Upload
vuongkhanh
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
A oralidade em Michel Foucault: sobre a mesa-redonda de 20 de maio de 1978
PABLO SPÍNDOLA*
O pensador francês Michel Foucault, ao longo de sua trajetória filosófica, esteve
permeado por registros de sua oralidade, palestras, cursos, debates, conferências, mesas-
redondas, programas de rádio e televisão foram transcritos e publicados. Estes textos,
produzidos por sua oralidade, compõem uma produção duas ou três vezes maior que o número
de livros publicados por ele. Para mencionar apenas as mais citadas, tem-se duas conferências
radiofônicas transmitidas pela rádio França em dezembro de 1966, O Corpo Utópico e As
Heterotopias; a aula inaugural de sua entrada no Collège de France, A ordem do discurso; o
debate entre Noam Chomsky e Michel Foucault em 1971 intitulado Natureza Humana: Justiça
Vs. Poder; cinco conferências na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio), reunidas e publicadas com o título de A verdade e as formas jurídicas; todos os cursos
ministrados no Collège de France de 1970 até 19841; além de um número significativo de
entrevistas reunidas na coleção Dits et écrits, reunidos e publicados em 1994, mas que agrupa
entrevistas e textos de 1954-1988. Dada toda essa produção é possível ver na oralidade de
Foucault também marcas de sua trajetória intelectual.
Tendo em vista a complexidade, diversidade, multiplicidade e extensão dessa produção,
cabe um recorte num momento da produção de Michel Foucault em que ele teve um diálogo
mais intenso com os historiadores. Nas conferências na PUC-Rio, A verdade e as formas
jurídicas, chama a atenção as provocações feitas aos historiadores, sobretudo aos seus modos
de tecer e constituir a narrativa do passado. As provocações estão inseridas na trajetória
filosófica do intelectual, mas podem ser consideradas o começo de uma série de debates que
eclodiram com a publicação do seu livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão (Surveiller et
punir: naissance de la prison).
* UFRRJ, doutorando em História, bolsista Capes. 1 Aulas Sobre a Vontade de Saber 1970-1971; Teorias e instituições penais 1971-1972; A sociedade punitiva 1972-
1973; O poder psiquiátrico 1973-1974; Os anormais 1974-1975; Em defesa da sociedade 1975-1976; Segurança,
território e população 1977-1978; Nascimento da biopolítica 1978-1979; Do governo dos vivos 1979-1980;
Subjetividade e verdade 1980-1981; A hermenêutica do sujeito 1981-1982; O Governo de Si e dos Outros 1982-
1983; A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II 1983-1984
2
Após a publicação do livro Vigiar e Punir em 1975 se iniciou uma série de debates,
sobre as fontes utilizadas, sobre como foram lidas, como foram agrupadas e separadas, mas
também sobre a forma dos historiadores escreverem a história e como Foucault o fizera. Essa
discussão pode ser inserida numa argumentação mais ampla sobre a história, pois o convite à
reflexão histórica partindo de um pensador, até então identificado com a filosofia, provocou os
historiadores. Vigiar e punir não foi lido apenas por historiadores, mas as reações às
proposições do livro vieram preponderantemente deles. Essas inquietações podem ser vistas
principalmente em duas passagens bem específicas: num texto escrito em 1975 por um
historiador, especialista em história da medicina francesa, Jacques Léonard2, intitulado
L’historien et le philosophe – A propos de: Surveiller et punir: naissance de la prison, ao qual
Foucault responde num artigo chamado La poussière et le nuage e depois na mesa-redonda em
20 de Maio de 1978, onde estavam reunidos os dois pensadores e outros historiadores para
debaterem os textos mencionados.
