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1 Apostila de Filosofia Vestibular UFMG Redação: Professor Bruno Pettersen

Apostila Filosofia Vestibular

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Apostila de Filosofia

Vestibular UFMG

Redação: Professor Bruno Pettersen

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Introdução

Esse texto que você tem agora o contato é o resultado de cerca de nove anos de minha

experiência em filosofia, a qual teve início em 2000 com minha entrada na graduação em

filosofia na UFMG, passando pelo mestrado (defendido em 2006) e meu atual doutoramento.

Além disto, tive a oportunidade de dar aulas tanto na UFMG como professor substituto (durante

dois anos), e ter dado aulas para inúmeras turmas de pré-vestibular.

Foi a partir desta trajetória que em 2006 decidi escrever este trabalho para poder

orientar os alunos para o vestibular da UFMG. Decidi assim por duas razões: a primeira é que

não encontrei nenhum material amplo o suficiente que se adequasse apenas ao vestibular da

UFMG e a segunda razão é que de todo o material que analisei sobre o vestibular da UFMG

eram uma coletânea fragmentada de textos de vários autores, sem que houvesse uma coesão

tanto dos objetos de estudo, quanto da forma de exposição.

Apesar destas duas necessidades locais que me levaram a escrever este texto, não

descarto nenhum material de leitura adicional. Existem excelentes textos de introdução à

filosofia, como o Filosofando, o Convite à Filosofia e a Iniciação à História da Filosofia, e

muitos outros voltados para um público que busca uma introdução à Filosofia. Mas, falando em

termos pragmáticos, apenas no que tange ao aluno pré-vestibular, acredito que esta apostila é

completamente suficiente para a realização das provas.

De todo modo, faço aqui desde início a maior observação: pelo menos uma idéia aqui

presente está incorreta. Espero eu que seja esta própria afirmação, mas nunca se sabe, afinal a

se não bastasse à complexidade dos assuntos aqui tratados, temos também o tamanho hercúleo

da linha histórica da filosofia.

Introdução à Filosofia

Nosso primeiro passo é desvendar nosso objeto: o que é Filosofia? Tal questão é

extremamente espinhosa, mas justamente por isso é interessante. Literalmente “Filosofia” é

“amor à sabedoria”, mas a filologia nunca responde a tudo, e por isso, estamos na mesma. De

um modo geral, Filosofia é a atividade de conhecer o que nas coisas há de mais básicas, é

conhecer as coisas de um ponto de generalidade muito alta. Não é essencialmente uma atividade

de base, nem mesmo é a melhor das atividades.

Essa tal Filosofia é tão importante quanto qualquer outra área do conhecimento, e deve

partilhar com as outras áreas suas descobertas e suas dúvidas. O que a difere de outras áreas do

conhecimento é sua forma de ver as questões. Seu modo de ver é, então, sempre geral,

perguntando sobre a natureza das coisas, seja a natureza do ser humano, do universo, das ações,

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da arte ou da linguagem. Mas justamente por ser uma área muito vasta, a Filosofia deve

trabalhar em conjunto com todas as áreas, como, por exemplo, a literatura, ciência e religião.

Vejamos como as questões se colocam, e para exemplificar, pensemos um ser humano.

Primeiro ele é um ser biológico, composto de órgãos e tecidos, cada um com um função.

Imagine estudar todo o aspecto biológico, seria possível? Digamos que seja. Mas a questão não

está resolvida. Pensemos que cada um desses órgãos é em última análise, compostos de átomos,

com uma combinação tão especifica que fica difícil acreditar como é que ela existe. Imagine

compreender todas as equações que envolvem que nós somos. Todas. Imagine isso ser feito por

uma pessoa só. Pensemos o outro lado. Vivemos num mundo grande, com dezenas de animas,

de tipos de vegetações, de variedade orgânica e inorgânica quase infinita. Há muitas pessoas

dispostas a investigar como isso se dá no mundo. Mas só nesse mundo? Não. Há dezenas de

outros. Planetas, sistemas solares, forças gravitacionais, energias desconhecidas, e lugares que

nunca ninguém vai ver. Seria bom se fosse só isso. Mas não é. Nessa equação, temos mais

números. Nós seres humanos desenvolvemos uma cultura extremamente complexa, que vai da

ética para a religião, da ciência para a música, da poesia para a biologia. Desenvolvemos meta-

teorias, meta-poesias, meta-ciência. Dado isto temos algumas questões bastantes gerais, que são

de cunho filosófico: (1) Como combinar tudo isso? (2) Será que é possível responder a isto? (3)

Será que colocamos as perguntas certas? (4) Como saber alguma coisa sobre o mundo em que

vivemos? (5) Como sabermos quem somos? Essas questões de 1 a 5 são questões filosóficas por

causa de sua forma: elas são gerais, não podem ser respondidas por uma ciência e dependem

muito mais de um trabalho de exame conceitual. Questões deste tipo podem e devem ser

resolvidas pela Filosofia. Todavia, a Filosofia sozinha não vai dar uma resposta nem próxima de

qualquer uma dessas questões, mas ajuda a colocá-las e respondê-las.

Ao mesmo tempo em que a Filosofia é uma ciência não empírica, ela também está

profundamente comprometida com uma investigação precisa e direta. Não há nada na Filosofia

que deva ser comparada com um delírio, ou um pensamento vago. Pelo contrário. A Filosofia

deve ser exata como a matemática e deve fluir como a literatura.

A Natureza da Filosofia - A Origem Existencial da Filosofia

As questões da Filosofia são por natureza atemporais. Atemporais no sentido de que as

questões que são propostas não são partes de uma só cultura, de um só tempo, mas sim questões

próprias do ser humano. Há, é claro, um número enorme de modos de se colocar as questões,

mas na sua forma elas são poucas e pertencem não só à Filosofia, mas também a literatura, a

ciência e a religião. São perguntas que são partilhadas por todos, de todos os modos possíveis.

Essas questões revelam uma insuficiência na natureza humana. Nós desejamos saber

mais sobre quem nós somos, onde nós estamos e o que podemos nos tornar. É na resposta a

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estas questões que formamos nossa identidade. Essas questões não são exclusivas dos filósofos.

Elas fazem parte de nossa natureza enquanto humanos. Para essas questões, a Filosofia se

coloca como alternativa e ferramenta de busca das respostas.

A Origem Histórica da Filosofia

A Filosofia enquanto estudo sistemático tem uma origem história bem definido, a saber,

por volta do século V a.C. na Grécia.

São vários os fatores históricos e culturais que levaram a Filosofia a nascer, e é

necessário entendê-la justamente como um movimento que nasce por causa desses fatores. A

Filosofia não tem um nascimento privilegiado. Como qualquer movimento cultural, a Filosofia

também tem suas origens, e a que eu acredito ser fundamental é uma mudança drástica no modo

como o qual os gregos pensavam a educação. Para ficar claro deixe-me apresentar o contexto

histórico.

Os gregos estavam no século V a.C. numa intensa atividade mercantil. Dada a

localização privilegiada da Grécia, que se encontra muito próxima da África e da Ásia, as

constantes viagens que o povo grego estavam realizando com fins comerciais acabaram por

tornar algumas das cidades gregas profundamente cosmopolitas, com a passagem por elas de

pessoas de todas as partes, carregando culturas bastante distintas. Parte fundamental das

mudanças que ocorrem com os gregos se deve a essa entrada de novas culturas no ambiente da

Grécia.

Outra importante mudança que também toma lugar no século V a.C. foi a mudança da

reflexão política1. O maior fruto dessa reflexão foi o surgimento da democracia. A Demos

Cracia, ou o poder do povo, surge como uma novíssima opção política que vai ser empregada

em Atenas com sucesso. Parte da origem da Filosofia se deve a um novo modo de se pensar a

organização da cidade, onde sai um poder central e entra em cena a grande figura: o debate. A

discussão de todos os aspectos da vida da cidade passou a ser a agenda em Atenas. Todos os

cidadãos (que não eram todos os atenienses) tomaram a responsabilidade de governar e não de

serem governados. O poder emanaria das discussões públicas e não de deliberações unilaterais.

Dada essa nova ordem política (democracia) e cultural (oriunda as viagens) outra nova

mudança acometeu os gregos, que foi uma nova forma de educar os cidadãos. A educação

clássica dos gregos era basicamente uma educação provinda da “religião” grega, mais

especificamente dos poetas gregos, sendo os grandes, Homero e Hesíodo. As obras destes dois

grandes poetas serviam para os gregos como referencia ética, epistêmica, estética e ontológica.

A educação do homem grego, no sentido de “formação” (Paidéia) do ser humano, era toda ela

1 A palavra política é derivada do termo “polis” que significa “cidade” ou “sociedade”. Assim, a “reflexão política” é uma reflexão sobre a cidade.

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oriunda da poesia/mitologia. Mas os tempos eram outros. A antiga educação poético-mitológica

foi aos poucos se esgotando e cada vez mais era necessária pensar um novo modo de educar o

novo homem grego. Mas é claro que a saída de cena da educação clássica não ocorreu

subitamente. Todos os grandes filósofos continuaram a serem educados de forma clássica e

principalmente a citar como fonte de saber a poesia/mitologia. Sócrates e Platão são exemplos

claros onde a poesia/mitologia ainda estava profundamente arraigada. Foi talvez apenas em

Aristóteles, que a educação clássica teve seu poder muito diminuído.

Para participar do processo educativo deste novo homem grego que surgiu uma nova

forma de educação, através do logos. “Logos” é uma palavra com uma quantidade enorme de

significados, mas entre eles temos razão, palavra, discurso, etc. Por que o logos aparece como

nova fonte de educação? Por uma razão simples: o novo homem grego democrático deveria ter

como perícia saber vencer um debate público.

Houve duas correntes, muito próximas, que acreditavam nesse debate racional como

fonte de educação, a saber: os sofistas e os filósofos. Acredito que é um erro tomar essas como

duas “escolas” muito diferentes, que teriam teses muito diferentes. A questão é muito mais

complexa. Na verdade, os filósofos e sofistas eram pessoas que acreditavam que o saber deveria

provir de um debate através da razão e não através da força (física ou cultural). Para ambos o

saber era essencialmente racional. O que os diferencia é o resultado desse debate racional. Para

os sofistas não havia uma única verdade, onde para eles a verdade não era um conceito absoluto

que deveria emanar da natureza, eles acreditavam que a verdade era uma questão do contexto,

da forma, e da capacidade de argumentação. Não há para eles uma sentença ou crença

essencialmente verdadeira; a verdade irá aparecer na força do discurso e na capacidade de

convencimento do outro. Por isto, os sofistas se tornaram os grandes mestres da Retórica e do

discurso. De outro lado, os filósofos, acreditavam que o debate racional levaria à verdade de

uma sentença, crença ou idéia. Para eles havia uma verdade essencial que só poderia ser

alcançada através da razão. A verdade de uma idéia não era uma questão de força

argumentativa, mas sim da capacidade dos interlocutores desvelarem o que há na natureza de

verdadeiro. Há outras diferenças entre os filósofos e os sofistas, mas aqui estou interessado na

semelhança, ela é mais interessante. Para ambos, é apenas através da razão que as coisas são

decididas. Não há nenhum acesso superior a verdade do que através da razão. É com essa idéia

básica que o novo homem grego vai ser educado.

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Primeira Parte: Noções de Lógica 1. Uma breve história da lógica

Se nós estamos sem fazer nada em uma tarde fria de agosto e decidimos fazer um bolo

de chocolate sabemos que precisamos de bons ingredientes, e de uma forma. Nada mais óbvio

para qualquer pessoa de que existem duas metades em qualquer situação, uma teórica que irá

cuidar da forma na qual iremos desempenhar a atividade, e uma prática que irá se debruçar no

conteúdo daquilo que fazemos. Para fazer o bolo se faz necessário a sua fôrma e os ingredientes

adequados. Se nós ligarmos a forma (fôrma de bolo) ao conteúdo (ingredientes de boa

qualidade) iremos fazer o bolo com precisão. Na Filosofia ocorre algo de semelhante, trata-se de

unir conceitos através de uma fôrma adequada. Assim como ao fazer um bolo desfrutamos de

várias fôrmas que concederão ao bolo um aspecto que irá variar de acordo com a fôrma, na

Filosofia existem várias fôrmas, e uma delas é a lógica. A lógica é a tentativa de dar uma forma

correta aos conceitos, mas assim como no fazer do bolo não é a fôrma que dirá se os

ingredientes são bons ou ruins, a lógica não atesta a veracidade dos conceitos, mas é apenas a

maneira pela qual alguns filósofos dão forma às suas teorias. Nesse sentido, alguns filósofos

usam a fôrma da lógica para formar suas teorias. A lógica, por exemplo, pode ser a forma do

conteúdo provindo da experiência sensória: a lógica não será capaz de dizer se a experiência

sensória é ou não adequada, ou seja, verdadeira ou falsa, mas ela será capaz de organizar a

informação que provêm da experiência. Assim como bolos são feitos com a união de uma fôrma

e um conteúdo, a Filosofia também o é, pelo menos uma parte dela2.

O iniciador da lógica, pelo menos enquanto sistematizador, é o filosofo grego

Aristóteles. Aristóteles propôs um certo sistema no qual poderíamos manusear o conteúdo que

possuímos (seja ele qual for) adequando-o à lógica, a qual seria sempre formal e não seria ligada

ao conteúdo, vejamos como isto se procede: primeiro, sabemos perfeitamente que humanos são

seres mortais, segundo, sabemos também que Miguel é um ser humano, e logo, em terceiro

sabemos que Miguel é Mortal; seguindo a lógica aristotélica temos primeiro, que S é P, ou seja,

um ser humano (S) é mortal (P), em segundo temos que M é S, ou seja, Miguel (M) é ser

humano (S); logo sabemos que M é P, ou seja, Miguel (M) é mortal (P). Toda essa operação é

função da lógica fazer: organizar a informação da primeira e da segunda etapa em uma terceira

que é a união das duas anteriores: é assim que no terceiro momento temos o bolo pronto. A

lógica Aristotélica tem vários princípios fundamentais que permitem a regulação das teses e das

proposições, e por isso ela foi bem sucedida atravessando dois milênios sem maiores revisões.

2 É preciso compreender que existem outros caminhos filosóficos perfeitamente válidos que excluem a lógica do rol de “coisas importantes da filosofia”. Não é pela exclusão da lógica ou pela sua inclusão que as teses filosóficas são melhores ou piores. A utilização da lógica é apenas uma das várias formas de fazer filosofia.

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Contudo, em meados do século 19 um outro filósofo chamado Gotlob Frege fez uma profunda

revolução na lógica mostrando diversas limitações da lógica Aristotélica. Frege construiu uma

nova lógica proposicional (que cuida das proposições da linguagem) que se fixa em dois

conceitos básicos: Sentido (Sinn) e Referência (Bedeuten). Um exemplo simples para que você

compreenda a tese de Frege é o exemplo do planeta Vênus citado pelo próprio Frege:

indubitavelmente você já ouviu falar na estrela da manhã e na estrela da tarde, estas duas

“estrelas” aparecem no horizonte na manhã e no crepúsculo, contudo, estas duas denominações,

estrela da manhã e estrela da tarde, são apenas dois sentidos de uma referência apenas: o planeta

Vênus. Dessa maneira Frege consegue mostrar inconsistências na lógica Aristotélica e esta

lógica é abandonada. Depois dos trabalhos de Frege a lógica tornou-se um ramo da Filosofia

que assim como a própria Filosofia, é alvo constante de alterações e de propostas totalmente

novas e ousadas. Destacam-se depois de Frege pelo menos dois filósofos, (isto já no século 20),

são eles Russell e Wittgenstein. A mudança operada principalmente depois de Wittgenstein na

Filosofia da lógica é retumbante e por isso, se Aristóteles é o pai da lógica e Frege o revisador,

Wittgenstein é o filho mais bem sucedido.

Hoje a lógica é adotada por uma parte razoável dos filósofos como a fôrma na qual seus

argumentos devem se configurar (este filósofos se concentram principalmente na tradição de

língua Inglesa), e é adotada em várias de suas acepções sendo que a principal ainda é uma

derivada das anotações de Wittgenstein. Outras lógicas são a lógica Fuzzy, a Lógica

paraconsistente (desenvolvida pelo brasileiro Newton da Costa), e a lógica de diversos valores

de verdade, que são também utilizadas na Filosofia, contudo com uma penetração bastante

inferior a lógica derivada de Frege.

No fim, a lógica é um guia para construirmos bem nossos argumentos assim como o

confeiteiro utiliza-se de uma fôrma bem untada para fazer o seu bolo. Contudo, se a forma não

for boa, mesmo que utilizemos os melhores ingredientes o bolo saíra torto, mas se a forma for

perfeita e os ingredientes ruins, em aparência, o bolo será excelente: aí se encontra a limitação

da lógica, ela não é capaz de verificar quais são os argumentos bons ou os argumentos ruins,

mas apenas os sistematiza. A lógica é uma boa ferramenta para a Filosofia, mas sem o material

adequado a lógica não poderá fazer nada.

2. Argumentação e vida cotidiana3

Nas mais diversas situações nas quais temos a intenção de convencer alguém,

utilizamos a argumentação. Esta se mostra como uma ferramenta capaz de nos levar a vitórias,

desde que usada corretamente ou a fracassos retumbantes se utilizada sem o cuidado e a

habilidade necessária. 3 A partir deste ponto me baseie no livro do professor titular da UFMG Paulo Margutti Pinto intitulado de “Introdução à Lógica Simbólica” publicado pela editora da UFMG em 2001.

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Em um texto acadêmico, o qual devemos convencer o nosso professor, ou em uma

conversa informal sobre times de futebol, na qual tentamos convencer um torcedor de um time

contrário ao nosso, ou ainda em uma prova de vestibular, usamos de argumentação. Até mesmo

agora, eu tento através deste texto, que não deixa de ser argumentação, convencer meus leitores.

A vida social é, portanto permeada de argumentação. Quando por exemplo Alfredo quer

convencer Mônica a se casar com ele, o que ele faz é argumentar com ela, indicando seus

pontos positivos e esquecendo seus pontos negativos. Como Alfredo é um excelente orador, ele

acaba por convencer a pobre da Mônica, e ele o faz apenas com a sua capacidade de

argumentar. Quantas vezes já vimos alguém ganhar uma discussão apenas por que é um

excelente debatedor?

3. O que é um argumento

Observe a seguinte construção:

Seres humanos possuem coração.

Ora,bebês são seres humanos.

Logo, bebês possuem coração.

Tal construção lingüística pode ser caracterizada como um argumento. Vejamos sua estrutura: a

primeira e a segunda frase são duas teses, chamadas premissas, das quais a terceira frase deriva

como sua conclusão. Podemos então, dizer que um argumento é a reunião de teses com o intuito

da geração de uma conclusão.

4. Tipos de argumentos Existem basicamente dois tipos de argumentos: aqueles que visam uma coerência

formal, a saber, argumentos demonstrativos, já que visam demonstrar através de premissas uma

conclusão válida; e aqueles que visam uma adesão emotiva do interlocutor, são estes os

argumentos persuasivos, pois visam fazer com que o interlocutor adira a tese apenas pela sua

aparência. Os argumentos demonstrativos são estudados pela Lógica Formal, e os argumentos

persuasivos são estudados pela Retórica.

Um argumento demonstrativo pode ser exemplificado da seguinte forma:

Todo ser humano é mortal

Ora,Luiza é um ser humano

Logo, Luiza é mortal

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Neste tipo de argumento o que importa é que a ligação entre as duas premissas (as duas

primeiras frases) seja efetuada corretamente. Em termos lógicos poderíamos dizer que este

argumento visa uma validade proposicional.

O argumento persuasivo pode ser exemplificado assim:

Todo aquele que discorda do governo militar é subversivo

Ora, Todo subversivo deve ser torturado

Logo, aquele que discorda do governo militar deve ser torturado

Aqui, estando ou não correta a ligação entre as duas premissas, o que importa é que o

interlocutor seja convencido, ou nesse caso intimidado a não discordar do governo.

Tendo conhecido estes dois tipos de argumentos, podemos agora indicar suas duas

modalidades: indução e dedução.

