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COMISSÃO DIOCESANA DE LITURGIA O Ano Litúrgico O Ano Litúrgico O Ano Litúrgico O Ano Litúrgico 6ª SEMANA DIOCESANA DE LITURGIA 2014

Apostila Da 6 Semana Diocesana de Liturgia 20143 (1)

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COMISSÃO DIOCESANA DE LITURGIA

O Ano LitúrgicoO Ano LitúrgicoO Ano LitúrgicoO Ano Litúrgico

6ª SEMANA DIOCESANA DE LITURGIA 2014

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COMISSÃO DIOCESANA DE LITURGIA Diocese de Santo André – São Paulo - Brasil

Coordenador:

Pe. Cristiano Marmelo Pinto [email protected]

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O Ano Litúrgico e a Reforma do Concílio Vaticano II

Pe. Cristiano Marmelo Pinto1

Introdução

Ainda no calor das comemorações dos 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, a 6ª Semana Diocesana de Liturgia se dispõe a tratar de um dos assuntos cruciais de nossa liturgia: o ano litúrgico. Compreender o valor sacramental e o seu desenrolar contribuirá de maneira determinante para que nossas celebrações litúrgicas sejam conforme os anseios do Concílio Vaticano II. Seu principal objetivo foi resgatar a participação de todo o povo de Deus no ato litúrgico, de modo que a Igreja, Corpo Místico de Cristo, unida a Cabeça que é Jesus, possa obter a graça que emana de toda ação litúrgica. Participar significa: fazer parte, tomar parte, no acontecimento salvífico que é celebrado. É pois, ser inserido e inserir-se no mistério celebrado.

O mistério celebrado, ou seja, toda a história da salvação, que tem seu centro o mistério

pascal de Cristo e se prolonga na história atual por meio da vivência dos cristãos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, encontra seu desenvolvimento no desenrolar do ano litúrgico.

Por muito tempo houve um desvio de eixo na liturgia e consequentemente na celebração do

ano litúrgico, dando muitas vezes lugar a vida dos santos e sua celebração, do que o próprio mistério de Cristo que, embora deva ser celebrado na vida de seus discípulos que alcançaram a salvação eterna, não era considerado a centralidade de nossa liturgia.

Não se pode, contudo negar que no decorrer dos séculos, as festas dos santos foram aumentando em número desproporcionado. Por isso o santo Concílio justamente decretou: para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que comemoram os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma Igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se a toda a Igreja apenas as que recordam santos de importância verdadeiramente universal.2

O Concílio Vaticano II ao tratar do ano litúrgico procura devolver a centralidade do mistério

pascal de Cristo na liturgia, resgata o sentido do tempo na liturgia como lugar de vivência da obra propõe algumas modificações a serem realizadas.

Nossa reflexão pretende abordar tão somente do que é tratado na Constituição Conciliar

sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, que dedicou todo um capítulo da referida constituição para tratar do ano litúrgico e sua reforma. Ele é abordado nos números 102 a 111. O Concílio abordou aquilo que era necessário e mais urgente, deixando para que as devidas adaptações e reforma do calendário litúrgico fossem realizadas posteriormente.

1 Mestre em Teologia Sistemática com Especialização em Liturgia pela PUC-SP, leciona e faz parte da Coordenação do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Liturgia, Ciência e Cultura da PUC-SP, membro do Núcleo de Pesquisa em Liturgia da PUC-SP, coordenador da Comissão Diocesana de Liturgia da Diocese de Santo André e pároco da Paróquia Menino Jesus em São Bernardo do Campo, SP. 2 PAULO VI. Motu proprio “Mysterii pascalis celebrationem”. In: Enquerídio dos Documentos da Reforma Litúrgica. Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, 1998, p. 128.

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Natureza do ano litúrgico

A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão. Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de torná-los como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça (SC 102).

A Igreja celebra a obra de salvação na experiência do tempo lunar que, que forma as

semanas. Na experiência semanal do tempo, temos a celebração semanal da páscoa, o Dia do Senhor, o domingo. Temos a celebração semanal da páscoa, o domingo, e a celebração anual da páscoa, o Tríduo Pascal. Nem sempre se utilizou a expressão: “ano litúrgico”. Até o século XVI era denominado “ano da Igreja”. Um século mais tarde passa-se a usar a expressão: “ano cristão”. Foi nos primórdios do Movimento Litúrgico, com Próspero Guéranger que começa a ser chamado de “ano litúrgico”. Pio XII na Encíclica Mediator Dei, de 1947, incorpora a expressão no Magistério da Igreja, de modo que ele aparece na Sacrosanctum Concilium e demais documentos da reforma litúrgica. Podemos definir o ano litúrgico como “a celebração do mistério de Cristo e da obra da salvação no decorrer do ano.”3 A Igreja revela e vive a totalidade do mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, desde a encarnação, nascimento até a ascensão e pentecostes, bem como a expectativa da vinda do Senhor. Como afirma Goedert:

O ano litúrgico reúne o ciclo das celebrações anuais da Igreja que atualiza o mistério de Cristo no tempo [...]. Não apenas recorda as ações de Jesus, nem somente renova a lembrança de ações passadas, mas sua celebração tem força sacramental e especial eficácia. Recorda-nos e faz presente o que Deus realizou pelos homens em Cristo e o que hoje continua a ser realizado pelo Espírito Santo na Igreja, como também o que devemos realizar para responder na fé e imitar na vida o exemplo de Cristo.4

A memória da Virgem

Na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissoluvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, em quem vê e exalta o mais excelso fruto da Redenção, em quem contempla, qual imagem puríssima, o que ela, toda ela, com alegria deseja e espera ser (SC 103).

A Sacrosanctum Concilium no número 103 dá um lugar de destaque a Virgem Maria devido sua íntima união com a obra da salvação realizada em Jesus Cristo, seu Filho. Como afirma

3 MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 316; Cf. SC 102. 4 GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição litúrgica do Concílio Vaticano II: a Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo: Ave Maria, 2013, p. 107-108.

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LLABRÉS: “A memória de Maria na liturgia aparece unida primordialmente à memória dos eventos salvíficos realizados por Jesus.”5

Há de se destacar dois aspectos ao celebrar a memória da Virgem Maria na liturgia: a) Na memória de Maria, a Igreja cultua a Deus

Ao celebrar a memória da Virgem Maria, a Igreja cultua a Deus que, como ela mesmo canta no magnificat: “Fez grandes coisas em seu favor” (Lc 1,49). De fato, ao celebrarmos os mistérios de Cristo na vida da Bem-aventurada Virgem Maria, damos graças ao Senhor que olhou para sua serva, Maria, e fez grandes coisas em seu favor. Maria aparece na Sagrada Escritura indissoluvelmente unida a obra de Cristo e, por conseguinte a obra da salvação (cf. Mt 1,22-23; Lc 1,28-38; 2,35; Jo 2,4-6; 19,25-27). Mesmo depois da paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus aos céus, Maria continua unida a Igreja nascente (cf. Atos 1,14). Deste modo, celebrando a memória de Maria na liturgia, fazemos memória de toda a obra da salvação que Deus Pai realizou em seu Filho Jesus Cristo. “Ao honrar Maria, a Igreja quer glorificar a Cristo, de quem vêm a Maria todos os privilégios. A Igreja admira Maria, o fruto mais excelente da redenção.”6 A Constituição Dogmática Lumen Gentium afirma que:

Este culto, tal como existiu sempre na Igreja, é de todo singular, mas difere essencialmente do culto de adoração que é prestado ao Verbo encarnado e do mesmo modo ao Pai e ao Espírito Santo, e muito contribui para ele. Pois que as várias formas de devoção para com a Mãe de Deus, que a Igreja aprovou – dentro dos limites da doutrina Sá e ortodoxa, segundo as circunstâncias como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrino (LG 68).

b) Maria aparece como modelo a ser imitado

Fazendo memória da Virgem Maria a Igreja celebra “tudo o que ela deseja e espera com alegria ser” (SC 103). A Constituição Dogmática Lumen Gentium nos oferece uma riquíssima reflexão acerca do valor de Maria para a vida da Igreja. Ela dedica todo o capítulo 8 para tratar de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. A Constituição afirma que “A mãe de Deus é a figura da Igreja” (LG 63). E continua dizendo que:

A Igreja, contemplando a santidade misteriosa de Maria, imitando a sua caridade, e cumprindo fielmente a vontade do Pai, pela Palavra de Deus fielmente recebida torna-se também ele mãe: pela pregação e pelo batismo gera, para uma vida nova e imortal, os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus. E é também virgem, que guarda a fé jurada ao Esposo, íntegra e pura; e, à imitação da Mãe do seu Senhor, conserva, pela graça do Espírito Santo, virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança, sincera a caridade (LG 64).

Santos e santas no culto da Igreja ao longo do ano litúrgico

A Igreja inseriu também no ciclo anual a memória dos mártires e outros santos, os quais, tendo pela graça multiforme de Deus atingido a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no céu o louvor perfeito e intercedem por nós. Ao celebrar o “dies natalis” (dia da morte) dos santos, proclama o mistério pascal realizado na paixão e glorificação deles com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo, e implora pelos seus méritos as bênçãos de Deus (SC 104).

5 LLABRÉS, P. O culto a Santa Maria, Mãe de Deus. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. Vol. 3. São Paulo: Loyola, 2000, p. 218. 6 NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II – Constituição Litúrgica: texto e comentário teológico-pastoral. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1968, p. 148.

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A Igreja, segundo a tradição, venera os santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos santos proclamam as grandes obras de Cristo nos seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar. Para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que recordam os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se apenas a toda a Igreja as que festejam santos de inegável importância universal (SC 111).

A Sacrosanctum Concilium dedica dois números ao culto e as festas dos santos. São os números 104 e 111. Segundo Julián L. Martín: “O culto litúrgico dos santos começou historicamente com a veneração dos mártires, uma forma de culto aos defuntos assumido pelos cristãos, mas relacionado desde os primeiros tempos com a morte do Senhor e com a confissão de seu senhorio pascal.”7 O primeiro culto aos santos a se desenvolver na Igreja foi o culto aos mártires. Para Bergamini: “Este culto não é senão um aspecto do mistério pascal. Se os mártires, com seus sofrimentos, testemunharam Cristo, com maior razão é Cristo que neles testemunhou o Pai.”8 O culto dos mártires inicialmente era somente local. Com o tempo passou-se para outras Igrejas e posteriormente estendeu-se para a Igreja Universal. Com o passar dos séculos, foi-se acrescentando outros santos ao calendário litúrgico. Porém, foi-se sobrecarregando o calendário litúrgico com comemorações dos santos a tal ponto de obscurecer a celebração do mistério do Senhor no ano litúrgico. Desde modo: “Muitos domingos haviam sido suprimidos, pois seus lugares foram ocupados por celebrações de santos.”9 Após tentativas fracassadas de restabelecer a primazia do mistério do Senhor sobre as festas dos santos, Pio X, mediante o Motu Proprio Abhinc duos annos, restaura a prevalência dos domingos sobre as festas dos santos. Esta restauração tem seu coroamento no Concílio Vaticano II. Ele restabelece a centralidade do mistério pascal de Cristo sobre as demais festas. Conforme Auge: “O ano litúrgico celebra uma única realidade, o mistério pascal de Cristo. [...] A Igreja ao celebrar cada ano o ‘dia natalis’ dos mártires e dos santos, celebra o ‘realizar-se’ neles do mistério pascal do Senhor.”10 O santo participa da plenitude do mistério pascal de Cristo, e sua santidade existe em função desta participação.

Ao venerar os santos, a Igreja reconhece e proclama a graça vitoriosa de Cristo, único salvador e redentor dos homens. Ela rende graças ao Pai pela misericórdia que nos é concedida no Cristo e se torna presente e atuante em alguns de seus membros e, consequentemente, em todo o corpo da Igreja.11

No culto dos mártires e dos outros santos (cf. SC 104), prestando neles culto a Deus, podemos distinguir três aspectos:

1. A Igreja dá graças a Deus, admirável nos seus santos. Celebrando seu natalício (dia da morte), a Igreja prega o mistério pascal de Cristo;

2. Os santos são vistos como modelo a serem imitados. A graça divina recebida e vivida pelos santos os torna sinal e testemunho de fé, nos servindo de modelo a ser seguido;

7 MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja..., p. 406. 8 BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 480. 9 MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico. In: CELAM. Manual de liturgia IV. São Paulo: Paulus, 2007, p. 95. 10 AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 326. 11 ADAM, Adolf. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 194.

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3. Por seus méritos e presença diante de Deus, os santos tornam-se nossos intercessores junto a Deus.

O número 111 da Sacrosanctum Concilium restabelece a centralidade e a primazia do

mistério pascal de Cristo sobre as festas dos santos. Para isso, a Igreja vai estabelecer critério para a permanência de alguns santos no calendário universal do ano litúrgico, bem como, para que outros santos permaneçam somente nas celebrações locais, seja numa Igreja particular (diocese), nação ou família religiosa. Permanecem no calendário litúrgico para toda a Igreja somente os santos de “inegável importância universal” (cf. SC 111).

Todavia, não contou apenas o critério da universalidade geográfica; também se levou em conta a universalidade da vida cristã, em virtude da qual deviam estar representados todos os estados de vida e toda a variedade de expressões e realizações das virtudes e da santidade cristãs, como: a ação missionária e caritativa, o apostolado dos leigos, a vida contemplativa, a ascese, etc. Igualmente a universalidade no tempo, em virtude da qual foram incorporados no calendário romano representantes de todos os séculos.12

Exercícios de piedade

Em várias épocas do ano e seguindo o uso tradicional, a Igreja completa a formação dos fiéis servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia (SC 105).

A Constituição Sacrosanctum Concilium trata dos exercícios de piedade ou atos/práticas de piedade em dois números. No número 13 nos dá algumas orientações acerca dos exercícios de piedade. Diz-se que: “conquanto conformes às leis e normas da Igreja, são muito de se recomendar” (SC 13). Relaciona-os aos tempos litúrgicos ao afirmar que: “Importa, porém, ordenar esses atos de piedade, levando em conta os tempos litúrgicos, de modo que estejam em harmonia com a sagrada liturgia, nela se inspirem e a ele, por sua própria natureza muito superior, conduzam o povo cristão” (SC 13). De fato, como afirma Miguel Nicolau:

Os exercícios contribuirão para viver o principal da vida litúrgica, que há de ser o viver em graça de Deus e associar-se ao sacrifício de Cristo, e receber a sua graça sacramental na conveniente confissão e devota e preparada comunhão; ajudarão, com os modos de oração que ensinam, seguindo a vida de Cristo, a acompanhá-lo no ciclo do ano litúrgico, e a apreciar as orações litúrgicas, mediante aquele modo de orar, para que nos preparam na consideração repousada da oração até que o espírito se satisfaça.13

Fica evidente já no número 13 que os exercícios de piedade devem estar conformes e direcionar a vida litúrgica dos fiéis. Porém, faz-se necessário que esses exercícios acompanhem o mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, ajudando a melhor vivenciá-lo. É neste sentido que o número 105 da Sacrosanctum Concilium irá relacionar os exercícios de piedade com os tempos litúrgicos de modo que introduzam os fiéis na própria celebração do mistério de Cristo na liturgia. Não se pode ignorá-la, muito menos descuidar dos exercícios de piedade. Como afirma o saudoso papa São João Paulo II: “A piedade popular não pode ser ignorada, nem tratada com indiferença ou desprezo, porque é rica em valores, e por si mesma expressa a atitude religiosa diante de Deu.”14 De fato, “tanto as práticas de piedade do povo cristão quanto outras formas de

12 MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico... p. 98. 13 NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II – Constituição Litúrgica... p. 45. 14 JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Vicesimus quintus annus. (4/12/1988), n. 18.

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devoção são acolhidas e recomendadas, desde que não substituam e não se misturem com as celebrações litúrgicas.”15 Para exemplificar essas práticas de piedade podemos citar algumas, tais como: o rosário, a oração do angelus, a via-sacra, as ladainhas, novenas, etc. Porém, a Sacrosanctum Concilium chama a atenção para as “piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e caridade” (SC 105). Encaixa-se nessa perspectiva o jejum, a oração, a esmola, a espiritualidade do advento e quaresma, o repouso dominical e a prática da solidariedade e fraternidade. Mas, é importante que essas práticas não obscureçam a própria liturgia, ao contrário, devem direcionar para ela, mais ainda, devem estar em harmonia com a liturgia.16 Como afirma J. Castellano: “A piedade popular bem entendida é uma forma popular de proclamar o Evangelho, celebrá-lo, vivê-lo e adentrar na oração popular.”17 Ele relaciona a piedade popular com os quatro pontos fundamentais presentes no Catecismo da Igreja Católica:

a) Sua unidade com a fé; b) Sua harmonia com a liturgia; c) Seu compromisso de vida cristã; d) Apoio da oração pessoal e coletiva.

Segundo J. Castellano, o ano litúrgico é o caminho ordinário da vida da Igreja e a piedade

popular nasce e se desenvolve nas pegadas das celebrações do ano litúrgico.18

Revalorização do domingo, Dia do Senhor

Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos” (1 Pedr. 1,3). O domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis; seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico (SC 106).

O Concílio Vaticano II, dentro das preocupações da reforma da liturgia, propõe uma revalorização do domingo. O domingo constitui o núcleo elementar do ano litúrgico. O surgimento do domingo (Dies Domini – Dia do Senhor) está diretamente relacionado ao evento pascal de Cristo desde o início da Igreja. Como nos diz J. Ariovaldo: “O primeiro dia da semana se tornou, para os cristãos, um dia memorável, inesquecível, por causa da impressionante novidade da ressurreição.”19 Encontramos no número 106 da Sacrosanctum Concilium as seguintes dimensões do domingo:

a) O próprio fato da sua tradição a partir da comunidade apostólica, do primeiro dia da primeira páscoa;

15 CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 2. 16 Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia, n. 7. 17 CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 390. 18 Cf. CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual... p. 403. 19 DA SILVA. José Ariovaldo. O domingo páscoa semanal dos cristãos. São Paulo: Paulus, 1998, p. 14.