O texto de Jacques Léonard, L’historien et le philosophe – A propos de: Surveiller et
punir: naissance de la prison, é o início de um debate que na época ficou muito conhecido,
dado que questionava o historiar de Foucault. Nesse texto, chama atenção a forma como a
argumentação foi construída, pois em algumas passagens, propõe dois arquétipos: de um lado
historiadores e de outro filósofos. Além disso, Léonard também polemizou o posicionamento
que os historiadores tinham diante dos escritos de Foucault, que alternavam entre a admiração
e a irritação. O texto se tornou ainda mais significativo por Foucault ter respondido as questões
levantadas pelo historiador, completando assim o diálogo entre os intelectuais. Nas respostas
de Foucault, o debate que se iniciara sobre o livro Vigiar e punir se volta para uma discussão
mais ampla sobre a história e suas formas de fazer/escrever.
Em 20 de maio de 1978, Foucault foi convidado a participar de discussões sobre Vigiar
e punir e sua forma de fazer história, e debater também sobre sua discussão com Jacques
Léonard numa mesa-redonda com a participação de vários historiadores. Estavam presentes
nessa mesa-redonda: Maurice Agulhon, Nicole Castan, Catherine Duprat, François Ewald,
Arlette Farge, Alexandre Fontana, Carlo Ginzburg, Remi Gossez, Jacques Léonard, Pascal
2 Sua primeira tese defendida em história foi Les officiers de santé de la marine française de 1814 a 1835, trabalho
no qual tratou do status social e profissional de médicos, cirurgiões e farmacêuticos do corpo da Marinha de guerra
francesa, descrevendo a formação e as contribuições destes para a difusão do conhecimento médico da época.
Porém seu trabalho de maior vulto é Les médecins de l’Ouest au XIXe siècle, tese de três volumes defendida em
1976 e publicada em 1978. Além destes, outros trabalhos como: La vie quotidienne de médecin de province au
XIXe siècle de 1977, La France médicale au XIXe siècle de 1978, La médecine entres les savoirs et les pouvoirs.
Histoire intellectuelle et politique de la médecine française au XIXe siècle de 1981, Archives du corps. La santé
au XIXe siècle, de 1986 e Médecins, malades et sociétés dans la France du XIXe siècle de 1992, são também peças
importantes para a história da medicina francesa.
3
Pasquino, Michelle Perrot, Jacques Revel. O texto que se originou dessa mesa-redonda tem
algumas especificidades da oralidade, a primeira e mais imediata é que todas as respostas de
Foucault, além do rigor hodierno, estão permeadas por sua ironia também costumeira. A
segunda especificidade é que os participantes que fizeram perguntas não foram identificados,
sendo colocados como um questionador único, o que dificulta a percepção de outras camadas
que o discurso oral pode conter. A terceira, que é um desdobramento da segunda, é escamotear
respostas dadas no calor do debate que depois poderiam ter provocado novas críticas a Foucault.
Cabe lembrar que Michel Foucault à época já é bastante conhecido entre os historiadores
e admirado por alguns deles. Seu trabalho doutoral, Historia da Loucura na idade clássica, foi
muito bem recebido de maneira geral, e já o seu livro seguinte, As palavras e as coisas, foi mais
contestado e teve como principal interlocutor uma serie de debates com o filósofo Jean-Paul
Sartre, mas foi amplamente lido. No livro seguinte, A arqueologia do saber, dedica toda a sua
introdução a recuperar uma parte dos debates anteriores e também foi recebido pelas mais
diversas áreas do saber, como filosofia, história e sociologia. O Vigiar e Punir foi publicado
em fevereiro de 1975 e teve uma grande repercussão na imprensa francesa com número especial
na revista Magazine Litteraire, ganhou páginas especiais e entrevistas no Le Monde, La
Quinzaine Litteraire, Le Figaro, L’Express, Le Nouvel Observateur e outros. A revista Critique
consagrou uma edição inteira ao livro e a Foucault. O livro foi lido por diversos segmentos
sociais: acadêmicos, não acadêmicos, profissionais liberais e inclusive por juristas, e as
agitações e rebeliões remetidas à publicação causaram efeitos na estrutura administrativa do
Estado, nos relatórios administrativos e vistoriais. O biógrafo Pierre Billouet diz que o livro
Vigiar e Punir associado ao GIP (Grupo de Informações sobre a Prisão) e à Comissão de Ação
dos Presos, levou a uma abertura das prisões no sentido de dar visibilidade por parte da
imprensa, formular parlatórios livres, des-disciplinarização e a desculpabilização dos presos.