Dedução

Dedução é o tipo de argumento que vai de uma proposição que abarca todo um conjunto

de coisas (todas as mesas, todas as pessoas, todas as estrelas) para uma proposição mais restrita

(as mesas desta sala, as pessoas desta sala, as estrelas da via Láctea). Vejamos um exemplo:

Todo ser humano tem coração ← 1ª Premissa

Ora, Bebês são seres humanos ← 2ª Premissa

Logo, Bebês possuem coração ← Conclusão

A primeira premissa é geral, universal, já que dá conta de todos os seres humanos existentes no

universo. A segunda premissa, mas restrita, não se refere a todos os seres humanos, mas uma

classe destes seres humanos, os bebês. A conclusão segue a segunda premissa e é mais restrita

(repare ainda que a conclusão de alguma maneira já se encontrava na primeira premissa). Um

aspecto fundamental de todo argumento dedutivo é que ele, desde que suas premissas sejam

corretamente articuladas, é sempre um argumento válido.

Indução

Indução é o tipo de argumento que vai de uma proposição particular (esta casa, este

carro, este computador) para uma proposição universal (todas as casas, todos os carros, todos os

computadores). Observe o exemplo:

Belo Horizonte é uma cidade perigosa ← 1ª Premissa

São Paulo é uma cidade perigosa ← 2ª Premissa

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Rio de Janeiro é uma cidade perigosa ← 3ª Premissa

Ora, São Paulo, Rio de janeiro e Belo Horizonte são capitais brasileiras ← 4ª Premissa

Logo, todas as capitais brasileiras são perigosa ← Conclusão

As três premissas acima são particulares, já que falam de fatos particulares (essa ou

aquela capital). A conclusão é ao contrário universal, já que fala de todas as capitais brasileiras.

Um fato fundamental do argumento indutivo é que ele pode se mostrar errado, já que se

constatarmos que uma capital brasileira é tranqüila a conclusão estará errada. Sendo assim, o

argumento indutivo, ao contrário do argumento dedutivo, mesmo que tenha uma correta ligação

entre as premissas, pode estar errado. Um dos filósofos que chamou mais contundentemente

atenção a esta limitação da indução foi o escocês David Hume. Sua tese indica que a nossa vida

é conduzida pela indução, como quando dizemos que se a água mata minha sede hoje ela matará

sempre, mesmo se termos tomado toda a água do mundo. Como a ciência deverá se portar

diante desta limitação da indução? (Veja acima como Popper abandona a indução pela idéia de

“falsificação”).

5. Análise do Argumento Demonstrativo Todo argumento possui três partes: a primeira é chamada de antecedente, nela encontra-

se a articulação das premissas, e a representação dessa articulação se dá aqui pelo termo “Ora”.

A inferência é a segunda parte do argumento, é ela que faz a passagem das premissas para a

conclusão; a inferência tem o termo “Logo” como representação. A terceira parte, o

conseqüente é a conclusão, a qual representa a relação entre as premissas. Veja o exemplo:

← Antecedente

↓ ← Inferência

← Conseqüente

6. Verdade e Validade

O que é logicamente válido é verdadeiro? Observe o seguinte argumento:

Seres humanos têm um sistema nervoso central Ora, Anice é um ser humano

Logo, Anice tem um sistema nervoso central

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Todo mamífero é ser humano

Ora,Todo cachorro é mamífero

Logo, Todo cachorro é um ser humano.

Segundo as regras básicas de silogismos lógicos (regras estas que não iremos estudar

aqui) este argumento é perfeitamente válido, ou seja, ele obedece todas as regras lógicas de

formulação de argumentos, mas esse não é um argumento verdadeiro, já que é por demais

evidente que cachorros não são seres humanos. O que é válido não é necessariamente

verdadeiro, já que a validade tem o seu foco no interior do argumento, e se ele obedeceu às

regras lógicas de inferências, ao passo que a verdade não apenas tem o foco no interior do

argumento, mas no argumento tomado como um todo.

Qual o problema então do argumento acima, já que ele obedece às leis de inferência? O

argumento acima tem o antecedente falso. Veja:

← Antecedente Falso (já que nem todos os mamíferos são seres humanos)

↓ ← Inferência Válida

← Conseqüente Falso

Em suma, mesmo se o antecedente e a conseqüência são falsos, o argumento pode ser

argumento válido, isto é, se validade for entendida como explicamos acima, a saber, como a

correta utilização das regas inferenciais.

Todo mamífero é ser humano Ora, Todo cachorro é mamífero

Logo, Todo cachorro é um ser humano.

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Introdução aos Temas

Antropologia Filosófica: Concepções do ser Humano

A pergunta é direta: o que o ser humano é? Deixe-me trazer essa questão para mais

perto de você: quem é você? Certamente você faz parte de uma coletividade, digamos,

biológica, social e cultural. Essa coletividade é representada pela idéia de que somos seres

humanos, distintos de carros, gatos e sorvetes. Unimos a coletividade numa única idéia, que é o

fato de sermos humanos. Mas exatamente, o que é um ser humano?

“O que é o ser humano?” é uma pergunta que deve ser respondida pelo o que de

biológico temos? Poderia ser desta forma: ser humano é aquele que tem tal e tal composição

biológica? Sim, essa seria uma resposta possível, mas será a melhor? Há vários problemas em

dizer o que é o ser humano referindo apenas as suas características físicas, problemas tais como:

a) alguém em coma, ou que perdeu totalmente sua capacidade cognitiva é um ser humano? b) a

junção entre um espermatozóide e um óvulo é um ser humano? c) um computador que pense

como nós pensamos será um ser humano? Definir exatamente o que é ser humano é responder

essas perguntas, é demarcar o que nós somos, e mais, é dizer quem você não é. Você mesmo,

que agora está lendo este texto, é a pergunta. Pare um segundo de ler (não que isso seja difícil) e

pense: o que eu sou?

Você poderia dizer: o ser humano é um animal que vive em sociedade, ou ainda, que

desenvolveu uma cultura. Ser humano é participar de alguma cultura. Essa poderia ser uma boa

definição, mas ela mesma traz muitos problemas, vejamos: a) se alguém não tivesse contato

com nenhuma cultura, como um bebê que é criado por algum animal, é um ser humano? b) se eu

participar de uma cultura ou sociedade e decidir deixar essa sociedade, eu deixo de ser humano?

c) se existem várias culturas/sociedades, existem vários tipos de ser humano, sendo assim, qual

é a diferença de alguém que vive na nossa cultura e um índio, ou um asiático? Será que há

vários tipos de ser humano ou um só?

Responder essa pergunta é investigar o que há de mais básico em nós, é nomear o que

em nós há de diferente de tudo. Definir é encontrar o que há de igual na diferença, é encontrar o

que em todos nós há de humano, é como Platão diria, encontrar o mesmo no outro. Pensar no

problema do que é o “humano” é uma atividade multidisciplinar, que deve perpassar vários

modos de se pensar o humano. Para tal tarefa temos a antropologia. Etimologicamente

“antropologia” significa estudo (logia) do humano (antrophos). Há dois modos de

desenvolvermos uma “antropologia”, a saber: a) através de uma investigação empírica, e b)

através de investigação geral e não empírica. a) A antropologia empírica é aquela realizada por

antropólogos de formação acadêmica que decidem passar a vida estudando diferentes culturas

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tentando observar nelas suas singularidades e o que nelas pode ser comparado a outras culturas.

É um tipo de antropologia que quer responder o que é o ser humano ou “seres humanos” pela

observação das sociedades. b) A antropologia, quando não empírica, mas geral, é feita em por

filósofos e é chamada de “antropologia filosófica”. É um tipo de antropologia, que vista do

ponto filosófico quer investigar a natureza do humano através do estudo da natureza mesma do

humano. Ao dizer que há dois tipos de “antropologia” não quero dizer que uma é melhor do que

a outra. Na verdade, os dois tipos de antropologia se complementam. Mas, irei aqui estudar

apenas como a posição filosófica é proposta.

Para tal, investigarei algumas das mais relevantes posições, começando pela concepção

de ser humano desenvolvida na Grécia Antiga (séculos V a.C. até III a.C.), caracterizando

principalmente a posição de Platão e Aristóteles. Depois discutirei a concepção de ser humano

que é desenvolvida no Renascimento (séculos XII-XV d.c). Em seguida, irei relatar como o ser

humano é pensado durante o que é chamado de “Filosofia Moderna”, que perpassa os séculos

XVI a XVIII, focando na relação entre o humano e a natureza. Finalmente, discutirei duas

vertentes da concepção do humano propostas hoje (do século XIX até hoje), levantando o

movimento existencialista e a relação do humano com a ciência.

O problema filosófico aqui é um só: o que é o ser humano ou o que é você. Responder

isso é responder uma das mensagens que representa nossa cultura: “conheça a ti mesmo”.

Ética e Política

Somos seres que decidimos acerca de nossas ações. Estas ações, apesar de sempre

serem colocadas por indivíduos, elas acabam por afetar um conjunto de pessoas. Sendo assim,

nossas ações livres afetam os outros. Dado este ponto, temos a questão: como devemos agir?

Essa é por excelência a questão central da Ética4.

Ética é uma disciplina que estuda e fornece as normas de ações. Ela não é uma ciência

descritiva, ou seja, uma ciência que apenas relata como agimos, mas ao contrário ela é uma

ciência normativa, a saber, uma ciência que diz como devemos agir. As normas propostas por

esta ciência Ética devem ser de caráter universal: as normas devem valer para todos, mesmo que

sejam normas flexíveis. Nesta disciplina não pode haver lugar para deliberações unilaterais,

4 Há hoje uma diferença entre “Ética” e “Moral”. Mas essa é uma distinção mais recente. Vejamos a história das palavras: “Ética” vem do grego “Ethos” que quer dizer “costume”. Quando a cultura grega ruma para Roma, ela é traduzida para o latim. O que era em grego “Ethos” é traduzido em latim para “Moralis”, que também significa costume. Assim, pelo menos inicialmente “ética” e “moral” são a mesma palavra em línguas diferentes. Mas com o passar do tempo houve uma diferenciação. Entende-se por “Ética” leis universais que decidem a ação acertada em todos os casos. Entende-se por “Moral” leis locais, como leis de um país ou cultura, que decidam naquela cultura o que é certo e errado.

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onde eu ajo conforme apenas meus próprios interesses. Dessa forma caracterizamos a Ética:

uma ciência que fornece normas gerais de conduta.

Para entender melhor o que esta disciplina é, devemos voltar para o surgimento da

Ética, vamos aos gregos. A palavra “ética” é derivada da palavra “ethos” que em grego significa

dentre outras coisas “costume”. O costume é o que nos une: comemos de acordo com o

costume, dormimos, conversamos, falamos, casamos, trabalhamos e etc., de acordo com o

costume onde fomos criados. Esses “costumes” são na verdade “regras de conduta” que nos

ensinam como deveríamos conduzir nossa vida. A partir desta concepção inicial de “ética”

como “costume”, filósofos como Sócrates, Platão e principalmente Aristóteles, pensaram que

deveria haver uma “ciência do costume”: temos assim a Ética. Essa ciência deveria escapar de

uma concepção do costume como convenção, onde a Ética deveria estabelecer normas racionais

para a ação.

Dessa disciplina, muitas questões surgem naturalmente:

1. Que normas de ação podem realmente valer para todos? O que poderia ser uma lei ética

universal?

2. Como exatamente nossas ações influenciam a vida dos outros?

3. Somos realmente livres para agir?

Cada formulação Ética que teremos na história irá trabalhar cada uma dessas três questões, em

menor ou maior grau. Mas certamente, as grandes teses Éticas certamente irão propor respostas

a elas.

Ao mesmo tempo em que falamos de uma “norma para a ação”, temos que considerar

que essas normas só podem existir com um conjunto de pessoas. Só faz sentido falar de

“costume” ou “norma de ação” se pensarmos essas coisas num contexto onde haja pelo menos

duas pessoas. Um “costume” de uma só pessoa não é costume, é peculiaridade. É nessa relação

entre indivíduos que chegamos a outra disciplina fundamental: a Política.

Quando nos consideramos como seres que agem no mundo, de acordo com certas

normas racionais, pensamos em como nossas ações influenciam os outros. Esse é o primeiro

passo da política. Política é a ciência que cuida de como uma organização de pessoas deve ser

mantida. Assim, a questão não é mais saber mais como indivíduos devem agir perante o todo,

mas como o todo deve organizar os indivíduos.

Novamente, voltemos as origens, agora, da Política. Essa disciplina nasce também,

enquanto ciência, na Grécia. A palavra “Política” vem da palavra “pólis” que significa “cidade”

ou “sociedade”. Essa ciência foi proposta inicialmente com pelos menos dois objetivos: (1)

observar quais são as formas pela qual uma sociedade é organizada e (2) como os estados

deveriam ser organizados. Falemos um pouco destas duas questões.

Page 15: Apostila Filosofia Vestibular

15

A primeira questão é: quais as formas de organização de uma sociedade? Para saber isso

é preciso analisar que tipos de governos existem. Há muitos tipos possíveis de governos: da

democracia à tirania, da oligarquia à aristocracia, e mais recentemente da democracia

representativa ao parlamentarismo. Dados esses governos a Política irá verificar como cada um

pode ser capaz de manter e organizar o estado. Então temos questões como: qual estado pode se

conservar mais? Qual estado pode prover as necessidades dos cidadãos de maneira mais efetiva?

Uma análise de quais tipos de estado existe irá implicar necessariamente numa avaliação destes

estados. Temos assim, a segunda questão: como os estados deveriam ser organizados.

Essa segunda questão pode ser trabalhada de duas formas: uma utópica e uma possível.

A utopia política, pelo menos originalmente, significa a elaboração de um sistema político que

implique um tipo de organização ideal do estado e da sociedade. Na utopia o estado é o melhor

possível, ainda que não seja possível. Essa forma de pensar não é ruim, ou mesmo

desnecessária, na verdade ela é fundamental. A elaboração de um estado ideal nos ajuda a

compreender o que o estado deve ter e deve poder fazer, essa elaboração funciona como um

mirante que ajudaria a melhora do estado presente.

A segunda forma de se pensar a organização política é uma elaboração da forma do

estado que considere as contingências, as variações e as peculiaridades de cada lugar onde o

estado é pensado. Se pensarmos a formação de um estado num país onde é quase um costume a

corrupção das pessoas, pouco irá adiantar a proposta de um estado ideal, deveremos sim, pensar

um estado que possa cumprir funções mínimas de modo mais eficiente. Essa elaboração é mais

provável de se estabelecer no estado, mas ao mesmo tempo, é falha. Muito provavelmente,

muito falha. Mas a questão, principalmente hoje, não é tanto a formulação de um estado

perfeito, mas apenas um que funcione adequadamente.

De todo modo, podemos resumir a política como uma ciência que investiga como o

estado é e como ele deveria ser. Essa ciência é unida a Ética, na medida em que para

estabelecermos o funcionamento do estado devemos ter em mente como as pessoas agem nele.

Vamos a partir de agora verificar modelos Éticos e Políticos.

Page 16: Apostila Filosofia Vestibular

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Temas da Filosofia Antiga

Ética e Política na Filosofia Antiga

A Ética e Política enquanto ciências são invenções gregas. Nesta primeira parte da

investigação acerca destes dois assuntos iremos focar primeiramente a relação entre os Sofistas

e Sócrates. Nessa relação o objetivo central será a consideração do que ambos entendem como

“virtude” e a relação desta com a ação.

Com Aristóteles o tema da virtude se mantém. Além dele, iremos investigar um dos

grandes tópicos ético-políticos: a felicidade.

Ética Antiga: Prazer e Virtude: Sócrates e os Sofistas

O debate ético grego vai perguntar: como podemos agir melhor? Para essa questão, a

resposta será a de que a ação virtuosa deve vir primeiro. De um modo bastante geral, agir

virtuosamente é agir eticamente, de acordo com normas de conduta pré-estabelecidas, pela

sociedade ou pela razão. Mas, saindo de um modo geral, para um particular, chegamos às raízes

da Ética Grega.

O debate ético deste período discute principalmente como podemos praticar a melhor

ação possível. Para tal, a discussão irá se centrar no conceito de “virtude” – em grego “aretè”,

que significa também “excelência”. A virtude é a melhor ação, a mais perfeita e adequada ao

momento, realizada também sempre pelos melhores. A ética grega vai desta forma se basear

fundamentalmente na busca da ação excelente, ou seja, da ação virtuosa. Mas a grande questão

será determinar realmente o que conta como uma ação virtuosa. Vamos ver como Sócrates e os

Sofistas conduzem este debate

Comecemos com a posição Sofista. Este, como já dissemos acima, acredita que não há

verdade fora do contexto. Essa afirmação vai gerar amplas implicações na sua tese ética,

vejamos. Se acreditarmos que tudo é contextual, a determinação de se uma ação é ética ou não

vai depender do contexto no qual ela está inserida. O ponto aqui é que para saber se uma ação é

a melhor ou não, deve-se analisar o contexto onde ela é praticada; assim podemos pensar que

num contexto específico, podemos até matar uma pessoa, e mesmo assim, estaríamos realizando

uma “ação excelente” ou “virtuosa”. Pense, por exemplo, como alguns pensariam que matar um

grande assassino seria uma ação boa.

Quando a ação é tomada deste ponto de vista, não há leis éticas supremas que

ultrapassem os contextos. Mas assim, como determinar, contextualmente o que é ou não ético?

Tudo dependerá de uma avaliação do contexto e como este contexto pode ser adequado ou não.

Para tal o Sofista frequentemente “re-organizava” o contexto de modo a parecer que a ação

Page 17: Apostila Filosofia Vestibular

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perpetrada seria a mais adequada. Fazer isso não é uma tarefa difícil, nós mesmos

frequentemente usamos nossa própria versão dos fatos para afirmar nossa razão.

Chegamos aqui ao ponto decisivo: uma ação virtuosa será aquela que for capaz de se

afirmar como correta, onde o que conta é a capacidade de gerar no outro o convencimento. Dito

de um modo mais direto: eu ajo virtuosamente quando sou capaz de convencer você de que eu

agi da melhor forma possível. Nesse esquadro, toda a ação virtuosa será vista como aquela que

convence o outro que é uma ação virtuosa, assim, o agente poderá afirmar sua posição correta,

sua habilidade em agir bem, sua adequação. Esse convencimento de que a ação é virtuosa gera

o prazer para aquele que convenceu, o prazer de ter agido bem. Há assim, uma ligação estreita

entre o prazer e a virtude: toda vez que há uma ação virtuosa há o prazer de ter agido assim.

Agir virtuosamente aos olhos dos outros (diga-se: convencê-los disto) é o que nos traz prazer.

Temos então uma formula sofistica, que irá se repetir no futuro: à ação virtuosa sempre terá

acompanhada o prazer de agir bem. Nesse sentido é um prazer dado no contexto.

Sócrates representa outra posição acerca da determinação da virtude. Para Sócrates não

há uma “verdade contextual” ou uma “lei contextual”, para ele a verdade e as leis são imutáveis

e necessárias. Essa tese metafísica irá implicar diretamente na sua ética. A ética será baseada em

leis necessárias, ou seja, leis que ultrapassem os contextos possíveis. A ação virtuosa, ou seja, a

melhor ação possível será determinada através da adequação dela com uma lei universal. Um

exemplo disto é: digamos que temos uma lei universal que diz “não é permitido matar”, dada

essa lei, as ações que a transgredirem será anti-ética ou não virtuosa, independente do contexto

onde ela ocorre. A ética será um empreendimento para descobrir as leis corretas da ação

humana. E é aqui que temos a maior dificuldade. Como descobrir tais leis?

Para Sócrates não é necessário investigar os contextos onde as ações se dão. Isso é

desnecessário, devemos sim, buscar o que funda as ações, o que devemos fazer independente da

situação. Essa será uma busca árdua, mas que revelará a conduta virtuosa suprema. A única ação

virtuosa possível será aquela de acordo com a lei. Retomando o exemplo acima, se

descobríssemos que “não é permitido matar” é uma lei universal, nunca poderíamos matar,

mesmo em um caso onde apenas ao matar uma pessoa podemos sobreviver.

Chegamos então ao prazer. Nessa estrutura ética, uma ação ética pode levar certamente

ao desprazer, como quando para agirmos virtuosamente sacrificamos nossa própria vida (não há

desprazer maior que este!). Sócrates mesmo, num tribunal, sacrifica sua vida pela verdade,

aceitando a pena de morte, mesmo que ele pudesse facilmente convencer os juízes de que ele

estava certo. A fórmula socrática, então separa o prazer e a ação virtuosa. Isso não quer dizer

que não exista prazer na virtude, mas somente que na determinação da virtude não entra a

consideração do prazer.