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b) O domingo celebra o mistério pascal a cada oito dias; c) O nome que se prefere é o de “dia do Senhor”; d) Dia da reunião da comunidade cristã para escutar a Palavra e celebrar a Eucaristia; e) Faz memória do mistério pascal de Cristo; f) O domingo é para a comunidade cristã: festa primordial, dia de alegria e descanso; g) Mantém sua prioridade sobre todas as outras celebrações; h) É o fundamento e núcleo de todo o ano litúrgico.

São João Paulo II em seu pontificado dedica um documento para tratar da recuperação do

domingo e sua santificação. Trata-se da Carta Apostólica Dies Domini, de 1998. Nela, ele afirma que: “O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a páscoa semanal, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n’Ele da primeira criação e o início da nova criação.”20 A Carta convida os cristãos “a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: seu mistério, o valor de sua celebração, seu significado para a existência cristã e humana.”21 A Carta Apostólica Dies Domini divide-se em cinco capítulos bem distribuídos que nos apresenta o domingo em todas as suas dimensões: Capítulo I – Dies Domini – o domingo é a celebração da obra da criação; Capítulo II – Dies Christi – é o dia do Senhor ressuscitado e dom do Espírito; Capítulo III – Dies Ecclesiae – é o dia da assembleia litúrgica; Capítulo IV – Dies Hominis – dia de alegria, descanso e solidariedade; Capítulo V – Dies Dierum – festa primordial e reveladora do sentido do tempo. Eis ai um bom texto para refletir o domingo dentro das perspectivas do Concílio Vaticano II. Já há algum tempo, o domingo vem sofrendo certa desvalorização da parte dos muitos cristãos que o substitui por outras obrigações. É urgente recuperar sua importância para uma sadia vivência cristã de nossa fé, que tem sua centralidade no mistério pascal de Cristo, celebrado dominicalmente.

Revisão do ano litúrgico

Reveja-se o ano litúrgico de tal modo que, conservando-se ou reintegrando-se os costumes tradicionais dos tempos litúrgicos, segundo o permitirem as circunstâncias de hoje, mantenha o seu caráter original para, com a celebração dos mistérios da redenção cristã, sobretudo do mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis. Se acaso forem necessárias adaptações aos vários lugares, façam-se segundo os art. 39 e 40 (SC 107). Oriente-se o espírito dos fiéis em primeiro lugar para as festas do Senhor, as quais celebram durante o ano os mistérios da salvação e, para que o ciclo destes mistérios possa ser celebrado no modo devido e na sua totalidade, dê-se ao Próprio do Tempo o lugar que lhe convém, de preferência sobre as festas dos Santos (108).

A seguir, o Concílio Vaticano II propõe uma revisão geral do ano litúrgico com a finalidade de que se adapte à nossa época as tradições e normas dos tempos passados, para que o ano litúrgico possa ser verdadeiro alimento espiritual para a piedade dos fiéis ao celebrar o mistério pascal de Cristo. É importante considerar que o ano litúrgico possui uma pedagogia. Para J. Bellavista no ano litúrgico dá-se uma visão plena de um único mistério pascal, considerado pelo Concílio Vaticano II, e que se expressa de maneira pedagógica.22

20 JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini: sobre a santificação do domingo. São Paulo: Loyola, 1998, n. 1. 21 JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini... n. 3. 22 BELLAVISTA, Juan. El año litúrgico. In: Cuadernos Phases nº 14, p. 50-51.

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Para uma verdadeira pedagogia do ano litúrgico, o Concílio ordena que o próprio do tempo tenha a prioridade em relação às festas dos santos (cf. SC 108), para que os fiéis sejam levados a dar atenção em primeiro lugar às festas do Senhor, de modo que o ciclo integral dos mistérios da salvação seja convenientemente celebrado. Há uma certa hierarquia dos tempos e festas litúrgicas do Senhor, de modo que, ao longo do ano litúrgico, são assinaladas as etapas da história da salvação. Segundo M. Nicolau:

Com a celebração das festas litúrgicas, que são o órgão mais importante do seu magistério ordinário, a Igreja realiza uma instrução e uma educação dos fiéis que ficaria prejudicada se as festas do Senhor não tivessem o devido relevo. O santoral não deve sobrepor-se a este “próprio” de cada tempo nem ofuscá-lo.23

A Quaresma

Ponham-se em maior realce, tanto na liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do batismo e pela penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:

a) utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição; b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detesta o pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores (SC 109).

A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22. Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na sexta-feira da paixão e morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito (SC 110).

Curiosamente o Concílio Vaticano II dá atenção especial ao tempo da quaresma, diferente dos demais tempos, como advento e páscoa. Não significa que os demais tempos litúrgicos sejam menos importantes, mas o Concílio propõe resgatar a natureza própria do tempo quaresmal, restabelecendo sua finalidade. A Sacrosanctum Concilium realça dois aspectos fundamentais da quaresma: a índole batismal e a índole penitencial. O Concílio deseja que por meio destes dois aspectos a quaresma seja de fato um tempo de preparação para a celebração do mistério pascal, por meio da leitura mais frequente da Palavra de Deus e da oração. Recomenda o uso mais abundante dos elementos batismais, próprios da liturgia quaresmal, bem como os elementos penitenciais. Destaca igualmente que, na catequese sejam apresentadas as consequências sociais do pecado e a natureza própria da penitência.

23 NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II – Constituição Litúrgica... p. 154-155.

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No número 110, a Sacrosanctum Concilium procura recuperar a prática penitencial na quaresma. Tradicionalmente, a oração, o jejum e a caridade (esmola) são tidos como exercícios quaresmais, exercícios de conversão evangélica. Porém, insiste para que não seja tão somente uma prática interna e individual, mas também externa e social, e por assim dizer, eclesial (cf. SC 110). Para A. Beckhäuser: “o problema consiste em redescobrir o sentido autêntico de penitência conforme a Bíblia. Penitência é mudança de vida, penitência é sinônimo de conversão evangélica.”24 Infelizmente a penitência com o passar do tempo, foi adquirindo um sentido meramente negativo de renúncia, mortificação. É claro que estes motivos são verdadeiros e válidos, porém, é preciso avançar no sentido próprio da penitência. Se ela é mudança de vida, é preciso cultivar o bem e recusar a prática do mal. Ela consiste em viver o mandamento do Senhor, que diz que se deve procurar amar a Deus e o próximo. Segundo São Leão Magno, os três exercícios quaresmais consiste em:

a) A oração – é o maior exercício da penitência, ou seja, viver como filhos de Deus; b) O jejum – consiste na nossa relação com Deus e com o mundo criado; c) A esmola (caridade) – trata-se de nossa relação com o próximo.

Tais exercícios em primeiro lugar devem nos ajudar a vivenciar melhor o mistério da paixão,

morte e ressurreição de Jesus. Eles devem estar conformes a própria liturgia. São exercícios que nos ajudam a nos preparar para celebrar o mistério pascal de Cristo. Em segundo lugar, eles devem nos ajudar a viver mais coerentemente a prática do amor fraterno. Por isso estão relacionados ao nosso amor a Deus e ao próximo.

Além destes exercícios quaresmais, há outros que igualmente podem nos auxiliar na busca constante de Deus e do próximo. Temos por exemplo a via-sacra, os momentos penitenciais e no Brasil, por ocasião da quaresma, realiza-se todos os anos a Campanha da Fraternidade, que tem como finalidade voltar nossa atenção para a realidade social de nosso povo e buscar soluções evangélicas para solucioná-las. A Constituição Sacrosanctum Concilium insiste ainda que se mantenha a prática do jejum pascal, se possível não somente na sexta-feira santa, mas também no sábado santo. Este jejum tem por finalidade nos fazer celebrar as alegrias pascais com espírito livre e aberto.

Conclusão A Constituição Sacrosanctum Concilium ao pretender uma reforma geral da liturgia, não podia deixar de dar especial atenção ao ano litúrgico. Se nossa participação na liturgia consiste em penetrar no mistério do Senhor que é celebrado na liturgia, o ano litúrgico possui uma força pedagógica que nos faz adentrar passo a passo na história da salvação, e de modo particular no mistério pascal de Cristo. Superando todo desvio de eixo que veio interferindo na celebração do ano litúrgico ao longo dos séculos, o Concílio Vaticano II devolveu a centralidade do mistério pascal de Cristo no ano litúrgico, reconduzindo a celebração dos santos e até mesmo da Virgem Maria em sua real relação com o mistério pascal. O próprio do tempo, ou seja, o mistério do Senhor, tem a prioridade sobre todas as demais festas do ano litúrgico. Também os exercícios de piedade devem estar em harmonia com os tempos litúrgicos, nos fazendo viver melhor o mistério celebrado. Que procuremos valorizar ainda mais o ano litúrgico com seus tempos próprios, de modo que, possamos participar de maneira plena, consciente e frutuosa de nossa liturgia.

24 BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 132.

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Bibliografia PAULO VI. Motu proprio “Mysterii pascalis celebrationem”. In: Enquerídio dos Documentos da Reforma Litúrgica. Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, 1998. JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini: sobre a santificação do domingo. São Paulo: Loyola, 1998. JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Vicesimus quintus annus. (4/12/1988). CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003. MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006. GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição litúrgica do Concílio Vaticano II: a Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo: Ave Maria, 2013. LLABRÉS, P. O culto a Santa Maria, Mãe de Deus. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. Vol. 3. São Paulo: Loyola, 2000. NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II – Constituição Litúrgica: texto e comentário teológico-pastoral. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1968. BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994. MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico. In: CELAM. Manual de liturgia IV. São Paulo: Paulus, 2007. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave Maria, 1996. ADAM, Adolf. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982. CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008. DA SILVA. José Ariovaldo. O domingo páscoa semanal dos cristãos. São Paulo: Paulus, 1998. BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012

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Teologia do Ano Litúrgico Re-descobrindo a teologia do Ano Litúrgico para vivê-la como um itinerário pedagógico da fé

Eurivaldo Silva Ferreira25

Cada hora do dia tem sua tonalidade própria. Três delas, porém, nos olham com rosto particularmente claro: a manhã, a noite e o meio-dia. São todas elas consagradas. A manhã é um princípio, o mistério da noite é a morte, a metade do dia é o duro presente. Tu te deténs, e o tempo inteiro se funda. A eternidade te contempla. Fala a eternidade em todas as horas, mas é vizinha do meio-dia. Aí o tempo espera e se abre (R. Guardini). Toda reforma litúrgica, com o Movimento Litúrgico, pretendeu voltar às fontes litúrgicas a fim de contribuir para o alimento espiritual dos fiéis. Assim, toda a liturgia: o mistério eucarístico, os sacramentos e sacramentais, o ofício divino, o ano litúrgico, a música, a arte litúrgica, eram elementos significativos para as comunidades cristãs primitivas, o que deveria ser também para nós. Em 1947 Pio XII já tinha ressaltado o valor da liturgia, lugar em que o mistério pascal se concentra e, ao longo de um ano, o apreendemos. Tudo quanto se encontra em seu interior torna-se um meio de encontro com o mistério pascal. O Ano Litúrgico [AL] se torna, então, uma estrutura que sustenta todo o mistério do culto cristão. No nº 102 da SC, o AL é apresentado como itinerário no qual “a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes em todo o tempo [...] e, em contato com eles, se encham de graça”.

A reforma do AL e do Novo Calendário recolocou no centro da vida cristã o Mistério Pascal e definiu toda a liturgia como memorial da Páscoa de Cristo no coração da história. O grande desejo foi o de resgatar a unidade do AL, tendo como eixo estruturante o mistério pascal, para “alimentar devidamente a piedade dos fiéis” (SC, 107).

Na base da organização do AL judaico e cristão está o tempo com toda a significação bíblica a partir da experiência do êxodo do povo de Israel e a partir da páscoa de Jesus. Este elemento cósmico e antropológico é o sinal sensível capaz de guardar a memória dos fatos que se tornaram significativos.

A liturgia com sua linguagem própria, ao longo de um ano, relata de novo tais fatos, dando-

lhes novo sentido dentro das circunstâncias concretas de cada comunidade celebrante, possibilitando-lhe a transformação pascal pela força do Espírito que nela realiza o que significa, mediante o sinal sensível (cf. SC, 7). Paulo VI, ao aprovar as Normas Universais do Ano Litúrgico e o Novo Calendário Geral [NALC], afirma: “O ano litúrgico goza de força sacramental e especial eficácia para alimentar a vida cristã”. Cinquenta anos depois da promulgação da SC, estamos a meio caminho de fazer do AL um itinerário pedagógico da fé. Contudo, muitos passos foram dados que animam a insistir nesta proposta que se reabriu com a reforma litúrgica do CV II. 25 Leigo e agente da Pastoral Litúrgica na Paróquia Santo Antônio do Limão da Arquidiocese de São Paulo;

formado em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção; Mestre em Teologia, com concentração em Liturgia, pela PUC/SP; pós-graduado em Liturgia pelo IFITEG-GO; membro da Rede Celebra de animação litúrgica e do Corpo Eclesial de Compositores de Música Litúrgica da CNBB.

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O AL é por si mesmo pedagógico. A reforma litúrgica permitiu que as comunidades de fé o retomassem – conforme o dizer de Paulo VI – como escola de vida espiritual. O tempo, sinal sensível que se coloca como ‘plataforma’ para a condução do mistério. É sob esse elemento cósmico que todo o drama do mistério pascal vai se desenvolvendo, auxiliado pelos ritos, preces e orações e pelos demais sinais sensíveis que adentram a liturgia da Igreja. A recuperação do sentido do tempo é uma necessidade vital para a Igreja, o CV II retomava seu sentido colocando em seu eixo o mistério pascal. Por detrás do sentido do tempo celebrado conjuga-se a vontade de Deus em querer se manifestar, apropriando-se de elementos cósmicos e históricos, elementos esses que estão próximos da realidade humana. Como identificar a possibilidade de que a tecelagem desses elementos pode contribuir para uma correta intuição pedagógica que leve os fiéis a alimentar sua fé? A liturgia, com sua força pedagógica, é capaz de fazer com que compreendamos que todos esses sentimentos nós os carregamos em nossos corpos e os potencializamos através dos ritos, que por sua vez nos transformam. O sinal pedagógico dessa relação ritual está no fato de percebermos que o rito (feito de palavras e orações, também permeado de ações simbólicas) está prenhe de uma memória que é feita no hoje de nossa existência, de nossas vidas, entremeadas de fragilidades e angústias, de sonhos e esperanças, de alegrias e tristezas, conforme o dizer da GS, 1. No diálogo com o Senhor, consideramos que, ainda que não percebamos a ação de Deus em nossa trama existencial, nós anunciamos a páscoa que tudo transforma, até que em sua vinda futura, todas essas fragilidades sejam aperfeiçoadas, ocasião em que Jesus entregará tudo ao Pai. O autêntico desejo da SC, presente no nº 107, é o de que, com a reforma do AL, este volte a ter o seu caráter primordial, isto é, a celebração do mistério pascal, assim como era vivido e celebrado nas comunidades primitivas. Contudo, o CV II reconhecia que o povo se distanciou disso, e o ‘estrangulamento’ ou o ‘desvio de eixo’ litúrgico não mais considerava a liturgia como uma ação do povo, mas restrita somente ao clero. Apesar de todo esforço da Igreja em fazer com que nos primeiros séculos se harmonizassem espiritualidade, fé e vida, houve um relaxamento histórico entre essas três dimensões, fato considerado atual e que a Igreja pretendeu reverter reformando os seus ritos a fim de que todos pudessem entender que a vida litúrgica possui estreita ligação com o cotidiano dos fiéis. Assim, a liturgia da Igreja torna-se um meio pedagógico para se viver autenticamente a fé. Esse distanciamento do primário conceito de vida espiritual fez em grande parte o povo cristão apelar para alguns elementos que, de certa forma, entendiam como suplentes de uma vida espiritual que necessitavam. As práticas de piedade popular, unida a uma religiosidade popular marcadamente voltada a apelos não muito oriundos da própria liturgia, ficaram fortemente concentradas na ideologia de uma vida segura de fé, conforme preceituava os mandamentos da Igreja. O tempo que perpassa o AL nos permite entender as realidades do mistério contido na liturgia, com seus ritos, preces e orações. São elementos sensíveis, que, inerentes à liturgia, traduzem o significado de nossa existência, sempre marcada pelo ritmo cronológico, cósmico, biológico e social. Tudo aquilo que a reforma litúrgica propôs como meio de se ‘retornar’ a uma autêntica efetivação da espiritualidade litúrgica, tem sido um caminho sensato, embora não muito apreendido pelos que participam das responsabilidades litúrgicas e ministeriais na Igreja.