(BILLOUET, 2003: p. 127-152) Estes passaram a não aceitar mais o modelo de vigilância e
tratamento dado nas prisões e reivindicaram melhores condições: “matei, peguei tantos anos,
mas isso não é razão para faltarem cobertores e sentir frio no inverno” (BILLOUET, 2003: p.
142). Logo, Foucault ao chegar a esse debate era um pensador a ser ouvido, como o próprio
Jacques Léonard afirma “M. Foucault é ele mesmo um historiador, e um historiador
incontestavelmente original que todos nós temos interesse em escutar.” (LÉONARD, 1980: p.
16)
As perguntas dirigidas a Foucault na mesa-redonda de 20 de maio de 1978, estão
relacionadas à argumentação anterior construída por Jacques Léonard, entretanto é possível ver
4
indícios do rumo teórico que a argumentação adquiriu. As questões podem ser divididas em
quatro grandes blocos:
1) Por que estudar a prisão?;
2) A forma de Foucault lidar com o acontecimento histórico, sua forma de
“Acontecimentalizar” a história;
3) O problema de se investigar a racionalidade;
4) O efeito anestesiante que os escritos de Foucault teriam nos leitores.
Logo no início de sua resposta, Foucault constrói sua argumentação minimizando as
divergências entre campos e diminui as polêmicas entre historiadores e filósofos, afirmando
não querer que tomem o que disse como uma teoria da história. Para ele, o que se fez foi uma
proposta, “ofertas de jogo”, para serem utilizadas por qualquer um que possa se interessar, não
sendo suas afirmações dogmáticas. “Meus livros não são tratados de filosofia nem estudos
históricos; no máximo fragmentos filosóficos em canteiros históricos” (FOUCAULT, 2003:
336). Essa concepção de historiar, não se propondo como filosofia da história, teoria ou
teleologia, propõe uma forma de lidar com o passado distinta e com leitura filosófica numa
investigação histórica.
Foucault começa respondendo ao primeiro bloco de perguntas – Por que a prisão? –
dizendo que “Em primeiro lugar, porque ela foi bastante negligenciada até então nas análises.”
(FOUCAULT, 2003: 336) E nessa passagem já se tem uma pequena provocação, no sentido de
perceber que o tema “prisão” foi negligenciado pelos ditos historiadores. Uma segunda
motivação foi “retomar o tema da genealogia da moral, mas segundo o fio das transformações
do que se poderia chamar de ‘tecnologias morais’.” (FOUCAULT, 2003: 337) Sua tributação
ao pensamento de Nietzsche, mencionado no Vigiar e punir, mas sobretudo utilizado como uma
saída teórica da causalidade é digna de nota. Uma terceira motivação foi um fato
contemporâneo a ele: as prisões e alguns aspectos da prática penal estavam sendo postas em
questão em países como França, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. (FOUCAULT, 2003: 337)
Ele afirma como uma quarta motivação o fato de estar interessado nas práticas:
Neste trabalho sobre as prisões, assim como em outros, o alvo, o ponto de ataque da
análise, eram não as “instituições”, não as “teorias” ou uma “ideologia”, mas as
“práticas” – e isto para captar as condições que, em um dado momento, as tornam
aceitáveis: a hipótese sendo a de que os tipos de práticas não são apenas comandados
pela instituição, prescritos pela ideologia ou guiados pelas circunstâncias – seja qual
for o papel de uns e de outros –, mas que eles têm, até certo ponto, sua própria
regularidade, sua lógica, sua estratégia, sua evidência, sua “razão”.