Page 18: Apostila Filosofia Vestibular

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Antropologia Platônica: Alma e Corpo – Razão e Desejo

Como muitas de suas teses, a concepção de ser humano desenvolvida por Platão teve

longa vida após sua formulação. Mais do que isso, sua idéia do que é o ser humano, acabou por

representar uma visão um tanto comum acerca do que nós somos. Sua teoria acerca do humano

deriva diretamente de uma concepção ontológica da realidade. Dito brevemente, segundo Platão

há dois níveis distintos de nossa realidade, um nível necessário, eterno e imutável, que é

representado pelas idéias, e um nível contingente, temporal e mutável, que é representado pela

realidade visível. Destes dois níveis, o que subjaz as coisas é o nível necessário, que não muda.

Podemos pensar um exemplo aqui que está de acordo com o que você está estudando agora: a

física estuda leis que são imutáveis e necessárias, ela estuda o que é necessário, o que tem de

ocorrer; para seus estudos ela usa pedras, carros, planetas e etc., onde o objeto e os casos

variam, mas a lei não. O que subjaz os objetos nesse sentido é a lei física, e é a lei que em

última estância vai permanecer quando não mais houver objetos aos quais ela se referir.

Essa concepção da existência de uma dualidade no mundo é representada igualmente no

ser humano. Somos também uma parte imutável e necessária e uma parte mutável e contingente.

Nossa parte imutável é a alma e nossa parte mutável é o corpo. Deixe-me colocar o problema de

um ponto de vista mais particular: segundo esta tese, você que está lendo, tem uma alma que é

sua parte que nunca mudou, que permaneceu a mesma desde que você foi gerado; você também

tem uma parte mutável, que é seu corpo, onde quando você era criança, seu corpo era diferente

do atual, e vai ser mais diferente ainda daqui a cinqüenta anos. O que faz você ser você é aquilo

que não mudou: sua alma. É apenas através da alma, que é imutável que podemos conhecer

aquilo que é imutável, como por exemplo, as leis do mundo, tanto físico quanto ético. Assim,

para Platão quem deve governar não é o corpo, que está apegado ao que muda, mas sim a alma

que conhece aquilo que é verdadeiro e imutável.

Mas o corpo não é só uma “massa morta” guiada pela alma, as tentações do corpo são

duras. Aqui entra outra dualidade estabelecida no pensamento de Platão, a saber, a dualidade

entre Razão e Desejo. Somos também razão e desejo. A razão é a parte que está em conexão

com alma, ela é quem conhece a realidade ética, e é através da razão que sabemos o que em

nossas ações é correto e o que é incorreto. Já o desejo é a nossa parte impulsiva, que faz o que

faz não porque é necessariamente correto, mas porque é o que nosso corpo deseja. Nessa

imagem dual estabelecida por Platão, o desejo deve ser evitado, mas ele é parte de nós, é o que

nos coloca em movimento, mas assim como para que um objeto seja colocado em movimento

deve haver algo que o impulsione, mas para caminhar corretamente, deve haver algo que

domine o desejo, domine o impulso, e é tarefa da razão guiar nossos desejos. A parte corpórea

representada, pelo desejo não pode governar, mas deve ser governada. Deixe-me colocar um

exemplo simples: digamos que você está com alguns quilos a mais. De repente no meio de uma

Page 19: Apostila Filosofia Vestibular

19

aula de Filosofia você resolve comer um chocolate que sempre anda com você. O seu desejo é

comer todo o chocolate, e uma vez que você deixe suas ações serem guiadas pelo desejo, seu

peso vai galopar solto. Então pensemos como seria melhor: seu desejo assola você, mas quem o

governa é a razão. A razão o orienta para não comer todo o chocolate, mas apenas um pedaço, o

que não vai o levar ao aumento de peso, e ao mesmo tempo saciar seu desejo corretamente.

Resumindo, a posição platônica acerca do que é o ser humano é marcada por

dualidades. Uma delas diferencia corpo e alma, onde a alma é a parte que conhece a realidade

das coisas. Outra diferencia razão e desejo, onde a razão é quem deve guiar o desejo.

Ética Aristotélica: Virtude e Felicidade

As teses Aristotélicas irão versar sobre o mesmo tema que encontramos acima em

Sócrates e nos Sofistas: o debate entre a virtude e a felicidade. Estes dois conceitos vão se

entrelaçar na posição de Aristóteles de um modo perfeito.

Começamos, pois, por um ponto básico para Aristóteles. Sua ética começa quando ele

diz que “Somos animais políticos”; essa afirmação serve para mostrar que apenas somos

humanos enquanto vivemos em sociedade, na polis. Do mesmo modo que um passarinho canta

naturalmente, vivemos em sociedade naturalmente. Só nos realizamos vivendo em sociedade.

Mas não é apenas isso, ele diz algures, que também “Somos animais racionais”; do mesmo

modo que só somos humanos na cidade, essa tese diz que somos humanos apenas quando

usamos a razão. Reunindo as duas teses temos que: somos animais racionais que vivem em

sociedade. É só ao realizar essa “duas naturezas” que podemos ser feliz. Nesse sentido a

felicidade vem da realização da nossa natureza. Mas como essa natureza implica na ação

virtuosa?

Se somos naturalmente racionais, nossa ação só será adequada se for segundo os

ditames da razão. A razão deve julgar como devemos agir. Esse julgamento não será a partir de

uma lei geral, nem só do contexto. A tese de Aristóteles dirá que a ação será julgada através da

prudência ou da “justa medida”. Segundo ele, não pode haver uma ação ética que seja virtuosa

para todos; para que a ação seja considerada virtuosa devemos julgar prudentemente com a

razão o que é mais adequado. Por exemplo, para um guerreiro treinado é racionalmente

prudente, ou seja, virtuoso, quando ele enfrenta dez adversários de uma só vez, por outro lado,

se uma pessoa sem nenhum treinamento decidir enfrentar dez pessoa, ela não será prudente, e

por isso, não será virtuosa, por que enfrentar dez pessoas nessas condições é quase impossível.

A ação virtuosa será de acordo com a razão.

De acordo com este argumento, ação virtuosa será aquela ação “prudente”, de acordo

com a razão. Resumindo, uma ação virtuosa é aquela indicada pela razão. Voltemos a outra

idéia acima, reunindo duas pontas: se (1) só somos felizes ao realizar nossa natureza – política e

racional e (2) a ação virtuosa é aquela de acordo com a razão, logo temos que (3) para sermos

Page 20: Apostila Filosofia Vestibular

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felizes devemos praticar ações virtuosas. Aristóteles une assim, com maestria nossa natureza e

nossa prática virtuosa, chegando assim à felicidade.

Política Aristotélica: O ser humano é um animal político

Aristóteles é um dos filósofos mais importantes em toda a história da Filosofia. Suas

observações acerca da metafísica, ética/política e epistemologia/lógica marcam até hoje parte da

reflexão filosófica. A teoria aristotélica acerca do ser humano não é dualista como a de Platão.

Aristóteles vê as coisas segundo uma postura unitária. Segundo ele, somos alma e corpo, mas

uma não vive sem a outra, a alma só existe enquanto o corpo existir e o corpo só existe como

instanciação da alma. É uma relação recíproca de existência. Apesar deste ponto ser essencial

para Aristóteles, deixe-me concentrar em outra idéia sua.

Antes de pensar na diferença alma e corpo, Aristóteles vai dizer na Política que o ser

humano é um animal político. Vamos entender o significado desta frase. Segundo Aristóteles,

os seres humanos são animais como outros quaisquer, como o boi, o gato e o periquito. Mas,

assim como o periquito é um animal que nasceu para cantar, os seres humanos nasceram para

viver em sociedade, para viver na polis. “Polis” é o termo grego para “cidade”, assim o ser

humano é um ser político porque nasceu para viver na cidade. Nascemos para viver segundo

uma cultura, dentro de uma sociedade, seja ela qual for. Aristóteles vai mostrar que quem está

fora da cidade só pode ser duas coisas: ou um Deus ou uma besta. Um Deus porque os deuses

não estão submetidos às leis e aos deveres que uma sociedade imputa aos seus cidadãos, pelos

simples motivo dos deuses transcenderem tudo isto. Já aquele que está fora da cidade e não é

um Deus, será uma besta, (no sentido de ser um animal comum) porque elas não estão

submetidas às leis ou deveres próprios da cidade, já que elas não compreendem tal coisa, elas

não podem viver na cidade a não ser que domesticadas. Assim é apenas o ser humano que é um

animal político.

A visão de Aristóteles sobre o que o ser humano vai implicar na sua visão de como o ser

humano deve viver na polis. Segundo ele, cada um dos seres humanos deve ocupar um lugar

natural na sociedade, cada um fazendo aquilo que lhe deve caber. É apenas com cada um

cumprindo seu papel é que a cidade vai chegar ao seu fim último que é a felicidade. Uma cidade

assim funcionará como um corpo: cada um de nossos órgãos tem uma função específica, um

órgão não pode funcionar como outro, um coração deve funcionar apenas como coração;

quando todos os órgãos ocupam seu lugar devido, nosso corpo funcionará da melhor forma

possível. Assim numa cidade, deve haver motoristas, jornaleiros, médicos, professores,

bombeiros, etc., onde um deve confiar no outro para que todos possam realizar suas funções

bem, e é só quando confiamos nos outros e cumprimos nosso lugar natural na sociedade é que a

Page 21: Apostila Filosofia Vestibular

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sociedade vai funcionar bem. Somos, portanto, animais sociais que devem ocupar seu lugar

necessário na natureza.

A visão de Aristóteles, concebendo o humano como um animal político marcará toda a

reflexão sobre que nós somos. Segundo Aristóteles, nós apenas podemos viver em sociedade,

assim como um peixe só pode viver n’água; devemos buscar viver bem e no lugar que nos cabe

na cidade.

Teoria do Conhecimento Platônica - Conhecimento sensível e conhecimento

inteligível

Os primeiros movimentos na história da Filosofia deixam claro que as explicações a

serem dadas acerca da natureza, devem ser dadas usando a razão. Para tentar desvendar a

natureza da realidade, filósofos como Sócrates, Protágoras, Platão e mais tarde Aristóteles,

tentaram mostrar como o conhecimento é possível e como ele deve acontecer. Temos aqui o

surgimento da "Epistemologia" que significa Teoria do Conhecimento. Irei abaixo me focar na

que é provavelmente a primeira versão de Epistemologia, apresentada por Platão.

Platão estava diante de um grande problema: como podemos conhecer a natureza se ela

está aparentemente em constante mudança? Se tentamos explicar o que é um rio, logo este se

torna em um novo rio; se tentamos explicar o que é uma pessoa, logo essa pessoa muda. Se

observarmos a natureza veremos que não parece haver nada nela que permaneça a mesma.

Assim, se não temos um objeto fixo, não podemos alcançar uma definição correta. O problema

aqui é que uma definição ou um conceito deve poder fornecer uma unidade para as coisas, e é

essa unidade que nos dá o conhecimento. Se aparentemente não vemos essa unidade, então a

definição não é possível, logo o conhecimento não é possível. Esse problema precisava ser

resolvido, porque se não, nenhuma de nossas crenças poderia ser realmente verdadeira. Platão

tinha que mostrar que era possível estabelecer uma definição verdadeira sobre um objeto.

Para resolver esse problema, Platão mostra que o conhecimento não pode residir no

mundo empírico (ou sensível). Ele então indica que, apesar da mudança, há algo nas coisas que

permanece. Sem esse algo que “se mantém” as definições e os conceitos não seriam possíveis.

Este algo que permanece deve ser encontrado fora da experiência. Platão mostra que na verdade,

o que permanece nas coisas é uma idéia, um conceito, ou mais ainda, uma definição, coisas

estas que não mudam, mesmo que o objeto mude. Para sermos sempre seres humanos, devemos

sempre participar (fazer parte) do conceito ou da idéia de ser humano, mas para isso é preciso

existir uma idéia fixa do que é o ser humano. Para que um carro seja um carro, ele sempre deve

poder fazer parte da idéia ou do conceito de "ser um carro". Essa "definição", "conceito" ou

"idéia" é o que permanece em todas as mudanças. Mas não podemos conhecer essa idéia através

de uma experiência. Essa idéia só pode ser descoberta através de uma investigação racional.

Page 22: Apostila Filosofia Vestibular

22

Em termos técnicos, o que temos são dois tipos de conhecimento: um conhecimento

sensível, ou seja, um conhecimento que provém da experiência e da mudança e um

conhecimento inteligível, que vem da razão e do que permanece. A partir do conhecimento

empírico não podemos obter nenhuma crença realmente justificada, não temos realmente um

conhecimento (episteme), tudo o que temos é uma opinião (doxa) fugaz e momentânea. Já o

conhecimento inteligível reserva a real natureza das coisas, e somente no vislumbre daquelas

coisas que permanecem na mudança, é que podemos conhecer a realidade.

Essa tese platônica é altamente fundamental para toda a história do pensamento

ocidental e irá reaparecer novamente em muitos momentos.

Teoria do Conhecimento: Ceticismo e Dogmatismo

Depois de Platão e Aristóteles a Filosofia conseguiu perdurar porque foi preservada em

duas instituições, erguidas pelos dois filósofos, são as escolas: a Academia e o Liceu. No

período no qual essas escolas alcançam seu auge a democracia grega já tinha caído por terra e

neste momento a Grécia já fazia parte do império romano. Os romanos tinham como

particularidade cultural o fato de que ao conquistarem um povo eles não dizimavam sua cultura,

o que eles faziam era trazer essa cultura para dentro do Império. Assim a Filosofia espalhou pela

primeira vez além das suas fronteiras iniciais.

Neste novo contexto histórico, foi demandado à Filosofia uma nova tarefa: fazer com

que as observações filosóficas se tornassem uma ajuda para a vida, onde a Filosofia passaria a

construir teorias que melhorassem os cidadãos. Três grandes escolas surgiram para ajudar a vida

dos romanos, a saber, o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo. Estas três escolas filosóficas se

desenvolveram principalmente na Academia de Platão, sendo que a medida que um filósofo de

uma determinada corrente dominava a Academia, a Filosofia que ele defendia se tornava

predominante. Assim nasceu a primeira versão do ceticismo o "Ceticismo Acadêmico" (que se

chama assim porque nasceu na Acadêmica de Platão), que de modo geral, tinha como principal

meta retomar a posição de Sócrates, para então mostrar a falsidade da posição estóica que estava

vigorando na Academia de Platão.

O ceticismo acadêmico não durará muito tempo nesta forma, aos poucos o ceticismo

acadêmico irá se aproximar do estoicismo perdendo suas características originais, que aqui nos

são relevantes. Ele irá se fortalecer novamente apenas com Cícero (103-46 DC). Mas neste

período, outra escola cética irá começar a ganhar adeptos: o pirronismo. Se a figura de Sócrates

era a central para aqueles da academia cética, outro personagem muito parecido com Sócrates

irá ser o “herói” deste tipo de ceticismo pirrônico, ele será Pirro. Segundo o que sabemos, Pirro

foi contemporâneo de Sócrates e teria convivido com os sábios hindus, o que o fez propor uma

imagem diferente para o sábio e para o conhecimento. Segundo Pirro, o sábio não deveria ser

Page 23: Apostila Filosofia Vestibular

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aquele que propõe teses dogmáticas, mas sim aquele que alcança a tranqüilidade total da alma

por meio da repudia das teses contraditórias. Esta é a noção de ataraxia (tranqüilidade da alma).

Existem muitas histórias sobre Pirro que são reveladoras do que ele entendia do sábio, e a mais

interessante é aquela em que Pirro compara o sábio com um porquinho que durante uma

tormenta num navio não se preocupa com o que lhe vai acontecer, e continua assim a comer sua

comida.

O primeiro precursor do ceticismo pirrônico é um filósofo grego chamado Enesidemo.

Nós não temos muitas informações sobre ele, mas sabemos que ele foi um grande cético e que

teria vivido entre I AC e II DC.

Enesidemo que estava insatisfeito com uma crescente aproximação do ceticismo

acadêmico com o estoicismo irá rachar o ceticismo criando uma nova vertente, agora inspirada

em Pirro. Enesidemo estava mais interessado numa reflexão teórica do que uma prática, e suas

idéias foram para sistematizar um certo esquema a partir de onde os céticos poderiam começar

suas investigações.

Após as propostas de Enesidemo para o ceticismo, retomando a figura de Pirro, o

ceticismo Pirrônico irá se mostrar cada vez mais forte. Nossa principal fonte para o estudo do

pirronismo é Sexto Empírico. Dentre seus livros que chegaram a nós, o que mais se destaca

numa caracterização do ceticismo é o texto “Hipotiposes Pirrônicas”, que pode ser traduzido

como “Esboços do Pirronismo”. Dos capítulos I ao XXX deste livro, Sexto Empírico coloca

quais são as principais características da investigação cética; irei abaixo levantá-las. Mas antes

disto é importante deixar claro que mostrar quais são as propostas céticas ou qual é o “método”

cético não implica em dizer que o ceticismo tem propostas ou métodos. Ele só tem estes

aspectos enquanto uma descrição e não uma normatização da investigação.

Características do Ceticismo Pirrônico

Três tipos de investigação: O cético é aquele que não encontrou a verdade, e a

continua a buscando. Esta característica, antes de todas, define o pirrônico. A partir disto, Sexto

Empírico define três tipos de investigação: a cética, que não encontrou a verdade; a acadêmica,

que acredita que a verdade não é possível de ser alcançada; e o dogmatismo, que acredita ter

encontrado a verdade. Dessa forma, o cético não é aquele que não acredita em nada, mas

sim aquele que diz que não sabe nada. O grande ataque cético será àquelas posições que

afirmam alguma tese, ou que acreditam que possuem uma crença (dogma) verdadeira. Nesse

sentido, o dogmático, conforme entendido pelo cético, é aquele filósofo que acredita ter

alcançado a verdade, seja esse filósofo qual seja: desde Platão, passando por Aristóteles, até os

epicuristas ou estóicos. O ceticismo tentará atacar todas aquelas posições que se arrogam

detentoras de uma verdade. Ceticismo como uma habilidade: O ceticismo não é uma doutrina,

mas sim uma habilidade (HP I, 04). Isto indica que céticos não sustentam nenhuma tese, mas

são capazes de relacionar duas teses opostas e equivalentes, mostrando que as duas são

Page 24: Apostila Filosofia Vestibular

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insustentáveis. Ao dizer que o ceticismo é uma habilidade, a intenção de Sexto é não tornar o

ceticismo mais uma escola filosófica que defende dogmas, mesmo que sejam dogmas dos

métodos da investigação. Como os céticos não assumem nenhuma tese, nem uma que se refere a

como a investigação deve acontecer, o que Sexto faz é uma descrição de como os céticos têm

investigado. O “método” cético: Os céticos seguem o seguinte caminho: devido à

multiplicidade de teses ou fenômenos ficam perturbados (diaphonia), para decidir entre esta

multiplicidade de teses eles se colocam a investigar (zetesis), dado esta investigação encontram

duas (ou mais) teses equivalentes e opostas (eqüipolência) e desta equivalência suspendem o

juízo (epochè), e desta suspensão chegam como que fortuitamente a uma tranqüilidade

(ataraxia). Estes passos não são parte de um método, mas são momentos que tem ocorrido até o

momento na investigação, e por isto, não há uma conexão necessária entre nenhum destes

passos (HP I, 03-04). Essa investigação é constante e uma vez que o final não seja a suspensão,

mas alguma teoria, o cético deixará de ser cético. Ataraxia: O objetivo do ceticismo é alcançar

a ataraxia (HP I, 06). Essa noção da ataraxia como telos do cético é parte do que a Filosofia

deveria lidar na Filosofia helênica. Fenômeno: Um dos principais pontos do ceticismo sempre

foi dar conta da vida comum, uma vez que as teorias filosóficas estariam se mostrando

contraditórias. A solução dada por Enesidemo é a idéia de “fenômeno”, que em grego, é “aquilo

que aparece”. Os fenômenos serão todas as nossas percepções sobre o mundo, desde uma visão

dos costumes de onde estamos vivendo, até as percepções que temos num dado momento.