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Nossa intuição e sugestão é que esse caminho pedagógico pode surtir efeito na vida das comunidades de fé, oferecendo pequenos subsídios espirituais ao fazer o ‘recorte’ de um ciclo do AL. O AL é um tesouro espiritual da Igreja. Assim, explorar o mistério que está presente no AL da Igreja é não importar o modelo da fragmentação, na linguagem da economia, com sua pedagogia do descarte, ligada a questões tecnológicas e científicas, empurrando-nos para a manutenção do passageiro, do fútil, do perecível e do transeunte. O AL permanece imutável, a páscoa de Jesus é perene, ela não se transforma, mas na história dos homens e das mulheres ela toma rostos diversos, estes a interpretam sempre como um fato novo, uma realidade nova. Na atual circunstância social, em que tudo acontece em ritmo acelerado, desequilibrando os ritmos cósmico e biológico, redescobre-se o valor do AL como uma ordem em sentido inverso. Ao propor o tempo da oração e da festa no contraponto do trabalho e da eficiência técnica, o AL lembra ao ser humano a necessidade vital de desacelerar e sempre voltar ao que é essencial e permanente. Se um elemento da liturgia nos condicionar nesse sentido, ela terá alcançado seu objetivo, e o mistério é contemplado de forma a penetrar nos corações, produzindo seus frutos no cotidiano. A salvação de Deus está ligada ao tempo. Ela acontece no concreto da história humana. Ao fazermos esta associação, cada celebração litúrgica ao longo do ano traz a memória do Verbo de Deus. À luz deste mistério vemos as lutas que travamos no dia a dia (caminhada do deserto em que nos confrontamos com o mal, por exemplo) e experimentamos em nós a páscoa, a força da luz vencendo as trevas. No AL acontece o desdobramento dos diversos aspectos do único mistério pascal (cf. SC, 102). A Igreja nos ensina que podemos entender esse desdobramento muito particularmente voltando-nos para o ciclo das festas em torno do mistério da encarnação (anunciação, natal, epifania), que comemoram o começo da nossa salvação e nos comunicam as primícias do Mistério da Páscoa (cf. CIC, nº 1171 e SC, 102). Quando o que está em jogo é o princípio pedagógico da fé, perguntamo-nos pela prática desta ação. Tudo quanto já afirmamos da Igreja com seus ritos e festas distribuídos ao longo do AL, podemos afirmar também agora ao considerar que essas práticas tradicionais são recheadas de caráter pedagógico. Por isso a necessária afirmação da reforma litúrgica de se ‘retornar às fontes’ litúrgicas, bíblico e patrísticas das primeiras comunidades de fé. A afirmação de nossa hipótese parte do princípio de que a Igreja é pedagoga, no sentido de conduzir à fé, e ela o faz tomando para si elementos de nossa realidade. De fato, o AL é um meio eficaz e condutor da fé. Nele se celebram os diversos aspectos de um mesmo mistério pascal. A celebração ao longo do tempo torna-se como que uma escola em que se apreende o sentido da fé e do mistério celebrado. Os elementos sensíveis da celebração tocam a realidade dos participantes. Estes, por meio dos ritos, das preces e orações, conjugam sua realidade ao mistério celebrado. A memória, aliada à fé, é o motor que dá impulso às relações vitais daqueles que creem. A Tradição conservada através do sensusfidelium se faz elemento importante para a autêntica historicidade do conhecimento; esta serve de base para o hoje, ao mesmo tempo em que se transporta para o futuro, ressaltando a dimensão escatológica do celebrar. Essa pedagogia da participação na liturgia tende a um sentido vindouro. Do futuro de nossas liturgias bem celebradas depende o futuro de nossa existência, na eternidade. A realidade do Reino de Deus é-nos apresentada também sob a forma ritual durante todo o ciclo do AL. Neste ciclo vemos claramente que o Reino se desenvolve numa perspectiva que vai da terra ao céu. Será o caso de olharmos para o texto das bem-aventuranças em Mt 5,1-2. Nesta narração a atuação de Deus é a de que ele age no submundo da história, subvertendo-a, e também

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invertendo valores. O AL deve favorecer que vejamos isso nas celebrações. A história é meio que ‘revirada’ pela liturgia. Da mesma forma que o AL inicia-se com a expectativa do nascimento de Jesus e sua encarnação, terminando com o mesmo Cristo coroado como Rei do Universo, representação máxima de sua universalização no tempo cósmico, assim também nós somos inseridos nessa dinâmica, da terra ao céu, do tempo nosso ao tempo escatológico, da páscoa nossa à páscoa de Cristo. É no decorrer do AL que percebemos que as realidades do Reino estão sempre próximas de nós, e que essas realidades devem ser potencializadas pela chave da ressurreição de Jesus Cristo. “Celebrando a memória dos santos, esperamos participar um dia de seu convívio” diz o nº 8 da SC, isto é, aquilo que fazemos em forma de ritos litúrgicos, nós desejamos, como os santos desejaram, a morada sempre eterna, já que, a juízo disso, ao mesmo tempo, em nossa carne ‘tornar-se-á manifesta a nossa vida (em Cristo), e assim podermos fazer parte com ele da morada eterna’, contemplando-o corpo a corpo, face a face. É relevante que façamos então um olhar pedagógico para a apreensão desta relação dialogal com Deus. Um exemplo notável é a resposta à aclamação memorial “Eis o mistério da fé!”, que se encontra no centro da Oração Eucarística. Ao proclamarmos este mistério da fé, falando diretamente ao Cristo, estamos impulsionando nossos corpos na dimensão do futuro, do que há de vir, ao mesmo tempo em que fazemos memória daquilo que aconteceu no passado. A liturgia então nos empurra para uma dimensão que transcende nossa existência terrena. Então, resta-nos fazermos dessa memória única e que perpassa nossos tempos até o fim dos tempos, uma páscoa mística, na esperança de que conheceremos o dia sem ocaso. Para os cristãos, o tempo é composto de fragilidades, derrotas, mas ao mesmo tempo de conquistas e ganhos. Ele é operado por uma graça, a graça de Cristo que se insere nele. No tempo cronológico que adentra a liturgia se torna presente a vontade do Reino de Deus, cujo projeto participamos. Os poetas sabem definir muito mais que os pesquisadores sobre as questões intrínsecas ao tempo. Mas, na liturgia, essa vontade de Deus é manifestada, sobretudo, por sua Palavra, pelos sinais sacramentais e na comunidade cristã, os quais consideramos como lugar de salvação. O hoje, experimentado no plano simbólico de nossas ações celebrativas, é revestido de um caráter de esperança, pois evocamos o memorial pascal da ressurreição de Cristo em nossa realidade terrena, permeada por nossa natureza finita. Nosso hoje então é entrelaçado pelo plano escatológico. É a esperança de que além do tempo chronos há outra realidade atemporal. Essa realidade é prometida por Deus que rege o tempo. É somente essa real certeza que nos faz celebrar e permitir adequando nosso calendário festivo-temporal à realidade mistérica, sobrenatural e espiritual ao plano de Deus. Muitos desafios são-nos colocados a partir da reflexão desse tema tão caro à vida da Igreja. Para nós, estudantes e pesquisadores da liturgia, resta-nos mergulhar nesse caminho pedagógico-espiritual, a fim de que nos deixemos alimentar e crescer com essa espiritualidade. Aproveitando de todos os sinais presentes no AL, possibilitamos que ele mesmo nos modele, direcionando nossas vidas ao forte apelo de Cristo que diz no Pai Nosso: “Que o Reino do Pai aconteça entre nós”, só assim fazemos já aqui na terra o exercício daquele Reino futuro, pelo qual almejamos. Só o AL, com suas celebrações e festas, pode nos permitir isso. Consideramos com nossos pesquisados que a liturgia é o lugar institucional por excelência da educação cristã, já que ela educa para o sentido de comunidade, de pertença ao povo de Deus. No seu modo próprio, a liturgia manifesta tudo que nela mesma se realiza. O mesmo conceito

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destinado aos sacramentos é também destinado à liturgia. O AL, elemento intrínseco da liturgia, revela a finalidade da educação cristã, e tem a ambição de revelar e realizar a finalidade do humano. Ele revela a esperança do humano, não levando em conta sua precariedade, do que é o ser humano é por si próprio, recolocando-o como protagonista da escola da fé.

Retrocessos que dificultam o caminho para uma compreensão teológico-pedagógica do itinerário do AL Nem sempre foi sempre possível a Igreja atuar como uma espécie de pedagoga na condução dos fiéis. No processo mistagógico, o entendimento da celebração decorria de um exercício pedagógico da fé por parte daqueles que queriam se tornar membros da Igreja. Isso durou cerca de seis séculos, depois foi esquecido, mas recuperado pelo CV II, embora com poucas notícias de sua aplicação de fato. A educação na fé, por parte de Igreja, foi por vezes dura, impositiva e agressiva. Culturas inteiras se viram desrespeitadas nesse processo. Em nome da fé muito de espantoso se cometeu. A história sabe bem testemunhar isso. Em alguns casos educação civil e educação da fé se entrelaçam. Em muitas comunidades o itinerário da catequese com crianças acompanha o ano escolar e civil, e não o AL. Assim, em dezembro, as crianças tiram férias, e a catequese se vê privada das celebrações do ciclo do Natal, por exemplo. A religiosidade popular, em íntima união com o folclore, descobriu um jeito de fazer um ‘arranjo social’ das narrações bíblicas. Um exemplo clássico é a famosa ‘malhação do Judas’ no Sábado Santo. Aí percebemos a importância do sábado da ressurreição no contexto popular. Sobre o ponto de vista antropológico e religioso, ainda é um aspecto a ser estudado, sobretudo em nosso país, quando muito comumente, na tarde do Sábado Santo, veem-se pendurados nos postes grandes personagens, sobretudo do mundo político, representados pelo simbólico boneco do Judas. Encontramos também nos meios de comunicação denominados católicos verdadeiras anomalias que agem em detrimento da pedagogia da fé do AL e de uma teologia que possa melhor explicitar os mistérios de Cristo. As TVs católicas reproduzem sem um refinado critério verdadeiras catástrofes que deturpam a sensibilidade da Igreja com relação ao AL. A continuada reprise de devoções criadas, mantidas ou manipuladas por certos grupos ou movimentos católicos e na mídia católica em geral, em qualquer parte do ano, é um exemplo disso. Mesmo em oportunidades em que esses elementos podem ter intersecção com a liturgia e o AL, quem sai perdendo é o mistério pascal, que acaba se tornando como que uma espécie de ‘concorrente’ da devoção. Não muito raro esses mecanismos assolapam a própria natureza do AL em sua densidade espiritual que conduz a fé num itinerário pedagógico-teológico. As missas transmitidas por esses meios se colocam no grau de concorrência com programas de auditório, em que uma plateia é animada sob a condução de um apresentador. Sem contar aqueles certos grupos que se propõem a rezar e a pregar a multidões em forma caravanas. É claro que o aproveitamento disso por parte desse nicho católico se dá de certa forma pela obscuridade que as próprias celebrações desprovidas de educação da fé trazem em si. Segundo Celso Kuzma, da PUC de Curitiba, teólogo leigo como eu, “essas celebrações, com seus presidentes caracterizados de pop-star, até mesmo passaram a ser objeto de fetiche e foram transformadas em mega-shows, onde o principal destaque não é mais o mistério pascal na pessoa de Jesus Cristo”. Por outro lado, esse distanciamento do primário conceito de vida espiritual fez em grande parte o povo cristão apelar para alguns elementos que, de certa forma, entendiam como suplentes de uma vida espiritual de que necessitavam.

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O AL corre o risco de não ser percebido mais como uma apresentação sucessiva de um drama que consiste nas etapas da vida de Jesus Cristo, ou como uma sucessão “cronológica” dos distintos “momentos” da Páscoa, em detrimento de sua unidade de salvação. É necessária aí uma alargada assimilação da fé, mesmo que em doses catequéticas e pedagógicas, mesmo porque em sua ideia primitiva, a Igreja pensou em dois itinerários fundamentais como conteúdo catequético que são intrinsecamente ligados: fé e celebração. Uma decorre da outra, e as duas se conjugam entre si. A partir daí compreenderemos a verdadeira teologia oriunda dos ritos que permeiam o Ano Litúrgico.

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Espiritualidade do Ano Litúrgico

Pe. Guillermo Daniel Michellet Mas, para os cristãos, o tempo que acompanha a vida dos humanos diz muito mais ainda. Embriagados da Palavra de Deus, percebem que o tempo revela Alguém que age para beneficiá-los; que transforma o simples chronos (tempo dos homens) em kairós (tempo de Deus), transfiguração do tempo dos homens em tempo de graça e salvação. Nisso há uma recôndita verdade: o tempo é consagrado pela Páscoa do Senhor; em Jesus Ressuscitado, Seu Pai renovou toda a criação. Afirmamos com insistência: o tempo, para os cristãos é sagrado e consagrado em Cristo, morto e ressuscitado (cf. 1João 1,1-3). Insistir é importante: para os cristãos é preciso “descartar”, “jogar no lixo” a concepção do tempo histórico concebido como chronos, como processo linear, no qual, os fins que se perseguem se encontram no fim do processo, no fim dos tempos. Em Cristo — repetimos — o valor do tempo é bem outro; n’Ele é consagrado. Por isso, num olhar cristológico, aos poucos, o tempo, transformado/estruturado pelas primeiras comunidades cristãs em itinerário celebrativo, tomou a forma de “Ano Litúrgico” (em diante “AL”). Nele se predispôs um espaço e um tempo “diferentes” em face ao da existência de cada dia. Pois, assim como a partir de Cristo ressuscitado o espaço volta para seu Pai, também o tempo lhe pertence; é espaço e tempo de recolhimento, modo diferente de habitar o presente. Essa alteridade é que permite conjugar passado, presente e futuro, céu e terra, fazendo-os entrever que está se realizando a recapitulação de toda a realidade (a história) para Deus em Cristo, realidade do céu e da terra, temporal e eterna (cf. Efésios 1,8-10; Colossenses 1,15-20). Ao entrarmos no espaço e no tempo litúrgico em repetidas vezes, no arco da vida, percebemos que vamo-nos aproximando “definitivamente”, entre luzes e sombras, acertos e erros, desafios e conquistas da Cidade do Deus Vivo, a Jerusalém celeste (cf. Hebreus 12,22-23). Esse tempo cristificado (feito/consagrado por Cristo), acha seu apogeu (plena manifestação) no mistério Pascal. É em Cristo ressuscitado que a vida humana, navegando no tempo, é santificada; e nela, a ação divina, derrama seus dons, seus frutos, e o que ela essencialmente é: Amor, ternura e comunhão.

Penetrando e caminhando na pedagogia do AL os cristãos apreendem a arte e a dinâmica da celebração, para serem orientados através das realidades visíveis (os sinais), os cristãos sejam conduzidos para as realidades invisíveis e interiores, compreendidas com os sentidos espirituais, à luz da fé.

O eixo fundamental do AL é Jesus Cristo, em cuja morte e ressurreição se realiza a síntese de toda a história da salvação. Ele é o centro, o sentido, o dinamismo interno e a meta final do AL. O mistério de Cristo é celebrado e vivido sacramentalmente como memória, presença e antecipação profética do pleroma (plenitude) da vida final, a glória dos ressuscitados, que a Igreja distribui celebrativamente em momentos específicos ao longo dos dias, estações e anos em que acontece a existência humana. Pode-se então oferecer uma idéia conceitual do AL de modo mais ou menos completa quando dizemos que: O AL é o ano solar, santificado pelo mistério pascal de Cristo e estruturado para ser celebrado, mediante o ordenamento da liturgia cristã, em diversos tempos e festas; é o marco temporal no qual se desenvolve o único e fundamental conteúdo

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celebrativo da Igreja, que é o mistério de Cristo: sua vida, morte e ressurreição, ápice da história da salvação.26 Colhendo o sentido desta definição, pode-se dizer que o AL é uma realidade teológica, litúrgica e catequética, estruturada e organizada ao longo do tempo a partir das primeiras experiências celebrativas das comunidades cristãs, com o intuito de permanecer na eterna memória/presença do Cristo Crucificado/Ressuscitado.

Para os cristãos, o tempo - e tudo o que vive e foi criado nele - pertence a Deus. Com efeito, no tempo acontece a aventura histórica da vida humana, sulcando no barquinho planetário pelas ondas espaciais. Pois, a vida evolui e se desenvolve, vai se tornando celebração cultual, cultural e histórica. Daqui que seja importante perceber que o cristianismo é uma cosmovisão religiosa histórica; sua liturgia também é histórica, num duplo sentido: celebra a história (faz memória) e é celebrada na história (reapresentação da memória).

Nos primeiros séculos de vida cristã, as comunidades não possuíam uma estrutura

celebrativa “específica” a não ser aquela das celebrações dominicais, embora existam indícios de uma comemoração anual da Páscoa. E só a partir dos séculos VIII-IX, é que se poderá falar de certa estruturação anual da liturgia. Para a formação dessa incipiente estrutura celebrativa, que dará origem e forma ao AL, contribuíram diversos fatores, como a capacidade festiva humana, a influência do ano litúrgico judaico, e, sobretudo, a própria força do mistério Pascal do Senhor, que tendia a se manifestar por todos os meios possíveis da nascente cultura cristã. Isso sem esquecer as necessidades catequéticas e pastorais das comunidades que surgiriam de força avassaladora.27

O AL é o tempo litúrgico que emoldura a vida cristã. Liga o céu e a terra num único ritmo. Direciona o olhar em Jesus Cristo, e ensina a elevá-lo por cima do rotineiro, do cotidiano, para introduzi-lo ao coração cósmico do Senhor. Percorrendo o AL, pessoal e comunitariamente, o discipulado cristão perfila-se em duas direções: a primeira, no presente da vida e, ao mesmo tempo, a segunda, para o mundo vindouro: escatológico (definitivo).

Ele também é chamado de “ano dos cristãos”, porque ensina a caminhar com o único Mestre

e Senhor, para aprender a moderar os exageros do ego e do individualismo, para lentamente, transformar os cristãos n’Aquele que os chama a ser homens e mulheres livres, cultivando aquela liberdade que dispõe o agir com determinação, em favor de escolhas saudáveis e qualificadas.

Em sua forma reiterativa, vamos cada ano, na cadência temporal, amadurecendo nosso

encontro — que um dia será definitivo — com Jesus. A cada ano celebramos o mesmo ciclo e os mesmos tempos, no entanto, ano após ano, nós já não somos mais os mesmos: A igreja almeja que sejamos melhores, mais justos, mais sábios, mais autênticos, mais alegres, generosos e serviçais; cada vez mais necessitados de Deus e menos seguros de si mesmos. Domingo “a festa primordial”.

Dia em que a comunidade celebra o memorial pascal de Jesus Cristo

O domingo constitui a estrutura central, o coração palpitante de todo o AL; criação própria e específica da fé cristã. É o dia do Senhor; o dia em que a comunidade dos discípulos reunida celebra o que aconteceu no “primeiro dia da semana” (cf. Mateus 28,1; Marcos 16,2; Lucas 24,1.13; João

26 Cf. Guillermo ROSAS, O Ano Litúrgico, em CELAM, Manual de Liturgia IV, Paulus, São Paulo 2007, 16. 27 Cf. Julián López MARTÍN, Liturgia e Catequese, em Dicionário de Catequética, Paulus, São Paulo 2004, 699.

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20,1.19); isto é, o memorial da ressurreição de Jesus Cristo. A Igreja o celebra cantando: “Este é o dia que o Senhor fez para nós, exaltemos e nele exultemos” (cf. Salmo 118[117], 1-2.15b-17.22-23).