[...] Quis, portanto, fazer a história não da instituição prisão, mas da “prática de
aprisionamento”. Mostrar sua origem ou, mais exatamente, mostrar como essa
maneira de fazer, muito antiga, é claro, pôde ser aceita em um momento como peça
5
principal no sistema penal. A ponto de aparecer como uma peça inteiramente natural,
evidente, indispensável. (FOUCAULT, 2003: 338)
Na resposta de Foucault existe um tipo de demarcação de território que quer se
distanciar de determinadas práticas de historiar, talvez mais próximas ao pensamento dialético
e ao principio de explicação causal do marxismo, onde para ele, causa e efeito são a chave para
explicação histórica. O argumento é reiterado por seu posicionamento em favor de uma
genealogia histórica que rompe com uma lógica de continuidade: “Não se trata, portanto, de
reencontrar uma continuidade escondida, mas de saber qual é a transformação que tornou
possível essa passagem tão apressada.” (FOUCAULT, 2003: 338)
A segunda parte das perguntas, referente ao “Acontecimentalizar”, se volta para o
historiar de Foucault, para forma como ele lidou com o acontecimento histórico em suas
análises, em como isso incomodou os historiadores, em como suas análises estariam oscilando
entre um hiper-racionalismo e uma sub-racionalidade. Inicialmente, ele expõe qual é a sua ideia
de “acontecimentalização”, que
consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos
de força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida,
funcionará como evidência, universalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa
maneira, procedemos, na verdade, a uma espécie de desmultiplicação causal.
(FOUCAULT, 2003: 339)
Esse efeito de “desmultiplicação” tem, ao menos, três contribuições significativas para se
compreender a forma de historiar foucaultiana. As acepções são: “analisar o acontecimento
segundo os processos múltiplos que o constituem.” (FOUCAULT, 2003: 339); “[...] construir,
em torno do acontecimento singular analisado como processo, um ‘polígono’, ou melhor,
‘poliedro de inteligibilidade’, cujo número de faces não é previamente definido e nunca pode
ser considerado como legitimamente concluído.”; (FOUCAULT, 2003: 340) “implica,
portanto, um polimorfismo crescente, à medida que a análise avança” (FOUCAULT, 2003:
340) Essa forma quebra uma relação com um eixo central condutor de historicidade; o que se
tem nesse processo são muitas relações diversas, muitas linhas de análise. (Cf. FOUCAULT,
2003: 341)
Em relação à terceira parte, que trata dos problemas de se investigar a racionalidade na
história, as questões giram em torno de como Foucault resolve as mudanças das práticas, das
tecnologias, dos regimes de produção do verdadeiro e do falso. Os questionamentos tomam as
proposições de Foucault como meta-antropológico e meta-histórico para se investigar as
6
racionalidades envolvidas na noção de “acontecimentalização”, a resposta é uma nova
provocação:
Se são chamados de “weberianos” aqueles que quiserem substituir a análise marxista
das contradições do capital pela da racionalidade irracional da sociedade
capitalista, não acho que eu seja weberiano, pois meu problema não é, finalmente, o
da racionalidade, como invariante antropológica. (FOUCAULT, 2003: 342)
Foucault problematiza que ser historiador e não ser marxista, não implica que se será um
historiador weberiano, ou seja, investigar a racionalidade que tornou possível uma sociedade
capitalista mudar sua forma de punição não é uma pesquisa necessariamente antropológica. A
pergunta subsequente a essas repostas talvez seja uma das mais interessantes por colocar em
cena a multiplicidade das camadas discursivas presentes numa transcrição da oralidade presente
em uma mesa-redonda.
A pergunta feita foi a seguinte:
O senhor fala de Max Weber. Não é por acaso. Há, em suas formulações, em um
sentido que o senhor, sem dúvida, não aceitaria, alguma coisa como um “tipo ideal”,
que paralisa e deixa mudo quando se quer dar conta da realidade. Não foi isso que o
coagiu a decidir não fazer comentários quando da publicação de Pierre Rivière?
