12
A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 PABLO SPÍNDOLA * O pensador francês Michel Foucault, ao longo de sua trajetória filosófica, esteve permeado por registros de sua oralidade, palestras, cursos, debates, conferências, mesas- redondas, programas de rádio e televisão foram transcritos e publicados. Estes textos, produzidos por sua oralidade, compõem uma produção duas ou três vezes maior que o número de livros publicados por ele. Para mencionar apenas as mais citadas, tem-se duas conferências radiofônicas transmitidas pela rádio França em dezembro de 1966, O Corpo Utópico e As Heterotopias; a aula inaugural de sua entrada no Collège de France, A ordem do discurso; o debate entre Noam Chomsky e Michel Foucault em 1971 intitulado Natureza Humana: Justiça Vs. Poder; cinco conferências na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio), reunidas e publicadas com o título de A verdade e as formas jurídicas; todos os cursos ministrados no Collège de France de 1970 até 1984 1 ; além de um número significativo de entrevistas reunidas na coleção Dits et écrits, reunidos e publicados em 1994, mas que agrupa entrevistas e textos de 1954-1988. Dada toda essa produção é possível ver na oralidade de Foucault também marcas de sua trajetória intelectual. Tendo em vista a complexidade, diversidade, multiplicidade e extensão dessa produção, cabe um recorte num momento da produção de Michel Foucault em que ele teve um diálogo mais intenso com os historiadores. Nas conferências na PUC-Rio, A verdade e as formas jurídicas, chama a atenção as provocações feitas aos historiadores, sobretudo aos seus modos de tecer e constituir a narrativa do passado. As provocações estão inseridas na trajetória filosófica do intelectual, mas podem ser consideradas o começo de uma série de debates que eclodiram com a publicação do seu livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão (Surveiller et punir: naissance de la prison). * UFRRJ, doutorando em História, bolsista Capes. 1 Aulas Sobre a Vontade de Saber 1970-1971; Teorias e instituições penais 1971-1972; A sociedade punitiva 1972- 1973; O poder psiquiátrico 1973-1974; Os anormais 1974-1975; Em defesa da sociedade 1975-1976; Segurança, território e população 1977-1978; Nascimento da biopolítica 1978-1979; Do governo dos vivos 1979-1980; Subjetividade e verdade 1980-1981; A hermenêutica do sujeito 1981-1982; O Governo de Si e dos Outros 1982- 1983; A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II 1983-1984

Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978

PABLO SPÍNDOLA*

O pensador francês Michel Foucault, ao longo de sua trajetória filosófica, esteve

permeado por registros de sua oralidade, palestras, cursos, debates, conferências, mesas-

redondas, programas de rádio e televisão foram transcritos e publicados. Estes textos,

produzidos por sua oralidade, compõem uma produção duas ou três vezes maior que o número

de livros publicados por ele. Para mencionar apenas as mais citadas, tem-se duas conferências

radiofônicas transmitidas pela rádio França em dezembro de 1966, O Corpo Utópico e As

Heterotopias; a aula inaugural de sua entrada no Collège de France, A ordem do discurso; o

debate entre Noam Chomsky e Michel Foucault em 1971 intitulado Natureza Humana: Justiça

Vs. Poder; cinco conferências na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-

Rio), reunidas e publicadas com o título de A verdade e as formas jurídicas; todos os cursos

ministrados no Collège de France de 1970 até 19841; além de um número significativo de

entrevistas reunidas na coleção Dits et écrits, reunidos e publicados em 1994, mas que agrupa

entrevistas e textos de 1954-1988. Dada toda essa produção é possível ver na oralidade de

Foucault também marcas de sua trajetória intelectual.

Tendo em vista a complexidade, diversidade, multiplicidade e extensão dessa produção,

cabe um recorte num momento da produção de Michel Foucault em que ele teve um diálogo

mais intenso com os historiadores. Nas conferências na PUC-Rio, A verdade e as formas

jurídicas, chama a atenção as provocações feitas aos historiadores, sobretudo aos seus modos

de tecer e constituir a narrativa do passado. As provocações estão inseridas na trajetória

filosófica do intelectual, mas podem ser consideradas o começo de uma série de debates que

eclodiram com a publicação do seu livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão (Surveiller et

punir: naissance de la prison).