Com efeito, no tempo de Jesus, “o primeiro dia da semana”, era o dia seguinte após o sábado. Jesus morreu no sexto dia (sexta-feira) e passou o sábado (sétimo e último dia) na sepultura. E foi precisamente na manha, ou na madrugada do dia seguinte, o primeiro dia da semana, com a Sua Ressurreição, que se iniciou um novo dia de um novo tempo; onde os discípulos e discípulas sentiram que tudo se renovou em Jesus. Aconteceu, na verdade, uma ruptura com a antiga páscoa para inaugurar uma nova Páscoa. A antiga (ou primeira) aliança é relida como nova aliança através da Páscoa de Jesus, o Cordeiro de Deus.28

Jesus ressuscitado, a partir desse dia, venceu as amarras da morte e a Vida em plenitude foi sentida como mais forte do que a morte. Esse inédito evento ficou gravado profundamente no coração dos cristãos. Com ele, lembram o inicio da criação, quando Deus criou o sol (cf. Genesis 1,3-5). Agora o “novo Sol” desponta na pessoa do Crucificado/Ressuscitado, pois, no mesmo dia, o primeiro da semana, a humanidade, e nela especialmente os cristãos, começaram uma nova vida na vivificante Vida de Jesus (cf. Apocalipse de João 1,17b-18.21,13).

Por causa da impressionante vitória de Jesus sobre a morte, esse dia recebeu pelas primeiras comunidades cristãs um nome particular e inesquecível: o chamaram “dia do Senhor” (cf. Apocalipse de João 1,10), em grego “Kyriake emera” = Κυριακή ήµέρα, em latim “dies dominica”, em português, “Domingo”.29

É claro então que a origem do AL esta marcada ao compasso da “páscoa semanal”, e ao mesmo tempo, ela é o critério de regulamentação. Eis porque todos os domingos do AL, celebram o mistério de Cristo em sua plenitude. O conteúdo é dado pela riqueza das leituras bíblicas contidas nos Lecionários, distribuídas em três anos ou ciclos (A, B e C) na Eucaristia dominical.

Para aprofundar melhor o precioso significado do domingo, vale a pena concluirmos esta explanação com as magníficas palavras que o Papa Bento XVI nos deixou em Aparecida:

“O domingo significou, ao longo da vida da Igreja, o momento privilegiado do encontro das comunidades com o Senhor ressuscitado.

É necessário que os cristãos experimentem que não seguem um personagem da história passada, senão o Cristo vivo, presente no hoje e no agora de suas vidas. Ele é o Vivente que caminha ao nosso lado, descobrindo-nos o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa, entrando em nossas casas e permanecendo nelas, alimentando-nos com o Pão que dá a vida. A Eucaristia deve ser o centro da vida cristã.

O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho e testemunhá-lo na sociedade para que ela seja mais justa e humana. Da Eucaristia brotou ao longo dos séculos um imenso caudal de caridade, de participação nas dificuldades dos outros, de amor e de justiça. Só

28 Cf. Lucia WEILER, Palavra Vivida e Celebrada – Palestra no Primeiro Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral (Goiânia - 08-11/10/2011). 29 No evoluir da vida das comunidades cristãs, a celebração da Páscoa do Senhor tomou vários nomes: O primeiro dia da semana, Oitavo dia, Domingo, dia da Ressurreição. Temos uma explicação mais detalhada em RYAN, O Domingo, 43-61. Vale a pena ler a Carta do Papa João Paulo II, Dies Domini - 31/05/1998.

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da Eucaristia brotará a civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe para que, além de ser o continente da Esperança, seja também o continente do Amor!”.30

Que significa o AL para nós: espiritualidade

“O Ano Litúrgico não tem outro objetivo senão levar os fiéis a participarem mais ardentemente pela fé, pela esperança e pela caridade, de todo o mistério de Cristo, desenvolvido no decurso de um ano” (PAULO VI, Mysterii paschalis – 14/02/1969).

O mistério pascal é a fonte de todo o processo santificador de toda realidade humana. Nele somos resgatados e inseridos no Coração cósmico de Jesus Cristo, naquela porta estreita aberta no seu peito no altar da cruz para adentrar-nos confiantes ao eterno. O tempo dos humanos está marcado por um tempo que independe da vontade humana. Percorremos um ciclo existencial inexorável e vamos “gastando a vida” no tempo vital de cada um. Mas, como cristãos, cientes da pertencer filialmente ao Pai em Cristo, confirmamos também nossa identidade religiosa. Para isso precisamos da Igreja, à comunidade, para nela, agradecer ao Pai que em Cristo olha por nós ao longo da caminhada espaço/temporal; nela, celebrando o Senhor ao longo do AL, somos conduzidos pelo ressuscitado. O AL com seus tempos litúrgicos, transmite uma extensa carga de significados espirituais, a fim de percebermos que nossa história pessoal e comunitária é santificada pelo Senhor na força do Espírito. No fundo, todo cristão, na medida em que os anos passam, apreende a mergulhar sua vida no AL, caminhando em Cristo e, com Ele cresce na sabedoria e na santidade dos conselhos evangélicos. Para isso, entrara com coração aberto e esperançoso no desenrolar do AL, para deixar-se conduzir à vida cristã em plenitude; vida que implica crescimento humano, exercício da liberdade e maturidade espiritual. Quem acede com coração livre à proposta de vida em Cristo, aprende a relativizar a “infeliz” importância que o mundo consumista outorga a questões tão sutis e frívolas, como a de obter lucros sem limites a custo do menosprezo à dignidade humana, a viver pendentes dos investimentos na bolsa de mercado ou até morrer pela sorte de seu time favorito; por fim, em ocupar-se de satisfazer todos os eu do seu egoísmo; para aprender a viver em Cristo, direcionando todo o seu olhar nobre e superior em todos os níveis da vida; aprenderá a olhar para aquilo que constitui seu ser irmão/discípulo do Senhor, isto é, a pautar a vida em Cristo, Caminho, Verdade e Vida (cf. João 14,5-6). O AL, por isso, é o percurso anual que coloca em sintonia, propositalmente, a vida do cristão com a vida de Jesus (cf. Salmo 118(119), 33-40). Aprender a viver o AL marca a diferença, que por momentos é palpável, entre o viver qualificado do cristão e o viver segundo “o espírito medíocre” do mundo não evangelizado. De fato, o cristão não calca sua vida na rotina dos anos que vivem as pessoas que aspiram o ar da indiferença religiosa, da mesmice rotineira e insípida dos “comprometidas com o nada” (cf. DGAE 2011-2015, 3c; DAp 12). Eis o bonito desafio que o cristão recebe da mãe Igreja: aprender a conhecer e viver o AL para deixar-se educar como filho e filha no discipulado do Senhor.31. O AL, celebrado na e como Igreja, exige assumirmos o compromisso de formar e fazer parte dela. Ensina-nos, com magistral pedagogia, que cada um de nós entra no ritmo repetitivo — mas, 30 BENTO XVI, Discurso do 13/05/2007 – Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe (CELAM, Documento de Aparecida, Edições CNBB, 276). 31 Cf. CHITTISTER, El año litúrgico, 17-34.

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sempre novo — dos momentos que constituem a essência da fé. É sempre presença celebrativa e comemorativa do “Amor Essencial” que ajuda a criar raízes no coração de Cristo. Defronta-nos com a infindável “distância” entre a gloriosa vida de Cristo e aquela que descobrimos em nosso intimo misturada de conquistas e carências. Enfim, nos direciona a uma continua reflexão pessoal e comunitária sobre o lugar que deve ocupar Jesus no exercício cotidiano de assumirmos, como “cristãos”, toda a existência humana e planetária n’Ele recriada. Enfim, o AL não é simples calendário de dias e meses, não é um passar de um tempo a outro como se fossem as roupas que trocamos cotidianamente. Bem mais do que um calendário que coleciona festividades, é uma realidade sacramental, símbolo de Cristo que se faz, Ele mesmo, caminho de conversão. Cada celebração no tempo é portadora de um sentido que pede toda a atenção para oferecer-nos vida nova. Assim, dia após dia, ano após ano, vamos sendo atingidos/contagiados pelo mistério de Cristo e pela graça do Seu Espírito opera-se a nossa transformação. Se vivemos cada celebração com sinceridade e com coração discipular, receberemos do Pai luz e força para caminharmos rumo da nossa definitiva identificação com Cristo, sempre e eternamente Senhor Nosso. Sem dúvida, o grande desafio sempre permanece: redescobrir a transformadora pedagogia do AL, para que os cristãos encontrem nela a primeira e mais fecunda fonte de espiritualidade qual uma alavanca a impulsioná-los para crescerem como criaturas novas em Jesus Cristo.

Algumas propostas catequéticas penetrar no espírito do AL

1. Trabalhar para conscientizar o povo cristão sobre a importância do Domingo, páscoa semanal da comunidade. Sendo que na sociedade atual é difícil perceber o Domingo como “Dia do Senhor”, devemos intensificar as exortações para “re-colocar” o Domingo como “dia de descanso”, de reunião dos irmãos e irmãs em Jesus Cristo. Assim, poderemos vencer “o vírus consumista” que infelizmente já contagiou também esse dia.

2. Ajudar por isso, às pessoas a superar a gastança de tempo, esvaziado de todo sentido, esbanjado em lamentáveis ninharias, assistindo programas de televisão descaracterizados de toda forma construtiva; perceber criticamente a dinâmica impulsiva que embarca o povo naquele ritmo desenfreado que as leva a cuidar de tantas coisas, entre elas, as tarefas domesticas acumuladas para o fim de semana.

3. Reconstruir a consciência crítica sobre a importância de viver o tempo como “sagrado”, que não se submete aos ditames da economia, respeitando o dia de descanso como espaço de proteção ao que há de mais sagrado: o direito de viver e de celebrar a vida em Cristo. Os judeus falam com reconhecimento sobre a ação protetora do sábado dizendo: cuida do sábado que o sábado te cuidara. Nós podemos aplicá-lo ao domingo: preserva o Domingo, que o Domingo te preservará.

4. Destacar o sentido pascal do Domingo, com gestos e sinais visíveis, como a aspersão com água benta no lugar do rito penitencial, ou acendendo o círio pascal, mesmo fora dos Domingos do tempo pascal (claro, menos aos Domingos do Advento e da Quaresma).

5. Realçar a expressiva importância que reveste a participação consciente e ativa na Vigília Pascal “a mãe de todas as santas vigílias”.32 A comunidade descobrira cada vez com força maior a Vigília como inicio do Domingo Pascal que expressa e intensifica a espera pela vinda do Reino

32 Assim a chamou Santo Agostinho (Sermo 219).

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6. Destacar com força a beleza mistagógica do Tríduo Pascal que culmina na Vigília Pascal do Sábado Santo com todo o significado que o povo fiel lhe atribui. Podemos preparar alguns momentos de oração a espera da vigília, por exemplo, com a leitura orante de textos adequados ao tempo celebrado, mantras, breves momentos de oração e interiorização, etc.

7. Desenvolver criativamente os tempos do Advento e da Quaresma, celebrando-os como se fossem ótimas oportunidades para retomar e aprofundar a escolha fundamental de Jesus e do seu Evangelho. Preparar momentos de intensa oração introduzindo o costume de orar com o Oficio das Comunidades.33

8. Valorizar as riquezas do Tempo Comum, que nos convida a usufruir da graça pascal do Batismo, crescendo na consciência do discipulado missionário; a descobrir o quanto é sedutor o seguimento de Cristo em seu itinerário missionário, pautado pelos relatos evangélicos e a ação eucarística, moldurada na fraternidade, nos acontecimentos significativos da caminhada comunitária e no diálogo com a vida aberto a um novo olhar ecológico.

33 Oficio Divino das Comunidades, Paulus, São Paulo 199411.

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A Celebração do Ciclo Pascal

Fernando Gianetti de Souza Marcelo Furlin

Páscoa: o ciclo histórico e transcendente

A celebração do mistério pascal como ciclo significa fazê-lo presente nos dias de hoje, de modo a vivenciá-lo em todas as dimensões da comunidade humana. De fato, a liturgia é a celebração da vida no mistério pascal e, de modo semelhante, a celebração do mistério pascal na vida. Assim, a Páscoa-Mistério, como vocação transcendental, é realizada por meio de vocações terrenas, nutridas por uma ação evangelizadora autêntica e sempre “nova” (EG 11)

O mistério da ressurreição de Cristo é um acontecimento real que teve manifestações historicamente constatadas, como atesta o Novo Testamento. São Paulo escrevia aos Coríntios pelo ano de 56: “Eu vos transmiti [...] o que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e, ao terceiro dia, foi ressuscitado segundo as Escrituras; e apareceu a Cefas, e depois aos Doze” (1Cor 15, 3-4). O apóstolo fala aqui da viva tradiçãoda Ressurreição, que ficou conhecendo após sua conversão às portas de Damasco (CIC 639).

O sepulcro vazio: eis o mistério da fé!

A pedra do sepulcro vazio aponta para a pedra da Mesa da Palavra e da Mesa do Pão!

“Por que procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou” (Lc 24, 5-6). No quadro dos acontecimentos da Páscoa, o primeiro elemento com o qual nos deparamos é o sepulcro vazio. Ele não constitui em si uma prova direta. A ausência do corpo de Cristo no túmulo poderia ser explicada de outra forma. Apesar disso, o sepulcro vazio constitui para todos um sinal essencial. Sua descoberta pelos discípulos foi o primeiro passo para o reconhecimento do próprio fato da Ressurreição. Este é o caso das santas mulheres, em primeiro lugar, e de Pedro, logo depois. O discípulo ‘’que Jesus mais amava’’ (Jo20, 2) afirma que, ao entrar no túmulo vazio e ao descobrir “as faixas de linho no chão” (Jo 20, 6), “viu e creu”. Isto supõe que ele tenha constatado, pelo estado do sepulcro vazio, que a ausência do corpo de Jesus não poderia ser obra humana e que Jesus não havia simplesmente retomado a vida terrestre, como tinha sido o caso de Lázaro (CIC 640).

O amor do Pai e a salvação do Filho

Cristo, nossa Páscoa, é a pedra viva sobre a qual é realizada a obra da salvação

Deus, que “quer salvar e fazer chegar ao conhecimento da verdade todos os homens” (1 Tim 2,4), “havendo outrora falado muitas vezes e de muitos modos aos pais pelos profetas” (Hb 1,1), quando veio a plenitude dos tempos, enviou Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, para evangelizar os pobres,

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curar os contritos de coração, como “médico corporal e espiritual”, Mediador entre Deus e os homens. Sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi instrumento de nossa salvação. Pelo que, em Cristo, ocorreu a perfeita satisfação de nossa reconciliação e nos foi comunicada a plenitude do culto divino”. Esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhas divinas operadas no povo do Antigo Testamento, completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de Sua sagrada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão. Por este mistério, Cristo, “morrendo, destruiu a nossa morte e ressuscitando, recuperou a nossa vida”. Pois do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja (SC5).

A obra de Cristo na Liturgia

A presença de Cristo na liturgia representa, hoje e sempre, participação e comunhão, ideal e serviço, unidade e pluralidade.

Portanto, assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para pregarem, o Evangelho a toda criatura, anunciarem que o Filho de Deus, pela Sua morte e ressurreição, nos libertou do poder de Satanás e da morte e nos transferiu para o reino do Pai, mas ainda para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da salvação através do Sacrifício e dos Sacramentos, sobre os quais gira toda a vida litúrgica. Assim, pelo Batismo os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo: com Ele mortos, com Ele sepultados, com Ele ressuscitados; recebem o espírito de adoção de filhos, “pelo qual clamamos: o espírito de adoção de filhos, “pelo qual clamamos: Abba, Pai” (Rom 8,15), e assim se tornam os verdadeiros adoradores procurados pelo Pai. Da mesma forma, toda vez que comem a ceia do Senhor, anunciam-Lhe a morte até que venha.Por este motivo, no próprio dia de Pentecostes, no qual a Igreja apareceu ao mundo, “os que receberam a palavra” de Pedro “foram batizados”. E “perseveravam na doutrina dos Apóstolos, na comunhão da fração do pão e nas orações, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo” (At 2,41-42,47). Nunca, depois disto, a Igreja deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo “tudo quanto a Ele se referia em todas as Escrituras” (Lc 24,27), celebrando a Eucaristia, na qual “se torna novamente presente a vitória e o triunfo de Sua morte” e, ao mesmo tempo, dando graças “a Deus pelo dom inefável” (2 Cor 9,15) em Jesus Cristo, “para louvor de sua glória” (Ef 1,12), pela força do Espírito Santo (SC6).

O ano litúrgico

Deus deseja celebrar o eterno do Mistério Pascal no tempo da humanidade

A Constituição Sacrosanctum Concilium define o ano litúrgico como a celebração do mistério de Cristo e da obra da salvação ao longo de um ano. O ano litúrgico, portanto, é uma realidade teológica, e não uma mera organização temporal da Igreja. É a compreensão e organização cristã do ano solar: o mesmo espaço de tempo, mas que pela fé em Cristo é compreendido como tempo de salvação. Nele, os crentes desenvolvem ciclicamente suas celebrações em memória e em honra de Jesus Cristo. Sua duração de 365 dias coincide com o ano civil (A América Latina rege-se pelo calendário civil do mundo ocidental. Na China, Israel e outras culturas, celebram-se outras festas de início do ano-novo.), mas seu reinício cíclico não, o qual é determinado no ano litúrgico pelo primeiro domingo

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do Advento; o ano civil, por sua vez, tem no Ocidente o 1º de janeiro como data de começo do “ano-novo”. O ciclo pascal A quaresma Começa em um dia da semana, a Quarta-feira de Cinzas, cuja data é móvel, dependendo da data de celeração da Pascoa, e termina na Quinta-feira Santa, antes da missa da Ceia do Senhor. Possui seis domingos; o sexto se chama Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, e com ele começa a Semana Santa. A Semana Santa e o tríduo pascal A Semana Santa sobrevém à quaresma, mas tem desde o Domingo de Ramos uma dinâmica própria que começa com a recordação da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém e segue, passo a passo, os acontecimentos de sua paixão e morte, até sua ressurreição. É a semana mais importante do ano para a Igreja, e seu cume são os dias do tríduo que começa com a Ceia do Senhor. A eucaristia da Ceia do Senhor, a liturgia da Sexta-feira Santa e a Vigília Pascal são três celebrações com as quais culmina a preparação quaresmal. O tempo pascal O tempo pascal, chamado também de “cinquentena pascal”, é formado pelos cinquenta dias que vão desde o domingo da ressurreição até a solenidade de Pentecostes. “Hão de ser celebrados com alegria e exultação como se tratasse de um só e único dia festivo, mais ainda, como ‘um grande domingo.” Pentecostes É a solenidade da vinda do Espírito Santo, com a qual culmina o tempo pascal e a celebração pascal ininterrupta que a Igreja vive desde o domingo da ressurreição como se fosse um só dia de festa. Pentecostes é uma festa pascal, não uma celebração independente da cinquentena. É a culminância teológica e litúrgica. O Espírito Santo é o grande dom do Ressuscitado e o criador do novo Israel que agora se configura como a Igreja de Jesus Cristo, a qual sai para anunciar a Boa Nova da ressurreição deste último por todo o mundo.

