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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA UNOESC CAPINZAL ÁREA DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS _____________________________ __ SOCIOLOGIA APLICADA 1

Apostila Sociologia

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Page 1: Apostila Sociologia

UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA

UNOESC CAPINZAL

ÁREA DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

_______________________________

SOCIOLOGIA APLICADA2011

Curso: AdministraçãoProfessor: Lauro Antônio Hecht, Ms.

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Page 2: Apostila Sociologia

SUMÁRIO

1 O HISTÓRICO DA SOCIOLOGIA..................................................................................... 03

2 A CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE ............................................................................... 04

3 A COMPLEXIDADE DO SISTEMA SOCIAL .................................................................. 06

4 O RENASCIMENTO............................................................................................................ 09

5 A ILUSTRAÇÃO DA SOCIEDADE CONTRATUAL....................................................... 14

6 A CRISE DAS EXPLICAÇÕES RELIGIOSAS E O TRIUNFO DA CIÊNCIA ................ 22

7 O POSITIVISMO E A PRIMEIRA FORMA DE PENSAMENTO SOCIAL ..................... 25

8 SOCIOLOGIA DE DURKHEIM.......................................................................................... 33

9 A SOCIOLOGIA ALEMÃ: A CONTRIBUIÇÃO DE MARX WEBER ............................. 40

10 KARL MARX E A HISTÓRIA DA EXPLORAÇÃO DO HOMEM ................................. 48

11 SISTEMAS SÓCIO-ECONÔMICOS .................................................................................. 64

12 ECONOMIA E NATUREZA: COMO CONSTRUIR SIST. SÓCIO-ECONÔMICOS....... 80

13 SOCIOLOGIA NO BRASIL ............................................................................................... 98

14 SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA ................................................................................. 115

15 INSTITUIÇÕES SOCIAIS .................................................................................................. 129

16 CULTURA ...........................................................................................................................134

17 IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO SOCIAL ........................................................................... 151

18 ALGUMAS FORMAS JISTÓRICAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS .............................. 154

19 A SOCIEDADE E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL ........................................................... 162

20 GLOBALIZAÇÃO .............................................................................................................. 170

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1 O HISTÓRICO DA SOCIOLOGIA

A Sociologia propriamente dita é fruto da Revolução Industrial, e nesse sentido é chamada de

"ciência da crise" - crise que essa revolução gerou em toda a sociedade européia. Ela é fruto de toda

uma forma de conhecer e pensar a natureza e a sociedade, que se desenvolveu a partir do século XV,

quando ocorreram transformações significativas como a expansão marítima, reformas protestantes, a

formação dos Estados nacionais, as grandes navegações e o comércio ultramarinho, bem como o

desenvolvimento científico e tecnológico que desagregaram a sociedade feudal, dando origem à

sociedade capitalista.

No século XVI, desenvolve-se um outro movimento, o da Reforma Protestante, que propicia

uma tendência que contribuiu de modo significativo para a valorização do conhecimento racional.

Com essa nova maneira de se relacionar com as coisas sagradas, há também um outro movimento no

sentido de analisar o universo de outra forma. A razão passa a ser soberana e é colocada como

elemento essencial para se conhecer o mundo. Essa nova forma de conhecimento da natureza e da

sociedade, na qual a experimentação e a observação são fundamentais, aparece nesse momento,

representada pelo pensamento e pelas obras de diversos pensadores, entre os quais Nicolau

Maquiavel, Galileu Galilei, Thomas Hobbes,

Francis Bacon, René Descartes. Outros dois, farão a ponte entre esses novos conhecimentos e os que

se desenvolverão no séc. seguinte: John Locke e Isaac Newton.

No século XVIII, a burguesia comercial, torna-se uma classe com muito poder, devido, na

maior parte das vezes, às ligações que mantinha com os monarcas, em questões econômicas. O

capital mercantil vai se expandindo em diversos ramos de atividade. Ao se desenvolver a

manofatura, torna-se necessário o desenvolvimento de novas técnicas de produção. Surgem máquinas

de tecer, descaroçar algodão, bem como a aplicação industrial da máquina a vapor. Aparece aí o

fenômeno chamado de maquinofatura. O trabalho antes realizado com as mãos ou com ferramentas

passa agora a ser feito por meio de máquinas, elevando o volume de produção. A máquina a vapor

incentivou o surgimento da indústria construtora de máquinas. Essas alterações no processo

produtivo, somadas a herança cultural e intelectual do século XVII irão definir o século XVIII como

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um século explosivo, servindo de exemplo e parâmetro para as revoluções políticas posteriores.

Pensadores como Montesquieu, David Hume, Jean-Jacque Rousseau, Adam Smith e Emmanuel Kant

entre outros, procurarão refletir sobre a realidade, na tentativa de explicá-la.

No século XIX, a consolidação do sistema capitalista na Europa contribuirá para o

surgimento da sociologia como ciência particular. O pensamento de Saint-Simon, G.W.E.Hengel,

David Ricardo, Augusto Comte e Karl Marx desenvolveram reflexões sobre a sociedade de maneiras

radicalmente divergentes.

Conceito de Sociologia:

É o estudo científico das relações sociais, das formas de associação, destacando-se os

caracteres gerais comuns a todas as classes de fenômenos sociais , fenômenos que se produzem nas

relações de grupos entre seres humanos. Estuda o homem e o meio ambiente em suas interações

recíprocas. Ela se baseia em estudos objetivos que melhor podem revelar a verdadeira natureza dos

fenômenos sociais. Ela é, desta forma, o estudo e o conhecimento objetivo da realidade social. Como

exemplos, podemos citar a formação e desintegração de grupos, a divisão da sociedade em camadas,

a mobilidade de indivíduos e grupos nas camadas sociais, processos de competição e cooperação.

2 A CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE

Apresenta-se alguns elementos básicos que constituem as sociedade humanas. Entende-se por

sistema social, ou Sociedade, o conjunto de processos e instituições com que o ser humano vem se

adaptando ao ambiente natural e às próprias consequências do desenvolvimento social.

PESSOAS – Criatura humana, homem e mulher, dotado de inteligência e vontade com capacidade

para ser sujeito ativo ou passivo de direito e deveres.

PADRÕES - Modelos oficiais a serem seguidos.

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STATUS – Lugar que a pessoa ocupa na estrutura social.

PAPEL – Desempenho nos diferentes grupos de que o indivíduo participa, vindo a ser

parte integrante de sua personalidade.

PROCESSOS – Na sociedade, os seres humanos acham-se em interdependência e inter-relação. A

ação mística e a comunicação recíproca são tão essenciais para os indivíduos quanto para o grupo, de

tal maneira que sem ela o indivíduo pereceria e o grupo cessaria de funcionar. Os processos sociais

são formas básicas de interação social, que se cruzam através dos vários papéis que os indivíduos

desempenham.

CATEGORIAS AGREGADAS – Pluralidade de pessoas que são consideradas como uma unidade

social pelo fato de serem efetivamente semelhantes em um ou mais aspectos (menos classe

trabalhadora), as categorias compreendem a unidade social que compartilha uma ou mais

características comuns.

GRUPOS – conjunto de pessoas sociais que comungam idéias, valores e status.

INSTITUIÇÃO – Configuração de padrões de comportamento compartilhadas por uma coletividade

e centradas na satisfação de algumas necessidades básicas do grupo.

SOCIEDADE – A unidade irredutível da sociedade, como do agregado social é o indivíduo. Do

ponto de vista dos indivíduos que a constituem, uma sociedade e o maior número de seres humanos

que agem conjuntamente para satisfazerem suas necessidades sociais e que compartilham uma

cultura comum.

CULTURA – Configuração total das instituições que as pessoas de uma dada sociedade

compartilham. O componente básico da cultura é o padrão reiterado de comportamento social.

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Portanto, que as unidades da cultura são as instituições e a menor de todas é o padrão de

comportamento.

VALORES - São elementos que os membros da sociedade consideram muito importante e dignos de

estima e conforme os quais tendem a padronizar seu comportamento.

MOBILIDADE – Todo movimento ou migração de pessoas no tempo, no espaço físico ou na

estrutura social.

MUDANÇA – Variação de um estado ou modo procedente de existência.

CONTROLE – Mecanismo que perpetua o processo de socialização induzindo e mantendo a

conformidade das pessoas aos padrões. O controle social faz pressão sobre as pessoas para que se

conformem aos padrões, papéis, relações e instituições que são altamente valorizadas pela cultura.

DISCREPÂNCIA – Desvio social e cultural, refere-se à anormalidade e irregularidade. Do ponto de

vista sociológico, os indivíduos normais em uma sociedade são os que compartem os padrões e

crenças e comportamento comumente observados. Os que se afastam destes são discrepantes ou

desviados.

INTEGRAÇÃO – Significa um processo social como o de assimilação, socialização ou aculturação.

3 A COMPLEXIBILIDADE DO SISTEMA SOCIAL

Segundo (Bins 1985, pg. 18) “Muitas pessoas não se dão conta do quanto os fenômenos

sociais estão interligados. Podemos ilustrar tais interligações partindo dos acontecimentos mais

prosaicos. Sentado à mesa, tenho diante de mim o pão, a manteiga, o leite, o café e o açúcar. Para a

minha consciência são objetos e nada mais do que objetos, cada qual com seu volume, densidade,

consistência, sabor e aroma, qualidades e quantidades que satisfazem as minhas necessidades de

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alimento. Porém, descubro que tenho necessidade de informações e entre um gole e outro vou lendo

o matutino. Poderia depois trabalhar sem ter lido o jornal, mas não poderia fazer o mesmo sem

alimentar-me. Mas como desejo impressionar os outros com a minha atualidade, continuo a leitura.

Na segunda página, leio que os produtores reclamam do preço mínimo pago pelo café e que os

cabanheiros realizarão um encontro da categoria. Na página seguinte, fico sabendo que, novamente,

frustrou-se a safra do trigo e que os triticultores pedem condições especiais de crédito. De súbito,

dou-me conta de que os objetos que consumo não são lá coisas muito simples. Recordo que os

comprei e que, portanto, antes de serem objetos para o meu consumo, foram mercadoria, as quais

circulam por uma rede mais ou menos complexa de comercialização. Mas, em geral o comerciante

não é produtor e as mercadorias que negocia foram por sua vez produtos agrícolas ou industriais.

Voltando aos meus objetos, sei agora que possuem uma dupla natureza, por assim dizer. De

um lado são objetos de consumo, utilidades; de outro, são o fruto do trabalho de outras pessoas.

Refletindo apenas sobre o pão, penso que um dia ele foi trigo, que, por sua vez, foi semente, terra

arada, fertilizantes, pesticidas e implementos agrícolas, combustíveis, manutenção, conhecimentos

agronômicos financiamentos, etc., etc. Em outras palavras, o fruto do trabalho direto ou indireto de

milhares de pessoas.

Cada uma das condições para a obtenção do trigo pressupõe um trama vastamente complexa

de atividades. E muito mais ainda se considero o transporte e armazenagem, seu beneficiamento,

panificação e distribuição. Em suma, eu não comeria pão se milhares de outras pessoas não

houvessem concorrido. Ora, não sou Robinson Crusoé, nem um índio nambikwara. Ou recebo o pão

por estes circuitos de produção e circulação ou nada feito. Para poder produzir os bens de que me

sirvo diariamente seria necessário que me desdobrasse em milhares ou que meu dia tivesse mais do

que 24 horas.

Por isto, mesmo considerando apenas os bens indispensáveis à existência, percebo que esta é

possível apenas sobre o pressuposto de uma fantástica divisão social do trabalho. A princípio,

pensava que para sobreviver necessitava apenas de uma série de objetos e agora sei que sob a

singeleza aparente, fenomenológica, destes objetos esconde-se, na realidade, um conjunto de relações

sociais.

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Um sistema social é antes de mais nada uma rede de relações sociais destinada à produção,

circulação e consumo dos bens indispensáveis à vida. As pessoas com intenso sacrifício, podem

passar um mês sem assistir a televisão. Mas não vivem mais do que uma semana sem alimentos.

Conforme o clima, não viveram mais do que horas sem roupas e teto. É por esta razão que os clubes,

as associações, a Igreja, o Estado e outras instituições não são verdadeiramente Sociedades. Por mais

complexas que sejam as relações existentes em seu interior, vês-se que, como não produzem os

pressupostos vitais para a existência, são apenas partes de um sistema social. Se fossem separadas da

Sociedade, seus membros pereceriam em curto espaço de tempo.

Considerados em conjunto, a produção, a circulação e o consumo interconectam as atividades

fundamentais de um sistema social através e juntamente com a estrutura, a organização e a cultura.

Logo, nada há de espantoso no fato de que os indivíduos percam de vista a trama inteira e passem a

ver suas vidas como que influenciadas por forças absurdas, das quais intuem a existência, mas que de

fato não conseguem perceber em que consistem.

Assim, o empregado de um estabelecimento suinocultor ao perder o seu emprego atribui tal

evento a um misterioso azar, ou perseguição. Pode não se dar conta de que o país havia contratado

exportar sua exígua produção de milho, gerando um encarecimento insuportável no preço da ração

animal e conservando os suinocultores a uma situação insustentável. Também é comum pensar que

os mendigos são vagabundos. Está sendo ignorado o fenômeno de desemprego estrutural, em que

dada uma situação x, necessariamente y da população ficará desempregada, quer queira, goste ou

não. Os exemplos seriam infindáveis.

À primeira vista, a sociedade parece um caos, mas agora estamos entendendo porque é um

sistema. Sendo um sistema, pressupõe-se que suas diversas partes em intercomunicação e

dependência. Daí que uma alteração em uma das suas partes tenha conseqüências sobre as outras. E

quase sempre conseqüências imprevistas para o público. Veja-se este exemplo clássico: quero

comprar um imóvel e como comprador desejo adquiri-lo pelo preço o mais baixo possível. No

entanto, no momento em que apareço no mercado, como comprador, a minha presença aumenta a

demanda efetiva do imóvel – e dos imóveis em geral – e este sobre o preço.

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Mas não é apenas um sistema. Trata-se igualmente de um sistema que a médio prazo tende a

manter-se em equilíbrio. O motivo pelo qual não se pulveriza em microssociedade ou em indivíduos

isolados é extremamente complexo, sendo impossível, nos limites deste texto, dar uma explicação

científica para o fenômeno. Da mesma forma que o equilíbrio de um organismo vivo exige para a sua

compreensão sólidos conhecimentos de Biologia, o equilíbrio de um sistema social é matéria para

elucidação a nível profissional.

Os processos econômicos, embora bastante auto-regulável, estão interconectados com outros

processos estabilizadores que são de duas ordens distintas mas simultâneos. Dizem respeito às

regulamentações provenientes do Estado e da Moral”.

4 O RENASCIMENTO

O Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos, suscita

grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o momento de ruptura

entre o mundo medieval – com suas características de sociedade agrária, estamental, teocrática e

fundiária – e o mundo moderno urbano, burguês e comercial.

Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do século XV lançando as

bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contemporâneo. A Europa medieval, relativamente

estável e fechada, inicia um processo de abertura e expansão comercial e marítima. A identidade das

pessoas, até então baseada no clã e na propriedade fundiária, vai sendo progressivamente substituída

pela identidade nacional e pelo individualismo. A mentalidade vai se tornando paulatinamente laica –

desligada das questões sagradas e transcendentais - as preocupações metafísicas vão convivendo com

outras mais imediatas e materiais, centradas principalmente no homem.

Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desde a

Antigüidade, no Renascimento a nova sociedade que emerge exige a distinção entre conhecimento

especulativo e pragmático.

A) Diferentes Visões do Renascimento

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Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveram também

aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Média como a idade

das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram na Europa, principalmente na

Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente positivas e responsáveis pelo

desenvolvimento do comércio e da navegação, do contato com outros povos, pela proliferação de

obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi o movimento renascentista que promoveu o

renascer da cultura e da erudição, o gosto pelo saber , além de tê-los, aos poucos, posto à disposição

da população em geral.

Mas há também os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessa época um

período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esses historiadores apóiam-se na

falta de unidade política e religiosa, nos grandes conflitos existentes entre as nações, nas guerras

intermináveis, nas inquisições e perseguições religiosas, no esforço de conservação de um mundo

que agonizava, características marcantes do período. Consideram sintomas de tudo isso os exílios, as

condenações e os longos processos políticos e eclesiásticos, os grandes genocídios que a Europa

promoveu na América e o ressurgimento da escravidão como instrumento legal.

De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção artística do período, expresso

na "Divina comédia" de Dante Alighieri, no "Juízo final" de Michelangelo, pintado na Capela Sistina

e em vários quadros do artista flamengo Heironymus Bosch. Um clima de insegurança e

instabilidade perpassa a todos nessa época de profunda transição.

B) A Retomadas do Espírito Especulativo

De qualquer maneira, o Renascimento marca uma postura do homem ocidental diante da

natureza e do conhecimento. Juntamente com decréscimo na Igreja como instituição e o conseqüente

aparecimento de novos credos e seitas – que conclamavam os fies a uma leitura interpretativa das

escrituras -, o homem renascentista retoma a crença no pensamento especulativo. O conhecimento

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deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que

era antes entre gregos e romanos – o resultado de uma bem conduzida atividade mental.

Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, para o mundo

terreno, numa ânsia por conhece-lo, descrevendo-o, analisando-o, medindo-o, quer com medidas

precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana. “O visível é também inteligível”,

afirmava Leonardo da Vinci, encantado com as possibilidades de conhecimento pelo uso dos

sentidos.

Por outro la do, a vida terrena adquire cada vez mais importância e com ela a própria história,

que passa a ter uma dimensão eminentemente humana. Estimulado pelo individualismo e liberto dos

valores que o prendiam irremediavelmente à família a ao clã, o homem já concebe seu papel na

história como agente dos acontecimentos. Ele vai aos poucos abandonando a concepção que o

tomava por pecador e decaído, um ser em permanente dívida para com Deus, para se tornar, na nova

perspectiva, o agente da história.

Shakespeare evoca constantemente em suas peças a tragédia do homem diante de suas opções

e sentimentos, enquanto Michelangelo faz quase se encontrarem os dedos de Deus e Adão na cena da

Criação. É nesse ambiente de renovação que o pensamento científico tomará novo fôlego e, com

ele, o pensamento acerca da vida social.

C) Um Novo Pensamento Social

Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o homem se

sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia. Sente-se livre para analisar essa

realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhe reservou. E, assim como os

pintores que se debruçaram nas minúcias das paisagens, na disposição das figuras numa perspectiva

geométrica, os filósofos também passam a questionar e dissecar a realidade social. A vida dos

homens passa a ser fruto de suas ações e escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.

Novas instalações políticas e sociais, estados nacionais, exércitos, levam os homens a

repensar a vida social e a história. Ao mesmo tempo, emerge uma nova classe social – a burguesia

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comercial -, com novas aspirações e interesses, que renova o pensamento social. Nessa visão humana

especulativa da vida social está o germe do pensamento social moderno que vai se expressar na

literatura, na pintura, na filosofia e, em especial, na literatura utópica de Thomas Morus (A Utopia),

Tommaso Campanella (A cidade do Sol) e Francis Bacon (Nova Atlântida).

D) As Utopias

Como Platão, os filósofos renascentistas tentaram imaginar uma sociedade perfeita. Assim

como a Atlântida, surge através da pena de Thomas Morus uma comunidade onde todas as soluções

foram encontradas: a Utopia. Uma ilha cujo nome significa “nenhum lugar”, onde existe harmonia,

equilíbrio e virtude.

Desse modo, o pensamento social no Renascimento se expressa na criação imaginária de

mundos ideais que mostrariam como a realidade deveria ser, sugerindo entretanto que tal sociedade

seria construída pelos homens com sua ação e não pela crença ou pela fé. Utopia é uma ilha onde

reina a igualdade e a concórdia. Todos têm sob as mesmas condições de vida e executam em rodízio

os mesmos trabalhos. A igualdade e os ideais comunitários são garantidos por uma monarquia

constitucional. Cada grupo de 30 famílias escolhe um representante para o conselho que elege o

imperador; este permanece até o fim da vida como soberano, sob o olhar vigilante do conselho, que

opina sobre cada ato real e pode consultar previamente as famílias, quando considerar necessário.

Além da igualdade quanto ao estilo de vida e ao trabalho, também a distribuição de alimentos

se dá de forma comunitária. Não há necessidade de pagar por nada, porque há de tudo em profusão,

uma vez que a vida é simples, sem luxo e todos trabalham.

Em "A Utopia", Thomas Morus expressa os ideais de vida moderna, igualitária e laboriosa,

semelhantes aos praticados pelos monges nos mosteiros pré-renascentistas, assim como defende, em

termos políticos, a monarquia absoluta. Seria A Utopia uma obra sociológica? Não no sentido

moderno ou científico do conceito, mas como expressão das preocupações do filósofo com a vida

social e com os problemas de sua época.

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Toda a vida ou, como o próprio autor chama, o “regime social” dos utopienses demonstra

claramente a preocupação com o estabelecimento de regras sociais mais justas e humanas com

resposta a críticas que o autor fez em relação à Inglaterra de seu tempo. Analisar a sociedade em suas

contradições e visualizar uma maneira de resolvê-las, acreditar que da organização das relações

políticas, econômicas e sociais derivam a felicidade do homem e seu bem-estar é, segurança, o germe

do pensamento sociológico.

E, refletindo basicamente os anseios de sua época, Thomas Morus considera esse mundo ideal

possível, graças ao plano sábio de um monarca absoluto: Utopos, fundador da Utopia. O monarca

esclarecido, justo e sábio é o ideal político do Renascimento, organizador das sociedades perfeitas

criadas pela literatura de Thomas Morus e de outros.

E) Maquiavel: O Criador da Ciência Política

Nicolau Maquiavel, pensador florentino, escreveu um livro, O Príncipe, dedicado a Lourenço

de Médici (1449-1492), governador de Florença, protetor das artes e das letras, ele mesmo um

ditador. Nesse livro, Maquiavel se propõe a explorar as condições pelas quais um monarca absoluto é

capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder.

Como Thomas Morus, Maquiavel acredita que o poder das características pessoais do

príncipe – suas virtudes - das circunstâncias históricas e de fatos ocorrem independentemente de sua

vontade - as oportunidades. Acredita também que do bom exercício da vida política depende a

felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus companheiros utopistas,

Maquiavel faz de “O Príncipe” um manual de ação política, cujo ideal é a conquista e a manutenção

do poder. Disserta a respeito das relações que o monarca deve manter com a nobreza, clero, o povo e

seu ministério. Mostra como deve agir o soberano para alcançar e preservar o poder, como manipular

a vontade popular e usufruir seus poderes e aliados. Faz uma análise clara das bases em que se

assenta o poder político: como conseguir exércitos fiéis e corajosos, como castigar os inimigos ,

como recompensar os aliados, como destruir, na memória do povo, a imagem dos antigos líderes.

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F) A Visão Laica da Sociedade e do Poder

Em relação ao desenvolvimento do pensamento sociológico, Maquiavel teve mais êxito do que

Thomas Morus, na medida em que seu objetivo foi conhecer a realidade tal como se lhe apresentava,

em vez de imaginar como ela deveria ser. De qualquer maneira, nas obras de Thomas Morus e de

Maquiavel percebemos como as relações sociais passam a construir objeto de estudo dotado de

atributos próprios e deixam de ser, como no passado, conseqüência do acaso ou das qualidades

pessoais dos sujeitos.

A vida dos homens já aparece, nessas obras, como resultado das condições econômicas e

políticas e não de sua fé ou de sua consciência individual. Além disso, esses filósofos expressam os

novos burgueses ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de um

indivíduo que se distingue por características pessoais. A monarquia proposta no Renascimento não

se assenta na legitimidade do sangue ou da linhagem, na herança ou na tradição, mas na capacidade

pessoal do governante e sua sabedoria. A história, tanto como ciência quanto como conhecimento

dos fatos, passa a ter um papel relevante nesse novo contexto.

Desconhecer a história é desconhecer a evolução e as leis que regem a sociedade onde se

vive. Nessa idéia de monarquia se baseia a aliança que a burguesia estabelece com os reis para o

surgimento dos estados nacionais, onde a ordem social será tanto mais atingível quanto mais o

soberano agir como estadista, pondo em marcha as forças econômicas do capitalismo em formação.

5 A ILUSTRAÇO DA SOCIEDADE CONTRATUAL

A) Uma Nova Etapa no Pensamento Burguês

O Renascimento desenvolveu nos homens os valores, diferentes daqueles vigentes na Idade

Média. Os valores renascentistas estavam mais adequados ao espírito do capitalismo, um sistema

econômico voltado para a produção e a troca, para a expansão comercial, para a circulação crescente

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de mercadorias e para o consumo de bens materiais. Instalava-se uma sociedade baseada na distinção

pela posse de riqueza e não pela origem, nome e propriedade fundiária.

Essa mudança radical no mundo ocidental exigia uma nova ordem social, dirigida por pessoas

dispostas a buscar um espaço no mundo, a competir por mercados e a responder de forma produtiva à

ampliação do consumo. Pessoas cuja vida estivesse direcionada para a existência terrena e suas

conquistas, e não para a vida após a morte e para valores transcendentais. Todas essas mudanças se

anunciavam no Renascimento e se tornavam cada vez mais radicais à medida que se adentrava a

Idade Moderna e a revolução Industrial se tornava realidade.

A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante burguês renascentista, é a

marca decisiva da ruptura com os valores e as idéias do mundo medieval. O lucro não é mais apenas

o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. O lucro expressa a premissa da

acumulação, da ostentação, da diferenciação individual e assim realize a ideia de que tenho o direito

de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar. A ideia e a realização do lucro não eram de forma

alguma novas. Eram conhecidas desde a Antiguidade, a partir do momento em que surgiu o comércio

usando o dinheiro como equivalente de troca e, em decorrência, a acumulação de riqueza. No

entanto, a forma de pensar e praticar o lucro era distinta.

Enquanto o Império romano o comércio realizado com a prática de preços considerados

abusivos era considerado ilegal e pouco nobre, e a Igreja Católica considerava pecaminosa a

atividade lucrativa, no capitalismo, o lucro tornou-se a finalidade de qualquer atividade econômica.

Vejamos esta situação hipotética: na Grécia, um armador vivia da compra, do transporte e da venda

de azeitonas à Europa. O preço final do produto remunerava o comerciante por seu trabalho de

intermediação. Nesse preço estavam embutidas a reposição dos navios e dos escravos e a viagem de

volta. Muitos comerciantes enriqueceram, porque agora também se cobrava o máximo pela

mercadoria. Essa forma de entender o lucro era na nova história e foi instaurada pela burguesia e a

partir do Renascimento.

Se um comerciante pode auferir uma troca comercial o maior preço possível que a situação

permite – resultante da relação entre oferta e procura e de outras condições produtivas e de mercado

-, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais racional e em larga escala. O fato de

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a concorrência ser cada vez maior também exige maior racionalidade e previsão. A procura por

novas técnicas mais eficientes se torna uma constante.

Muitos prêmios são oferecidos aos inventores, e projetos como os de Leonardo da Vinci, que

ficaram apenas no papel, passam a fazer enorme sucesso. Desenvolvem-se a ciência e a tecnologia,

enquanto na filosofia cada vez mais se procuram as raízes das formas de pensar. O Renascimento

introduziu e desenvolveu o antropocentrismo, a laicidade, o individualismo e o racionalismo. Com

relação a vida social, passou a concebê-la como uma realidade própria sobre a qual os homens

atuam; percebeu-se também existência de diferentes modelos – a República, a Monarquia – e

passou-se a analisa-los e a defender um ou outro modelo. Consegue-se vislumbrar a oposição entre

indivíduo e sociedade, entre vontade individual e regras sociais.

A Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o Renascimento, deu um passo além.

Concebeu novas idéias de vida social e entendeu a coletividade como um organismo próprio.

Começou a discernir aspectos e áreas da vida social com diferentes características e necessidades – a

agricultura, a indústria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como forma de organização política

pela qual as populações estabelecem relações intersocietárias, já se cristaliza na Ilustração. O

nacionalismo emerge do Renascimento, identificado ainda com o monarca e preso ao sentimento de

fidelidade e sujeição, dá lugar à noção de organismo representativo da coletividade,

independentemente de quem ocupa, por certo tempo, os cargos disponíveis.

O princípio de representatividade política, revelando um aprofundamento no entendimento da

vida social, assim como o aparecimento de teorias capazes de explicar a origem do valor das

mercadorias e outros mecanismos sociais, mostram o grau de desenvolvimento do pensamento

social. Já era possível identificar fenômenos sociais e concebe-los em sua natureza própria

diferenciada. O surgimento de conceitos, como Valor e Estado, revela a existência de uma

metodologia e a emergência de uma nova forma de conhecer a realidade social.

O Renascimento correspondeu a uma primeira fase da sistematização do pensamento

burguês, na medida em que procurava trazer de volta à Europa os valores laicos, o gosto pela vida e o

racionalismo, a atribuía ao indivíduo valores pessoais que não provinham da sua origem. Embora

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ainda tivesse um certo caráter religioso, o Renascimento exaltava a natureza e os prazeres da vida

terrena , fossem a êxito religioso ou o simples prazer dos sentidos, que se consegue junto à natureza.

Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, a burguesia avança na concepção de uma forma de

pensar própria, capaz de transformar o conhecimento não só numa exaltação da vida e dos feitos de

seus heróis, mas também num processo que frutificasse em termos de utilidade prática. Afinal, o

desenvolvimento industrial se anuncia em toda sua potencialidade; os empreendimentos, quando bem

dirigidos, prometiam lucros miraculosos. Portanto, era preciso preparar a sociedade para receber os

resultados desse trabalho. Os próprios sábios deveriam se interessar em desenvolver conhecimentos

de aplicação prática.

A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento científico: melhorar as

condições de vida; ampliar a expectativa de sobrevivência humana a fim de engrossar as fileiras de

consumidores e, principalmente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitos sociais e formar uma

mentalidade receptiva às inovações técnicas. A prática de elaboração dos projetos científicos para o

desenvolvimento da indústria passa a ser aplicada à sociedade, pois sem um planejamento racional

dos meios de transporte terrestres e marítimos, da distribuição e armazenamento dos produtos, da

melhoria da infra-estrutura, todo o esforço produtivo estaria perdido. O planejar e o projetar o futuro

trouxeram consigo o conceito de nação, correspondendo à extensão territorial onde a burguesia de

determinado país teria total controle sobre o mercado.

A nação deveria se submeter a uma organização política que pudesse favorecer o

desenvolvimento econômico e estimula-lo. Dentro dessa nova organização política da sociedade

deveria privilegiar-se o indivíduo, principal motor do progresso econômico. Este deveria estar livre

das amarras impostas até então pela sociedade feudal, pois, de posse de sua total liberdade de agir,

mover-se e estabelecer-se, o indivíduo poderia promover o progresso econômico.

Novos valores guiando a vida social para sua modernização, maior empenho das pesquisas e

do saber em conquistar avanços técnicos, melhora nas condições de vida, tudo isso somado levou as

esse surto de idéias, conhecido pelo nome da Ilustração.

Após um primeiro momento em que a existência de um poder central garantia a emergência e

a organização dessa nova ordem social, o mercado exigia liberdade de expressão. As novas formas

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Page 18: Apostila Sociologia

de pensar e agir aliavam-se à necessidade de a burguesia libertar-se das amarras estabelecidas pelas

monarquias absolutas, que não permitiam a livre iniciativa, a liberdade de comércio e a livre

concorrência de salários, preços e produtos.

Assim, a Ilustração foi essencialmente pragmática e liberal, uma vez que a burguesia queria

uma ordem econômica, política e social em que tivesse participação no poder e pudesse realizar seus

negócios sem entraves.

Podemos dizer que a burguesia já se sentia suficientemente forte e confiante em seus próprios

objetivos de vida para dispensar a figura do rei como seu aliado contra os privilégios feudais, tal

como sucedera durante a época mercantilista, em que o Estado nacional favoreceu uma política de

acumulação de capital por meio de monopólios, fiscalização, manufaturas e colonialismo.

Fortalecida, a burguesia propunha agora formas de governo baseadas na legitimidade popular, até

mesmo governos republicanos. Conclamava o povo a aderir à defesa da igualdade jurídica e do

sufrágio universal.

B) A Filosofia Social dos Séculos XVII e XVIII

O pensamento da ilustração, apoiado principalmente na contribuição dos fisiocratas (escola

econômica da época), defendia a idéia de que a economia era regida por leis naturais de oferta e

procura que tendiam a estabelecer, de maneira mais eficiente do que os decretos reais, o melhor

preço, o melhor produto e o melhor contrato, pela livre concorrência. Além desse apreço pelo livre

curso das relações econômicas, os fisiocratas, opondo-se ao uso ocioso que a nobreza fazia de suas

propriedades agrárias, propunham melhor aproveitamento da agricultura, atividade que consideravam

a principal fonte de riqueza das nações.

Segundo esse ponto de vista, as relações econômicas e sociais eram regidas por leis físicas e

naturais que funcionariam de maneira racional, desde que não prejudicadas pela intervenção do

Estado absolutista. O controle das relações humanas surgia, portanto, da própria dinâmica da vida

econômica e social, dotada de uma racionalidade intrínseca, cuja descoberta era a principal meta dos

estudos científicos.

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Page 19: Apostila Sociologia

A racionalidade estava na origem natural e física das leis de organização da sociedade

humana e na base da própria atividade humana e do conhecimento, tal como defendiam os

pensadores franceses René Descartes e Denis Diderot. O racionalismo cartesiano – termo derivado

de Cartesius, nome latino de Descartes – se expressava pela frase “penso, logo existo”, na qual

mostrava que a razão era a essência do ser humano.

Reconhecia-se no homem, portanto, a capacidade de pensar e escolher, de opinar e resolver

sem que leis rígidas perturbassem sua conduta. No plano econômico, essa idéia se traduzia na ânsia

por liberdade de ação, empreendimento e contratação. Traduzia-se ainda na concepção de que as

relações entre os homens resultariam na livre contraposição de vontade, na realidade contratual. No

plano político, expressava-se no objetivo de livre escolha dos governantes, segundo o ideal de um

Estado representativo da vontade popular. Finalmente, no plano social, manifestava-se na nação de

que as sociedades se baseavam em acordos mútuos entre os indivíduos que as compunham.

Um dos pensadores que mais desenvolveu essa idéia de um pacto social originário foi Jean-

Jacques Rousseau. Em sua obra "Contrato social", Rousseau afirmava que a base da sociedade estava

no interesse comum pela vida social, no consentimento unânime dos homens em renunciar as suas

vontades particulares em favor de toda a comunidade.

Para alicerçar suas idéias a respeito da legitimidade do Estado a serviço dos interesses

comuns e dos direitos naturais do homem, Rousseau procurou traçar a trajetória da humanidade a

partir do igualitarismo primitivo até a sociedade diferenciada. Para ele, a origem dessa diferenciação

estava no aparecimento da propriedade privada. Justa mente por essa crítica à propriedade, distingue-

se dos demais filósofos da Ilustração.

John Locke, pensador inglês, também defendeu a idéia de que a sociedade resultava da livre

associação entre indivíduos dotados de razão e vontade. Para Locke, essa contratação estabelecia,

entre outras coisas as formas de poder, as garantias de liberdade e o respeito à propriedade. Seus

princípios deveriam ser redigidos sob a forma de uma constituição. Entre os filósofos da Ilustração,

ganhava adeptos a idéia de que toda matéria tinha uma origem natural, não-divina, e que todo

processo vital não era senão o movimento dessa matéria, obedecendo a leis naturais. Esses princípios

guiavam o conhecimento racional da sociedade, na busca das leis naturais da organização social.

