Julio Bernardo Maier (Comp.). Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993, p. 90. Em anlise sobre a discricionariedadejudicial na aplicaco da pena, cf. BITENCOURT, Cezar Ro- berto. O arbtrio judicial na dosimetria penal. Revista dos Tribunais, v. 85, n. 723. Sao Paulo, jan. 1996; GALVAO, Fernando. AplicafO da pena. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. 3. Cf. HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Trad. de Fran- cisco Muoz Conde y Luiz Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984, p. 270. No mesmo sentido, ZAFFARONI, Eugenio Ral; PIERANGELLI, Jos Henrique. Manual de direito penal: parte geral. 7. ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 706. Em crticas semelhantes, cf. BERTONI, Eduardo Andrs. La cesura del juicio penal. In: VV AA. Determinacin judicial de la pena. Julio Bernardo Maier (Comp.). Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993, p. 116; SILVA SNCHEZ,Je- ss-Mara. /ntroducin: dimensiones de la sistematicidad de la teora del delito. In: WOLTER,Jrgen; FREUND, Georg (eds.). El sistema integral del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 21. 4. RODRIGUES, Anabela de Miranda. A determinaciio da medida da pena pri vativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 32. Tambm em sentido crtico, cf. BUSTOS RAMIREZ,Juan. Medicin de la pena y proceso penal. Hacia una nueva justicia penal. Buenos Aires: Presidencia de La Nacin, 1989, t. 1, p. 329.

    fixaco da pena, considerar o mesmo arbtrio inatacvel, por ine- rente a prpria natureza da mensuraco da pena2

    Por essa razo, a doutrina rejeita denominar o estudo anal- tico da atribuco penal como "Direito da Aplicaco da Pena", relegando-o a um papel evidentemente marginal em face da teo- ria do deliro",

    Tal constataco evidencia a necessidade de aporte de regras dogmticas e principios da teoria do delito - a frequentemente acionados - para a medico da pena privativa de liberdade, con- ferindo-lhe relativa autonoma e relevancia e preservando os es- forces dogmticos de limitaco at ento despendidos4 Eis urna das grandes tarefas da ciencia penal moderna.

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    5. Nesse sentido, ZAFFARONI. Op. cit., p. 186. 6. Cf. MIR PUIG, Santiago. Funcin de la pena y teora del delito en el Estado Social y Democrtico de Derecho. In: MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrtico de Derecho. Barcelona: Ariel, 1994, p. 34. Ainda sobre o tema, GONZLES CUSSAC,Jose Luiz. Derecho penal y teora de la democra- cia. In: Cuadernos jurdicos, Revista Mensal de Derecho, n. 30, p. 12, maio 1995.

    Em matria de aplicaco da pena privativa de liberdade, a construco de bases para um discurso redutor depende essen- cialmente da superaco, por parte da doutrina crtica e de con- tenco do poder punitivo, do desafio de apontar seletivamente quais regras dogmticas passam pelo crivo da prpria constiru- cionalidade (podendo, assim, ser aportadas para a mensuraco da pena) e, ao mesmo tempo, romper com o discurso jurdico tradicional, que busca sua legitmaco atravs da dotaco de fun- ces a pena e da aceitaco dos limites impostas pelas agencias nao judiciais5 do sistema penal. Grosso modo, trata-se de, dogma- ticamente, construir desconstruindo.

    Parte do desafio crtico inicia-se coma compreenso de que a pena privativa de liberdade monoplio estatal e se apresenta como reflexo da opco poltica adorada pelo Estado. Consequen- temente, os fins pretendidos por determinado Estado de Direito se atrelam a prpria forma pela qual este encara a pena. Nesse contexto, mostra-se estreita a vnculaco entre pena, forma de governo e regime de governo, senda carreta afirmar que a cone- xo entre Estado e Direito Penal semente pode ser feita por meio da Constituico vigente em cada momento6

    Nossa Constituico inicia seu texto (art. 1~) proclamando ser o Brasil urna Repblica que se constitui em Estado Democrtico de Direito, adorando assim a forma de governo republicana e o regime democrtico de governo. Democracia e Republicanismo

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    7, BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 147. Sobre o tema, conferir ainda PINHO, Ana Cludia Bastos de. Direito penal e estado democrtico de direito: urna abordagem a partir do garantismo de Luigi Ferrajoli. Rio deJaneiro: LumenJuris, 2006, p. 50-51. 8. A construco do sentido de dignidade aqui realizada teve a preocupaco de nao recair em mais um discurso retrico de evocaco da dignidade humana, ret- rica esta que por muitas vezes esvazia a relevancia e aplicabilidade do postulado. O sentido de dignidade humana aqu esposado funda-se de maneira concreta na humanidade das penas, cuja extenso nao se limita a vedaco das penas de mar- te, carter perptuo, trabalhos forcados, banimento ou cruis, mas de qualquer privaco da liberdade cuja aplicaco enseje a afetaco individual do acusado para alm do constitucionalmente autorizado. Sobre as distintas dimenses do princ- pio e sua relevancia, cf. SARLET, lngo Wolfgang (org.). Dimenses da dignidade. Ensaios de filosofa do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

    sao, portanto, juntos e de urna s vez, os elementos basilares do Estado de Direito brasileiro e os parmetros a serem seguidos na aplicaco da pena privativa de liberdade.

    Sabe-se que nosso Estado Republicano e Democrtico de Direito possui como objetivos fundamentais a construco de urna sociedade livre, justa e solidria (art. 32, 1, da CRFB), a erra- dicaco da marginalzaco e reduco das desigualdades sociais (art. 32, 111, da CRFB) e a promoco do bem de todos (art. 32, IV; da CRFB) e como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 12, Ill, da CRFB).

    De fato, a dignidade humana atua como postulado inspira- dor de todos os direitos fundamentais, permeando a interpreta- c;ao das normas e dos principios em matria penal. Em ltima anlise, toda ordem jurdica a ela se reporta7 Este o sentido que se deve atribuir ao princpio8

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    9. Cf. WOLTER, Jrgen; JUNG, Heike. 140 Jahre Coltdammer s Archiv fr Strafrecht, Goltdammer's Archiv fr Strafrecht, v. 143, n. 5, 1996, p. 245. Por sua vez, afirmando a natureza poltica da atuaco do Poder Judicirio, cf. KARAM, Maria Lcia. Aplicaco da Pena: Por urna nova atuaco da justica criminal. Revista Brasileira de Ciencias Criminais. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, n. 6, 1994, p. 122-123.

    . . ' . ongmano. A atuaco do juiz somente possui legitimidade substitutiva

    da investidura popular e democrtica se seguir rigidamente a Constituico. Considerando que o escapo constitucional de 1988

    Tendo em vista que a dimenso do significado de dignidade da pessoa humana e humanidade das penas abrange a necessida- de de se evitar ao mximo que os sujeitos de direito sejam afeta- dos pela intervenco do poder punitivo, e que a construco de urna sociedade livre, justa, solidria, orientada no sentido da er- radicaco da marginalzaco e reduco das desigualdades sociais e que promova o bem de todos mostra-se incompatvel com a habilitaco desmesurada e irracional daquele poder, possvel concluir pela existencia de um autentico dever jurdico-constitu- cional das agencias jurdicas, em especial a judicial, no sentido de minimizar a intensidade de afetaco do poder punitivo sobre o indivduo sentenciado9

    Trata-se, afinal, de um compromisso constitucional das tais agencias, firmado em defesa da substancialidade dos direitos fundamentais do acusado. A ntensfcaco do encarceramento ope-se a liberdade, justica e solidariedade sociais, contribu para a marginalizaco social, obsta a reduco das desigualdades so- ciais e deixa de promover o bem de todos, ao olvidar o bem dos acusados. Diante dessas constataces, chega-se a concluso de que a reduco da magnitude aflitiva do indivduo condenado foi, em suma, o sentido poltico-criminal tracado pelo constituinte

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    10. Sobre o tema, cf. SOUTO, Miguel Abel. Teoras de la pena y lmites al ius puniendi desde el estado democrtico. Madrid: Editorial Dilex, S. L., 2006. 11. ZAFFARONI. Op. cit., p. 202.

    A par de consideraces quanto ao carter social do Estado brasileiro, possvel constatar que o sistema penal um fato de poder e, "se o sistema penal um fato de poder, a pena nao pode pretender nenhuma racionalidade, ou seja, nao pode ser explica- da a nao ser como manifestaco do poder?". A constataco quan- to a natureza do sistema penal, aliada a percepco da pena como

    o de minimizar os danos sociais, morais e existenciais da expe- riencia penal sobre o sentenciado, exatamente este o norte a ser adotado pelo magistrado aplicador. Em outras palavras, na ainda considerada necessria tarefa de aplicaco da pena privativa de liberdade, a perseguico do desgnio constitucional redutor pas- sou ento a ser seu nico fundamento de legitimidade.

    Encerrando este ciclo de concatenaco lgica, possvel concluir que o dever jurdico-constitucional de reduco da in- tensidade de afetaco do indivduo representa o cerne de urna concepco republicana e democrtica da aplicaco da pena, ten- do em vista que a essncia da democracia encontra-se na pr- pria liberdade1.