(CELAM. Manual de liturgia IV) O movimento do ciclo pascal

O Concílio Vaticano II, no documento sobre a Sagrada Liturgia, ilumina a centralidade da

Palavra de Deus na celebração cristã. Cesare Giraudo apresenta uma notável dinâmica do discurso litúrgico, pautada em um sentido pós-Vaticano II: o movimento descendente, que revela o anúncio da Palavra à assembleia reunida, e o movimento ascendente, que dinamiza a palavra humana entrelaçada com o Verbo. A Palavra que desce e a palavra que sobe alimentam o movimento da liturgia. Duas mesas, uma só mesa

“Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição.

Vinde, Senhor Jesus!”

Na celebração eucarística, a liturgia memorial apresenta, numa perspectiva ampla, três elementos de composição para o rito da missa, como construção de uma via mistagógica prolongada pelos caminhos da História: 1) o povo reunido como assembleia; 2) a Liturgia da Palavra, com a

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proclamação de textos do Antigo e do Novo testamento; 3) a Liturgia Eucarística, com a apresentação do pão e do vinho, oração eucarística e comunhão.

Nesse sentido, um olhar mais atento é lançado sobre a Liturgia da Palavra, que em inter-

relação com a Liturgia Eucarística, compõe uma única e indivisível ação litúrgica. Nessa compreensão, Francisco Taborda ressalta a “unidade das duas mesas”, ambão e altar, que asseguram a identidade da assembleia litúrgica.

O diálogo entre as mesas nutre uma nova experiência celebrativa: a Palavra de Deus, como

promessa, é transformada em ação eucarística e comunitária. Trata-se, pois, de um movimento litúrgico-teológico que contempla a graça e o serviço. A Palavra da proclamação torna-se a Palavra do alimento. Assim, o Verbo, se faz carne no ventre da assembleia particular e da Igreja Universal, transformando as palavras humanas em atos e gestos concretos de comunhão. Em síntese, a eucaristia é o sacramento da unidade. Liturgia, a celebração viva

A ação litúrgica no mundo fundamenta a missão da Igreja e a transformação da sociedade.

Por mais numerosas que sejam as ações que precedem ou seguem a celebração litúrgica própria e verdadeira, esta continua sendo o núcleo central, a ação sagrada em sentido pleno, na qual se dá a realidade suprema, a atualização da ação salvífica de Cristo. Por isso, a primeira tarefa da espiritualidade litúrgica é realizar devidamente essa ação sagrada, e respectivamente tomar parte nela, “consciente, ativa, e frutuosamente” (SC 11), com uma “participação plena, consciente e ativa” (SC 14). Aqui está a primeira e mais importante fonte, “na qual os fiéis hão de beber o espírito verdadeiramente cristão” (SC 14). Isso vale para o sacerdote e para os que servem o altar, bem como para os fiéis (SC 14-18). Nada deve permanecer inativo, ser expectador mudo; mas todos Participem consciente piedosa e ativamente da ação sagrada, sejam instruídos com a Palavra de Deus, fortaleçam-se na mesa do Senhor, dêem graças a Deus, aprendam a oferecer-se a si mesmos ao oferecer a hóstia imaculada... aperfeiçoem-se dia a dia... na união com Deus e entre si... (SC 48). Por isso, é necessário alcançar uma compreensão cada vez maior das ações sagradas, para poder “viver a vida litúrgica” (SC 18). Essa, portanto, é a atitude que se exige para uma justa celebração da Liturgia das Horas (e, respectivamente, de toda a ação litúrgica).

(CELAM. Manual de liturgia IV) Referências bibliográficas BUYST,Ione; SILVA, José Ariovaldo. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas, Valência, ESP: Siquem, 2003. BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado: memória e compromisso II. São Paulo: Paulinas, Valência, ESP: Siquem, 2003. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Brasília: Edições CNBB, 2013. CELAM. Manual de liturgia IV: a celebração do mistério pascal, outras expressões celebrativas do mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. São Paulo: Paulus: 2007.

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GIRAUDO, Cesare. Admiração eucarística: para uma mistagogia da missa. São Paulo: Loyola, 2008. PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium: a alegria do evangelho. São Paulo: Loyola, 2013. SACROSANCTUM CONCILIUM. São Paulo: Paulinas, 2011. TABORDA, Francisco. O memorial da páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.

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O Ciclo do Natal Regiane Silva & Fernanda Marqui34

1. O mistério pascal no ciclo natalino

“A vida cristã é assim assinalada pelo já e pelo ainda-não, que caracterizam o evento da salvação pascal e a sua celebração na liturgia”35. A existência cristã consiste em realizar na vida o mistério celebrado na liturgia, em introduzir e inserir na vida o que se recebeu na fé, à espera de que se realize e se cumpra plenamente a bem-aventurada esperança e de que venha o salvador Jesus36. “Já no AT o evento salvífico é perpetuado em uma festa e em um rito memorial, mediante os quais todas as gerações celebram a memória, tornam presente a salvação de Deus e anunciam profeticamente o seu cumprimento (cf. Ex 12,14; Dt 5,2-3; Ex 13, 14-15)”37.

Cristo deu cumprimento aos eventos da salvação e significado às festas memoriais de tais eventos. Nele se cumpre o hoje da salvação definitiva, que realiza as promessas de Deus. Quando Jesus diz: “Fazei isto em memória de mim”(cf. Lc 22,19; 1Cor 11,23-25), ele insere, através do rito da ceia, a sua páscoa no tempo; perpetuando, desta maneira, a realidade da salvação na história humana38. “Assim ‘o que era visível do nosso Redentor, passou para os ritos sacramentais’ (são Leão Magno, Sermão II sobre a ascensão, 1.4, PL 54, 397-399)”39. Deste modo, na celebração do ciclo do Natal, temos, na fé, a certeza de que a salvação é comunicada também hoje para nós. Ela nos é conferida na revelação de todo mistério de Cristo, especialmente o mistério pascal, que é celebrado também no ciclo do Natal, mediante o real “memorial” eucarístico da morte, ressurreição e vinda gloriosa do Senhor40. Nesse ciclo, a Igreja celebra a revelação de Deus na encarnação como evento salvífico. As celebrações do ciclo do Natal são no sentido mais pleno “atos sagrados” nos quais são celebrados o ato primordial da nossa salvação41. Partindo da convicção da presença do mistério pascal em todo ano litúrgico, estudemos no próximo capítulo como ele se desenvolve dentro do ciclo do Natal. 2. A origem e a estruturação de alguns aspectos da liturgia do Ciclo do Natal.

Antes de analisar alguns textos, da atual liturgia do Ciclo do Natal, na perspectiva do mistério pascal, façamos um estudo da origem e da estruturação deste ciclo, buscando perceber a dimensão pascal desde a sua gênese.

2.1. A origem e a estruturação de alguns aspectos da liturgia da festa do Natal.

A festa de Natal42 no dia 25 de dezembro é certamente de origem ocidental e provavelmente

34 Regiane Aparecida Silva e Fernanda Marqui são membros da Comissão Diocesana de Liturgia e formada em Especialização em Liturgia, Ciência e Cultura pela PUC-SP. 35 SORCI, Pedro. Mistério Pascal... p. 786. 36 Cf. Ibidem. 37 BERGAMINI, Augusto. Ano Litúrgico... p. 60. 38 Cf. Ibidem. 39 Ibidem. 40 Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 213. 41 Cf. Ibidem. 42 Os termo Natal projeta alguma luz sobre o seu conteúdo. “Natale quer dizer aniversário do nascimento e era, no século IV, de uso corrente. Mas a etiqueta da corte havia ampliado significação da palavra e aplicara-a igualmente aos dias que marcavam a glorificação do imperador, assim como aos da sua acessão à púrpura e ao da sua apoteose”. (JOUNEL, Pierre. O Tempo do Natal. In: MARTIMORT, A. G. (Org.). A Igreja em Oração. Singeverga:Ora&Labora; Tournai:Desclée&Cie, 1965, p. 838.)

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romana43. Um calendário romano civil e religioso (Cronógrafo Romano) do ano 354, feito por Furio Dionisio Filócalo, indica no calendário civil, o dia 25 de dezembro como “Natalis Invicti”44. Em seguida, à frente de um elenco contendo as datas da morte dos bispos de Roma, “Depositio episcoporum” e dos mártires romanos, “Depositio Martyrum”, anota a 25 de dezembro (VIII kalendas Ianuarii) o nascimento de Cristo em Belém de Judá. Sendo que este elenco já teria sido composto em 336, se deduz que em torno desta data já era celebrada na liturgia da cidade de Roma a festa do nascimento de Cristo45.

Segundo estudiosos, a razão do Natal ter sido fixada nesta data não é o nascimento histórico de Cristo. A explicação mais provável deve ser encontrada na tentativa da Igreja de suplantar a festa pagã “Natalis Invicti”46. O “Invicti” refere-se ao sol que vence as trevas precisamente logo depois de se começar o solstício do inverno47.

A cristianização da festa, de modo algum, é forçada, já que a aplicação do simbolismo do sol a Jesus encontra o seu fundamento na Sagrada Escritura (Sl 18,6; Ml 4,2; Lc 1,78). Somando-se a isto, podemos acrescentar o costume dos cristãos de orarem voltados para o oriente, como podemos comprovar através da defesa de Tertuliano contra a acusação dos pagãos de que os cristãos adoravam o deus sol48.

Sendo assim, a Igreja reagiu de maneira eficaz contra uma corrente, que começava a arrastar os fiéis para práticas pagãs. O Cristo é proclamado verdadeiro sol invencível e seu nascimento, o verdadeiro nascimento do sol, que apareceu no mundo depois da longa noite do pecado49.

Outro motivo que contribuiu para a afirmação das festas natalinas foram as grandes heresias cristológicas do séculos IV e V, de modo especial as de Ario, Nestório e Eutiques. Negando a divindade consubstancial da pessoa do Verbo ou confundindo e misturando as duas naturezas, a humana e a divina, estas heresias comprometem na base o mistério da encarnação e consequentemente o valor da redenção. A instituição e rápida difusão do Natal no Ocidente e da Epifania no Oriente ajudaram a afirmar a ordotoxia da fé, proclamada nos concílios ecumênicos de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451), nos quais a Igreja rebateu tais erros e aprofundou a doutrina sobre o mistério da encarnação e a divindade e humanidade de Cristo, assim como, da maternidade divina de María50.

No que diz respeito à estruturação da festa do Natal, notamos que seu início em Roma se deu de maneira bastante simples, sem período de preparação, nem oitava51.

A celebração de três missas no dia de Natal, como é próprio do rito romano, não remonta 43 Cf. LEMARIÉ, Joseph. A manifestação do Senhor. São Paulo:Paulinas, 1960, p. 19. 44 Festa pagã ao deus sol. Cf. NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação. In: AUGÉ, Matias et al. O ano litúrgico, história e teologia da celebração. São Paulo:Paulinas, 1991, p.181. 45 Cf. CASTELLANO, Jesús. El año litúrgico – Memorial de Cristo y mistagogia de la Iglesia. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 1996, p. 81-82; cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico. São Paulo:Paulinas, 1983, p. 122. 46 cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 123). Esta tradição pode ser encontrada em: De Trinitate 42: PL 894), Jesus teria sido concebido na mesma data (dia e mês) em que depois morreu, ou seja, 25 de março e por conseqüência nascido nove meses depois em 25 de dezembro (Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 196). 47 Segundo os cálculos da época, o dia 25 de dezembro era a data do solstício de inverno. Era o dia em que o sol aparecia mais fraco. Ele parecia estar vencido a ponto de morrer, mas naquele exato momento ele revivia e dia após dia ia se tornando mais forte e brilhante, provando ser invicto e inconquistável. (Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania. São Paulo:Paulinas, 1992, p. 51). 48 Esta defesa pode ser encontrada em: Tertuliano, Ad Nationes 1, 13 (=CCL 1, 32); cf. RAMIS, G. Ano Litúrgico: Ciclo do Advento – Natal - Epifania. In: BOROBIO, Dionisio. (Org.). A celebração da Igreja. V. 3: Ritmos e tempos da celebração. São Paulo:Loyola, 2000, São Paulo:Loyola, 1993, p.166-167. 49 Cf. LEMARIÉ, Joseph. A manifestação do Senhor... p. 21-22.; cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 196-197. 50 Cf. CASTELLANO, Jesús. El año litpúrgico ... p. 85; cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 197.

51 Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 53.

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também às origens da solenidade. No século IV, a única missa que o Papa celebrava neste dia era a missa que hoje é chamada “missa do dia”. A missa era celebrada como de costume, às nove horas, em São Pedro, talvez porque é o local que recordava a transformação da festa pagã em cristã.

A “missa da noite”, conhecida como “Missa do Galo”, surge no decorrer do século V, quando se introduz uma missa noturna, celebrada a meia-noite, na Basílica de Santa Maria Maior52, pois existia o desejo de imitar a celebração noturna de Belém, descrita por Etéria53.

Pelos meados do século VII, surge a missa da aurora. Essa missa era originalmente dedicada a Santa Anastácia, mártir muito reverenciada no Oriente. Sua festa era celebrada em Roma no dia 25 de dezembro, na basílica próxima ao palácio imperial. O Papa ia celebrar pessoalmente essa missa, talvez como um gesto de deferência para com o imperador. Com o passar do tempo, essa missa se tornou missa do Natal54.

Este costume da Igreja de Roma, em particular do papa, de celebrar três missas no dia do Natal, tornou-se universal55.

Em relação ao desenvolvimento da teologia da festa do Natal, podemos comparar o pensamento de Agostinho com o de Leão Magno.

Agostinho parece impressionado com a fixação da data da festa do Natal, a ponto de não considerá-la um “sacramento”56 como a Páscoa, mas apenas uma simples recordação ou aniversário do nascimento de Jesus e, por isso, nada além da lembrança, com uma solenidade religiosa, do dia do ano em que caiu o aniversário do próprio acontecimento.

Esta posição de Agostinho foi logo superada pelo grande teólogo da celebração natalina, São Leão Magno, que fala do Natal como um “admirável mistério”57. Deste modo, o Natal para Leão Magno é essencialmente um “mistério de salvação”, uma verdadeira festa da redenção, em íntima relação com a Páscoa58.

2.2. A origem e a estruturação de alguns aspectos da liturgia da festa da Epifania.

A festa da Epifania59 é de origem oriental. Ela foi provavelmente celebrada inicialmente no Egito, de onde se difundiu pelas outras Igrejas do Oriente, e a seguir, rumo ao Ocidente, primeiramente na Gália e, mais tarde, em Roma e no Norte da África60.

Há muitos indícios de que a escolha do dia 06 de janeiro, de modo semelhante do que

52 cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 125.) 53 Nesta descrição feita por Etéria, os cristãos de Jerusalém tinham por hábito celebrar uma missa na noite anterior à Epifania, na igreja mandada construir por Constantino por cima da gruta da Natividade em Belém, e em seguida voltavam processionalmente a Jerusalém onde celebravam uma outra missa às primeiras horas do dia. (Este texto pode ser encontrado em: Etéria, Itinerarium ad loca sancta (=PLS 1,1047)); cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 53). 54 Cf. NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação... p.190; 55 Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 53. 56 Para Santo Agostinho há um rito sacramental dentro da celebração, quando não só se comemora um acontecimento, mas quando isso é feito de tal maneira que se entenda o significado daquilo que deve ser recebido santamente. (Podemos encontrar este pensamento em relação ao Natal em: Agostinho de Hipona, Epistulae 55, 2 (=PL 33, 215)). 57 Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 210. 58 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia - História, Celebração, Teologia, Espiritualidade... p. 315-316. 59 “O termo grego ‘epifania’ ou ‘teofania’ tem o significado de autonotificação de entrada poderosa no campo da notoriedade e referia-se à chegada de um rei ou de um imperador . O mesmo termo, porém servia ainda para indicar o aparecimento ou manifestação de uma divindade ou de alguma intervenção prodigiosa sua. Não é de se admirar que como o nome ‘epifania’ se tenha designado no Oriente a festa do natal do Senhor, o seu aparecimento – a sua ‘aparição’- na carne”. Cf. BERGAMINI, Augusto.Natal/Epifania. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (Org.). Dicionário de Liturgia... p. 812. 60 Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 96.

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aconteceu com a festa romana do nascimento de Cristo, tenha sido influenciada por alguma seita pagã. Assim como o Natal, a instituição da Epifania, parece ter sido uma cristianização de festas pagãs da luz, onde a substituição da luz por Jesus fica evidente61.

Em Alexandria, era celebrado pelos pagãos o nascimento do deus Aion (deus do tempo e da eternidade) filho de Koré, a Virgem. Esta festa era celebrada na noite do dia 5 para 6 de janeiro, momento culminante do solstício de inverno. Em um solene rito se levava a estátua da deusa e se gritava: “A virgem gerou, cresce a luz”62.

Há outras crenças pagãs que provavelmente influenciaram na fixação da festa em 06 de janeiro. “Alguns autores pagãos como Plínio o Jovem, e cristãos como Epifânio ou João Crisóstomo informam sobre certos prodígios que se verificam dia 5 de janeiro: águas de fontes mudadas em vinho; águas que, apanhadas naquele dia; não se corrompiam”63.