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Page 20: Apostila Sociologia

Podemos afirmar que a filosofia social da Ilustração levaria à descoberta das bases materiais

da relações sociais. Percebe-se claramente que os filósofos dessa época já desenvolveriam a

consciência da diferença entre indivíduo e coletividade. Já percebiam que esta possuía regras

próprias que regulavam a vida coletiva, como regras naturais regiam o surgimento, o

desenvolvimento e as relações entre as espécies. Mas presos ainda à idéia de indivíduos, esses

filósofos entendiam a vida coletiva como fusão de individualidades. O comportamento social

decorreria da manifestação explícita das vontades individuais.

C) Adam Smith: O Nascimento da Ciência Econômica

Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência econômica, quem demonstrou que a

análise científica podia ir além do que era expressamente manifesto nas vontades individuais. Em sua

análise sobre a riqueza das nações descobriu no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de

riqueza. Não era somente a agricultura, como queriam os fisiocratas, a principal fonte de bens; mas o

trabalho capaz de transformar matéria bruta em produtos com valor de marcado. Veremos adiante

como essa idéia será retomada e reelaborada no século XIX por Karl Marx.

Adam Smith revelara a importância do trabalho ao pensar a sociedade não como um conjunto

abstrato de indivíduos dotados de vontade e liberdade, tal como fizeram Rousseau e Locke, mas ao

aprender e perceber a natureza própria da vida social segundo a qual o comportamento social

obedece a regras diferentes daquelas que regem a ação individual. A coletividade deixava de ser a

soma dos indivíduos que a compõem. A Revolução Industrial estava em pleno andamento e seus

frutos se anunciavam.

D) Legitimidade e Liberalismo

As teorias sociais da Ilustração no século XVIII foram ainda o início do pensar científico

sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar a ação política e lançar as bases do que viria a ser o

Estado capitalista, desenvolvido no século XIX, constitucional e democrático. Lançaram também as

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Page 21: Apostila Sociologia

bases para o movimento político pela legitimação do poder, fosse de caráter monárquico, como na

Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse de caráter republicano, como na Revolução Francesa, ou

ainda do tipo ditatorial, como no império napoleônico. Tão importante quanto seu valor como forma

de entendimento da vida social e política foi sua repercussão prática na sociedade.

A filosofia social desse período teve, em relação à renascentista, a vantagem de não construir

apenas uma crítica social baseada no que a sociedade poderia idealmente vir a ser, mas de criar

projetos concorrentes de realização política para a sociedade burguesa emergente.

A ideia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa

representatividade da sociedade é um avanço em relação à idéia de monarquia absoluta. O Estado já

não é a pessoa que governa, mas uma instituição abstrata com relações precisas com a coletividade.

Além da circulação de bens e de riquezas, o Estado criava o princípio da circulação de poder. O

confronto de interesses também está subjacente às propostas pelos político iluministas.

As ideias de Locke e de Montesquieu, outro importante pensador da Ilustração, foram a base

da Constituição norte-americana de 1787. Ambos pregaram a divisão do Estado em três poderes:

legislativo, incumbido da elaboração e da discussão das leis; executivo, encarregado da execução das

leis, tendo em vista a proteção dos direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade; e

jurídico, responsável pela fiscalização à observância das leis que asseguravam os direitos individuais

e seus limites. Essa divisão estabelecia a distribuição das tarefas governamentais e a mútua

fiscalização entre os poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a idéia de que a origem do poder não

estava nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão divina, mas no contato expresso pela

livre manifestação das vontades individuais.

A legislação norte-americana, instituindo a divisão do Estado nos três poderes e

estabelecendo mecanismos para garantir a eleição legítima dos governantes e os direitos do cidadão,

pôs em pratica os ideais políticos liberais e democráticos modernos. Os Estados Unidos da América

constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa.

6 A CRISE DAS EXPLICAÇES RELIGIOSAS E O TRIUNFO DA CIÊNCIA

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Page 22: Apostila Sociologia

A) O Milagre da Ciência

Vários aspectos da ilustração preparam o surgimento das ciências sociais no século XIX. O

primeiro deles foi a sistematização do pensamento científico. Os efeitos de novos inventos, como o

pára-raios e as vacinas, o desenvolvimento da mecânica, da química e da farmácia, eram amplamente

verificáveis e pareciam coroar de êxitos as atividades científicas. Claro está que a sociedade européia

da época não se dava conta das nefastas conseqüências que a Revolução Industrial do século XVIII

traria para o mundo tradicional agrário e manufatureiro. Aos olhos dos homens da época, eram

vitoriosas as conquistas do conhecimento humano, no sentido de abrir caminho para o controle sobre

as leis da natureza.

As ideias de progresso, racionalismo e cientificismo exerceram todo um encanto sobre a

mentalidade da época. A vida parecia submeter-se aos dita mes do homem esclarecido. Preparava-se

o caminho para o amplo progresso científico que aflorou no final do século XIX. Se esse pensamento

racional e científico parecia válido para explicar a natureza, intervir sobre ela e transforma-la, ele

poderia também explicar a sociedade vista como um elemento da natureza. E a sociedade, da mesma

forma que a natureza, poderia ser conhecida e transformada.

B) As Questões de Método

O filósofo da Ilustração, além de preocupar-se com a descoberta das leis que regiam o próprio

conhecimento, queria conhecer a natureza e intervir sobre ela. Dessa preocupação provieram as

discussões em torno do método científico. A indução, método que concebia o conhecimento como

resultado da experimentação contínua e do aprofundamento da manipulação empírica, havia sido

desenvolvida por Bacon desde o fim do Renascimento. Em contraposição, Decartes defendia a

validade do método dedutivo, ou seja, aquele que possibilitava descobertas pelo encadeamento

lógico de hipóteses elaborados exclusivamente a partir da razão.

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Page 23: Apostila Sociologia

A ciência se fundava, portanto, como um conjunto de idéias que diziam respeito à natureza

dos fatos e aos métodos para compreende-los. Por isso, as primeiras questões que os sociólogos do

século XIX tentarão responder serão relativas à definição dos fatos sociais e ao mé todo de

investigação. Tanto o método indutivo de Bacon como o dedutivo de Descartes serão traduzidos em

procedimentos válidos para as pesquisas sobre a natureza da sociedade.

C) O Anticlericalismo

Um aspecto de especial importância no pensamento desse período, sobretudo aquele de

origem francesa, foi o anticlericalismo. Entre os filósofos e os literatos que se insurgiram contra a

religião, em particular contra a Igreja Católica, destaca-se Voltaire, que, não se atendo somente à

prorrogação de idéias anticlericais, também moveu processos judiciais contra a Igreja Católica, a fim

de rever antigas condenações da Inquisição. Voltaire chegou a comprovar a injustiça de alguns

veredictos eclesiais e a obter indenizações para as famílias dos condenados.

Dessa forma, a Igreja foi questionada como fonte de poder secular, político e econômico, na

medida em que se imiscuía em questão civis e de Estado. Tal questionamento levou a uma descrença

na doutrina e na infalibilidade eclesiásticas, assim como ao repúdio à secular atuação do clero. Esse

processo, denominado por alguns historiadores “laicização da sociedade”, por outros,

“descristianização”, atingiu seu apogeu no século XIX. Nesse período desenvolveram-se filosofias

materialistas e o próprio estudo da religião como instituição social, em suas origens e funções.

D) A Igreja Como Objeto de Pesquisa

A existência da Igreja como instrumento social foi discutida por alguns pensadores e sociólogos do

século XIX. Émile Durkheim a considerava um meio de integrar os homens em torno de idéias

comuns. Karl Marx a julgava responsável por uma falsa imagem dos problemas humanos, ligada à

acomodação e à submissão pregadas por sua doutrina.

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Page 24: Apostila Sociologia

Defendida por uns, repudiada por outros, a Igreja perdia, de qualquer maneira, o importante

papel de explicar o mundo dos homens; passava ao contrário, a ser explicada por eles. A religião

começou a ser encarada como um dos aspectos da cultura humana, como algo criado pelos homens

com finalidades práticas relativas à vida terrena, e não apenas à vida futura.

Assim, a Igreja e sua doutrina sofreram um processo de dessacralização, em que se eliminou

muito de seu aspecto sobrenatural e transcendente. Toda religião – em especial o catolicismo – era

agora vista de maneira favorável ou desfavorável, conforme sua inserção na vida concreta e material

dos homens, como promotora de valores sociais importantes para a orientação da conduta humana.

Na filosofia, grandes pensadores sistematizaram o pensamento laico e anticlerical. Feuerbach,

filósofo alemão, atacou a concepção segundo a qual o homem havia sido criado por Deus, invertendo

a situação ao afirmar que o homem criara DEUS à imagem e semelhança. Nietzsche chega a anunciar

a morte de Deus e a necessidade de o homem assumir a plena responsabilidade sobre a sua e

xistência no mundo.

A nova maneira de encarar a doutrina religiosa auxiliou o desenvolvimento das ciências

humanas, em particular das ciências sociais, na medida em que a própria sociedade perdeu a

sacralidade, isto é, deixou de ser vista como obra de Deus. Para o pensamento cientificista do século

XIX, são os homens que criam os deuses e não o contrário. A vida humana em sociedade deixa de

ser mero estágio para a vida após a morte e passa agora a buscar explicações para a existência das

crenças religiosas na própria sociedade.

E) A Sacralização da Ciência

A sociedade se desenvolveu no século XIX quando a racionalidade das ciências naturais e de

seu método havia obtido o reconhecimento necessário para substituir a religião na explicação da

origem, do desenvolvimento e da finalidade do mundo.

Nesse momento, a ciência, com sua possibilidade de desvendar as leis naturais do mundo

físico e social, por meio de procedimentos adequados e controlados, havia conquistado parte da

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Page 25: Apostila Sociologia

sacralidade que antes pertencia às explicações religiosas: a de descobrir e apontar aos homens o

caminho em direção à verdade.

A ciência já não parecia mais uma forma particular de saber, mas a única capaz de explicar a

vida, abolir e suplantar as crenças religiosas e até mesmo as discussões éticas. Supunha-se que,

utilizando-se adequadamente os métodos de investigação, a verdade se descortinaria diante dos

cientistas – os novos “magos” da civilização -, quaisquer que fossem suas opiniões pessoais, seus

valores sobre o bem e o mal, o certo e o errado.

Com esta mesma proposta de isenção de valores com que se descobriria a lei da gravitação

dos corpos celestes no universo, julgava-se possível descobrir as leis que regulavam as relações entre

os homens na sociedade, leis naturais que existiriam independentemente do credo, da opinião e do

julgamento humano. O poder do método científico assim se assemelhava ao poder das antigas

práticas mágicas: bem usa do, revelaria ao homem a essência da vida e suas formas de controle.

7 O POSITIVISMO E A PRIMEIRA FORMA DE PENSAMENTO SOCIAL

A primeira forma de organização de um pensamento de uma explicação sem a influência da

religião, da visão sagrada das coisas.

A) Cientificismo e Organicismo

A primeira corrente teórica sistematizada de pensamento sociológico foi o positivismo, a

primeira a definir precisamente o objeto, a estabelecer conceitos e uma me todologia de investigação.

Além disso o positivismo, ao definir a especificidade do estudo científico da sociedade, conseguiu

distinguir-se de outras ciências estabelecendo um espaço próprio à ciência da sociedade. Seu

primeiro representante e principal sistematizador foi o pensador francês Auguste Comte.

O positivismo derivou do “cientificismo”, isto é, da crença no poder exclusivo e absoluto da

razão humana em conhecer a realidade e traduzi-la sob a forma de leis naturais. Essas leis seriam a

base da regulamentação da vida do homem, da natureza como um todo e do próprio universo. Seu

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Page 26: Apostila Sociologia

conhecimento pretendia substituir as explicações teológicas e de senso comum por meio das quais –

até então – o homem explicava a realidade. O positivismo reconhecia que os princípios reguladores

do mundo físico e do mundo social diferiam quanto a sua essência: os primeiros diziam respeito a

acontecimentos exteriores aos homens; os outros, a questões humanas.

Entretanto, a crença na origem natural de ambos teve o poder de aproximá-los. Além disso, a

rápida evolução dos conhecimentos das ciências naturais – física, química, biologia – e o visível

sucesso de suas descobertas no incremento da produção material e no controle das forças da natureza

atraíram os primeiros cientistas sociais para o seu método de investigação.

Essa tentativa de derivar as ciências sociais físicas é patente nas obras dos primeiros

estudiosos da realidade social. O próprio Comte deu inicialmente o nome de “física social” às suas

análises da sociedade, antes de criar o termo sociologia.

Essa filosofia social positivista se inspirava no método de investigação das ciências da

natureza, ssim como procurava identificar na vida social as mesmas relações e princípios com os

quais os cientistas explicavam a vida natural. A própria sociedade foi concebida como um organismo

constituído de partes integradas e coesas que funcionavam harmonicamente, segundo um modelo

físico ou mecânico. Por isso o positivismo foi chamado também de organicismo.

Podemos apontar, portanto, como primeiro princípio teórico dessa escola a tentativa de

construir seu objeto, pautar seus métodos e elaborar seus conceitos à luz das ciências naturais,

procurando dessa maneira chegar à mesma objetividade e ao mesmo êxito nas formas de controle

sobre os fenômenos estudados.

Aa) O Darwinismo Social

É importante situar o desenvolvimento do pensamento positivista no contexto histórico do

século XIX. A expansão da Revolução Industrial pela Europa, obtida pelas revoluções burguesas

que atingiram todos os países europeus até 1870, trouxe consigo a destruição da velha ordem feudal e

a consolidação da nova sociedade - a capitalista -, estruturada sobre a indústria. Já no final do

século, a livre concorrência, que era a regra geral de funcionamento da sociedade capitalista

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Page 27: Apostila Sociologia

européia, passa por profundas transformações com a crescente substituição da concorrência entre

inúmeros produtores de cada ramo industrial por uma concorrência limitada a um pequeno número

de produtores de cada ramo. Surgia a época dos monopólios e dos oligopólios, que, associados ao

capital dos grandes bancos, dão origem ao capital financeiro.

Esta reestruturação do capitalismo estava associada às sucessivas crises de superprodução na

Europa, que traziam consigo a morte de milhares de pequenas indústrias e negócios, para das espaço

apenas às maiores e mais estruturadas indústrias. Estas, por sua vez, tiveram de se unir ao capital

bancário para sustentar e financiar sua própria expansão. Crescer para fora dos limites da Europa era,

portanto, a única saída para garantir a continuidade dessas indústrias.

Da mesma forma, o capital financeiro necessitava de novos mercados para poder crescer, pois

era perigoso continuar investindo na indústria européia sem causar novas e mais profundas crises de

superprodução. Desencadeava-se, assim, a corrida para a conquista de impérios além-mar; os alvos

eram a África e a Ásia. Nesses continentes podia-se obter matéria-prima bruta a baixíssimo custo,

bem como mão-de-obra barata; eram também pequenos mercados consumidores, bem como locais

ideais para investimentos em obras de infra-estrutura. Porém, a exploração eficaz dessas novas

colônias encontrava resistência nas estruturas sociais e produtivas vigentes nesses continentes que, de

forma alguma, atendiam ás necessidades do capitalismo europeu.

A Europa deparou-se com civilizações organizadas sob princípios tais como o politeísmo, a

poligamia, formas de poder tradicionais, castas sociais sem qualquer tipo de mobilidade, economia

de subsistência, em sua grande maioria, ou voltada para um pequeno comércio local, artesanato

doméstico. Assim, o europeu teve primeiro de organizar, sob novos moldes, as nações que

conquistava, estruturando-as segundo os princípios que regiam o capitalismo. De outra forma seria

impossível racionalizar a exploração da matéria-prima e da mão-de-obra, de modo a permitir o

consumo de produtos industrializados europeus a aplicação rentável dos capitais excedentes na

Europa, nesses territórios.

Transformar esse mundo conquistado em colônias que se submetessem aos valores

capitalistas requeria uma empresa de grande envergadura, pois dessa transformação dependiam a

expansão e a sobrevivência do capitalismo industrial. Assim a conquista, a dominação e a

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Page 28: Apostila Sociologia

transformação da África e da Ásia pela Europa precisavam apresentar uma justificativa que

ultrapassasse os interesses econômicos imediatos. Isso explica o fato de a conquista européia está

revestida de um manto humanitário que ocultava a violência da ação colonizadora. Assim, a

conquista e a dominação foram transformadas em “missão civilizadora”.

Países como Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Itália se apoderavam de regiões do

mundo cujo modo de vida era totalmente diferente do capitalismo europeu. A “civilização” era

oferecida, mesmo contra a vontade dos dominados, como forma de “elevar” essas nações do seu

estado primitivo a um nível mais desenvolvido.

A atuação dos europeus sobre os demais continentes foi intensa, no sentido de transformar

suas formas tradicionais de vida e neles introduzir os valores do colonizador. Como foi dito, essa

nova forma de colonialismo se assentava na justificativa de que a Europa tinha, diante dessas

sociedades, a obrigação moral de civiliza-las, de retira-las do atraso em que viviam. Nesse sentido,

entendia-se que o ápice da humanidade - o mais alto grau de civilização a que o homem poderia

chegar – seria a sociedade industrial européia do século XIX.

Em consonância com essa forma de pensar desenvolveram-se as idéias do cientista inglês

Charles Darwin a respeito da evolução biológica das espécies animais. Para Darwin, as diversas

espécies de seres vivos se transformam continuamente com a finalidade de se aperfeiçoar e garantir a

sobrevivência. Em conseqüência, os organismos tendem a se adaptar cada vez melhor o ambiente,

criando formas mais complexas e avançadas de existência, que possibilitam, pela competição natural,

a sobrevivência dos seres mais aptos e evoluídos.

Tais idéias, transpostas para a análise da sociedade, resultam no darwinismo social, isto é, o

princípio de que as sociedades se modificam e se desenvolvem num mesmo sentido e que tais

transformações representariam sempre a passagem de um estágio inferior para outro superior, em que

o organismo social se mostraria evoluído, mais adaptado e mais complexo. Esse tipo de mudança

garantiria a sobrevivência dos organismos – sociedades e indivíduos – mais fortes e mais evoluídos.

Os principais cientistas sociais positivistas, combinando as concepções organicistas e

evolucionistas inspiradas na perspectiva de Darwin, entendiam que as sociedades tradicionais

encontradas na África, na Ásia, na América e na Oceania não eram senão “fósseis vivos”,

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Page 29: Apostila Sociologia

exemplares de estágios anteriores, “primitivos”, do passado da humanidade. Assim, as sociedades

mais simples e de tecnologia menos avançada deveriam evoluir em direção a níveis de maior

complexidade e progresso na escala da evolução social, até atingir o “topo”: a sociedade industrial

européia. Porém essa explicação aparentemente “científica” para justificar a intervenção européia

nesses continentes era, por sua vez, incapaz de explicar o que ocorreria na própria Europa. Lá, os

frutos do progresso não eram igualmente distribuídos, nem todos participavam igualmente das

conquistas da civilização. Como o positivismo explicava essa distorção?

Ab )Uma visão critica do darwinismo social – ontem e hoje

Essa transposição de conceitos físicos e biológicos para o estudo das sociedades e das

relações entre essas trouxe, ao darwinismo social, desvios importantes. O fundamento do conceito de

espécie em Darwin dificilmente pode ser transposto para o estudo das diferentes sociedades e etnias.

Se o homem constitui sociologicamente uma espécie, o mesmo não se pode dizer das

diferentes culturas que ele desenvolveu. Além disso, como vimos, o caráter cultural da vida humana

imprime, no desenvolvimento das suas formas de vida, princípios diferentes daqueles existentes na

natureza. Os princípios da seleção natural são aplicáveis para as espécies cujo comportamento é

expressão das leis imperativas da natureza.

Hoje, sente-se que a complexidade da cultura humana tem concorrido para limitar a ação da

lei da seleção natural. A adaptabilidade do homem e a sua dependência cada vez menor ao meio têm

transformado o ser humano numa espécie à qual a seleção natural se aplica de maneira especial e

relativa. Essa transposição serviu entretanto como justificativa de uma ação política e econômica que

nem sequer avaliava efetivamente aquilo que representaria o “mais forte” ou o mais evoluído.

Identificar a especificidade das regras que regem as sociedades é fundamental para o uso de

conceitos de outras ciências. Ainda hoje se tenta essa transposição para justificar determinadas

realidades sociais. A regra darwinista da competição e da sobrevivência do mais forte é aplicada às

leis de mercado, principalmente pela doutrina do liberalismo econômico.

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Page 30: Apostila Sociologia

Pressupõe-se que competitividade seja o princípio natural – e portanto universal e exterior ao

homem – que assegura a sobrevivência do melhor, do mais forte e do mais adaptado. É preciso

lembrar que o mercado, como outros elementos da cultura humana, obedece a leis de organização

social essencialmente humanas – e, portanto, histórica -, resultantes do desenvolvimento das relações

entre os home ns e entre as sociedades.

Ac)Duas Formas de avaliar as mudanças sociais

O darwinismo social, além de justificar o colonialismo da Europa no resto do mundo, refletia

o grande otimismo com que o progresso material da industrialização era recebido pelo europeu.

Entretanto, apesar desse otimismo em relação ao caráter apto e evoluído da sociedade européia, o

desenvolvimento industrial gerava a todo momento novos conflitos sociais. Os empobrecidos e

explorados – camponeses e operários – organizavam-se exigindo mudanças políticas e econômicas.

Os primeiros pensadores sociais positivistas responderam com as idéias de ordem e progresso.

Haveria então, dois tipos característicos de movimento na sociedade. Um levaria à evolução

transformando as sociedades, segundo a lei universal, da mais simples à mais complexa, da menos

avançada à mais evoluída. Outro procuraria ajustar todos os indivíduos às condições estabelecidas,

garantindo o melhor funcionamento da sociedade, o bem comum e os anseios da maioria da

população. Esses dois movimentos revelariam ser a ordem o princípio que rege as transformações

sociais, princípio necessário para a evolução social do progresso. Essa ordem implicaria o

ajustamento e a integração dos componentes da sociedade a um objetivo comum.

Os movimentos reivindicatórios, os conflitos, as revoltas deveriam ser contidos sempre que

pusessem em risco a ordem estabelecida ou o funcionamento da sociedade, ou ainda quando

inibissem o progresso.

Auguste Comte, identificou na sociedade esses dois movimentos vitais: chamou de dinâmico

o que representava a passagem para formas mais complexas de existência, como a industrialização; e

de estático o responsável pela preservação dos elementos permanentes de toda organização social. As

instituições que mantêm a coesão e garantem o funcionamento das sociedade, por exemplo, família,

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Page 31: Apostila Sociologia

religião, propriedade, linguagem, direito etc. Seriam responsáveis pelo movimento estático da

sociedade. Comte relacionava os dois movimentos vitais de modo a privilegiar o estático sobre o

controle dinâmico, a conservação sobre a mudança. Isso significava que, para ele, o progresso

deveria aperfeiçoar os elementos da ordem e não destruí-los.

Assim se justificava a intervenção na sociedade sempre que fosse necessário assegurar a

ordem ou promover o progresso. A existência da sociedade burguesa industrial era defendida tanto

em face dos movimentos reivindicativos que aconteciam em seu próprio interior quanto em face da

resistência das sociedades agrárias e pré-mercantis em aceitar o modelo industrial e urbano.

Ad ) Organicismo

Não podemos deixar de nos referir, num texto que trata do positivismo e do darwinismo

social, a outra escola que se desenvolveu no rastro das conquistas das ciências biológicas e naturais e

da teoria evolucionista de Charles Darwin. Essa outra escola foi o organicismo, que teve como

seguidores cientistas que procuram aplicar seus princípios na expedição da vida social.

Um deles foi o alemão Albert Schäffle, que se dedicou ao estudo dos “tecidos sociais”,

conceito com o qual identificava as diferentes sociedades existentes, numa nítida alusão à biologia.

Ninguém, entretanto, se destacou como Herbert Spencer, filósofo inglês que procurou estudar a

evolução da espécie humana de acordo com leis que explicariam o desenvolvimento de todos os

seres vivos, entre os quais o homem. Seu seguidor, o francês Alfred Espinas, afirma que os

princípios da biologia são aplicáveis a todo ser vivo, razão pela qual propõe uma “ciência da

sociedade”, cujas leis estariam expressas na vida comunitária de todos os seres vivos, desde as

espécies mais simples até o homem.

Todos esses cientistas partem do princípio de que existem caracteres universais presentes

nos mais diversos organismos vivos, dispostos sob a forma de órgão e sistemas – partes

interdependentes cuja função primordial é a preservação do todo social. Procuravam assim criar uma

identidade entre leis biológicas e leis sociais, hereditariedade e história. Essas teorias entendem as

análises sociais da espécie humana como integradas aos estudos universais das espécies vivas.

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Page 32: Apostila Sociologia

Ignoram a especificidade do homem, enquanto espécie predominantemente histórica e cultural. Por

fim, estabelecem leis de evolução em que as diversas sociedades humanas são tratadas como espécie.

B) Da filosofia social à sociedade

O positivismo foi o pensamento que glorificou a sociedade européia do século XIX, em

franca expansão. Procurava resolver os conflitos sócias por meio da exaltação à coesão, à harmonia

natural entre os indivíduos, ao bem estar do todo social.

Por mais evidentes que sejam hoje os limites, interesses, ideologias e preconceitos inscritos

nos estudos positivistas da sociedade, por mais que eles tenham servido como lemas de uma ação

política conservadora, como justificativa para as relações desiguais entre sociedades, é preciso

lembrar que eles representam um esforço concreto de análise científica da sociedade.

A simples postura de que a vida em sociedade era possível de estudo e compreensão; que o

homem possuía – além de seu corpo e sentimentos – uma natureza social; que as emoções , os

desejos e as formas de vida derivavam de contingências históricas e sociais -, tudo isso foram

descobertas de grande importância.

Diante desses estudos, devemos não perder a perspectiva crítica, mas entendê-los como as

primeiras formulações objetivas sobre a sociabilidade humana. Apenas o fato de que tais

formulações não vinham expressas num livro religioso nem se justificavam por inspiração divina é

suficiente para merecerem nossa atenção. Foram teorias que abriram as portas para uma nova

concepção da realidade com suas especificidades e regras.

Quase todos os países europeus economicamente desenvolvidos conheceram o positivismo.

No entanto, foi na França, por excelência, que floresceu essa escola, a qual, partindo de uma

interpretação original do legado de Descartes e dos enciclopedistas, buscava na razão e na

experimentação seus horizontes teóricos.

Entre os filósofos sociais franceses, pode-se destacar Hipolite Taine, cujas idéias sofreram

menor influência de Comte. Formulou uma concepção da realidade histórica como determinada por

três forças primordiais: “raça”, que constituiria o fundamento biológico; o “meio”, que incluiria

32

Page 33: Apostila Sociologia

aspectos físicos e sociais; e o “momento”, que se constitui no resultado das sucessões históricas.

Outra figura relevante é Gustave Le Bon, médico e arqueólogo, contemporâneo de Taine, autor de

pioneira e controvertida obra sobre a “ psicologia das multidões”, na qual reflete sobre as crenças

sociais mais gerais formadoras da “mentalidade coletiva” e sua ação em indivíduos agrupados em

multidão. Pierre Le Play, outro destes filósofos sociais, tinha uma perspectiva naturalista bem

acentuada, havendo concentrado seus esforços na busca da “menor unidade social”, comparável ao

átomo da física ou às células da biologia . Le Play estabeleceu a família como essa unidade básica e

universal, postulando que as relações sociais seriam decorrência das relações familiares, em grau

variável de complexidade. Fora da França, cabe lembrar mais uma vez o trabalho do inglês Herbert

Spencer, por suas reflexões na linha do evolucionismo e do organicismo.

A maioria dos primeiros pensadores sociais positivistas permanece, pois, presa por uma

reflexão de natureza filosófica sobre a história e a ação humanas. Procedimentos de natureza

científica, análises sociológicas baseadas em fatos observados com maior critério só serão

introduzidos por Émile Durkheim e seu grupo.

8 A SOCIOLOGIA DE DURKHEIM

A) O que é fato social

Embora Comte seja considerado o pai da sociologia e tenham-lhe dado esse nome, Durkheim

é apontado como um de seus primeiros grandes teóricos. Ele e seus colaboradores se esforçaram por

emancipar a sociologia das demais teorias sobre a sociedade e constituí-la como disciplina

rigorosamente científica. Em livros e cursos, suas preocupação foi definir com precisão o objeto, o

método e as aplicações dessa nova ciência.

Em uma de suas obras fundamentais, As regras do método sociológico, publicada em 1895,

Durkheim definiu com clareza o objeto da sociologia – os fatos sociais. Distingue três características

dos fatos sociais.

33

Page 34: Apostila Sociologia

A primeira delas é a coerção social, ou seja, a força que os fatos exerceram sobre os

indivíduos, levando-os a conformar-se às regras da sociedade em que vivem, independentemente de

sua vontade e escolha. Essa força se manifesta quando o indivíduo adota um determinado idioma,

quando se submete a um determinado tipo de formação familiar ou quando está subordinado a

determinado código de leis. O grau de coerção dos fatos sociais se torna evidente pelas sanções a que

o indivíduo estará sujeito quando tenta rebelar contra elas. As sanções podem ser legais ou

espontâneas. Legais são as sanções prescritas pela sociedade, sob a forma de leis, nas quais se

estabelece a infração e a penalidade subseqüente. Espontâneas seriam as que aflorariam como

decorrência de uma conduta não adaptada à estrutura do grupo ou da sociedade à qual o indivíduo

pertence. Diz Durkheim, exemplificando este último tipo de sanção:

“Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século

passado: mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável. “ (p.3)

Do mesmo modo, uma ofensa num grupo social pode não ter penalidade prevista por lei, mas

o grupo pode espontaneamente reagir penalizando o agressor. A reação negativa a certa forma de

comportamento é, muitas vezes, mais intimidadora do que a lei. Jogar lixo no chão ou fumar em

espaços particulares – mesmo quando não proibidos por lei nem reprimidos por penalidade explicita

– são comportamentos inibidos pela reação espontânea dos grupos que a isso se opuserem.

A educação – entendida de forma geral, ou seja, a educação formal e a informal –

desempenha, segundo Durkheim, uma importante tarefa nessa conformação dos indivíduos à

sociedade em que vivem, a ponto de, após algum tempo, as regras estarem internalizadas e

transformadas em hábitos. O uso de uma determinada língua ou o predomínio no uso da mão direita

são internalizados no indivíduo que passa a agir assim sem sequer pensar a respeito.

A segunda característica dos fatos sociais é que eles existem e atua m sobre os indivíduos

independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente, ou seja, são exteriores aos

indivíduos. As regras sociais, os costumes, as leis, já existem antes do nascimento das pessoas, são a

34

Page 35: Apostila Sociologia

elas impostos por mecanismos de coerção social, como a educação. Portanto, os fatos sociais são ao

mesmo tempo coercitivos e dotados de existência exterior às consciências individuais.

A terceira característica apontada por Durkheim é a generalidade. É social todo fato que é

geral, que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos, na maioria deles. Por essa generalidade,

os fatos sociais manifestam sua natureza coletiva ou um estado comum ao grupo, como as formas de

habitação, de comunicação, os sentimentos e a moral.

Aa ) A objetividade do fato social

Uma vez identificados e caracterizados os fatos sociais, Durkheim procurou definir o método

de conhecimento da sociologia. Para ele, como para os positivistas de maneira geral, a explicação

científica exige que o pesquisador mantenha certa distância e neutralidade em relação aos fatos,

resguardando a objetividade de sua análise.

Além disso, é preciso, segundo Durkheim, que o sociólogo deixe de lado suas prenoções, isto

é, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser estudado, pois nada têm de

científico e podem distorcer a realidade dos fatos. Essa postura exige o não-envolvimento afetivo ou

de qualquer outra espécie entre o cientista e seu objeto. A neutralidade exige também a não-

interferência da cientista no fato observado. Assim Durkheim imaginava que, ao estudar, por

exemplo, uma briga entre gangues, o cientista não deveria envolver-se e nem permitir que seus

valores interferissem na objetividade de sua análise. Para ele, o trabalho científico exigiria, portanto,

a eliminação de quaisquer traços de objetividade, além de uma atitude de distanciamento.

Procurando garantir à sociologia um método tão eficiente quanto o desenvolvido pelas

ciências naturais, Durkheim aconselhava o sociólogo a encarar os fatos sociais como coisas, isto é,

objetos que, lhe sendo exteriores, deveriam ser medidos e comparados independentemente do que os

indivíduos envolvidos pensassem ou declarassem a seu respeito. Tais formulações seriam apenas

opiniões, juízos de valor individuais que podem servir de indicadores dos fatos sociais, mas

mascaram as leis de organização social, cuja racionalidade só é acessível ao cientista.

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Page 36: Apostila Sociologia

Imbuído dos princípios positivistas, Durkheim queria com esse rigor, à maneira do método

que garantia o sucesso das ciências exatas, definir a sociologia como ciência, rompendo com as

idéias e o senso comum – “achismo” – que interpretam de maneira vulgar a realidade social.

Para apoderar-se dos fatos sociais, o cientista deve identificar, dentre os acontecimentos

gerais e repetitivos aqueles que apresentam características exteriores comuns. Assim, por exemplo, o

conjunto de atos que suscitam na sociedade reações concretas classificadas como “penalidades”

constituem os fatos sociais identificáveis como “crime”.

Vemos que os fenômenos devem ser sempre considerados em suas manifestações coletivas,

distinguindo-se dos acontecimentos individuais ou acidentais. A generalidade distingue o essencial

do fortuito e especifica a natureza sociológica dos fenômenos.

O suicídio, amplamente estudado por Durkheim, constituía-se, nesse sentido, em fato social

por corresponder a todas essas características: é geral, existindo em todas as sociedades: e, embora

sendo fortuito e resultando de razões particulares, apresenta em todas elas certa regularidade,

recrudesce ou diminui de intensidade em certas condições históricas, expressando assim sua natureza

social.

Ab) Sociedade: um organismo em adaptação

Para Durkheim, a sociologia tinha por finalidade não só explicar a sociedade como também

encontrar soluções para a vida social. A sociedade, como todo organismo, apresentaria estados

normais e patológicos, isto é, saudáveis e doentios.

Durkheim considera um fato social como normal quando se encontra generalizado pela

sociedade ou quando desempenha alguma função importante para sua adaptação ou sua evolução.

Assim, afirma que o crime, por exemplo é normal não apenas por ser encontrado em toda e qualquer

sociedade e em todos os tempos, mas também por representar um fato social que integra as pessoas

em torno de uma conduta valorativa, que pune o comportamento considerado nocivo.

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Page 37: Apostila Sociologia

A generalidade de um fato social, isto é, sua unanimidade, é garantia de normalidade na

medida em que representa o consenso social, a vontade coletiva, ou o acordo de um grupo a respeito

de determinada questão. Diz Durkheim:

“... para saber se o estado econômico atual dos povos europeus, com sua característica ausência de

organização, é normal ou não, procurar-se-á no passado o que lhe deu origem. Se estas condições são

ainda aquelas em que atualmente se encontra nossa sociedade, é porque a situação é normal, a

despeito dos protestos que desencadeia.” (p. 57)

Partindo, pois, do princípio máximo de que o objetivo máximo da vida social é promover a

harmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa harmonia é

conseguida por meio do consenso social, a “saúde” do organismo social se confunde com a

generalidade dos acontecimentos. Quando um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o consenso e,

portan to, a adaptação e a evolução da sociedade, estamos diante de um acontecimento de caráter

mórbido e de uma sociedade doente.