    O prprio modelamento do Estado brasileiro como de cunho social tambm explica a opco poltico-criminal do cons- tituinte de minimizar a afetaco do indivduo vtima da seletivi- dade punitiva. Nesse aspecto, compete a agencia judicial cumprir a sua funco social de nao apenas compensar os efeitos da seleti- vidade, mas de restringir ao mximo a dessocalizaco causada pela imposico de extensos ou desnecessrios perodos de encar- ceramento.

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    12. Nesse sentido, cf. BARRETO, Tobas. O fundamento do direito de punir. In: Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 173-179. 13. ZAFFARONI. Op. cit., p. 172.

    fenmeno poltico12, demanda da agencia judicial a assunco de um papel protetor do polo desprovido, cabendo a ela reduzir ao mnimo a aco do poder punitivo politicamente exercido.

    Especificamente no tocante a aplicaco da pena privativa de liberdade, o exerccio redutor pela agencia judicial consiste do reconhecimento de que a habiliraco do poder punitivo se encer- ra no momento em que se reconhece que determinada pessoa criminalmente responsvel por um fato delitivo (o que se faz fi- gurativamente pelo uso da expresso "lsto posto, condeno ... "),

    Urna vez senda atribuda a responsabilidade criminal por um fato delitivo, deve imediatamente cessar o influxo condena- trio, iniciando a atividade judicial redutora de danos - encar- nada na corriqueira expresso "Passo a dosarlhe a pena ... ", ta- refa esta completamente imune a consideraces discriminatrias, moralizantes, preventivas ou repressivas, de modo que o proces- so de injunco da pena privativa de liberdade represente de fato o ltimo momento de contenco racional do poder punitivo, antes que este promova a afetaco do projeto existencial do indi- vduo condenado.

    A presente proposta discursiva de cunho redutor insere-se no processo de "construco de um novo discurso jurdico-penal, que aceite a deslegitimaco do exerccio de poder do sistema pe- nal e que se limite a pautar as decis6es das agencias judiciais com o mesmo objetivo poltico de reduzir a violencia [ ... ]"13, violencia aqui entendida tambm como aquela produzida em face do sen- tenciado, de sua familia e da prpria coletividade, pelo aciona- mento da privaco da liberdade. O novo discurso jurdico-penal

  • 25

    14. Idem, p. 233. 15. Cf. PAGANELLA BOSCHl,Jos Antonio. Das penas e seus criterios de apli cadio. 4. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 35.

    deve ater-se, portanto, a duraco, gravidade e implicaces da pena privativa de liberdade, levando em consderaco que esta um fato de poder e que "a condico de prisioneiro poltico deve ser limitada no tempo e em seus efeitos, em obediencia a crit- rios de mxima irracionalidade tolervel" 14

    A nova proposta discursiva, partindo de urna concepco ne- gativa da pena, encontra seu contedo poltico na opco republi- cana e democrtica da aplicaco da pena como contrapoder punitivo, seu contedo jurdico nos principios de ndole constitu- cional (sobretudo o da humanidade) e seu contedo tico no prprio escapo de reduco da violencia provocada pela aco do sistema penal. A sua consolidaco demanda, assim, a postura de se atribuir profundo vigor aos principios e fundamentos consti- tucionais, de modo que possam ser empregados de forma con- creta e eficaz para a tutela dos direitos fundamentais, tracando limites racionais a aco do poder punitivo15

    Como concluso, possvel asseverar que a flexibilizaco da barreira protetiva da agencia judicial, por meio da utilizaco da sentenca como instrumento polticamente repressivo e defensi- vista, conduz a um processo de potencalizaco da violencia esta- tal, despida de qualquer contedo poltico, jurdico e tico e pra- ticada justamente pela agencia capaz de cante-la.

  • 27

    1. Afirmando que as regras legais elaboradas numa poca de tramsiciio nao po dem servir de reguladoras de uma sociedade plenamente democrtica, cf. FERRAZ, Nelson. Aplicaco da pena no Cdigo Penal de 1984. Revista dos Tribunais, v. 75, n. 605. Sao Paulo, mar. 1986, p. 428.

    Os atuais critrios da aplicaco da pena privativa de liberdade no Brasil sao delineados pela Reforma Penal de 1984, promovida em meio a urna srie de mudancas sociopolticas sofridas ao lon- go do perodo de exceco democrtica, iniciado a partir do gol- pe de 19641

    Diversamente do Cdigo de 1940, que em seu art. 42 limita- va a individualizaco penal a fixaco das penas aplicveis dentre as caminadas e da quantidade da pena nos limites legalmente estabelecidos, a nova parte geral amplia a discricionariedade ju- dicial tambm para a aprecaco do regime inicial de cumpri- mento da pena privativa de liberdade e da eventual substituico desta por outra espcie de pena, se cabvel.

    Critrios e atuais orlentajes da apllcaco das penas privativas

    de liberdade no Brasil

    CAP'IULO 2

  • 28

    O ponto nodal da nova sistemtica da medico da pena tra- zida pela reforma encontra-se no art. 59, que vincula a quantida- de, o regime de cumprimento e a qualidade da pena a culpabili- dade, aos antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, aos motivos, as circunstancias e consequncias do crime, bem como ao comportamento da vtima, atrelando tais circuns- tancias aos escapos poltico-criminais de reprovaco e prevenco do crime.

    Nesse sentido, possvel verificar, de incio, que a Reforma Penal de 1984 aderiu a tendencia subjetivista na aplicaco da pena privativa de liberdade, promovida pelo Cdigo de 1940. Em corroboro a esta constataco est o fato de que, das oito circuns- tancias judiciais arualmente elencadas, cinco delas (motivos do crime e culpabilidade, antecedentes, conduta social e personali- dade do agente) conduzem a urna anamnese judicial sobre a pes- soa do acusado, urna sobre o comportamento da vtima (tam- bm apresentando matizes de subjetividade) e somente duas de carter eminentemente objetivo (circunstancias e consequncias do crime).

    Nao deve ser olvidado ainda que, em caso de concurso de agravantes e atenuantes, as circunstancias preponderantes conti- nuam a ser aquelas resultantes dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidencia (art. 67), to- das apontadas, de algum modo, para a pessoa do acusado. Sur- gem da as primeiras indagaces quanto a legitimidade do em- prego de dados pertencentes a esfera ntima do sentenciado,

  • 29

    Nelson Hungra, em que se fixa, inicialmente, a pena-base, obe- decido o disposto no art. 59, considerando-se em seguida as cir- cunstancias atenuantes e agravantes e incorporando-se ao clcu- lo, finalmente, as causas de diminuico e aumento.

    A aplicaco do critrio trifsico, muito embora permita o conhecimento da operaco realizada pelo juiz, admitindo a cor- reco especfica de equvocos, nao se mostra imune a crticas, sobretudo por conduzir a desconsideraco das circunstancias atenuantes quando a pena-base j se encontra em seu mnimo legal. De fato, o critrio nao consegue superar tal iniquidade, alimentada pela majoritria orentaco jurisprudencial no senti- do de que "a incidencia da circunstancia atenuante nao pode conduzir a reduco da pena abaixo do mnimo legal" (Enunciado n. 231 da Smula do Superior Tribunal de justica),

    A esta orientaco da aplicaco da pena se agrega outra igual- mente criticvel, no sentido de que a pena-base dever ser fixada atendendo-se ao critrio do art. 59 deste Cdigo, mtodo este que exige do magistrado a persecuco acrtica dos fins de reprovaco e prevenco do delito. Em outras palavras, o legislador demanda ao Poder Judicirio que cumpra a literalidad e de um dispositivo e, assim, abrace urna orientaco poltico-criminal ditada exclusiva- mente por aquele. Surge, nesse instante, um questionamento de grande relevancia, que consiste de indagaco tanto sobre o papel de cada um dos Poderes na construco de urna poltica criminal democrtica quanto dos limites franqueados a cada um pelo prin- cpo constitucional da separaco dos poderes.

    Prosseguindo na anlise dos critrios e atuais orentaces da aplicaco da pena privativa de liberdade, possvel verificar que, doutrinariamente, parte do atual debate brasileiro acompanha al- guns delineamentos e discuss6es travadas na dogmtica penal

  • 30

    2. Sem prejuzo da relevancia da discusso das teorias de aplicaco da pena em outros pases, as doutrinas alem e espanhola, por serem as mais debatidas em nosso pas, precisam ser esmiucadas e criticamente cotejadas com o direito penal brasileiro, facilitando a compreenso do debate aqui estabelecido.

    estrangeira, sobretudo aqueles conduzidos pelas dogmticas pe- nais alem e espanhola2 Faz-se necessrio um breve panorama do referido debate, sempre, porm, tendo-se em vista a necessidade de se estabelecer de anterno um olhar crtico sobre os aportes forneddos pela doutrina estrangeira, urna vez que as realidades sociais e jurdicas sao evidentemente dspares das brasileiras.