(FOUCAULT, 2003: 343)
Pela ausência de identificação, não é possível afirmar quem fez pergunta, porém num exercício
controlado de especulação é possível supor que essa questão tenha sido levantada por Carlo
Ginzburg. Ele dedica duas páginas do prefácio à edição italiana do livro O Queijo e os vermes
de 1976 para fazer críticas contundentes aos livros de Foucault e mais especificamente ao dossiê
de um parricida coordenado por ele, chamado Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe,
minha irmã e meu irmão em 1973. “O que interessa sobretudo a Foucault são os gestos e os
critérios de exclusão; os excluídos, um pouco menos.” (GINZBURG, 1987: 22), para Ginzburg
“o ambicioso projeto foucaultiano de uma ‘arqueologia do silêncio’ transformou-se em silêncio
puro e simples – por vezes acompanhado de uma muda contemplação estetizante.”
(GINZBURG, 1987: 23) e para ele isso se agrava nas escolhas feitas na coordenação do dossiê
em deliberadamente não interpretar os textos de Pierre Rivière. Para Ginzburg:
A possibilidade de interpretar esse texto foi excluída de forma explícita, porque
equivaleria a alterá-lo, reduzindo-o a uma “razão” estranha a ele. Não sobraria mais
nada, além de “estupor” e “silêncio” – únicas reações legítimas. É no irracionalismo
estetizante, portanto, que vai desembocar esta linha de pesquisa. (GINZBURG, 1987:
23)
7
Por essas afirmações, é possível intuir que a questão na qual se utiliza as expressões “silêncio”,
“deixa mudo”, e a não realização de comentários sobre o dossiê de Pierre Rivière, tenha sido
feita por Carlo Ginzburg.3
Toda essa associação entre a pergunta feita e seu provável realizador se dá também pela
forma com a qual a resposta foi feita, das réplicas de Foucault esta é uma das mais irônicas,
enfáticas e ríspidas. Destoando inclusive do tom que o debate vinha tendo até então. A resposta
se inicia desqualificando o questionador por este não saber exatamente o que a categoria “tipo
ideal” de Max Weber seja. O “tipo ideal” para Foucault “é uma categoria de interpretação
historiadora; é uma estrutura de compreensão para o historiador que se esforça, a posteriori, em
ligar entre si um certo número de dados: ela permite retomar uma essência (do calvinismo, ou
do Estado, ou da empreitada capitalista)”. (FOUCAULT, 2003: 343)
Essa localização lembra o trabalho realizado por Ginzburg em O Queijo e os vermes, e
a partir disso Foucault faz questão de diferenciar seu trabalho dessa categoria ao reiterar que
analisa a racionalidade ao longo de toda sua trajetória intelectual, seja no aprisionamento penal,
na psiquiatrização da loucura ou na normalização da sexualidade. Essa análise leva em
consideração o funcionamento real das instituições e suas implicações nos domínios da
constituição da racionalidade que a torna possível.
Foucault lista três grandes razões que o distanciam da noção de “tipo ideal”: primeiro o
esquema racional da prisão não é um principio geral, mas um programa explícito de prescrições
calculadas e pensadas; segundo, a disciplina que se constitui a partir dessa tecnologia de
adestramento humano não é um “tipo ideal” é uma generalização de diferentes técnicas que
devem responder a diferentes objetivos e públicos de disciplinarização; terceiro, os dispositivos
disciplinares produzem efeitos permanentes e sólidos que permitem perceber a própria
racionalidade em que ele foi produzido. “Programas, tecnologias, dispositivos: nada de tudo
isso é o ‘tipo ideal’. Procuro ver o jogo e o desenvolvimento de realidades diversas que se
articulam umas com as outras” (FOUCAULT, 2003: 344)
A partir dessa parte da discussão, a resposta passa a ter um tom mais propositivo sobre
uma forma de pensar a história, mas também explicativa da própria proposta realizada em
Vigiar e punir. Foucault escolhe como exemplo um plano arquitetural de uma prisão idealizado
pelo filosofo Jeremy Bentham que nunca foi construído mas pode ser tomado como fonte para
se investigar a racionalidade de uma determinada época. Ele diz:
3 Para um aprofundamento das relações entre os estudos de Michel Foucault e as proposições de Carlo Ginzburg
no livro O queijo e os vermes, cabe a leitura do texto Menocchio e Rivière: criminosos da palavra, poetas do
silêncio, do professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. no livro História: a arte de inventar o passado.