Portanto, normal é aquele fato que não extrapola os limites dos acontecimentos mais gerais

de uma determinada sociedade e que reflete os valores e as condutas aceitas pela maior parte da

população. Patológico é aquele que se encontra fora dos limites permitidos pela ordem social e pela

moral vigente. Os fatos patológicos, como as doenças, são considerados transitórios e excepcionais.

Ac ) A consciência coletiva

Toda a teoria sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais tem

existência própria e independem daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular. Embora todos

possuam sua “consciência individual”, seu modo próprio de se comportar e interpretar a vida,

podem-se notar, no interior de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e

pensamento. Essa constatação está na base do que Durkheim chamou de consciência coletiva.

A definição de consciência coletiva aparece pela primeira vez na obra Da divisão do trabalho

social: trata-se do “conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma

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Page 38: Apostila Sociologia

mesma sociedade” que “forma um sistema determinado com vida própria” A consciência coletiva

não se baseia na consciência de indivíduos singulares ou de grupos específicos, mas está espalhada

por toda a sociedade. Ela revelaria, segundo Durkheim, o “tipo psíquico da sociedade”, que não seria

apenas o produto das consciências individuais, mas algo diferente, que se imporia aos indivíduos e

perduraria através das gerações.

A consciência coletiva é, em certo sentido, a forma moral vigente na sociedade. Ela aparece

como um conjunto de regras fortes e estabelecidas que atribuem valor e delimitam os atos

individuais. É a consciência coletiva que define o que, numa sociedade, é considerado “imoral”,

“reprovável” ou “criminoso”.

Ad)Morfologia social: as espécies sociais

Para Durkheim, a sociologia deveria ter ainda por objetivo comparar as diversas sociedades.

Constituiu assim o campo da morfologia social, ou seja, a classificação das espécies sociais numa

nítida referência às espécies estudadas em biologia. Essa referência, utilizada também em outros

estudos teóricos, tem sido considerado errônea uma vez que todo comportamento humano, por mais

diferente que se apresente, resulta da expressão de características universais de uma mesma espécie.

Durkheim, considerava que todas as sociedades haviam evoluído a partir da horda, a forma

social mais simples, igualitária, reduzida a um único segmento onde os indivíduos se assemelhavam

aos átomos, isto é, se apresentavam justapostos e iguais. Desse ponto de partida, foi possível uma

série de combinações das quais originaram-se outras espécies sociais identificáveis no passado e no

presente, tais como clãs e as tribos.

Para Durkheim, o trabalho de classificação das sociedades – como tudo o mais – deveria ser

efetuado com base em apurada observação experimental. Guiado por esse procedimento, estabeleceu

a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica como o motor de transformação

de toda e qualquer sociedade.

Dado o fato de que as sociedades variam de estágio, apresentando formas diferentes de organização

social que tornam possível defini-las como “inferiores” ou “superiores”, como o cientista classifica

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Page 39: Apostila Sociologia

os fatos normais e os anormais em cada sociedade. Para Durkheim, a normalidade só pode ser

entendida em função do estágio social da sociedade em questão.

Ae) Durkheim e a Sociologia Científica

Durkheim, se distingue dos demais positivistas porque suas idéias ultrapassaram a reflexão

filosófica e chegaram a construir um todo organizado e sistemático de pressupostos teóricos e

metodológicos sobre a sociedade.

O empirismo positivista, que pusera os filósofos diante de uma realidade social a ser

especulada, transformou-se, em Durkheim, numa rigorosa postura empírica, centrada na verificação

dos fatos que poderiam ser observados, mensurados e relacionados através de dados coletados

diretamente pelo cientista. Encontramos em seus estudos um inovador e fecundo uso da matemática

estatística e uma integrada utilização das análises qualitativas e quantitativas. Observação,

mensuração e interpretação eram aspectos complementares do método darwinista.

Para isso, Durkheim procurou estabelecer os limites e as diferenças entre a particularidade e a

natureza dos acontecimentos filosóficos, históricos, psicológicos e sociológicos. Elaborou um

conjunto coordenado de conceitos e de técnicas de pesquisa que, embora norteado por princípios das

ciências naturais, guiava o cientista para o discernimento de um objeto de estudo próprio e dos meios

adequados para interpretá-lo.

Ainda que preocupado com as leis gerais capazes de explicar a evolução das sociedades

humanas. Durkheim, ateve-se também às particularidades da sociedade em que vivia, aos

mecanismos de coesão dos pequenos grupos e à formação de sentimentos comuns resultantes da

convivência social. Distinguiu diferentes instâncias da vida social e seu papel na organização social,

como a educação, a família e a religião.

Pode-se dizer que já se delineava uma apreensão da sociologia em que relacionavam

harmonicamente o geral e o particular. Havia busca, ainda que não expressa, da noção de totalidade.

Essa noção foi desenvolvida particularmente por seu sobrinho e colaborador Marcel Mauss, em seus

estudos antropológicos. Em vista de todos esses aspectos tão relevantes e inéditos, os limites antes

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Page 40: Apostila Sociologia

impostos pela filosofia positiva perderam sua importân cia, fazendo dos estudos de Durkheim, um

constante objeto de interesse da sociologia contemporânea.

9 A SOCIOLOGIA ALEMÃ: A CONTRIBUIÇÃO DE MARX WEBER

A) Introdução

A França desenvolveu seu pensamento social sob influência da filosofia positivista. Como

potência emergente nos séculos XVII e XVIII foi, com a Inglaterra, a sede do desenvolvimento

industrial e da sedimentação do pensamento burguês. O desenvolvimento da indústria e a expansão

marítima e comercial colocaram esses países em contato com outras culturas e outras cidades,

obrigando seus pensadores a um esforço interpretativo da diversidade social. O sucesso alcançado

pelas ciências físicas e biológicas, impulsionadas pela indústria e pelo desenvolvimento tecnológico,

fizeram com que as primeiras escolas sociológicas fossem fortemente influenciadas pela adaptação

dos princípios e da metodologia dessas ciências à realidade social.

Na Alemanha, entretanto, a realidade é distinta . o pensamento burguês se organiza

tardiamente e quando o faz, já no século XIX, é sob influência de outras correntes filosóficas e da

sistematização de outras ciências humanas, como a história e a antropologia. A expansão econômica

alemã se dá, por outro lado, numa época de capitalismo concorrencial, no qual os países disputam

com unhas e dentes os mercados mundiais, submetendo a seu imperialismo as mais diferentes

culturas , o que torna a especificidade das formações sociais uma evidência e um conceito da maior

importância.

A Alemanha se unifica e se organiza como Estado nacional mais tardiamente que o conjunto

das nações européia, o que atrasou seu ingresso na corrida industrial e imperialista da segunda

metade do século XIX. Esse descompasso em relação às grandes potências vizinhas fez elevar no

país o interesse pela história como ciência da integração, da memória e do nacionalismo. Por tudo

isso, o pensamento alemão se volta para a diversidade, enquanto o francês e o inglês, para a

universidade.

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Page 41: Apostila Sociologia

Devemos distinguir no pensamento alemão, portanto, a preocupação com o estudo da

diferença, característica de sua formação política e de seu desenvolvimento econômico. Acresce a

isso a herança puritana com seu apego à interpretação das escrituras e livros sagrados. Essa

associação entre história, esforço interpretativo e facilidade em discernir diversidades caracterizou o

pensamento alemão e quase todos seus cientistas, desde Gabriel Tarde e Ferdinand Tönnies. Mas foi

Max Weber o grande sistematizador da sociologia na Alemanha.

Aa )A sociedade sob uma perspectiva histórica

O contraste entre o utilitarismo e o idealismo se expressa, entre outros elementos, nas

maneiras diferentes como cada uma dessas correntes encara a história.

a) Para o positivismo, a história é o processo universal de evolução da humanidade, cujos estágios o

cientista pode perceber pelo método comparativo, capaz de aproximar sociedades humanas de todos

os tempos e lugares. A história particular de cada sociedade desaparece diluída nessa lei geral que os

pensadores positivistas tentaram reconstituir. Essa forma de pensar faz desaparecer as

particularidades históricas, e os indivíduos são dissolvidos em meio a forças sociais impositivas.

Ao definir o que é uma espécie social, Durkheim, em uma nota de pé de página em seu livro

"As regras do método sociológico", alerta para que não se confunda uma espécie social com as fases

históricas pelas quais ela passa. Diz ele: “Desde suas origens, passou a França por formas de

civilização muito diferentes: começou por ser agrícola, passou em seguida pelo artesanato e pelo

pequeno comércio,

depois pela manufatura e, finalmente, chegou à grande indústria. Ora, é impossível admitir que uma

mesma individualidade coletiva possa mudar de espécie três ou quatro vezes. Uma espécie deve

definir-se por caracteres mais constantes. O estado econômico tecnológico etc. Apresenta fenômenos

por demais instáveis e complexos para fornecer a base para uma classificação.”

Fica claro que essa posição anula a importância dos processos históricos particulares,

valorizando apenas a lei da evolução, a generalização e a comparação entre formações sociais.

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Page 42: Apostila Sociologia

Weber, figura dominante na sociologia alemã, com formação histórica consistente, se oporá a essa

concepção.

b) Para ele, a pesquisa histórica é essencial para a compreensão das sociedades. Essa pesquisa,

baseada na coleta de documentos e no esforço interpretativo das fontes, permite o entendimento das

diferenças sociais, que seriam, para Weber, de gênese e formação, e não de negócios de estágio de

evolução.

Portanto, segundo a perspectiva de Weber, o caráter particular e específico de cada formação

social e histórica contemporânea deve ser respeitado. O conhecimento histórico, entendido como a

busca de evidências, torna-se um poderoso instrumento para o cientista social.

Weber consegue combinar duas perspectivas: a história, que respeita as particularidades de

cada sociedade, e a sociológica, que ressalta os elementos mais gerais de cada fase do processo

histórico. Na obra "As causas sociais do declínio da cultura antiga", por exemplo. Weber analisou,

com base em textos e documentos, as transformações da sociedade romana em função da utilização

da mão-de-obra escrava e do servo de gleba, mostrando a passagem da Antiguidade para a sociedade

medieval.

Weber, entretanto, não achava que uma sucessão de fatos históricos fizesse sentido por si

mesma. Para ele, todo historiador trabalha com dados esparsos e fragmentários. Por isso, propunha

para esse trabalho o método compreensivo, isto é, um esforço interpretativo do passado e de sua

repercussão nas características peculiares das sociedades contemporâneas. Essa atitude de

compreensão é que permite ao cientista atribuir aos fatos esparsos um sentido

social e histórico.

Ab)A ação social: uma ação com sentido

Cada formação social adquiriu, para Weber, especificidade e importâncias próprias. Mas o

ponto de partida da sociologia de Weber não estava nas entidades coletivas, grupos ou instituições.

Seu objetivo de investigação é a área social, a conduta humana dotada de sentido, isto é, de uma

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Page 43: Apostila Sociologia

justificativa subjetivamente elaborada. Assim, o homem passou a ter, enquanto indivíduo, na teoria

weberiana, significado e especificidade. É ele que dá sentido à sua ação social: estabelece a conexão

entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos.

Para a sociologia positivista, a ordem social submete os indivíduos como força exterior a eles.

Para Weber, ao contrário, não existe oposição entre indivíduo e sociedade: as normas sociais só se

tornam concretas quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma de motivação. Cada sujeito

age levado por um motivo que é dado pela tradição, por interesses racionais ou pela emotividades. O

motivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em

que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros indivíduos.

A tarefa do cientista é descobrir os possíveis sentidos das ações humanas presentes na

realidade social que lhe interessa estudar. O sentido, por um lado, é expressão da motivação

individual, formulado expressamente pelo agente ou implícito em sua conduta. O caráter social da

ação individual decorre, segundo Weber, da interdependência dos indivíduos. Um ator age sempre

em função de sua motivação e da consciência de agir em relação a outros atores. Por outro lado, a

ação social gera efeitos sobre a realidade em que ocorre. Tais efeitos escapam ao controle e à

previsão do agente.

Ao cientista compete captar, pois, o sentido produzido pelos diversos agentes em todas as

suas conseqüências. As conexões que o cientista estabelece entre mo tivos e ações sociais revelam as

diversas instâncias da ação social – políticas, econômicas ou religiosas. O cientista pode, portanto,

descobrir o nexo entre as várias etapas em que se decompõe a ação social. Por exemplo, o simples

ato de enviar uma carta se decompõe em uma série de ações sociais com sentido – escrever, selar,

enviar e receber -, que terminam por realizar um objetivo. Por outro lado, muitos agentes ou atores

estão relacionados a essa ação social – o atendente, o carteiro etc. Essa interdependência entre os

sentidos das diversas ações – mesmo que orientadas por motivos diversos – é que dá a esse conjunto

de ações seu caráter social.

É o indivíduo que, por meio dos valores sociais e de sua motivação, produz o sentido da ação

social. Isso não significa que cada sujeito possa prever com certeza todas as conseqüências de

determinada ação. Como dissemos, cabe ao cientista perceber isso. Não significa também que análise

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Page 44: Apostila Sociologia

sociológica se confunda com a análise psicológica. Por mais individual que seja o sentido da minha

ação, o fato de agir levando em consideração o outro dá um caráter social a toda ação humana.

Assim, o social só se manifesta em indivíduos, expressando-se sob forma de motivação interna e

pessoal.

Por outro lado, Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça uma relação

social, é preciso que o sentido seja compartilhado. Por exemplo, um sujeito que pede uma

informação a outro estabelece uma ação social: ele tem um motivo e age em relação a outro

indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Numa sala de aula, onde o objetivo da ação dos

vários sujeitos é compartilhado, existe uma relação social. Pela frequência com que certas ações

sociais se manifestam, o cientista pode

conceber as tendências gerais que levam os indivíduos, em dada sociedade, a agir de determinado

modo.

Ac) A tarefa do cientista

Weber rejeita a maioria das proposições positivistas: o evolucionismo, a exterioridade do

cientista social em relação ao objeto de estudo, ou seja, as sociedades, e a recusa em aceitar a

importância dos indivíduos e dos diferentes momentos históricos na análise da sociedade. O cientista,

como todo indivíduo em ação, também age guiado por seus motivos, sua cultura, sua tradição,

sentido, impossível descartar-se, como propunha Durkheim, de suas prenoções. Existe sempre certa

parcialidade na análise sociológica, intrínseca à pesquisa, como a toda forma de conhecimento. As

preocupações do cientista orientam a seleção e a relação entre os elementos da realidade a ser

analisada. Os fatos sociais não são coisas, mas acontecimentos que o cientista percebe e cujas causas

procura desvendar. A neutralidade durkheiminiana se torna impossível nessa visão.

Entretanto, uma vez iniciado o estudo, este deve se conduzir pala busca da maior objetividade

na análise dos acontecimentos. A realização da tarefa científica não deveria ser dificultada pela

defesa de crenças e das idéias pessoais do cientista.

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Page 45: Apostila Sociologia

Portanto, para a sociologia weberiana, os acontecimentos que integram o social têm origem

nos indivíduos. Os cientistas partem de uma preocupação com significado subjetivo, tanto para ele

como para os demais indivíduos que compõe a sociedade. Sua meta é compreender, buscar os nexos

causais que dêem o sentido da ação social.

Qualquer que seja a perspectiva adotada pelo cientista, ela sempre resultará numa explicação

parcial da realidade. Um mesmo acontecimento pode ter causas econômicas, políticas e religiosas.

Nenhuma dessas causas é superior a outra em significância. Todas elas compõe um conjunto de

aspectos da realidade que se manifesta, necessariamente, nos atos individuais. O que garante a

cientificidade de uma explicação é o método de reflexão, não a objetividade pura dos fatos. Weber

relembra que, embora os acontecimentos sociais possam ser quantificáveis, a análise do social

envolve sempre uma questão de qualidade, interpretação, subjetividade e compreensão.

Assim, para entender como a ética protestante interferia no desenvolvimento do capitalismo,

Weber analisou os livros sagrados e interpretou os dogmas de fé do protestantismo. A compreensão

da relação entre valor e ação permitiu-lhe entender a relação entre religião e economia.

Ad) O tipo ideal

Para atingir a explicação dos fatos sociais, Weber propôs um instrumento de análise que

chamou de tipo ideal. Assim, por exemplo, em "As causas sociais do declínio da cultura antiga", ele

define o patrício romano no auge do império:

“O tipo do grande proprietário de terra romano não é o agricultor que dirige pessoalmente a

empresa, mas é o homem que vive na cidade pratica a política e quer, antes de tudo, perceber rendas

em dinheiro. A gestão de suas terras está nas mãos dos servos inspetores (villici)”.

Trata-se de uma construção teórica abstrata a partir dos casos particulares analisados. O

cientista, pelo estudo sistemático das diversas manifestações particulares, constrói um modelo

acentuando aquilo que lhe pareça característico ou fundante. Nenhum dos exemplos representará de

forma perfeita e acabada o tipo ideal, mas manterá com ele uma grande semelhança e afinidade,

permitindo comparações de semelhanças e diferenças. Constitui-se em um trabalho teórico indutivo

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Page 46: Apostila Sociologia

que tem por objetivo sintetizar aquilo que é essencial na diversidade das manifestações da vida

social, permitindo a identificação de exemplares em diferentes tempos e lugares.

O tipo ideal não é um modelo perfeito a ser buscado pelas formulações sociais históricas nem

mesmo qualquer realidade observável. É um instrumento de análise científica, numa construção do

pensamento que permite conceituar fenômenos e formações sociais e identificar na realidade

observada suas manifestações. Permite ainda comparar tais manifestações.

É preciso deixar claro que o tipo ideal nada tem a ver com as espécies sociais de Durkheim ,

que pretendiam ser exemplos de sociedades observadas em diferentes graus de complexidade num

continuum evolutivo.

Ae) A ética protestante e o espírito do capitalismo

Um dos trabalhos mais conhecidos e importantes de Weber é A ética protestante e o espírito

do capitalismo, no qual ele relaciona o papel do protestantismo na formação do comportamento

típico do capitalismo ocidental moderno. Weber parte de dados estatísticos que lhe mostraram a

proeminência de adeptos da Reforma Protestante entre os grandes homens de negócios, empresários

bem-sucedidos e mão-de-obra qualificada. A partir daí, procura estabelecer conexões entre a doutrina

e a pregação protestante, seus efeitos no comportamento dos indivíduos e sobre o desenvolvimento

capitalista.

Weber descobre que os valores do protestantismo – como a disciplina ascética, a poupança, a

austeridade, a vocação, o dever e a propensão ao trabalho – atuavam de maneira decisiva sobre os

indivíduos. No seio das famílias protestantes, os filhos eram criados para o ensino especializado e

para o trabalho fabril, optando sempre por atividades mais adequadas à obtenção do lucro, preferindo

o cálculo e os estudos técnicos ao estudo humanístico. Weber mostra a formação de uma nova

mentalidade, um ethos - valores éticos – propício ao capitalismo, em flagrante oposição ao

“alheamento” e à atitude contemplativa do catolicismo, voltado para a oração, sacrifício e renúncia

da vida prática.

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Page 47: Apostila Sociologia

Um dos aspectos importantes desse trabalho, no seu sentido teórico, está em expor as relações

entre religião e sociedade e desvendar particularidades do capitalismo. Além disso, nessa obra,

podemos ver de que maneira Weber aplica seus conceitos e posturas metodológicas.

Alguns dos principais aspectos da análise:

1. A relação entre a religião e a sociedade não se dá por meios institucionais, mas por intermédio de

valores interprojetados nos indivíduos e transformados em motivos da ação social. A motivação do

protestante, segundo Weber, é o trabalho, enquanto dever e vocação, como um fim absoluto em si

mesmo, e não o ganho material obtido por meio dele.

2. o motivo que mobiliza internamente os indivíduos é consciente. Entretanto, os feitos dos atos

individuais ultrapassam a meta inicialmente visada. Buscando sair-se bem na profissão, mostrando

sua própria virtude e vocação e renunciando aos prazeres materiais, o protestante puritano se

adequou facilmente ao mercado de trabalho, acumula capital e o reinveste produtivamente.

3. Ao cientista cabe, segundo Weber, estabelecer conexões entre a motivação dos indivíduos e os

efeitos de sua ação no meio social. Procedendo assim, Weber analisa os valores do catolicismo e do

protestantismo, mostrando que os últimos revelam a tendência ao racionalismo econômico que

predominará no capitalismo.

4. Para constituir o tipo ideal de capitalismo ocidental moderno, Weber estuda diversas

características das atividades econômicas em diversas épocas e lugares, antes e após o surgimento

das atividades mercantis e da indústria. E, conforme seus preceitos, constrói um tipo gradualmente

estruturado a partir de suas manifestações particulares tomadas à realidade histórica.

Assim, diz ser o capitalismo, na sua forma típica, uma organização econômica racional

assentada no trabalho livre e orientada para um mercado real, não para a mera especulação ou

rapinagem. O capitalismo promove a separação entre empresa e residência, a utilização técnica de

conhecimentos científicos e o surgimento do direito e da administração racionalizadas.

Af)Análise histórica e método compreensivo

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Page 48: Apostila Sociologia

Weber teve uma contribuição importantíssima para o desenvolvimento da sociologia. Em

meio a uma tradução filosófica peculiar, a alma, e vivendo os problemas de seu país, diversos dos da

França e da Inglaterra na mesma época, pôde trazer uma nova visão, não influenciada pelos ideais

políticos nem pelo racionalismo positivista de origem anglo-francesa. Sua contribuição para a

sociologia tornou-o referência obrigatória. Mostrou em seus estudos, a fecundidade da análise

histórica e da compreensão qualitativa dos processos históricos e sociais.

Embora polêmicos, seus trabalhos abririam as portas para as particularidades históricas das

sociedades e para a descoberta do papel da subjetividade na ação e na pesquisa social. Weber

desenvolveu suas análises de forma mais independente das ciências exatas e naturais. Foi capaz de

compreender a especificidade das ciências humanas como aquelas que estudam o homem como um

ser diferente dos demais e, portanto, sujeito a leis de ação e comportamento próprios.

Outros sociólogos alemães puseram em prática o método compreensivo de Weber, como

Sombart, também um estudioso do capitalismo ocidental. Weber desenvolveu também trabalhos na

área de história econômica buscando as leis de desenvolvimento das sociedades. Estudou ainda, com

base em fontes históricas, as relações entre o meio urbano e o agrário e o acúmulo de capital auferido

pelas cidades por meio dessas relações.

10 KARL MARX E A HISTÓRIA DA EXPLORAÇO DO HOMEM

A) Introdução

Vimos até agora que o pensamento sociológico, em seu desenvolvimento, abordou níveis

diferentes da realidade. Sabemos que, se iluminarmos uma mesa cheia de objetos com luzes de

diferentes cores, partindo de diversos focos, estaremos produzindo imagens distintas dos mesmos

objetos. Nenhuma delas, entretanto, é desnecessária ou incorreta. Cada uma delas “põe á luz” ou

privilegia determinados aspectos. Assim também acontece com as teorias científicas e, entre elas, as

sociais.

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Page 49: Apostila Sociologia

O método positivista expõe ao pensamento humano a idéia de que uma sociedade é mais do

que a soma de indivíduos, que há normas, instituições e valores estabelecidos que constituem o

social. Weber, por sua vez, reorganizou os fatos sociais “à luz” da história e das subjetividades do

agente social.

Agora falaremos de Karl Marx e do materialismo histórico, a corrente mais revolucionária do

pensamento social nas conseqüências teóricas e na prática social que propõe. É também um dos

pensamentos mais difíceis de compreender, explicar ou sintetizar, pois Marx produziu muito, suas

idéias se desdobraram em várias correntes e foram incorporadas por inúmeros teóricos.

Com o objetivo de entender o capital, Marx produziu obras de filosofia, economia e

sociologia. Sua intenção, porém, não era apenas contribuir para o desenvolvimento da ciência, mas

propor uma ampla transformação política, econômica e social. Sua obra máxima, "O capital",

destinava-se a todos os homens, não apenas aos estudiosos da economia, da política e da sociedade.

Este é um aspecto singular da teoria de Marx. Há um alcance mais amplo nas suas formulações, que

adquiriram dimensões de ideal revolucionário e ação política efetiva. As contradições básicas da

sociedade capitalista e as possibilidades de superação apontadas pela obra de Marx não puderam,

pois, permanecer ignoradas pela sociedade.

Podemos apontar algumas influências básicas no desenvolvimento do pensamento de Marx.

Em primeiro lugar coloca-se a leitura crítica da filosofia de Hegel, de quem Marx absorveu e aplicou,

de modo peculiar, o método dialético. Também significativo foi o contato com o pensamento

socialista francês e inglês do século XIX, de Claude Henri de Rouvroy, ou conde de Saint-Simon

(1760-1825), François-charles Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858). Marx destacava o

pioneirismo desses críticos da sociedade burguesa, mas reprovava o “utopismo” das suas propostas

de mudança social. As três teorias desenvolvidas tinham como traço comum: o desejo de impor de

uma só vez uma transformação social, implantando, assim, o império da razão e da justiça eterna.

Nos três sistemas elaborados havia a eliminação do individualismo, da competição e da influência da

propriedade privada.

Trata-se, por isso, de descobrir um sistema novo e perfeito de ordem social, vindo de fora,

para implantá-lo na sociedade, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante

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Page 50: Apostila Sociologia

experiências que servissem de modelo. Com esta formulação, os três desconsideravam a necessidade

da luta política entre as classes e o papel revolucionário do proletariado na realização dessa transição.

Finalmente, há toda a crítica da obra dos economistas clássicos ingleses, em particular Adam

Smith e David Ricardo. Esse trabalho tomou a atenção de Marx até o final da vida e resultou na

maior parte de sua obra teórica. Essa trajetória é marcada pelo desenvolvimento de conceitos

importantes como alienação, classes sociais, valor, mercadoria, trabalho, mais-valia, modo de

produção. Vamos examiná-los a seguir.

Aa ) A idéia de alienação

Marx desenvolve o conceito de alienação mostrando que a industrialização, a propriedade privada e o

assalariamento separavam o trabalhador dos meios de produção – ferramentas, matéria-prima, terra e

máquina – que se tornaram propriedade privada do capitalista. Separava, ou alienava, o trabalhador

do fruto do seu trabalho, que também é apropriado pelo capitalista. Essa é a base da alienação

econômica do homem sob o capital.

Politicamente, também o homem se tornou alienado, pois o princípio da representatividade,

base do liberalismo, criou a idéia de Estado como um órgão político imparcial, capaz de representar

toda a sociedade e dirigi-la pelo poder delegado pelos indivíduos.Marx mostrou, entretanto, que na

sociedade de classes esse Estado representa apenas a classe dominante e age conforme o interesse

desta.

Com o desenvolvimento do capitalismo, a filosofia, por sua vez, também passou a criar

representações do homem e da sociedade. Diz Marx que a divisão social do trabalho fez com que a

filosofia se tornasse a atividade de um determinado grupo. Ela é, portanto, parcial e reflete o

pensamento desse grupo. Essa parcialidade e o fato de que o Estado se torna legítimo a partir dessas

reflexões parciais – como, por exemplo, o liberalismo – transformaram a filosofia em “filosofia do

Estado”. Esse comportamento do filósofo e do cientista em face do poder resultou na alienação do

homem.

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Page 51: Apostila Sociologia

Uma vez alienado, separado e mutilado, o homem só pode recuperar sua condição humana

pela crítica radical ao sistema econômico, à política e à filosofia que o excluíram da participação

efetiva na vida social. Essa crítica radical só se efetiva na práxis, que é a ação política consciente e

transformadora. Com base nesse princípio, os marxistas vinculam a crítica da sociedade à ação

política.Marx propôs não apenas um novo método de abordar e explicar a sociedade mas também um

projeto para a ação sobre ela.

Ab)As classes sociais

As ideias liberais consideravam os homens, por natureza, iguais política e juridicamente.

Liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão. Marx. Por sua vez, proclama a

inexistência de tal igualdade natural e observa que o liberalismo vê os homens como átomos, como

se estivessem livres das evidentes desigualdades estabelecidas pela sociedade. Segundo Marx, as

desigualdades sociais observadas no seu tempo eram provocadas pelas relações de produção do

sistema capitalista, que dividem os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de

produção. As desigualdades são a base da formação das classes sociais.

As relações entre os homens se caracterizam por relações de oposição, antagonismo,

exploração e complementaridade entre as classes sociais. Marx identificou relação de exploração da

classe dos proprietários – a burguesia – sobre a dos trabalhadores – o proletariado. Isso porque a

posse dos meios de produção, sob a forma legal de propriedade privada, faz com que os

trabalhadores, a fim de assegurar a

sobrevivência, tenham de vender sua força de trabalho ao empresário capitalista, o qual se apropria

do produto do trabalho de seus operários.

Essas mesmas relações são também de oposição a antagonismo, na medida em que os

interesses de classe são inconciliáveis. O capitalista deseja preservar seu direito à propriedade dos

meios de produção e dos produtos e à máxima exploração do trabalho do operário, seja reduzindo os

salários, seja ampliando a jornada de trabalho. O trabalhador., por sua vez, procura diminuir a

exploração ao lutar por menor jornada de trabalho, melhores salários e participação nos lucros.

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Page 52: Apostila Sociologia

Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só existe em

relação à outra, Só existem proprietários porque há uma massa de despossuídos cuja única

propriedade é sua força de trabalho, que precisam vender para assegurar a sobrevivência. As classes

sociais são, pois, apesar de sua oposição intrínseca, complementares e interdependentes.

A história do homem é, segundo Marx, a história da luta de classes, da luta constante entre

interesses opostos, embora esse conflito nem sempre se manifeste socialmente sob a forma de guerra

declarada. As divergências, oposições e antagonismos de classes estão subjacentes a toda relação

social, nos mais diversos níveis da sociedade, em todos os tempos, desde o surgimento da

propriedade privada.

Ac )A origem histórica do capitalismo

O capitalismo surge na história quando, por circunstâncias diversas, uma enorme quantidade

de riquezas se concentra nas mãos de uns poucos indivíduos, que têm por objetivo a acumulação de

lucros cada vez maiores. No início a acumulação de riquezas se fez por meio de pirataria, do roubo,

dos monopólios e do controle de preços praticados pelos Estados absolutistas. A comercialização era

a grande fonte de rendimento para os estados e a nascente burguesia. Uma importante mudança

aconteceu quando, a partir do século XVI, o artesão e as corporações de ofício foram substituídas

respectivamente, pelo trabalhador “livre” assalariado – o operário – e pela indústria.

Na produção artesanal da Idade Média e do Renascimento, o trabalhador mantinha em sua

casa os instrumentos de produção. Aos poucos, porém, estes passaram às mãos de indivíduos

enriquecidos, que organizaram oficinas. A Revolução Industrial introduziu inovações técnicas na

produção que aceleraram o processo de separação entre o trabalhador e os instrumentos de produção.

As máquinas e tudo o mais necessário ao processo produtivo – força motriz, instalações, matérias-

primas – ficaram acessíveis somente aos mais ricos. Os artesões, isolados, não podiam competir com

o dinamismo dessas nascentes industriais e do conseqüente crescimento do mercado. Com isso,

multiplicou-se o número de operários, isto é, trabalhadores “livres” expropriados, artesões que

desistiam da produção individual e empregavam-se nas indústrias.

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Page 53: Apostila Sociologia

Ad) O salário

O operário, como vimos, é aquele indivíduo que, nada possuindo, é obrigado a sobreviver da

venda de sua força de trabalho. No capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria, algo

útil, que se pode comprar e vender. Surge assim um contrato entre capitalista e operário, mediante o

qual o primeiro compra ou “aluga por um certo tempo” a força de trabalho e, em, troca, paga ao

operário uma quantia em dinheiro, o salário.

O salário é, assim, o valor da força de trabalho, considerada como mercadoria. Como a força

de trabalho não é uma “coisa”, mas uma capacidade, inseparável do corpo do operário, o salário deve

corresponder à quantia que permita ao operário alimentar-se, vestir-se, cuidar dos filhos, recuperar as

energias e, assim, estar de volta ao serviço no dia seguinte. Em outras palavras, o salário deve

garantir a reprodução das condições de subsistência do trabalhador e sua família.

O cálculo do salário depende do preço dos bens necessários à subsistência do trabalhador. O

tipo de bens necessários depende, por sua vez, dos hábitos e dos costumes dos trabalhadores. Isso faz

com que o salário varia de lugar para lugar. Além disso, o salário depende ainda da natureza do

trabalho e da destreza e da habilidade do próprio trabalhador. No cálculo do salário de um operário

qualificado deve-se computar o tempo que ele gastou com educação e treinamento para desenvolver

suas capacidades.

Ae) Trabalho, valor e lucro

O capitalismo vê a força de trabalho como mercadoria, mas é claro que não se trata de uma

mercadoria qualquer. Enquanto os produtos, ao serem usados, simplesmente se desgastam ou

desaparecem , o uso da força de trabalho significa ao contrário, criação de valor. Os economistas

clássicos ingleses, desde Adam Smith, já haviam percebido isso ao conhecerem o trabalho como a

verdadeira fonte de riqueza das sociedades.

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Page 54: Apostila Sociologia

Marx foi além. Para ele, o trabalho, ao se exercer sobre determinados objetos, provoca nestes

uma espécie de “ressurreição”. Tudo o que é criado pelo homem, diz Marx, contém em si um

trabalho passado, “morto”, que só pode ser reanimado por outro trabalho. Assim, por exemplo, um

pedaço de couro animal curtido , uma faca e fios de linha são, todos, produtos do trabalho humano.

Deixados em si mesmos, são coisas mortas; utilizados para produzir um par de sapatos, renascem

como meios de produção e se incorporam num novo produto, uma nova mercadoria, um novo valor.

Os economistas ingleses já haviam postulado que o valor das mercadorias dependia do

tempo de trabalho gasto na sua produção. Marx acrescentou que este tempo de trabalho se

estabelecia em relação às habilidades individuais médias e às condições técnicas vigentes na

sociedade. Por isso, dizia que no valor de uma mercadoria era incorporado o tempo de trabalho

socialmente necessário à sua produção.

De modo geral, as mercadorias resultam da colaboração de várias habilidades profissionais

distintas; por isso, seu valor incorpora todos os tempos de trabalhos específicos. Por exemplo, o valor

de um par de sapatos inclui não só o tempo gasto para confeccioná-lo, mas também o dos

trabalhadores que curtiram o couro, produziram fios de linha, a máquina de costurar etc. O valor de

todos esses trabalhos está embutido no preço que o capitalista paga ao adquirir essas matérias-primas

e instrumentos, os quais, juntamente com a quantia paga a título de salário, serão incorporados ao

valor do produto.

Imaginemos um capitalista interessado em produzir sapatos, utilizando para esse cálculo uma

unidade de moeda qualquer. Pois bem, suponhamos que a produção de um par lhe custe 100

unidades de moeda de matéria-prima, mais 20 com o desgaste dos instrumentos, mais 30 de salário

diário pago a cada trabalhador. Essa soma – 150 unidades de moeda – representa sua despesa com

investimentos. O valor do par de sapatos produzido nessas condições será a soma de todos os valores

representados pelas diversas mercadorias que entraram na produção (matéria-prima, instrumentos,

força de trabalho), o que totaliza também 150 unidades de moeda.