* UFRRJ, doutorando em História, bolsista Capes. 1 Aulas Sobre a Vontade de Saber 1970-1971; Teorias e instituições penais 1971-1972; A sociedade punitiva 1972-

1973; O poder psiquiátrico 1973-1974; Os anormais 1974-1975; Em defesa da sociedade 1975-1976; Segurança,

território e população 1977-1978; Nascimento da biopolítica 1978-1979; Do governo dos vivos 1979-1980;

Subjetividade e verdade 1980-1981; A hermenêutica do sujeito 1981-1982; O Governo de Si e dos Outros 1982-

1983; A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II 1983-1984

Page 2: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

2

Após a publicação do livro Vigiar e Punir em 1975 se iniciou uma série de debates,

sobre as fontes utilizadas, sobre como foram lidas, como foram agrupadas e separadas, mas

também sobre a forma dos historiadores escreverem a história e como Foucault o fizera. Essa

discussão pode ser inserida numa argumentação mais ampla sobre a história, pois o convite à

reflexão histórica partindo de um pensador, até então identificado com a filosofia, provocou os

historiadores. Vigiar e punir não foi lido apenas por historiadores, mas as reações às

proposições do livro vieram preponderantemente deles. Essas inquietações podem ser vistas

principalmente em duas passagens bem específicas: num texto escrito em 1975 por um

historiador, especialista em história da medicina francesa, Jacques Léonard2, intitulado

L’historien et le philosophe – A propos de: Surveiller et punir: naissance de la prison, ao qual

Foucault responde num artigo chamado La poussière et le nuage e depois na mesa-redonda em

20 de Maio de 1978, onde estavam reunidos os dois pensadores e outros historiadores para

debaterem os textos mencionados.

O texto de Jacques Léonard, L’historien et le philosophe – A propos de: Surveiller et

punir: naissance de la prison, é o início de um debate que na época ficou muito conhecido,

dado que questionava o historiar de Foucault. Nesse texto, chama atenção a forma como a

argumentação foi construída, pois em algumas passagens, propõe dois arquétipos: de um lado

historiadores e de outro filósofos. Além disso, Léonard também polemizou o posicionamento

que os historiadores tinham diante dos escritos de Foucault, que alternavam entre a admiração

e a irritação. O texto se tornou ainda mais significativo por Foucault ter respondido as questões

levantadas pelo historiador, completando assim o diálogo entre os intelectuais. Nas respostas

de Foucault, o debate que se iniciara sobre o livro Vigiar e punir se volta para uma discussão

mais ampla sobre a história e suas formas de fazer/escrever.

Em 20 de maio de 1978, Foucault foi convidado a participar de discussões sobre Vigiar

e punir e sua forma de fazer história, e debater também sobre sua discussão com Jacques

Léonard numa mesa-redonda com a participação de vários historiadores. Estavam presentes

nessa mesa-redonda: Maurice Agulhon, Nicole Castan, Catherine Duprat, François Ewald,

Arlette Farge, Alexandre Fontana, Carlo Ginzburg, Remi Gossez, Jacques Léonard, Pascal

2 Sua primeira tese defendida em história foi Les officiers de santé de la marine française de 1814 a 1835, trabalho

no qual tratou do status social e profissional de médicos, cirurgiões e farmacêuticos do corpo da Marinha de guerra

francesa, descrevendo a formação e as contribuições destes para a difusão do conhecimento médico da época.

Porém seu trabalho de maior vulto é Les médecins de l’Ouest au XIXe siècle, tese de três volumes defendida em

1976 e publicada em 1978. Além destes, outros trabalhos como: La vie quotidienne de médecin de province au

XIXe siècle de 1977, La France médicale au XIXe siècle de 1978, La médecine entres les savoirs et les pouvoirs.

Histoire intellectuelle et politique de la médecine française au XIXe siècle de 1981, Archives du corps. La santé

au XIXe siècle, de 1986 e Médecins, malades et sociétés dans la France du XIXe siècle de 1992, são também peças

importantes para a história da medicina francesa.