    Conforme estipulaco legal, a fixaco da pena no Direito Penal alemo deve considerar em particular os motivos e objeti- vos do autor, o nimo que fala do fato e a vontade empregada no fato, a medida da violaco ao dever, o tipo de execuco e os efei- tos culpveis do fato, os antecedentes do autor, suas condices pessoais e econmicas, assim como sua conduta depois do fato, especialmente seu esforco para reparar o dano, assim como o esforco do autor de lograr urna cornpensaco com a vtima (pa- rgrafo n. 46, item 2, do Cdigo Penal Alemo),

    Devem ser ainda consideradas, na aplicaco da pena, as con- sequncias que sao de se esperar da pena para a vida futura do autor em sociedade. E veda-se expressamente a consideraco de circunstancias que j sejam caractersticas do tipo legal (pargra- fo n. 46, item 3).

    Porm, o dispositivo que causa maiores discuss6es consiste daquele que aponta a culpabilidade do autor como fundamento para a fixaco da pena (pargrafo n. 46, item 1, do Cdigo Penal Alemo), Na tentativa de interpretaco de tal comando legal, surgiram distintas concepces acerca da culpabilidade e sua im- plicaco penal.

  • 31

    3. ROXIN, Claus. Poltica criminal e sistema jurdicopenal. Rio de J aneiro: Renovar, 2002, p. 31. 4. No sentido do texto, ROXIN, Claus. A culpabilidade como critrio limitativo da pena. Revista de Direito Penal, n. 11-12. Rio dejaneiro,jul.-dez. 1973, p. 10. 5. Nesse sentido, cf. PIACESI, Dbora da Cunha. Funcionalismo roxiniano e fins da pena. In: Temas de Direito Penal. Parte Geral. GRECO, Lus; LOBATO, Danilo (coords.). Rio dejaneiro: Renovar, 2008, p. 41.

    Doutrinariamente, merecem destaque algumas teorias. A primeira delas, encampada por Claus Roxin, afirma a culpabili- dade como vinculaco concreta entre agente e norma jurdica. A culpabilidade, balizada pela teoria dos fins da pena, encontra-se atrelada a "questo normativa de como e at que ponto preciso aplicar a pena a um comportamento em princpio punvel, se far ele praticado em circunstancias excepcionas'".

    Lago, consideraces de ordem preventiva geral e especial, assim como a funco !imitadora desempenhada pelo princpio da culpabilidade, deveriam orientar o juzo sancionatrio4 Cul- pveis seriam, grosso modo, aqueles que possuem a capacidade de se motivar segundo a norma jurdica, mas nao o fazem. Em suma, possvel asseverar que em lugar de um juzo nico de culpabilidade, Roxin evoca basicamente dais elementos: respon- sabilidade e vinculaco concreta entre agente e norma.

    O conceito de responsabilidade se constri a partir da adi- ~o de necessidades preventivas da pena a culpabilidade, toman- do o exame do ltimo elemento analtico do crime urna investi- gaco de cunho eminentemente poltico-criminal. Em ltima anlise, esse conceito permite o estabelecimento de urna cone- xo entre as teorias do delito e da pena, atrelando esta ltima a orientaces da prpria poltica criminal".

  • 32

    6. ROXIN. Op. cit., p. 10. 7. SCHNEMANN, Bernd. La funcin del principio de culpabilidad en el de- recho penal preventivo. In: SCHNEMANN, Bernd (Org.). El sistema moderno del derecho penal: cuestiones fundamentales. Trad. Jess-Mara Silva Snchez. Madrid: Editorial Tecnos, 1991, p. 174. 8. Idem,p.172.

    Da surgem os alicerces para a teoria da culpabilidade como limite superior ou teoria da proibifiio de desbordamento da culpabili dade (Schuldberschreitungsverbot). Segundo tal teora, a funco da pena situa-se na necessidade de proteco de bens jurdicos, apoiada consequentemente em consideraces de ordem pre- ventiva geral e especial. A medida da pena, desse modo, seria orientada unicamente por critrios preventivos, servindo o prin- cpio da culpabilidade como limite superior da intervenco pu- nitiva estatal6

    Urna importante vertente dessa teora, denominada teora da proporcionalidade pelo fato, descarta, no entanto, a ideia de urna relaco direta entre medida da culpabilidade e medida da pena.

    Nesse sentido, Bernd Schnemann sustenta que somente poderla haver urna pena adequada a culpabilidade do agente, se aquela fosse urna resposta lgica e racional a esta, perspectiva esta somente defendida pela teora da retribuico', O autor, com isso, expressamente diferencia necessidades preventivas da pena e culpabilidade, sustentando que enquanto a necessidade da pena fundamenta-se em consideraces de ordem preventiva, o princpio da culpabilidade deve ser encarado de modo exclusiva- mente limitador da admissibilidade da reprimenda. Com isso, o princpio da culpabilidade seria nao apenas insuficiente para fun- damentar a razo da pena, como tambm logicamente insufi- ciente para fundamentar o prprio quantum des ta 8

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    9. Idem,p.173.

    A teora da proporcionalidade pelo fato ( ou da pena pro- porcional ao fato), tambm apelidada de neoproporcionaiismo, baseia-se fundamentalmente na ideia de prevenco geral, res- tringida pela proporcionalidade do fato e pelo juzo de culpabi- , lidade. E o que sustenta Schnemann quando afirma que a me- dida da pena depende, desde perspectivas preventivas, em primeiro lugar, da gravidade da leso dos bens jurdicos e, em segundo lugar, da intensidade da energia criminal, competindo ao princpio da culpabilidade urna funco meramente limitado- ra, impedindo que sej am levadas em canta todas as circunstan- cias que o autor nao pode conhecer e que, portanto, por elas nao pode ser reprovado9

    Com a teora da proporcionalidade pelo fato, busca-se en- contrar a medida da pena considerada justa em funco do fato delitivo (viso retrospectiva), em lugar de se tentar, com a repri- menda, influenciar o autor ou terceiros alheios ao evento crimi- nal (vso prospectiva).

    A medida da pena dependeria, assim, exclusivamente da magnitude (gravidade) do fato (desvalor do resultado), razo pela qual devem ser buscados fatores que apontem para maior ou menor desvalor do fato. Trata-se de urna aproximaco a pr- pria teora do delito que busca a normatizaco dos elementos que influenciam a fxaco da pena privativa de liberdade, afas- tando, desta, consideraces subjetivistas quanto a personalidade do agente.

    Nesse sentido, defende Schnemann o banimento da apre- caco de sutilezas da personalidade do autor, frequentemente oriundas de impresses individuais do julgador e conducentes a

  • 34

    10. SCHNEMANN. Op. cit., p. 175-176. 11. HORNLE. Op. cit., p. 44. Tatjana Homle tambm esclarece que as gradua- s:oes da medida da culpabilidade somente sao possveis em sentido redutor, ou seja, em caso de concorrncia de causas de diminuico da culpabilidade. Nunca como forma de se incrementar a medida da culpabilidade. Idem, p. 54. 12. Nesse sentido, sustentajescheck que a culpabilidade constitui um postula- do supremo da poltica criminal, que possui natureza constitucional em sua fun- s:ao limitadora da pena, mas tambm em sua fundamentaco. Cf. JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Barcelona: Bosch, 1981, v. II, p. 561 et seq.

    desigualdade e a irracionalidade na aplicaco da pena,

  • 35

    13. Em defesa da teoria, cf. ZIPF, Heinz. Princpios fundamentales de la deter- minacin de la pena. In: Cuadernos de Poltica Criminal, n. 17. Madrid, Edersa, 1982, p. 353 et seq.; ROXIN, Claus. La determinacin de la pena a la luz de la teora de los fines de la pena. In: Cul;pabilidad y prevencin en derecho penal. Trad. e notas de Francisco Muoz Conde. Madri: Reus, 1981, p. 100. J na Espanha, GARCA ARN, Mercedes. Los criterios de determinacin de la pena en el derecho espaol. Barcelona: Ediciones de la Universidad de Barcelona, 1982, p. 202.

    simplesmente nao haveria como se medir "quanto o agente pode agir de outra forma".

    Dentre as teorias sobre aplicaco da pena, a que mais se des- taca por sua predominancia na doutrina13 e jurisprudencia ale- mas a Teoria do espaco de jogo (Spielraumtheorie), tambm deno- minada Teoria do mbito de jogo ou Teoria da margem de liberdade. Trata-se de urna teoria elaborada pela jurisprudencia alern que sustenta, em linhas gerais, que a pena deve corresponder a medi- da (marco) da culpabilidade, medida esta encontrada dentro de um intervalo mnimo e mximo no qual todas as penas seriam consideradas adequadas.

    A pena ajustada a culpabilidade nao seria aquela exprimida por urna grandeza exata, mas sim a escolhida pela margem de liberdade conferida ao juzo, dentro de urna escala penal ( espac;o de jogo) tida como adequada. No limite inferior

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    14. Nesse sentido, SCHNEMANN, Bernd. Prlogo ao livro de HORNLE, Ta- tjana. Determinacin de la pena y culpabilidad. FabinJ. Di Plcido Editor. Bue- nos Aires, 2003, p. 18. 15. HORNLE. Op. cit., p. 25-28.

    poderia conduzir a pena a um patamar abaixo de um eventual mnimo legal, ou ainda justificar at mesmo a nao aplicaco da- quela.