Segundo Enesidemo o cético não tomará o fenômeno como um critério para distinguir o

verdadeiro do falso, onde o assentimento ao fenômeno ocorra devido ao seu poder de

convencimento em uma dada a situação, e não pela sua veracidade mesma. Digamos assim: se

não tenho como saber se o mel é ou não doce, mas neste exato momento ele me parece doce,

então, vou neste momento, dizer que ele é doce. Uma distinção deve ser feita aqui: o fenômeno

não tem necessariamente nada a ver com a coisa real, com sua essência, o fenômeno é apenas o

que nós, seres humanos, num certo momento, sentimos, só isso. O mais interessante, é que não

vai importar se o fenômeno é verdadeiro ou falso, o que importa é que eu aja, e para tal, eu não

preciso responder acerca da natureza das coisas. (HP I, 10). Pharmakón: Os céticos querem

com sua investigação curar-se das crenças não justificadas, para isto eles entendem sua

habilidade como uma terapia (HP I, 29-30); um phármakon que deverá ser expelido junto com

as teses que ele eliminou: a terapia cética, nada mais é do que um purgante que retira o que está

fazendo mal ao paciente, e junto com aquilo que ele retira expele, também, o próprio purgante.

Page 25: Apostila Filosofia Vestibular

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Temas da Filosofia Medieval

Ética e política: Lei natural e Lei divina

A questão ética presente no período medieval retoma alguns dos conceitos presentes na

Filosofia antiga, mas reformula-os com idéias do cristianismo. O que apresentarei abaixo é uma

importante discussão ética acerca das relações entre uma “lei natural” e uma “lei divina”; essa

discussão tem sua mais importante formulação na Suma Teológica de São Tómas de Aquino.

Para começarmos a discussão, devemos nos perguntar duas questões: (1) qual é o fim

(ou objetivo) das ações humanas? e (2) como esse fim pode ser atingido? É na resposta a este

ponto que chegaremos às relações dos tipos de leis.

(1) Aquino, seguindo Aristóteles, indica que o fim de toda a ação humana é a felicidade.

Esse é o fim óbvio da ação. Mas o fim “não reconhecido”, mas fundamental da existência

humana é Deus. Nesse contexto, “felicidade” e “Deus” são conceitos unidos. Dado isso é

necessário perguntar: como alcançamos essa felicidade? (2) Para Aquino, toda a ação humana é

realizada numa relação entre a vontade e o intelecto. Para alcançarmos o “bem supremo” ou a

felicidade, devemos guiar nossa vontade através da razão. Quando guiamos nossas ações através

da razão somos levados naturalmente à boa ação. Assim, a natureza da ação moral é uma

vontade guiada pela razão, somente assim podemos chegar à Deus. De outro lado, a ação má, é

primeiramente uma ação que não tem sua deliberação calcada na razão; mas não é apenas no

afastamento da razão que a ação má se localiza, além disso, para uma ação má, é necessário que

aja uma vontade fraca que não seja capaz de direcionar o ser humano na ação correta.

Colocando essa questão de outra maneira, temos que, para alcançarmos o nosso fim, ou seja,

Deus e a felicidade, devemos agir de acordo com o bem, onde “agir bem” ou moralmente é

quando nossa vontade é guiada pela razão; do outro lado, na “ação má” ou imoral, nos

afastamos de Deus e da felicidade5.

Ao estabelecer essa relação entre a vontade e o intelecto, chegamos à ação boa. Essa

ação é regida por uma lei, que está submetida à razão. Temos a questão das leis. Segundo

Aquino, lei é “um tipo de ordenação racional para o bem comum, promulgada por aquele que

toma conta da comunidade”. Essa é uma definição geral para lei que aceitará gradações. O mais

importante ponto dessa lei é a idéia da “Lei Natural”. Essa lei natural é intrínseca à natureza

mesma, do mesmo modo como a “lei da gravidade” é intrínseca à natureza. Só que essa “lei

natural” é a lei acerca das ações humanas, ou seja, são leis morais naturais. Para Aquino, essas 5 Há um importante debate no período medieval acerca do conceito de “mal”. O debate se funda na seguinte questão: “se Deus é o supremo bem, e o mundo foi criado por ele, como existe nesse mundo, o mal?”. Existem várias formas para responder essa questão, mas a resposta mais aceita é que na verdade não existe realmente um “mal”; o que existe, e é o que chamamos de mal, é tudo aquilo que se afasta de Deus, ou do supremo bem. Dado isto, o que temos é uma gradação do Bem, indo do Bem Supremo, até a ausência do bem (ou o que chamamos de mal).

Page 26: Apostila Filosofia Vestibular

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leis morais naturais não dadas pelo ser humano mesmo, mas são descobertas por nós através da

razão. Todas as “leis humanas” devem ser derivadas dessa “lei natural”, mas Aquino aceita que

as “leis humanas” podem ser instanciações ajustadas da lei natural, que devem poder caber a

cada situação existente6; mas absolutamente, de modo algum, essa “lei humana” enquanto

instanciação da lei natural poderá contrariar os ditames da razão.

Mas o degrau mais alto dessa questão é certamente o fato de que a própria “lei natural”

é derivada de um tipo mais fundamental de lei, que são leis eternas ou “Leis Divinas”. A “lei

divina” é o mesmo para Aquino que a providência divina. A “lei divina” é uma lei imutável,

natural e necessária, que permeia tudo e que faz derivar a “lei natural”. A “lei divina” aparece

como uma lei que representa a natureza de Deus enquanto Aquele quem governa o universo.

Resumindo, temos o seguinte: uma “Lei Divina”, que é imutável e necessária que regula

tudo, essa lei provém de Deus; temos uma “Lei Natural” que é fundamento da realidade moral, e

que está na natureza, podendo ser conhecida através da razão; finalmente temos uma “lei

humana” que deve ser uma instanciação da lei natural, aplicada a situações específicas. Quando

a lei humana é realmente guiada pela razão ela irá coincidir com a lei divina, assim voltando ao

começo temos o seguinte: a boa ação conduz para Deus e à felicidade, essa boa ação deve ser

uma vontade boa guiada pela razão, quando à ação é guiada pela razão, temos a concordância da

ação com a lei natural e consequentemente com a lei divina; portanto, no final, para

alcançarmos Deus e a felicidade devemos seguir à lei natural.

Razão e Fé no pensamento medieval

A cultura filosófica greco-romana era mantida pelo Império Romano na época do

ceticismo, estoicismo e epicurismo. É importante notar que uma cultura não existe totalmente

independente do estado a sua volta. Na verdade era o Império quem garantia a continuidade da

Filosofia. Mas por volta do século III d.C. o Império Romano é invadido pelos Godos,

Visigodos, Vândalos, e outros povos. Nessa invasão, o Império que dava coesão às doutrinas

acaba, e as doutrinas mantidas por ele são de certa forma finalizadas. Os grandes textos dos

filósofos gregos são perdidos ou levados para o mundo Árabe. Os únicos textos que são

preservados no Ocidente são alguns textos de Lógica de Aristóteles. Mais tarde, o único contato

que os medievais vão ter com a Filosofia Grega, além de Aristóteles, vai aparecer via

comentário de outros filósofos, principalmente os romanos, como Cícero e outros.

O que permite certo grau de preservação da cultura greco-romana é outra poderosa

instituição: o Cristianismo. Nascido no seio do Império, o Cristianismo vai se tornar a doutrina

mais importante do período medieval. A partir dele a Igreja Católica vai poder manter e fazer

6 From the precepts of natural law, as from general,indemonstrable principles, it is necessary that human reason proceed to making more particular arrangements… [which] are called human laws, provided that they pertain to the definition (rationem) of law already stated.

Page 27: Apostila Filosofia Vestibular

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crescer a cultura clássica. A Igreja vai ser erguida teologicamente através de densas

argumentações filosóficas extremamente inspiradas nos pensadores gregos. O filósofo-teólogo

mais importante do primeiro contato entre Cristianismo e Filosofia é Agostinho.

As teses de Agostinho tomaram o Cristianismo a partir de uma base neoplatônica. Essa

relação entre Filosofia e teologia trouxe o primeiro e grande problema epistemológico, que é a

relação entre a fé (religião) e a razão (Filosofia). De um lado, os Cristãos acreditam que a fonte

de conhecimento da realidade emana diretamente de Deus. Não há outra fonte mais importante.

De outro lado, os filósofos que sempre acreditavam que a fonte de conhecimento da realidade

era a razão. Como relacionar a Fé e Razão?

O primeiro passo para tal é compreender bem como o conhecimento funciona. Para isso,

é necessário pensar o conhecimento em relação com o cristianismo. O primeiro ponto é que não

há realmente lugar para a dúvida no cristianismo. Isso ocorre porque nele há uma certeza

básica: a bondade divina. Deus não quer interferir no nosso conhecimento, e pelo contrário nos

deu todas as ferramentas para conhecer a natureza, e, quando erramos, é porque nos distraímos

do caminho que Deus nos deu. Não há lugar para uma dúvida geral. Sendo assim, passa a ser

fundamental determinar, como o conhecimento funciona, e não como podemos conhecer.

Para isso, devemos verificar as partes do conhecimento e ao que elas se referem. A

primeira parte é a razão. A razão é um dom divino que nos possibilita conhecer toda a natureza

material. Se quisermos conhecer qualquer aspecto do mundo devemos dedicar nossa faculdade

racional para compreender. Na natureza não há obstáculo que a razão não possa compreender.

Mas ao mesmo tempo, a razão é insuficiente para penetrar nos desígnios divinos. A razão é uma

faculdade que apesar de ser extremamente potente, ela ainda é limitada. Quando ela chega ao

seu ápice, é necessário que outra função entre: a fé. A fé não está submetida às restrições da

razão, e é somente através dela que podemos realmente alcançar a Deus. Mas é um alcance que

não passa pelas divisões, análises e argumentos racionais. A fé é um tipo de "conhecer"

diferente da razão; ele nos leva a lugares onde a razão não pode. Mas isso não quer dizer que a

razão é desvalorizada, pelo contrário, os medievais vão acreditar numa relação intrínseca entre a

Fé e a Razão, eles expressam essa idéia na seguinte máxima: Crer para Entender e Entender

para Crer. Nessa relação recíproca o conhecimento é possível, desde que unido à fé, e vice

versa.

Page 28: Apostila Filosofia Vestibular

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Temas da Filosofia Renascentista

O Renascimento e a Concepção de ser Humano

O “Renascimento” (ou Humanismo), como movimento filosófico, coloca-se como uma

reação à antiga Filosofia medieval. O Renascimento ocorreu por volta dos séculos XII a XV

(1350-1650) e tem como o seu principal expoente o filósofo Giovanni Pico della Mirandola

(1463-94), com seu livro De hominis dignitate oratio (Oração da Dignidade do Homem). Antes

de mostrar qual é a concepção do humano do renascimento, deixe-me guardar um parágrafo

para tratar da concepção medieval do humano.

Durante a idade média era a doutrina Cristã quem guiava as discussões filosóficas e

científicas, colocando assim, a reflexão teológica como a fundamental. A teologia Cristã sofreu

duas grandes influências filosóficas, a primeira é a Platônica e a outra é a Aristotélica. A

influência Platônica no Cristianismo foi liderada por Santo Agostinho, e a Aristotélica por São

Tómas de Aquino. Mesmo com várias diferenças que havia entre estas duas posições, uma

certa concepção do ser humano atravessava toda a reflexão medieval. Segundo a concepção

Cristã do ser humano, somos seres que ao mesmo tempo participamos do mundo terreno como

animais, mas temos uma alma imortal, que é nossa parte que transcende o mundo físico: essa

alma é uma representação de Deus em nós. Nós devemos renegar a parte física, os desejos e

vontades físicas, que são o nosso aspecto animal e mundano para só assim ascender a Deus e ao

mundo imaterial. Na tese Cristã, somos seres caídos, ou seja, cobertos pelo pecado original.

Devemos sair deste pecado, ascendendo à Deus. Para tal é necessário negar o pecado (o corpo) e

assentir à Deus (a alma).

O Renascimento surge como uma resposta a esta concepção medieval do ser humano. A

mudança básica ocorreu devido a uma alteração do foco da análise. Se a análise do ser humano

pelos medievais centrava-se na relação entre o ser humano e Deus, a análise renascentista se

foca apenas no ser humano. Essa mudança na análise foi sugerida principalmente pelos

Renascentistas Italianos que estavam mais interessados numa investigação da natureza do que

na relação da natureza e Deus. Essa mudança no foco da análise acabou por revelar uma

concepção muito mais otimista do ser humano.

Para os Renascentistas, como Pico della Miradola, os seres humanos são animais que

podem determinar a si mesmos, assim os seres humanos podem estar livres para escolher que

caminho que vão seguir. Cabe apenas a nós escolher o melhor caminho. O que ocorre aqui é que

os renascentistas trazem o ser humano para a natureza e lhe dão lá a potência e o livre arbítrio.

Uma importante filósofa contemporânea, Hannah Arendt, ao analisar o Renascimento

e a condição humana naquele período, vai analisar o que ocasionou essa mudança da concepção

Page 29: Apostila Filosofia Vestibular

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medieval – pessimista para a renascentista – otimista. Segundo Arendt, apesar da ciência, como

investigação da natureza, já ser praticada desde Aristóteles foi só no Renascimento que ela pode

atingir um patamar diferente do que ela vinha alcançando. O Renascimento foi marcado pelas

idéias de observar e imitar natureza. Uma das maiores representações desta tendência é a arte,

onde ela tentava ser o mais fiel possível à natureza. A transposição desse ideal acerca da

natureza para a ciência ocorreu com a invenção de um objeto que mudou a história da

civilização humana: o telescópio. O telescópio servia tanto para uma observação desinteressada

da natureza, como também para fins econômicos e militares. O telescópio foi a invenção da

ciência que a fez sair de dentro da academia e mudar toda a sociedade. Com o telescópio a

própria idéia de “observação” teve de ser alterada. Observar a natureza não é algo que os

cientistas fariam apenas com os olhos nus. O telescópio deu a força criativa do ser humano uma

força prática nunca antes vista. Essa nova ciência, esse novo artefato, acabou por mostrar um ser

que sozinho é capaz conhecer a natureza, ultrapassando suas próprias limitações físicas. O ser

humano poderia ser mais do que um animal, mesmo sendo um animal. O que o fazia superar

sua condição humana era sua própria condição humana. Assim, o destino que iremos trilhar

não é mais limitado pelas nossas deficiências. Finalmente com o telescópio o ser humano

conseguiu ultrapassar ele mesmo.

Esse espírito da época acabou por gerar os textos renascentistas mais importantes, como

o que citei no início do parágrafo, o Oração da Dignidade do Homem. Era o início da

emancipação do ser humano de Deus, estabelecendo o humano como um ser potente na

natureza.

Ética e política: Maquiavel e o problema do poder

O objetivo aqui será uma rápida apresentação de alguns aspectos do pensamento do

italiano Nicolai Maquiavel, principalmente algumas de suas teses presentes no O Príncipe. Irei

focar quatro pontos para dar uma visão completa da idéia de poder: (1) a concepção de fundação

e conservação do estado, (2) as idéias de virtù e fortuna e (3) a complexa relação entre ética e

política e (4) a igualmente intricada relação entre a religião e a ética. Após esses quatro pontos,

saberemos como Maquiavel concebe a idéia de poder.

(1) Duas questões principiam os debates políticos da renascença: como fundar e manter

um estado? Para Maquiavel essas são questões distintas. Segundo ele, para fundar qualquer tipo

de governo, o Príncipe pode e deve fazer uso de todos os meios possíveis para a realização do

fim, que é a fundação. Nesse contexto inicial excessos são permitidos. Um exemplo aqui, é um

estado que acabou de ser conquistado, nesse caso, o conquistador deve fazer o que for

necessário para a implementação do novo estado. Uma vez fundado, a pergunta será: como

evitar a deterioração do estado? Como conservá-lo?

Page 30: Apostila Filosofia Vestibular

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Para tal, Maquiavel diz que o Príncipe deve fazer o máximo possível para instigar nos

seus cidadãos o dever cívico. Nesse caso, o príncipe não pode fazer tudo o que ele quer para

alcançar o fim da conservação do estado. O príncipe deve seguir as leis e mostrar ao povo que

isso, na verdade, mesmo que em certos momentos o príncipe deva usar seu poder contra as leis

em ordem para manter o estado, ele deve parecer estar seguindo às leis. Nesse caso, muito mais

importante do que a real ação, o Príncipe deve estar muito preocupado com o que o povo acha

dele. Este Príncipe deve parecer bom e não mal, e para isso, Maquiavel ensina, que deve-se

fazer as coisas boas aos poucos e o mal de uma só vez, para que a longo prazo a imagem do

Príncipe seja boa. O poder do Príncipe deve ser muito bem relacionado com a aparência que

suas ações devem ter. Isso ocorre porque, é fundamental para a conservação do estado, que o

povo se relacione bem com este. Um principie tirano, que não segue as leis, e que age de acordo

com sua vontade, pode facilmente levar o povo a ir contra ele.

(2) Essa ação do Príncipe deve ser regida por duas esferas: a virtù e a fortuna. Dito de

modo simples a virtù é o “saber agir bem em qualquer situação”, e a fortuna, é propriamente a

sorte de tornar a ação da virtù, adequada às intenções do príncipe. Para o Príncipe agir, não é

necessário que ele seja virtuoso e habilidoso, é necessário um grau de sorte. Vejamos um

pequeno exemplo: digamos que um governante estabelece um plano econômico excelente para

um país, tal que ele possa resolver todas as intempéries da economia local; essa ação por melhor

que seja não está assentada apenas no talento do Príncipe, mas também na sua sorte, de, por

exemplo, não acontecer nenhum desastre natural que liquide a economia, ou uma crise

internacional que destrua as economias. A ação do príncipe sempre deve sempre tentar ser de

acordo com a virtù, mas o príncipe deve contar também com a fortuna (esse ponto é

interessante, uma vez que devemos pensar que a ação política não depende apenas dos atores

políticos).

(3) Com os pontos acima, chegamos a um dos mais importantes movimentos da teoria

política, inaugurado por Maquiavel. Segundo o que vivemos Maquiavel dá muito mais valor à

aparência da ação do que a ação mesma, e, além disso, ele acredita que para a conservação do

estado, o príncipe pode desde que isso pareça bom ao estado aos olhos do povo, ele pode ir

contra princípios éticos. Um caso simples é: um príncipe pode aniquilar seus inimigos, desde

que aos olhos do povo isso seja o melhor. Essa é a separação fundamental entre o terreno

“ético” e o terreno “político”.

Para os gregos e os medievais, ética e política eram partes de uma mesma esfera. É

Maquiavel quem rompe com essa relação, mostrando, que para conservar o estado, é necessário

em certos momentos não atentar para o que é uma ação ética, mas sim o que é melhor para a

organização do estado. Mas como estou insistindo, aqui não é uma questão de o príncipe fazer o

que bem entender, mas antes sim que sua ação aparece ser a melhor possível. Com o conceito de

"aparência" desempenando esse papel fundamental na organização política, a vinculação entre a

Page 31: Apostila Filosofia Vestibular

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ética e a política se esvai defronte a um ideal de política como uma representação. No final o

limite do poder do príncipe não é ético, mas sim virtude de sua ação para a conservação do

estado, aos olhos do povo. Com isso, se desfaz uma comum e vulgar confusão do que

Maquiavel diz. É comumente dito que Maquiavel afirma que "os fins justificam os meios". De

início essa frase nem mesmo está presente nos seus textos. Em segundo lugar, se essa frase não

pode estar de acordo com o que Maquiavel pensa, uma vez que o príncipe não pode usar meios

que são contrários aos desejos do povo para um fim que seja bom, se não, ele corre o risco de

corromper o estado mais rapidamente. Pensemos o seguinte exemplo: digamos que o Príncipe

queira acabar com toda a fome e miséria de seu país (esse é o fim), esse Príncipe descobre que

se aumentar em 100 % os impostos do país, ele poderá fazer isso, mas quando ele faz isso, a

parte do povo que foi afetada pelo aumento dos impostos poderá se voltar contra ele, findando

com o estado. Assim o que parecia adequado, acaba rompendo o estado. Assim, os fins não

justificam os meios, onde é importante conservar meios adequados aos olhos do povo. Observe

como nessa estrutura não se pergunta se a ação do Príncipe é ou não ética. Mas apenas se ela é

ou não a melhor para a manutenção do estado.