Page 3: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

3

Pasquino, Michelle Perrot, Jacques Revel. O texto que se originou dessa mesa-redonda tem

algumas especificidades da oralidade, a primeira e mais imediata é que todas as respostas de

Foucault, além do rigor hodierno, estão permeadas por sua ironia também costumeira. A

segunda especificidade é que os participantes que fizeram perguntas não foram identificados,

sendo colocados como um questionador único, o que dificulta a percepção de outras camadas

que o discurso oral pode conter. A terceira, que é um desdobramento da segunda, é escamotear

respostas dadas no calor do debate que depois poderiam ter provocado novas críticas a Foucault.

Cabe lembrar que Michel Foucault à época já é bastante conhecido entre os historiadores

e admirado por alguns deles. Seu trabalho doutoral, Historia da Loucura na idade clássica, foi

muito bem recebido de maneira geral, e já o seu livro seguinte, As palavras e as coisas, foi mais

contestado e teve como principal interlocutor uma serie de debates com o filósofo Jean-Paul

Sartre, mas foi amplamente lido. No livro seguinte, A arqueologia do saber, dedica toda a sua

introdução a recuperar uma parte dos debates anteriores e também foi recebido pelas mais

diversas áreas do saber, como filosofia, história e sociologia. O Vigiar e Punir foi publicado

em fevereiro de 1975 e teve uma grande repercussão na imprensa francesa com número especial

na revista Magazine Litteraire, ganhou páginas especiais e entrevistas no Le Monde, La

Quinzaine Litteraire, Le Figaro, L’Express, Le Nouvel Observateur e outros. A revista Critique

consagrou uma edição inteira ao livro e a Foucault. O livro foi lido por diversos segmentos

sociais: acadêmicos, não acadêmicos, profissionais liberais e inclusive por juristas, e as

agitações e rebeliões remetidas à publicação causaram efeitos na estrutura administrativa do

Estado, nos relatórios administrativos e vistoriais. O biógrafo Pierre Billouet diz que o livro

Vigiar e Punir associado ao GIP (Grupo de Informações sobre a Prisão) e à Comissão de Ação

dos Presos, levou a uma abertura das prisões no sentido de dar visibilidade por parte da

imprensa, formular parlatórios livres, des-disciplinarização e a desculpabilização dos presos.

(BILLOUET, 2003: p. 127-152) Estes passaram a não aceitar mais o modelo de vigilância e

tratamento dado nas prisões e reivindicaram melhores condições: “matei, peguei tantos anos,

mas isso não é razão para faltarem cobertores e sentir frio no inverno” (BILLOUET, 2003: p.

142). Logo, Foucault ao chegar a esse debate era um pensador a ser ouvido, como o próprio

Jacques Léonard afirma “M. Foucault é ele mesmo um historiador, e um historiador

incontestavelmente original que todos nós temos interesse em escutar.” (LÉONARD, 1980: p.

16)

As perguntas dirigidas a Foucault na mesa-redonda de 20 de maio de 1978, estão

relacionadas à argumentação anterior construída por Jacques Léonard, entretanto é possível ver

Page 4: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

4

indícios do rumo teórico que a argumentação adquiriu. As questões podem ser divididas em

quatro grandes blocos:

1) Por que estudar a prisão?;

2) A forma de Foucault lidar com o acontecimento histórico, sua forma de

“Acontecimentalizar” a história;

3) O problema de se investigar a racionalidade;

4) O efeito anestesiante que os escritos de Foucault teriam nos leitores.

Logo no início de sua resposta, Foucault constrói sua argumentação minimizando as

divergências entre campos e diminui as polêmicas entre historiadores e filósofos, afirmando

não querer que tomem o que disse como uma teoria da história. Para ele, o que se fez foi uma

proposta, “ofertas de jogo”, para serem utilizadas por qualquer um que possa se interessar, não

sendo suas afirmações dogmáticas. “Meus livros não são tratados de filosofia nem estudos

históricos; no máximo fragmentos filosóficos em canteiros históricos” (FOUCAULT, 2003:

336). Essa concepção de historiar, não se propondo como filosofia da história, teoria ou

teleologia, propõe uma forma de lidar com o passado distinta e com leitura filosófica numa

investigação histórica.

Foucault começa respondendo ao primeiro bloco de perguntas – Por que a prisão? –

dizendo que “Em primeiro lugar, porque ela foi bastante negligenciada até então nas análises.”