    Essa teora ainda dominante, mas nao escapa de nme- ras crticas. As principais giram em torno de dois eixos: o com- bate a culpabilidade de autor e a refutaco de fundamentos pre- ventivos para a aplicaco da pena. O primeiro dos eixos reside no argumento de que a teora do espac;o de jogo orienta a pena a conceitos indeterminados de culpabilidade, quando nao a cul- pabilidade do autor, com as tradicionais categoras da culpabili- dade pelo carter e pelo modo de condueo de vida. Deixa, as- sim, urna considervel discricionariedade (vi.a livre) para que o juiz estabeleca a pena que considera justa ( com fundamentos preventivos gerais e especiais) dentro de urna margem de conde- naces absolutamente dspares, mas ainda assim consideradas jurdicamente corre tas 14

    A segunda ordem de crticas rejeita a vinculaco da aplica- c;ao da pena a fins preventivos, sejam espedais ou gerais. Nesse sentido, aponta Tatjana Hornle que nenhum envolvido nas pr- ticas da justica penal assume que os juzes verdadeiramente esco- lhem entre a prevenco geral e a prevenco especial de forma rotineira, estando os criminlogos de acordo que praticamente impossvel dizer exatamente que tais penas possuem tais efeitos preventivos. Logo, impossvel que os juzes realizem esses ju- zos de maneira cientficamente sria, urna vez que devem con- fiar em inruices pessoais15

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    16. Cf. ZIFFER. Op. cit., p. 92. 17. Sobre a teoria da pena pontual na medico da pena, cf. BRUNS, Hans Jrgen. Strafzumessungsrecht. Allgemeiner Teil. Kcln-Berlin-Bonn-Mnchen: Heymann, 1967, p. 280. 18. Tatjana Homle lembra que urna teoria de determinaco da pena proporcional baseada na teoria da pena pontual se desenvolveu nos Estados Unidos e na Ingla- terra principalmente atravs do trabalho de Andrew von Hirsch (Doing Justice, 1976; Censure and Sanctions, 1993) e que alguns autores alemes veem a teoria da pena pontual como mais convincente do que a teoria do mbito de jogo, den- tre eles SCHNEMANN (In: ESER/CORNILS [Comp.], Neuere Tendenzem der Kriminal,politik, 1987, p. 209 et seq.), ALBRECHT (Strafzumess'l!ng bei schsuerer Kriminalitiit, 1994, p. 329 et seq.) e REICHERT (Intersubjektivitiit durch Stra fzumessungsrichtlinien, 1999, p. 98 et seq.). Cf. HORNLE. Op. cit., p. 29.

    Bnfim, converge a doutrina crtica no sentido de que nao h parmetros concretos que permitam afiancar qual a pena j ou ainda adequada a culpabilidade, o mesmo ocorrendo em relaco a qual medida da pena seria a necessria para alcancar escapos preventivos gerais ou especiais16

    A Teoria da pena pontual (Punktstrafetheorie), por sua vez, par- te do pressuposto de que a culpabilidade um juzo individuali- zado de censura ao autor do fato baseado na gravidade do delito, e, por tal razo lgica, somente poderia haver urna nica pena carreta e adequada a culpabilidade do agente17 Senda una e pon- tual a culpabilidade, una e pontual deveria ser a pena.

    O mote central dessa teora a noco de imparcialidade pe- rante o acusado, no sentido de que este nao deve ser apenado mais do que o exigido pela gravidade do delito18 Deve o juiz, desse modo, fixar a pena que seja exatamente ajustada a culpabi- lidade do agente, sem atender a finalidades ulteriores da pena, notadamente as preventivas. Trata-se, enfim, de urna concepco eminentemente retribucionista da pena.

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    19. HORNLE aponta, como partidrios desta concepco, DOLLING (GS fr Zipf, 1999, p. 194 et seq.), ELLSCHEID (Festschriftfr MllerDietz, 2001, p. 201) e STRENG (Festschrift fr MllerDietz, 2001, p. 885 et seq.). Cf. HORNLE. Op. cit., p. 30. 20. Sobre a discusso envolvendo a teoria do valor posicional, cf. HENKEL, Heinrich. Die "richtige" Strafe. Tbingen: Mohr, 1969, p. 23.

    A teora da pena pontual sofre crticas de parte da doutrina alem adepta da prevenco especial. Para este segmento doutri- nrio'", deve ser possvel levar em consideraco a personalidade do imputado, reduzindo penas quando este nao necessite de rea- bilitaco, Nesse aspecto, o juzo de proporcionalidade trazido pela teora da pena pontual tendera a elevar os patamares das penas, urna vez que se limitara a analisar tao somente a gravida- de do delito, de forma objetiva.

    Outra teora que tradicionalmente enfrenta o tema da me- dico da pena a Teora do valor posicional ( Stellenwerttheorie ou Stufentheorie), tambm denominada teora do valor de emprego ou de posico, teora do valor concreto, ou corrente, ou ainda teora do valor relativo, do valor funcional ou de funco ou mo- delo gradual. Esta teora concebe o processo de determinaco da pena em dais segmentos. Em um primeiro momento, efetiva-se o juzo acerca da culpabilidade do ru, senda a retribuico o cri- trio orientador da duraco ( quantidade) da reprimenda. Cabe a um juzo de prevenco geral ou especial, por fim, decidir sobre a qualidade e modo de execuco da sanco penal, apontando, se foro caso, para urna eventual suspenso da pena, ou sua substi- tuico por urna medida de prevenco especial",

    Essa teora nao encontrou eco na doutrina, pois padece de inafastvel contradico ao abolir consderaces de ordem pre- ventiva na determinaco da medida da pena, ao mesmo tempo

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    21. Nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal portugus. As consequnciasjurdicas do crime. Lisboa: Coimbra Editora, 1993, p. 222. 22. HORNLE. Op. cit., p. 49. 23. lbidem.

    em que as considera como critrio exclusivo da espcie de pena a ser infligida. Ademais, reflete urna viso eminentemente retri- butiva da pena, ao considerar unicamente a culpa como elemen- to determinante da medida da pena21

    Na jurisprudencia alem, esclarece Tatjana Hrnle que o Tribunal Constitucional Federal (Bundesveifassungsgericht) e o Tribunal Supremo Federal (Bundesgerichtshoj) estabeleceram urna frmula padro no tocante a aplicaco da pena. Segundo tal frmula, a pena deve se orientar pela gravidade do fato e pelo grau de culpabilidade pessoal do autor". Reconhece-se, enfim, que a medida da pena deve ser influenciada pela menor ou maior leso ou colocaco do bemjurdico em perigo, haja vista a poss- bilidade de mensuraco do carter injusto de um fato. Do mes- mo modo, a apreciaco das circunstancias pessoais do autor mostra-se indispensvel nao apenas para fundamentar urna op- \: preventivo-especial, mas para se aferir urna suposta culpabi- lidade pessoal do agente.

    Para a autora, na prtica alem sao os danos derivados do fato e os antecedentes penais que determinam decisivamente a medida da pena, senda o comportamento ps-delitivo do acusa- do tambm considerado para a aferco da gravidade do injusto do fato, bem como para se desvendar a atitude interna do ru23

    J no que tange a dogmtica espanhola acerca da pena e sua aplicaco, especial destaque possui o debate travado entre Jess- -Mara Silva Snchez e Bernardo Feijoo Snchez.

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    24. FEIJOO SNCHEZ, Bernardo. Individualizacin de la pena y teora de la pena proporcional al hecho. El debate europeo sobre los modelos de determinacin de la pena. In: Dret. Revista para el anlisis del Derecho, Barcelona, n. 1, p. 08,jan. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 17 jan. 2011. 25. SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La teora de la determinacin de la pena como sistema (dogmtico): un primer esbozo. Barcelona: In Dret. Revista para el anlisis del Derecho, n. 2, abr. 2007, p. 7. Disponvel em: , Acesso em: 18jan. 2011.

    Em artigo publicado emjaneiro de 2007, Feijoo Snchez te- ceu crticas a teora da pena proporcional ( neoproporcionalismo ), asseverando que esta apresenta excessivo individualismo ao vin- cular a mensuraco da pena somente a partir da perspectiva da vtima, deixando de atentar para a dimenso do fato delitivo para a ordem social, ou seja, olvidando a dimenso intersubjetiva ou social do fato24

    Em artigo datado de abril de 2007, Jess-Mara Silva Sn- chez rebate, porm, algumas das colocaces de Feijoo Snchez, asseverando que na fixaco da pena, alm de elementos relativos ao fato, tambm seriam levados em canta princpios poltico- -criminais. Desse modo, Silva Snchez sustenta que a individua- lizaco da pena se comportara como urna matria ponte, na qual a concreco do contedo delitivo do fato se combinara com consideraces poltico-criminais gerais sobre o fato ou a pessoa do autor".

    Segundo Silva Snchez, para evitar o intuicionismo, o puro decisionismo ou a arbitraredade, devera o juiz, ao fazer poltica criminal, canaliz-la por vas estrtamente dogmticas, traduzin- do-a em regras alheias ao simples plano principiolgico.