8
Por um lado, sua elaboração responde a toda uma série de práticas ou de estratégias
diversas: assim, a pesquisa de mecanismos eficazes, contínuos, bem avaliados que é,
com toda certeza, uma resposta à inadequação entre as instituições do Poder
Judiciário e as novas formas da economia, da urbanização etc.; ou ainda a tentativa,
muito sensível em um país como a França, de reduzir o que havia de autonomia e de
insalubridade na prática judiciária e no pessoal de justiça, em relação ao conjunto
do funcionamento do Estado; ou ainda a vontade de responder ao aparecimento de
novas formas de delinquência etc. (FOUCAULT, 2003: 345)
Essa perspectiva de abordagem histórica além de propositiva, evidencia os limites que
propostas diferentes tem, sobretudo a de Carlo Ginzburg. Longe de se perceber como
“estetizante” e “niilista”, ele abandona formas acabadas de entendimento do passado como
verdadeiro e falso, e passa a problematizá-las como historicamente localizadas. O excluído
interessa tanto quanto os dispositivos que tornam possível a exclusão, “É inteiramente exato
que os delinquentes foram recalcitrantes a toda mecânica disciplinar das prisões”
(FOUCAULT, 2003: 344), segundo a argumentação é exatamente por isso que a proposta
foucaultiana é ainda mais realista, por tentar dar conta das possibilidades do que poderia ter
sido, daquilo que foi abandonado nas racionalidades em disputa. Essa concepção se interessa
em entender como se constituíram certos regimes de verdade de uma dada época.
Diferentemente das supostas críticas do historiador italiano, não se busca a realidade do objeto
investigado, mas os seus fragmentos.
A questão à qual não chegarei a responder, mas que é a que eu me fiz desde o começo,
é mais ou menos esta: “o que é a história, do momento em que nela se produz sem
cessar a divisão do verdadeiro e do falso?” E, com isso, quero dizer quatro coisas:
1) Em que a produção e a transformação da divisão do verdadeiro/falso são
características e determinantes de nossa historicidade?
2) De quais maneiras específicas essa relação atuou nas sociedades “ocidentais”
produtoras de um saber científico de forma perpetuamente cambiante e de valor
universal?
3) O que pode ser o saber histórico de uma história que produz a divisão
verdadeiro/falso da qual decorre esse saber?
4) O problema político mais geral não é o da verdade? Como ligar uma à outra, a
maneira de dividir o verdadeiro e o falso e a maneira de governar-se a si mesmo
e os outros? (FOUCAULT, 2003: 346)
Nessa passagem, não ficam muitas dúvidas sobre os posicionamentos de Foucault, bem como
qual proposta ele está criticando duramente. O que faz Carlo Ginzburg com o moleiro
Menocchio em O queijo e os vermes, se não estabelecer uma narrativa verdadeira para seu
personagem? Uma segunda crítica ainda mais dura se destina a um tipo de saber histórico que
produz a divisão entre verdadeiro/falso para legitimar-se através de uma cientificidade
igualmente galgada nessa divisão. E encerra essa questão enfatizando a necessidade de se
9
estudar a simultaneidade das coisas e não só os indivíduos. A oralidade que produziu essa
argumentação permite uma multiplicidade de camadas analíticas, possibilitando entre outras
coisas, uma leitura transversal das animosidades presentes no calor da discussão.