(FOUCAULT, 2003: 336) E nessa passagem já se tem uma pequena provocação, no sentido de

perceber que o tema “prisão” foi negligenciado pelos ditos historiadores. Uma segunda

motivação foi “retomar o tema da genealogia da moral, mas segundo o fio das transformações

do que se poderia chamar de ‘tecnologias morais’.” (FOUCAULT, 2003: 337) Sua tributação

ao pensamento de Nietzsche, mencionado no Vigiar e punir, mas sobretudo utilizado como uma

saída teórica da causalidade é digna de nota. Uma terceira motivação foi um fato

contemporâneo a ele: as prisões e alguns aspectos da prática penal estavam sendo postas em

questão em países como França, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. (FOUCAULT, 2003: 337)

Ele afirma como uma quarta motivação o fato de estar interessado nas práticas:

Neste trabalho sobre as prisões, assim como em outros, o alvo, o ponto de ataque da

análise, eram não as “instituições”, não as “teorias” ou uma “ideologia”, mas as

“práticas” – e isto para captar as condições que, em um dado momento, as tornam

aceitáveis: a hipótese sendo a de que os tipos de práticas não são apenas comandados

pela instituição, prescritos pela ideologia ou guiados pelas circunstâncias – seja qual

for o papel de uns e de outros –, mas que eles têm, até certo ponto, sua própria

regularidade, sua lógica, sua estratégia, sua evidência, sua “razão”.

[...] Quis, portanto, fazer a história não da instituição prisão, mas da “prática de

aprisionamento”. Mostrar sua origem ou, mais exatamente, mostrar como essa

maneira de fazer, muito antiga, é claro, pôde ser aceita em um momento como peça

Page 5: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

5

principal no sistema penal. A ponto de aparecer como uma peça inteiramente natural,

evidente, indispensável. (FOUCAULT, 2003: 338)

Na resposta de Foucault existe um tipo de demarcação de território que quer se

distanciar de determinadas práticas de historiar, talvez mais próximas ao pensamento dialético

e ao principio de explicação causal do marxismo, onde para ele, causa e efeito são a chave para

explicação histórica. O argumento é reiterado por seu posicionamento em favor de uma

genealogia histórica que rompe com uma lógica de continuidade: “Não se trata, portanto, de

reencontrar uma continuidade escondida, mas de saber qual é a transformação que tornou

possível essa passagem tão apressada.” (FOUCAULT, 2003: 338)

A segunda parte das perguntas, referente ao “Acontecimentalizar”, se volta para o

historiar de Foucault, para forma como ele lidou com o acontecimento histórico em suas

análises, em como isso incomodou os historiadores, em como suas análises estariam oscilando

entre um hiper-racionalismo e uma sub-racionalidade. Inicialmente, ele expõe qual é a sua ideia

de “acontecimentalização”, que

consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos

de força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida,

funcionará como evidência, universalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa

maneira, procedemos, na verdade, a uma espécie de desmultiplicação causal.

(FOUCAULT, 2003: 339)

Esse efeito de “desmultiplicação” tem, ao menos, três contribuições significativas para se

compreender a forma de historiar foucaultiana. As acepções são: “analisar o acontecimento

segundo os processos múltiplos que o constituem.” (FOUCAULT, 2003: 339); “[...] construir,

em torno do acontecimento singular analisado como processo, um ‘polígono’, ou melhor,

‘poliedro de inteligibilidade’, cujo número de faces não é previamente definido e nunca pode

ser considerado como legitimamente concluído.”; (FOUCAULT, 2003: 340) “implica,

portanto, um polimorfismo crescente, à medida que a análise avança” (FOUCAULT, 2003:

340) Essa forma quebra uma relação com um eixo central condutor de historicidade; o que se

tem nesse processo são muitas relações diversas, muitas linhas de análise. (Cf. FOUCAULT,

2003: 341)

Em relação à terceira parte, que trata dos problemas de se investigar a racionalidade na

história, as questões giram em torno de como Foucault resolve as mudanças das práticas, das

tecnologias, dos regimes de produção do verdadeiro e do falso. Os questionamentos tomam as

proposições de Foucault como meta-antropológico e meta-histórico para se investigar as

Page 6: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

6

racionalidades envolvidas na noção de “acontecimentalização”, a resposta é uma nova

provocação:

Se são chamados de “weberianos” aqueles que quiserem substituir a análise marxista

das contradições do capital pela da racionalidade irracional da sociedade

capitalista, não acho que eu seja weberiano, pois meu problema não é, finalmente, o

da racionalidade, como invariante antropológica. (FOUCAULT, 2003: 342)

Foucault problematiza que ser historiador e não ser marxista, não implica que se será um

historiador weberiano, ou seja, investigar a racionalidade que tornou possível uma sociedade

capitalista mudar sua forma de punição não é uma pesquisa necessariamente antropológica. A

pergunta subsequente a essas repostas talvez seja uma das mais interessantes por colocar em

cena a multiplicidade das camadas discursivas presentes numa transcrição da oralidade presente

em uma mesa-redonda.

A pergunta feita foi a seguinte:

O senhor fala de Max Weber. Não é por acaso. Há, em suas formulações, em um

sentido que o senhor, sem dúvida, não aceitaria, alguma coisa como um “tipo ideal”,

que paralisa e deixa mudo quando se quer dar conta da realidade. Não foi isso que o

coagiu a decidir não fazer comentários quando da publicação de Pierre Rivière?

(FOUCAULT, 2003: 343)

Pela ausência de identificação, não é possível afirmar quem fez pergunta, porém num exercício

controlado de especulação é possível supor que essa questão tenha sido levantada por Carlo

Ginzburg. Ele dedica duas páginas do prefácio à edição italiana do livro O Queijo e os vermes

de 1976 para fazer críticas contundentes aos livros de Foucault e mais especificamente ao dossiê

de um parricida coordenado por ele, chamado Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe,

minha irmã e meu irmão em 1973. “O que interessa sobretudo a Foucault são os gestos e os

critérios de exclusão; os excluídos, um pouco menos.” (GINZBURG, 1987: 22), para Ginzburg

“o ambicioso projeto foucaultiano de uma ‘arqueologia do silêncio’ transformou-se em silêncio

puro e simples – por vezes acompanhado de uma muda contemplação estetizante.”

(GINZBURG, 1987: 23) e para ele isso se agrava nas escolhas feitas na coordenação do dossiê

em deliberadamente não interpretar os textos de Pierre Rivière. Para Ginzburg:

A possibilidade de interpretar esse texto foi excluída de forma explícita, porque

equivaleria a alterá-lo, reduzindo-o a uma “razão” estranha a ele. Não sobraria mais

nada, além de “estupor” e “silêncio” – únicas reações legítimas. É no irracionalismo

estetizante, portanto, que vai desembocar esta linha de pesquisa. (GINZBURG, 1987:

23)

Page 7: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

7

Por essas afirmações, é possível intuir que a questão na qual se utiliza as expressões “silêncio”,

“deixa mudo”, e a não realização de comentários sobre o dossiê de Pierre Rivière, tenha sido

feita por Carlo Ginzburg.3

Toda essa associação entre a pergunta feita e seu provável realizador se dá também pela

forma com a qual a resposta foi feita, das réplicas de Foucault esta é uma das mais irônicas,

enfáticas e ríspidas. Destoando inclusive do tom que o debate vinha tendo até então. A resposta

se inicia desqualificando o questionador por este não saber exatamente o que a categoria “tipo

ideal” de Max Weber seja. O “tipo ideal” para Foucault “é uma categoria de interpretação

historiadora; é uma estrutura de compreensão para o historiador que se esforça, a posteriori, em

ligar entre si um certo número de dados: ela permite retomar uma essência (do calvinismo, ou

do Estado, ou da empreitada capitalista)”. (FOUCAULT, 2003: 343)

Essa localização lembra o trabalho realizado por Ginzburg em O Queijo e os vermes, e

a partir disso Foucault faz questão de diferenciar seu trabalho dessa categoria ao reiterar que

analisa a racionalidade ao longo de toda sua trajetória intelectual, seja no aprisionamento penal,

na psiquiatrização da loucura ou na normalização da sexualidade. Essa análise leva em

consideração o funcionamento real das instituições e suas implicações nos domínios da

constituição da racionalidade que a torna possível.