(4) Uma vez rompida a relação entre ética e política, Maquiavel irá romper outra relação

fundamental: entre a religião e a política. A relação política e religião foi a estrutura básica de

todo o pensamento político medieval. Maquiavel, indica ao Príncipe, que sua ação não pode ser

dada de acordo com os ditames da igreja. Se for assim, o príncipe acabará tendo o seu poder

duramente cerceado, e conseqüentemente o príncipe perderá parte fundamental do seu poder no

estado. O que Maquiavel diz, é que, mais importante do que a religião, é a manutenção do

estado. Isso não quer dizer que o Príncipe deve cortar a religião do estado, mas antes, que a

organização política não pode depender da religião. De certo modo, é até mesmo útil para a

conservação do estado, que o Príncipe aceite a religião mais comum, para que assim ele apareça

mais próximo ao povo. Novamente, temos a questão da aparência. Nesse sentido, a religião

pode ajudar a fortalecer o príncipe, mas apenas enquanto ele tiver o poder sobre o estado, e não

acate decisões que ultrapassem seu poder - como era o caso medieval.

A tese de Maquiavel sobre o Poder do Príncipe para a conservação do estado, passa

então por esses quatro pontos. Mas provavelmente as duas idéias centrais para compreender a

força do pensamento são (a) Aparência e (b) A relaçao virtù e fortuna. Em primeiro lugar, a

ação do Príncipe deve parecer boa aos olhos do povo e segundo, para conservar o estado o

Príncipe deve ser ao mesmo tempo uma ação virtuosa e acompanhada da fortuna. Assim, temos

uma imagem ampla da idéia de poder em Maquiavel.

Page 32: Apostila Filosofia Vestibular

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Temas da Filosofia Moderna

A concepção de ser humano na Filosofia Moderna: O homem senhor da

natureza

O renascimento era o início de nossa emancipação de Deus. A história moderna se

estrutura de (1) como nos emancipamos totalmente e (2) tornamo-nos senhores da natureza.

Para contar qual concepção do ser humano que surgiu na modernidade irei seguir esses dois

passos.

1) Vários trabalhos sobre o que é o ser humano surgiram no começo da modernidade

(sécs. XVI e XVII), onde dois filósofos opostos se destacam, Montaigne e Descartes. Apesar

de serem muito diferentes em muitos sentidos, tanto Montaigne como Descartes tinham uma

concepção humana semelhante num ponto: para ambos o estabelecimento de uma moral era um

trabalho mundano. Era a moral provisória de Descartes e a moral cética de Montaigne. O que de

importante aconteceu aqui, foi que ambos sugeriam que a moral, que antigamente era derivada

dos céus (como teologia cristã), deveria ser estabelecida no mundo em que vivemos de acordo

com as nossas necessidades e capacidades. Aqui aconteceu a emancipação humana da ética que

vinha de fora de nós. A ética seria estabelecida por nós.

É nesse mesmo período que a ciência vai deixando cada vez mais claro que o seu papel

virá a ser laico, ou seja, desvinculado da fé. O início desta mudança tem suas origens na própria

idade média, e depois com o renascimento; mas colocar este ponto como definitivo foi papel

dos modernos. Duas figuras representam o início deste conhecimento laico, Giordano Bruno e

Galileu. Bruno foi queimado porque não quis se submeter a desacreditar sua ciência contra a fé.

Galileu mentiu para ser queimado, mas diz a lenda que no seu julgamento ele teria sussurrado

que “A Terra se move”, posição contrária ao dogma cristão. A posição destes dois foi

lentamente se transferindo de meras posições pessoais e passando para a prática científica como

um todo. Não é que os cientistas pararam de crer em Deus, mas eles passaram a pensar a prática

científica como não submetida à teologia.

O que ocorreu em ambos os casos, tanto na moral, quanto na ciência, foi a emancipação

definitiva do ser humano. Passamos a poder legislar sobre nós mesmo e o conhecimento pela

ciência da natureza passou a ser superior a qualquer dito de fé: a natureza vai ser revelada por

nós e não por Deus. O ser humano que nasceu foi um ser humano independente7.

7 Uma das maiores conseqüências desta tese é a predominância do individuo com a idéia do “indivualismo.” Essa é a tese segundo a qual a sociedade é criada com o propósito de promover o bem-estar de seus membros como indivíduos, e que só pode ser julgada com base em critérios estabelecidos por eles mesmos. O ponto aqui é o mesmo da doutrina ética: é o ser humano, enquanto indivíduo, quem estabelece o estado e as leis. É a partir da emancipação ética que surge na modernidade a idéia que (1) o

Page 33: Apostila Filosofia Vestibular

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2) Ir desta concepção, para uma concepção de seres humanos como senhores da

natureza, foi obra novamente de dois pólos, um ético e um científico. Dois trabalhos se

destacam, novamente muito opostos, o de David Hume e o de Immanuel Kant. Apesar de suas

diferenças, Hume e Kant compartilham a mesma inspiração básica. Hume mostrou uma ética

que era fundada em nossas características naturais, uma ética que deveria ser construída

segundo o que nós julgarmos melhor, segundo o que é melhor para a sociedade em que

vivemos. As regras éticas para Hume serão apenas convenções que nós estabelecemos. O passo

seguinte, foi dado por Kant. Kant discordava de Hume quanto ao fato da ética ser uma

convenção que poderia ser mudada, mas concordava com Hume, quanto ao fato de que somos

nós mesmos quem estabelecemos a ética. Mas, para Kant seria uma ética universal, derivada da

Razão Pura. Nós estabeleceríamos a melhor ética que os seres humanos podem estabelecer,

através de princípios que são criados por seres humanos, mas que ultrapassam o individuo e a

cultura e devem valer para todos em todos os lugares. Kant fez com que o ser humano tornasse

finalmente senhor de si mesmo através da razão. É o que muitos chamam de a virada

copernicana da Filosofia: retirar o mundo do centro do universo e colocar o ser humano.

Com uma reflexão acerca da ciência o golpe final vai ser dado. A ciência nos séculos

XVII e XVIII vai ser tornar absolutamente laica, onde muitos cientistas não terão problema em

admitir que são ateus. Nesse período a ciência vai dar um dos seus maiores saltos. Cientistas

como Kepler e Newton vão desenvolver finalmente uma cosmologia que pela primeira vez vai

mostrar como a natureza realmente é. Newton irá mostrar com a mesma lei, não apenas como

flechas caem, mas como os planetas se movem. A realização de Newton será a de dar pela

primeira vez uma visão unificada da natureza usando apenas sua física. O trabalho destes

cientistas não irá parar aí, e mesmo se parasse já teria sido um enorme avanço. Depois de

Newton muitos outros físicos genais vão surgir, como Faraday, Maxwell e Lorentz. A reflexão

visava também uma compreensão da natureza, mas ela acabou indo mais longe. Da ciência

nasceu o desenvolvimento tecnológico mais rápido que a história já viu. A ciência permitiu em

pouquíssimo tempo passarmos de meros conhecedores da natureza, para senhores das

transformações dela. Poderíamos manipular, organizar e reservar as energias da natureza. A

ciência permitiu ao ser humano passar de um ser que vive de acordo com as ordens naturais,

para um ser que dá a ordem à natureza. É assim que o ser humano se torna o senhor da natureza.

A concepção moderna do ser humano vai ser, portanto, um ser humano independente de

tudo, determinado apenas por si mesmo e que pode determinar inclusive a natureza onde ele

vive.

estado deve ser erguido para organizar “indivíduos”, todos eles relevantes, e (2) o estado e suas leis são criadas por esses indivíduos.

Page 34: Apostila Filosofia Vestibular

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Ética e Política: Soberania, jusnaturalismo e contrato social

A Filosofia, como sempre, é uma ciência que aparece apenas depois de que o tempo já

está no final. Mas sua ação, quando é compreendida é sempre revolucionária. Esse poder gerado

pela reflexão gerou as condições propicias para o surgimento da idéia de democracia nos tempos

antigos e também gerou as condições para as idéias políticas da modernidade. Irei aqui mostrar

três discussões políticas da modernidade: (1) o contrato social, (2) o soberanismo e (3) o

jusnaturalismo.

(1) A modernidade começa com uma séria dificuldade: no renascimento, pensadores

políticos aparentemente descolaram o estado da religião, criando os primeiros estados laicos, ou

pelo menos a idéia de um estado laico. Esse movimento gerou como conseqüência a perda do

lugar de Deus no estado. No modelo medieval, os mandamentos divinos ocupavam o centro das

leis e mandamentos do estado, mas sem o lugar de Deus, quem iria apresentar as leis e o

controle do estado? Sem a figura de Deus, quem mandaria? Acredito que a reflexão moderna

acerca da política tentará repensar o ser humano na estrutura política sem usar o lugar divino

medieval. Para tal, a questão será: se não é Deus quem cria o estado, porque o estado existe?

A manobra teórica para explicar esse ponto será dada com o conceito de "contrato

social." O contrato social é a idéia de que por alguma razão os seres humanos se organizam e

dão o poder a alguém. Mas antes do contrato social, tínhamos o estado de natureza. Nesse

estado de natureza, revelamos nossa real essência. Para Rousseau, nosso estado de natureza é

bom, mas a medida que criamos laços e comunidades, é necessário que alguém ou algo

coordene essas comunidades, assim fazemos um "contrato" entre nós e criamos um estado, que

possa ser superior a todos e assim seja capaz de legislar sobre o todo. Uma vez que o estado é

criado, mediante ao estado de natureza, devemos obedecer a seus mandamentos. Já para

Hobbes, antes do estado vivíamos num estado de violência e medo. Não podíamos confiar em

ninguém e estávamos sempre com medo de sermos atacados de alguma forma. Como este

estado de natureza violento não pode ser mantido, é necessário que, para garantir nossa

segurança, fazemos um contrato com o estado para que só ele possa usar a violência e possa

reprimir aqueles que usam a violência. O contrato social hobbesiano cria o estado como àquele

único que tem o monopólio da violência. Esse estado terá o direito e o dever de usar a violência

contra aqueles que ele achar necessário para manter a ordem, mesmo que contra nós. A imagem

geral do contrato social, tanto de Rousseau, quanto de Hobbes, é a crença de passamos o nosso

poder para um estado que poderá nos organizar enquanto um corpo. Dado isto, a pergunta se

impera: quem governará o estado?

(2) A resposta é direta: o soberano8. O soberano é a representação do estado e das leis.

Esse soberano é o único que detêm todo o monopólio do poder para organizar o estado da

8 Irei aqui explicar essa idéia sem me referir a nenhum pensador específico.

Page 35: Apostila Filosofia Vestibular

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melhor forma possível. O papel reservado para o soberano tem uma origem muito importante,

precisamente na laiscização do estado. Na antiga ordem política medieval, o estado deveria ser

subordinado, tanto ao nível da lei, quanto de sua organização, à religião. Com a conseqüente

retirada do lugar central que a religião ocupava, era necessário que alguém reocupasse o mesmo

posto, que é aquele que regula tudo de um ponto de vista mais alto que o comum. O soberano

passa a ter o mesmo lugar, mas agora um lugar laico. Será realmente um poder absoluto, que

deverá organizar essa nova estrutura do estado.

Essa estrutura acabou por gerar reis absolutistas que de tanto poder que tinham, se

tornaram soberanos brutais, sem nenhuma preocupação real com a população, mas apenas

consigo mesmo. Esse tipo de identificação do soberano com o estado cresceu a tal ponto, que os

soberanos passaram a fazer uma relação direita do seu “eu” com o “estado”. O melhor exemplo

que se tem disto é o reinado de Luís XIV. Sua declaração “o Estado sou eu” resume com

precisão essa relação entre o estado e o soberano.

(3) O terceiro ponto aqui é a forma pela qual essa reflexão política pensava a idéia de

“justiça” e para falar dela é necessário falar da idéia de “natureza”. (voltaremos a este ponto

mais a frente).

Se para os medievais tudo deveria emanar diretamente de Deus para, então, ser

justificado, nos modernos tudo deveria emanar diretamente da “natureza”. Em muitos sentidos,

do ético ao epistêmico, do político ao estético, a idéia de natureza foi predominante na reflexão

moderna. Quando ao significado da idéia de “natureza”, temos que: natural é aquilo que é

próprio a um objeto. Dado desta forma é muito difícil de visualizar a questão, certo? Então

vejamos aqui os sentidos particulares de “natural”. Primeiro temos a “natureza física”, que é a

nossa realidade material, assim é próprio da natureza física, ser material. Depois temos a

“natureza humana”, que é a essência humana, assim é próprio da natureza humana, ser p.ex.

racional, violenta, ou justa. Ainda temos “natureza política”, que é a essência da realidade

social, assim, o que é próprio da natureza política, são as relações sociais. Em todos esses casos,

“natureza física”, “natureza humana”, e “natureza política” a idéia de natureza representa uma

explicação do que é essencial nas coisas, algo que deriva da própria essência do objeto. Assim,

quando se descobre a natureza de alguma coisa, desvendamos-lhe a essência.

É a partir dessa idéia de “natureza”, de onde emanam as essências, substâncias, ou

naturezas, é que surge a idéia de um “jusnaturalismo”. O jusnaturalismo é o que baseava a

jurisprudência moderna, onde a lei deveria resultar diretamente da natureza, e seria encontrado o

que é próprio e justo às leis. Para tal, o legislador deveria buscar na natureza das coisas, seja na

natureza do ser humano (o que é essencialmente o humano), seja na natureza política (o que é

essencialmente o político), a razão para as leis. Assim, derivada da própria natureza das coisas,

a lei seria justificada.

Page 36: Apostila Filosofia Vestibular

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Essa idéia moderna para a ética/política forma um quadro complexo e que aqui foi tratado

apenas de relance. Há três pontos que gostaríamos de resumir, todos eles mais ou menos

vinculados: (1) o estado é fundado a partir de um contrato que transfere o poder do indivíduo

para o estado; (2) esse estado será governado por um rei soberano, que em certo ponto terá seu

próprio “eu” confundido com o estado; (3) a legislação do estado será fundada na natureza das

coisas, o que irá garantir sua justificação.

Ética Kantiana: Dever e Liberdade

As teses éticas de Immanuel Kant são muito influentes em toda a história da Filosofia.

Elas são apresentadas em basicamente dois grandes livros: a Crítica da Razão Prática e a

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, irei aqui me concentrar na primeira dessas obras

para explicar a relação entres duas idéias a de Dever e a de Liberdade.

A idéia de liberdade é uma das mais importantes na ética de Kant. A análise da

liberdade começa com uma aparente dificuldade neste conceito. Kant mostra que (1) Nós somos

corpos físicos, e como tais, são causados e tem efeitos determinados; assim estamos sob o efeito

da causalidade no mundo natural, do mesmo modo que uma pedra está sujeita à necessidade

imperativa da natureza. Essa tese leva ao seguinte ponto: se estamos sujeitos à causalidade nas

nossas ações, qualquer ação que realizamos não é dada por vontade própria, mas as ações são

causadas por eventos anteriores, o que faz com que tenhamos apenas uma aparência de

liberdade. Por outro lado, (2) Kant demonstra que temos consciência de nossas ações e que

podemos realmente decidir entre fazer uma coisa ou outra. Apesar de estarmos sujeitos à

causalidade que parece vedar a escolha, parece que nós podemos escolher. Kant vai mostrar que

essa questão, do modo como ela aparece, é impossível de ser resolvida, mas ao mesmo tempo

temos que pensar no que é a liberdade.

Ele então mostra que essa questão é resolvida se separarmos o ponto (1) e (2). Ele

mostra que enquanto seres empíricos, que possuem corpos e vivem no mundo, estamos sujeitos

sim à causalidade. Uma mitocôndria não pode escolher ou não a fazer sua função, ela é

determinada a isso. Mas, ao mesmo tempo, somos seres que pertencem ao inteligível, onde não

há a determinação da causalidade, onde somos livres. Somos livres enquanto seres racionais,

apenas isso. Assim, temos um corpo determinado e uma razão livre.

Essa idéia da liberdade é a base de toda a reflexão ética de Kant. Ele vai mostrar que a

liberdade se encontra na Razão Pura, que é aquela razão livre de todo os aspectos empíricos

(isso se dá deste modo, porque os aspectos empíricos são determinados). Aqui começa a sua

reflexão acerca do dever.

Alguém que é livre é determinado apenas pela razão, eliminada dos aspectos empíricos.

A pergunta de Kant é então: como alguém que é determinado pela razão a ser livre deve agir? O

dever aqui é dado por uma representação de uma lei pura da razão, sem que haja quaisquer

Page 37: Apostila Filosofia Vestibular

37

vinculações com desejos e inclinações pessoais. Essa é a idéia da “autonomia da vontade”, onde

“autonomia” significa “uma lei” que determina a vontade, ao contrário da “heteronomia da

vontade”, onde há mais de uma lei que determina a vontade. Para Kant, enquanto seres livres

devemos basear nossa determinação da vontade apenas na autonomia, onde apenas uma única

lei determina. O nosso “dever”, que é o modo pelo qual devemos agir, deve ser baseado nessa

“autonomia da vontade”.

Uma vez determinada essa pureza do dever, é necessário estabelecer uma lei baseada na

razão pura. Kant formula essa lei como um imperativo categórico da razão, onde “imperativo” é

uma lei que não pode ser transgredida. A formulação clássica dessa lei é: “age como se sua ação

pudesse se tornar uma máxima universal”. Essa lei é estabelecida por Kant através apenas do

uso da razão, sem aspectos empíricos, o que garante a necessidade e verdade da lei. Toda a

nossa ação deve ser baseada apenas nessa lei. Assim estabelecido, o nosso dever é um

imperativo da razão, ou seja, devemos agir conforme o imperativo.

Dada essa idéia de lei, Kant faz a seguinte diferenciação, entre agir em conformidade

com a lei – ou seja, a legalidade e agir inspirado pela lei – ou seja, a ação ética. Quando se age

apenas em conformidade com a lei, seguindo-a totalmente, mas não porque ela é boa, mas

porque a lei ordena isso, não há realmente ética, há apenas uma questão legal. Quando se age

como que inspirado pela lei, fazendo a lei parte de si mesmo, temos uma ação ética. Há casos

em que estamos legalmente corretos, mais eticamente errados, mas sempre que agimos

eticamente, estamos legalmente corretos. Para Kant o mais importante é o dever ético, que é

aquele que faz com que o imperativo categórico seja seguido como inspiração.

Para voltarmos ao começo deste texto, façamos uma relação entre a liberdade e o dever.

Para Kant a liberdade é garantida pela nossa existência enquanto parte do inteligível, como seres

racionais: é a razão que garante a liberdade. A razão irá estabelecer a lei pela qual devemos

viver. Essa lei é um dever da razão, um dever que emana da nossa própria condição livre.

Teoria do Conhecimento: A Revolução Científica do Século XVII

É no interior do próprio período medieval que as coisas começaram a mudar e as

dúvidas reapareceram. Para isso, as cruzadas foram determinantes para tudo o que vai se

desenrolar a frente. Quando os Cristãos vão para o Oriente enfrentar os Mulçumanos há o

reaparecimento de boa parte dos textos Gregos que foram perdidos durante a queda do império

Romano. Os textos de Aristóteles ganharam maior destaque, mas outros textos, de Platão e

alguns neoplatônicos vão também exercer uma forte influência.

Os textos de Aristóteles que reaparecem entre os séculos IX e XI são a Metafísica, a

Física, a Ética a Nicomanos e outros. Estes textos d’ “O Filósofo” (Aristóteles) permitiram a

formação da “Escolástica”. Esse movimento medieval visava reinterpretar as posições recém

Page 38: Apostila Filosofia Vestibular

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chegadas de Aristóteles de acordo com a fé Cristã. Por um lado isso foi magistralmente bem

feito, principalmente por Tomas de Aquino. Mas uma importante parcela dos textos de

Aristóteles teve de ser ignorada ou duramente reinterpretada para encaixar com a posição Cristã,

essa parcela dizia respeito a importância da experiência. Aristóteles vai em vários de seus livros

deixar claro a importância da observação da natureza para a boa compreensão da realidade. Sua

disciplina “Ética” dá um enorme valor para a experiência e a capacidade de desenvolver

princípios éticos a partir da experiência. Todavia, a tradição Cristã era uma que repudiava a

experiência e seu veículo que era o corpo. Aristóteles fora reinterpretado e a experiência perdeu

novamente seu poder, mas não por muito tempo.

Uma tradição de pensadores que era parte da Escolástica começou a observar com

maior atenção à idéia da experiência. Guilherme de Ockham e principalmente Roger Bacon

começaram nas suas investigações a dar um maior valor para a experiência. Essa valorização da

experiência não aconteceu de um modo súbito. Podemos entender a entrada da experiência no

conhecimento como uma parte dele, mas não como o centro – isso não poderia acontecer

enquanto a igreja tivesse o monopólio absoluto do saber. De todo modo, a experiência entrava

aos poucos nas universidades em contra posição à antiga posição neoplatônica e Cristã de

desvalorização da experiência.