Sabemos que o capitalista produz para obter lucro, isto é, ganhar com seus produtos mais do

que investiu. No exemplo acima, vemos, porém, que o valor de um produto corresponde exatamente

ao que se investe para produzi-lo. Como então se obtém o lucro? O capitalismo poderia lucrar

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Page 55: Apostila Sociologia

simplesmente aumentando o preço de venda do produto – por exemplo , cobrando 200 pelo par de

sapatos. Mas o simples aumento de preços é um recurso transitório e com o tempo cria problemas.

De um lado, uma mercadoria com preços elevados, ao sugerir possibilidades de ganho imediato, atrai

novos capitalistas interessados em produzi-la. Com isso, porém, corre-se o risco de inundar o

mercado com artigos semelhantes, cujo preço fatalmente cairá. De outro lado, uma alta arbitrária no

preço de uma mercadoria tende a provocar elevação generalizada nos demais preços, pois, nesse

caso, todos os capitalistas desejarão ganhar mais com seus produtos. Isso pode ocorrer durante algum

tempo, mas, se a disputa se prolongar, poderá levar o sistema econômico à desorganização.

Na verdade, de acordo com a análise de Marx, não é no âmbito da compra e da venda de

mercadorias que se encontram bases estáveis nem para o lucro dos capitalistas individuais nem para a

manutenção do sistema capitalista. Ao contrário, a valorização das mercadorias e dá no âmbito de

sua produção.

Af) mais-valia

Retomemos o nosso exemplo. Suponhamos que o operário tenha uma jornada diária de nove

horas e confeccione um par de sapatos a cada três horas. Nestas três horas, ele cria uma quantidade

de valor correspondente ao seu salário, que é suficiente para obter o necessário à sua subsistência.

Como o capitalista lhe paga o valor de um dia de força de trabalho, o restante do tempo, seis horas, o

operário produz mais mercadorias, que geram um valor maior do que lhe foi pago de forma de

salário. A duração da jornada de trabalho resulta, portanto, de um cálculo que leva em consideração o

quanto interessa ao capitalista produzir para obter lucro sem desvalorizar seu produto.

Suponhamos uma jornada de nove horas, ao final da qual o sapateiro produza três pares de

sapatos. Cada par continua valendo 150 unidades de moeda, mas agora eles custam menos ao

capitalista. É que, no cálculo do valor dos três pares, a quantia investida em meios de produção

também foi multiplicada por três, mas a quantia relativa ao salário – corresponde a um dia de

trabalho – permaneceu constante. Desse modo, o custo de cada par de sapatos se reduziu a 130

unidades.

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Page 56: Apostila Sociologia

Custo de um par de sapatos na

jornada de trabalho de três horas

Custo de um par de sapatos na jornada de

trabalho de nove horas

Meios de produção 120 Meios de produção 120 x 3 = 360

+

+

Salário 30 Salário 30

150 390/3 = 130

Assim, ao final da jornada de trabalho, o operário recebe 30 unidades de moeda, ainda que

seu trabalho tenha rendido o dobro ao capitalista: 20 unidades de moeda, em cada um dos três pares

de sapatos produzidos. Esse valor a mais não retorna ao operário: incorpora-se no produto e é

apropriado pelo capitalista. Visualiza-se, portanto, que uma coisa é o valor da força de trabalho, isto

é, o salário, e outra é o quanto esse trabalho rende ao capitalista. Esse valor excedente produzido pelo

operário é o que Marx chama de mais-valia.

O capitalismo pode obter mais-valia procurando aumentar constantemente a jornada de

trabalho, tal como no nosso exemplo. Essa é, segundo Marx, a mais absoluta. É claro, porém, que a

extensão indefinida da jornada esbarra nos limites físicos do trabalhador e na necessidade de

controlar a própria quantidade de mercadorias que se produz.

Agora, pensemos numa industria altamente mecanizada. A tecnologia aplicada faz aumentar a

produtividade, isto é, as mesmas nove horas de trabalho agora produzem um número maior de

mercadorias, digamos, 20 pares de sapatos. A mecanização também faz com que a qualidade dos

produtos dependa menos da habilidade e do conhecimento técnico do trabalhador individual. Numa

situação dessas, portanto, a força de trabalho vale cada vez menos e, ao mesmo tempo, graças à

maquinaria desenvolvida, produz cada vez mais. Esse é, em síntese, o processo de obtenção daquilo

que Marx denomina mais-valia relativa.

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Page 57: Apostila Sociologia

O processo descrito esclarece a dependência do capitalismo em relação ao desenvolvimento

das técnicas de produção. Mostra ainda, como o trabalho, sob o capital, perde todo o atrativo e faz do

operário mero “apêndice da máquina”.

Ag) As relações políticas

Após essa análise detalhada do modo de produção capitalista, Marx passa ao estudo das

formas políticas produzidas no seu interior. Ele constata que as diferenças entre as classes sociais não

se reduzem a uma diferença quantitativa de riquezas, mas expressam uma diferença de existência

material. Os indivíduos de uma mesma classe social partilham de uma situação de classe comum, que

inclui valores, comportamentos, regras de convivência e interesses.

A essas diferenças econômicas e sociais segue-se uma diferença na distribuição de poder.

Diante da alienação do operariado, as classes economicamente dominantes desenvolveram formas de

dominação políticas que lhes permitem apropriar-se do aspecto de poder do Estado e, com ele,

legitimar seus interesses sob a forma de leis e planos econômicos e políticos.

Cada forma assumida pelo Estado na sociedade burguesa, seja sob o regime liberal,

monárquico constitucional ou ditatorial, representa maneiras diferentes pelas quais ele se transforma

num “comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia” (K. Marx e F. Engels, Manifesto do

Partido Comunista, in Cartas filosóficas e outros escritos, p. 86), seja sob regime liberal,

monárquico-constitucional, parlamentar ou ditatorial.

Para Marx as condições específicas de trabalho geradas pela industrialização tendem a

promover a consciência de que há interesses comuns para o conjunto da classe trabalhadora e,

conseqüentemente, tendem a impulsionar a sua organização política para a ação. A classe

trabalhadora, portanto, vivendo uma mesma situação de classe e sofrendo progressivo

empobrecimento em razão das formas cada vez mais eficientes de exploração do trabalhador, acaba

por se organizar politicamente. Essa organização é que permite a tomada de consciência da classe

operária e sua mobilização para a ação política.

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Page 58: Apostila Sociologia

Ah ) Materialismo histórico

Para entender o capitalismo e explicar a natureza da organização econômica humana, Marx

desenvolveu uma teoria abrangente e universal, que procura dar conta de toda e qualquer forma

produtiva criada pelo homem e m todo o tempo e lugar. Os princípios básicos dessa teoria expressos

em seu método de análise – o mecanismo histórico.

Marx parte do princípio de que a estrutura de uma sociedade qualquer reflete a forma como

os homens organizam a produção social de bens. A produção social, segundo Marx, engloba dois

fatores básicos: forças produtivas e as relações de produção. As forças produtivas constituem as

condições materiais de toda a produção. Qualquer processo de trabalho implica: determinados

objetos, isto é, matérias-primas identificadas e extraídas da natureza; e determinados instrumentos,

ou seja, o conjunto de forças naturais já transformadas e adaptadas pelo homem, como ferramentas

ou máquinas, utilizadas segundo uma orientação técnica específica. O homem, principal elemento

das forças produtivas, é o responsável por fazer a ligação entre a natureza e a técnica e os

instrumentos. O desenvolvimento da produção vai determinar a combinação e o uso desses diversos

elementos: recursos naturais, mão-de-obra disponível, instrumentos e técnicas produtivas. Essas

combinações procuram atingir o máximo de produção em função do mercado existente.

A cada forma de organização das forças produtivas corresponde uma forma de relação de

produção. As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para executar

a atividade produtiva. Essas relações se referem às diversas maneiras pelas quais são apropriados e

distribuídos os elementos envolvidos no processo de trabalho: as matérias-primas, os instrumentos e

a técnica, os próprios trabalhadores e o produto final. Assim, as relações de produção podem ser,

num determinado momento, cooperativistas (como num mutirão), escravistas (como na

Antiguidade), servis (como na Europa feudal), ou capitalista (como na índia moderna). Forças

produtivas e relações de produção são condições naturais e históricas de toda atividade produtiva

que ocorre em sociedade. A forma pela qual ambas existem e são reproduzidas numa determinada

sociedade constitui o que o Marx denominou modo de produção.

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Page 59: Apostila Sociologia

Para Marx, o estudo do modo de produção é fundamental para compreender como se organiza

e funciona uma sociedade. As relações de produção, nesse sentido, são consideradas as mais

importantes relações sociais. Os modelos de família, as leis, a religião, as idéias políticas, os valores

sociais são aspectos cuja explicação depende em princípio, do estudo do desenvolvimento e do

colapso de diferentes modos de produção.

Analisando a história, Marx identificou alguns modos de produção específicos: sistema

comunal primitivo, modo de produção asiático, modo de produção antigo, modo de produção

germânico, modo de produção feudal e modo de produção capitalista. Cada qual representa

diferentes formas de organização

da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem. Em cada modo de produção, há

desigualdade de propriedade, como fundamento das relações de produção, cria contradições básicas

com o desenvolvimento das forças produtivas. Essas contradições se acirram até provocar um

processo revolucionário, com a derrota do modo de produção vigente e a ascensão de outro.

Ai ) A historicidade e a totalidade

A teoria marxista repercutiu de maneira decisiva não só na Europa – objeto primeiro de seus

estudo – como nas colônias européias e em momentos de independência. Organizou os partidos

marxistas entre operários – os sindicatos – levou intelectuais a crítica da realidade e influenciou as

atividades científicas de um modo geral e as ciências humanas em particular. Além de elaborar uma

teoria que condenava as bases sociais da espoliação capitalista, conclamando os trabalhadores a

construir, por meio de sua práxis revolucionária, uma sociedade assentada na justiça social e

igualdade real entre os homens, Marx conseguiu, como nenhum outro, com sua obra, estabelecer

relações profundas entre a realidade, a filosofia e a ciência.

Por sua formação filosófica, Marx concebia a realidade social como uma concretude

histórica, isto é, como um conjunto de relações de produção que caracteriza cada sociedade num

tempo e espaço determinados. Foi assim que analisou, em "O 18 Brunário" de Luís Bonaparte, o

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Page 60: Apostila Sociologia

golpe de Estado ocorrido na França no século XIX, quando o sobrinho de Napoleão I, parodiou o

feito do tio que, em 1799, consegui substituir a república pela Ditadura.

Por outro lado, cada sociedade representava para Marx uma totalidade, isto é, um conjunto

único e integrado das diversas formas de organização humana nas suas mais diversas instâncias –

família, poder, religião. Entretanto, apesar de considerar as sociedades da sua época e do passado

como totalidades e como situações históricas concretas, Marx conseguiu, pela profundidade de suas

análises, extrair conclusões de caráter geral e aplicáveis a formas sociais diferentes. Assim, ao

analisar o golpe de Luís Bonaparte, identifica na estrutura de classes estabelecida na França aspectos

universais da dinâmica da luta de classes.

Aj ) A amplitude da contribuição de Marx

O sucesso e a penetração do materialismo histórico, quer no campo da ciência – ciência

política, econômica e social, quer no campo da organização política, se deve ao universalismo de

seus princípios e ao caráter totalizador que imprimiu às suas idéias.

Além desse universalismo da teoria marxista – mérito que a diferencia de todas as teorias

subseqüentes – outras questões adquiriram nova dimensão com os princípios sustentados por Karl

Marx. Um deles foi a objetividade científica, tão perseguida pelas ciências humanas. Para Marx, a

questão da objetividade só se coloca enquanto consciência. A ciência assim como a ação política, só

pode ser verdadeira e não ideológica se refletir uma situação de classe e, conseqüentemente, uma

visão crítica da realidade. Assim, objetividade não é uma questão de método, mas de como o

pensamento científico se insere no contexto das relações de produção e na história.

A ideia de uma sociedade “doente” ou “normal”, preocupação dos cientistas positivistas,

desaparece em Marx. Para ele a sociedade é constituída de relações de conflito e é de sua dinâmica

que surge a mudança social. Fenômeno como luta, conflito, revolução e exploração são constituintes

dos diversos momentos históricos e não disfunções sociais.

A partir do conceito de movimento histórico proposto por Hegel, assim como do historicismo

existente em Weber, Marx redimensiona o estudo da sociedade humana. Suas idéias marcaram de

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Page 61: Apostila Sociologia

maneira definitiva o pensamento científico e a ação política dessa época, assim como das posteriores,

formando duas diferentes maneiras de atuação sob a bandeira do marxismo. A primeira é abraçar o

ideal comunista, de uma sociedade onde estão abolidas as classes sociais e a propriedade privada dos

meios de produção. Outra é exercer a crítica à realidade social, procurando suas contradições,

desvendando as relações de exploração e expropriação do homem pelo homem, de modo a entender

o papel dessas relações no processo histórico.

Não é preciso afirmar a contribuição da teoria marxista para o desenvolvimento das ciências

sociais. A abordagem do conflito, da dinâmica histórica, da relação entre consciência e realidade e da

correta inserção do homem e de sua práxis no contexto social foram conquistas jamais abandonadas

pelos sociólogos. Isso sem contar a habilidade com que o método marxista possibilita o constante

deslocamento do geral para o particular, das leis macro sociais para suas manifestações históricas, do

movimento estrutural da sociedade para a ação humana individual e coletiva.

Ak )A sociologia, o socialismo e o marxismo

A teoria marxista teve ampla aceitação teórica e metodológica, assim como política

revolucionária. Já em 1864, em Londres, Karl Marx e Friedrich Engels – companheiro em grande

parte em suas obras – estruturaram a Primeira Associação Internacional de Operários, ou Primeira

Internacional, promovendo a organização e a defesa dos operários em nível internacional. Extinguida

em 1873, a difusão das idéias e das propostas marxistas ficou por conta dos sindicatos existentes em

diversos países e nos partidos, especialmente os social-democratas.

A segunda Internacional surgiu na época do centenário da Revolução Francesa (1889),

quando diversos congressos socialistas tiveram lugar nas principais capitais européias, com várias

tendências, nem sempre conciliáveis. A Primeira Guerra Mundial pôs fim à Segunda Internacional,

em 1914. Em 1917, uma revolução inspirada nas idéias marxistas, a Revolução Bolchevique, na

Rússia, criava no mundo o primeiro Estado operário. Em 1919, inaugurava-se a terceira Internacional

ou Comite, que, como a primeira procurava difundir os ideais comunistas e organizar os partidos e a

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Page 62: Apostila Sociologia

luta dos operários pela tomada do poder. Ela continua atuante até hoje, enfrentando intensa crise

provocada pelo fim da União Soviética e pela expansão mundial do neoliberalismo.

A aceitação dos ideais marxistas não se restringe mais apenas à Europa. Difundia-se pelos

quatro continentes, à medida que se desenvolvia o capitalismo internacional. À formação do

operariado no restante do mundo seguia-se o surgimento de sindicatos e partidos marxistas. Os ideais

marxistas se adequavam também perfeitamente à luta pela independência que surgia nas colônias

européias da África e da Ásia, após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, assim como a luta por

soberania e autonomia, existente nos países latino-americanos.

Em 1919, surgiram partidos comunistas na América do Norte, na China e no México. Em

1920, no Uruguai; em 1922, no Brasil e no Chile; e, em 1925, em Cuba. O movimento

revolucionário tornava-se mais forte à medida que os Estados Unidos e a URSS emergiam como

potências mundiais e passaram a disputar sua influência no mundo. Várias revoluções como a

chinesa, a cubana, a vietnamita e a coreana instauraram regimes operários que, apesar das sua

diferenças, organizavam um sistema político com algumas características comuns – forte

centralização, economia altamente planejada, coletivização dos meios de produção, fiscalismo e uso

intenso de propaganda ideológica e do culto ao dirigente.

Intensificava-se, nos anos cinqüenta e sessenta, a posição entre os dois blocos mundiais – o

capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, liderado pela URSS. A polarização política

e ideológica é transferida para o conjunto do método e da teoria marxista que passam a ser usados,

sob o peso da direção do stalinismo na URSS e dos partidos comunistas a ele filiados, como um

corpo doutrinário fechado para legitimar a tese do “socialismo em um só país”, preconizada pela

liderança soviética, e da gestão burocrática dos estados socialistas. O marxismo deixou de ser um

método de análise da realidade social para transformar-se em ideologia, perdendo, assim, parte de

sua capacidade de elucidar os homens em relação ao seu momento histórico e mobilizá-lo para uma

tomada consciente de posição.

Entre 1989 e 1991, desfazia-se o bloco soviético após uma crise interna e externa bastante

intensa – dificuldade em conciliar as diferenças religiosas e étnicas, falta de recursos para manter um

estado de permanente beligerância, atraso tecnológico, excesso de burocracia, baixa produtividade,

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Page 63: Apostila Sociologia

escassez de produtos, inflação e corrupção, entre outros fatores. O fim da União Soviética provocou

um abalo nos partidos de esquerda do mundo todo e o redimensionamento das forças internacionais.

Toda essa explicação a respeito do marxismo se faz necessária por diversas razões. Em

primeiro lugar porque a sociologia confundiu-se com socialismo em muitos países, em especial nos

países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento – como são hoje chamados os países dependentes

da América Latina e da Ásia, surgidos das antigas colônias européias. Nesses países, intelectuais os

líderes políticos associaram de maneira categórica o desenvolvimento da sociologia ao

desenvolvimento da luta política e dos partidos marxistas. Entre eles, a derrocada do império

soviético foi sentida como uma condenação e quase como a inviabilidade da própria ciência.

É preciso lembrar que as teorias marxistas, como o próprio Marx propôs, transcendem um

método histórico no qual são concebidas e têm uma validade que extrapola qualquer das iniciativas

concretas que buscam viabilizar a sociedade justa e igualitária proposta por Marx. Nunca será

bastante lembrar que a ausência da propriedade privada dos meios de produção é condição necessária

mas não suficiente da sociedade comunista teorizada por Marx. Assim, não se devem confundir

tentativas de realizações levadas a efeito por inspirações das teorias marxistas com as propostas de

Marx de superação das contradições capitalistas. Também é improcedente – e de maneira ainda mais

rigorosa – confundir a ciência com o ideário político de qualquer partido. Pode haver integração

entre um e outro, mas nunca identidade.

Em segundo lugar, é preciso entender que a história não termina em qualquer de suas

manifestações particulares, quer na vitória comunista, quer na capitalista. Como Marx mostrou, o

próprio esforço por manter e reproduzir um modo de produção acarreta modificações qualitativas nas

forças em oposição. Assim, em termos científicos e marxistas, é preciso voltar o olhar para a

compreensão da emergência de novas forças sociais e de novas contradições. Enganam-se os teóricos

de direita e de esquerda que vêem em dado momento a realização mítica de um ideal de sociedade.

Em terceiro lugar, hoje se vive nas ciências, de maneiras geral, um momento de particular

cautela, pois, dois ou três séculos de crença absoluta na capacidade redentora da ciência, em sua

possibilidade de explicar de maneira inequívoca e permanente a realidade, já não se acredita na

infalibilidade dos modelos, e o trabalho permanente de discussão, revisão e complementação se

63

Page 64: Apostila Sociologia

coloca como necessário. Não poderia ser diferente com as ciências sociais, que, do contrário,

adquiriam um estatuto de religião e fé, uma vez que se apoiariam em verdades eternas e imutáveis.

Assim, o fim da história ou da sociologia, nem o esgotamento do marxismo como postura

teórica das mais amplas e fecundas, com um poder de explicação não alcançando pelas análises

posteriores. Nem sequer terminou com a derrubada do Muro de Berlim o ideal de uma sociedade

justa e igualitária. O que se torna necessário é rever essa sociedade cujas relações de produção se

organizam sob novos princípios – enfraquecimento dos estados nacionais, mundialização do

capitalismo, formação de blocos e organização política de minorias étnicas, religiosas e até sexuais –

entendendo que as contradições não

desapareceram, mas se expressam em novas instâncias.

Em seu livro De volta ao palácio do barba azul, Steiner mostra como a sociedade pós-clássica

acabou por desmanchar os organismos mais agudos que existiam na sociedade ocidental. Os grupos

etnicos se aproximam, as distinções comportamentais dos sexos desaparecem, o mundo rural e o

urbano se integram numa estrutura única industrial, e assim por diante. È nessa perspectiva que ele

propõe uma releitura da teoria marxista, tentando encontrar em diferentes conjunturas sociais formas

de contradição e exploração como as que Marx distingui na Revolução Francesa e na Inglaterra. Por

mais que pretendesse entender o desenvolvimento universal da sociedade humana, Marx jamais

deixou de respeitar cientificamente a especificidade e a historicidade de cada uma de suas

manifestações.

11 SISTEMAS SÓCIO-ECONÔMICOS

Bins (1985 pg. 15) destaca que: “Sistema sócio-econômico, ou modos-de-produção, são

modelos teóricos de sistemas sociais, diversos quanto à estrutura e organização. Observando os

sistemas sociais concretos – as formações econômicas – os sociólogos distinguem e agrupam aqueles

que são do mesmo tipo e descrevem suas características.”

4.1 O CAPITALISMO

64

Page 65: Apostila Sociologia

Entende-se por capitalismo o modo-de-produção em que existem a propriedade privada dos

meios de produção, preços equilibrados pelo mercado e apropriação do excedente econômico sob a

forma de mais-valia.

O capitalismo propriamente dito surgiu com enfraquecimento da ordem feudal européia. Por

razões que variam, segundo a época e o lugar, produtores livres estabeleceram-se como artesões que

produziam para a aristocracia e, mais tarde, também para o próprio burgo. Segundo o costume da

época, os artesãos agrupavam-se em corporações, conforme o ofício, que disciplinavam a aceitação

de novos membros e os preços a serem cobrados. Inicialmente, a força de trabalho era dada pelo

próprio mestre de loja, proprietário do estabelecimento produtor, e pelos aprendizes e companheiros

– pessoas que aprendiam o ofício e que esperavam a licença da corporação para se estabelecerem por

conta própria. Na época, os aprendizes, companheiros e mestres eram proprietários de seus

respectivos instrumentos de

trabalho. Com a sofisticação, esses instrumentos e outros equipamentos, tornam-se progressivamente

caros ao ponto de apenas o mestre os possuir. Surge então a figura do trabalhador proletário,

possuidor apenas de trabalho, e a figura do capitalista, possuidor do capital.

Os proletários passaram a trabalhar não mais em troca do conhecimento dos segredos do

ofício, mas de um salário. Produzindo mercadorias de valor maior do que o valor do salário recebido,

geravam a mais-valia, a diferença de valor apropriada pelo capitalista (e o fundamento o lucro,

conforme será visto mais detalhadamente adiante.) A classe capitalista, ou burguesia, fortaleceu-se e

seus interesses começaram a conflitar com os da aristocracia, dando origem às revoluções

burguesas, das quais a de 1789, na França, é a mais típica.

4.1.1 - DOUTRINAS

A) O Liberalismo

O mercantilismo afirmava que a riqueza de uma nação provinha de um saldo positivo no

comércio exterior. A idéia era, em parte, retirada do senso-comum que mostrava o enriquecimento do

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Page 66: Apostila Sociologia

comerciante ao vender mais caro do que a compra. O raciocínio, porém, era frágil. Nas relações

comerciais entre países, ou entre particulares, se uma parte ganha, a outra perde: o comércio não cria

riqueza, apenas transfere. Se um país enriquece através de trocas, outro país terá perdido uma riqueza

correspondente. Somadas as riquezas dos dois países, o valor seria constante. Como a riqueza global

das nações estava aumentando, o mercantilismo via-se impossibilitado de explicar a origem do valor

novo, acrescido ao conjunto. Deveria haver, portanto outra fonte de riqueza além do comércio.

A escola fisiocrática, liderada por Quesnay (1694-1774), pretendeu resolver o problema,

encontrando na terra a fonte original do valor. Para os pensadores desta escola, apenas o trabalho

agrícola produzia um resultado líquido sobre os investimentos. O comércio e a indústria seriam

setores improdutivos, apenas transferidores e transformadores de bens, sem lhes agregar riqueza. Por

este modo de pensar, os rendimentos dos comerciantes e industriais seriam originários em uma

participação parasitária nos ganhos da terra.

A dificuldade é superada por Adam Smith (1723-79), fundador da Ciência Econômica, e

exposta em sua obra principal: "A Riqueza das Nações". O valor só pode ser produzido através do

trabalho. A terra, por si só, não produz qualquer riqueza. Dessa forma, também a industria é um setor

produtivo, na medida em que matérias-primas são beneficiadas ou transformadas mediante o

trabalho, agregando-lhes valor.

Para Adam Smith, o homem é egoísta. Busca sempre o proveito próprio em cada ato e em

cada troca. O resultado, entretanto, não seria a “guerra de todos contra todos”, como dizia Hobbes,

nem o caos, mas o equilíbrio e a satisfação generalizada. Buscando cada um o seu interesse, no

conjunto uma “mão invisível” atenderia o interesse de todos. Para isso, era necessária a

espontaneidade,a liberdade de ação econômica.

O Estado deveria apenas manter a paz, cobrar moderadamente impostos e administrar a

justiça. Sua intervenção na economia teria sempre o e feito maléfico de perturbar o equilíbrio gerado

pela livre-iniciativa. Os capitais tendem a fluir para os setores de maior rentabilidade. Por uma

espécie de inércia, haverá logo excesso de investimento neste setor, enquanto outros ficarão

abandonados. Por exemplo, o setor calçadista está produzindo menos do que a procura. Os calçados

66

Page 67: Apostila Sociologia

são vendidos caros, com alta margem de lucros os capitais dos setores menos lucrativos tenderão

para aqui emigrar até que haja um excesso de sapatos no mercado.

Nesse ponto, o excesso de capital investido migra em busca de outros setores que estão sub-

produzindo. Esta é, mais ou menos, a “mão invisível” de que falava Adam Smith. As crises

periódicas do capitalismo foram diagnosticadas por Marx e Keynes como causadas exatamente por

esta livre-iniciativa.

O liberalismo teve grande importância entre os economistas até o advento do Keynesianismo,

preconizador de uma intervenção estatal reguladora. Seu sucesso, entretanto, foi total, por razões

óbvias, entre os homens de negócios. Nesse aspecto, mantém-se até hoje como doutrina máxima do

capitalismo.

B) A Ética Calvinista e Outras Doutrinas

Várias são as opiniões sobre a influência que a ética teria exercido no desenvolvimento do

capitalismo. Alguns, como os marxistas, afirmam que esta influência teria sido inexpressiva, que a

ética capitalista é conseqüência do capitalismo e não a sua causa. Entre os autores que participam da

opinião de que valores éticos estimulam o capitalismo temos:

A. Max Weber – Nunca negou que o capitalismo tenha tido causas econômicas. Porém, concluiu

que a ética calvinista influenciará positivamente na formação desse sistema. A reforma de Calvino

(1509-1564) foi diferente da reforma luterana. Martinho Luterano opunha-se ao capitalismo e uma

das causas de suas críticas a Roma consistia em acusa-la de introduzir práticas capitalistas na Igreja.

Calvino pregou que, sendo Deus onisciente, desde sempre conhece o futuro de cada pessoa. Sabe se

esta se salvará ou não. Como Deus é livre, cria as almas do nada, já conhecendo de antemão os seus

destinos. Faz isto “porque sim” (quia voluit). Por sua vontade predestina as almas à salvação ou a

perdição. Assim, independentemente do que fizéssemos – o bem ou o mal – estaríamos já

predestinados: não seria possível enganar a Deus. Devido à doutrina da predestinação, os calvinistas

sentiam-se inseguros. Careciam de condições para saber se eram eleitos. Outras religiões forneciam

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Page 68: Apostila Sociologia

aos crente elementos doutrinários claros sobre o assunto, tal que a pessoa poderia, a qualquer

momento, saber se estava em graça ou não. Como para Calvino Deus é absolutamente livre, seus

desígnios são incompreensíveis para os homens. Por isso, e contrariamente ao desejo de Calvino, os

membros da comunidade desenvolveram a idéia de que as pessoas traziam o sinal do favor divino.

Os eleitos eram trabalhadores, disciplinados, organizados, cuidadosos com limpeza, educados,

sóbrios e poupadores. Mais importante, os eleitos desempenham com eficiência o comerciante não

perderia um negócio. Os ganhos com o trabalho não seriam esbanjados mas

investidos no desenvolvimento e aperfeiçoamento da profissão ou do negócio. A riqueza era um dos

sinais da salvação – se conseguida através do trabalho. Mas o principal era o correto desempenho da

profissão. Com isso, pensava Weber, os calvinistas tornaram-se pragmáticos, racionais. Um homem

demonstrava o sinal do favor divino pelo trabalho e por obras práticas ligadas à sua vocação. Como

conseqüência, estabeleceu-se uma competição pela eficiência profissional, estando cada um obrigado

a mostrar capacidade. A vida tornou-se menos mística e mais racional.

B. Wemer Sombart (1863-1939) investigou o assunto e concluiu que Weber estava enganado. A

ética calvinista contém elementos que são incompatíveis com o capitalismo. O calvinismo só permite

a riqueza adquirida com o próprio esforço, não permite a herança e as negociatas. A vida deve ser

modesta, mesmo para os ricos. Julgou que a ética que teria impulsionado o surgimento do

capitalismo era a judaica. Mas

não pelas razões usualmente alegadas. Ao final da idade Média, os cristãos estavam como que

paralisados frente aos negócios modernos. Os novos tempos exigem os negócios, enquanto que a

ética cristã os condenava. Os cristãos estariam presos à dogmas. Por outro lado, a religião judaica é

muito pouco dogmática, permitindo um alto gra u de liberdade na interpretação dos artigos de fé.

Também não é uma religião de salvação como o cristianismo. Se há uma vida a ser salva é esta e isso

só pode ser conseguido pelo trabalho. Atos cerimoniais e ritualísticos não podem alterar a realidade

dos fatos, só o trabalho. Assim, aquilo que o israelita pretender terá que conseguir por esforço

próprio. O judaísmo é muito pragmático e grande parte de seus ensinamentos dizem respeito ao dia-

68

Page 69: Apostila Sociologia

a-dia, sem grandes metafísicas e teologias. Essa racionalidade teria, segundo Sombart, sido a

responsável pelo desenvolvimento do capitalismo.

C. John K. Galbraith – economista canadense contemporâneo, liberal, em absoluto um esquerdista,

examinando a origem das grandes fortunas, principalmente norte-americanas, descobriu que a base

principal do enriquecimento foi a fraude, a patifaria descarada, a violência, o peculato, a sonegação,

o suborno, etc. A ética presente no desenvolvimento do capitalismo teria sido a ética da falta de

escrúpulos, pura e simplesmente.

D. Samuel Hutington politólogo norte-americano, falcão, pensa que a corrupção é muito saudável

para os negócios e que o desenvolvimento de seu país muito a ela devem. Aconselhava aos

empresários e governantes do Terceiro Mundo.

C) O Malthusianismo

Em 1798, Malthus, clérigo inglês, publicou um opúsculo, "Princípios da população", no qual

afirmava que a quantidade de alimentos crescia em razão aritmética e a população em razão

geométrica. Esta idéia fez sensação e Malthus aconselhou a todos que se casassem tarde e aos pobres

que trabalhassem muito – e recebessem pouco. Achava salutar a alta taxa de mortalidade infantil que

havia entre os filhos dos operários, as suas péssimas condições de habitação e higiene, bem como sua

reduzida expectativa de vida. Os ricos, sendo poucos, deviam concentrar em suas mãos a maior

riqueza possível para evitar que os pobres aumentassem em número.

D) O Darwinismo Social

A descoberta de Darwin e de Wallace de que as espécies evoluíam através de uma

competição em que os mais aptos sobreviviam, até hoje é bem entendida pelos leigos. Por esta teoria,

a seleção dá-se por uma competição no interior da espécie, tal que alguns indivíduos são mais

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Page 70: Apostila Sociologia

capazes de deixar descendência numerosa do que outros. Na interpretação incorreta do leigo

sobreviveriam os mais astutos, ou fortes, não em termos de espécie, mas de indivíduos.

O norte- americano William G. Summer ( 1840-1910) entendeu que a teoria de Darwin

confirmava cientificamente o caráter natural, correto e eterno, que a riqueza era prova disto. Os

pobres sofriam apenas os efeitos de sua própria inferioridade, Se a pobreza – e a riqueza – passava de

uma geração à outra, estava demonstrado o caráter biológico do acontecimento. Louvor aos mais

aptos e opróbrio aos incapazes.

Embora a expressão darwinismo social tenha caído em desuso, a idéia em si continua muito

viva, principalmente entre os capitalistas norte-americanos. O economista canadense John K.

Galbraith ironiza dizendo esta teoria deve ter sido responsável pelas atividades sexuais olímpicas

dos ricaços do século XIX. Também curioso, são as estatísticas demonstrarem que os pobres tem

prole muito mais numerosa que os mais aptos.

E) O Corporativismo

O liberalismo teve como um de seus aspectos a crença no aproveitamento do conflito entre as

classes sociais para o benefício comum. O corporativismo, ao contrário, é uma doutrina que visa a

impedir aquele atrito.

Uma das versões da doutrina foi exposta por Durkheim. Temia que a divisão progressiva do

trabalho levasse a dois resultados indesejáveis. O primeiro seria o mal-estar dos indivíduos causado

pela perda do consenso e do sentimento de grupo. Outro seria o crescimento desmesurado do Estado,

mais grave. Surgiria um hiato entre o povo e o Estado porque este teria em si representantes dos

muitos setores especializados: cada um trataria de defender interesses específicos enquanto as

necessidades conjuntas da sociedade ficariam desatendidas. Por outro lado, o Estado hipertrofiado

poderia começar a funcionar em interesse próprio, tornando-se ditatorial.

A solução seria o sistema corporativo. Cada área profissional, congregando empregados

elegeria o seu representante junto ao Estado. A corporação forneceria aos indivíduos o desejo

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Page 71: Apostila Sociologia

sentimento de pertencer a um grupo e, ao mesmo tempo, selecionaria os representantes do povo no

Estado.

F) O Sindicalismo Mercantil

A concorrência plena preconizada pelo liberalismo clássico submetia os capitalistas às

incertezas do mercado. As pequenas empresas faliam, impedidas de competir com os menores custos

de produção das maiores e mesmo estas não estavam seguras. Diversos meios foram desenvolvidos

pelos grandes empresários para neutralizarem os efeitos das imprevisibilidades da oferta e da

procura. Entre estes meios temos as “manobras de açambarcamento de mercados”, ou sindicato

mercantil, que colocam as empresas associadas em situação privilegiada face às demais empresas a

aos consumidores. Estas práticas seguem cada vez com maior intensidade, até aos nossos dias. São

elas:

A. O truste

Apresentados ao público com o nome de consórcio e grupo, é uma associação de empresas,

conseguida por acordo ou coação em que uma delas, a Holding detém o controle acionário sobre as

subsidiárias, normatiza suas atividades, planeja as atividades do conjunto com o fim de conseguir

uma posição de monopólio relativo ou absoluto. Nos trustes modernos, a mais poderosa das formas

de concentração econômica, tudo se passa como se as subsidiárias fossem empresas autônomas. Daí

que a concorrência entre as mesmas, em termos de preços e vantagens, é apenas uma aparência

cuidadosamente planejada.