Foucault lista três grandes razões que o distanciam da noção de “tipo ideal”: primeiro o

esquema racional da prisão não é um principio geral, mas um programa explícito de prescrições

calculadas e pensadas; segundo, a disciplina que se constitui a partir dessa tecnologia de

adestramento humano não é um “tipo ideal” é uma generalização de diferentes técnicas que

devem responder a diferentes objetivos e públicos de disciplinarização; terceiro, os dispositivos

disciplinares produzem efeitos permanentes e sólidos que permitem perceber a própria

racionalidade em que ele foi produzido. “Programas, tecnologias, dispositivos: nada de tudo

isso é o ‘tipo ideal’. Procuro ver o jogo e o desenvolvimento de realidades diversas que se

articulam umas com as outras” (FOUCAULT, 2003: 344)

A partir dessa parte da discussão, a resposta passa a ter um tom mais propositivo sobre

uma forma de pensar a história, mas também explicativa da própria proposta realizada em

Vigiar e punir. Foucault escolhe como exemplo um plano arquitetural de uma prisão idealizado

pelo filosofo Jeremy Bentham que nunca foi construído mas pode ser tomado como fonte para

se investigar a racionalidade de uma determinada época. Ele diz:

3 Para um aprofundamento das relações entre os estudos de Michel Foucault e as proposições de Carlo Ginzburg

no livro O queijo e os vermes, cabe a leitura do texto Menocchio e Rivière: criminosos da palavra, poetas do

silêncio, do professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. no livro História: a arte de inventar o passado.

Page 8: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

8

Por um lado, sua elaboração responde a toda uma série de práticas ou de estratégias

diversas: assim, a pesquisa de mecanismos eficazes, contínuos, bem avaliados que é,

com toda certeza, uma resposta à inadequação entre as instituições do Poder

Judiciário e as novas formas da economia, da urbanização etc.; ou ainda a tentativa,

muito sensível em um país como a França, de reduzir o que havia de autonomia e de

insalubridade na prática judiciária e no pessoal de justiça, em relação ao conjunto

do funcionamento do Estado; ou ainda a vontade de responder ao aparecimento de

novas formas de delinquência etc. (FOUCAULT, 2003: 345)

Essa perspectiva de abordagem histórica além de propositiva, evidencia os limites que

propostas diferentes tem, sobretudo a de Carlo Ginzburg. Longe de se perceber como

“estetizante” e “niilista”, ele abandona formas acabadas de entendimento do passado como

verdadeiro e falso, e passa a problematizá-las como historicamente localizadas. O excluído

interessa tanto quanto os dispositivos que tornam possível a exclusão, “É inteiramente exato

que os delinquentes foram recalcitrantes a toda mecânica disciplinar das prisões”

(FOUCAULT, 2003: 344), segundo a argumentação é exatamente por isso que a proposta

foucaultiana é ainda mais realista, por tentar dar conta das possibilidades do que poderia ter

sido, daquilo que foi abandonado nas racionalidades em disputa. Essa concepção se interessa

em entender como se constituíram certos regimes de verdade de uma dada época.

Diferentemente das supostas críticas do historiador italiano, não se busca a realidade do objeto

investigado, mas os seus fragmentos.

A questão à qual não chegarei a responder, mas que é a que eu me fiz desde o começo,

é mais ou menos esta: “o que é a história, do momento em que nela se produz sem

cessar a divisão do verdadeiro e do falso?” E, com isso, quero dizer quatro coisas:

1) Em que a produção e a transformação da divisão do verdadeiro/falso são

características e determinantes de nossa historicidade?

2) De quais maneiras específicas essa relação atuou nas sociedades “ocidentais”

produtoras de um saber científico de forma perpetuamente cambiante e de valor

universal?

3) O que pode ser o saber histórico de uma história que produz a divisão

verdadeiro/falso da qual decorre esse saber?

4) O problema político mais geral não é o da verdade? Como ligar uma à outra, a

maneira de dividir o verdadeiro e o falso e a maneira de governar-se a si mesmo

e os outros? (FOUCAULT, 2003: 346)

Nessa passagem, não ficam muitas dúvidas sobre os posicionamentos de Foucault, bem como

qual proposta ele está criticando duramente. O que faz Carlo Ginzburg com o moleiro

Menocchio em O queijo e os vermes, se não estabelecer uma narrativa verdadeira para seu

personagem? Uma segunda crítica ainda mais dura se destina a um tipo de saber histórico que

produz a divisão entre verdadeiro/falso para legitimar-se através de uma cientificidade

igualmente galgada nessa divisão. E encerra essa questão enfatizando a necessidade de se

Page 9: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

9

estudar a simultaneidade das coisas e não só os indivíduos. A oralidade que produziu essa

argumentação permite uma multiplicidade de camadas analíticas, possibilitando entre outras

coisas, uma leitura transversal das animosidades presentes no calor da discussão.