Pouco tempo depois, já entre os séculos XIV-XV a entrada dos textos que tinham

ocorrido durante as Cruzadas vai fazer o Ocidente reorientar seu caminho: É o Renascimento. O

termo “Renascimento” significa uma retomada da cultura grega. Platão, Aristóteles e outros vão

ser novamente lidos, mas com outros olhos. Os textos céticos, principalmente o de Sexto

Empírico aparecem novamente no ocidente no século XV. No ambiente intelectual do

Renascimento a maior das revoluções ocorre: a retomada da observação da natureza. Essa

revolução tem início na retomada da experiência que tinha acontecido com Roger Bacon.

O que a Renascença trouxe foi, em última análise, a idéia da dúvida, quase ausente do

período medieval. A dúvida da interpretação de Aristóteles, a dúvida que emanava dos

continentes que estavam sendo descobertos, a dúvida que surgia dos textos céticos, não só de

Sexto Empírico, mas principalmente de um renascentista: Michel de Montaigne (1533-1592).

Este filósofo representa bem a nova urgência da dúvida através de uma reflexão oriunda da

multiplicidade cultural que surge de um momento para o outro aos olhos Europeus. Esta

multiplicidade cultural é determinante para a reorientação da posição acerca do conhecimento.

Temos assim um novo quadro e uma velha pergunta: qual será o papel da experiência no

conhecimento?

A resposta não será muito difícil. Com as possibilidades técnicas, como o telescópio,

muitos vão começar a relacionar o conhecimento puramente teórico e racional com observações

da natureza. A observação começará a ser entendida como aliada da investigação. Um dos mais

importantes nessa valorização do conhecimento racional foi Galilei Galileu (1564-1642), que

Page 39: Apostila Filosofia Vestibular

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unia suas teorias sobre assuntos como a queda dos corpos, com as observações. Mas o que mais

chamava a atenção nessa relação é que de certo modo, a experiência começava a funcionar

como uma prova para as teorias.

Se lembrarmos de Platão dizendo que a experiência não fornece o conhecimento da

realidade acharemos estranho conciliar essas duas teses. Mas no fundo elas são próximas. Platão

apenas dizia que o conhecimento deveria partir do inteligível para então compreendermos o

sensível. Num certo sentido, é justamente isso que Galileu faz: retomar a experiência ao

domínio do conhecimento, como fim, não início. Mas não é só Gailileu. Tycho Brahe (1546-

1601) foi uma dos maiores "experimentadores" deste período, realizando observações

extremamente acuradas das órbitas dos planetas. Nesse ponto, não interessa muito no que Brahe

acreditava, interessa apenas que ele fazia observações e as tomava como parte do conhecimento.

Foi Johannes Kepler (1571-1630), que era auxiliar de Brahe, quem, a partir das observações de

seu mestre Brahe, construiu um sistema para as órbitas celestes, que funcionava extremamente

bem, e que acima de tudo, tinha sido derivado a partir de observações9. Kepler foi um dos

primeiros, se não o primeiro, a construir uma teoria sobre os planetas densamente apoiado em

observações.

O próximo passo é Isaac Newton (1642-1727). Apenas 100 anos depois da morte de

Galileu, Newton nasce. Quando Newton começa a desenvolver sua teoria, a experiência já é

parte fundamental do conhecimento humano. Além disso, nesse momento, o conhecimento da

natureza está desvinculado das normas da religião. Os cientistas e filósofos estão quase

completamente livres para pensarem o que melhor cabe ao mundo. Mas o que Newton faz de

tão importante? Há pelo menos duas coisas que fazem com que o nome de Isaac Newton esteja

no lugar onde está. A primeira é que Newton desenvolve uma teoria física que reúne de modo

extremamente simples e elegante, em poucas equações, o comportamento de todos os corpos,

sejam aqueles na Terra, sejam aqueles nas órbitas celestes. Newton reúne apenas com o poder

da razão todo o conhecimento da natureza, acima e abaixo da Terra, em poucas e eficientes leis.

As leis da natureza passam a ser as leis de Newton. A segunda coisa que assegura o lugar de

Newton, é que ele fez tudo isso usando apenas a razão e a experiência. Nada mais ele fez para

conhecer a natureza; e como sua empreitada foi extremamente bem sucedida, o modelo de

investigação de Newton passou a ser referência para todas as áreas do conhecimento. Com essas

duas características que são copiadas até hoje, devido ao grande sucesso, temos a revolução

cientifica do século XVII.

Teoria do Conhecimento: A questão da subjetividade

9 Na astronomia clássica, para conhecer as órbitas dos planetas deveríamos descobrir a sua "órbita ideal", ou a órbita perfeita, e essa seria a órbita verdadeira. Não havia “experimentação”.

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Apesar de Montaigne e Bacon antecederem René Descartes, este último é

indubitavelmente o pai da Filosofia moderna. Assim o é por causa da introdução de um tipo

específico de argumentação feita por Descartes. Vejamos qual seja.

Descartes é influenciado por uma série de dúvidas que permeiam sua época,

principalmente aquelas que abalam o conhecimento, como Montaigne faz. O ceticismo

reaparece no começo da modernidade com toda a força e coloca em xeque todas as crenças,

sejam elas filosóficas, culturais ou religiosas. Diante desta ameaça da possibilidade do

conhecimento, Descartes escreve sua obra, onde pelo menos dois textos se destacam: "As

Meditações" e o "Discurso do Método".

O argumento presente nestes dois livros é muito semelhante, havendo apenas uma

mudança na forma. Em ambos os textos, Descartes pergunta: como é possível vencer o cético?

Ele descobre que o único modo é inicialmente verificar se o ceticismo pode estar certo e até

onde ele poderia chegar. Para isso, Descartes ‘toma todas as suas crenças que parecerem

problemáticas, como falsas’, ou seja, ele opta por duvidar de tudo. Para tal, ele pergunta duas

coisas: (1) e se eu estivesse sonhando agora, como poderia garantir que minhas experiências

seriam verdadeiras? e (2) e se Deus quisesse me enganar agora, será que eu poderia ainda sim,

saber alguma coisa? Com esses dois argumentos, extremamente gerais e poderosos, Descartes

coloca tudo em dúvida.

Para sair desta dúvida, e vencer o cético, ele precisa de uma certeza inicial, um

argumento que sobre o qual não restasse nenhuma dúvida. Descartes então diz: posso estar

enganado sobre tudo, mas ainda há alguém que pensa estar enganado, se eu penso, eu existo, é

assim que temos o seu "penso, logo existo" (Cogito, ergo sum). A primeira certeza que

Descartes alcança é a certeza de que ele existe. Todo o conhecimento que será alcançado

posteriormente por Descartes irá derivar desta certeza básica, a certeza do eu. Esse movimento

de Descartes, de apoiar todo o conhecimento no seu próprio eu, é uma manobra semelhante à de

Copérnico que tira a Terra do centro do Universo: Descartes retira o objeto do centro do debate

e coloca o sujeito; não se trata, portanto, de conhecer as coisas, mas sim conhecer o sujeito. É

esse sujeito quem conhece o objeto, e por tal razão, devemos conhecer a mente humana antes de

tentar conhecer os objetos. Antes: só é possível conhecer os objetos através do conhecimento da

mente humana.

Esse é o movimento mais básico que torna Descartes o pai da Filosofia moderna.

Depois dele, todos os filósofos modernos irão encarar o problema do conhecimento da mente,

como o problema mais básico; isso não ocorrerá apenas como racionalistas, como Descartes,

mas outros filósofos, de tendências opostas às dele, terão o mesmo problema à frente, como é o

caso de Locke, Berkeley ou Hume, empiristas que afirmam a necessidade do conhecimento da

mente humana antes do conhecimento do objeto.

Page 41: Apostila Filosofia Vestibular

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Esse passo dado por Descartes é levado às últimas conseqüências com Immanuel Kant,

que vai fazer sua "Crítica da Razão Pura". Kant apresenta uma das mais impressionantes

análises de toda a história da Filosofia, e vai teorizar que a mente, de uma certa forma,

"constrói" um objeto para ela. Coisas como a idéia de "espaço" ou "tempo" não são categorias

dos objetos fora do sujeito, mas sim da própria mente do sujeito. Kant mostra que não há como

saber como são as coisas em si, fora do sujeito, tudo o que podemos conhecer são aquelas coisas

representadas pelo próprio sujeito. Com isso, Kant, coloca o sujeito no absoluto centro da

questão de todo o conhecimento, e acaba por excluir uma reflexão sobre a "possível realidade"

dos objetos fora da mente dos sujeitos.

Teoria do Conhecimento: Racionalismo e Empirismo

O Racionalismo e o Empirismo são os motores do debate intelectual da primeira parte

da Filosofia moderna. Esse debate começa com Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes

(1596-1650). A grosso modo, os racionalistas afirmam que o conhecimento só pode ser obtido

através da razão, e os empiristas vão dizer que o conhecimento só pode ser derivado a partir da

experiência. Abaixo irei explicar essas duas correntes nas suas linhas gerais, citando alguns de

seus principais expoentes.

O Racionalismo

O racionalismo, além de Descartes teve grandes representantes como Gottfried Wilhelm

Leibniz (1646-1716) e Baruch Spinoza (1632-1677). Irei aqui me concentrar apenas em

Descartes.

Descartes afirma que todo o conhecimento que provém da experiência pode ser

provavelmente falso, e que o conhecimento deve passar por uma revisão absoluta. Para tal,

Descartes duvida de tudo o que há na experiência e afirma, como sua primeira certeza, que se

ele pensa, então existe. Esse movimento de argumentação tem uma clara tendência: desvalorizar

o que provém da experiência e afirmar que todo argumento verdadeiro provém diretamente da

razão. Para deixar esse ponto ainda mais claro, Descartes afirma que ele só pode tomar como

verdadeiras e justificadas aquelas idéias que são claras e distintas, e esse tipo de idéia para ele

não poderia derivar da experiência, apenas da razão.

Descartes mostra então, partindo do seu "penso, logo existo", que existem algumas

idéias em nós, que não derivam da experiência, idéias estas absolutamente verdadeiras: são suas

"idéias inatas". Um dos argumentos de Descartes para prová-las é o seguinte: somos seres

limitados, e que, portanto, só podem pensar em coisas limitadas, mas ao mesmo tempo, temos

idéias como "perfeição" ou "infinito” que são idéias que ultrapassam nossa limitação. Para

Descartes, essas idéias não podem derivar da experiência, porque não encontramos nada na

natureza que seja, por exemplo, infinito. Sendo assim, essas idéias nascem conosco. As idéias

inatas, como as de perfeição ou infinito, só podem ser conhecidas por nós, numa investigação

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puramente racional, que purgue o conhecimento de toda a experiência. É somente a partir dessas

idéias inatas que o conhecimento é possível, e para chegar a elas, devemos usar apenas a razão,

eliminando os sentidos.

O racionalismo mostra que só há conhecimento perante aos poderes da razão, e que

quando procuramos uma resposta a partir da experiência, nós frequentemente erramos.

O Empirismo

Além de Bacon, que citei acima, se destacam como grandes empiristas, Thomas Hobbes

(1588-1679), John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e principalmente David

Hume (1711-1776). David Hume é geralmente considerado o maior de todos os empiristas, por

ter levado essa tese ao último grau possível.

Duas obras de Hume são fundamentais, a saber, o "Tratado da Natureza Humana" e o

"Investigação acerca do Entendimento Humano". Em ambas, Hume afirma que todo o

conhecimento humano provém da experiência sensível. Para isso, Hume segue de perto a tese de

Locke que afirma que a mente humana é uma "tabula rasa" e que conhece apenas quando é

"preenchida" por experiências. A partir disto Hume vai fazer uma análise da mente humana. Ele

descobre que tudo o que temos na mente são idéias e impressões, sendo que as idéias são cópias

das impressões e estas últimas derivam da percepção. Tudo o que temos na mente são

percepções na forma de idéias e impressões. Essas idéias se relacionam entre si para formar

novas idéias através de três relações básicas: "semelhança", "contigüidade" e "causa e efeito".

Hume descobre na sua investigação que a esmagadora maior parte do conhecimento está

baseada na relação de causa e efeito, e propõe investigá-la. Basicamente, a causalidade funciona

assim: eu percebo num primeiro momento o "fogo", logo em seguida, eu percebo "fumaça",

essas duas idéias, são relacionadas na mente através da relação de causa e efeito.

Hume pensa então, o seguinte: se quase todo o conhecimento está baseado na relação

causal, qual prova experencial que eu tenho de que esta é uma relação justificada? Ele diz: uma

experiência me informa que agora estou vendo fogo, e então, vejo fumaça, mas o que garante

que essa relação causal irá se repetir no futuro? A experiência irá me dar apenas certeza sobre o

que vejo agora, mas ela não pode garantir que o futuro se repita igual ao passado. Segundo ele,

nossa relação causal não pode ser justificada. Quando ele diz isso, temos a seguinte conclusão:

se o conhecimento está baseado na relação causal e esta é injustificada, logo o conhecimento é

injustificado. Dado isso, Hume se pergunta: se o conhecimento é injustificado, por que

acreditamos com tanta energia na relação causal?

Sua resposta é absolutamente inovadora, e marcará toda a reflexão posterior. Hume

mostra que nossa relação causal está baseada numa relação psicológica, o hábito. Nossas

crenças, na verdade, não possuem uma justificativa racional, mas, ao contrário, nossas crenças

funcionam através de um mecanismo psicológico próprio da mente humana. Hume localiza pela

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primeira vez o conhecimento humano no seguinte par: uma relação entre nossas experiências e

um mecanismo mental oriundo da natureza humana. Desta forma, não há conhecimento dado

pela razão, apenas um conhecimento dado a partir da natureza humana

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Temas da Filosofia Contemporânea

A concepção de ser humano na Filosofia contemporânea: existência e o ser

humano como objeto da ciência

Nossos tempos, diante deles quem somos? A pergunta acerca do que é o ser humano

atravessou toda a história ocidental e vai perdurar conosco. Mais recentemente duas questões

acerca de quem somos tornaram-se centrais, a primeira pergunta acerca do que exatamente

significa existir, e a segunda pergunta como nós nos colocamos perante a ciência. Essas duas

perguntas não nasceram agora, mas foi no século XX que elas se colocaram como o centro da

questão.

Os filósofos que se dedicaram centralmente à primeira questão são chamados de

Existencialistas. O movimento existencialista teve seu início na última metade do século XIX

com dois filósofos, um dinamarquês, Sören Kierkgaard e um alemão, Friedrich Nietzsche. Já no

século XX os nomes mais expoentes do movimento existencialista são os de Martin Heidegger,

Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Obviamente o tratamento de cada uma das questões

é peculiar e deveria ser analisada uma a uma, mas não podemos fazer isto aqui. O objetivo aqui

é entender em geral como a questão da existência é colocada, e para isso devemos colocá-la.

Basicamente a pergunta que todos fazem é: o que significa a nossa existência? Há três

características de nossa existência, segundo esses filósofos.

A primeira é marcada por uma famosa frase de Sartre que diz “a existência precede a

essência”, ou seja, nossa existência vem antes de nossa essência. Essa frase quer mostrar que

nós nascemos como seres individuais, sem características a fora de nossas biológicas; nascemos

sem nenhuma pré-consideração, sem nenhum destino, sem nenhum plano divino. Primeiro

existimos. Você ai que está me lendo, nasceu, e nasceu sem destino, sem identidade. Sua

identidade, suas características, sua essência, vai ser determinada por você. Você é quem vai

determinar quem você quer ser, qual será sua essência. Então, primeiro nascemos sem planos,

sem uma essência, sem um destino, depois criamos nossos planos, nossa essência, nosso

destino. Assim, você é quem cria quem você é.

Somos livres para escolher o que quisermos ser, e ser livre significa além de poder agir

da forma que quisermos, que devemos ser responsáveis por nós, por nossas ações no mundo, e

pelo próprio mundo. Essa liberdade é a segunda característica de nossa existência.

Somos essencialmente livres, o que não é fácil. Ser livre, como eu disse acima, não é só

fazer o que você quiser, mas ser responsável diante do que você faz. Assim, somos totalmente

responsáveis pelo o que nos tornamos. A idéia geral será: não importa o que a vida fez com

você, importa o que você fará diante disto. Isso é ser livre e assim nasce sua real e verdadeira

Page 45: Apostila Filosofia Vestibular

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essência. Aqui surge a terceira característica de nossa existência. Segundo os existencialistas,

agir no mundo não é seguir o que os outros querem, não é agir igual todos agem apenas para ser

aceitos, ao agirmos assim perdemos nossa existência, nos perdemos e deixamos de ser.

Devemos tomar nossa vida e agir autenticamente, com claridade e intensidade, devemos

escolher nossos caminhos por nós mesmos, construir nossas vidas como nós acreditamos ser o

verdadeiro.

A existência dos seres humanos, sua, minha, não pode ser uma guiada por que os

outros acreditam, mas deve ser guiada por nós mesmos. Assumir as responsabilidades da vida é

existir realmente, tomar as rédeas da vida e tornar que queremos. Mas isso não é fácil, mas só

assim somos autenticamente seres humanos.

Assim há três características do movimento existencialistas, a saber, 1) a existência

precede a essência, 2) somos responsáveis pelos nossos atos, 3) devemos nos auto-determinar e

não seguir a vida como os outros querem.

Falei inicialmente que havia duas questões, a primeira, acerca da existência foi tratada

pelo movimento existencialista, e a segunda, acerca das relações do ser humano com a ciência,

também foi tratada pelos existencialistas, mas essa questão não se limitou a um movimento só.

Desde a modernidade, quando a ciência alcançou uma importância enorme na vida das pessoas,

os filósofos se colocaram a pensar em como a ciência se relacionava conosco. Não vou me fiar

inicialmente em filósofos específicos, vou tentar dar a você uma imagem mais geral do

problema. Pensemos dois exemplos.

O primeiro é o da possibilidade técnica cientifica de eliminar nossa própria existência,

através de uma bomba ou de um vírus. Antes da ciência o ser humano era poderoso: podíamos

dizimar civilizações inteiras que ainda existiríamos como espécie. Com a habilidade técnica que

desenvolvemos chegamos à redução de nós mesmos, já que uma bomba pode nos destruir, não

como indivíduos, mas como espécie. A nossa habilidade técnica nos diminuiu. O mais

importante aqui, é que nós mesmos chegamos a um tal ponto que nosso conhecimento mesmo

pode nos destruir. A ironia aqui não é fina, é direta: conhecemos tanto que sabemos agora como

nos destruir. Mas a ciência não é má. A técnica não é má. O desenvolvimento do conhecimento

é parte do que nós somos, mas uma vez que percebemos que a técnica alcançou o ponto mais

grave de toda a história da civilização humana temos de ser mais responsáveis, porque não está

em questão, nós mesmos como indivíduos, mas como espécie. O nosso remédio, é a ciência, e

ela é a nossa droga. Esse limite estreito entre um remédio e uma droga deve ser analisado com

cuidado e responsabilidade.

O segundo caso, filosoficamente mais grave e geral é o do projeto genoma. Em si

mesmo é um excelente projeto para mapear nosso código genético, para principalmente poder

ajudar no tratamento médico. Mas essa inocência traz um grave problema existencial. A questão

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toda é saber se nós somos idênticos ao nosso código genético. Somos nossos genes? Muitos

geneticistas diriam que conhecer o código genético é conhecer o próprio ser humano. Será que

eles estão corretos? Conhecer os genes é decifrar a alma humana? Não há uma resposta fácil a

essa questão porque o desenvolvimento dessa técnica ainda não está em sua totalidade. Estamos

imersos numa enorme incerteza acerca de nós mesmos.

Nosso poder para conhecer a realidade nunca foi tão alto. Nossa arrogância de sermos

capazes de conhecer e dominar tudo também nunca foram características tão exacerbadas.

Somos, no conhecimento e na Ética, determinados apenas por nós mesmos. Mas, determinarmos

a nós mesmo, não é só fazer o que quisermos, é sermos responsáveis naquilo que fazemos. A

ciência não é má, nem boa. O conhecimento não deveria ter de ser barrado. Mas a grande

questão é: será que há um limite para nosso conhecimento?