Já no século II, tem-se, por intermédio de Clemente Alexandrino, a notícia de uma festa cristã celebrada pela seita gnóstica dos basilidianos64. No dia 06 de janeiro celebrava-se o batismo de Jesus, no qual, segundo a heresia gnóstica, aconteceu o verdadeiro nascimento do Filho de Deus65.

“Na segunda metade do séc. IV, Epifânio dá a primeira notícia da festa ortodoxa da Epifania, entendida como celebração da vinda do Senhor, ou seja, o seu nascimento humano e perfeita encarnação”66.

Antes de 386, no tempo de João Crisóstomo, a festa era celebrada em Antioquia e no Egito e tinha como objeto o batismo de Jesus e seu nascimento. Na Síria, celebrava-se a festa da encarnação no dia 06 de janeiro até 48667.

No final do século IV, o Natal, provindo de Roma, cria raízes sólidas por toda parte no Oriente, com exceção da Armênia. Depois que o Natal é adotado, o Batismo de Cristo torna- se o objeto de maior importância na celebração de 06 de janeiro68.

No Ocidente, a Epifania, normalmente, entrou depois da Festa do Natal, por isso, ela adquire um objeto diferente, mais precisamente a “revelação de Jesus ao mundo pagão”, simbolizado na vinda e adoração dos Magos; contudo, no dia 06 de janeiro também recordava-se a sua revelação em geral no batismo do Jordão e no primeiro milagre nas Bodas de Caná69.

2.3. A origem e a estruturação de alguns aspectos da liturgia do Advento.

Advento, do mesmo modo que Epifania, é uma palavra cristã de origem profana. Significava, sob o aspecto cultual, a vinda da divindade, que anualmente visitava os fiéis no seu templo. Os fiéis acreditavam que o deus, cuja estátua era então exposta ao culto, permanecia no meio dos seus enquanto durava a solenidade. Na corte, do mesmo modo, designava a primeira visita oficial de um personagem importante por ocasião da sua subida ou entrada em um cargo. Na Vulgata, “Adventus” é empregado para designar a vinda de Cristo na carne, inaugurando os tempos messiânicos, e a sua vinda gloriosa, que coroará sua obra redentora no fim do mundo70.

A formação da liturgia do Advento se deu de forma progressiva. “Desde a origem, este 61 Cf. LEMARIÉ, Joseph. A manifestação do Senhor... p.32 62 Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 225. 63 NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação... p.192-193. 64 Esta notícia pode ser encontrada em: Clemente de Alexandria, Stromata, 1, 21 (= PG 8,887). 65 Cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 144. 66 BERGAMINI, Augusto. Natal/Epifania.... p. 812- 813 67 Cf. Idem. Cristo Festa da Igreja ... p. 224. 68 Cf. NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação... p.192. 69 Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 224. 70 Cf. JOUNEL, Pierre. O Tempo do Natal... p. 844-845.

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período é geralmente tempo de jejum, que se enquadra pouco a pouco numa celebração litúrgica. Em Roma, é considerado numa ótica imediatamente litúrgica, em relação justamente com o Natal”71.

Em Roma, onde teve origem a festa do Natal, esta preparação só irá acontecer nos meados do século VI, com uma liturgia do Advento distribuída no espaço de seis semanas.

Com São Gregório Magno, o número de domingos do Advento é reduzido a quatro. Quando o Advento adquire maior importância em Roma, o seu significado se desdobra: a preparação para o nascimento do Salvador e a espera da parusia72. De maneira natural, o Advento se caracterizou com duas perspectivas: a espera da glória e a sua vinda na carne.

Leão Magno, que não conheceu a celebração do Advento em Roma, une, como outros Padres da Igreja, o nascimento de Jesus em Belém à sua vinda gloriosa no final dos tempos. “Para eles, Natal, através da humildade do presépio, já é uma festa de triunfo unida ao triunfo da cruz, como ao triunfo final de Cristo, na hora da sua volta definitiva”73.

Um aspecto importante na estruturação deste período é a constituição de um tempo de preparação imediata ao Natal a partir de 17 de dezembro. A partir deste dia, no Magnificat, têm início as chamadas antífonas do “Ó” provavelmente foram introduzidas no tempo de S. Gregório Magno. O canto das antífonas do “Ó” durante o Advento era acompanhado de muita solenidade nas catedrais e mosteiros.

2.4. A origem e a estruturação de algumas festas ligadas ao ciclo do Natal.

A festa da Imaculada Conceição, no dia 08 de dezembro, é uma festa que está engastada no Advento. Foi instituída pelo papa Pio IX, quando, no dia 08 de dezembro de 1854, definiu o dogma da Imaculada Conceição. Historicamente, isso acontece mais por acidente, pois esta data é determinada pela festa, mais antiga, da Natividade da Virgem (08 de setembro) exatamente nove meses antes desta última74. Além da Páscoa, só a festa do Natal conservou a oitava, isto é, uma semana litúrgica festiva. Isto é um indício da alta estima que se devota a esta festa75.

As festas de Santo Estevão, São João e dos Santos Inocentes são celebradas logo após o Natal76. As duas primeiras eram celebradas no Oriente desde o século IV e, no Ocidente, desde o princípio do século V. A festa do Santos Inocentes parece ter surgido no Ocidente no final do século V na África do Norte77.

Estes santos têm um papel secundário na oitava de Natal. Na Idade Média, se contemplava

nesses santos o cortejo de honra do Cristo Menino, e eram denominados “Comites Christi”, ou seja, “companheiros de Cristo”. Esta idéia de martírio introduz nota ligeiramente áspera de realismo nas

71 NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação... p. 200-201. 72 “No ano 380 o Concílio de Saragoça pede aos fiéis que sejam assíduos à igreja do dia 17 de dezembro até a Epifania”. “Gregório de Tours († 490) fala de um jejum de três dias na semana entre São Martinho (11dezembro e Natal)” Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia - História, Celebração, Teologia, Espiritualidade... p. 320. 73 Cf. NOCENT, Adrien. O tempo da manifestação... p. 200-201. 74 Comemoramos a Imaculada Conceição de Maria em 08 de Dezembro. Contando os nove meses sucessivos, referentes aos meses de uma gestação, chegaremos à data de 08 de setembro, dia da comemoração do nascimento de Maria. Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 31. 75 Cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 138. 76 O protomátir Estevão é celebrado no dia 26 de dezembro, o Apóstolo e Evangelhista João no dia 27 de Dezembro e os meninos de Belém, massacrados por ordem de Herodes, festejados no dia 28 de dezembro. (Cf. NORMAS universais sobre o ano litúrgico e calendário romano geral. In: MISSAL romano. Tradução Portuguesa da 2a edição típica para o Brasil realizada e publicada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. São Paulo:Vozes; Petrópolis:Vozes, 1992, p. 124.) 77 Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 76.

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festividades natalinas. Não nos é permitido demorar muito na manjedoura, pois a fé cristã implica seguir a Cristo mesmo diante da incompreensão, oposição, perseguição e até o martírio78.

A festa da Sagrada Família, celebrada no domingo dentro da oitava de Natal ou na falta dele

no dia 30 de dezembro79 é uma festa bastante recente, que podemos incluir no grupo das festas devocionais ou ideológicas80.

A solenidade da santa mãe de Deus, no dia 01 de janeiro é a mais antiga celebração em honra da Virgem Maria dentro da liturgia romana. A designação deixa claro que é uma festa de Nossa Senhora, cujo objetivo é homenagear a sua divina maternidade81. Com a reforma do Vaticano II, a festa do “Batismo do Senhor” encerra o ciclo natalino. Esta festa tem o seu elemento constitutivo original na festa da Epifania82.

Fora do ciclo festivo do Natal, temos, de certo modo, ligada ao ciclo do Natal a Festa da “Apresentação do Senhor”, que celebra a chegada do Salvador longamente esperado no próprio centro da vida religiosa do povo e a sua acolhida feita pelo povo por meio de Simeão e Ana. A benção das velas antes da missa e a procissão à luz de velas são características marcantes desta celebração. Esta festa é muito antiga, de origem Oriental. Já no século IV, esta festa era celebrada em Jerusalém. De Jerusalém, difundiu-se pelas outras igrejas do Oriente e do Ocidente83. 3. O mistério pascal em alguns textos do tempo do Advento.

O Advento tem como tarefa preparar-nos para receber o Senhor, que se manifesta a nós. Como já dissemos acima, esta manifestação tem dois aspectos: o primeiro é o da manifestação em nossa carne ao nascer, que constitui sua primeira vinda. O outro é o da sua segunda vinda. Por isso o Advento terá dupla estrutura: o Advento escatológico, que vai do primeiro domingo do Advento ao dia 16 de dezembro inclusive; e o Advento natalício, que se constitui pelas férias de 17 a 24 de dezembro, que propõem uma preparação mais imediata para a festa do Natal. Observemos como os textos litúrgicos deste tempo trabalham esta temática. 4. A teologia do ciclo do Natal

Como conclusão, após o estudo de alguns textos litúrgicos do Ciclo do Natal, podemos dizer que o Ciclo do Natal é o ciclo da manifestação do Senhor. É essa a idéia fundamental desse período, que originou-se da cristianização de festas pagãs da luz. Como pudemos observar, os textos litúrgicos levam-nos não a contemplar o aniversário de Jesus em primeiro plano, mas celebrar o mistério de sua manifestação ao mundo para salvar a humanidade na humildade de nossa carne84.

No ciclo do Natal, assim como no ciclo da Páscoa, celebra-se o mistério da redenção, porém em perspectivas diversas: a redenção tem na páscoa como fundamento a gloriosa paixão de Cristo; no Natal concentra-se a atenção em Jesus Cristo, o Deus feito homem que sofrerá a paixão e a morte para a nossa salvação85.

78 Cf. Ibidem. p. 77. 79 Cf. NORMAS universais sobre o ano litúrgico e calendário romano geral... p. 124. 80 O culto à Sagrada família de Jesus, Maria e José teve um florescimento de âmbito mundial, principalmente a partir do Canadá, e foi favorecida por Leão XIII. Na Sagrada Família, via-se um modelo salutar para a família cristã. Bento XV impôs sua celebração a toda Igreja em 1921. (cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 143; cf. RAMIS, G. Ano Litúrgico: Ciclo do Advento – Natal - Epifania... p.179). 81 Antes da reforma do Vaticano II a festividade era conhecida como “Circuncisão do Senhor”, porém a liturgia deste dia (oitava de Natal) sempre teve caráter nitidamente mariano, seja na missa ou no Ofício. (Cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo Festa da Igreja... p. 454; cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 88). 82 Cf. ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico... p. 149. 83 Cf. RYAN, Vicent. Do Advento à Epifania... p. 108-110. 84 Cf. RAMIS, G. Ano Litúrgico: Ciclo do Advento – Natal - Epifania... p.174. 85 Ibidem. p.160.

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Com efeito, o Emanuel em seu presépio não nos traz apenas, nem em primeiro lugar, toda

espécie de lições morais, como o exemplo inaudito de sua pobreza. Antes de tudo, a Encarnação do Filho de Deus estabelece entre a divindade e a humanidade uma nova relação, permitindo-nos ver algo do mundo invisível e anunciando-nos a intimidade com o Pai, que a redenção e o Espírito Santo hão de realizar86.

Cabe-nos agora participar no mistério. Toda liturgia deverá permitir-nos perscrutar as

profundezas deste mistério e deduzir as conseqüências práticas. De fato, não nos limitamos a festejar apenas um aniversário, mas aí veneramos um mistério salvífico, em que a encarnação e a parusia se relacionam como a primeira e a última etapa da metamorfose divina a realizar. 5. O Mistério do Natal—Epifania

O Advento é a celebração das três vindas de Cristo: sua vinda na carne, que é o foco primário da festa de Natal; sua vinda no fim dos tempos, que é um dos temas subjacentes do Advento; e sua vinda na graça, que é sua vinda espiritual em nosso coração pela celebração eucarística do mistério do Natal—Epifania . Sua vinda na graça em seu nascimento em nós enfatiza o impulso primário da liturgia, que é a transmissão da graça, não apenas a comemoração do evento histórico. Assim, a liturgia comunica as graças comemoradas nas estações e festas litúrgicas. Essas giram em torno das três grandes idéias teológicas contidas na revelação de Jesus: luz, vida e amor divinos. Cada estação do ano litúrgico — Natal—Epifania, Páscoa—Ascensão, Pentecostes — salienta um aspecto particular do mistério da salvação, a autocomunicação gratuita de Deus. O restante do Ano Litúrgico flui desses três temas principais e investiga suas implicações práticas. O Ano Litúrgico se inicia com a idéia teológica da luz divina. E o que é essa luz? Você descobre dando atenção à liturgia, contanto que seja devidamente preparado e que liturgia seja executada com sensibilidade e reverência. A festa do Natal é a primeira explosão de luz no desenrolar do Mistério do Natal—Epifania. Teologicamente, o Natal é a revelação do Verbo Eterno que se fez carne. Mas é preciso tempo para celebrar e penetrar tudo o que esse evento realmente contém e envolve. Os diversos aspectos do Mistério da luz divina são examinados um a um nos dias que se seguem ao Natal. A liturgia desembrulha com cuidado os maravilhosos tesouros contidos na explosão inicial de luz. Na verdade, não apreendemos a importância toda do Mistério até passar pelos dois outros ciclos. À medida que a luz divina fica mais brilhante, ela revela o que contém, ou seja, vida divina; e vida divina revela que a Realidade Última é amor. Epifania é a festa de coroação do Natal. Tendemos a pensar no Natal como a festa maior, mas na realidade é apenas o inicio. Ele desperta nosso apetite pelos tesouros que serão revelados nas festas seguintes. A grande iluminação do Mistério do Natal—Epifania se dá quando percebemos que a luz divina manifesta não apenas que o Filho de Deus se tornou um ser humano mas, que somos incorporados como membros vivos em seu corpo. Essa é a graça especial da Epifania. Em vista de sua dignidade e de seu poder divinos, o Filho de Deus reúne em si a família humana inteira, do passado, do presente e do futuro. No momento em que o Verbo Eterno é proferido fora do seio Trindade e caminha para a condição humana, ele se doa para todas as criaturas87.

6. Painéis Litúgicos

Os painéis litúrgicos traduzem em traços, figuras e cores os principais Mistérios celebrados ao longo do ano litúrgico.

6.1 Painel Litúrgico do tempo do Advento

O tempo do Advento abre para a Igreja a grande celebração da manifestação do Salvador em

86 JEAN-NESMY, Claude. Espiritualidade de Natal... p. 14. 87 KEATING, Thomas. O Mistério de Cristo... p. 26-27.

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nossa humanidade. Embora o mistério da encarnação tenha sua expressão celebrativa maior nas festas do natal e da epifania, é todo o ciclo do natal, que vai do primeiro domingo do advento até a festa do batismo do Senhor, que celebra a vinda do Salvador.

O advento celebra a vinda fazendo memória das grandes promessas de Deus, vendo na espera do povo antigo a nossa espera, mas já realizada em Jesus. Em cada advento celebramos Aquele que veio, mas esperando ver, no tempo presente, a sua concreta manifestação. O painel do advento procurou apresentar uma síntese catequética deste tempo, reunindo elementos dos textos bíblicos dos três anos (A, B e C).

Pedagogicamente o advento se compõe de dois momentos, indicados no painel, pela alternância das cores lilás e rosa. Nos dois primeiros domingos, a liturgia, indicando os sinais do Reino presentes na história através de Jesus Cristo, aponta para a plenitude desta manifestação, quando a criação, se apresentará diante do Pai glorificada. A partir do terceiro domingo, mais concretamente, a partir do dia 17 de dezembro, fazemos memória da sua aparição histórica em nossa carne.

A faixa amarela que corta os quatro domingos representa a proposta que perpassa todo o advento: celebrar a manifestação luminosa do Salvador em nossa história e em cada um de nós, preparando-nos a viver isso mais intensamente na festa do seu natal. Em todos os anos o que caracteriza o primeiro domingo é a vigilância (1). A figura feminina, com a lâmpada acesa, representa a comunidade-esposa, que espera a volta do seu Senhor. Está de pé para indicar que a espera do Senhor é uma espera ativa, atenta aos sinais da sua manifestação já acontecendo no presente.

No Segundo domingo, o cenário é marcado pela figura austera de João Batista (2). Ele aparece indicando o modo concreto de esperar o Senhor: aterrar os vales, aplainar as colinas, endireitar as estradas tortuosas. Sua profecia traz uma Boa Notícia: “Toda carne verá a Salvação de Deus”. No terceiro domingo, João Batista, que veio preparar os caminhos, dá lugar a Cristo, que pode ser encontrado em cada cego que recupera a vista, no leproso curado, no surdo que passa a ouvir. Jesus batizava no Espírito e, continuando o anúncio do Batista, traz boa-nova aos pobres e excluídos (3). No quarto domingo, a figura principal é Maria, que carrega no ventre Emanuel – o anúncio do anjo a José, a visita de Maria a Isabel e o cântico de Maria têm um único motivo: acolher o Filho de Deus que vem nos visitar (4)88. 7. A teologia desse tempo litúrgico

A ação de Deus que se manifesta no Advento infunde em toda a humanidade uma grande esperança, uma esperança alegre que reforça a luta pela vida. Se Deus está para chegar, trazendo sua luz e sua alegria, toda tristeza há de se acabar e toda a escuridão da existência humana será iluminada. Construir-se-á uma nova história, do jeito de Deus, segundo as utopias da criança que ocupara a gruta e, então, nossas vidas: simplicidade, solidariedade e justiça.

Esta alegria manifesta-se nos anjos que vi-eram anunciar (Lc 1,44), mas já desponta nas profecias de Isaías (Is 9,2), no florescer do deserto (Is 31,1), no júbilo de toda a terra (Is 44,23) e, sobretudo, na transformação do gênero humano, que libertará todo oprimido (Is 35,9). O Advento é o tempo do cultivo da esperança, forte e paciente, mas sobretudo ativa e dinâmica. Isso exige a conversão para os valores do evangelho: partilha dos bens com os mais pobres, os preferidos de Deus; solidariedade com os miseráveis, tão feridos em suas dignidades fundamentais; e a fraternidade universal.