    O autor chama atenco para a distinco existente entre o ponto de vista clssico e o ponto de vista segundo o qual a essn- cia do injusto radicara no nao reconhecimento ou a desatenco

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    26. Idem, p. 11. 27. Em defesa de um conceito material de delito, FRISCH, Wolfgang. Delito y sistema del delito. Trad. Ricardo Robles Planas. In: El Sistema Integral del De recho Penal. WOLTER,Jrgen; FREUND, Georg (eds.). Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 193 et seq.

    - , . . . mensao empmca quanto comumcatrva. Pode-se afirmar, a partir das consideraces de Silva Snchez,

    que as teorias tradicionais de aplicaco de pena mesclam caracte- rsticas pretritas e outras prospectivas (voltadas para o futuro), gerando sentencas carentes de sentido ou sem critrios lgicos.

    Na dogmtica penal brasileira, verifica-se igualmente a mesclagem de funces pretritas e prospectivas para a pena, no- tadamente em virtude da redaco do art. 59 do CP, no sentido de que a fixaco da pena se de conforme seja necessrio e suficiente para a reprovaco (de urna infraco pretrita) e prevenco (volta- da para o futuro) do crime. Seja na doutrina estrangeira ou p- tria, o apelo a concepco mista da pena teve - e ainda tem -, o poder de reforc-la, apelando-se ora a um, ora a outro escapo, quando nao os sornando.

    Com outro olhar e

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    28. Na doutrina estrangera notahilzam-se: PASUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e marxismo. Ro de Janero: Renovar, 1989. RUSCHE, Georg; KIR- CHHEIMER, Otto. Punicdo e estrutura social. 2. ed. Ro de Janero: Revan, ICC, 2004. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica. As origens do sistema penitencirio sculas XVIXIX. Ro de Janeiro: Revan, ICC, 2006. BA- RATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica ao direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da priso. 26. ed. Petrpolis: Vozes, 2002. 29. BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Ral. Direito penal brasileiro. 2. ed. Rio dejaneiro: Revan, 2003. 30. Tal teora d azo a construco da chamada criminologia radical. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 3. ed. Curitiba: ICPC, Lumen juris, 2008, p. 128.

    sanco penal e de seus critrios de aplicaco da pena, surgem as concepces crticas da pena, notabilizadas fundamentalmente pela teora materialista/ dialtica, capitaneada no Brasil por jua- rez Cirino dos Santos28, e pela teora negativa/ agnstica, condu- zida por Nilo Batista e Eugenio Ral Zaffaroni29

    A teora materialista/ dialtica da pena caracteriza-se por es- tabelecer, a partir de urna perspectiva fundada na tradico mar- xista em criminologa, urna clara dferenca entre funces reais e ilusrias da ideologa penal nas sociedades capitalistas".

    Segundo a teoria materialista/ dialtica da pena, o Direito Penal constitu um sistema dinamice desigual tanto na defini- c;ao dos delitos, ao realizar a proteco seletiva de bens jurdicos conforme os interesses econmicos e polticos das classes hege- mnicas, quanto na aplicaco das penas, ao produzir a estigma- tizaco seletiva de indivduos excludos das relaces de produ- c;ao e de poder poltico da formaco social, e ainda, ao nvel da execuco penal, por empreender a seletiva represso de margi- nalizados sodais, que se por um lado nao possuem serventia real nas relaces de produco e distribuico material, por outro

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    31. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal. Parte geral. 3. ed. rev. e ampl. Curitiba: ICPC - Lumenjuris, 2008, p. 494. 32. Idem, p. 494-495. 33. Idem, p. 495.

    sao simbolicamente teis no processo de reproduco da desi- gualdade e opresso capitalistas31

    Nessa perspectiva, as sances estigmatizantes do Direito Pe- nal realizariam ao mesmo tempo "a funco poltica de garantir e reproduzir a escala social vertical, como funco real da ideologa penal" e "a funco ideolgica de encobrir I imunizar comporta- mentos

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    34. Idem, p. 496. 35. lbidem.

    daco de autores potencais">. Nessa perspectiva, a pena como retribuico equivalente seria expresso de um Direito Penal dis- criminatrio, promovendo a seletiva criminalizaco dos alijados sociais do mercado de trabalho e reforcando os instrumentos formais e ideolgicos de controle social.

    Por outro lado, as funces de prevenco especial positiva de correco individual e de prevenco geral positiva de afrmaco da validade da norma constituiriam "discurso oficial legitimador das funces reais ou latentes da pena criminal, que garantem a desigualdade e a opresso social da relaco capital/ trabalho assa- lariado das sociedades contemporneas">. Aquela restarla de- sautorizada nao apenas por seu fracasso histrico e continuado, mas tambm diante da real construco social do crime e da des- socializaco e rotulaco do indivduo, promovidas pela experien- cia privativa de liberdade desencadeada por aco do prprio Es- tado. Esta pela constataco de que garantir a fidelidade jurdica do cidado significa assegurar sua fidelidade a vontade do poder e pela demonstraco materialista/ dialtica da correlaco sistema penal/ mercado de trabalho.

    Juarez Cirino conclui a explanaco sobre as bases da teo- ria materialista/ dialtica sustentando a necessidade de cons- truco de urna dogmtica penal nao como critrio de raciona- lidade do sistema punitivo - prisma este legitimante -, mas como um sistema de garantias do indivduo em face do poder punitivo do Estado, caracterizado pela criaco de conceitos ap- tos a afastar ou restringir o poder de ingerencia estatal na esfe- ra da liberdade individual, de modo a obstar ou abrandar o

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    36. Idem, p. 497. 37. BATISTA; ZAFFARONI. Op. cit., p. 94.

    sofrimento humano produzido pela desigualdade e seletivida- de do sistema penal".

    Igualmente em um sentido redutor, porm partindo de pre- missas distintas, figura a teora negativa/ agnstica, preconizada por Nilo Batista e Eugenio Ral Zaffaroni. Essa teora parte da confrontaco entre os modelos ideais de estado de polcia e de direito para melhor compreender a funco poltica do Direito Penal e precisar o conceito e as implicaces da pena.

    O modelo de estado de polica caracterizar-se-ia nao somen- te pela substancialista assunco e deciso, por um grupo, classe social ou segmento dirigente, das diretrizes acerca do que apro- priado ou aceitvel realizar-se, fazendo emergir um direito trans- personalista, a servco de entes meta-humanos (tais como divin- dade, casta, classe, estado, mercado etc.), mas tambm pelo exerccio vertical, arbitrro e paternalista de poder, pautando-se pela postura de castigo e ensinamento aos cidados. J no mode- lo de estado de direito, as diretrizes acerca do que aproprado ou aceitvel realizar-se seriam fixadas pela maiora, como respei- to as minoras e com a compreenso de que as regras devem ser permanentes (nao transitras) e vincular a todos, indistintamen- te. Esse modelo caracterizar-se-ia pelo exerccio horizontal e de- mocrtico do poder, tendendo a urna justica procedimental e voltada a servico dos prpros humanos, de modo que, fraternal- mente, afere o menos possvel a existencia de cada um37

    A teora negativa/ agnstica da pena refuta as funces posi- tivas declaradas ou manifestas da pena (retribuico e prevenco geral e especial), asseverando que as teoras positivas da pena sao

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    38. Idem, p. 96. 39. Ibidem, p. 99-100.

    legitimantes do estado de polica, sociologicamente falsas por se- rem baseadas em generalizaces arbitrrias e carentes de com- provaco emprica e acobertadoras do real exerdcio do poder punitivo38

    Revisitando a concepco de Tobas Barreta, a teora encara a pena como fato de poder poltico correlativo ao fundamento ju- rdico da prpria guerra, assim construindo seu conceito: "[ ... ]a pena urna coerco, que imp6e urna privaco de direitos ou urna dor, mas nao repara nem restitu, nem tampouco detm as les6es em curso ou neutraliza perigos iminentes. O conceito assim enunciado obtido por excluso: a pena urn exerdcio de poder que nao tem funco reparadora ou restitutiva nem coerco ad- ministrativa direta. Trata-se, sim, de urna coerco que imp6e pri- vaco de direitos ou dor, mas que nao corresponde aos outros modelos de soluco ou prevenco de conflitos (nao faz parte da coerco estatal reparadora ou restitutiva nem da coerco estatal direta ou policial). Trata-se de um conceito de pena que negati- vo por duas raz6es: a) nao concede qualquer funco positiva a pena; b) obtido por excluso (trata-se de coerco estatal que nao , entra no modelo reparador nem no administrativo direto ). E ag- nstico quanto a sua funco, pois confessa nao conhec-la, Essa teora negativa e agnstica da pena permite incorporar as leis pe- nais latentes e eventuais ao horizonte do direito penal e, por con- seguinte, fazer deles sua matria, assim como desautoriza os ele- mentos discursivos negativos do direito penal dominante">.

    Em outras palavras, a pena constituira um fato de poder passvel de limitaco pelo poder dos juristas, poder este a ser

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    40. Ibdem, p. 111. 41. Ibidem, p. 108.

    legitimado e ampliado at o limite da capacidade das agencias jurdicas, dotando-as de meios para a contenco do poder puniti- vo exercido pelas agencias nao jurdicas. Assim, para a teora ne- gativa, o Direito Penal teria como tarefa a legitimaco das deci- ses das agencias jurdicas, tomadas no intuito de conter a aco do poder punitivo do estado de polica em pral do fortalecimen- to das bases de um estado de direito. Nessa perspectiva, a meta do Direito Penal seria a proteco de bens jurdicos (seguranca jurdica) - nao a ilusria tutela de bens das vtimas (atuais ou futuras), mas a proteco dos que sao "efetivamente ameacados pelo crescimento incontrolado do poder punitivo'?".