Bem, esses dois exemplos permitem pensar em duas grandes questões que relacionam o

ser humano à ciência, a saber, a (1) explicação do ser humano passa a ser predominantemente

científica e (2) as inter-relações entre a ética e a ciência. Vejamos cada uma dessas questões.

(1) A partir do início do século XX, com os grandes desenvolvimentos na biologia,

medicina e principalmente na genética, aos poucos foi se formando um quadro explicativo do

ser humano em termos puramente biológicos. Isso quer dizer, que as “ciências biológicas”

(biologia, medicina, genética, etc.) foram capazes de explicar muitas de nossas características a

partir de descrições cientificas. Nesse quadro somos ou um punhado de genes, ou uma

complexa organização de sistemas biológicos que podem ser explicados e re-organizados pela

ciência. Essa idéia de uma total redução do ser humano à ciência é realmente muito nova. No

passado filósofos e cientistas acreditavam que nós não poderíamos ser reduzidos ao mero corpo

físico. E aqui, eu não estou falando só em uma perspectiva religiosa, onde nós somos bem mais

que o corpo, mas estou falando na idéia de que o que nós somos transcende nossas

características biológicas, por exemplo, acreditava-se que a nossa “cultura” transcendia nossa

mera fisicialidade, ou ainda, que há em nós uma “mente” que não é reduzível a nenhuma parte

física. Todavia, hoje em dia, há muitas e influentes correntes das ciências biológicas que

acreditam completamente numa redução de coisas como “cultura” e “mente” em fatores físicos.

Dada essa questão, temos duas perguntas: será que tudo o que nós somos pode ser

explicado totalmente através de dados empíricos? Será que colocar toda a nossa dimensão

humana apenas numa área, qual seja, a ciência, é interessante do ponto de vista explicativo? Não

há uma resposta definitiva, e nem vai haver pelos próximos anos.

(2) A segunda questão que comentei acima, aparece novamente por volta do início e

meados do século XX. Nesse período, por causa do impressionante avanço da ciência, passamos

a ser capazes de desenvolver tecnologias surpreendentes. Essas tecnologias são como o clássico

exemplo grego do vinho: se uma pessoa bebe demasiadamente vinho, ela fica alcoolizada, se ela

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bebe a medida certa, ela desfruta o sabor do vinho, mas em ambos os casos, o prazer e o não-

prazer, parecem estar no vinho, todavia, eles não estão; o vinho mesmo não é bom ou ruim, ficar

ou não alcoolizado é de responsabilidade do sujeito. A partir disto, a ciência não é boa ou ruim,

ela é apenas ciência, o que devemos avaliar é o uso dela. Bem, aqui está o problema ético: como

saber o que é o “alcoolismo” ou o excesso da ciência? Para determinar isso, precisamos de uma

fina teoria ética que avalie como deve ser a ação humana. Mas, invariavelmente, as pessoas têm

a tendência de não compartilhar o mesmo padrão ético (o que não é de todo mal, nem bem), o

que acaba gerando distorções éticas difíceis de serem equilibradas.

Mas existem soluções locais: os conselhos de ética. Esses “conselhos” existem nas

universidades e nos governos na maioria dos países e serve para regular a prática da ciência.

Mas no fundo não há como haver uma regulação total, afinal, não existe como saber o que todos

os cientistas estão fazendo agora. De todo modo, o problema está numa reavaliação ética da

ciência e não na ciência mesma. O importante é verificar até onde ela vai, e até onde deveria ir.

Quanto aos resultados desse processo, não saberemos agora.

Ética e Política Contemporânea: A Crítica à Consciência: Marx, Nietzsche,

Freud

Vou apresentar aqui um mesmo problema visto de três posições diferentes. O problema

a ser tratado é a idéia de consciência, seja uma consciência do lugar do estado e da economia,

seja um lugar da natureza na consciência humana, seja um lugar da psique humana. Essas três

versões da crítica à consciência serão vistas em três filósofos: Marx, Nietzsche e Freud.

Todavia, aqui, como em outros lugares, muito mais do que oferecer a tese destes três, o que,

diga-se de passagem, seria impossível num espaço curto, o objetivo aqui será uma visão de três

posições.

Marx: A alienação

Quase todos os grandes pensadores desenvolveram uma teoria acerca de como a maioria

das pessoas vive num estado de ignorância. Karl Marx desenvolveu uma importante e influente

teoria justamente sobre esse estado de ignorância que ele chama de “alienação”. Para Marx a

grande causa dessa alienação é a realidade econômica política da qual fazemos parte. Essa

introdução da idéia de “economia” na análise da ignorância humana não é nova, afinal ela já

estava presente em alguns filósofos ingleses, como Adam Smith, mas é totalmente reformulada

e ganha contornos novos em Marx.

Para Marx, a alienação, ocorre por causa da situação do povo (ou proletariado) no

trabalho. Marx, analisando as enormes conseqüências das revoluções industriais e do

desenvolvimento da ciência e da técnica percebe que o trabalhador, principalmente os das

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fábricas, cada vez mais perde o controle sobre o seu trabalho. A técnica é tão avançada que o

trabalhador perde sua capacidade de ver para que o seu trabalho realmente serve. Assim, um

operário pode passar a vida instalando alguma peça de um computador sem nunca ter nenhuma

idéia de como essa peça funciona. Esse movimento traz uma importante ruptura na vida

humana: a ruptura entre pensar e fazer. No modelo de trabalho contemporâneo, o trabalhador

freqüentemente só age, e perde a dimensão do seu trabalho, justamente porque ele não é capaz

de refletir sobre ele.

Nesse processo do operário com aquilo que ele produz gera duas grandes

conseqüências: a primeira delas é que o objeto ganha um status superior ou mais poderoso que

o próprio operário que o fez. Um caso simples é pensar que um operário pode viver montando

computadores, mas não fazer a mínima idéia da importância do computador na sua vida, mesmo

que essa seja uma importância decisiva; esse processo é chamado de fetichização da mercadoria.

A segunda conseqüência é que o trabalhador, por ocupar uma posição tão inferior ao objeto, ele

passa a ser, em si mesmo, não um ser humano, mas uma ferramenta de produção do objeto. Essa

é a reificação (coisificação) do ser humano.

Reunindo essas duas conseqüências, Marx deixa clara a alienação do atual homem

contemporâneo, mostrando que devemos evitar essa relação de retificação, para que o ser

humano não seja perdido.

Nietzsche: Crítica à Moral

Friedrich Nietzsche é um dos filósofos mais difíceis de serem apresentados aqui. Assim,

optei por apresentar não uma coleção de seus pensamentos, mas a idéia que o inspira. O ponto

central aqui é uma rejeição da antiga moral e da religião e assumir a natureza humana.

No percurso filosófico que partiu de Sócrates, passando pelos Medievais, Renascentistas

e Modernos duas teses predominaram na moral: (1) o valor moral deveria estar fora da natureza

humana, o que quer dizer que nossa natureza humana nos conduz ora ao pecado, ora à

submissão aos desejos, ora ao puro erro. Essa tese é muito forte em quase todos os filósofos que

buscavam uma origem para a moral que evitasse os erros da natureza. (2) A segunda coisa é o

estabelecimento da “verdade”, seja moral ou epistêmica, fora da natureza humana. Isso quer

dizer que a fonte do conhecimento e a fonte da ação correta, deveriam ser estabelecidas de um

modo que evitasse e principalmente negasse a natureza humana.

Nietzsche é um dos grandes combatentes destas duas teses. Sua energia se concentra em

mostrar que esse processo, comandado por esses dois tópicos acima, está no seu fim. A moral

enquanto negação da natureza humana, enquanto primado da moral pela razão está no seu fim.

Isso ocorre porque negar a natureza humana, negar nossa característica animal, é negar quem

nós somos. A partir daí Nietzsche localiza sua descrição do ser humano numa imagem

Page 49: Apostila Filosofia Vestibular

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“naturalista” que pode ser compreendida com o auxílio da ciência. Essa visão “naturalista” não

é nada mais que o reconhecimento do ser humano como um animal como outro qualquer e que

devemos deixar emanar de nós nossas características naturais. Um dos casos mais claros deste

ponto é a imagem do Sexo. Frequentemente, mesmo hoje, o Sexo, parte fundamental da

natureza humana é visto como algo errado, sujo, impuro e imoral. Essa imagem é trazida pela

idéia de uma moral fora da natureza humana. Mas pensando a ação ética dentro da natureza

humana, o sexo não seria mais demonizado, mas sim abraçado como parte de nossa natureza.

Acima de tudo essa imagem da tese de Nietzsche, serve para mostrar o quanto estamos

fechados numa imagem específica de moral que nos guia. Essa crítica da moral serve para

indicar a fragilidade de princípios, que por estarem fora da natureza humana, apareciam como

inabaláveis.

Freud: O subconsciente

Se continuarmos nesse caminho de Nietzsche, a próxima conseqüência teórica é

Sigmund Freud.

O que Freud traz de novo é uma análise sobre como nós agimos. A imagem clássica da

“ação humana” é que agimos de acordo com motivos e razões bem determinadas. Por exemplo,

eu compro uma casa porque quero morar nela, ou porque preciso de abrigo, ou qualquer coisa

que o valha. Segundo essa tese, nossa ação seria determinada por nossas razões.

Em sua análise sobre a mente humana, Freud mostra uma faceta que não estava presente

nas teses anteriores. Segundo Freud, a maior parte das ações humanas não é decidida por razões

conscientes, mas sim por razões, ou motivos inconscientes. Assim, Freud apresenta a idéia do

“subconsciente”. Aqui não é interessante fazer uma longa explanação sobre a mente humana

que Freud faz, mas a questão é principalmente mostrar como essa idéia de um subconsciente

atua no ser humano.

O ponto aqui, é que nós não agimos através de um cálculo racional apenas. Mesmo que

acreditemos que nos agimos através de razões e motivos bem determinados e racionais, na

verdade, na enorme maioria dos casos, nossas motivações de nossas ações não são explicitadas

como argumentos, mas são motivações não racionais, não verbalizadas, que fazem parte deste

subconsciente. O subconsciente não é nada mais do que uma parte não propriamente racional de

nossa mente, que é governado por impulsos, desejos, emoções, lembranças, fatos e pela

educação que tivemos. Essa reunião de fatores é no final o nosso motor maior.

Essa teoria de Freud apresenta um ponto curioso para a tradição clássica: se não agimos

através da razão, como pensar a ação humana? A tese de Freud levanta a tese de que nem tudo

está poder de nossa parte consciente, e aquilo que está no subconsciente, que determina a vida

humana, deve ser analisado e deixado fluir, para que não alcancemos problemas psicológicos

Page 50: Apostila Filosofia Vestibular

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graves. Assim, libera-se e reconhece a importância do subconsciente, enquanto real motivador

da ação humana.

Ética e Política Contemporânea: Totalitarismo e Democracia

Uma das perguntas mais difíceis e sempre presentes das nossas investigações políticas é

saber como o Estado deve se comportar ou deve agir diante o povo. Para fazermos uma rápida

revisão, vemos o seguinte:

1. Na Grécia surge a democracia, que é um regime político que afirma a igualdade entre os

cidadãos. Ela será decisiva em todo o avanço político posterior.

2. Durante o período Medieval reinava uma relação direta entre o Estado e a Religião,

onde era a partir dos “desígnios divinos” que o estado deveria ser mantido. A população

deveria apenas se sujeitar as ordens do estado-religião.

3. Na Modernidade, enfocamos a idéia do “Soberanismo”, onde o governante se identifica

a tal modo com o estado que eles passam a ser “a mesma coisa”. Apesar de termos

idéias novas, como o dever de respeitar o povo, o estado moderno ainda era

basicamente centrado, mas não na religião, mas no governante, que ocupava um lugar

decisivo.

4. Chegamos ao período contemporâneo, nossa época, permeada de revoluções e novos

governos, muito distintos entre si. Irei enfocar abaixo dois tipos: o totalitarismo e a

democracia.

O Totalitarismo10

O totalitarismo é uma expressão típica, principalmente da primeira metade do século

XX11. O totalitarismo é um tipo de governo que prega a identificação total entre o povo e o

estado. Vejamos como isto se dá.

O primeiro ponto aqui é uma idéia de uma “ideologia” que uniria o estado. Essa

ideologia é geralmente uma forma exacerbada de nacionalismo que convoca as pessoas a

participar do estado em prol do estado, e consequentemente deles mesmos. O que dá coesão ao

estado totalitário é a força das idéias que ele apresenta. Esse é um ponto fundamental: apesar de

haver coerção física, geralmente o povo apóia o estado totalitário. A explicação deste ponto não

é muito difícil de obter, afinal ela reside no poder do ideal. O estado totalitário afirma que o seu

povo é excelente, de alguma forma perfeito e que a sua união é necessária na construção do

10 Uma outra versão de governos ditatoriais é o “autoritarismo”, principalmente localizado na América Latina. Ao contrário do totalitarismo, o autoritarismo não tem uma ideologia que supostamente vise a união do povo. 11 Três são as grandes representações da idéia de totalitarismo que irei aqui abordar: O modelo Italiano de Mussolini, o Alemão do Nazismo e A URSS com Stálin. Apesar destas três representações do totalitarismo terem óbvias diferenças e peculiaridades, irei me concentrar na idéia geral do totalitarismo, que é compartilhada por todos estes modelos.

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estado. A oferta é muito boa. Chamam-nos de perfeitos e tudo o mais; dão-nos um lugar

privilegiado no mundo; é nos oferecida uma saída para a depressão economia. Isso acabava por

trazer uma adesão massiva do povo ao regime. O regime, pelo menos no ideal público, seria

uma expressão do próprio “povo poderoso”.

Essa ideologia era construída de dois modos, a saber, através da propaganda e da

educação. A peça principal e mais imediata dos estados totalitários era uma forte propaganda

que visava oferecer ao povo a ideologia, sempre buscando, de um modo ou de outro enaltecer o

povo. Ora dizia que o povo é o melhor, ora mostrava suas “grandes características” em oposição

aos “grandes defeitos” dos outros povos, ou ainda tentava criar através de simbolismos, imagens

e outros, um espírito de amor ao regime. Essa tarefa da propaganda era tão bem executada, que

o objetivo de trazer o povo para o estado foi obtido com grande sucesso. Um exemplo definitivo

foi que ao final da II Guerra Mundial, quando Berlin se encontrava sitiada pelos Americanos e

os Russos, e o Exército Alemão estava em frangalhos, o povo saia para as ruas para combater os

inimigos do regime. O outro ponto de trazer o povo para o estado e o identificar com ele, era

através do sistema educacional. Esse fora, em todos os estado totalitários “reorganizados”, e a

educação passou a ser controlada pelo estado e pela “ideologia”. O povo deveria aprender

apenas aquilo que revela a beleza de sua própria nação e a ojeriza aos outros estados.

Mas o regime totalitário, ao supostamente trazer o povo para o estado, ele na verdade

centrava de modo absoluto o poder do estado em poucas figuras defensoras da ideologia. Esses

governantes tinham no totalitarismo todo o poder necessário para fazer o que fosse necessário

para manter o estado, inclusive cercear a liberdade de quem quer que seja. Essa repressão foi tão

forte que literalmente eliminava as oposições ao governo. Não há distribuição partidária, afinal

não há ideologias diferentes, há apenas um partido.

Esse tipo de regime nacionalista e centralizador do poder, enquanto “catequizava” o

povo, foi o grande responsável pelos maiores massacres da história da humanidade, como por

exemplo, o holocausto nazista.

A Democracia

A Democracia contemporânea conserva apenas algumas relações com a democracia

Grega. A principal característica que une essas duas épocas de democracia é a idéia de que

todos os cidadãos têm direito a opinar na condução do estado. Mas como a idéia de uma

participação total do povo nas decisões do estado é impossível, temos o modelo contemporâneo:

a democracia representativa, onde quem representa é o partido.

Ao contrário do regime totalitário que só possui um partido, por só ter uma idéia, no

regime democrático, temos uma multiplicidade de partidos, que deveriam representar a

multiplicidade de idéias e posições existente no estado. A democracia reconhece a

heterogenidade do estado e faz essa a sua principal marca. Essa “heterogenidade” é o fato de

Page 52: Apostila Filosofia Vestibular

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que num estado, há diversos modos de se posicionar. Nesse sentido, o regime democrático não

elimina os partidos (ele pode eliminar apenas aqueles partidos que prezam o fim dos partidos), e

faz com que todos os partidos possam ter sua voz, de acordo com a quantidade de pessoas que

este partido representa.

O poder do estado, no regime democrático contemporâneo, não é personalizado em uma

só pessoa, mas em conjuntos de instituições, variando de um regime parlamentarista até um

presidencialista. De todo modo, em todos esses tipos de regimes, as pessoas que estão no poder

não são ditadores de uma idéia, mas representantes de uma idéia que emanaria do povo.

A grande marca do estado democrático é sua força pela multiplicidade. Esse estado é o

mais forte, porque não depende de pessoas ou idéias supremas, mas ele aceita e abraça a

variação; mas é geralmente o mais frágil também, porque por meio dessa pregação da variação o

estado pode ser dominado por uma idéia mais bem expressada e que irá imperar no estado. O

grande jogo democrático é abrir o espaço de discussão sem que esse espaço seja destruído por

esta própria liberdade.

Teoria do Conhecimento: A Filosofia e Ciência Contemporâneas

Clonar seres humanos é uma ação correta? Utilizar as equações da mecânica quântica

para criar uma arma capaz de dizimar a civilização é uma ação correta? A teoria indutivista é

válida epistemicamente? A normatividade deve ser a regra epistemica para a psicologia? Se nós

olharmos com atenção veremos que há dois pares de perguntas acima, que apesar do tema

diferenciado tem uma mesma motivação básica, a saber, a relação entre ciência e Filosofia. É o

seu gosto filosófico que irá conduzi-lo para um dos dois pares de questões: o primeiro é uma

pergunta sobre a ação, e a Ética é a disciplina filosófica que versa sobre este primeiro par; o

segundo par de questões incide sobre a questão do conhecimento, e a disciplina da Filosofia que

se foca nestas questões é a Epistemologia. Vejamos as duas disciplinas abaixo e suas relações

com a ciência.

A Ética e a Ciência

Vamos supor a seguinte situação: a clonagem já é possível e segura a seres humanos.

Um dia seu pai morre, e você decide cloná-lo e dar-lhe novamente vida. Será que a sua ação

seria eticamente correta? Será que clonar uma pessoa querida apenas por que isso é possível é

algo que eticamente é plausível? Não irei aqui arriscar uma definição geral da Ética, mas irei

invocar uma noção básica que todos nós em um momento ou outro da vida já nos deparamos:

devo fazer simplesmente por que é possível?

Page 53: Apostila Filosofia Vestibular

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A ciência é uma técnica altamente avançada e que dá poderes incríveis àquele que a

possui, a correta utilização desta técnica é um problema? Será que a utilização da técnica

científica, independentemente das conseqüências que esta técnica pode ter, é algo que deve ser

feito, ou antes, devemos refletir minuciosamente cada efeito de cada ação permitida por tal

técnica? Marcelo Gleiser renomado cientista brasileiro afirmou certa vez que a ciência é um

trem descarrilado que não é possível de ser imobilizado, se assim, devemos então utilizar a

ciência conforme o que nos for necessário. Mas e se jogarmos uma bomba atômica porque

podemos, ou melhor, destruíssemos o mundo porque podemos, estaríamos realizando uma ação

correta? Aqui é importante não uma definição estrita do que seja ética, mas antes a abertura para

a questão ética. Todas estas questões que coloquei podem ser interpretadas e reinterpretadas

pelas definições mais díspares de ética, mas no fim, e no início o que é importante é que você

seja capaz de identificar a pergunta e notar a sua relevância. A pergunta ética está ligada

diretamente à ciência por que esta última abre inúmeras possibilidades de ação, que afinal é o

que a ética estuda. Se uma ação pode ser perpetrada só por que a ciência disse que é possível

que assim o façamos não é obrigado que façamos. Possibilidade da ação não é igual à

efetividade da ação. Nesse sentido é importante notar a importância que a pergunta ética deve

ter numa sociedade permeada de ciência como a nossa. Se o trem não pode ser parado, e se nós

estamos no trem devemos tentar dar o melhor rumo possível a ele. É isto que deve ser fixado,

pelo menos, em uma primeira abordagem da relação entre ciência e ética.