Na última parte da mesa-redonda, relativa ao efeito anestesiante que o livro teria sobre

os seus leitores, Foucault é questionado se sua forma de lidar com as rupturas das evidências e

como acontecem, não teria, por exemplo, um efeito anestesiante sobre educadores

penitenciários. E nessa parte do debate, é possível perceber que a situação de produção também

tem relevância nos desdobramentos da argumentação e como os ânimos ainda estavam

alterados pela pergunta anterior, a postura de Foucault é provocativa e debochada em relação

ao tipo de historiadores que foram criticados anteriormente. Ele reconhece que talvez o que

tenha dito no livro tenha tido o efeito anestesiante. Entretanto, é preciso identificar para quem.

Se julgo pelo que disseram as autoridades psiquiátricas francesas, se julgo pela corte

de direita que me acusava de me opor a qualquer poder, e a esquerda que me

designava como “última muralha da burguesia”, se julgo pelo bravo psicanalista que

me aproximava de Hitler de Mein Kampf, se julgo pelo número de vezes em que, há

15 anos, fui “autopsiado”, “enterrado” etc., pois bem tenho a impressão de ter tido

sobre muita gente um efeito mais irritador que anestesiante. (FOUCAULT, 2003:

348)

O efeito irritante poderia ser dirigido à muitos dos seus críticos, inclusive alguns que estavam

presentes, mas também todos aqueles que sistematicamente tentaram enquadrar o seu trabalho

em determinadas correntes teóricas ou suas práticas históricas como associadas ao pensamento

weberiano.

Para Foucault esse efeito irritante é motivação para especular sobre seu historiar em

Vigiar e punir: “Talvez porque meu problema não é construir algo novo ou validar o já feito.

Talvez porque meu problema não é propor um princípio de análise global da sociedade. E é

nisto que meu projeto era, de partida, diferente daqueles dos historiadores.” (FOUCAULT,

2003: 350). Ele novamente provoca os historiadores das grandes teorias explicativas, os que

apenas repetem formas de pensar o próprio ofício e os que tentam inovar sistematicamente,

além de se colocar a parte de uma suposta classe de historiadores que levam essas questões em

consideração.

Provocações à parte, ele reitera que:

Meu tema geral não é a sociedade, é o discurso verdadeiro/falso: quero dizer, é a

formação correlativa de domínios, de objetos e de discursos verificáveis e falsificáveis

que lhe são aferentes: não é simplesmente essa formação que me interessa, mas os

efeitos de realidade que lhe estão ligados. (FOUCAULT, 2003: 350)

Page 10: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

10

O discurso que produz a razão punitiva do encarceramento é quem estabelece os regimes de

verdadeiro/falso e produz efeitos de realidade. Mesmo após todas as críticas, Foucault enfatiza

que sua pesquisa pode ser entendida como histórica desde que não seja tomado como baliza um

determinado tipo de historiador que outrora ele criticava. Foucault põe uma questão para os

historiadores muito interessante,

Fazer a história da “objetivação” desses elementos considerados pelos historiadores

como dados objetivamente (a objetivação das objetividades, se ouso dizer), é este tipo

de círculo que gostaria de percorrer. Uma “embrulhada”, em suma, da qual não é

cômodo sair: eis aí, sem dúvida, o que incomoda e irrita, muito mais do que um

esquema que seria fácil reproduzir. Problema de filosofia, sem dúvida, ao qual todo

historiador tem o direito de permanecer indiferente. Mas se formulo esse problema

nas análises históricas, não é porque eu peça à história para me fornecer uma resposta;

mas gostaria apenas de balizar quais efeitos essa questão produz no saber histórico.