Na última parte da mesa-redonda, relativa ao efeito anestesiante que o livro teria sobre
os seus leitores, Foucault é questionado se sua forma de lidar com as rupturas das evidências e
como acontecem, não teria, por exemplo, um efeito anestesiante sobre educadores
penitenciários. E nessa parte do debate, é possível perceber que a situação de produção também
tem relevância nos desdobramentos da argumentação e como os ânimos ainda estavam
alterados pela pergunta anterior, a postura de Foucault é provocativa e debochada em relação
ao tipo de historiadores que foram criticados anteriormente. Ele reconhece que talvez o que
tenha dito no livro tenha tido o efeito anestesiante. Entretanto, é preciso identificar para quem.
Se julgo pelo que disseram as autoridades psiquiátricas francesas, se julgo pela corte
de direita que me acusava de me opor a qualquer poder, e a esquerda que me
designava como “última muralha da burguesia”, se julgo pelo bravo psicanalista que
me aproximava de Hitler de Mein Kampf, se julgo pelo número de vezes em que, há
15 anos, fui “autopsiado”, “enterrado” etc., pois bem tenho a impressão de ter tido
sobre muita gente um efeito mais irritador que anestesiante. (FOUCAULT, 2003:
348)
O efeito irritante poderia ser dirigido à muitos dos seus críticos, inclusive alguns que estavam
presentes, mas também todos aqueles que sistematicamente tentaram enquadrar o seu trabalho
em determinadas correntes teóricas ou suas práticas históricas como associadas ao pensamento
weberiano.
Para Foucault esse efeito irritante é motivação para especular sobre seu historiar em
Vigiar e punir: “Talvez porque meu problema não é construir algo novo ou validar o já feito.
Talvez porque meu problema não é propor um princípio de análise global da sociedade. E é
nisto que meu projeto era, de partida, diferente daqueles dos historiadores.” (FOUCAULT,
2003: 350). Ele novamente provoca os historiadores das grandes teorias explicativas, os que
apenas repetem formas de pensar o próprio ofício e os que tentam inovar sistematicamente,
além de se colocar a parte de uma suposta classe de historiadores que levam essas questões em
consideração.
Provocações à parte, ele reitera que:
Meu tema geral não é a sociedade, é o discurso verdadeiro/falso: quero dizer, é a
formação correlativa de domínios, de objetos e de discursos verificáveis e falsificáveis
que lhe são aferentes: não é simplesmente essa formação que me interessa, mas os
efeitos de realidade que lhe estão ligados. (FOUCAULT, 2003: 350)
10
O discurso que produz a razão punitiva do encarceramento é quem estabelece os regimes de
verdadeiro/falso e produz efeitos de realidade. Mesmo após todas as críticas, Foucault enfatiza
que sua pesquisa pode ser entendida como histórica desde que não seja tomado como baliza um
determinado tipo de historiador que outrora ele criticava. Foucault põe uma questão para os
historiadores muito interessante,
Fazer a história da “objetivação” desses elementos considerados pelos historiadores
como dados objetivamente (a objetivação das objetividades, se ouso dizer), é este tipo
de círculo que gostaria de percorrer. Uma “embrulhada”, em suma, da qual não é
cômodo sair: eis aí, sem dúvida, o que incomoda e irrita, muito mais do que um
esquema que seria fácil reproduzir. Problema de filosofia, sem dúvida, ao qual todo
historiador tem o direito de permanecer indiferente. Mas se formulo esse problema
nas análises históricas, não é porque eu peça à história para me fornecer uma resposta;
mas gostaria apenas de balizar quais efeitos essa questão produz no saber histórico.