A Epistemologia e a Ciência

Epistemologia é o ramo da Filosofia que estuda o conhecimento humano, desde suas

possibilidades até como ele se apresenta, ou ainda sua adequação ao mundo. A epistemologia

por isso se aproxima muito das ciências, e esta aproximação se dá principalmente com duas

ciências básicas: a física e a psicologia.

No que tange a física o relacionamento da Filosofia com esta ciência deste o início da

física foi bastante estreito. A pergunta epistemológica sempre esteve nos principais filósofos,

em suas mais variadas formas, como em Immanuel Kant que se perguntava quais são os limites

do nosso conhecimento. Além disso, os filósofos não se contentavam em derivar questões da

física, mas a sua atividade envolvia a pergunta pelo método científico e sua veracidade. Será

que o método indutivo é o melhor método para a física proceder? Esta pergunta está arraigada

no seio da física já que ela, tenta ao mesmo tempo ser verdadeira e observar apenas alguns fatos,

não todos. Mas se eu investigar o particular conhecerei o universal? Essa é a pergunta

epistemica sobre o método de investigação da física. Existem outras questões, algumas mais,

outras menos relacionadas diretamente com avanços da física. No que diz respeito aos avanços

da física, a epistemologia não se apaga: alguns problemas em epistemologia derivam

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estritamente da mecânica quântica ou da teoria da relatividade. Um dos filósofos recentes que

manteve uma ligação estreita com a física foi Popper, que você irá estudar abaixo.

Já quanto à Psicologia a Filosofia esteve sempre presente ao lado desta ciência tão

recente (a psicologia não tem mais que um século e meio, já Filosofia não tem menos de dois

milênios e meio). Hoje, mais do que nunca, a psicologia está se fundindo com a epistemologia

de uma maneira que nunca foi visto antes neste ramo da Filosofia. O intercâmbio de questões é

real, e em determinados pontos é apenas em uma solução tanto epistemica, quanto psicologista

que podemos resolver certos problemas. É um caminho que ainda a epistemologia irá traçar ao

lado da psicologia e que está apenas nos seus dias inicias.

Teoria do Conhecimento: O Positivismo: a ciência como única forma de

conhecimento

Há duas acepções da escola positivista, uma a partir de Auguste Comte (1798-1857) e

outra que começa com o que é chamado de “Círculo de Viena”. Vejamos as duas.

O positivismo de Comte

Comte é um filósofo francês que pregava que a ciência era o único modo de conhecer a

realidade. Ele acreditava que a resposta para as questões acerca da natureza poderia ser

encontrada apenas através de uma intensa investigação empírica.

Além dessa tese metodológica, Comte afirma uma outra tese social, onde ele dizia que a

sociedade teria passado por dois "estados" precários e que agora ela estava alcançando um

terceiro estado definitivo. Segundo ele estas fases ou estados se resumem em três: teológico,

metafísico, e positivo. O estado teológico procede todos os outros, ele funda-se no fato de que a

inteligência explica os fenômenos da natureza atribuindo-os à intervenção de divindades e seres

misteriosos e sobrenaturais. O estado metafísico ou abstrato é caracterizado pela substituição de

entidades abstratas às divindades primitivas. As formas substanciais, as faculdades da alma, as

afinidades químicas, a força vital, as qualidades ocultas explicam todos os fatos. No terceiro

estado, o positivo, se reconhece a falsidade de todas as abstrações e substitui-se a investigação

das causas pela observação dos fenômenos e de suas leis, o estado absoluto pelo estado relativo.

O primeiro estado é provisório, o segundo transitório, o terceiro definitivo. O estado teológico

dominou na antiguidade, o metafísico na Idade Média; o positivo nos tempos modernos. A lei

dos três estados preside não só a evolução da humanidade em geral, mas ainda à formação de

cada ciência e ao desenvolvimento do individuo.

Para o positivismo Comtiano a Filosofia se reduz à sistematização geral dos

conhecimentos positivos (baseados na experiência). Daí a importância por ele ligada à

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classificação das ciências. Seguindo o critério da generalidade decrescente, e complexidade

crescente dos fenômenos estudados, Comte enumera seis ciências fundamentais dispostas do

seguinte modo: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. Esta série, que

indica a subordinação e dependência dos diferentes ramos do conhecimento científico, encerra

ainda a vantagem de sua formação histórica e transição para o estado positivo. A sociologia é a

única ciência que ainda não entrou nessa fase definitiva. Esse tipo de positivismo, apesar de ter

gerado uma influência grande em certos lugares, não perdurou por muito tempo.

Neo-Positivismo

A segunda versão do positivismo é chamada de "neo-positivismo" ou “empirismo

lógico” e data do início do século XX. Ele tem como representantes filósofos como Carnap,

Neurath, Hanh e outros. Ele foi um movimento bem mais organizado que a tese de Comte e

gerou conseqüências enormes para toda a história da Filosofia. Deixe-me resumir suas teses.

A primeira grande tese dos neo-positivistas, era o primado da experiência e da lógica.

Para eles uma teoria, seja filosófica, ou científica, deve em alguma medida, ser provada através

de princípios lógicos e através de uma estrita derivação empírica. Para eles, tanto a lógica,

quanto a experiência representavam para as ciências (dentre elas a Filosofia) uma marca de

certeza e clareza.

A partir disto, eles diziam que para que uma teoria seja considerada como verdadeira,

ela deveria poder ser induzida a partir de experiências mais construtos lógicos, onde o que

garantia a certeza da teoria, era essa relação entre o empirismo e lógica. Esse método “indutivo”

consiste em, a partir de experiências, derivar leis e enunciados gerais (veja mais sobre o

indutivismo abaixo, na seção dedica à lógica). Com o passar do tempo, os positivistas

sistematizaram, através da lógica, essa visão indutivista e construíram refinadas teorias

probabilísticas. Com o empirismo aliado à lógica, os membros do Círculo almejavam construir

uma teoria científica mais coesa, e um discurso filosófico que não tivesse mais os antigos erros.

A idéia era trazer para a Filosofia o sucesso encontrado na ciência, fazendo a lógica e o

empirismo servirem de modelo.

Essa tese acabou por implicar na segunda grande idéia destes neo-positivitas: a recusa

da metafísica. Para eles, a metafísica representava tudo o que há de falso na Filosofia, e deveria

ser eliminada. Segundo eles, o grande problema da metafísica era que ela não era nem

logicamente rigorosa, nem tinha nenhum contato com a experiência; desta forma, a metafísica

não poderia ser uma ciência com um discurso significativo acerca da natureza. Assim, a

metafísica, em Filosofia, deveria ser substituída pela análise lógica/empírica da ciência. Essa

reação contra a metafísica, fez com que o eles desenvolvessem o chamado "Princípio de

Demarcação". Por ele, os positivistas entendiam um princípio que poderia demarcar a diferença

entre o que era ciência e o que não era. Basicamente, para eles, tudo aquilo que tivesse uma

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forte base empírica e lógica era ciência e Filosofia de qualidade, tudo aquilo que não possuía tal

base, deveria ser deixado de lado, enquanto investigação da natureza.

O terceiro ponto é a enorme proximidade que os neo-positivistas tem com a ciência.

Para eles, a ciência representava um modelo de sucesso de investigação que ao mesmo tempo

deveria ser copiado e aprimorado. Copiar o modelo da ciência implicava para a Filosofia usar do

método empírico de investigação, fazendo com que implicações dos argumentos tivessem

algum contato com a experiência, para então ser julgada verdadeira. Ao mesmo tempo, os neo-

positivistas, queriam melhorar o discurso da ciência, e para isso, eles achavam que deveria

haver um intenso trabalho lógico na verificação das ciências.

Esse neo-positivismo gerou uma série de reações, dentre elas, se destacam Karl Popper

e Thomas Kuhn.

Teoria do Conhecimento: Crítica ao Positivismo - Thomas Kuhn e Karl

Popper

Karl Popper

Karl Popper (1902-1994) é um dos filósofos mais importantes do início do século XX.

Nascido no seio da Filosofia logicista (aquela que acredita ser possível reduzir teorias à lógica),

Popper caminha num sentido inverso ao dos filósofos logicistas. Duas discussões centrais de

Popper se referem a um debate com a tradição logicista: a indução na ciência e a o critério de

demarcação.

Popper acredita ao contrário dos logicistas, que a da ciência não pode funcionar através

da indução. Essa desconfiança da indução ocorre porque, a indução, enquanto processo

inferencial, é limitada e precária, não sendo capaz de atestar uma veracidade completa às teses.

Popper então indica que devemos ter outro meio de investigar que não a indução, e o método

que ele cunha para isso é a falsificabilidade (veja abaixo).

A outra discussão de Popper contra os logicistas, concerne ao chamado “critério de

demarcação” entre o que é ciência e o que não é ciência. Esse é um problema sério para

qualquer filósofo que se interesse por ciência no período de Popper. Ele afirma que um critério

razoável para saber o que é ciência é se o estudo pode ou não pode ser falsificado.

Vemos assim, que a reação de Popper ao logicismo ocorre principalmente com a sua

tese da “falsificação”, mas afinal o que é falsificação? Popper acreditava que as teorias eram

adequadas se a teoria é capaz de ser falsificada, ou seja, deve ser capaz de ser demonstrada

como incorreta. Vamos nos deter aqui por algumas linhas.

Uma teoria adequada racionalmente é aquela que tem uma brecha para que possamos

inserir novas teses nela, por meio da indicação da falsidade da teoria anterior. Mas podemos nos

perguntar: como uma teoria que é passível de ser falsificada chega a ser uma teoria aceita, já que

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essencialmente é incorreta? Acontece que quando o cientista cria sua teoria ele não vê seus

erros, e é à medida que a teoria é testada e averiguada que os erros eventualmente aparecem.

Há duas pressuposições aqui: uma de que uma teoria nunca será perfeita, ou seja, até o

fim de nossos dias haverá correções a serem feitas nas teorias; a segunda é que uma teoria deve

ter um espaço para que ela seja refutada, mas que espaço é este? O espaço que a teoria deve ter

é que ela não seja capaz de dar explicações sobre tudo, que ela não seja uma teoria de tudo e que

explique tudo, uma teoria que explique tudo é uma má teoria, porque mesmo que expliquemos

porque ela está errada, a teoria dirá que isso já estava previsto nela12.

Aquele cientista que circunda sua teoria de maneiras de fazê-la impossível de ser

falsificada incorre em um circulo vicioso que impede a teoria de ser melhorada. É como se

Popper nos alertasse: as teorias científicas são meras hipóteses, e que por isso são incompletas, e

é no acréscimo a estas teorias incompletas que poderemos avançar.

Além dessas discussões contra os neopositivistas, Popper sustenta a idéia de que a

ciência progride numa escala evolutiva, e que em qualquer momento uma teoria pode ser

superada por outra. Para ele, é a imaginação e a criatividade que movem a ciência. O progresso

científico é racional e direcionado. Assim, o avanço da ciência se pela criatividade de imaginar

hipóteses novas que possam explicar e resolver os problemas gerados pelas expectativas

humanas pré-existentes.

Thomas Kuhn

O centro da argumentação de Thomas Kuhn (1922-1996) é diretamente oposta à tese de

Popper que o progresso da ciência é racional. Kuhn afirma que a ciência progride quando há

alterações conceituais na ordem científica vigente, ou no que ele chama de "Paradigmas". Por

paradigma Kuhn entende os pontos de vista, as concepções prévias, e as visões de mundo dos

cientistas. Cada época, cada ciência, e cada cultura, possuem fundamentos para sua atividade de

pesquisa, seja, por exemplo, a utilização da geometria e aritmética na física, seja a teoria da

evolução na biologia.

Um paradigma científico representa então, toda a cultura formada em torno das teorias.

A formação dessa cultura ocorre porque, segundo Kuhn os cientistas têm a tendência ao

dogmatismo, uma tendência a preservar o que está funcionando. Geralmente não há interesse

em pensar alternativas para teorias que não tem muitos problemas. Quando há uma renovação

nos paradigmas da ciência, ela, em geral, é produzida pelas pessoas mais jovens, sem

compromissos com os paradigmas vigentes.

12 Vejamos um exemplo caricatural: na psicanálise há sempre uma razão para que façamos algo, desde escrever no computador, até tentar o suicídio, sempre há uma razão para as ações, neste sentido se eu provar que a psicanálise está incorreta, a psicanálise ainda poderá dizer que há um motivo para que eu faça isso, e se ela fizer isso, ela torna-se uma teoria impossível de ser falsificada e por isso é uma má teoria.

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O avanço na ciência, quando se dá pelo aperfeiçoamento do paradigma, não causa

transtornos, contudo tal coisa raramente ocorre. Diferentemente (e mais comumente) ocorre

quando a substituição do paradigma se dá através de um processo revolucionário; nesse caso,

tem-se a Revolução Científica. São denominadas revoluções científicas os episódios

extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compromissos, métodos e teorias. Eles são os

complementos desintegrados da tradição à qual a atividade da ciência estava normalmente

ligada. São nas revoluções científicas que os paradigmas mais antigos são totalmente ou

parcialmente substituídos por um novo, incompatíveis com o anterior, e que por isso estabelece

os seus novos paradigmas.

A Revolução Científica acaba por substituir um paradigma por outro. Nessa mudança

novos conceitos, valores e estruturas alteram completamente o paradigma anterior porque

resolvem questões que o paradigma anterior não resolvia, revelam fenômenos antes insuspeitos,

efetuam experiências cruciais anteriormente não realizadas.

Um paradigma não reconhece os argumentos do outro. Cada concepção científica

emprega, para fazer sua defesa, critérios de seu próprio paradigma. É, portanto, um diálogo de

surdos. Ocorre que nestas polêmicas científicas, há um principio lógico que diz: se um princípio

é verdadeiro o outro é necessariamente falso. Segundo Kuhn, a transição entre paradigmas em

competição não pode ser feita passo a passo por imposição da lógica e da experiência neutra, a

transição deve ocorrer subitamente ou não ocorrer jamais. Enfim, o progresso em ciência é

constituído por substituição, rupturas e revoluções, e é sempre uma substituição cumulativa, ou

seja, que a acrescenta algo aos antigos paradigmas.

Um exemplo desta alteração de paradigmas é a mudança no início do século XX de

teorias de mecânica clássica (Newton), para a teoria da relatividade de Einstein, que fornece

uma explicação mais ampla, e mais precisa dos mesmos eventos explicados pela mecânica

clássica. Essa mudança envolve segundo Kuhn uma ruptura dos paradigmas newtonianos, e a

validação do paradigma relativístico.

Teoria do Conhecimento: A crise da razão

Falar de uma crise da razão é uma tarefa longe de ser precisa ou mesmo acabada. Não é

possível dar uma descrição completa nem mesmo dos desenvolvimentos da razão, quanto o

mais de sua crise. Mas de todo o modo, há alguns indícios de graves problemas no âmago

mesmo do pensamento racional. Irei discutir um deles abaixo.

Paul Feyerabend (1924-1994) é o primeiro teórico da Filosofia da ciência que diz que

na verdade a ciência não funciona através de um percurso organizado; ele desconstroí a idéia de

uma evolução paulatina da ciência. Nesse sentido ele se aproxima bastante de Kuhn. Todavia,

além dessa tese, Feyerabend rejeita de modo drástico a idéia de um "método para a ciência".

Para ele, um método como é colocado, na verdade limita a ciência e o conhecimento. Para ele, o

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cientista deve poder usar a descrição que ele melhor encontrar para dar conta da investigação da

natureza, e não deveria ficar preso apenas no que é convencionado ser o mais adequado. Dessa

forma, ele prega um tipo de "Anarquismo" para a ciência.

Essas teses de Feyerabend acabam por levar a investigação racional à uma dificuldade

básica: será que realmente a investigação da ciência deve ficar presa no método racional? Será

que este método não é parcial e não omite expressões adequadas da natureza? Para Feyerabend

o método científico, por ele mesmo, não é suficiente.

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Apêndice: Datas e Nomes dos Filósofos Ilustres13

PERÍODO FILÓSOFO

640 - 548 a.C. Tales de Mileto

610 - 547 Anaximandro

570 - 490 Pitágoras

540 - 470 Heráclito

530 - 460 Parmênides

504 - ? Zenão de Eléia

499 - 428 Anaxágoras

485 - 380 Górgias

481 - 411 Protágoras

470 - 399 Sócrates

460 - 370 Demócrito

427 - 348 Platão

384 - 322 Aristóteles

365 - 275 Pirro

341 - 270 Epicuro

331 - 232 Cleantes

281 - 205 Crísipo

180 - 110 Panécio

98 - 55 Lucrécio

106 - 43 Cícero

+- 100-200 d.C. Sexto Empirico

Filosofia Medieval

PERÍODO FILÓSOFO

354 - 430 Santo Agostinho

480 - 524 Boécio

980 - 1037 Avicena

1079 - 1142 Abelardo

1126 - 1198 Averróis

1200 - 1280 Santo Alberto

1214 - 1292 Roger Bacon

13 A partir de: http://www.pucsp.br/~filopuc/linha.htm

Page 61: Apostila Filosofia Vestibular

61

1227 - 1274 Santo Tomás de Aquino

1265 - 1308 Duns Scotus

1300 - 1349 Guilherme de Ockham

Filosofia Renascentista

PERÍODO FILÓSOFO

1401-1464 Cusa, Nicolau de

1466-1536 Erasmo, Desidério

1469-1527 Maquiavel, Niccolò

1483-1546 Lutero, Martin

1490-1525 Müntzer, Tomás

1509-1564 Calvino, João

1530-1596 Bodin, Jean

1533-1592 Montaigne, Michel Eyquem de

1548-1593 Giordano, Bruno

1557-1638 Althusius, Johannes

Filosofia Moderna PERÍODO FILÓSOFO

1561-1626 Bacon, Francis

1564-1642 Galileu Galilei

1568-1639 Campanella, Tommaso

1571-1630 Kepler, Johannes

1588-1679 Hobbes, Thomas

1596-1650 Descartes, René

1614-1687 More, Henry

1623-1662 Pascal, Blaise

1632-1677 Espinosa, Baruch

1632-1704 Locke, John

Page 62: Apostila Filosofia Vestibular

62

1638-1715 Malebranche, Nicolas

1646-1716 Leibniz, Gottfried Wilhelm

1668-1744 Vico, Giambattista

1679-1754 Wolff, Christian

1685-1753 Berkeley, George

1689-1755 Montesquieu - Charles de Secondat - Barão de La Brède,

1694-1778 Voltaire - François Marie Arouet

1711-1776 Hume, David

1712-1778 Rousseau, Jean-Jacques

1713-1784 Diderot, Denis

1717-1783 D'Alembert, Jean Le Round

1724-1804 Kant, Immanuel

Filosofia Contemporânea

PERÍODO FILÓSOFO

1762-1814 Fichte, Johann Gottlieb

1770-1831 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich

1775-1854 Schelling, Friedrich

1788-1860 Schopenhauer, Arthur

1798-1857 Comte, Augusto

1804-1872 Feuerbach, Ludwing

1806-1873 Mill, John Stuart

1809-1865 Proudhon, Pierre Joseph

1813-1855 Kierkegaard, Sören Aabye

1818-1883 Marx, Karl

1820-1895 Engels, Friedrich

1833-1911 Dilthey, Wilhelm

1838-1916 Mach, Ernst

Page 63: Apostila Filosofia Vestibular

63

1839-1914 Peirce, Charles Sanders

1844-1900 Nietzsche, Friedrich

1859-1941 Bergson, Henri

1859-1938 Husserl, Edmund

1872-1970 Russell, Bertrand

1884-1962 Bachelard, Gaston

1889-1951 Wittgenstein, Ludwig

1889-1976 Heidegger, Martin

1891-1937 Gramsci, Antonio

1891-1970 Carnap, Rudolf

1892-1940 Benjamin, Walter

1892-1964 Koyré, Alexandre

1895-1973 Horkheimer, Max

1902-1994 Popper, Karl

1903-1969 Adorno, Theodor Wiesegrund

1905-1980 Sartre, Jean-Paul

1905-1995 Lévinas, Emmanuel

1908-1961 Merleau-Ponty, Maurice

1913- Ricoeur, Paul

1922- Kuhn, Thomas

1922-1974 Lakatos, Imre

1922- Apel, Karl-Otto

1925-1995 Deleuze, Gilles

1926-1984 Foucault, Michel

1928- Chomsky, Noam

1929- Habermas, Jürgen

1930- Derrida, Jacques

1931- Rorty, Richard