As multinacionais são trustes em que o privilégio assume duplo aspecto, já que o público fica

à mercê do colapso interno e externo. Algumas dessas associações possuem um produto interno

superior ao de muitos países do Terceiro Mundo, podendo a Holding corromper políticos e governos

internos. Além disso, utiliza a pressão política e econômica do governo do país sede para impor a sua

vontade.

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Page 72: Apostila Sociologia

B. O cartel

Foram inicialmente acordos de cavalheiros estabelecidos entre empresários. Os cartéis são

associações em que as empresas-membro mantêm a independência e têm como objetivos a limitação

da concorrência mútua e o controle do mercado. São em tudo semelhantes aos trustes, apenas

inexistindo a Holding Company.

C. O pool

É uma forma especial de cartel em que as empresas-membro constituem um fundo, para o

qual cada uma contribui com uma cota alíquota ao seu capital, objetivando a disponibilidade de

recursos para ações comuns. Os lucros obtidos são em parte redestinados ao fundo e em parte

distribuídos, conforme a cota de contribuição.

D. O corner ou ring

Entende-se por corner a situação em que fica o consumidor quando se encontra sem

alternativas – “ficou no canto”. A forma mais comum de atuação é a do lock-out, em que o

fornecimento de certo produto é suspenso até que o comprador aceite as condições impostas. Pode

realizar-se através do truste, do cartel ou pela posição monopolística de uma só empresa. O

corporativismo econômico autônomo, não estatal, é quase sempre ilícito e, por isso mesmo, as

doutrinas correspondentes não são publicamente definidas e divulgadas. Mas existem.

Em linhas gerais, as diversas correntes corporativas buscavam o equilíbrio econômico –

controle das crises do capitalismo e alguma espécie de justiça social – impedindo que o capitalismo

pauperizasse as massas através do livre jogo do mercado. Era, na prática, uma concepção retrógrada

e autoritária que redundou num dos suporte doutrinário do fascismo. O corporativismo de Estado foi

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Page 73: Apostila Sociologia

característico dos fascismos italiano e alemão. Criadas pelo Estado, as corporações visavam e

eliminar o conflito de classes e submeter a população à vontade do ditador. Foi, até recentemente,

característico do regime salazarista em Portugal e franquista na Espanha.

G) O Keynesianismo

Os Estados Unidos da América tiveram, após a Guerra Civil e, principalmente, após a virada

do século XX, um crescimento econômico e financeiro extraordinários. Empresas e particulares

enriqueciam com rapidez e mercados externos foram sendo ocupados. A primeira Guerra Mundial

acelerou esse processo, tornando o país credor das potências européias e rival econômico da

Inglaterra.

Em 1929, inicia-se “Depressão”. O valor dos papéis negociados na Bolsa de Valores de Nova

Iorque cai com rapidez, causando apreensão generalizada. O mundo empresarial deflagrou uma

política de recessão, diminuindo os investimentos na produção. O resultado do desaquecimento da

economia foi o desemprego e a perda do poder aquisitivo da população: menos compras, gerando

mais crise, gerando mais desemprego. As falências se avolumaram e o desemprego atingiu a milhões

de assalariados.

As causas da crise foram obscuras até a publicação da Teoria Geral do Emprego, do Lucro e

do Dinheiro pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946). Procedia-se uma verdadeira

revolução na teoria econômica não-marxista. A teoria Keynesiana, de forma ultra-simplificada,

consiste no seguinte:

A. Para que as empresas produzem, é necessário o pagamento dos custos com as rendas auferidas no

sistema. O valor dos bens e serviços produzidos é igual ao valor das rendas.

B. Para que o circuito se complete, é preciso que as rendas sejam todas gastas na compra do que é

produzido. Sem isso, as empresas não cobririam os custos do ciclo seguinte.

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Page 74: Apostila Sociologia

C. Parte das rendas é poupada e depositada no sistema bancário, o qual financia as empresas.

D. Em época de grande prosperidade a poupança é tão volumosa que os bancos não conseguem

investir todo o dinheiro que recebem. Acumulam-se uma soma que não encontra aplicação. Também,

as empresas produzem mais do que conseguem Vlander (superprodução).

E. As empresas reduzem a produção e despedem parte dos seus empregados. Com o desemprego

diminuem as rendas e, portanto, o consumo. O sistema bancário encontra ainda menos oportunidades

para investir.

F. O Estado, através do mecanismo tributário, deve “enxugar” o excesso de poupança do sistema.

Com estes recursos investiria em projetos – úteis ou não – com o fim de criar empregos, aumentar as

rendas e o consumo. A economia voltaria a aquecer-se.

A segunda Guerra Mundial exerceu o papel que Keynes preconizava ao Estado. Um volume

enorme de recursos foi mobilizado para a produção de explosões, chamas e fumaças e o desemprego

praticamente desapareceu. O Keynesianismo marcou o fim da crença liberal numa economia

equilibrada apenas pela oferta e procura. Economistas, governantes e alguns empresários

convenceram-se que o capitalismo não poderia sobreviver sem a intervenção estatal e sem o

planejamento econômico.

H) O Socialismo

Introdução

Poucos assuntos são tão controvertidos quanto o socialismo. É difícil tratar o tema sem que os

ânimos se exaltem, pois são poucas as pessoas para as quais o assunto é indiferente. O motivo disso é

muito simples, pois toca no problema da propriedade privada e, o que é a mesma coisa, no problema

das classes sociais.

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Page 75: Apostila Sociologia

A propriedade privada dos meios de produção econômica nem sempre existiram na História

(ver Engels). É um fenômeno histórico que surgiu em certo estágio do desenvolvimento das

sociedades. De qualquer forma, está presente há tanto tempo na vida das sociedades que muitos

passaram a considera-la um fato natural – principalmente aqueles que são proprietários, ou que

aspiram sê-lo. Ao contrário, os que têm outra opinião execram-na.

Dividem-se, assim, as sociedades modernas em dois grandes grupos cuja oposição de idéias é

tão violenta que a maior parte das guerras e revoluções que existiram têm aí as suas raízes, se bem

que às

vezes indiretamente. Disso resulta que as idéias favoráveis ou contrárias à propriedade privada dos

meios de produção tornaram-se ideologias, ou seja, concepção opostas, radicais, irreconciliáveis,

com fundamento na posição de classe dos indivíduos.

Uma vez que alguém tenha adquirido uma ideologia, é muito difícil que a abandone, pois a

ideologia é sentida pela pessoa como algo sagrado, que não admite discussão. Quando dois

indivíduos discutem ideologias opostas, ficam logo coléricos e é quase impossível que uma parte

convença a outra. Por isso interpreta-se que a vivência das pessoas é muito mais importante na

formação da ideologia do que a propaganda. Estamos cientes das dificuldades que existem para a

abordagem do tema socialismo.

Assim, da forma mais simples e objetiva, procuraremos apresentar um panorama do que seja o

socialismo, em seus aspectos teórico.

Definição

É um modo de produção, intermediário entre o capitalismo e o comunismo, em que os meios

de produção pertencem ao Estado, o qual, sob a direção política do Partido Comunista, planifica

globalmente a economia.

Devido a desinformação, ao uso impreciso do termo e à linguagem própria da propaganda,

existe bastante confusão quanto ao significado de socialismo. O público quase sempre encontra

dificuldade em distinguir socialismo de comunismo. Segundo o marxismo, a sociedade comunista

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Page 76: Apostila Sociologia

ocorreria num prazo – indeterminado – após o socialismo. O modo de produção comunista se

caracterizaria pela ausência de classes sociais e, portanto, de Estado. Cada um produziria segundo as

suas capacidades e consumiria segundo as suas necessidades.

Na obra O Capital, Marx afirma que no comunismo o tempo de trabalho necessário para o

provimento das necessidades seria reduzido, através de uma racionalização plena, permitindo às

pessoas um amplo lazer em que desenvolveriam todas as suas potencialidades. Seria a primeira

sociedade verdadeiramente humana, em que as pessoas seriam as controladoras do mundo social ao

invés de serem por ele controladas. O comunismo não poderia ser atingido antes que houvesse a

plena abundância e tivesse ocorrido uma mudança de mentalidade (revolução cultural). O modo de

produção socialista prepararia a economia e a população para aquela sociedade futura. Assim, na

atualidade não existe nenhum país com estrutura, organização e cultura comunista.

Os marxistas alegam que a demora na transição do socialismo para o comunismo tem sido

causada por terem as revoluções ocorrido em países economicamente atrasados e devido à

competição, política e militar que se estabeleceu com o capitalismo, competição esta que tem

desviado imensos recursos que poderiam ter sido aproveitados para o processo de comunização.

I) Origem e Evolução das Doutrinas Socialistas

As doutrinas socialistas modernas são o produto dos grandes conflitos sociais produzidos

pelo industrialismo. Inicialmente foram formuladas por filósofos sociais pertencentes à ala radical

dos reformadores sociais iluministas. As condições de vida dos antigos servos da gleba eram

péssimas e foram muitos os levantes camponeses ocorridos na Europa, principalmente no século

XVI. Porém, só com o industrialismo começou-se a contestar de forma sistemática a desigualdade

social, a propriedade privada e o Estado.

A Revolução Industrial e o capitalismo desmistificaram em muito as relações sociais. O nível

de vida dos trabalhadores passou a ser visto como o resultado de um contrato leonino entre

proprietários e não proprietários. A remuneração na forma de salário tomara visível a desproporção

entre o valor das mercadorias produzidas e o valor recebido em troca. Dessa forma, as desigualdades

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Page 77: Apostila Sociologia

sociais, a pobreza e a riqueza não podiam mais ser facilmente atribuídas ao destino ou à divindade.

As relações sociais tornavam-se como que transparentes: a condição de proprietário ou não-

proprietário era como o definidor principal das condições de vida. Por outro lado, o Estado revelava

o seu caráter de classe ao igualar, abstratamente, pessoas que não eram socialmente iguais, com o

conseqüente favorecimento dos proprietários, possuidores de informação, recursos econômicos e

influência política. O Estado é denunciado como instituição que representa os interesses da classe

dominante.

As principais formulações doutrinárias socialistas foram românticas, baseadas em escassos

conhecimentos da realidade social, da História, da Economia e da Política. Pretendia-se modificar

radicalmente a sociedade com base na esclarecimento das pessoas e na vontade (voluntarismo). Por

essas razões, foram mais tarde conhecidas como doutrinas socialistas utópicas.

J) O Socialismo Utópico Inglês

Robert Owen (1771-1858), industrial muito rico, distinguiu-se dos seus pares por divulgar, e

praticar, idéias em benefício dos trabalhadores, numa época em que a Revolução Industrial começava

a devastar o corpo e o espírito dessa classe. Owen dava especial importância à educação e criou

escolas para seus operários e dependentes. A essa providência somou salários mais elevados, higiene

e proteção no trabalho, redução da jornada de dezessete para dez horas, assim como deixou de

contratar menores de 10 anos. Cuidou da alimentação dos trabalhadores e da assistência aos

inválidos. Owen pretendia induzir os demais industriais a imita-lo, no que fracassou por completo.

Num contexto concorrencial, a única viabilidade seria a de que todos os patrões passassem a agir

daquela forma, e ao mesmo tempo, pois as medidas de proteção ao trabalhador forçosamente

encareciam os custos industriais. O empresário isolado que assim procedesse não poderia competir

com os demais. Owen só não faliu de imediato porque junto com quelas medidas paternalistas

racionalizou a produção nas fábricas que dirigia.

Naquela fase, Owen não era ainda um socialista. Seu comportamento era mais de um

filantropo. Percebendo a inutilidade de seus esforços no sentido de mudar a mentalidade dos patrões,

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Page 78: Apostila Sociologia

resolveu dirigir-se diretamente aos operários, propondo a criação de colônias agrícolas auto-

suficientes, contendo cada uma entre 700 e 2000 pessoas. A igualdade seria absoluta e cada um

tomaria do produto coletivo apenas o que necessitasse, sem ganância e sem acumulação individual.

A propriedade seria abolida. Tentou uma experiência nesse sentido em Indiana, nos Estados Unidos,

em 1824-26, mas sem sucesso.

Retornando à Inglaterra, manifestou-se contra o lucro, com base na teoria do trabalho de

Ricardo. Via no lucro apenas um acréscimo arbitrário que o empresário incorporava ao valor da

mercadoria – o qual era dado, segundo Ricardo, pela quantidade de trabalho que nela estava

incorporado. Como o operário havia recebido em troca uma remuneração equivalente, não poderia

comprar as mercadorias que produziu, pois a elas havia sido acrescido o lucro. Como solução, propôs

um sistema cooperativista em que os trabalhadores entregariam as suas mercadorias para a

Associação, recebendo em troca bônus indicando o valor em trabalho de cada uma delas. A compra

dar-se-ia apenas com esses bônus e o valor das mercadorias recolhidas pelas cooperativas não

sofreriam qualquer acréscimo. Como isso ficaria eliminado o lucro e a necessidade da moeda. Essa

proposta, no sentido de que os trabalhadores recebem

integralmente de volta o que produziam, foi posteriormente incorporada à doutrina anarquista,

principalmente por Proudhon.

Owen tentou montar um sistema cooperativista nos moldes do mutualismo, mas a experiência

também não deu certo. O maior obstáculo foi o de que os produtores declaravam valores acima dos

reais para as mercadorias que entregavam, repetindo o esquema que Owen denunciara. As idéias de

Owen influenciaram a legislação trabalhista e as doutrinas socialistas posteriores. Não se pode dizer,

portanto, que o owenismo tenha morrido com seu autor.

William Godwin (1756-1836) foi muito influenciado pelo racionalismo. Pretendia

reorganizar o mundo social em termos quase exclusivamente racionais. Como os demais socialistas

utópicos da época, parecia acreditar que tudo se resume a uma questão de esclarecimento e bastaria

explicar aos ricos as vantagens do sistema anárquico para que tudo se modificasse.

Existiriam três tipos de propriedade: o direito permanente sob re coisas que proporcionam

benefícios de quem as possui sem que com isto outros sejam prejudicados – residência, móveis,

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Page 79: Apostila Sociologia

roupas, alimentos, o direito sobre o fruto do próprio trabalho e o direito sobre o fruto do trabalho

alheio. A terceira forma é injusta. Os que possuem propriedades por esforço próprio, ou por herança,

não devem transforma-la em meio para a apropriação do produzido por outros. A riqueza é sempre o

resultado da exploração se alguém alegar que seus rendimentos provém de bens herdados, o trabalho

acumulado de seus pais, isto é uma importura porque nenhuma propriedade gera renda por si só e o

beneficiário está apenas explorando o trabalho presente de outros através dos bens herdados.

O governo tem dois objetivos: a supressão da injusta e a defesa contra inimigos externos.

Pode ser abolido porque a justiça pode ser mais eficazmente administrada pela própria comunidade.

O castigo imposto pelo Estado é inóquo porque provém de uma fonte anônima e distante. Se o

indivíduo tiver que prestar contas diretamente à comunidade estará face à face com seus

semelhantes: não poderia refugiar-se e viver impunemente entre aqueles que o julgam. Quanto ao

segundo objetivo do Estado, os ataques dos inimigos externos são esporádicos e não exigem

prevenção permanente. Em caso de guerra, as pessoas lutarão muito melhor se estiverem

espontaneamente associadas na defesa do que é seu: o Estado convoca à força porque exige a defesa

do que é dos outros.

O governo centralizado conduz à estupidez porque cada um deixa de refletir sobre os

problemas coletivos no pressuposto de que os governantes tudo farão. Tampouco o problema se

resolverá substituindo-se o Estado por uma assembléia popular permanente. Se o governo for

exercido desta forma, parte dos membros sempre será prejudicada pela necessidade de submissão ao

voto da maioria – o que é injusto. Também, nas assembléias o indivíduo não pode pensar com suas

próprias convicções, nem tem a serenidade necessária para tanto, porque encontra-se sob a influência

das seitas e dos partidos. Em terceiro lugar, todas as decisões são tomadas pelo voto, sistema que

distorce e simplifica demais os problemas debatidos. Além disso, os oradores buscam provocar as

emoções dos ouvintes e não o raciocínio. Por fim, uma multidão é sempre uma multidão, fenômeno

pouco capaz para o pensamento claro – que apenas o indivíduo pode ter. A sabedoria coletiva não

existe.

As assembléias devem ser usada com a maior parcimônia, durando o mínimo de tempo e

compondo-se do mínimo de pessoas. Sua autoridade é apenas a do bom senso, sem direito ao uso de

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Page 80: Apostila Sociologia

meios coercivos. Uma vez que o homem é naturalmente racional e justo, numa sociedade igualitária

basta que lhe seja indicado o caminho correto e ele o percorrerá. O ser humano deve ser educado

para que possa desenvolver a plenitude todas as suas potencialidade. Para isto, é preciso que seja

educado pelas famílias e pela comunidade. O sistema centralizado de ensino dirige a educação

apenas para os assuntos que interessem ao Estado. As mulheres ocupam uma posição de

inferioridade social porque lhes é administrada uma educação também inferior. Se educadas

exatamente como os homens, terão as mesmas

capacidades”.

12 ECONOMIA E NATUREZA: COMO CONSTRUIR SISTEMAS SÓCIO-ECONÔMICOS MAIS JUSTOS

(Xavier Simom Femández é Professor de Economia Aplicada na Universidade de Vigo)

A reconfiguração estrutural do sistema econômico vigente é uma necessidade social urgente

se quisermos alcançar estágios superiores no que atinge à justiça social e à distribuição dos

benefícios e custos associados com os processos de desenvolvimento. Isto é, a atual configuração

institucional do sistema econômico apresenta importantes eivas no que diz respeito às possibilidades

de os países pobres deixarem sê-lo e às oportunidades de pôr em andamento sistemas de produção e

consumo que garantam o

equilíbrio ecológico. Essas eivas som conseqüência da natureza das instituições que conformam o

sistema econômico global e que se reproduzem dentro de cada Estado: "liberdade econômica" no

tempo do neoliberalismo que significa permitir que o "mercado livre" atribua, distribua e estabeleça

o tamanho do produto; "liberdade política" que significa igualdade de direitos para todos os cidadãos,

já que está recolhida a possibilidade de "qualquer" e todos chegarmos ao topo da escala social. Mas a

liberdade econômica e a liberdade política, tal e como são concretizadas dentro das sociedades

burguesas, geram

monstros: o mercado só dá de comer, só presta atenção sanitária, só ensina, etc., a quem apoiarem

essas necessidades com unidades monetárias, embora o Estado de Providência, em espaços concretos

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Page 81: Apostila Sociologia

e durante períodos históricos, tenha amortecido os perigos dessa situação o mercado nom valoriza o

meio ambiente a nom ser que seja apropriado diretamente pêlos seres humanos; a igualdade de

direitos, só dentro de cada Estado e nom ao nível internacional, dilui-se em ambas escalas numa

desigualdade de oportunidades, muito mais acentuada se considerarmos as gerações futuras.

Este trabalho pretende realizar uma pequena contribuição sobre o papel que a Natureza

cumpre e deveria cumprir nesse processo de reformulação institucional do atual sistema econômico.

O processo de conformação nacional do nosso País exige, do meu ponto de vista, que tenhamos real

capacidade de decidir sobre que fazermos com os nossos recursos naturais, de capital e humanos,

mas é necessário, também, situarmos a Galiza no plano das relações internacionais com outros povos

do planeta e, finalmente, que sejamos capazes de desenhar os nossos sistemas produtivos e de

consumo segundo uns padrões determinados que tenham em conta a disponibilidade própria de

recursos naturais, os chegados através do comércio justo e solidário e, sobretudo, levando em conta o

tipo de relação que se estabelece

entre os sistemas sócio-econômicos e os sistemas naturais.

Sobre esta última questão é sobre a qual eu vou tratar nesta achega. Esta tarefa, como todas

aquelas em que foram partícipes coletivos sociais, devem enfrentar-se com trabalho conjunto, sem

preconceitos prévios e sem exclusões desnecessárias, para construir esse outro sistema, demandado

para satisfazer a necessidade de alcançar igualitários e dignos níveis de vida sem gerar exclusão

social e sistemas tecnológicos que nom aumentem a carga entrópica a que submetem os sistemas

ambientais. Nesta contribuição acham-se alguns dos elementos necessários para introduzir no debate.

Que este comece já!

O trabalho está estruturado em vários apartados. No primeiro deles estabelecem-se as bases

do relacionamento entre economia e natureza. Como esse relacionamento tem mudado ao longo da

história da humanidade, analiso-o em dois tipos de economias: as econoias tradicionais e as

economias do capital. Já que estas últimas som as dominantes na atualidade e o crescimento

econômico uma das suas características mais sobranceiras, no terceiro apartado coloco a relação

entre crescimento econômico e deterioração sócio-ambiental para, finalmente, discutir arredor das

possibilidades de estender os seus padrões produtivos e de consumo ao conjunto da humanidade.

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Page 82: Apostila Sociologia

Natureza e Economia

A relação entre os sistemas econômicos e os sistemas naturais podem ser analisadas de duas

perspectivas, com resultados opostos. Podemos, em primeiro lugar, analisar o tipo de relação entre a

natureza e o sistema econômico, do ponto de vista da economia convencional. Ao fazermos isto

concluímos que, para a economia vigente, os bens e serviços procedentes dos sistemas naturais não

aparecem como significativos até serem avaliados, apropriados e incorporados nos processos de

produção e consumo. A sua curta vida econômica começa ao serem introduzidos na produção e

finaliza depois de serem consumidos. E isto só ocorre a um subconjunto reduzido dos elementos e

processos ambientais: o oxigênio, a biodiversidade, o ciclo hidrológico e os processos energéticos e

de reciclagem de nutrientes, e muitos outros elementos e processos, não são considerados em

nenhum modo. A sua vida econômica não existe, a economia não os reconhece dentro das funções de

produção e consumo. Nesta ordem de cousas, os bens e serviços procedentes da natureza não

apresentam nenhuma particularidade, pêlos que são equivalentes aos fluxos de bens e serviços

procedentes de todo o tipo de atividades.

Em segundo lugar, podemos analisar a relação entre sistemas ambientais e sistemas

econômicos segundo a perspectiva da ecologia, ao ser esta a ciência que entende das relações entre

os organismos e o ambiente no qual se desenvolvem. A conclusão a que chegamos é muito diferente:

os sistemas econômicos são subsistemas que trocam energia, materiais e informações com outros

subsistemas. Não é possível unificar estes dois resultados, ao serem produto de visões opostas. Da

primeira das perspectivas, ao máximo que se chega é a tentar incluir sob os princípios que regem

dentro do sistema econômico aquela parte dos sistemas ambientais que ainda não estão valorizadas e

apropriadas. Quer dizer, a economia científica, do paradigma neoclássico, exige a monetarização e a

mercantilização dos diferentes elementos do sistema natural como requisito prévio para a sua

consideração na possível estratégia de resolução do conjunto de problemas sócio-ambientais as que

nos enfrentamos hoje. Dito de outra forma,

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Page 83: Apostila Sociologia

hierarquicamente, o sistema econômico estaria por cima do sistema natural. Só no guarda-chuva da

ciência econômica convencional é possível topar acovilho aos nossos problemas.

Em troca, na segunda das perspectivas, o sistema econômico é um subsistema de um sistema

maior do qual faz parte. Em primeiro lugar, rende contas à configuração institucional. Poderíamos

pensar que existe uma total coincidência entre os elementos institucionais e econômicos, de tal forma

que aquelas variáveis se reduziriam inteiramente a estas últimas. Isto é perfeitamente lógico ainda

que não socialmente desejável. Em segundo lugar, o sistema econômico rende contas ao sistema

ambiental no qual se desenvolve. Podemos ilusoriamente pensar que não se dá esta relação

hierárquica, tal e como se faz na economia convencional, mas com feito dá-se em, pólo menor, dos

sentidos.

O primeiro fala-nos da natureza aberta do sistema econômico; isto é, os objeto econômicos

existem, em virtude da sua existência física, antes de começarem a fazer parte do sistema econômico,

como mercadorias com valor de troca positivo, e seguem existindo logo após serem consumidos, na

forma de resíduos. E se os sistemas econômicos não abertos, as decisões econômicas incontroladas,

baseadas no cálculo de custos e rendimentos empresariais, são basicamente incompatíveis com a

manutenção dos estados dinâmicos de equilíbrio econômico e ecológico, pólo que toma necessário

reformular e redefinir não apenas os conceitos de custos e ganhos sem , sobretudo, os critérios de

eficiência e otimização econômica de tal forma que incluam o feito de que o que pode ser eficaz e

ótimo no caso de um sistema de produção fechado, pode resultar ineficaz e nada ótimo e, no longo

prazo, porventura destrutivo do ponto de vista social e global devido ao descuidado efeito cumulativo

das acumulações entre os sistemas abertos (Kapp, K. W., 1978).

Podemos dizer, de outra parte, que embora se alcançasse o sonho dos economistas de

estabelecer uma completa correspondência entre o mundo econômico e o mundo físico, nem por isso

teríamos encontrado soluções satisfatórias aos problemas que originalmente colocava a gestão do

ambiente, se por solução satisfatória se entender aquela que, pólo menos, garanta a continuidade da

espécie humana (Naredo, J. M., 1987).

A relação hierárquica dos sistemas ambientais e dos sistemas econômicos está substantivada

num segundo elemento: a natureza entrópica do processo econômico. A influência que a Lei da

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Page 84: Apostila Sociologia

Entropia tem sobre os sistemas econômicos e sobre a vida em geral, não pode ser negada nem

tampouco permite sonhar com a possibilidade de vencer as suas implicações. Como não há de impor

limites à atividade econômica uma Lei como a da Entropia, cujo funcionamento é o responsável pelo

fato de um barril de petróleo só poder ser queimado uma vez? Em toda transformação de energia e

matérias existe uma perda de qualidade: o resultado final é que em todo sistema encerrado, como a

Terra, a desordem, a entropia, cresce irremediavelmente, enquanto em sistemas abertos, como o

econômico, só é possível aludir a crescimento da entropia gerando desordem noutros sistemas.

A natureza entrópica do processo econômico permite-nos afirmar: primeiro, o processo

econômico transforma valiosos recursos materiais e energéticos, de baixa entropia, em desperdícios

sem valor, alta entropia, pelo que a justificação do processo produtivo não pode ser material sem "o

desfrute da vida" (Georgescu-Roegen, N., 1975, 1980); e, segundo, os processos de produção e

consumo apenas continuam na medida em que formos capazes de alimentá-los de baixa entropia,

quer dizer, o fator limitante em última instancia não é a disponibilidade de capital manufaturado se

não a existência de baixa entropia ou capital natural.

Da discussão anterior, à volta da natureza aberta do sistema econômico e o caráter entrópico

do seu processo produtivo, não podemos extrair outra leitura: se quisermos manter indefinidamente

os sistemas de produção e consumo que servem a propósitos humanos, a sua estruturação deve

incorporar como variáveis independentes as restrições impostas pêlos sistemas ambientais.

O atual sistema econômico industrialista está longe de recolher estas restrições. Mais bem,

caracteriza-se por considerar os elementos e processos procedentes do ambiente como dados, cuja

função é aguardar a sua valorização pelo mercado. Deste jeito, vem-se fazendo uso das funções

ambientais segundo as necessidades de reprodução do capital que historicamente predominar nos

mercados. Por conseqüência, as restrições que impõem os sistemas ambientais são obviadas: será a

disponibilidade de capital monetário a que imporá limites, nunca o capital natural.

Sem embargo, os ecossistemas participam nos processos de produção e consumo facilitando-

os e, em última estância, limitando-os. Como subministradores de insumos que se incorporam nos

processos de produção, como bens de consumo final (energia, materiais, produtos agrários e

pesqueiros, etc.) bem como cabia na qual são despejados todos os refugos sólidos (papel, latas,

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Page 85: Apostila Sociologia

plásticos, vidro, etc.), líquidos (águas, produtos químicos, etc.) e gasosos (C02, óxido de enxofre,

CFCs, etc.), os sistemas ambientais permitem que se realizem os atuais processos de produção e

consumo. Mas pode ocorrer, e está a suceder já, que cultivamos um uso inadequado dos sistemas

ambientais. Entendo o qualificativo inadequado no senso quer de não tê-los em conta em nenhum

mod o, pois que são excessivamente abundantes, quer de tê-los em conta mas não de acordo com as

leis e princípios ambientais que os regulam, mas exclusivamente mediante sistemas de mercado.

Destarte, convertem-se num limite absoluto à manutenção no longo prazo dos atuais processos de

produção e consumo: ao extrairmos biomassa pesqueira a ritmos superiores dos que se reproduz, ao

expulsarmos resíduos a taxas superiores das que podem ser metabolizados pela natureza e ao

inserirmos nos sistemas ambientais resíduos que mantenham a sua carga contaminante durante

prolongados períodos de tempo, estamos a minar os pilares naturais do sistema econômico e não

seremos capazes de manter de forma indefinida tais sistemas de apropriação de recursos.

Ambas entidades, os ecossistemas e os sistemas econômicos, não se podem entender por

separado. Por exemplo, não podemos fazer corretamente sobre como incrementar a produtividade

dos sistemas agrários mediante tecnologias super eficientes considerando as condições ambientais

em que se desenvolve essa tecnologia como uma simples superfície sobre que pôr em prática o

sistema tecnológico considerado eficiente. Aliás, ao não considerarmos a base natural localmente

disponível, nem as percepções culturais da comunidade destinatária da tecnologia, nem os seus

particulares e locais problemas e oportunidades, estaremos propiciando situações de maior risco de

fracasso sócio- ambiental naquelas tentativas de incrementar a produtividade da agricultura.

Por conseqüência, os sistemas ambientais não se podem entender sem levar em conta os

sistemas sócio-institucionais, que fixam o propósito dos processos de produção e consumo; nem

estes se podem compreender inteiramente sem a presença dos iniludíveis condicionantes ambientais.

Existe, portanto, um processo de co-evolução entre os sistemas sociais e os ambientais. Dizer isto

nom implica afirmar nada novo nem nada substantivo em relação com os limites ambientais a que se

enfrenta a sociedade atual. Todas as sociedades, ao longo da história da humanidade, estavam num,a

situação semelhante a esta: os processos sociais modificam as condições ambientais, que logo de

serem modificadas, e com maior ou

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Page 86: Apostila Sociologia

menor consumo de tempo, empoem novas condições que farão mudar a configuração dos sistemas

sociais, e estes, por sua vez, gerarão novos impactos nos sistemas ambientais que...

Historicamente, o processo de co-evolução desenvolveu-se dentro de limites espaciais e

temporais próximos. Isto é, os sistemas socioeconômicos não geravam efeitos irreversíveis que

superassem as suas barreiras, nem as geográficas nem as gerenciais. Isto mudou de forma

significativa nos últimos duzentos e cinqüenta anos, e de forma exponencial nos anos posteriores à

Segunda Guerra Mundial.

Da economia tradicional à economia do capital

Neste momento pretendo, para percebermos melhor os limites que os sistemas ambientais

impõem de forma irremediável aos sistemas econômicos, tratar as mudanças acontecidas nas

economias reais, desde uma economia caso natural bastante estável a uma economia industrializada e

progressivamente crescente, desde as economias locais altamente diversificadas e "otimamente"

diferentes à economia global homogeneamente mercantílizada.

Já que para o tratamento completo e profundo destas mudanças e das inter-relações

subjacentes não estão preparados, centrarei a minha discussão nas mudanças produzidas no sistema

energético e material. Utilizarei para a comparação dois momentos históricos determinados,

situações extremas por mim imaginadas mas que tinham uma data específica segundo a dinâmica

histórica prevalente em cada sistema social: as sociedades rurais conformadas por uma maioria

camponesa, juntamente com artesãos e incipientes aglomerações urbanas, que passo a denominar

economia tradicional, e as sociedades altamente artificializadas mediante sistemas tecnológicos que

propiciam o crescimento das atividades de serviços e de produção de bens manufaturados em

contextos amplamente urbanizados, à qual farei referência como economia do capital.

Os sistemas energéticos e materiais da economia tradicional e da economia do capital são

muito diferentes, nos seus elementos componentes, nas inter relações que se estabelecem entre eles e

nos seus efeitos através do espaço e do tempo. Numa economia tradicional utilizam-se

majoritariamente fontes energéticas e materiais de caráter renováveis e localmente disponíveis.

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Page 87: Apostila Sociologia

Duma parte, os processos de produção e consumo vigentes são estruturados para aproveitarem a

capacidade produtiva da terra e da água, a força do vento e do mar em função do capital humano e da

tecnologia existente. De outra parte, os subsistemas sociais interagem com os sistemas ecológicos

básicos gerando crescimento entrópico mas sem causar a sua deterioração irreversível.

De outra parte, ao estar a economia tradicional muito afastada dos mercados globais, tem

vocação de serviço a pequenos mercados locais, pois o seu tamanho é pequeno. Aliás, o comércio de

energia não é facilitado quando as fontes originárias de que procedem os fluxos energéticos e

materiais são renováveis. Nas economias tradicionais existe o comércio, mas não de fontes

energéticas primárias, somente dos produtos obtidos através dos processos produtivos em que

participam aquelas fontes energéticas: a produção agrícola, madeira e florestal, a mineração

principalmente não energética bem como a produção artesanal.

Esta configuração estrutural concede ao sistema energético da economia tradicional, e por

extensão esta, a importantes virtudes do ponto de vista dos seus efeitos através do tempo e do espaço.

Os prejuízos sócio-ambientais que se transferem através do espaço são bastante limitados. Quer

dizer, os custos que uma sociedade tradicional do Norte traslada a uma sociedade coetânea do Sul

não são percebidos de nenhuma forma. Num âmbito mais limitado existem efeitos externos que

ultrapassam os limites desses sistemas e reduzem o bem-estar duma comunidade terceira (a pesca nas

zonas próximas à foz dos rios reduz as capturas no curso alto), bem como efeitos da mesma

procedência que incrementam o bem-estar em terceiras comunidades (cultivos em altitude que se

realizam em socalcos evitando que a erosão afete os camponeses das terras de abaixo) .

Quanto aos efeitos produzidos através do tempo, de geração em geração, é possível legar

capital manufaturado e capital natural: o capital manufaturado pode produzir durante várias gerações

(moinhos, barcos, estradas, etc.) se repararmos a sua depreciação; o capital natural (a capacidade da

terra para produzir alimentos e fibras, a dos mares para produzir biomassa pesqueira, a dos bosques

para absorver C02, etc.) também pode ser legado às gerações posteriores mantendo intacta a sua

capacidade de produzir fluxos de bens e serviços.

Pois bem, e aqui está a sua principal vantagem do particular ponto de vista que focamos a

questão, a economia tradicional lega, de geração para geração, capital natural que não hipoteca

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Page 88: Apostila Sociologia

futuros níveis e linhas de desenvolvimento. Dito duma forma mais clara: o Rio Nilo e as populações

das suas ribeiras co evoluíram durante milhares de anos sem que as gerações futuras tivessem que

suportar mudanças irreversíveis nas suas condições ambientais. Nas economias tradicionais, as suas

águas utilizaram-se para pescar, para regar e aproveitar a fertilidade posterior às enchentes do

inverno, para aproveitar a força do seu curso de água produzindo trabalho, para o seu desfrute

estético, etc. se m que perdesse irreversivelmente essas funções.