88 SPERANDIO, Gabriela. Painéis Litúrgicos... p.12-14.

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A teologia do Advento aponta para a humildade de Deus, que se faz simples e pequenino e que na sua grandeza faz-se ofertório para a humanidade. O Advento e suas celebrações podem ser o espaço litúrgico em que a comunidade reflete a dimensão da fé cristã e questiona suas práticas religiosas e sociais, para que possam ser a manifestação e não o esconderijo da luz e da alegria desse tempo litúrgico.

8. As liturgias dominicais

Ano A – Destacam-se as grandes aspirações messiânicas do profeta Isaías. Esperança de que a justuça triunfará sobre o oportunismo dos poderosos. Mateus – justiça – atuação ética e profética do cristão e a conversão.

Ano B – Ideia do encontro com Deus

Realização da promessa Sua irrestrita presença junto a nós A Liturgia transparece confiante de esperança.

Ano C – Permanente expectativa da vinda.

Prepara-nos para o encontro com o Senhor

8.1. 1˚ Domingo do Advento

No 1˚ domingo do Advento as leituras veterotestamentárias são tiradas de Isaías, nos três ciclos anuais.

• Ano A ESTEJAMOS VIGILANTES – mostra a ação pacífica do Messias que reúne

todos os povos; • Ano B DESPERTOS PARA A CHEGADA DO BEM MAIOR- manifesta o apreço

por sua vida e aclama • Ano C ESPERANÇA HAJA O QUE HOUVER – desponta a promessa pela vinda do

Messias da descendência davídica.

Para as leituras neotestamentárias a liturgia serve-se dos textos paulinos.

• Ano A – mostra o apelo para que despertemos, pois se aproxima da humanidade a salvação (Rm 13,11-14);

• Ano B – apresenta a certeza da presença de Deus e de sua graça a todos que esperam (1Cor 1,3-9);

• Ano C – pede a confirmação na fé, de coração e de santidade a todos que esperam pela vinda de Deus (1Ts 3,12-4,2)

Os evangelhos: Ano A: Mt 24,17-44 Ano B: Mc 13,33-37 Ano C: Lc 21,25-28.34-36 Alertam a comunidade para a vigilância, pois Deus já se faz ver no horizonte.

8.2. 2˚ Domingo do Advento

No 2˚ domingo a liturgia segue esta progressiva necessidade de preparação para a vinda de

Jesus. Nos textos vetero-testamentários vemos:

• Ano A - AGORA É A VEZ DOS FRACOS E POBRES. Is 11, 1-10 - a promessa do libertador, um ramo que brotará do tronco de Jessé. E a analogia entre a volta do povo

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de exílio à terra prometida e a redenção na presença do Messias (Ano B: Is 40,1-5.9-11 e Ano C: Br5,1-9) Nos textos neotestamentários Jesus é manifestado como salvador de todos os povos. Ano A: Rm 5,4-9 –Jesus é manifestado como salvador de todos os povos.

• Ano B JOÃO BATISTA PREPARA OS CAMINHOS: 1Pd 3,8-14 –– Que restaura a

harmonia do mundo por inteiro • Ano C BOA NOTÍCIA QUE É PARA TODOS: Fl 1,4-6.8-11 - que fará a justiça

reinar na humanidade Nos relatos do evangelho aparece altaneira a figura de João, o batizador, bradando a

necessidade da conversão 8.3. 3˚ Domingo do Advento

O 3˚ domingo do Advento recebe o nome de “Gaudete”, que deve revelar a alegria da vinda próxima do libertador dos povos e é originário da perícope: “Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: Alegrai-vos, pois o Senhor está perto” (Fl 4,4s). Daqui a substituição da cor roxa pela cor rosácea, como inspiração do espírito litúrgico.

• No Ano A – AGORA SABEMOS ONDE ESTÁ NOSSA ESPERANÇA: Existe a correlação entre a predição de Isaías, que desvela os sinais dos tempos, a expectativa pela vinda muito próxima do Senhor, clamando fortaleza e paciência e a resposta dada por Jesus a João, já na prisão, revelando-se o verdadeiro Messias, que não enganava o povo, mas manifestava-se verdadeiro pelas suas ações em favor dele

• No Ano B – PROCURANDO UMA LUZ: O Messias é prenunciado pela sua ação em favor dos pobres da sociedade, que é o sinal evidente da sua chegada, pelo seguimento de seus fiéis e pela aclamação de João Batista, voz que clama no deserto, que anuncia a iminência da manifestação da luz de Deus, que será a alegria para os justos e retos de coração

• No Ano C – QUE DEVEMOS FAZER? a expressão mais forte é a alegria dos sinais da face do Senhor, já muito perto de nós, e a mostra da expressiva figura de João Batista encaminhando todos os convertidos de coração a Jesus, que é o verdadeiro Messias, por todos esperado

8.4. 4˚ Domingo do Advento

O 4˚ domingo do Advento relata os acontecimentos muito próximos e anteriores ao nascimento de Jesus.

• No ano A – ELE VIRÁ PARA TODOS! mostra-se a confusão de José e o seu

convencimento de que o Filho de Deus, e não um falso messias, estava para chegar • No ano B – GERANDO UMA NOVA HISTÓRIA: lê-se a anunciação do Senhor

dentro de uma visão profética preanunciada por Natã a Davi e que é anunciada a todos os povos

• No ano C – FELIZES OS QUE CRÊEM: temos a visita de Maria a Isabel e seu sublime e revolucionário Magnificat, que se faz completar pela profecia da instauração da paz e volta do povo à sua terra e pela entrada de Deus no mundo, através da sua participação em nossa humanidade numa vinda como a nossa.

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9. A Anunciação

O Advento é como o tempo de gestação, em que uma nova vida começa a se fazer conhecida. A luz do Natal cresce em cada um de nós à medida que a estação do Advento progride, manifestando-se por clarões de insight que trazem sugestões da luz deslumbrante do Mistério do Natal- Epifania.

Maria é a figura chave no Advento. Nesse texto ouvimos o anúncio pelo Anjo Gabriel de sua

futura maternidade. Pelo que sabemos, Maria era uma moça de 14 ou 15 anos, vivendo numa cidade atrasada. Nazaré não tinha boa reputação, a julgar pelas palavras de Nataniel: "Será que pode sair alguma coisa boa de Nazaré? (Jo 1,46)

Então vem a visita-surpresa do mensageiro de Deus. Como muitas parábolas indicarão mais tarde, a ação de Deus é imprevisível. Às vezes, a surpresa é maravilhosa, como quando uma pessoa encontra um tesouro escondido no campo. Em outras ocasiões, se Deus dá a conhecer alguma exigência ou desafio, a surpresa e experimentada como o fim do mundo de alguém seu pequeno ninho é estraçalhado. Esses eventos ocorrem regularmente na vida de Maria e José. Essa é apenas a primeira vez em que Deus, sem ser convidado, se intromete em sua vida e a põe de pernas para o ar. A aceitação do que Jesus prega mais tarde como o reino (reinado) de Deus implica a prontidão de permitir que Deus entre em nossa vida da maneira que lhe aprouver e a qualquer momento — inclusive agora. Não amanhã, mas agora! O reino de Deus é o que acontece; estar aberto para o reino é estar preparado para aceitar o que acontece. Isso não significa que compreendemos o que está acontecendo. A maioria das provações consiste em não sabermos o que está acontecendo. Se soubéssemos que estávamos cumprindo a vontade de Deus, as provações não nos incomodariam tanto.

Aqui Maria se confronta com um dos cenários favoritos de Deus, que poderia ser chamado de dilema. Este não consiste na escolha entre o que é obviamente bom e o que é obviamente mau – isso é uma tentação – mas em não saber o que é bom e o que é mau. O dilema pode surgir em outra forma: não se pode decidir qual de dois bens aparentes é a vontade de Deus. Para uma consciência delicada, isso provoca profundo problema. A perturbação vem de querermos fazer a vontade de Deus e não saber o que ela é.

Em conseqüência disso, nos sentimos divididos entre duas direções. Dois bens aparentes mas opostos exigem nossa total adesão, e ambos parecem ser a vontade de Deus. É freqüente pessoas em jornada espiritual se verem em tais dilemas, que podem se tornar ainda mais rigorosos à medida que a jornada prossegue. Esse e tipo de dilema que ocorre numa crise vocacional como "Devo entrar numa ordem contemplativa? Tenho deveres para com as outras pessoas que parecem ser importantes, mas sinto um forte chama-. do para a solidão". A atração para a solidão num ministério ativo é uma dos dilemas clássicos com que muitas vezes as pessoas em ministérios ativos se deparam. Indivíduos em comunidades enclausuradas têm experiência oposta. A resposta de Maria - sobre a qual nos detemos agora - desenvolve-se em três etapas. A primeira reação à saudação do anjo é feita de perturba-ção e ponderação. A sua reação é diferente da de Zacarias; dele é referido que ficou perturbado e "o temor apoderou-se dele" (Lc 1, 12). No caso de Maria, no início usa-se a mesma palavra (ela perturbou-se), mas o que se segue depois não é o temor, mas uma reflexão íntima sobre a saudação do anjo. Maria reflete (entra em diálogo consigo mesma) sobre o que possa significar a saudação do mensageiro de Deus. Assim vemos surgir já aqui um traço característico da figura da Mãe de Jesus, um traço que encontramos no Evangelho outras duas vezes em situações análogas: o confronto íntimo com a Palavra (cf. Lc 2, 19.51). Não se detém no primeiro sentimento que a assalta, ou seja, a per-turbação pela proximidade de Deus através do seu anjo, mas procura entender. Por isso, Maria aparece como uma mulher corajosa, que conserva o autocontrole mesmo diante do inaudito. Ao mesmo tempo, é apresentada como mulher de grande interioridade, que conjuga o coração e a mente, e procura entender o

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contexto, o todo da mensagem de Deus. Assim torna-se imagem da Igreja, que reflete sobre a Pala-vra de Deus, procura compreendê-la na sua totalidade e guarda o dom dela na sua memória. A segunda reação de Varia nos é enigmática. Depois da hesitação receosa com que Ela acolhe a saudação do mensageiro de Deus, o anjo lhe comunica a sua eleição para ser a mãe do Messias. Maria, agora, formula uma breve e incisiva pergunta: "Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?" (Lc 1, 34).

Consideremos novamente a diferença em relação à resposta de Zacarias, que reagiu com uma dúvida perante a incumbência que lhe fora atribuída. Ele, como Isabel, possuía uma idade avançada; não podia mais esperar por um filho.

Maria, ao contrário, não duvida, Não levanta questões sobre o "que", mas sobre "como a

promessa Poderia ser realizada, uma vez que isso não era perceptível para Ela: "Corno é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?" (1, 34). Essa Pergunta parece incompreensível, pois Maria estava noiva e, de acordo com o direito judaico, era já considerada equivalente a uma esposa, mesmo que ainda não coabitasse com o marido e não tivesse começado a comunhão matrimonial.

Desde Agostinho, a questão foi explicada no sentido de que Maria teria feito um voto de virgindade e teria buscado o noivado só para ter um protetor de sua virgindade. Mas essa reconstrução escapa completamente ao mundo do judaísmo dos tempos de Jesus e parece impensável nesse contexto. Mas o que significa, então, essa palavra? Uma resposta convincente não foi encontrada pela exegese moderna. Diz-se que Maria, ainda não introduzida na casa de José e que naquele momento ainda não tivera nenhum contato com um homem, consideraria aquela incumbência como imediatamente urgente. Isso, contudo, não é convincente, porque o tempo de convivência não poderia estar muito longe. Outros exegetas tendem a considerar a frase como uma construção puramente literária, em vista do desenvolvimento do diálogo entre Maria e o anjo. Essa tam-pouco é uma verdadeira explicação para a frase. Poder-se-ia também trazer à mente que, de acordo com o costume judaico, o noivado era assumido de forma unilateral pelo homem, e não se pedia o consenti-mento à mulher. Mas mesmo essa indicação não resolve o problema. Permanece, portanto, o enigma - ou talvez seria melhor dizer: o mistério - dessa frase. Maria, por razões que não nos são acessíveis, não vê nenhum modo de se tornar mãe do Messias por meio da relação conjugal. O anjo lhe dá a confirmação de que Ela não será mãe José, mas por meio pelo modo normal, depois de ser recebida por meio "da sombra do poder do Altíssimo” com a vinda do Espírito Santo, e declara com força: "Para Deus, nada é impossível" (Lc 1, 37).

Depois disso, segue-se a terceira reação, a resposta essencial de Maria: um simples "sim" daquela que se declara serva do Senhor. "Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1, 38).

Bernardo de Claraval, numa homilia de Advento, ilustrou de forma dramática o aspecto

emocionante desse momento. Depois do fracasso dos primeiros pais, o mundo inteiro está às escuras sob o domínio da morte. Agora Deus procura entrar de novo no mundo; bate à porta de Maria. Tem necessidade do concurso da liberdade humana: não pode redimir o homem, criado livre, sem um "sim" livre à sua vontade. Ao criar a liberdade, de certo modo, Deus se tornou dependente do homem; o seu poder está ligado ao "sim" não forçado de uma pessoa humana. Ora, Bernardo afirma que, no momento do pedido a Maria, o céu e a terra como que suspendem a respiração. Dirá "sim"?! Ela demora... Porventura lhe será obstáculo a sua humildade? Só por esta vez - diz-lhe Bernardo - não sejas humilde, mas magnânima! Dá-nos o teu "sim"! Esse é o momento decisivo, em que dos seus lábios, do seu coração, surge a resposta: "Faça-se em mim segundo a tua palavra". É o momento da obediência livre, humilde e simultaneamente magnânima, na qual se realiza a decisão mais sublime da liberdade humana.

Maria torna-se mãe, através do seu "sim". Várias vezes os Padres da Igreja exprimiram tudo

isso, dizendo que Maria teria concebido pelo ouvido, ou seja, através da sua escuta: através da sua obediência, a Palavra entrou nela, e nela se tornou fecunda. Nesse contexto, os Padres

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desenvolveram a ideia do nascimento de Deus em nós através da fé e do Batismo, por meio dos quais o Logos vem a nós sem cessar, tornando-nos filhos de Deus. Pensemos, por exemplo, nas palavras de Santo Irineu: "Como poderá o homem tornar-se Deus, se Deus não se torna homem? Como deixarão o nascimento para a morte, se não forem regenerados em um novo nascimento, que nos foi dado, pela fé, de modo maravilhoso e inesperado por Deus, no nascimento de une: Virgem, como sinal da salvação?"

Penso que seja importante ouvir também a última frase da narração lucana da Anunciação: "E o anjo a deixou" (Lc 1, 38). A grande hora do encontro com o mensageiro de Deus, na qual toda a vida muda, passa; e Maria fica sozinha com a tarefa que verdadeiramente supera toda a capacidade humana. Não há anjos ao seu redor; ela deve prosseguir pelo seu caminho, que passará através de muitas obscuridades, a começar pelo espanto de José perante a sua gravidez até o momento em que se diz de Jesus que está "fora de si" (Mc 3, 21; cf. jo 10, 20), antes, até a noite da Cruz.

Quantas vezes, em tais situações, Maria terá interiormente voltado à hora em que o anjo de Deus lhe falara, terá escutado de novo e meditado a saudação "alegra-te, cheia de graça", e as palavras de conforto "não te-mas!". O anjo parte, a missão permanece e, juntamente com esta, matura a proximidade interior a Deus, o intimo ver e tocar a sua proximidade. 10. A Visitação (Lc 1,39-45)

Deus preparou o coração de Maria. A primeira resposta de Maria ao dom da maternidade foi visitar a sua prima. Maria entrou na casa de Isabel e a cumprimentou. A Presença que ela carregava dentro de si foi transmitida para Isabel pelo som de sua voz. Em resposta, o bebê no útero de Isabel pulou de alegria; ele foi santificado pelo modesto cumprimento de Maria. As maiores obras de Deus ocorrem sem que caçamos nada de espetacular. São quase efeitos colaterais de fazermos as coisas comuns que devemos fazer. Se você for transformado todos em sua vida também serão. Em certo sentido, criamos o mundo em que vivemos. Se você derramar amor em todo lugar aonde vai, esse amor começará a retornar; não pode ser de outro modo. Quanto mais damos, mais recebemos. Seguindo o exemplo de Maria, a prática fundamental para curar as feridas do sistema do falso eu e cumprir os deveres de nosso trabalho na vida. Isso inclui ajudar as pessoas que contam conosco. Se a oração atrapalha, há algum mal-entendido. Algumas pessoas devotas pensam que, se suas atividades em casa ou no trabalho atrapalham o caminho da oração, há algo de errado com suas atividades. Pelo contrário: há algo de errado com a oração delas89.

O que Maria nos ensina com sua visita a Isabel é que o som de sua voz despertou o potencial transcendente em outra pessoa sem ela dizer nada. Ela era simplesmente Maria, a Arca da Aliança, ou seja, aquela em que Deus estava habitando. Assim, quando Maria a saudou, a criança no ventre de Isabel pulou de alegria. Sua potencialidade divina foi totalmente despertada. E a de Isabel também. Ela foi preenchida pelo Espírito Santo. Esse é o tipo mais sublime de comunicação. Transmissão não é pregação como tal. A transmissão é a capacidade de despertar em outras pessoas a própria potencialidade delas para se tornar divinas90.

11. Painel Litúrgico do tempo do Natal

As festas do Natal e da Epifania, de acordo com a mais antiga tradição, celebram aspectos diferentes de um mesmo mistério: a vinda do Salvador, que armou a tenda entre nós. A tenda do Êxodo, sinal da morada de Deus na caminhada do povo, se fez realidade na vida de Jesus, que se fez humano, pobre de Nazaré. 89 KEATING, Thomas. O Mistério de Cristo... p. 40 90 KEATING, Thomas. O Mistério de Cristo... p. 42

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São festas da luz, porque proclamam Jesus Cristo como Salvador, Sol do nosso Deus que vem nos visitar. A cor branca e laranja do painel realçam este elemento.