(FOUCAULT, 2003: 351)

As questões postas são interessantes para fazer refletir sobre o fazer histórico de

Foucault, já que em Vigiar e punir ele se propôs estudar de que maneira foi possível se constituir

uma racionalização do exercício de poder no século XVIII, que fez emergir uma nova

“economia” das relações de poder. Ou seja, ele investigou um problema histórico, e não um

objeto histórico. Essa constatação, aparentemente explícita, entende que investigar um

problema histórico é deslocar a pergunta epistemológica do historiador. A questão deixa de ser

o objeto histórico e passa a ser como foi possível este objeto histórico constituir-se como tal.

Assim, através dos debates surgidos a partir da recepção da obra Vigiar e Punir, é possível

perceber as propostas sobre o fazer historiográfico em questão no momento e a perspectiva

adotada pelo próprio Foucault e seus debatedores.

A produção de Foucault em suas múltiplas facetas, também comporta ser pensada a

partir da oralidade. Oralidade presente em toda a sua trajetória, seja nas primeiras entrevistas,

em programas radiofônicos, nos debates públicos ou nos cursos ministrados no Collège de

France. As transversalidades do pensamento dele podem ser percebidas nas minucias das suas

respostas, nas sutilezas de suas argumentações e na combatividade de seus posicionamentos.

Tentar investigar uma pequena passagem dessa oralidade é historiar uma das múltiplas

contribuições que as reflexões de Foucault sugeriram para a história.

Referências Bibliográficas

Page 11: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

11

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Menocchio e Rivière: criminosos da palavra,

poetas do silêncio In: História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. p. 101-

112.

BILLOUET, Pierre. Foucault. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

FOUCAULT, Michel. A poeira e a nuvem. In: Ditos & escritos IV. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2003. p. 323-334.

_________________. La poussière et le nuage. In: PERROT, Michelle. L’impossible prison:

Recherches sur le système pénitentiaire au XIXe siècle. Paris: SEUIL, 1980. p. 29-39.

_________________. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2004.

_________________. A ordem do discurso. 8a ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

_________________. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora,

2005.

_________________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª

ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_________________. Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Éditions Gallimard, 2001.

_________________. Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001.

_________________. Entrevistas Roger Pol-Droit. São Paulo: Graal, 2006.

_________________. (Apres.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e

meu irmão... um caso de parricídio do século XIX. 7ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,

1977.

_________________. História da Loucura na idade clássica. 7ª ed. São Paulo: Editora

Perspectiva 2004.

_________________. O corpo utópico; As heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.

_________________. Microfísica do poder. 19ª ed. São Paulo: Edições Graal, 2004.

_________________. Natureza humana: justiça vs. poder: o debate entre Chomsky e

Foucault. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

_________________. Surveiller et punir, Naissance de la prision. Paris: Éditions Gallimard,

1975.

_________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

LÉONARD, Jacques. L'Historien et le philosophe: a propos de Surveiller et punir: naissance

de la prison. In: Annales historiques de la Révolution Française, no. 228, Julho-Setembro.

1977, p. 163-81; p. 175-76.

_________________. L'Historien et le philosophe: a propos de Surveiller et punir: naissance

de la prison. In: PERROT, Michelle. L’impossible prison: Recherches sur le système

pénitentiaire au XIXe siècle. Paris: SEUIL, 1980. p. 9-28.

_________________. Les officiers de santé de la marine française de 1814 à 1835. Paris: C.

Klincksieck, 1967.

_________________. Les Médecins de l'Ouest au XIXe siècle. 3 vols Paris:Librairie Honoré

Champion, 1978.

_________________. La Vie quotidienne du médecin de province au XIXe siècle. Paris:

Hachette, 1977.

_________________. La France médicale: médecins et malades au XIXe siècle. Collection

Archives, no. 73. Paris: Editions Gallimard/Julliard, 1978.

_________________. La Médecine entre les savoirs et les pouvoirs: histoire intellectuelle

et politique de la médecine française au XIXe siècle. Paris: Editions Aubier Montaigne, 1981.

_________________. Archives du corps. La santé au XIXe siècle. Rennes: Ouest-

France, 1986.

_________________. Médecins, malades et sociétés dans la France du XIXe siècle. Paris:

Ed. Sciences en situation, 1992.

Page 12: Após a publicação do livro - XI Encontro Regional ... · A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978 ... Rio), reunidas e publicadas com o título

12

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido

pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.