As antigas economias tradicionais e os seus sistemas energéticos, de outra parte, não

permitiam desfrutar dos "bens de consumo duradouro" e além do mais coexistiam com penúria

econômica extrema em condições ambientais adversas e recorrentes que empurravam para a

maximizassem o fator produtivo relativamente mais abundante, a força de trabalho, sobre o mais

limitante, a terra disponível. No melhor dos casos, as sociedades tradicionais conseguiam um

sustento de subsistência e no pior dos cenários a fome e morte prematura (as altas taxas de

mortandade infantil são uma das suas características) ou a emigração a terras afastadas na procura

dos recursos não disponíveis localmente.

Em resumo, as virtudes ambientais do que chamo economias tradicionais ficam associadas

com situações sociais pouco desejadas para alcançar um destino humano superior de formação

espiritual e satisfação material. Vejamos o que sucede nas sociedades do capital. Os sistemas

energéticos e materiais das sociedades do capital fundamentam-se no uso de fontes nom renováveis

e, em geral, nom disponíveis localmente. Os processos produtivos e de consumo estruturam-se

segundo as disponibilidades de energia e materiais próprias ou chegadas através do comércio. Os

estoques, reservas terrestres de energia e materiais, fundamentalmente combustíveis fósseis e

minerais não energéticos, com a base natural das sociedades do capital. Ao existirem em quantidades

limitadas, cada unidade consumida supõe a redução na mesma quantia da quantidade restante. Isto

implica que as gerações futuras disporão de menores reservas de petróleo, gás natural e carvão, bem

como menos reservas de chumbo, alumínio, zinco, etc. O papel central que desenvolvem os estoques

de recursos terrestres e a .quantidade e tipo de resíduos gerados pelo seu consumo provocam

perturbações que modificam a natureza daquele processo evolutivo.

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Page 89: Apostila Sociologia

Duma parte, os pobres da sociedade atual, situados majoritariamente nas energéticas e

materialmente ricas sociedades economicamente subdesenvolvidas, não desfrutam dos benefícios dos

modelos industrializados imperantes e suportam em igual medida a poluição produzida pelo abusivo

consumo dessas fontes energéticas nos países pobres energeticamente e economicamente mas ricos .

Quer dizer, os sistemas sociais devem fazer frente no seu conjunto aos problemas ambientais

derivados do consumo excessivo duma parte reduzida da população mundial.

De outra parte, os modelos energéticos e ma teriais vigorantes nas sociedades do capital

produzem resíduos que permanecem como ativos poluentes durante milhares de anos (resíduos

nucleares, organismos modificados geneticamente, etc.). Quer dizer, a diferença da economia

tradicional, a economia do capital, pela primeira vez na história da humanidade, tem a capacidade de

trasladar ao futuro efeitos ambientais irreversíveis.

Junto destas diferenças, a escala do sistema energético também mudou de forma significativa.

Em termos de fontes energéticas primárias, hoje existe um mercado internacional da energia cuja

configuração reproduz, mais uma vez, as necessidades do capital transnacional, se não de que outro

jeito pode entender o feito de que o arrecadado pêlos Estados europeus em conceito de impostos

sobre o consumo de combustíveis fósseis supere o que cobra em origem o produtor, ou melhor dito, o

legitimo proprietário do combustível que permite a sua extração (Galeano, E., 1970).

Às vezes, poderíamos estar tentados a pensar que a desestruturação do estoque de recursos

terrestres, a geração dos problemas ambientais que se sofrem na atualidade e o traslado ao futuro de

perdas ambientais irreversíveis seriam os preços que devemos pagar para dispor do nível de vida

material e acesso aos serviços de que dispomos hoje. Este tipo de discursos comuns na boca dos ricos

inconscientes, ricos nas perspectivas mundiais, que esquecem as enormes desigualdades espaciais e

temporais vinculadas com as sociedades do capital. Quer dizer, nós os galegos e todas as sociedades

ocidentais conformamos uma porção muito reduzida em número, 18% da população mundial, que

desfruta dum alto nível de vida material com base no uso relativamente abusivo das funções dos

ecossistemas. Nas sociedades do capital, como as atuais, provocamos deterioramento ambiental com

caráter irreversível e só uma porção reduzida da população é beneficiada por tal situação. Mas todo

isto fica agachado detrás do onipresente objetivo do crescimento econômico.

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Page 90: Apostila Sociologia

Crescimento econômico e deterioramento sócio-ambiental

O crescimento, esse objetivo tem desejado, não se consegue a preço zero. Isto é, os sistemas

ambientais e os sistemas sociais, ou pelo menos, partes de ambos, sofrem perdas, deterioram-se e ou

desaparecem: esses efeitos adversos sobre ambos sistemas são, do ponto de vista da economia

ecológica, sintomas que demonstram a inviabilidade do modelo econômico industrialista para

manter-se de forma indefinida e para garantir às gerações presentes um acesso eqüitativo aos seus

resultados. No entanto, a economia convencional não reconhece os problemas ambientais e sociais

associados com os processos de crescimento econômico. Este segue a ser o objetivo supremo de toda

iniciativa econômica e as macro

magnitudes (PIB e Renda Nacional) o seu reflexo.Vejamos, a seguir, alguns dos argumentos

utilizados pela economia ecológica para rejeitar esta otimista visão, que podemos resumir no

seguinte: mais crescimento econômico medido mediante o PIB é a estratégia idéia para fazer frente

aos atuais problemas sociais e ambientais.

Em primeiro lugar, do ponto de vista da produção, as macromagnitudes consideram a

apropriação de capital natural como um simples consumo intermédio, do mesmo jeito que os

insumos chegados de outras unidades produtivas. Deste jeito, incentiva-se a posta em andamento de

iniciativas que usam de forma dispendiosa o capital natural. Quer dizer, a responsabilidade produtiva

do capital natural na obtenção de uma oferta determinada não está reconhecida: é muito mais

importante a produtividade do trabalho e a do capital manufaturado.

Mais crescimento econômico supõe, portanto, destruição de capital natural. Isto é, redução de

oportunidades de desenvolvimento no presente e no futuro. De outra parte, na economia

convencional existe a crença de que os bem-estares econômicos, medidos segundo os índices da

renda nacional, e os bem-estares totais, associados com valorizações pessoais e sociais bem como

com valores culturais, movem-se no mesmo sentido. Isto é, o crescimento econômico medido através

da renda mundial contribui positivamente para a melhoria do bem-estar global da sociedade. Contra

esta afirmação cabem vários argumentos.

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Page 91: Apostila Sociologia

Em primeiro lugar, o agregado macroeconômico final é resultado de somar o valor da

produção de atividades que contribuem positivamante à geração de valor do ponto de vista da

economia convencional, tais como produção de alimentos, roupa, automóveis, livros, etc., com

atividades que simplesmente incrementam o custo de produção e aparecem refletidas nos preços

finais, tais como campanhas de marketing de serviços improdutivos tais como exércitos, as despesas

originadas pela co-gestão do transito, etc. Um incremento do "valor" destas produções incrementará

o bem-estar econômico mas não o bem-estar global.

Em segundo lugar, a deterioração ambiental causada pelas atividades econômicas não está

valorizada, pelo que as perdas que sofre o ambiente nom se introduzem nas medidas de bem-estar.

Embora esta geração e várias mais sejam capazes de desenvolverem-se sem sofrer graves pressões

ambientais, é certo que outras gerações posteriores vão ter que fazer frente a esses custos, com o qual

o seu bem-estar vai ver-se reduzido. A teoria econômica considera que isto nom é um problema, pois

as gerações futuras vão ser mais ricas, como conseqüência precisamente do crescimento econômico e

da acumulação de capital manufaturado, e por isso para elas será relativamente menos custoso do que

seria para nós agora fazer frente a esses custos.

Até que ponto podemos estar de acordo com esta afirmação?. Tal e como apontamos no

anterior apartado , em todo sistema encerrado a entropia cresce de forma irreversível e os processos

de produção e consumo só funcionam, no longo prazo, se formos capazes de incorporar baixa

entropia para produzir e consumir novos elementos que sirvam para os fins humanos. Manter

condutas muito entrópicas como as que supõe desestruturar estoques terrestres de energia e materiais

a ritmos excessivos, impulsiona o seu esgotamento com o que as gerações futuras vão dispor de

fontes energéticas e materiais muito mais dispersas e custosas em termos entrópicos.

De outra parte, as gerações futuras herdaram um ambiente no qual teremos inserido

substancias que conforma a já conhecida sopa tóxica (que contém, em média, mais de cem mil

componentes) e, desde os últimos anos, também organismos geneticamente modificados que não são

produto daquela co evolução pelo que não se encontram integrados nas diferentes cadeias vitais. A

unanimidade existente no campo da economia sobre a facilidade relativa das futuras gerações para

lidar com esses problemas deve

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Page 92: Apostila Sociologia

deixar lugar ao debate e confronto de posições.

E já não unicamente pelos efeitos sobre as gerações futuras, quanto também, e

fundamentalmente, pela parte da geração presente que mora no Último Mundo e que assiste

desprovida de recursos pelo contínuo esbanjamento que atesta as atividades econômicas

desenvolvidas pela outra parte da geração presente que mora na opulência relativa, nós os que

moramos no Primeiro Mundo Rico.

A correlação positiva entre bem-estar econômico e bem-estar global podem rejeitar-se com

outro tipo de argumentação: existem atividades econômicas que contribuem positivamente para o

crescimento econômico mas não foi do que gastar para manter o mesmo nível de bem-estar, com

despesas defensivas. Quer dizer, nom existe uma correlação positiva entre bem-estar econômico e

bem-estar total. Entre essas atividades podemos mencionar: as despesas em segurança privada e

pública, cujo objetivo é abrandar os efeitos da delinqüência e os crimes gerados pelo crescimento

econômico; as despesas sem controlo da poluição pretendem conseguir condições ambientais

similares às existentes antes do dano ambiental, etc.

Por consequência com todo o anterior, o crescimento econômico não só não nos permite falar

em bem-estar econômico e bem-estar global como dos conceitos sinônimos, se não que maiores taxas

de crescimento econômico com as responsáveis pêlos processos de deteriorização ambiental e social

em que estamos incorrendo de forma acelerada durante o último século. O crescimento econômico

nom é um objetivo socialmente desejado. É necessário que busquemos mais o desenvolvimento

econômico e menos o crescimento econômico: mais a distribuição igualitária dos produtos obtidos e

menos o incremento da escala da atividade econômica; mais a redução dos resíduos produzidos que o

incremento das taxas de reciclagem; maiores períodos de vida para os "bens de consumo" duradouro

e para os bens de capital e adaptação dos fluxos de recursos naturais e resíduos à capacidade do

capital natural para produzi-los ou absorvê-los; etc. O desenvolvimento econômico é possível sem o

crescimento econômico. Para os economistas ecólogos, este é o caminho que nos leva a mundos mais

justos, intra e inter gerencialmente.

Finalmente, da economia convencional afirma-se que, ainda reconhecendo a deteriorização

ambiental causada pela atividade econômica, isto nom é um problema importante ao qual tenhamos

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Page 93: Apostila Sociologia

que prestar muita atenção, já que o capital natural e o capital manufaturado são completamente

substituíveis.

Historicamente, sempre foram os fatores escassos, limitantes portanto, sobre os que se

concentraram os esforços de acumulação. Na época físiocrata, os pulos populacionais tomavam

necessária uma maior produção de alimentos e a agricultura que trabalhava a terra era a única

atividade considerada produtiva. Os esforços centravam-se no incremento da produtividade da terra.

Com os clássicos e a revolução industrial, os processos produtivos eram altamente demandantes de

força de trabalho, até o ponto que as jornadas de trabalho muito longas e o recrutamento de força de

trabalho infantil, provocaram que fosse esse fator limitante, o trabalho, sobre o que se

intensificassem os esforços acumuladores. Daquela, que o objetivo era o incremento da

produtividade do trabalho. A limitação dos mercados nacionais e o seu conseguinte alargamento

colonial demandaram cada vez maiores volumes de capital, fundamentalmente capital manufaturado.

A escassez relativa deste fator propiciou que durante

longas décadas o incremento da produtividade do capital fosse o objetivo desejado. E nestas

seguimos na atualidade. Em cada um desses momentos históricos, o capital natural era considerado

como muito abundante, quase como um bem livre.

Hoje, a situação tem mudado amplame nte. Se percebermos que os dois componentes

principais do capital natural são, primeiro, a sua capacidade de produção de fluxos de recursos e aí

captação de resíduos e, segundo, a disposição de existências de recursos terrestres, temos de dizer

que o capital natural deve ser gerido de forma errada. Extraímos recursos a taxas superiores das da

sua regeneração, fazemos um uso abusivo das reservas minerais terrestres sem que uma parte as

receitas geradas seja destinada à criação de substitutos renováveis, introduzimos na natureza resíduos

não assimiláveis, etc., evitando irreversivelmente outros usos futuros.

Embora a deteriorização do capital natural não se pode negar, os economistas convencionais

estão cridos de que este não é um problema: a substituibilidade entre o capital natural e o capital

manufaturado garante a continuidade da produção. São substitutivos ou complementares? Se fossem

substitutivos, não teria sido necessários o aparecimento e desenvolvimento do capital manufaturado

para propiciar os processos de acumulação que permitiram incrementar o consumo de todo o tipo de

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Page 94: Apostila Sociologia

bens: o seu substituto, o capital natural, teria chegado. Mas não foi assim. Se esta prova não é

suficiente para entendermos o seu

caráter de complementares, pensemos num exemplo muito simples: a produção de móveis de

madeira requer de matérias primas (derivadas do capital natural), força de trabalho (derivada do

capital humano) e maquinaria (derivada do capital manufaturado).

Entre os dois últimos requerimentos existe um largo grau de substituibilidade: para a

produção de móveis podemos usar mais carpinteiros ou mais serras, plainas e outros aparelhos

elétricos. Ora bem, mais carpinteiros e ou mais serras não podem substituir menos madeira: na

produção de móveis o elemento limitante é a madeira. Não resulta possível substituir madeira por

outros fatores e pretender incrementar a sua produção.

Em resumo, o crescimento econômico gera efeitos irreversíveis que a economia não

considera. Mas, quando existem importantes diferenças quanto a consumo, produção e gerarão de

resíduos entre ricos e pobres, entre o presente e o futuro, devemos relativizar a extensão das nossas

afirmações.

Crescimento econômico para todos?

Ainda que nas sociedades ocidentais existam importantes bolsas de pobreza e discriminação,

o consumo dos bens duradouros e de serviços progressivos, do ponto de vista da tecnologia, está

estendido majoritariamente. Nos países pobres as cousas são muito diferentes: a fome, o desamparo,

as guerras e os desastres naturais sentem-se de forma amplificada em termos de vidas humanas.

O partilhamento do mundo em países ricos e pobres não deve levar-nos a enganos: o nosso

exclusivista Primeiro Mundo Rico é-o porque existe esse outro majoritário Ultimo Mundo Pobre. A

existência de ambos está muito inter relacional, vivemos num único mundo embora cindido entre

ricos e pobres: os sistemas reguladores do movimento de capitais e mercadorias uniformizam-se o

sistema energético, com o predomínio das fontes não renováveis, é comum; os refugalhos, a nossa

poluição de todo o tipo, vai parar à mesma gábia, a atmosfera, etc..

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Page 95: Apostila Sociologia

O êxito econômico no Primeiro Mundo Rico e o mais estrepitoso fracasso no Último Mundo

Pobre leva a que se venha defendendo a necessidade de exportar a este último o modelo econômico

responsável por aquela bonança econômica. Neste senso é que temos que entender o papel das

companhias multinacionais e dos organismos internacionais tais como FMI e BM, agentes

vinculadores do "bem comum" na economia global na qual moramos: garantir a liberdade de

movimento dos capitais e das mercadorias, alargar os mercados para todo o tipo de produtos e

serviços, e avançar nos processos de diferenciação social através do consumo.

Este caminho está chamado ao maior fracasso, de uma perspectiva inter gerencial. Primeiro,

porque se essa estratégia não foi quem de conseguir a qual objetivo para as gerações do Último

Mundo Pobre, como vai consegui-lo para todas as gerações futuras?. Em segundo lugar, a

manutenção de taxas de crescimento econômico supõe um incremento na escala da atividade

econômica que leva à geração de maiores resíduos sem capacidade de serem reincorporados aos

circuitos vitais, e à destruição irreversível de fontes de energia não renováveis. Se bem é uma

estratégia exitosa economicamente em tempo contável, principalmente para o Primeiro Mundo Rico,

está a resultar nefasta ambientalmente em tempo

ecológico para o Único Mundo, presente e futuro.

Não é, portanto, uma boa alternativa a de pretender estender os padrões de consumo e

produção atuais ao conjunto da humanidade. Os mercados globais são um feito inquestionável ,mas

nem por isso algo desejado pela cidadania em geral, e pêlos pobres em particular. Os pobres não

participam nas decisões e a cidadania, do Primeiro e do Último Mundo, tem a esperança de melhorar

na quantidade de bens e serviços comprados. Esta esperança é uma arma muito poderosa: o

crescimento econômico apresenta-se como o meio pelo qual os ricos se farão mais ricos e os pobres

deixarão de sê-lo. Destarte, as nossas classes dirigentes, na política, na academia e na empresa,

chamam de forma unânime por regulação que beneficiem o avanço quantitativo das nossas

economias. O crescimento econômico é, deste jeito, a solução aos problemas do desemprego e da

desigualdade, da fome e da guerra, hoje e amanhã, no presente e no futuro.

Mas, na verdade, mais crescimento econômico por tempo indefinido é uma barbaridade

quando o mundo, esse que compartilhamos todos, é finito. Não existem razões objetivas que se

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Page 96: Apostila Sociologia

oponham a esta verdade: não é possível crescer indefinidamente dentro dum sistema finito. E não

serve, como afirmam os economistas, chamar novamente a deusa tecnologia, esta vez para explicar

que somos capazes, a raiz de melhorias nos sistemas tecnológicos, de produzir mais sem deteriorar o

ambiente, já que o conseguimos com menor uso de recursos. É certo, por exemplo, que hoje os

automóveis percorrem mais quilômetros consumindo o mesmo número de litros, são mais eficientes,

mas existem mais automóveis e percorre-se mais distancia, e se gasta mais energia no seu processo

de fabrico, pelo que a escala da atividade econômica se incrementou e os efeitos ambientais seguiram

os mesmos passos. Somos mais eficientes em termos de km/l, mas como consumimos mais litros

emitimos mais poluentes (por litro de carburante consumido seguimos emitindo a mesmas

proporções de metais pesados ou dióxido de carbono, apesar do ganho em eficiência). E estes

poluentes não podem crescer de forma indefinida se quisermos evitar catástrofes ecológicas severas.

A questão não é tentar incrementar o crescimento econômico para resolver os problemas

ambientais e sociais a que nos enfrentamos. Se quisermos solucionar os nossos problemas, devemos,

tal e como formulamos no apartado anterior, favorecer o desenvolvimento mais do que o crescimento

econômico. O desenvolvimento requer mudanças qualitativas nos nossos sistemas econômicos.

Implica, portanto, manter no curto prazo uma estratégia de compensação para com as sociedades do

Ultimo Mundo, deixando de crescer no Primeiro Mundo para que aqueles possam alcançar o nosso

nível de consumo material. O desenvolvimento econômico também implicaria desenhar os novos

sistemas energéticos de forma descentralizada, tentando aproveitar em toda a sua extensão, como

primeira e principal estratégia, a capacidade de renovabilidade da base de recursos localmente

disponíveis. O que se pretende constatar é a impossível tarefa de fazer partícipes dos níveis de vida

monetarizada do Primeiro Mundo Rico os seis milhões de pessoas que o habitamos sem incrementar

os danos ambientais, ou pelo menos os riscos ambientais latentes nas atividades realizadas.

Conclusões

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Page 97: Apostila Sociologia

Acho que podemos extrair algumas conclusões do apresentado nas folhas anteriores, que

sirva para mostrar alguns elementos componentes desse outro mundo que deve substituir a economia

do capital.

1. Dada a ineludível inter-relação entre a economia e a natureza, mais que buscar estratégias

especializadas que permitam ser compe titivos nos mercados mundiais, devemos estruturar as nossas

economias com base nos recursos naturais localmente disponíveis.

2. Embora os sistemas ambientais imponham limites aos sistemas econômicos, não podemos esperar

da ecologia resposta a todas as nossas interrogações. O propósito dos sistemas de apropriação dos

recursos naturais deve ser fixado através de processos de tomada de decisões em que participem

todos aqueles que tiverem algo em jogo, que estiverem implicados naquele processo de apropriação e

gestores dos recursos naturais.

3. Na nossa agenda política nom deve figurar como objetivo o incremento do PIB. Razoar utilizando

essa macromagnitude e demandar o seu crescimento para enfrentar- nos aos problemas sócio-

ambientais é tão reacionário como defender o mercado como o lugar apropriado para resolver

aqueles problemas.

4. As sociedades do Primeiro Mundo Rico devem deixar de crescer para que as sociedades do Último

Mundo Pobre alcancem níveis de vida apropriados. Esta redistribuição intragerencial deve estar

acompanhada pela supressão, ou pela sua redução mais imediata e ampla possível, dos processos de

produção e consumo que tenham efeitos irreversíveis através do tempo.

13 SOCIOLOGIA NO BRASIL

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Page 98: Apostila Sociologia

Introdução

É o desenvolvimento do pensamento sociológico como resultado de um longo processo que

teve como suporte as condições sócio-históricas do capitalismo na Europa, a partir do Renascimento.

Esse processo culmina com a elaboração científica do pensamento social, no século XIX, quando se

dá sua plena autonomia em relação à filosofia social e quando se realiza a concepção de objetos,

conceitos e métodos próprios de análise.

Na América Latina, e em particular no Brasil, o processo de formação, organização e

sistematização do pensamento sociológico obedeceu também as condições de desenvolvimento do

capitalismo e à dinâmica própria de inserção do país na ordem capitalista mundial. Reflete, por tanto,

a situação colonial, a herança da cultura jesuítica e o lento processo de formação do Estado nacional.

Desse modo, faremos um breve retrospecto da formação cultural e intelectual do Brasil,

procurando salientar o processo de desenvolvimento das idéias sociais a partir da emergência de

situações históricas concretas. O pensamento sociológico refletiu as relações coloniais com a Europa

e o desenvolvimento depende do capitalismo, além da lenta e complexa formação da consciência

nacional.

A cultura colonial

Desde a colonização, a cultura européia que aqui se estabeleceu foi introduzida pelas ordens

religiosas, em particular os jesuítas, que exerceram durante três séculos o monopólio sobre a

educação, o pensamento culto e a produção artística que aqui se desenvolveram. Imbuídos do espírito

de catequese contra-reformista, os jesuítas trouxeram uma filosofia universalista e escolástica.

Promoveram o tupi à condição de “língua geral”, popular, ao lado do latim e do português.

Introduziram um sistema misto de exploração do trabalho indígena que, combinado com o ensino

religioso, aniquilou aos poucos a cultura nativa. Assim, a cultura religiosa foi um importante

instrumento de colonização.

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Page 99: Apostila Sociologia

A administração, por um lado, e a cultura, por outro, tratavam de subordinar a colônia aos

interesses de Portugal e da Igreja. Implantou-se uma cultura erudita e religiosa, uma forma de pensar

baseada na retórica e em princípios universalizantes e de pouco pragmatismo. Seus eleitos foram

aniquilar a cultura indígena, submeter as populações escravas e distinguir drasticamente as camadas

cultas – que se dedicavam ao saber – daquelas que realizavam o trabalho braçal. Esse caráter de

distinção social e de alienação em relação à necessidade de constituir um pensar que refletisse a

sociedade como um todo marcou profundamente as atividades intelectuais que aqui estabeleceram.

Durante séculos, reprimida por diferentes circunstâncias, a cultura no Brasil manteve seu caráter

ilustrado, de distinção social e dominação.

A cultura e as classes intermediárias no século XVIII

No século XVIII, a mineração trouxe algumas transformações sociais. As Minas gerais foram

palco de um surto de urbanização, de atividades ligadas ao comércio e à exportação, alterando a

sociedade colonial até então dividida em dois grandes grupos: donos da terra e administradores, de

um lado, e escravos de outro. Surgiram novas ocupações: comerciantes, artífices, criadores de

animais, funcionários da administração que controlavam a extração de minérios e sua exportação, e

outras.

Ao contrário do período açucareiro, o da mineração trouxe uma surpreendente novidade: a

população livre era mais nunerosa do que a escrava. Essa camada intermediária livre e sem

propriedades, que precede o surgimento da burguesia propriamente dita, torna-se consumidora da

erudição da cultura européia, em especial da francesa, numa tentativa de se distinguir tanto do

escravo inculto como da elite colonial conservadora. Para o desenvolvimento desse saber, contou

com o ensino praticado pelas ordens religiosas estabelecidas em Minas gerais, bastante progressistas

para a época.

O seminário de Mariana, em Minas Gerais, fundado em 1750, formou letrados entre padres,

funcionários civis, militares e comerciantes. Nas artes plásticas já se notaram manifestações

nacionais, por meio de um barroco original e uma música de técnica surpreendente. No campo

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Page 100: Apostila Sociologia

científico, entretanto, a produção era mínima, com apenas alguns religiosos dedicados à geografia e a

mineralogia. Predominava ainda o saber erudito, voltado para os estudos jurídicos.

A cultura da corte e o século XIX

Com a transferência da corte joanina para o Brasil, em 1808, é introduzida na colônia a

cultura portuguesa da época, resultante das influências do humanismo neoclassicista francês e da

produção cultural da Universidade de Coimbra. A criação da academia de Belas-Artes, a fundação da

imprensa, o lançamento do primeiro jornal, a organização da primeira biblioteca e dos primeiros

cursos superiores romperam em parte com a cultura escolástica e literária anterior. Introduziu-se o

instrumental prático destinado à formação e viabilização do aparelho administrativo do império.

A cultura dessa época destinava-se a descrever a colônia por meio de estudos naturalistas, que

recebiam o nome genérico de história natural, e a recrutar, naquelas classes intermediárias a que nos

referimos, intelectuais dispostos a servir à corte e às classes dominantes. Apesar de revoltada mais à

praticidade, continuava sendo uma cultura alienada, ditada pelas formas européias, cujo objetivo era

organizar o saber descritivo, funcional e ostentatório, além de garantir o domínio do poder imperial.

O diploma concorria em importância com o título de propriedade da terra, formando um grupo de

letrados portadores de um conhecimento jurídico e descritivo, sem qualquer conteúdo crítico.

Tratava-se de uma cultura filosófica e humanística, exercida por jornalistas, professores e

funcionários públicos

dependentes da corte e dos proprietários da terra.

No século XIX, o diploma competia em importância com o título de nobreza e de propriedade

da terra. Esse distanciamento da classe culta em relação às condições da grande maioria da

população criava um hiato tão grande que, mesmo quando o exercício do saber levava à rebelião,

como na Conjuração Mineira e na Revolução Pernambucana de 1817, redundava numa contradição:

uma atividade intelectual crítica, de inspiração liberal, e exercida por pessoas cuja sobrevivência

dependia da classe dominante, em uma sociedade ainda colonial e escravocrata.

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Page 101: Apostila Sociologia

É importante ressaltar que, apesar dos movimentos intelectuais e literários que tratavam de

questões políticas e sociais do Brasil, a terra e a nação surgiram como objeto, como tema, nunca

como pensamento crítico desenvolvido a partir das condições próprias da nação. A forma, assim

como a linguagem, eram estrangeiras, só o motivo era nacional. Esta dicotomia entre a realidade

vivida e o conhecimento produzido e consumido pela elite caracterizava uma nova forma de

alienação, responsável pelo tardio desenvolvimento da ciência no Brasil.

Embora a imprensa se desenvolvesse, com a fundação do Diário de Pernambuco, no Recife,

do Correio Paulistano, em São Paulo, e do Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, e ainda que o

surgimento do Romantismo tenha estabelecido o hábito da leitura com valores como José de Alencar

e Marfins Pena, prevalece o caráter ostentatório de uma cultura de elite.

Após 1870, sob pressão do que ocorria na Europa, significativas mudanças interrompem na

sociedade brasileira. O crescimento populacional é considerável, a produção cafeeira se expande, são

implantadas as primeiras ferrovias, aumenta a pressão das camadas médias urbanas por maior

participação política. Ciclos econômicos decadentes provocaram a emergência do pensamento

crítico. Essas transformações se refletem na criação literária e na crítica social com as obras de

Aluisio Azevedo, no Maranhão, Adolfo Caminha, no Ceará, Tobias Barreto, em Pernambuco,

Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Devem-se lembrar ainda Machado de Assis e

Castro Alves, escritores e poetas. Sílvio Romero – desenvolvendo a crítica literária – e Euclides da

Cunha – traçando em Os Sertões uma elaborada análise da rebelião camponesa de Canudos,

explicitando o conflito de uma sociedade dividida em dois mundos aparentemente irreconciliáveis: o

das cidades litorâneas, receptivas à influência externa, e o do interior, agrário e tradicional.

Ao lado disso, também se delineia um lento desenvolvimento científico. Em 1874, surge a

Escola Politécnica de Ouro Preto e, em 1893, a Escola de Engenharia de São Paulo. Só no início

deste século funda-se o Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, que impulsionará a criação de

outras instituições de pesquisa científica, como o Instituto Biológico e o Instituto Butantã, em São

Paulo, o Instituto Agronômico, em Campinas, o de Patologia Experimental, em Belém e o Instituto

Borges de Medeiros, em Pelotas.

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Page 102: Apostila Sociologia

O advento da Burguesia

O desenvolvimento das atividades comerciais e de exportação e a expansão capitalista do

início do século, com a formação da burguesia nacional, revolucionaram o modo de pensar. A nova

classe social necessitava de um saber mais pragmático, menos vinculado a uma estrutura social

herdada da colonização, capaz de transformar a antiga colônia numa nação capitalista. Além do

combate às oligarquias agrárias era necessário instruir e emancipar as camadas populares, de maneira

a desenvolver necessidades e atitudes políticas, além de novas alianças ideológicas. Os interesses que

emergiam deveriam estar expressos na cultura da época.

A partir de então, verifica-se uma tentativa de ruptura com a herança cultural do passado:

procura-se combater o analfabetismo, homogeneizar os valores e o discurso, criar um sentimen to de

patriotismo que levasse a mudanças reais na estrutura social. A modernização do país passava a ser

importante. Nesse sentido desenvolviam-se inúmeras campanhas, como a abolicionista, do final do

século XIX.

A Primeira Guerra Mun dial e a crise que a sucedeu fizeram crescer o poder econômico e

político da burguesia nacional. Foi a autora do nacionalismo. Grandes jornais brasileiros, como o

Estado de S. Paulo e o Diário Vocacional, eram porta-vozes dessa classe que procurava modernizar o

país e reunir as diferentes regiões sob um ideário comum. Esse sentimen to se manifestava

primeiramente na forma de idéias apenas protecionistas, que propunham defender o produto nacional

com taxas alfandegárias que protegessem a indústria a indústria brasileira. Só posteriormente, sob

impacto do crescente interesse do capital estrangeiro em investir no país, o nacionalismo vai se

revestir também de idéias que defendiam

medidas mais radicais.

Além dos aspectos econômicos, o nacionalismo expressava o desejo de se conhecer realmente

a nação e de conclamar as diversas classes sociais a exercer seu papel transformador da realidade.

Procurava repudiar todo traço de colonialismo, de atraso, de importação cultural, propondo até

mesmo a substituição do português clássico por uma língua brasileira, eminentemente nacional. Esse

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Page 103: Apostila Sociologia

movimento revolucionário da sociedade e da cultura reorientou o pensamento social, traduzido nos

estudos históricos, na crítica literária ou nas análises já de cunho sociológico.

São dessa época, das primeiras décadas do século XX, o movimento modernista , nas artes e

na literatura, e a fundação do Partido Comunista. Além disso, é necessário mencionar o movimento

tenentista e Coluna Prestes, que, apesar de suas grandes diferenças, lutavam pela moralização e pela

modernização do sistema político brasileiro, propondo o fim da política do café-com-leite e de seus

vícios eleitoreiros. Essas idéias encontraram ampla repercussão nas camadas médias da população.

Embora possamos dizer que, desde o final do século XIX, existiu no Brasil uma forma de

pensamento sociológico, desenvolvida por Euclides da Cunha, entre outros, a sociologia, tal como é

abordada neste livro, como atividade autônoma voltada para o conhecimento sistemático e metódico

da sociedade, só irrompe neste século, na década de 30, com a Fundação da Universidade de São

Paulo e o conseqüente incremento da produção científica. Esse salto só acontece na década de 30,

porque foi nessa época que o mundo liberal entrou em crise profunda e as relações econômicas

internacionais mostraram

suas contradições mais agudas. A repercussão mundial da crise norte-americana de 1929 tornou

impossível manter o ufanismo e o otimismo que imperavam na Europa e no Brasil desde a Segunda

Revolução Industrial, sustentado pela crença absoluta no poder do progresso como caminho natural

das sociedades. E no momento da crise que a crítica se desenvolve, sistematizando-se de maneira

científica na nascente sociológica.

A geração de 30

Podemos dizer que a década de 30 se norteou por algumas preocupações gerais entre a

intelectualidade. Em primeiro lugar, o interesse pela descoberta do Brasil verdadeiro, em oposição ao

Brasil colonizado e estudado sob a visão etnocêntrica da Europa. Em segundo lugar, o

desenvolvimento do nacionalismo, como sentimento capaz de unir as diversas camadas sociais em

torno de questões internas à nação e como inspiração para as políticas econômica e administrativa de

proteção ao comércio e à indústria nacional. A valorização do cientificismo – como principal forma

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Page 104: Apostila Sociologia

de conhecer e explicar a nação – e um grande anseio por modernizar a estrutura social brasileira

estavam também presentes nesses estudos. É dessa época a fundação da Escola Livre de Sociologia e

Política, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em São Paulo, e da Ação Integralista Brasileira

(1932), bem como do movimento regionalista promovido por Gilberto Freyre, todos tentando

concretizar, a seu modo, as aspirações intelectuais do momento.

Despontam nesse período os intelectuais da chamada geração de 30, cujos expoentes foram

Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda de Azevedo. Caio Prado Júnior

iniciou seus estudos a partir de uma historiografia de caráter social, em que procurava formalizar o

método marxista para a análise da realidade brasileira. Sua primeira obra importante, Evolução

Política do Brasil, editada em 1933, procurava definir a situação colonial brasileira a partir das

relações capitalistas e seus mecanismos comerciais, desde a expansão marítima européia.

Compreendeu o Brasil do século XX a partir de sua situação colonial originária. Foi o fundador da

Revista Brasiliense, que dirigiu durante muitos anos.

Sérgio Buarque de Hollanda iniciou sua produção intelectual voltado para a crítica literária e

para a crítica cultural. Publicou em 1936 seu primeiro livro, Raízes do Brasil, ensaio sociológico de

crítica à formação oligárquica e autoritária das elites culturais e políticas brasileiras. Foi um dos

primeiros autores brasileiros a utilizar o instrumental tipológico de Weber na análise histórica e

social. Em Visão do paraíso: motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (1959), o

autor conseguiu denunciar pela primeira vez a visão esterotipada que os europeus tinham do Brasil.