No dia 25 de dezembro, fazemos memória da natividade de Jesus em Belém (1), o prometido das nações, visitado pelos pastores (2), apresentado ao templo (3), reconhecido pelo nome de Jesus (6) e desde cedo fiel à vontade do Pai (5). Pela liturgia do Natal, adoramos o Verbo que se fez carne e habitou entre nós, assumindo em tudo a nossa condição, sendo perseguido desde o nascimento (4).

A festa da Epifania não se limita ao episódio dos magos. Põe em relevo a manifestação de

Jesus como enviado do Pai, aliado fiel dos seus planos, a favor de todos os pobres da terra. No dia 6 de janeiro, celebramos a sua manifestação aos santos reis e, neles, a todos os povos (7). Mas também celebramos sua manifestação no Jordão, como filho e enviado (9), e nas bodas de Caná, como noivo que vem brindar o vinho da alegria na festa de casamento entre Deus e o seu povo (8). O grande anjo, mensageiro de Deus, anuncia sobre a cidade a chegada do Salvador (10). A cidade de Jerusalém (11) representa as nossas cidades, com suas contradições e com a possibilidade que têm de proporcionar melhor qualidade de vida para o seu povo.

A Jerusalém é também cada comunidade qua se alegra em celebrar a vinda de Deus sempre chegando em nossa história, apesar de ainda vivermos tempo de espera.

A natividade de Jesus e sua manifestação são eventos pascais, pois é a memória de sua páscoa que começou quando ele entrou no mundo. A liturgia do Natal fala de um novo nascimento de Cristo em nossa carne. No Natal de Jesus, pelo Mistério de sua Páscoa, o Pai nos gera de novo e nos faz novas criaturas. O céu se abre e nós renascemos pelo dom do espírito91. 12. A Celebração do Natal

• A tradição litúrgica propõe três missas para a celebração do Natal: • A “missa do galo” – tem como reflexão central a narrativa do nascimento de Jesus em

Belém (Lc 2,1-14), que termina com o canto dos anjos, o qual na missa é solenemente cantado – o “Gloria in Excelsis Deo”.

• A “a missa da aurora” tem como tema central a visita dos pastores com grande reverência e alegria: Deus se revela aos simples enquanto se esconde aos poderosos

• A “missa do dia” o tema central é o prólogo de João, que dá o sentido teológico mais profundo deste mistério da encarnação, mostrando a presença do Verbo de Deus na história92.

13. A Kalenda de Natal

A solene proclamação da Kalenda ou Calendas do Natal é um rito que foi incorporado à Santa Missa da Noite do Natal celebrada no Vaticano pelo Santo Padre, o Papa. O canto da Kalenda tornou-se uma tradição secular da Igreja romana à época do Natal. Permite, por meio da evocação de uma série de fatos históricos, inserir o nascimento de Cristo no tempo e mostrar como tal acontecimento se liga ao passado do Povo judeu.

O texto em latim é encontrado no Martyrologium Romanum e a sua leitura é prevista para o

dia 24 de dezembro. No Vaticano durante o pontificado do Papa João Paulo II, o canto da Kalenda era cantado em substituição ao Ato Penitencial. Atualmente, durante o pontificado do Papa Bento XVI o canto é cantado no final do Ofício das Leituras que é rezado como preparação para a Santa Missa da Noite do Natal; após o canto da Kalenda inicia-se a procissão de entrada.

91 Sperandio, Gabriela. Painéis Litúrgicos... p.15-16. 92 BOGAZ, Antônio. Natal Festa de Luz e Alegria... p..85

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O Diretório Litúrgico da CNBB 2012 (página 39) traz a seguinte recomendação: “Anúncio natalino: a ser proclamado na primeira missa (da noite de Natal) após o sinal da cruz e a saudação presidencial, antes da entoação do “Glória”.

13.1 Kalenda

• Transcorridos inumeráveis séculos da criação do mundo, desde que Deus, no princípio,

criou o céu e a terra e formou o homem à sua imagem; • Transcorridos também muitos séculos desde que o Altíssimo, passado o dilúvio, pôs um

arco nas nuvens, sinal de aliança e de paz; • No século vigésimo primeiro da migração de Abraão, nosso pai na fé, de Ur dos

Caldeus; • No século décimo terceiro da saída do povo de Israel do Egito, conduzido por Moisés; • Cerca de mil anos da unção de Davi como rei; • Na sexagésima quinta semana, conforme a profecia de Daniel; • Na centésima nonagésima quarta Olimpíada; • No setingentésimo quinquagésimo segundo ano da fundação de Roma; • No quadragésimo segundo ano do império de Otaviano Augusto; • Estando todo o mundo em paz, JESUS CRISTO, ETERNO DEUS E FILHO DO

ETERNO PAI, querendo consagrar o mundo com sua piedosíssima vinda, pelo Espírito Santo concebido, passados nove meses da concepção, (a voz se eleva e todos se ajoelham) em Belém da Judeia nasce, da Virgem Maria, feito homem: Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo a carne.

14. A Festa da Sagrada Família

Na liturgia da Solenidade da Sagrada Família, torna-se presente a experiência do Filho de Deus que, encarnado, torna-se homem, assumindo a realidade comum das famílias. O mundo se torna família de Deus e Deus assume ser verdadeiramente humano. Com a celebração desta festa tornamos presente e valorizamos a vida de nossas famílias, com suas alegrias e sofrimentos, conquistas e conflitos; mas também com a certeza de que estão sendo sustentadas e guiadas por Deus para um caminho feliz de vida plena para todos93. 15. Dia 1 de janeiro Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria

Celebramos nesta festa a maternidade divina de Maria, e também o dia em que o Menino-Deus recebeu o nome humano de Jesus (Javé salva). Também é o "dia mundial da Paz"; a paz é desejada e suplicada como sinal de bênção e de proteção permanente de Deus. Exultamos de alegria também pelo "sim" de Maria e nos comprometemos a ser, junto dela, uma bênção e portadores da paz para o mundo.

Depois do Concílio Vaticano II esta festa Mariana foi colocada no posto que tinha na antiga

liturgia romana, isto é, no primeiro dia do ano. A inserção desta solenidade no clima natalício faz emergir com força o protagonismo de Maria no mistério da Encarnação e no projeto divino de nossa salvação94. 16. Epifania - a festa da coroação do Natal!

• Natal não é a festa maior e sim, apenas o início. Ele desperta nosso apetite pelos tesouros que serão revelados nas festas seguintes.

93 Cf. CNBB. A melhor noticia do Pai São Paulo: Loyola, 1998. p. 58. 94 MICHELETTI, Guilhermo. Como viver o Advento e o Natal: Ave-Maria - Como viver, 2003. P.57

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• A grande iluminação do Mistério se dá quando percebemos que a luz divina manifesta não apenas que o Filho de Deus se tornou um ser humano, mas que somos incorporados como membros vivos em seu corpo. Essa é a graça especial da Epifania

• É uma das maiores festas do ano litúrgico, pois celebra, no menino nascido de Maria, a manifestação daquele que é Filho de Deus: o Messias dos Judeus e luz das nações

• O Natal celebra o mistério do Verbo encarnado. • A Epifania, sua manifestação aberta aos povos: a sua missionariedade. • A missionariedade dos cristãos, deve revelar que Deus quer reunir todos os seres

humanos numa fraternidade universal. • Natal celebra a encarnação do Filho de Deus em nossa vida • Epifania deve exaltar as manifestações desde Deus revelado na história. • Epifania é a festa da universalidade da salvação, a partir da revelação de Deus.

16.1 Proclamação das Solenidades Móveis

Segundo as Normas Universais do Ano Litúrgico e Calendário Romano Geral, “a Epifania

do Senhor é celebrada no dia 6 de janeiro, a não ser que seja transferida para o domingo entre os dias 2 e 8 de janeiro, nos lugares onde não for considerada dia santo de guarda”95. Segundo o Cerimonial dos Bispos: “A antiga solenidade da Epifania do Senhor deve-se contar entre as maiores festas do ano litúrgico, pois celebra, no Menino nascido de Maria, a manifestação daquele que é o Filho de Deus, o Messias dos Judeus e a Luz das Nações.”96 Uma antiga tradição que remonta aos primórdios da Igreja e que se faz ainda presente nas rubricas do Missal Romano, do Cerimonial dos Bispos e do Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil 2013 da CNBB diz o seguinte: Após a proclamação do Evangelho, o diácono ou o sacerdote ou outro ministro idôneo pode fazer o anúncio do dia da Páscoa97.

Se tal for o costume local, após o canto do Evangelho, um dos diáconos, ou algum cônego ou beneficiado ou outra pessoa revestida de pluvial, subirá ao ambão e daí anunciará ao povo as festas móveis do ano corrente98. Depois da proclamação do Evangelho ou em seguida à Oração depois da Comunhão, faz-se o anúncio das solenidades móveis do ano (conforme página 39 do Diretório Litúrgico)99.

- Conforme relatamos, essa tradição remonta aos primórdios da Igreja. O Patriarca de

Alexandria, cidade na qual os astrônomos eram os mais qualificados do cristianismo, tinham a missão de enviar a data da solenidade pascal para os outros patriarcas orientais e ao Pontífice Romano, que informaria aos Metropolitas do Ocidente. Embora não haja nenhuma menção à fixação da data da Páscoa nos cânones do Concílio de Nicéia que foram preservados, sabemos que o assunto foi discutido e decidido pelo Concílio, com três textos: uma carta do imperador Constantino, um carta sinodal à Igreja de Alexandria, e uma carta escrita por Santo Atanásio em 369 aos bispos da África. Assim, os bispos tomaram a prática de publicar, anualmente, em 6 de janeiro, uma Epistola festalis – uma carta pastoral na qual foram anunciadas a data da Páscoa e as festas móveis do ano em curso. Muitos Padres da Igreja primitiva falam do anúncio da data da Páscoa, na festa da Epifania100.

95 NORMAS UNIVERSAIS DO ANO LITÚRGICO E CALENDÁRIO ROMANO GERAL, no 37 in MISSAL ROMANO. 10. ed. Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2006, p. 98. 96 CERIMONIAL DOS BISPOS, 3. ed. Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 81, no 240. 97 MISSAL ROMANO. 10. ed. Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2006, p. 164. 98 CERIMONIAL DOS BISPOS, 3. ed. Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2004, p. 81, no 240. 99 DIRETÓRIO DA LITURGIA E DA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA NO BRASIL 2013. CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Brasília: Edições CNBB, 2012. 100 PUBLICATION of the Date of Easter on the Day of the Epifhany. New Liturgical Movement. Disponível em: <http://www.newliturgicalmovement.org/2012/01/publication-of-date-of-easter-on-day-of.html> Acesso em 03 jan. 2013.

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- O IV Concílio de Orleães (541) traz o seguinte cânone sobre o anúncio das Festas Pascais:

“Foi decidido, com a ajuda de Deus, que a santa Páscoa seja celebrada por todos os bipos na mesma data, segundo a tabela de Vítor de Aquitânia. Esta festa deve ser anunciada ao povo, na igreja, no dia da Epifania. Sempre que se levante alguma dúvida a propósito desta solenidade, aceite-se a decisão pedida ou conhecida da Sé Apostólica pelos metropolitas”101.

- Um cânone semelhante é promulgado pelo Concílio de Auxerre (561-605): “Todos os

presbíteros, antes da Epifania, enviem os seus emissários que os informarão sobre o início da Quaresma; e o povo seja avisado disso no dia da Epifania”102.

- O Pontificale Romanum103 traz uma fórmula melódica para se cantar o Anúncio das

Solenidades Móveis. É uma fórmula que faz uso do mesmo recitativo gregoriano usado para o Exultet gregoriano da Vígilia Pascal, o que dá um gosto da alegria da Páscoa para esta publicação da data da Páscoa. Essa melodia encontra-se publicada no Hinário Litúrgico da Arquidiocese de Campinas – Fascículo 1 (Advento e Natal) no 95. Ao final desse artigo colocamos a partitura, com o texto adaptado com as datas das Solenidades Móveis de 2013 facilitando assim o acesso a este canto.

- Para finalizar citamos as palavras do nosso amado papa Bento XVI: “No mistério da

Epifania, ao lado de um movimento de irradiação para o exterior, manifesta-se um movimento de atração para o centro, que leva a cumprimento o movimento já inscrito na Antiga Aliança. A fonte deste dinamismo é Deus, Uno na substância e Trino nas Pessoas, que atrai a si tudo e todos. A Pessoa encarnada do verbo apresenta-se assim como princípio de reconciliação e de recapitulação universal (cf. Ef 1, 9-10). Ele é a meta final da história, o ponto de chegada de um ‘êxodo’, de um caminho providencial de redenção, que culmina na sua morte e ressurreição. Por isso, na solenidade da Epifania, a liturgia prevê o chamado ‘Anúncio da Páscoa’: o ano litúrgico, de fato, resume toda a parábola da história da salvação, em cujo centro está ‘o Tríduo do Senhor crucificado, sepultado e ressuscitado”104.

16.2 Anúncio das Solenidades Móveis 2015

Irmãos caríssimos, a glória do Senhor manifestou-se, e sempre há de manifestar-se no meio

de nós, até a sua vinda no fim dos tempos. Nos ritmos e nas vicissitudes do tempo, recordamos e vivemos os mistérios da salvação. O centro de todo o Ano Litúrgico é o Tríduo do Senhor crucificado, sepultado e ressuscitado, que culminará no Domingo de Páscoa, este ano em 05 de abril.

Em cada domingo, Páscoa semanal, a Santa Igreja torna presente este grande acontecimento,

no qual Jesus Cristo venceu o pecado e a morte. Da celebração da Páscoa do Senhor derivam todas as celebrações do Ano Litúrgico:

• as cinzas, início da Quaresma, em 18 de fevereiro; • a Ascensão do Senhor, em 17 de maio; • o Pentecostes, em 24 de maio; • o 1º Domingo do Advento, em 29 de novembro.

101 IV Concílio de Orleães no 1 in ANTOLOGIA LITÚRGICA: Textos Litúrgicos Patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 1242. 102 Concílio de Auxerre, no 2 in ANTOLOGIA LITÚRGICA: Textos Litúrgicos Patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 1255. 103 PONTIFICALE ROMANUM , editio typica 1961-1962 in Monumenta Liturgia Piana III. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2008. x Papa Bento XVI, Homilia da Epifania do Senhor, 6 de janeiro de 2006. 104 Papa Bento XVI, Homilia da Epifania do Senhor, 6 de janeiro de 2006.

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Também as festas da Santa Mãe de Deus, dos Apóstolos, dos Santos, e na comemoração dos Fiéis Defuntos, a Igreja peregrina sobre a terra proclama a Páscoa do Senhor. A Cristo que era, que é e que há de vir, Senhor do tempo e da história, louvor e glória pelos séculos dos séculos. Amém. 17. Batismo do Senhor

• O batismo de Jesus se dá para realizar a filiação divina da humanidade. • O Pai assume Jesus como seu Filho muito amado e juntamente com ele toda a humanidade é

assumida por Deus como “filhos bem-amados”. • A liturgia destaca a dupla dimensão da festa: • Confirmação de sua messianidade

18. Conclusão

Para encerrar a brave exposição bíblica e litúrgica do ciclo do Advento-Natal que fizemos nessa apresentação, podemos traçar em sintéticos passos a perspectiva bíblica e litúrgica de todo o ciclo, claro, sem a pretensão de esgotar o fecundo conteúdo dos temas:

— Primeiro passo: abre-se o coração do Pai e, no Natal, der-rama-se como orvalho da manhã

Seu Filho amado, o Verbo que se faz "carne", cuja alegre presença a Igreja festejará com riquíssimas celebrações nos dias da Oitava do Natal.

— Segundo passo: o Verbo de Deus fez-Se Menino na manje-doura de Belém, e apresentou a sua primeira família entre nós: a Sagrada Família, proto-família de Deus, paradigma da grande família que ele constituirá: a Igreja dos discípulos e discípulas, irmãos e irmãs de Jesus.

— Terceiro passo: para manifestar-se na epifania, como o des-tinado à universal salvação da humanidade, realizada na sua aceitação/doação segundo a vontade de seu Pai.

— Quarto passo: para chegarmos até o dom da Sua vida, na imersão na água do Batismo, enquanto antecipação simbólica e profética do Batismo no seu sangue, que receberá, e por causa do qual se angustiou até que se cumpriu (cf. Lucas 12,50)105.

Assim, fica evidente, que o ciclo natalino não termina em si mesmo, não pode; ele,

inexoravelmente, se abre ao mistério Pascal. Mistério dos mistérios do Amor de Deus para conos-co, que Dom Pedro Casaldáliga soube exprimir com mística elegância:

Toda outra palavra Deve-se submeter Ao aconchego Desta palavra última:

"Deus é Amor!" Foi no Amor que Ele saiu de si

criando o universo [...] Fez-se Olhar, Ternura,

Pranto, Beijo, No corpo de Jesus de Nazaré,

Amor humanamente derramado106.

105 MICHELETTI, Guilhermo. Celebrar o Ano Litúrgico – Advento e Natal: Ave-Maria 2012. p39. 106 Pedro CASALDÁLIGA, Deus é Amor, Estudos Bíblicos 63, Petrópolis 1999, Autor: Bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia — Província Eclesiástica de Cuiabá. Sagrado bispo em 23/10/1971. Incansável lutador pelos direitos de todos os empobrecidos, especialmente dos povos indígenas do Brasil.

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BIBLIOGRAFIA

� A infância de Jesus – Joseph Ratzinger � Celebrar o Ano Litúrgico – Advento e Natal - Gulhermo Micheletti � Cerimonial dos Bispos - Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil � Como viver o Advento e o Natal - Guilhermo Micheletti � Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil - CNBB: Conferência Nacional

dos Bispos do Brasil � Dissertação: O Mistério Pascal no Ciclo do Natal - Sidnei Fernandes Lima � Missal Romano - Tradução da CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil � Natal Festa de Luz e Alegria – Antonio Bogaz � Normas Universais do Ano Litúrgico e Calendário Romano Geral - Tradução da CNBB:

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil � O Mistério de Cristo – Thomas Keating � Painéis Litúrgicos – Gabriela Sperandio