    A proteco destes pelas agencias jurdicas nao teria o con- do de neutralizar as demais agencias do sistema penal ou de subjugar o estado de polica, mas tao somente de refrear seu alar- gamento, atravs de um dever decisrio racional, pasto que exer- cido dentro de seus limites e tendente a Iimitaco e contenco do poder punitivo41

    Enfim, as estreitas distinces paradigmticas entre as teo- ras materialista/ dialtica e negativa/ agnstica no afastam sua natureza - crtica do sistema penal e preocupada com os valores democrticos humanistas - nem desvirtuam o fato de que am- bas, cada qual com percepco e munico argumentativa pr- prias, integram as mesmas linhas de contenco racional do po- der punitivo.

    Sornando-se o arsenal de ambas as teorias, possvel chegar a urna perspectiva que, mantendo a rejeco a qualquer funco positiva a pena (perspectiva negativa), abandona, contudo, seu

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    componente puramente agnstico em pral de urna viso realista quanto as funces reais ou latentes do sistema penal, ao mesmo tempo em que abdica do vis eminentemente econmico (fun- dado na mareante correlaco capitalista entre sistema penal e mercado de trabalho) em favor de urna compreenso capaz de agregar, fortemente, a percepco da pena como ato de poder po- ltico do estado de polcia.

    Seja como for, os fundamentos para legitimar o poder redu- tor das agencias jurdicas podem ser encontrados nos prprios alicerces do Estado Republicano e Democrtico de Direito.

    Senda a Constituico o instrumento jurdico que afirma as bases republicanas e democrticas do Estado, dela que se extraem os fundamentos de legitimidade e validade do poder re- dutor das agencias jurdicas. E considerando que o Estado Repu- blicano e Democrtico de Direito brasileiro possui como funda- mento a dignidade da pessoa humana (e sua correspondente humanidade das penas), compete as agencias jurdicas - a ele alinhadas - impedir que a habilitaco desmesurada e irracional do poder punitivo tpico do estado de polcia estorve os objetivos fundamentais de construco de urna sociedade livre, justa e soli- dria (art. 32, l, da CRFB), erradicaco da marginalizaco e redu- c;ao das desigualdades sociais (art. 32, 111, da CRFB) e promoco do bem de todos (art. 32, rv; da CRFB). Surge da a tese central da teoria: a existencia de um autentico dever jurdico-constitucional de minimizaco da intensidade de afetaco do indivduo senten- ciado.

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    1. BARROSO, Lus Roberto. lnterpretafO e aplicafO da Constituiciio. 3. ed. Sao Paulo: Saraiva, 1999, p. 70-71. 2. Idem.

    Com a nova ordem constitucional, j nao h mais espa~o para a permanencia dos mesmos parmetros interpretativos an- tes vigorantes em matria de aplicaco da pena privativa de liber- dade. Com efeito, "as normas legais tm de ser reinterpretadas em face da nova Constituico, nao se lhes aplicando automtica e acriticamente a jurisprudencia forjada no regime anterior'", ra- zo pela qual nao se mostra constitucionalmente sustentvel "urna das patologas crnicas da hermenutica constitucional brasileira, que a interpretaco retrospectiva, pela qual se procu- ra interpretar o texto novo de maneira que ele nao inove nada, mas, ao revs, fique tao parecido quanto possvel com o antigo'".

    l!I Urna nova proposta discursiva: a real importancia dos princpios constitucionais penais e o dever jurdico-constitucional de minimiza~ao da afeta~ao do indivduo

    Limites a apllcaco das penas privativas de liberdade. Uma

    nova proposta discursiva

    CAPTULO 3

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    3. Ilustrando bem esse momento, SANTOS JNIOR, Rosivaldo Toscano. Aplicaco constitucional das circunstancias judiciais. Revista Direito e Liberdade, ano 5, v. 10, Escolada Magistratura do Rio Grande do Norte - Regio Oeste, Mossor.jan.jun. 2009, p. 04. Sustentando a mesma tese do texto, CARVALHO, Salo. A sentenca criminal como instrumento de descriminalizaco (o comprome- timento tico do operador do direito na efetivaco da Constituico), Ajuris, v. 33, n. 102, Porto Alegre,jun. 2006, p. 334. 4. SHECAIRA, Srgio Salomo; CORREA JUNIOR, Alceu. Teora da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudncia e outros estudos de cincia criminal. Sao Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 69. 5. Nesse sentido, CARVALHO, Salo de. Suprfluos fins (da pena): constituico ag- nstica e reduco de danos. Boletim IBCCRIM, v. 13, n. 156, Sao Paulo, nov. 2005. p. 14. 6. Nesse contexto, cf. BATISTA; ZAFFARONI. Op. cit., p. 296; MESSUTI DE ZABALA, Ana Maria. O tempo como pena. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 33.

    Com base nesta premissa, possvel asseverar que a Carta de 1988 passou a tecer preceitos relativos a sanco penal absolu- tamente diferentes do iderio penal e da conformaco poltico- -criminal inspiradores da Reforma Penal de 19843 Certo assim que "um Direito Penal em contradco com a Carta Magna ou nao atualizado aps a superveniencia desta, seja no processo le- gislativo, seja na interpretaco e aplicaco da le, representa exer- ccio de poder punitivo sem qualquer legitmaco dernocrtca'".

    A superaco do regime pr-Consttuico de 1988 parte, toda- va, da percepco de que a consagraco da "f punitiva" e o apego a projeco de finalidades para a sanco penal ofuscam a observa- c;ao da realidade punitiva brasileira, ocultando suas mazelas5

    De fato, a prtica da aplicaco de pena ainda nao logrou desapegar-se da aspiraco de prover justica por urna va instant- nea e meramente quantitativa. Tal "justica instantnea e quanti- tativa" busca cindir o tempo existencial da pena do tempo fsico, reitor do espac;o livre, olvidando que tempos abstratamente idnticos refletem vivencias inteiramente dspares6

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    7, GARCA ARAN, Mercedes. La prevencin general en la determinacin de la pena, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid: Instituto Nacional de Estudios Jurdicos, t. XXV, fase. I,jan.-abr. 1981, p. 520.

    A pena privativa de liberdade, urna vez convendonado tra- tar-se de ferramenta sancionatria de natureza violenta, nao pode ser entorpecida por suas funces punitivas declaradas, em especial a que exalta sua impresdndibilidade para a defesa social. Por cumprir reais finalidades sociais, polticas e econmicas ex- cludentes e humanamente desagregadoras, carece de legitimida- de democrtica.

    Em outras palavras, deve o magistrado escapar da alienaco causada pelo debate dogmtico sobre os fins das penas, nao ca- bendo a ele fazer da sentenca instrumento de poltica criminal. Nesse sentido, Garca Arn alerta para a confuso entre o papel do legislador e o do juiz, salientando que a le penal, atendendo a critrios de proporcionalidade, tem por funco prever os fatos delitivos e fixar o mnimo de pena que considera suficiente para evit-los, nao cabendo ao juiz se preocupar coma atuaco poste- rior de cidados que nao esto submetidos a juzo e muito me- nos incrementar a pena do indivduo que no momento se julga. Para a autora, isso representara a utilizaco da fase judicial de determinaco da pena para a persecuco de finalidades perten- centes a cominaco da pena, ou seja, a instrumentalizaco do ru com fins de prevenco geral7.

    Em lugar de transformar a sentenca em utensilio poltico- -criminal, deve o magistrado ater-se aos meios discursivos efica- zes para o adimplemento da obrigaco constitucional de minimi- zaco dos efeitos da pena privativa de liberdade sobre o indivduo. Ao se sobrepor a contenda dogmtica, o juiz afirmar o poder

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    8. Nesse contexto, cf. COUTINHO,Jacinto Nelson de Miranda. Discrico ju- dicial na dosimetra da pena: fundamentaco suficiente. Revista do Instituto dos Advogados do Paran, n. 21. Curitiba.jan.jun. 1993, p. 150-153.

    efetivo da agencia judicial perante as agencias do sistema penal que catalisam o poder punitivo".

    Alm de afirmar o poder da agencia judicial diante das agencias do sistema penal, o emprego redutor do discurso tam- bm possui o condo de reforcar a convicco crtica de que quan- to mais efetiva for a contenco do poder punitivo tpico do esta- do de polica, maior ser o respeito aos direitos fundamentais do acusado e mais subsdios sero fornecidos a prevalencia do Esta- do Democrtico, Social e Republicano de Direito.

    Em urna nova perspectiva constitucional democrtica, a atribuico de funces a pena darla, enfim, lugar a funco das agencias jurdicas e assistenciais diante do evento delitivo e frente a aco do poder punitivo. Com isso, at que o Estado Brasileiro prescinda da privaco da liberdade como instrumento penal, os papis das agencias jurdicas e assistenciais seriam desempenha- dos em tres instancias e momentos distintos.