Fernando de Azevedo era o representante típico daquela intelectualidade ao mesmo tempo

aristocrática e humanista, que unia ensaios liberais e moderadamente socialistas a um estilo de vida

senhoral, marcado por origem socioeconômica ilustre e abastada. Ao lado de Anísio Teixeira e

outros, destacou-se nas campanhas pela laicização do ensino e pela escola pública. Desempenhou

importante papel na criação da Universidade de São Paulo e foi um dos primeiros mestres brasileiros

de sociologia naquela Instituição. Sua principal obra é A Cultura Brasileira (1943), na qual retoma o

tema da unidade nacional fundada nas diferenças étnicas, regionais e culturais.

Gilberto Freire foi em Pernambuco, o representante do pensamento dessa época. Sua

formação intelectual está ligada a uma pós-graduação em ciências políticas, jurídicas e sociais, na

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Page 105: Apostila Sociologia

Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, onde esteve sob a influência de Fraz Boas. Sua tese

de mestrado. A vida social no Brasil no século XIX, redundou em obra de grande repercussão, Casa-

grande & senzala, publicada em 1933. Deu continuidade a essa obra em dois outros livros, Sobrados

e mocambos e Ordem e progresso. Entendia o nacionalismo como a fusão das raças, regiões e

culturas e grupos sociais e possibilitada pelas características do colonialismo no Brasil. Destacava,

em especial, o papel do negro e do mestiço na adaptação da cultura européia aos trópicos e na

formação da identidade cultural brasileira. Freyre acreditava ainda que a sociologia e a antropologia

podiam auxiliar a administração do país,

possibilitando a articulação sociocultural.

Fundação da Escola Livre de Sociologia e Política e da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras

Na década de 30, como dissemos, grandes mudanças ocorreram no Brasil: a crise da política

defendida pelas oligarquias agrárias, o crescimento da burguesia, o incremento da industrialização e

a centralização do poder com o golpe de 1937, que instaurou o Estado Novo no país.

Houve, além dessas mudanças na estrutura econômica, política e social, transformações

importantes na área do conhecimento, como o surgimento de diversas profissões impulsionando pela

redefinição da divisão social do trabalho. Os antigos bacharéis de direito, engenharia e medicina,

com conhecimentos gerais de ciências sociais e humanas, foram encaminhados para o funcionalismo

público em decorrência da criação de inúmeros ministérios e institutos.

A intelectualidade paulista, de idéias liberais e democráticas, de origem aristocrática e visão

cosmopolita da sociedade, reagiu a essa absorção dos bacharéis pelo Estado, bem como à ascensão

das idéias autoritárias de direita. Essa reação está estreitamente ligada à fundação da escola Livre de

Sociologia e Política (1933), dedicada a estudos orientados pela sociologia norte-americana, e da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1934), de influência francesa, fundada por Armando de

Salles Oliveira.

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Page 106: Apostila Sociologia

Procurou-se assim, iniciar o estudo sistemático da sociologia, opondo-se ao caráter genérico

de “humildades” que adquiria na formação de engenheiros médicos e advogados, bem como

diferenciar esse conhecimento, por seu cientificismo e pragmatismo daquele apropriado pelo Estado.

Inúmeros professores foram convidados a vir do exterior para formar profissionais das ciências

sociais. Para a Escola Livre de Sociologia Pública de São Paulo vieram Donald Pierson e Radcliffe-

Brow e, para a USP, a chamada “Missão Francesa”; composta por Lévi-Strauss, Georges Gurvich,

Roger Bastide, Paul Arbousse Bastide, Fernad Braudel.

A importância desses acontecimentos foi enorme para a formação de um grupo de sociólogos

que passará a desenvolver suas pesquisas já no fim da década de 40, como Florestan Fernandes,

Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antonio Candido de Mello e Souza, Gilda de Mello e Souza, Ruy

Galvão de Andrada Coelho e outros.

O integralismo e a intelectualidade de direita

O movimento intelectual da década de 30 não fez surgir, apenas pensadores de influência

marxista ou liberal, mas também os da direita, ideólogos do integralismo. O principal representante e

o fundador desta corrente foi Plínio Salgado, que via com desconfiança não só o movimento

modernizador da sociedade como também o liberalismo e o marxismo. Suas idéias conservadoras

exaltavam a ordem, a disciplina e a tradição, bem como o autoritarismo do Estado, visto como

síntese das aspirações nacionais. Publicou o Manifesto de outubro, em 1932, e participou da Ação

Integralista Brasileira. Acreditava que o Estado seria o meio de compatibilizar os aspectos

dicotômicos da realidade brasileira, que via como sendo estritamente dualista. Publicou o

Integralismo perante a nação, O que é Integralismo, e A Aliança do Sim e do Não.

Outro movimento cultural conservador foi encabeçado pela Igreja Católica, o chamado

Renascimento Católico, e teve como principais porta-vozes Alceu Amoroso Lima e Jackson de

Figueiredo, e como principal instituição o Centro Dom Vidal (1922), que procurava, por intermédio

de intelectuais leigos, defender os interesses reacionários da Igreja, compatibilizando-os com o

pensamento da oligarquia agrária. Amoroso Lima se destacará, mais tarde, como oponente dessas

tendências mais conservadoras do catolicismo brasileiro.

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Page 107: Apostila Sociologia

A década de 40

A Segunda Guerra Mundial foi um divisor de águas na história da civilização ocidental,

responsável pela emergência e pela consagração aos EUA e da então URSS como potências

mundiais. Ao término da guerra, os acordos de Yalta e Postdam dividiram o mundo em áreas de

influência soviética e norte-americana. Esses acordos definiram as regiões do planeta que ficariam

sob o controle político e ideológico dos EUA ou da URSS, determinando a divisão do mundo em

dois blocos político-econômicos rivais e inconciliáveis. Ao tempo se deu a derrocada de formas

autoritárias de poder que se espalhavam no modelo nazi-fascista. Datam dessa época, também, o

início do processo de descolonização da África e da Ásia e a emergência de novas nações que

procuravam desenvolver formas nacionalistas de ação e pensamento. Um cenário mundial

transformador se descortinava nas mais diversas nações e em especial

naquelas que integravam o chamado Terceiro Mundo.

O pensamento sociológico do período pós-Estado Novo reflete todas essas questões,

colocadas às novas e às antigas nações por uma outra ordem social. A industrial, ainda que

incipiente, transformava radicalmente as relações sociais entre classes, entre setores e entre regiões.

Processava-se uma aceleração no êxodo rural, com grandes contingentes populacionais abandonando

o campo em direção ás cidades. O trabalho agrícola perdia sua importância em relação ao industrial,

enquanto as regiões agrícolas tornavam-se cada vez dependentes do Sudeste industrializado.

Inúmeros conflitos surgiam nesse processo de mudança, e o pensamento sociológico

procurava dar conta das transformações. Abordava-se o conflito de raças e de etnias, pensava-se já

nas condições do imigrante e do migrante nacional. Buscava-se um nacionalismo capaz de dar conta

de diferenças que apareciam enfim à luz do dia. Integração e mudança eram temas recorrentes na

sociologia do pós-guerra. Havia em toda produção sociológica do período uma grande preocupação

com despertar da consciência e com o resgate das raízes, das origens e das tradições do pais, ameaças

de se perderem no confronto com o Brasil industrial.

107

Page 108: Apostila Sociologia

O país adquiria a consciência de sua complexidade, ao mesmo tempo em que se estimulava a

descoberto da própria especificidade. O declínio da Europa, os conflitos de uma geração perdida, o

conhecimento de atrocidades cometidas na guerra, tudo favorecia a superação de uma cultura que

buscara sempre se identificar com as metrópoles econômicas e culturais européias. Assim como as

artes, a ciência se debruçava sobre o Brasil, valorizando seus aspectos mais específicos e

minoritários.

Outras questões ocupavam também o pensamento dos sociólogos. Era a busca da

identificação, nesse processo de mudança, de uma legitima revolução burguesa, nos moldes da que

acorrera na Europa entre os séculos XVIII e XIX. Acreditavam nossos estudiosos que o capitalismo

industrial reproduziria no Brasil os mesmos fenômenos ocorridos na Europa, fazendo emergir uma

estrutura de classes e instituições semelhantes àquelas identificadas pelos estudiosos europeus em

suas análises de Revolução Burguesa de caráter liberal ocorrida na França e na Inglaterra. As teorias

sobre a dependência e o imperialismo, entretanto, permitiam que se compreendesse que o capitalismo

no Terceiro Mundo produz uma realidade diversa, resultante de sua situação de dependência e das

desiguais relações entre nações

existentes no capitalismo internacional.

O pensamento sociológico, como forma de pensar a não brasileira e desenvolver uma

consciência critica sobre nossa realidade, adquiriu nessa década uma importância cada vez maior. As

análises sobre desigualdades sociais, etnias, políticas indigenistas, regionalismos, tradições,

transições e mudança extrapolam os limites da disciplina e foram incorporados pela geografia, pela

história e até pela filosofia.

Ao falarmos sobre os anos 40, não podemos esquecer ainda os novos “cronistas viajantes”,

como os chama Octavio lanni, referindo-se àqueles intelectuais estrangeiros que passaram a se

interessar pela realidade brasileira. Esses brasilianistas que se afastaram da guerra na Europa,

procuravam no Brasil e em outros países da América, à maneira da Missão Artística Francesa do

início do século XIX, estruturas sociais diferentes das existentes nos países europeus; sociedades

que, por sua diversidade, poderiam realizar uma trajetória diversa daquelas já conhecidas.

108

Page 109: Apostila Sociologia

Já nesse período percebemos a preocupação dos nossos sociólogos com a realidade latino-

americana. Esse interesse se manifesta no desenvolvimento de estudos sobre as semelhanças e as

diferenças existente entre os conflitos e as sociedades latino-americanas. Não podemos deixar de

fazer menção especial á produção e ao trabalho de pesquisa de Emilio Willems, autor de Assimilação

e populações marginais no Brasil: estudo sociológico dos imigrantes germânicos e seus

descendentes; Cunha: tradição e transição de uma comunidade rural do Brasil e Dicionário de

sociologia. Foi ele também o fundador, com Romano Barreto, da revista Sociologia, em 1939.

A década de 50

A década de 50 é marcada por dois importantes pensadores, responsáveis pela formação de

duas grandes correntes do pensamento social brasileiro, cujas repercussões podem ser observadas até

hoje: Florestan Fernandes e Celso Furtado. Florestan Fernandes foi discípulo de Fernando de

Azevedo e Roger Bastide. Com este último desenvolveu uma importante pesquisa sobre negros e a

questão racial no Brasil. De formação estritamente nacional e “uspiana”, tendo viajado para o

exterior somente após sua aposentadoria compulsória, foi um dos grandes sistematizadores do

pensamento sociológico brasileiro. Florestan unia a teoria á prática, sendo o que ele próprio chamava

de “sociólogo militante”. Sua obra, nesse sentido, foi influenciada pelos clássicos da disciplina,

sobretudo por Marx. Essa busca de síntese entre a formalização teórica precisa – por meio do recurso

aos clássicos – e a ação prática transformadora marcou toda a sua vida.

Segundo Florestan, a sociedade podia ser estudada pelos padrões ou estruturas, isto é, os

fundamentos da organização social e pelos dilemas (conjunturas hostóricas), que eram as

contradições geradas pela dinâmica interna da estrutura. Dai sua abordagem ser muitas vezes

denominada “histórico-cultural”. Suas grandes preocupações, no campo da sociologia, além da

reflexão teórica. Foram o estudo das relações sociais e da estrutura de classe da sociedade brasileira,

o capitalismo depende e o papel do intelectual. Sua obra é imensa, destacando-se: A integração do

negro na sociedade de classes; Fundamentos empíricos da explicação sociológica; Sociedade de

109

Page 110: Apostila Sociologia

classes e subdesenvolvimento; A sociologia numa era de revolução social; e A revolução burguesa

no Brasil.

Celso Furtado foi o grande inovador do pensamento econômico, não só no Brasil como em

toda a América Latina. É apontado como o fundador da economia política brasileira. Seus trabalhos

se desenvolveram principalmente junto á Cepal (Comissão Econômica para a América Latina),

criando uma escola de pensamento econômico conhecida por “cepalina” Até Celso Furtado, o

pensamento econômico no Brasil valia-se apenas de esquemas interpretativos abstratos, como a lei

da oferta e da procura e o estabelecimento de preços. Sempre defendendo as classes dominantes, esse

pensamento serviria para justificar medidas tomadas pelo estado no interesse daquelas classes, como

a queima de café nos anos de 1932 e 1933, durante o governo de Getúlio Vargas.

Celso Furtado propõe uma interpretação histórica da realidade econômica e, em, especial, do

subdesenvolvimento, entendidos como fruto de relações internacionais. Foi defensor da idéia de que

o subdesenvolvimento não correspondia a uma etapa histórica das sociedades rumo ao capitalismo,

mas se tratava de uma formação econômica gerada pelo próprio capitalismo internacional.

Estabeleceu relações entre as diferentes formas de subdesenvolvimento, analisando situações

extremas como a de países onde já havia um considerável desenvolvimento industrial, como é o caso

do Brasil, do México, do Chile, da Argentina, do Uruguai e da Colômbia e outros países cujo estágio

agrário não fora superado por formas mais modernas de exploração econômica, como a América

Central e o Caribe. Participou ativamente da administração econômica do governo João Goulart,

tendo sido responsável pelas diretrizes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE,

hoje BNDES), e da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste).

A principal critica que se faz a seu pensamento é ter servido de ideologia para a burguesia

nacional, em especial durante a política desenvolvimentista adotada pelo governo de Juscelino

Kubitschek. Ao identificar os interesses da economia nacional em oposição ao capitalismo

interncional, o pensamento de Celso Furtado passou a ser visto como defensor dos interesses da

sociedade brasileira como um todo. Seus estudos não levavam em conta as contradições internas que

surgiram com o avanço da burguesia e a adoção de uma política de desenvolvimento nacionalista.

Até hoje, entretanto, as questões levantadas por ele continuam norteando o pensamento econômico

110

Page 111: Apostila Sociologia

brasileiro. Dirigiu a elaboração do Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, em 1962.

Escreveu, entre outras obras, Desenvolvimento e subdesenvolvimento; Um projeto para o Brasil;

Formação econômica do

Brasil; e A pré-revolução brasileira.

Darcy Ribeiro e a questão indígena

Da mesma década de 50, é preciso mencionar, no panorama da cultura brasileira e do

estabelecimento das ciências sociais, a participação de Darcy Ribeiro. Romancista, etnólogo e

político, Darcy Ribeiro superou sua formação acadêmica funcionalista e até mesmo o humanismo de

Rondon para, frente ao Serviço de Proteção ao Índio, depois Funai, denunciar as relações interétnicas

brasileiras, que tinham como resultado o aniquilamento dessa cultura e dessa etnia.

Em seus estudos, a questão indígena relacionava-se a uma ampla análise do desenvolvimento

industrial e do processo civilizatório a partir dos centros hegemônicos, quer dentro do próprio pais,

quer a partir das relações internacionais. Sua atuação foi sempre a de um antropólogo militante que,

seguindo a linha marxista, condenou toda ortodoxia, buscou as raízes histó ricas da situação das

populações indígenas e procurou saídas estratégicas. Exilado após o golpe militar de 1964, regressou

ao Brasil em

1975 e se encaminhou para a vida política.

Como os demais intelectuais de sua época, procurou unir a teoria à prática e aceitar modelos

científicos, desde que adaptados às realidade brasileira, por ele considerada única e particular. Para

essa postura desenvolveu a antropologia brasileira longe dos modelos dos brasilianistas e folcloristas,

evitando perder-se em preocupações etnográficas de caráter predominantemente descritivos.

Publicou, entre outras

obras, A utopia selvagem; Os índios e a civilização; O processo civilizatório; e, mais recentemente.

O povo brasileiro.

O golpe de 1964

111

Page 112: Apostila Sociologia

No período que vai dos anos 40 a meados dos anos 60, as ciências sociais de maneira geral

foram responsáveis pela elaboração de teorias que denunciavam as desigualdades sociais, as

relações de domínio e opressão existentes entre regiões, classes e países. Foram responsáveis

também pelo desenvolvimento de um pensamento crítico e revelador dos conflitos sociais. A

contundência das denúncias feitas pelos mais variados estudos sociológicos decorria não só da

herança do pensamento francês, rico em análises críticas incisivas, como da velocidade com que as

mudanças trazidas pela industrialização e pela “modernização” das instituições nacionais

repercutiam no país.

Assim, os mais diversos estudos buscavam a conscientização da população e a luta pelo

desenvolvimento de formas mais democráticas e igualitárias de vida social, desde os estudos

voltados para a ação sindical até aqueles que procuravam introduzir mudanças na educação.

Desenvolvida principalmente depois da ditadura do Estado Novo, boa parte da sociologia refletia a

opção por uma ideologia revolucionária e socialista, tendência que se sedimentava à medida que se

faziam mais fortes os laços de dependência do pais em relação ao imperialismo norte-americano. Do

mesmo modo, desenvolviam-se também os meios de comunicação e a industria editorial, permitindo

que as críticas de cientistas e intelectuais

ultrapassem os limites dos muros universitários e acadêmicos.

Em razão de tudo isso, o golpe militar de 1964 implantando nova ditadura no Brasil e tendo

como ideário o desenvolvimento capitalista, o apoio ao capitalismo norte-americano e a repressão às

tentativas de transformação da ordem estabelecida – teve duras repercussões junto ao

desenvolvimento das ciências sociais e à estruturação desse cursos universitários no país. O

confronto entre a universidade, os estudantes e o regime militar chegou a extremos em 1968, com

passeatas, embates físicos, manifestações, ocupações de prédios, espancamentos, prisões e mortes.

Com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, que implantou legalmente

a ditadura no País, os principais nomes da sociologia no Brasil foram sumariamente aposentados e

impedidos de lecionar. Muitos foram exilados, outros se exilaram, passando a publicar seus trabalhos

no exterior.

112

Page 113: Apostila Sociologia

As ciências sociais pós-64

Durante o regime militar, alguns intelectuais afastados de suas cátedras e de suas pesquisas

continuaram trabalhando no exterior. Outros formaram núcleos de pesquisa independentes, como o

Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Além de São Paulo, também Brasília, Rio de

Janeiro e Belo Horizonte criaram núcleos importantes de pesquisa e, mesmo dentro da universidade,

agora expurgada, formaram´-se diversos centros de pesquisa e de estudo de áreas específicas. Cada

um deles desenvolveu interesses e cursos, formas próprias de obter verbas e de publicar trabalhos

práticos e teóricos. Na USP, os mais conhecidos foram o CERU (Centro de Estudos Rurais e

Urbanos), o CESA (Centro de estudos de Sociologia da Arte) e o CER (Centro de Estudos da

Religião).

Nos anos 80, com a abertura política, surgem outros partidos e antigas alianças se produzem

sob nova roupagem. Muitos cientistas sociais decidem deixar a cátedra para ingressar na política. O

PT (Partido dos Trabalhadores) foi o que mais se beneficiou com esse nova atuação de nossos

cientistas. Florestan Fernandes, Antonio Candido e Mello e Souza e Francisco Weffort foram alguns

nomes que engrossaram as fileiras da luta política do PT. Tratava-se de uma saudável integração

entre teoria social e prática política. O antropólogo Darcy Ribeiro seguiu pelo mesmo caminho

filiando-se ao PDT (Partido Democrático Trabalhista), legenda que reivindicava o nacionalismo e o

populismo do antigo líder Getúlio

Vargas.

Outros nomes importantes da sociologia – como o de Fernando Henrique Cardoso –

estiveram presentes na fundação do PSDB (Partido Social-Democrata Brasileiro). Esse partido

emergiu de um movimento de dissidência do antigo PMDB (Partido do Movimento Democrático

Brasileiro), que se opunha ao regime militar, ainda na época da ditadura e das eleições indiretas.

Nessa época, o governo era representado pela Arena, num fechado esquema bipartidário.

O PSDB, adotando uma linha de centro-esquerda, teve papel importante no impeachment do

presidente Fernando Collor de Melo e acabou elegendo, nos anos 90, para a Presidência da

113

Page 114: Apostila Sociologia

República, o primeiro sociólogo a ocupar esse cargo – Fernando Henrique Cardoso, por outro lado se

assistirmos nos anos 80 a esse enganjamento dos cientistas sociais na política formal e institucional,

percebemos também uma progressiva diversificação das ciências sociais, e em especial da

sociologia. Multiplicaram-se os campos de estudo, fazendo surgir análises sobre a condição

feminina, de menores, das favelas, das artes, da violência urbana e rural, entre outras.

E, enquanto outras áreas das ciências humanas adquiriam grande prestígio, como a economia,

com a elaboração de modelos integrados de análise da sociedade e de formas de intervenção, a

sociologia se fragmentava em áreas autônomas e isoladas. Nessa mudança passou a enfocar setores

da vida social entes restritos ao pensamento antropológico, fazendo com que se perdesse a nitidez

dos limites que separam essas disciplinas. Aproximando-se das pesquisas em arte e comunicação,

desenvolveu estudos no campo da linguagem e do imaginário. Ganhou, sem dúvida nenhuma, em

riqueza, em sutileza dos métodos analíticos e na fecunda interdisciplinaridade, mas perdeu em

complexidade, no fortalecimento da disciplina como processo de entendimento da realidade e no

alcance de suas teorias.

Entre 1989 e 1991, a derrubada do muro de Berlim e a desagregação da União Soviética –

contrapontos históricos do imperialismo norte-americano e referência constante das teorias de

dependência e subdesenvolvimento – resultam num duro golpe no desenvolvimento intimamente

identificados com a experiência socialista. A sociologia se torna cada vez mais interdisciplinar e

plural, com a multiplicação infindável de seus objetos de estudos, no que é auxiliada pela própria

realidade, cada vez mais diversificada, O jargão sociológico começa a se tornar de domínio público

por meio da imprensa, que baseia quase todas as suas análises e seus editoriais no modelo critico das

ciências sociais. Os sociólogos buscam redefinir os conceitos de dependências e divisão internacional

do trabalho num mundo que se globaliza e no qual a opção pelo capitalismo liberal aparece, ao

menos momentaneamente, triunfante.

Agudas transformações na sociologia no Brasil e no mundo se avistam no emergir do

terceiro milênio. Provavelmente tão complexas como aquelas que resultaram na formalização do

pensamento sociológico no final do século XIX e início do século XX e na sua autonomia em relação

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Page 115: Apostila Sociologia

à filosofia social e à cultura da ilustração, que nada mais eram que previlégio de classe de uma

aristocracia decadente.

14 SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Introdução

Terá havido no mundo alguma sociedade realmente igualitária na qual os homens

desfrutassem de maneira semelhante os bens e as oportunidade da vida? Parece que não. As

evidências históricas mostram que a cultura humana esteve sempre intimamente ligada, desde os seus

primórdios, à idéia de distinção e da discriminação entre grupos sociais. Mesmo as sociedades mais

homogêneas e simples existiam diferenças de sexo e idade atribuindo aos grupos assim

discriminados funções diferentes, certa parcela de poder, determinados direitos e deveres. A partir de

então, nas sociedades que foram se tornando mais complexas, os membros não tinham igual acesso a

certas vantagens como, por exemplo, o poder de decisão e a liberdade. O patriarcado existente nas

mais remotas civilizações, garantindo aos homens o poder sobre a família e seus bens, demonstra que

a igualdade e´, antes de mais nada, uma utopia, um ideal ainda não vivido pela humanidade. Por

outro lado, o processo histórico tem revelado como uma tendência marcante a diferenciação e a

crescente complexidade da sociedade. Da pequena diferenciação social existente nas sociedades

tribais as diversas civilizações foram passando por processos que as levaram a formar os mais

diferentes grupos, que começaram a se distinguir por etnia, nacionalidade, religião, profissão e, de

forma mais acentuada, por classe social.

A caminho das sociedades plurais, foram se formando inúmeros grupos, cada um com uma

função, um conjunto de direito, obrigações e possibilidades de ação social. O mundo contemporâneo

assiste ao resultado desse longo processo histórico de formação de uma civilização complexa e

diferenciada, na qual os diversos grupos procuram monopolizar seus privilégios e as possibilidade de

acesso á produção de bens e aos mecanismos de distribuição desses bens na sociedade.

Desigualdade e pobreza

115

Page 116: Apostila Sociologia

Se é verdade que as sociedades desde a Antiguidade apresentam diferentes formas de

discriminação e de distribuição de bens , por que a pobreza se torna tão pouco aceitável na sociedade

contemporânea? Por que a existência de parcelas da população á margem dos benefícios dos

desenvolvimento industrial a sem acesso a uma quantidade mínima de bens parece tão chocante

hoje? Por que a existência de parcelas da população á margem de benefícios do desenvolvimento

industrial a sem acesso a uma quantidade mínima de bens parece tão chocante hoje?

A razão para essa nova postura diante de populações excluídas ou carentes se deve

inicialmente ao fato de que na sociedade moderna, nos últimos séculos, sedimentou-se a idéia de que

fazemos parte de uma totalidade que é a humanidade. Ao contrário dos povos antigos, que tinham

muito clara a noção de que a sociedade se diferenciava por grupos inconciliáveis – como as castas

indianas, por exemplo -, o mundo ocidental desenvolveu consciência de construir uma humanidade à

qual pertencem todos os habitantes do planeta. Uma igualdade, sem dúvida nenhuma, originada no

universalismo católico, desenvolvida pelos princípios pelos princípios democráticos de organização

política e reforçada pela expansão mundial do sistema capitalista industrial.

Engendrada a idéia de humanidade como conceito capaz de conter em seus limites todas as

pessoas existentes no planeta, as desigualdades sociais se tornaram cada vez mais perceptíveis.

Defendido o princípio de que todos os homens têm os mesmos direitos e são iguais perante a lei, fica

cada vez mais difícil justificar as diferenças sociais. É por isso que, considerando que a pobreza

tenha sempre existido – pessoas, grupos ou populações que não têm acesso ao mínimo necessário

para a boa reprodução biológica e social -, esse fato hoje vai contra os princípios que acreditamos

deveriam nortear a sociedade humana. Se todos possuímos os mesmos direitos, como pode haver

grupos que não têm

acesso ao mínimo de bens produzidos pela sociedade?

É nesse sentido, de contradição em relação aos valores que defendemos em nossa forma de

organização social, que na sociedade moderna e contemporânea a desigualdade assume o caráter de

privilégio de alguns e de injustiças, para com outros. E essa nova consciência que torna a pobreza tão

incômoda.

116

Page 117: Apostila Sociologia

Pobreza e abundância

Outro aspecto da sociedade contemporânea que torna mais difícil aceitar a pobreza de certas

parcelas da população é o pleno desenvolvimento da indústria de massa, que põe em circulação na

sociedade uma quantidade de produtos nunca antes imaginada. Por sua quantidade, os bens

produzidos pela indústria de massa seriam capazes de manter e reproduzir toda a população do

planeta. Restaria ainda um excedente, garantem alguns economistas. Mas a diferenciação, a oposição

e a concorrência entre os grupos sociais acabam por criar mecanismos de apropriação e monopólio

dos bens econômicos e sociais, gerando crescente concentração de renda. E é em meio á sociedade

da abundância que a pobreza adquire um caráter contraditório e, até, paradoxal.

Agrava esse caráter contraditório e revelador da pobreza – como um dos impasses da

sociedade contemporânea – o caráter consumista da vida social. Ao lado da crescente pobreza, o

apelo ao consumo por meio das campanhas publicitárias veiculadas pelos meios de comunicação de

massa torna a distância social entre ricos e pobres ainda mais trágica e inaceitável.

Consumismo e abundância fazem parte desse ideário do bem-estar social interior do qual as

populações carentes não param de crescer. Os produtos inundam o mercado, milhares de similares

fazem concorrência cerrada em busca dos consumidores. Mercadorias que em pouco tempo se

tornam anacrônicas, ultrapassadas e obsoletas, devem ser substituídas por outras de formato, cor ou

programa

diferente e exigem consumidores com disponibilidade permanente de compra. E nessa sociedade que

a pobreza se torna cada vez mais contraditória e perturbadora.

Não podemos esquecer, também, que o capitalismo industrial pôs abaixo formas tradicionais

de identidade baseadas, por exemplo, na possa de bens duráveis – como a terra. Na sociedade

contemporânea, aberta e anônima, as pessoas se identificam com aquilo que possuem ou ostentam –

novos indicadores de poder e status, mais virtuais e menos concretos como, por exemplo, o domínio

de informações. A estigmatização dos grupos sociais pela quantidade de bens que manipulam e

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Page 118: Apostila Sociologia

ostentam tornou-se evidente, como apontam os estudos de Beudrillard e Guy- Dabord. E diante do

chamado consumo ostentatório que a pobreza se torna mais vergonhosa e condenável.

A pobreza relativa

Numa economia organizada e globalizada como a nossa, de maneira geral os índices

adquirem grande importância como elementos capazes de medir características presumidamente

presentes em diferentes agrupamentos sociais e populações. Desempenham, assim, papel relevante

no jogo das relações entre pessoas, grupos e países. Analfabetismo, dívida externa, renda per capita,

produto interno bruto são medidas de análise freqüentes para a classificação das regiões e nações.

Com esse recurso estatístico, a pobreza deixa de ser uma característica abstrata ou um conceito para

se tornar uma grandeza. Pessoas, grupos sociais e países passam a ser considerados pobres não só em

relação a si mesmos, às dificuldades em atingir seus objetivos, em satisfazer as próprias necessidades

e melhorar as condições de vida, como também em relação aos outros grupos ou países, com os quais

são permanentemente comparados.

A pobreza nunca pareceu tão complexa, nem tão difícil de ser aceita, uma vez que se tomou

pública, patente e estigmatizada. Por outro lado, se riqueza e pobreza sempre tiveram um caráter

relativo, enquanto variáveis em função das necessidades vitais e sociais de cada grupo em

determinado momento de sua história, no mundo contemporânea essa relatividade adquire outra

proporção. A pobreza passa a existir em uma sociedade também em função das necessidades

externas, engendradas por outros processos societários. Uma necessidade satisfeita por formas

tradicionais de produção pode rapidamente transformar-se em carência, tão logo cheguem

informações de novos bens e novos comportamentos criados no exterior.

O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e do marketing trabalha no sentido

de engendrar constantemente novas necessidades. Em conseqüência disso, por exemplo, encontramos

em favelas do Terceiro Mundo – onde não existe nem rede de esgoto – enormes antenas parabólicas

e aparelhos de videocassete. A pobreza, em uma sociedade mecanizada e informatizada, reverte

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Page 119: Apostila Sociologia

valores e prioridades e cria um permanente sentimento de insatisfação e inferioridade entre as

pessoas, grupos e nações.

Estado de carência múltipla

Numa sociedade complexa, em que a vida se reveste de inúmeras instâncias diferentes e na

qual, como já dissemos, existe a consciência de a espécie humana constituir uma totalidade, a

questão da pobreza se reveste de inúmeros aspectos. Recentemente John Fridmann e leonie

Sandercock, especialistas em planificação urbana, em artigo intitulado “Os desvalidos”, publicado

em maio de 1995 pelo O Correio da Unesco, identificaram três diferentes formas de pobreza, além da

clássica carência de bens materiais e de recursos á sobrevivência. A despossessão psicológica diz

respeito a um sentimento de autodesvalorização das populações pobres em relação às ricas, ou de um

pais pobre em relação a um pais rico. Outra forma de despossessão é a social, que se manifesta pela

impossibilidade de parcelas da população terem acesso aos mecanismos de êxito social, de atingirem

o mínimo de prestígio e manterem relações sociais estruturadas e permanentes.

A despossessão política é outro lado da pobreza contemporânea e diz respeito a incapacidade

de

certos grupos sociais terem qualquer participação efetiva na vida pública ou acesso aos mecanismos

de interferência e ação política. À medida que se amplia nossa concepção de vida social a questão da

pobreza torna-se aguda e complexa, envolvendo não só a aquisição de bens materiais mas também o

acesso a diversos privilégios sociais, cada vez mais essenciais.

A responsabilidade do Estado

Desde que se constitui na Idade Moderna, no século XV, o Estado, com o conhecemos hoje,

foi adquirindo sempre mais poder e desenvolvendo um caráter acentuadamente regulador da vida

social. Sendo o responsável pela política econômica nacional, pelos programas sociais, pelas relações

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Page 120: Apostila Sociologia

internas e externas, tornou-se o responsável pelas condições de vida dos seus cidadãos. Todos esses

aspectos resultaram de uma ampliação significativa de suas atribuições e funções.

O Estado, enquanto instituição representativa da sociedade como um todo, passou a ser

responsabilizado também pelo bem-estar social. Não sem certa razão, na medida em que é ele que

regula os mecanismos de distribuição de renda, por meio do controle do salário mínimo, preço de

produtos e financiamentos. Conseqüentemen te, é ele também – indiretamente pelo crescimento

galopante da pobreza no mundo.

Essa responsabilidade do Estado para com a população carente de uma nação parece não

tender a diminuir sequer na atualidade, quando se reavaliam suas atribuições e se verifica uma nítida

tendência ao “enxugamento” de suas funções nas diversas nações. Mesmo que almeje um Estado que

não intervenha na economia, permitindo que o mercado seja auto-regulamentado, ninguém pretende

eximi-lo de suas responsabilidades para com a saúde, a educação e as populações pobres. O Estado,

como instituição representativa tanto mais quando se sabe que as da sociedade como um todo, passou

a ser relações internacionais de mercado têm responsabilidade pelo bem-estar social. Sido

responsável pelo que passou a se chamar “dumpiing Social” – existência de salários ínfimos nos

países em desenvolvimento para que seus produtos possam competir com o dos países desenvolvidos

e industrializados.

O baixo custo em salário da produção industrial dos países menos desenvolvidos compensaria

o baixo custo do produto fabricado com tecnologia de vanguarda nos países de ponta do mundo

industrializado. As perdas sociais dessa tendência são evidentes pois se estimula o avanço

tecnológico, que substitui o trabalho humano, ao mesmo tempo que o conseqüente desemprego leva

à redução dos salários do trabalhador, principalmente nos países em desenvolvimento. Os interesses

econômicos que essa política defende têm nefastas conseqüências para a vida social - , como a perda

de conquistas duramente conseguidas pelos trabalhadores. Espera-se assim que o Estado,

representando a sociedade como um todo – tanto ricos como pobres, tanto trabalhadores como

empresários -, possa amenizar essa desigualdade social.

Portanto, se a responsabilidade do Estado em relação à pobreza foi maior nas economias

dirigidas e centralizadas, ainda hoje se exigem medidas corretivas para a crescente pobreza de parte

120

Page 121: Apostila Sociologia

da população. Quais são essas medidas e que política se acredita que o Estado poderia desenvolver

no sentido de minimizar desigualdades sociais?

Espera-se que o Estado promova a reforma agrária, diminuindo a concentração de terras e

assegurando a permanência da população rural no campo. Concomitantemente, o Estado deve

desenvolver um política de crédito agrícola capaz de auxiliar os pequenos proprietários rurais. John

Fridmann e leonie Sandercock, no estudo mencionado neste capítulo, propõe também, como

programas estatais de combate á pobreza, medidas de contenção da hiperurbanização, responsável

pela miséria n as grandes cidades. Para eles, a descentralização da indústria e a flexibilidade nas

atividades econômicas devem permitir uma melhor redistribuição de renda entre as regiões,

diminuindo aquilo que chamamos colonialismo interno (situação de domínio de uma região sobre

outra).