(FOUCAULT, 2003: 351)
As questões postas são interessantes para fazer refletir sobre o fazer histórico de
Foucault, já que em Vigiar e punir ele se propôs estudar de que maneira foi possível se constituir
uma racionalização do exercício de poder no século XVIII, que fez emergir uma nova
“economia” das relações de poder. Ou seja, ele investigou um problema histórico, e não um
objeto histórico. Essa constatação, aparentemente explícita, entende que investigar um
problema histórico é deslocar a pergunta epistemológica do historiador. A questão deixa de ser
o objeto histórico e passa a ser como foi possível este objeto histórico constituir-se como tal.
Assim, através dos debates surgidos a partir da recepção da obra Vigiar e Punir, é possível
perceber as propostas sobre o fazer historiográfico em questão no momento e a perspectiva
adotada pelo próprio Foucault e seus debatedores.
A produção de Foucault em suas múltiplas facetas, também comporta ser pensada a
partir da oralidade. Oralidade presente em toda a sua trajetória, seja nas primeiras entrevistas,
em programas radiofônicos, nos debates públicos ou nos cursos ministrados no Collège de
France. As transversalidades do pensamento dele podem ser percebidas nas minucias das suas
respostas, nas sutilezas de suas argumentações e na combatividade de seus posicionamentos.
Tentar investigar uma pequena passagem dessa oralidade é historiar uma das múltiplas
contribuições que as reflexões de Foucault sugeriram para a história.
Referências Bibliográficas
11
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Menocchio e Rivière: criminosos da palavra,
poetas do silêncio In: História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. p. 101-
112.
BILLOUET, Pierre. Foucault. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
FOUCAULT, Michel. A poeira e a nuvem. In: Ditos & escritos IV. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003. p. 323-334.
_________________. La poussière et le nuage. In: PERROT, Michelle. L’impossible prison:
Recherches sur le système pénitentiaire au XIXe siècle. Paris: SEUIL, 1980. p. 29-39.
_________________. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004.
_________________. A ordem do discurso. 8a ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
_________________. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora,
2005.
_________________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_________________. Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Éditions Gallimard, 2001.
_________________. Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001.
_________________. Entrevistas Roger Pol-Droit. São Paulo: Graal, 2006.
_________________. (Apres.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e
meu irmão... um caso de parricídio do século XIX. 7ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1977.
_________________. História da Loucura na idade clássica. 7ª ed. São Paulo: Editora
Perspectiva 2004.
_________________. O corpo utópico; As heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
_________________. Microfísica do poder. 19ª ed. São Paulo: Edições Graal, 2004.
_________________. Natureza humana: justiça vs. poder: o debate entre Chomsky e
Foucault. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
_________________. Surveiller et punir, Naissance de la prision. Paris: Éditions Gallimard,
1975.
_________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
LÉONARD, Jacques. L'Historien et le philosophe: a propos de Surveiller et punir: naissance
de la prison. In: Annales historiques de la Révolution Française, no. 228, Julho-Setembro.
1977, p. 163-81; p. 175-76.
_________________. L'Historien et le philosophe: a propos de Surveiller et punir: naissance
de la prison. In: PERROT, Michelle. L’impossible prison: Recherches sur le système
pénitentiaire au XIXe siècle. Paris: SEUIL, 1980. p. 9-28.
_________________. Les officiers de santé de la marine française de 1814 à 1835. Paris: C.
Klincksieck, 1967.
_________________. Les Médecins de l'Ouest au XIXe siècle. 3 vols Paris:Librairie Honoré
Champion, 1978.
_________________. La Vie quotidienne du médecin de province au XIXe siècle. Paris:
Hachette, 1977.
_________________. La France médicale: médecins et malades au XIXe siècle. Collection
Archives, no. 73. Paris: Editions Gallimard/Julliard, 1978.
_________________. La Médecine entre les savoirs et les pouvoirs: histoire intellectuelle
et politique de la médecine française au XIXe siècle. Paris: Editions Aubier Montaigne, 1981.
_________________. Archives du corps. La santé au XIXe siècle. Rennes: Ouest-
France, 1986.
_________________. Médecins, malades et sociétés dans la France du XIXe siècle. Paris:
Ed. Sciences en situation, 1992.
12
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.