    Em um primeiro instante, nao obstante a gama de conse- quncias deletrias do evento delitivo, a ocorrncia deste teria ainda por funco tornar evidente, para tais agencias, quais indiv- duos foram expostos a tal grau de vulnerabilidade que merecem pronta atenco estatal, no sentido de fomentar a conrenco do estado de vulnerabilidade a aco do poder punitivo. Trata-se da funco identificadora, desempenhada pelas agencias.

    Em um segundo estgio, notadamente no momento da apli- cacao da pena, a funco da agencia jurdica passaria a ser a restri- co, de forma racional e ao mximo, dos danos da incidencia do

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    , . . - . . . urna necessana revisao, que se nuera com urna nova proposta discursiva acerca da aplicaco da pena, alicercada em tres asserti- vas, distintas; porm, complementares. A primeira das constata- ces aponta no sentido de que a Constituico Federal, o Cdigo de Processo Penal, o Cdigo Penal, a Lei de Execuco Penal e os Tratados e Convences internacionais em matria penal nao mais podem sofrer urna interpretaco inerte e assistemtica, fun- dada em mtodos estritamente dogmticos e formais. Devem, sim, receber o influxo da efetividade, de modo que todos os

    , poder punitivo sobre o apenado. E o que se denomina funco negativa ou contentara. Por fim, j durante o cumprimento da pena por parte do sentenciado, em nome da afirmaco do Estado Social, teriam as agendas assistendais por funco oferecer Ua- mais abrigar) meios pelos quais o apenado possa reduzir seu grau de vulnerabilidade, se assim o desejar. Trata-se da funco positiva, ou oportunizante.

    A perspectiva ora defendida se justifica urna vez que o autor de fatos punveis, na qualidade de titular de direitos fundamen- tais que surgem da dignidade humana e que garantem sua prote- c;ao, deve conservar a oportunidade de reduzir seu grau de vul- nerabilidade a aco do poder punitivo, bem como de ter na agencia judicial nao urna instancia inquisidora, mas essencial- mente protetora do indivduo em face da habilitaco ilegal ou irracional daquele poder.

    A aplicaco redutora da pena representa efetivamente a l- tima barreira no processo de concreco da intervenco punitiva estatal. O arrefecimento dessa barreira, pelo uso da sentenca como instrumento poltico-criminal defensivista, invariavel- mente proporcional a amplitude do dano causado ao indivduo e a coletividade.

    Tal concepco punitiva defensivista deve, destarte, sofrer

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    9. Cf. HESSE, Konrad. Aforfa normativa da Constituifo. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 1991; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos asrio. Sao Paulo: Martins Fontes, 2002; ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamenta les. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 10. CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 332. 11. Idem, p. 334. Poderiam ser apontadas como exceces ao sentido redutor as disposices constitucionais no sentido de que "a prtica do racismo constitu cri- me inafiancvel e imprescritvel, sujeito a pena de recluso, nos termos da le" (art. 5~, XLII), "a le considerar crimes inafiancveis e insuscetveis de gras;a ou anistia a prtica da tortura, o trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem" (art. 5~, XLIII) e, ainda, que "constitu crime inafiancvel e imprescritvel a as;ao de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrtico" (art. 5~, XLIV). Trata-se, na verdade, de medidas que se porventura possam mitigar o sentido pre- dominantemente redutor da Constituico, por outro lado nao o descaracterizam. A existencia de limitaces a empreitada redutora nao faz com que a heterognea Constituico de 1988 deixe de ser essencialmente um instrumento minimizador de danos.

    princpios neles contidos abandonem seus vieses meramente in- formadores e passem a atuar com forca de normas jurdicas9 e de maneira integrada para a tutela dos direitos fundamentais inspi- radores de nosso Estado Democrtico e Social de Direito.

    A superaco do positivista apego aos dispositivos infracons- titucionais punitivos em pral do resgate da forca normativa dos princpios e, sobretudo, da orientaco redutora da Constituico, de fato um elemento distintivo do incio de um novo paradig- ma da aplicaco da pena 1.

    A segunda concluso a de que a Constituico de 1988 nao incorporou teleologicamente o discurso legitimador da pena11 Pelo contrrio: do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e do correspondente principio da humanidade das penas deflui o dever jurdico-constitucional de reduco da , intensidade de afetaco individual. E possvel concluir, assim,

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    12. Nesse sentido, cf. CARVALHO. Op. cit., p. 334-335. 13. LEVY, Leonard Willians. Seasoned judgements the american constitution, rights and history. New Brunswick: Transaction Publishers, 1994, p. 36. 14. Nesse contexto, MASSUD, Leonardo. Da pena e sua fixafio. Finalidades, circunstncias judiciais e apontamentos para o fim do mnimo legal. Sao Paulo: DP] Editora, 2009, p. 86. 15. No mbito da fixaco da pena-base, o efeito principal do novo paradigma pol- tico-criminal humanizador, edificado pela Constituico de 1988, consiste na rejei- s;ao da possibilidade de uso das circunstancias judiciais em prejuzo do acusado.

    que os principios constitucionais tm fundamentalmente por es- capo tracar limites punitivos e conter danos", restando democra- ticamente incongruente e substancialmente desarmnica a util- zaco de principios constitucionais penais em prejuzo do prprio indivduo. Conforme preceituado na doutrina, a Constituico existe para definir e limitar a autoridade governamental, nao para definir e limitar direitos individuis".

    Incongruentes e desarmnicas tambm sao as normas ou medidas tendentes a se fundamentar a punico estatal a partir de finalidades a ela atribudas ou, ainda, de se empreender retroces- sos discursivos em matria de fxaco da pena14

    Tendo em vista que "ningum pode ser privado de sua lber- dade fsica, salvo pelas causas e nas condices previamente fixadas pelas Consttuices polticas" (art. 7'!., item 2, da Convenco Ame- ricana de Direitos Humanos) e considerando que a Constituico de 1988 estabeleceu como norte a contenco de danos e a fixaco de limites punitivos, nesse sentido que a tarefa de injunco da pena privativa de liberdade deve ser manejada e interpretada15

    Tem-se, por fim, como terceira conduso, a tese de que a apli- cacao redutora da pena urna autentica garantia constitucional do indivduo frente ao Estado, contraposta ao prprio dever jurdico- -constitucional estatal de minoraco da afetaco do indivduo.

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    16. O significado dejustica Constitucional, no sentido aqui empregado, consiste de intervenco do Poder Judicirio em defesa da efetivaco dos direitos fundamen- tais e, especialmente, na atuaco em cumprimento do seu deverjurdico-constiru- cional de minimizaco da afetaco individual.

    Na qualidade de garanta, a medida racional-redutora da pena estabelece urna barreira intransponvel aos escapos de retri- buico, prevenco especial e prevenco geral, impedindo que consideraces alheias ao fato delitivo possam alicercar ou cam- par a resposta penal estatal. Por outro lado, franqueia ao Estado a potestade de diminuir ou mesmo dispensar a sanco penal, urna vez que nenhuma garanta constitucional o impede de res- tringir ao mnimo a intervenco penal sobre o indivduo.

    Enquanto garanta, a aplicaco redutora da pena obviamen- te nutre-se de todos os princpios constitucionais tendentes a mi- tgaco de danos. Assim pasto, busca fundamento tico no axio- ma da Humanidade. Baliza-se por aco do axioma limitador da legalidade. Materializa-se por forca da individualizaco da pena. Cobra do juzo exaustiva fundamentaco de urna deciso contr- ria ao dever de mnimizaco da afetaco individual. Garante, como favorveis, todos os dados do fato que, de algum modo, nao funcionem em detrimento do acusado. Exige da pena lesivi- dade e ntervenco mnimas. Ordena que toda e qualquer anlise sobre a culpabilidade seja promovida em um sentido unicamente redutor. Demanda que fatores alheios ao evento delitivo trans- cendam o mnimo possvel a pessoa do condenado. Por fim, tem por proporcional a pena que se mostra necessria, adequada e estritamente ajustada ao escapo redutor.

    A medida radonal-redutora da pena, afinal, traz para si o influxo dos direitos fundamentais, representando a materializa- \: da justica Constitucional16 na aplicaco da pena, mediante a contenco racional do poder punitivo.

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    No mbito de urna nova proposta discursiva quanto a apli- caco da pena, o estabelecimento de princpios limitadores da interpretaco da lei penal passa a demandar tambm novas pre- missas tericas e prticas. A primeira delas surge com a constata- c;ao de que a interpretaco dos direitos humanos deve ser pro homine, ou seja, sempre deve ser aplicvel, no caso concreto, a soluco que mais amplia o gozo e o exercio de um direito, li- , berdade ou garantia. E o que preceitua o art. 29, item 2, da Con- venco Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jos da

    m Princpios !imitadores da interpretaco da lei penal quanto a aplica~ao da pena

    & referidas constataces abrem espac;o para o florescimen- to de novas paradigmas e critrios, que, de forma pragmtica, passam a informar as atividades de interpretaco, aplicaco e execuco das penas, de modo a conferir proerninncia a urna po- ltica criminal redutora de danos.

    Estabelecer a tarefa de determinaco da pena a partir de um critrio limitador pautado pelas concluses supramencionadas parece ser um caminho mais seguro para alcancar o mximo de garantias e o mnimo de intervenco penal, minorando-se conse- quentemente os danos oriundos da represso e seletividade es- trutural do sistema penal.

    Em suma, no mbito da fixaco da pena exercem um papel decisivo os parmetros aportados pelos direitos fundamentais e os direitos humanos, porque aqui se produz a concreta afetaco ao indivduo. Paradigmas como o princpio da humanidade e o dever jurdico-constitucional de rninimizaco da intensidade da afetaco indicam um novo caminho a determnaco da pena pri- vativa de liberdade.

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    Costa Rica), ao estabelecer, como norma de interpretaco, que nenhuma dsposico da convenco pode ser interpretada no sen- tido de limitar o gozo e exerccio de qualquer direito ou liberda- de que possam ser reconhecidos em virtude de leis locais ou ou- tras convences aderidas.

    Aportando essa regra hermenutica para o mbito da apli- caco da pena privativa de liberdade, matria indissociavelmente atrelada a prpria humanidade penal, h que se concluir que to- das as normas relativas a injunco penal devem tambm receber nterpretaco pro hom.ine, aplicando-se a alternativa que mais es- tenda a fruico e o exerccio de um direito, liberdade ou garanta. Essa a orientaco h muito consolidada em matria de direitos humanos e seguida pela Constiruico de 1988, ao consagrar o dever jurdico-constitucional de minimizaco da intensidade de afetaco individual.

    Fetas essas consideraces, chega-se a segunda premissa fundamental: a necessidade de se interpretar o ordenamento ju- rdico penal a partir do que se passa a denominar "mxima efeti- vidade redutora", viso hermenutica defensora de que todos os axiomas contidos no ordenamento jurdico - em especial em sede constitucional-, substituam sua essncia informadora por um contedo material e de eficaz atuaco normativa em amparo aos direitos fundamentais e a empreitada redutora de danos.

    Essa nova viso hermenutica se vale de urna percepco realista e estrutural do sistema penal, como autentico fato de poder, para superar a contemplativa viso no sentido de que a prpria existencia formal dos princpios relativos a pena privativa de liberdade conduz a reverencia e acatamento

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    17. No mesmo sentido do texto, KARAM, Maria Lcia. A privafO da liberdade: o violento,

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    18. MAGARIOS, Mario. Hacia un criterio para la determinacin judicial de la pena. In: VV AA. Determinacin judicial de la pena. Julio Bernardo Maier (Comp.). Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993, p. 80.

    Correspondente e alicerce da dignidade da pessoa humana (art. 12, 111, da CRFB) em matria penal, o princpio da humani- dade atua como fundamento penal maior do Estado Republica- no e Democrtico de Direito, na busca da contenco da ingeren- cia desmesurada e irracional do poder punitivo sobre os indivduos, contenco esta realizada em defesa da edfcaco de urna sociedade livre,justa, solidria (art. 32, l, da CRFB), orienta- da no sentido da erradicaco da marginalzaco e reduco das desigualdades sociais (art. 32, 111, da CRFB), e que promova o bem de todos (art. 32, IV, da CRFB).

    Na essncia, o princpio demanda que "toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido a dignidade inerente ao ser humano" (art. 52, tem 2, da Convenco Americana

    3.2.1. Princpio da Humanidade

    matria penal a de orientar sua tarefa a tutela da liberdade indi- vidual diante da aco irracional do poder punitivo estatal, valen- do-se argumentativamente dos axiomas legais, constitucionais e previstos em declaraces internacionais para concretizar esta empreitada discursivo-redutora.

    Ciente de que nenhum princpio constitucional obsta o Es- tado de autolimitar ao mnimo sua ntervenco penal diante do cidado'", caberia ento a agencia judicial empregar o referido escudo discursivo em resistencia a habilitaco desmesurada do poder punitivo e a violaco sistemtica dos axiomas pelo siste- ma penal.

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    19. VALDS, Ernesto Garzn. Cul es la relevancia moral del principio de la dignidad humana? In: VV AA. Derechos fundamentales y derecho penal. Patrcia Cppola (Comp.). Crdoba: Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Pena- les y Sociales (INECIP), 2006, p. 34.

    de Direitos Humanos). Combase nessas premissas, chega-se aba- silar concluso de que o principio da humanidade constitui o fun- damento penal maior do dever jurdico-constitucional de minimi- zaco da intensidade da afetaco do indivduo, possuindo grande relevo na tarefa de determinaco da pena, j que capitaneia a con- duco de urna poltica criminal redutora de danos.

    A moderna doutrina penal e de direitos fundamentais depa- ra-se cada vez mais intensamente com a necessidade de elucidar o real significado e alcance do que vem a ser humanidade, en- quanto princpio poltico-criminal de respeito a pessoa humana e de compreenso e reconhecimento do outro (alteridade) e, afi- nal, de si mesmo, a partir da dialtica estabelecida com o outro.

    Enquanto princpio poltico-criminal de respeito a pessoa humana, o axioma da humanidade pode ser bem ilustrado nas palavras de Ernesto Garzn Valdes, quando assevera que os di- reitos fundamentais formam parte essencial de um projeto cons- titucional adequado a lograr a concreco das exigencias do res- peito a dignidade humana, senda certo que a consciencia da prpria dignidade a base do autorrespeito e da conservaco, na vida em sociedade, da condico de agente moral. Logo, quando esses direitos possuem vigencia, restarla bloqueada a possibilida- de de se tratar urna pessoa como meio, disso defluindo que a outorga e o respeito a esses direitos nao sao atos de benevolencia por parte de quem detm o poder, mas exigencias bsicas 19

    J enquanto cornpreenso e reconhecimento do outro e, consequentemente, de si mesmo, a humanidade (sob o vis

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    20. BATISTA, Nilo. lntrodufao crtica ao direito penal brasileiro. Ro dejaneiro: Revan, 2001, p. 100.

    redutor) identifica-se como imperativo da tolerancia, notabiliza- do pelo traslado a posico jurdica, social e humana do indiciado, acusado ou apenado, a fim de reconhec-lo como sujeito de di- reitos e, consequentemente, eliminar juzos eminentemente morais, retributivos, exemplificantes ou correcionais. Com efei- to, "a racionalidade da pena implica tenha ela um sentido com- patvel com o humano e suas cambiantes aspiraces, A pena nao pode, pois, exaurir-se num rito de expaco e oprbrio, nao pode ser urna coerco puramente negativa">.

    A correspondencia entre humanidade e tolerancia pode ser estabelecida dentro do ncleo de fundamentos do Estado De- mocrtico de Direito, emanados do art. 12 da Constituico de 1988 e que permeiam todo o ordenamento jurdico. Dignidade humana e pluralismo (a entendido alm da perspectiva poltica) se entrelacam para alicercar o Estado Democrtico, asseguran- do o reconhecimento jurdico, social e humano do indivduo como su jeito imune a juzos de natureza discriminatria, moral, preventiva ou retributiva.

    O postulado da humanidade penal, ora defendido, deve es- tar ntimamente atrelado aos tambm postulados materiais do favor rei e da secularizaco, operando como elemento nortea- dor de juzos de equidade quanto ao fato delitivo e suas cir- cunstancias, especialmente aquelas de difcil verifcaco ou re- futaco empricas. Em outras palavras, para adquirir algum sentido de humanidade, a interpretaco quanto as circunstan- cias da culpabilidade, antecedentes, conduta social, personali- dade do agente, motivos, circunstancias e consequncias do

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    21. Nesse contexto, cf. ZAFFARONI, Eugenio Ral. Apuntes sobre el pensamien to penal en el tiempo. Buenos Aires: Harnmurabi, 2007, p. 40-41.

    crime e comportamento da vtima (art. 59 do CP) deve necessa- riamente passar pelo crivo material do favor re e da secularizaco.

    Nao obstante, verifica-se na doutrina penal moderna, na anlise dos direitos humanos e na prtica da aplicaco da pena a tendencia a se mascarar o carter seletivo e discriminatrio do sistema penal por intermdio de urn discurso jurdico pseudo- -humanista, assim como a de tornar fluidos e flexibilizados deter- minados princpios at ento considerados inarredveis. A legali- dade e a culpabilidad e j nao sao vistas como intangveis, e a alteridade parece estar obscurecida por urna fisso socioantropo- lgica entre acusado e acusador, ru e julgador, entre apenado e juzo executor. Estes nao mais guardam relaco de dentficaco com os primeiros, deixando de compreender o mundo a partir da viso do outro.

    Reversamente, perpetuam urna verticalizaco inquisitorial que, passando pelo interrogar" e culminando no ato de expro- priar parte do tempo existencial do outro, fortalece a confianca na existencia de urna posico dominante e superior do julgador sobre o ru. Tal ciso socioantropolgica d azo a concepces de cunho intransigente e moralizante, refletindo na prpria intensi- dade da resposta penal a um fato delitivo.

    Da mesma forma, um dos grandes perigos representados pela fluidez do princpio da humanidade e pela difuso acrtica das orientaces funcionalistas da culpabilidade, em especial