O apoio estatal a práticas tradicionais de produção, a criação de sistemas de consórcio e

financiamento como os praticados pelos Bancos do Povo, existentes na Indonésia. São soluções

propostas por Paul Singer em seu artigo perspectiva de desenvolvimento da América Latina,

publicado em Novos Estados Cebrap. Os analistas alertam que o Estado é responsável pela

regulamentação das formas de distribuição dos bens sociais e pela correção das distorções que os

mecanismos reguladores das relações de mercado possam provocar.

A responsabilidade do sistema

Não só as teorias políticas que explicam a natureza e a função do Estado preocuparam-se com

a questão da pobreza. Estudos econômicos e sociais também reservaram suas análises á

compreensão desse problema. Desde o século XIX, economistas e sociólogos tentaram descobrir

para o futuro das populações carentes. Os prognósticos foram sempre pessimistas. Thomas Malthus e

David Ricardo afirmaram que o capitalismo industrial alcançaria um tal nível de desenvolvimento

que os recursos naturais do planeta se esgotariam e as populações seriam assoladas pela fome. Karl

Marx, no manifesto do partido Comunista, sustentava que o desenvolvimento do modo de produção

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Page 122: Apostila Sociologia

capitalista levaria a uma constante e irreversível concentração de propriedade e riqueza,

monopolizada por poucos, enquanto o

restante da população estaria reduzido a um nível econômico de subsistência. Alfred Marshall, em

1927, alerta para a degradação dos níveis de vida da humanidade, com um aumento constante de

trabalho árduo, da falta de instrução e saúde e da baixa expectativa de realização pessoal.

Essa teorias possuíam um caráter de alerta e denúncia mas espalhavam pessimismo e

desconfiança , além de por se basearem nas leis de desenvolvimento dos sistemas sociais, assumirem

uma função quase profética, que desestimulava a ação social ou a adoção de políticas corretivas.

Muitas dessas teorias mostraram-se falhas em seus prognósticos. Como já dissemos, vivemos numa

sociedade de abundância e não de escassez que dispõe de meios para uma distribuição mais

igualitária de bens, desde que para isso haja vontade política. O desenvolvimento tecnológico e a

robótica reduzem em alguns países a jornada de trabalho e o contingente de mão-de-obra empregado,

revertendo as tendências dos primórdios da Revolução Industrial. E o capitalismo sobrevive ao

desenvolvimento industrial e às transformações que provoca, enquanto as sociedades coletivas

inquestionavelmente mais igualitárias – foram quase extintas.

Não há dúvida de que existem sistemas cujo desenvolvimento assegura uma melhor

distribuição dos bens sociais, que prevêem formas mais adequadas de assistência á população,

entretanto sabemos também que os homens participam de maneira consciente dos sistemas

econômicos e sociais e podem interferir em sua dinâmica. Não se aceita hoje depois de séculos de

individualismo nos quais o homem buscou entender, criticar e participar da vida social e do

desenvolvimento de instituições democráticas nas quais, como cidadão, lhe é permitida a atualização

política – que se considere o homem como vítima da história e das sistemas sociais. Os diversos

movimentos sociais revolucionários e reivindicatórios também são unânimes nessa atitude de

convocar o homem à ação efetiva sobre a realidade.

O peso do fator biológico

122

Page 123: Apostila Sociologia

Se por um lado não podemos conceder o desenvolvimento independente dos sistemas econômicos

como se eles possuíssem uma lógica automática isenta da ação humana, também não podemos cair

no outro extremo que procura no perfil da população as justificativas para sua condição subalterna.

Além do caráter preconceituoso dessas teorias, que muito facilmente encontram explicação

“naturais” e biológicas para a condição social das populações carentes nós sabemos que o homem,

como ser essencialmente cultural apresenta as características que o próprio meio social lhe propiciou

desenvolver.

Recentemente, nos Estados Unidos, desenvolveu-se uma teoria que se popularizou como

Curva do sino, que atribuída a pobreza dos negros habitantes dos guetos a uma possível inferioridade

mental de origem genética. Os índices utilizados para medir esse desempenho intelectual estavam,

eles próprios influenciados pela situação de pobreza.

Herdeiros do etnocentrismo e do eurocentrismo esses estudos identificam como causas das

desigualdades sociais indicadores que nada mais são que conseqüências do estado de carência de

determinados grupos sociais. Muitas vezes esses indicadores, por si só, revelem o estado de

indigência da população e a complexidade do conceito de pobreza. Foram dramáticas, nesse sentido,

as reportagens realizadas no Nordeste brasileiro evidenciando a pequena estatura da nossa população,

conseqüência do baixo poder calórico da alimentação nas faixas sociais mais carentes. E essa

situação de pobreza a causa não só de certas características da população como da baixa

produtividade local.

A pobreza crescente e incômoda

Infelizmente, apesar dos avanços tecnológicos de nossa sociedade e apesar das conquistas

inimagináveis da sociedade que se avizinha do século XXI, a pobreza continua aparentemente

resistente às análises e aos esforços que os Estados dizem estar desenvolvendo. A educação se

universaliza mas a repetência, a evasão escolar e as taxas de analfabetismo parecem inflexíveis. A

esperança de vida cresce em quase todas as partes do mundo, mas o atendimento à população carente

123

Page 124: Apostila Sociologia

continua precário. As favelas se multiplicam caracterizando a paisagem urbana, desemprego

aumenta, juntamente com a criminalidade e a mendicância.

Uma grande parte da população – os excluídos – permanece á margem do desenvolvimento e

não usufrui dos benefícios alcançados pela sociedade trabalha desde criança, desenvolve atividades

sem qualificação , não tem instrução nem acesso a eventos culturais, não desfruta de saneamento

básico e, às vezes, nem de um teto. As crianças abandonadas na rua, de décadas atrás, sucede uma

geração de crianças de rua, geradas sem família e sem moradia. Alimentam-se irregular e

precariamente, vivem na indigência e são vítimas da violência policial.

A presença constante, próxima e crescente dessa massa de pobres que, segundo alguns

cálculos, chega a dois terços da população do terceiro Mundo, incomoda e constrange por vários

motivos: porque demonstra a ineficiência da administração do Estado, do qual se esperam medidas

racionais; porque parece crescer a quantidade de pessoas excluídas do contingente de consumidores

nacionais; porque se teme que essa população crescente se organize e aja politicamente contra um

sistema que os marginaliza porque se constitui um sintoma evidente do malogro de sociedade que se

pressupõe orientada para o bem comum.

Urbanização e criminalidade

O desconcertante fenômeno do aumento da pobreza crônica tem sido explicado com efeito da

atração dos centros urbanos sobre um setor agrário também empobrecido. As taxas indicam que

cerca de 35% da população pobre dos centros urbanos pe composta de migrantes. Essa explicação é

inquietante não por mostrar que o setor agrário tende a expelir trabalhadores – pois essa parece ser

uma característica do processo de industrialização e de racionalização do trabalho agrícola com o uso

de máquinas e de mão-de-obra assalariada sazonal. Ela é inquietante porque mostra que, ao

decréscimo de utilização da mão-de-obra no setor agrário, não corresponde proporcional

aproveitamento dessa mesma mã o-de-obra na indústria. Logo, qualquer cidadão conclui que mais

gente passa a depender dos serviços municipais e de expansão da produção. Por outros lado, essa

124

Page 125: Apostila Sociologia

expansão não pode resultar de um aumento da população privada de rendimentos mínimos e

regulares ou sem possibilidade de fazer aumentar a demanda de produtos.

A percepção de incompetência do sistema econômico e político se soma o desconforto de

saber que, nos grandes centros, milhares de pessoas não se encontram sob a vigência das instituições

sociais, vivem como podem, á deriva e à revelia dos planejamentos oficiais. Cria-se, em relação a

essa população, um sentimento de desconfiança e de insegurança. Há uma relação entre o

crescimento dessa população e o aumento da criminalidade nos grandes centros urbanos, que se

evidencia tanto na mídia como nos estudos de caráter científico. O perfil social dos criminosos

também ajuda a reforçar essa associação entre pobreza e criminalidade: os autores dos crimes

oficialmente denunciados são geralmente analfabetos, trabalhadores braçais e predominantemente de

cor negra.

Entretanto, sociólogos mais cuidadosos têm estabelecido outras relações. Constata-se que

inúmeros crimes não são denunciados, que as estatísticas apenas expõe aquela população que, tida de

início como suspeita, é sistematicamen te controlada. Existe, portanto, em relação aos dados, uma

distorção provocada pela “suspeita sistemática”, como a definiu o cientista social brasileiro Paulo

Sérgio Pinheiro. Segundo essa ótica, é contra a população pobre, estigmatizada que se conduz a

prática policial, a investigação e as formas de punição.

Conclui o autor citado que prática policial preconceituosa, somada á desproteção das classes

subalternas, torna a relação entre pobreza e criminalidade uma profecia autocumprida. Forma-se um

circulo vicioso em que o indivíduo, para ter trabalho, precisa ter domicilio, registro, carteira

profissional e uma situação civil legal. Impossibilitado de trabalhar por não cumprir tais exigências,

ele passa a engrossar as fileiras de marginalizados que vivem sob constante vigilância policial. Desse

modo, a urbanização tem resultado no crescimento da pobreza urbana, atraindo para os centros

industriais populações expulsas do campo pela mecanização do trabalho agrícola, pela baixa

produtividade do maio rural e pela concentração da terra. Um verdadeiro fluxo populacional se

estabelece do campo para a periferia das grandes cidades ou para os centros das cidades que se

deterioram. Recentes estatísticas demonstram que o desenvolvimento econômico tem aumentado a

pobreza e a desigualdade social.

125

Page 126: Apostila Sociologia

O estigma da pobreza

Sabemos que o Estado mostra-se incompetente no combate à pobreza e que as medidas

públicas têm sido mais de policiamento, vigilância do que de resolução do problema. Iniciativas de

caráter assistencial têm resultados paliativos, enquanto a imprensa exibe em cores cada vez mais

realistas a indigência da população pobre. E, agora, graças à globalização dos meios de comunicação,

a pobreza dos países em desenvolvimento se transforma em manchete internacional. A pobreza é

cada vez menos disfarçada e cada vez mais estigmatizada.

Cada vez mais evidente, a pobreza é estigmatizada, quer pelo caráter de denúncia da falência

da sociedade e do Estado em relação às suas funções junto à população, quer pelo contraste com a

abundância de produtos, ao qual já nos referimos, quer pelo perigo iminente de convulsão social que

para ela aponta. A violência e a agressividade aumentam, criando um clima de guerra civil nas

grandes cidades, onde os índices de criminalidade são alarmantes. Ao medo e à insegurança, gerados

na população, associa-se o preconceito e uma atitude de discriminação contra as camadas pobres da

população, as favelas e os centros das cidades. Generalizam-se medidas arbitrárias de violência e

brutalidade, as chacinas, os linchamentos e os assassinatos.

Os mais variados estudos procuram caracterizar de maneira científica a pobreza, buscando

suas causas, denunciando responsáveis ou procurando tratá-la como um fenômeno dissociado da

sociedade. Chegou-se a falar em “cultura da pobreza” – uma série de normas, valores, hábitos e

formas próprias de linguagem que se desenvolveriam na população carente. Realmente, os excluídos

dos benefícios da civilização tecnológica acabam por criar mecanismos próprios de sociabilidade,

assim como estratégias de defesa e sobrevivência. Considerar, entretanto, essas formas de

comportamento de forma isolada – e não como uma resposta às condições sociais estabelecidas é

uma atitude estigmatizante e ideológica.

A pobreza é constantemen te afastada e excluída do convívio social, eximindo-se de

responsabilidade os que com ela se relacionam direta ou indiretamente. Até mesmo os estudos

teóricos refletem essa política de exclusão, ao analisar a pobreza como um fenômeno em si mesmo.

Se aquele contingente não participa dos benefícios do restante da população e não consome os bens

126

Page 127: Apostila Sociologia

produzidos, certamente algum segmento o faz por ele. Só as análises econômicas preocupadas com o

desenvolvimento do mercado interno – como elemento fundamental e necessário ao desenvolvimento

das nações – tem procurado alertar para o fato de que a população carente representa fragilidade e

uma ameaça à estrutura social como um todo. Essas parcelas excluídas representam um desperdício

de recursos humanos e uma disfunção do sistema econômico, que deixa de ter nesse segmento da

população um importante contingente de consumidores da indústria nacional.

O distanciamento social e ideológico -, a alienação, a discriminação e a estigmatização que

recaem sobre a pobreza não ajudam a encontrar soluções para o problema nem evitam que as

desigualdades sociais aumentem, principalmente agora que a falência das economias coletivas no

mundo colocaram o liberalismo como tendência universal. Por mais eficientes que os princípios

liberais sejam para o desenvolvimento da sociedade tecnológica e do capital, não podemos esquecer

que eles têm graves conseqüências para aqueles setores que, não possuindo qualquer capital, têm

desempenhado papel indispensável na acumulação de bens e riquezas por parte dos grupos

dominantes.

Um exército de reserva?

Procurando entender o papel da população marginalizada nas grandes cidades para o

processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista, Karl Marx criou o conceito de

“exército industrial de reserva”. Segundo Marx, a população desempregada ou subempregada que

vivia na pobreza junto aos grande centros industrias representaria um força de manobra na constante

luta entre trabalho e capital. Em épocas de conflito e mobilização da classe trabalhadora, e

principalmente durante períodos de greve, essa massa despossuída representaria um contingente de

trabalhadores empregáveis a qualquer momento.

Sem qualificação, sem emprego, sem assistência, os marginalizados das cidades são operários

virtuais, recrutáveis a qualquer momento, um reduto de mão-de-obra barata que anseia por uma

situação regular. Marx reconhecia, assim, que o desemprego não é condição de quem não quer ou

não está apto ao trabalho, mas resultado de uma inelasticidade na oferta de emprego. Essa teoria

127

Page 128: Apostila Sociologia

analisa a marginalidade como parte do sistema e não como um elemento exterior a ele; por outro

lado, explica o preconceito e a desconfiança que vitimam a população carente, até mesmo por parte

das camadas mais baixas da população. Explica também a violência de que é alvo essa parcela da

sociedade, quer por parte dos poderes públicos, quer por parte da própria população civil.

Atualmente é preciso fazer algumas considerações. Com a globalização da economia –

provocando o dumping social -, com a robotização da indústria, que coloca em disponibilidade

massas de trabalhadores, e com exigência cada vez maior de trabalhadores qualificados, o conceito

de exército de reserva precisa ser reavaliado. Primeiro porque o desemprego cresce em números e em

diferentes parcelas da população, agora chamado desemprego estrutural.

Em segundo lugar, porque a tecnologia de vanguarda torna a população marginalizada

inaproveitável na indústria. Em terceiro lugar porque ao que tudo indica, abre-se, nos países mais

ricos, uma tendência de permanente diminuição da jornada de trabalho na indústria. Novas relações e

novos conceitos de trabalho emergem no mundo: terceirização, trabalho autônomo, desemprego,

subemprego, emprego temporário, e assim por diante.

É diante disso tudo que a pobreza parece um fenômeno constante e assustador, que exige

medidas conscientes e responsáveis. Um esforço conjunto se faz necessário envolvendo políticas

estatais, como os Bancos do Povo, e a criação de Organizações Não-Governamentais que

desenvolvam projetos de assistência social, alfabetização e capacitação para o trabalho. Programas

comunitaristas, como são chamados nos Estados Unidos, onde surgiram, têm procurado envolver a

sociedade em atividades de ajuda à população carente. Afinal, se a economia tende a crescer e a se

desenvolver, e se a jornada de trabalho e o número de empregados diminuem, devem restar no futuro

pessoas e tempo que podem ser destinados a esse fim. Não podemos esquecer, entretanto, que a

opção por um sistema político que favoreça uma integração maior da população em geral à sociedade

ainda é a forma mais eficiente de combate à pobreza.

128

Page 129: Apostila Sociologia

15 INSTITUIÇÕES SOCIAIS

Instituições são como a estrutura social e a cultura. São padrões sociais que aprendemos, que

são aceitos de um modo geral e que usamos para guiar nossas decisões. São o modo certo como

fazemos as coisas. São trilhas que nos dizem como nos divertir , criar os filhos, participar da política

e lidar com a morte. Do ponto de vista do indivíduo, as instituições são controles. Do ponto de vista

da sociedade, as instituições existem para garantir as condições de lidar eficazmente com os

problemas. São os modos como a sociedade assegura a cooperação e a ordem. São os meios pelos

quais as pessoas são socializadas para aceitar os padrões sociais da sociedade. As instituições nos

protegem, dão sentido a nossa vida, resolvem disputas e atendem às necessidades básicas dos que

aqui vivem. Poderíamos entender melhor sua importância enumerando algumas das razões por que

são importantes para nós.

Em primeiro lugar, as instituições lidam com os problemas, possibilitando às pessoas viver

em sociedade. Sem elas, nada poderia ser feito em cooperação. Quando elas são infelizes, as coisas

saem malfeitas; quando são eficazes, as coisas são bem-feitas, as necessidades básicas são atendidas

e as pessoas em geral ficam satisfeitas.

Em segundo lugar, as instituições, por serem trilhas que vemos funcionando em toda a nossa

volta, asseguram uma uniformidade de ação entre os indivíduos suficiente para que seja possível a

cooperação. Elas eliminam a escolha, pois são trilhas que dirigem as ações dos indivíduos. Embora a

sociedade em certa medida se beneficie com as diferenças humanas, as instituições nos levam a

caminhar nas mesmas direções, pelo menos em certo gra u. Sabemos o que as pessoas geralmente

fazem, e a maioria de nós também faz essas coisas. Peter Berger qualifica de “imperativas” as

instituições, pois elas comandam o que fazemos, restringem as escolhas. O casamento, por exemplo,

diz ao indivíduo que nesta sociedade está a linha de ação que o espera. De certo modo, ela não parece

ruim para a maioria de nós, pois as instituições tornam-se as trilhas que seguimos sem nem mesmo

perceber o que está acontecendo na maior parte do tempo.

Finalmente, muitas instituições destinam-se especificamente a socializar, recompensar e punir

o indivíduo para ajudar a garantir a submissão aos padrões da sociedade. Socialização é o processo

129

Page 130: Apostila Sociologia

pelo qual o indivíduo adota os costumes de uma determinada sociedade. Esses costumes são

internalizados. É por meio de várias instituições na sociedade no decorrer de um longo período que

obtém a socialização. Instituições religiosas e políticas são desenvolvidas para nos socializar. A

mídia – da publicidade às novelas, programas humorísticos e MTV - nos socializa. Nossa família

evidentemente, é a instrução mais importante para nós no início da vida, mas as escolas mais tarde

assumem esse encargo e se encarregam da tarefa de nos apresentar as regras da sociedade mais

ampla.

Objetivamente, as instituições religiosas, econômicas, educacionais e familiares nos

recompensam se nos submetemos; os tribunais, prisões e penitenciárias destinam-se a punir quem

não se submete. Toda sociedade possui meios próprios para lidar com os indivíduos a fim de criar

“bons cidadãos”.

Em suma, os seres humanos passam toda a vida em sociedade. Para controlar os indivíduos,

as instituições têm de funcionar com eficácia. As pessoas não podem fazer tudo o que têm vontade

ou decidem fazer; dentro de uma sociedade a liberdade completa é impossível. As pessoas não

podem atuar sem alguma direção instituída pela sociedade. As instituições sociais são fundamentais

para essa direção.

INSTITUCIONALIZAÇÃO E DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Muitas vezes é difícil concluir que um padrão de comportamento é de fato uma instituição,

em virtude da natureza mutável da sociedade. As instituições estabelecidas há muito tempo na

sociedade já não perecem, para a maioria de nós, o único modo aceitável de fazer as coisas;

alternativas saltam à vista, e a mídia as divulga. Em algumas áreas, como a familiar, estamos

vivenciando a “desinstitucionalização” a tal ponto que existem escolhas a serem feitas pelo indivíduo

a cada passo, em vez de um caminho estabelecido para todos seguirem.

Os termos instituicionalização e desinstitucionalização são úteis para indicar os padrões em

desenvolvimento na sociedade. Quando um padrão se torna amplamente aceito, é visto como

moralmente correto e considerado importante para a sociedade e os indivíduos, dizemos que ele está

130

Page 131: Apostila Sociologia

se tornando institucionalizado ou que está se tornando uma instituição. Quando ele deixa de ser

importante ou dominante ou ainda alternativa, outro padrão o substitui ou essa parte da vida se torna

desinstitucionalizada. A desisntitucioanlização pode ser benéfica. Aumenta as opções e alternativas

de cada pessoa na tomada de decisões a respeito do que ala faz. Infelizmente, também pode causar

problemas, como maior tensão em razão da menor certeza entre as pessoas da sociedade. A

desinstitucionalização, como tudo o mais na organização social, é uma questão complexa, com

benefícios e custos.

A REJEIÇÃO DAS INTITUIÇÕES SOCIAIS

Nem todas as comunidades, organizações formais grupos e díades aceitam as instituições

existentes, e muitos que desenvolvem padrões alternativos próprios entram em conflito com a

sociedade. Podem ser políticos radicais, minorias, jovens ou indivíduos que buscam uma cultura

diferente da oferecida pela sociedade como artistas estudantes, defensores de uma religião e alguns

que desejam manter a herança de seu grupo étnico.

Esses padrões alternativos podem, às vezes, ter total liberdade de expressão, mas com

freqüência os poderosos da sociedade os vêem como uma contestação. Assim, estes padrões são

declarados ilegais ou desincentivados de maneiras sutis. Entre os grupos de homossexuais, por

exemplo, a homossexualidade é legítima, mas, em muitas comunidade, o governo, a religião e a

polícia unem-se para declarar a homossexualidade fora da ordem aceita. Para alguns, é aceitável a

violência contra a política, mas para quem se insere na sociedade mais ampla tais atos são claramente

ilegítimos. Até mesmo roubar, lograr e matar tornam-se atos legítimos em alguns grupos, mas em

geral são vistos como uma ameaça às

instituições dominantes e enfrentados condizentemente. Para a grande maioria das pessoas no Brasil,

a língua portuguesa é uma instituição, e os que falam outro idioma são influenciados para adotar o

português.

Alguns padrões alternativos de comportamento, portanto, são considerados inofensivos,

enquanto outros são definidos como sérias ameaças às instituições dominantes. Quem decide qual

131

Page 132: Apostila Sociologia

comportamento é inofensivo e qual deve ser desincentivado ou tratado como grave ameaça à ordem

social? Os que ocupam posições levadas também têm o poder de definir o que é uma instituição, o

que constitui uma alternativa aceitável e o que é ameaça. Às vezes, “o povo” pode falar por meio de

eleições ou por algum outro modo indireto, podendo então decidir, digamos que os homossexuais

devem ser tratados pelas autoridades como ilegítimos; ocasionalmente, uma eleição pode derrotar um

político que tenta institucionalizar o aborto; no longo prazo, porém, as instituições são determinadas

por aqueles que detêm o poder na sociedade, seja por meio de suas posições, seja mediante os grupos

ou organizações formais que possuem recursos como dinheiro ou organização eficiente para alcançar

seus intentos.

RESUMO

As pessoas interagem. Com o tempo, desenvolvem padrões sociais. Inevitavelmente, surgem

a estrutura social e a cultura. Também com o tempo surgem instituições. A estrutura social nos

posiciona e nos confere papel, identidade, perspectiva, poder, privilégio e prestígio. A cultura nos diz

em que acreditar; ela nos dá nossas verdades, valores, objetivos e normas. As instituições sociais nos

dizem como as coisas são feitas na sociedade: são as trilhas amplamente aceitas, legítimas, históricas

e importantes que a sociedade desenvolveu para lidar com seus problemas.

A Figura 7.2 ilustra a organização social e seus padrões sociais.

Ação Social

Díades

Grupos

Organizações formais

Comunidades

Sociedades

Interação

132

Page 133: Apostila Sociologia

Interação Social

padronizada = ORGANIZAÇÃO SOCIAL

PADRÃO 1:

Estrutura Social

PADRÃO 1:

Estrutura Social

PADRÃO 1:

Estrutura Social

Figura 7.2 Os três padrões sociais na organização social.

É preciso salientar um aspecto. A perspectiva do conflito na sociologia alerta-nos de que a

cultura e as instituições não apenas atuam no sentido de manter a sociedade coesa, mas também no

de que conservar a estrutura social. De fato, a cultura e as instituições que se desenvolvem são, em

grande medida, criações dos que têm poder na estrutura social. O papel de dona de casa, a

passividade feminina, a moderna sociedade anônima e o duplo critério empregado para julgar o

comportamento sexual. A cultura brasileira foi criada por homens e para homens, os brancos e os

ricos, em grande medida. Em vez de funcionarem eqüitativamente para toda a sociedade, as

instituições e a cultura devem ser vistas como

funcionando para alguns à custa de outros.

Na perspectiva do conflito, cultura e instituições estão imersas na estrutura social. Refletem e

perpetuam a desigualdade existente. Nascem do conflito, e sua existência reflete os interesses dos

que foram vencedores no conflito. É importante um entendimento ponderado: instituições e cultura

são padrões que compartilhamos e que atuam para solucionar nossos problemas coletivos, guiar

nossa vida e

manter a organização. Também são padrões que favorecem aqueles que mais participaram de sua

criação – os do topo da estrutura social.

133

Page 134: Apostila Sociologia

16 CULTURA

A cultura é o segundo padrão da organização social. Como a estrutura social, ela se

desenvolve na integração ao longo do tempo; determina boa parte do que faz o indivíduo e permite a

continuidade e a previsibilidade as pessoas.

A CULTURA É UMA PERSPECTIVA COMUM DO MUNDO

Na linguagem da ciência social, cultura não significa violinos, poesia ou esculturas. Cultura é

uma perspectiva do mundo que as pessoas passam a ter em comum quando interagem. É aquilo sobre

o que as pessoas acabam por concordar, seu consenso, sua realidade em comum, suas idéias

compartilhadas. O Brasil é uma sociedade cujo povo tem em comum uma cultura. E no Brasil, cada

comunidade, cada organização formal, cada grupo e díade possui sua própria cultura (ou o que

alguns cientistas sociais denominam uma subcultura, pois se trata de uma cultura dentro de outra

cultura). Enquanto a estrutura ressalta as diferenças (as pessoas relacionam-se entre si em termos de

suas posições diferentes), a

cultura salienta as semelhanças (de que modo concordarmos).

Fazer parte da “cultura jovem” no Brasil, por exemplo, é ter em comum com várias pessoas

certas idéias sobre verdade, política, autoridade, felicidade, liberdade e música. Nas ruas, na palavra

escrita e falada, nas universidade, em shows e filmes, desenvolve-se uma perspectiva à medida que

as pessoas compartilham experiências e se tornam cada vez mais semelhantes uma às outras, por

outro lado, enquanto se diferenciam crescentemente das que se encontram fora de sua interação.

Desenvolve-se uma linguagem comum entre os que compartilham a cultura, consolidando a

solidariedade e excluindo os de fora.

Quando Marta e Marcos interagem, em certo sentido também formam uma cultura própria e

única. Discutem sobre vários assuntos e passam a ter em comum concepções a respeito um do outro,

dos pais, adultos, crianças, da China, da vida, do trabalho e do futuro. Dizem um ao outro coisas que

apenas os que entendem perfeitamente, pois possuem um contexto comum no qual situar essas

134

Page 135: Apostila Sociologia

coisas. Na mesma situação em que outros ficam sérios, eles desatam a rir, porque só para os dois que

a vêem sob a mesma perspectiva a situação é engraçada.

Cultura é o que as pessoas acabam por pensar em comum – suas idéias sobre o que é

verdadeiro, correto e importante. Essas idéias nos guiam, determinam muitas de nossas escolhas, têm

conseqüências além de nosso pensamento. Nossa cultura, compartilhada na interação, constitui nossa

perspectiva consensual sobre o mundo e dirige nossos atos nesse

mundo.

A CULTURA É APRENDIDA

Nossas idéias a respeito do mundo são aprendidas dos outros por meio da interação em

famílias, escolas e em todas as formas de organização social. Elas tem como alicerce nossa vida em

grupo. Procuramos o apoio do grupo para aquilo em que acreditamos; testamos nossas idéias que são

sustadas pelas pessoas com quem interagimos e que são importantes para nós. Aprendemos nossa

cultura e não julgamos verdadeiramente haver outras maneiras de ver o mundo. Nascemos numa

família, e a cultura que possuímos em comum nessa família torna-se fundamental para nosso modo

de pensar. Quando ingressamos em organizações sociais como uma escola, uma gangue, uma

irmandade ou uma empresa, acabamos aprendendo “o jeito certo de pensar” e, se quisermos nos

ajustar, passamos a acreditar nessas culturas que aprendemos.

A crença é incentivada pelo fato de que as organizações sociais são importantes para nossa

identidade, para nosso significado como indivíduos. As idéias comuns a todos na organização social

penetram em nós; tornam-se parte de nosso pensamento e básicas para nossos atos. A cultura nos

distingue daqueles com quem não interagimos. O isolamento de um grupo, sociedade ou outra

organização social significa uma visão de mundo única; a integração

com outros implica menos singularidade.

A CULTURA É UMA HERANÇA SOCIAL

135

Page 136: Apostila Sociologia

Muitas organizações sociais em que ingressamos existem há muito tempo: as pessoas que

nela têm poder nos ensinam suas “verdades” estabelecidas de longa data, para que nos tornemos bons

membros e a organização social possa continuar. A cultura é uma herança social; consiste em idéias

que podem ter-se desenvolvido muito antes de nascemos. Nossa sociedade, por exemplo, tem uma

história mais longa do que a vida de qualquer indivíduo, as idéias desenvolvidas no decorrer do

tempo são ensinadas a cada geração, e a “verdade” tem por alicerce a interação de pessoas mortas

muito tempo atrás.

Os exemplos disso estão em toda parte: pessoas bem-sucedidas têm de obter um diploma

universitário; as mulheres casar e ter filhos; o amor romântico deve ser a base do casamento; ganhar

é o melhor incentivo para as pessoas trabalharem. Cada filho aprende essa cultura na família, na

escola, na igreja – as organizações sociais que são os veículos da cultura. Somos socializados para

aceitar as idéias

dos que estão nas posições de “entendidos”, dos que têm do seu lado muitos anos de história, uma

longa tradição, a integridade, Deus, a ciência, ou seja lá o que for. As organizações também têm uma

história, assim como as comunidades e grupos. Podemos contribuir com idéias próprias, mas sempre

seremos conformados por uma força poderosa, uma cultura, que se desenvolveu antes de entrarmos

em cena, e teremos pouca escolha além de aceita-lo se quisermos continuar a interagir na

organização social.

Consideremos o indivíduo que tenta escapar à cultura. Romper os laços com a cultura é ficar

sozinho, arriscar ser expulso da organização sociedades, ser punido com a prisão ou a morte. Rejeitar

a definição de verdade vigente na organização é rejeitar a própria organização – e deve-se estar

preparado para ficar isolado ou para ingressar em outras organizações que compartilhem as

concepções “corretas”, organizações essas que evidentemente têm outras cultura.

Podemos mudar as organizações sociais e, portanto, trocar uma cultura por outras. Cada

organização, porém, tem um modo de definir o mundo, um modo de pensar, um conjunto de regras

que incentiva seus membros a compartilhar, e precisaremos acatar tudo isso também. Podemos

adotar uma perspectiva radical na faculdade, e depois lá vamos nós trabalhar em uma empresa ou

lecionar na escola secundária de formados, e nossas crenças mudam à medida que nos afastamos

136

Page 137: Apostila Sociologia

cada vez mais das pessoas com quem interagíamos na faculdade. Alguns de nós podem deixar nossa

comunidade ou mesmo nossa sociedade para ingressar em uma outra. Com o tempo, a velha cultura

será gradualmente substituída por

novas idéias e regras. Isso é difícil para a maioria de nós. Hesitamos em romper com um conjunto de

verdades e aprender hábitos novos, uma nova cultura. “Acho que sou antiquado”, é o que muitas

pessoas sentem. Uma cultura, portanto, é uma perspectiva comum, um conjunto de idéias que as

pessoas desenvolvem e aprendem na interação social.

Na verdade talvez seja útil dividir esse conjunto de idéias em três categorias: a) o que é

verdade (nossas verdades), b) o que vale a pena (nossos valores e objetivos) e c) qual é o modo

correto de atuar (nossas regras). Examinemos cada uma separadamente.

A CULTURA É UM CONJUNTO DE VERDADES

Uma cultura, antes de mais nada, é um conjunto de idéias sobre o que é verdadeiro, ou real.

Não há um consenso global sobre o que é verdadeiro no mundo. Cada organização social desenvolve

uma visão de mundo específica à qual se mantém fiel e que ensina a seus membros. Cada sociedade

desenvolve uma cultura que possui um conjunto de verdades, e o mesmo faz cada comunidade da

sociedade, cada organização formal, grupo e díade.

Compartilhamos verdades quando interagimos, e as pessoas com quem não interagimos têm

verdades que freqüentemente não somos capazes de aprender, compreender ou acatar. Na Dakota do

Norte, acredita-se que a agricultura é o esteio das Estados Unido; em Chicago, que os agricultores

ganham dinheiro demais, e no Texas que a agricultura é uma atividade empresarial de grande porte.

No Brasil, acredita-se que a separação entre Igreja e Estado é correta e democrática, enquanto em

outras sociedades as pessoas são socializadas para acreditar que todos têm de apoiar uma igreja

estatal.

Os sociólogos compartilham suas próprias verdades, assim como os estudantes de uma certa

universidade e, em certa medida, os estudantes do Brasil como um todo. Um grupo pode ter em

comum crenças a respeito da natureza de Deus, da vida e da sociedade; isso faz parte de sua cultura.

137

Page 138: Apostila Sociologia

Os batistas podem crer que a vida é um campo de provas para uma existência após a morte, os

humanistas podem acreditar que a finalidade da vida é a busca da bondade, e a Associação Nacional

dos Fabricantes pode dar ênfase à obtenção de posições de poder e riqueza crescentes. A verdade da

indústria automobilística pode ser a de que seu produto é o meio de transporte que nos dá mais

independência, ao passo que a verdade de um grupo defensor do meio ambiente pode ser a de que o

automóvel é responsável pelo envenenamento de todos nós em razão da poluição atmosférica.

Quase todos nós gostamos de pensar que nossas idéias a respeito do mundo são verdadeiras.

Algumas delas provavelmente são, mas a maioria acabou sendo aceita por nós não graças a provas

minuciosas, e sim à interação. Se fomos honestos conosco mesmos, percebemos que nossas idéias,

de um modo geral, são culturais, que são formadas na organização social e ensinadas a nós como

membros dela. Mesmo que verdadeiras em certa medida, também são limitadas para captar a

realidade, pois cada uma é um enfoque, exagerando determinados aspectos da realidade e

menosprezando outros. Alguém poderia

realmente acreditar que aceita o mesmo conjunto de verdades de um indivíduo nascido na Rússia,

Suíça, México ou Japão? Os estudantes de psicologia acreditam realmente que suas verdades seriam

as mesmas se estivessem estudando sociologia e interagissem com sociológicos? Os paulistas

poderiam acreditar realmente que suas idéias sobre a vida seriam as mesmas se tivessem crescido no

Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul ou Amazonas?

Todos nós temos idéias diferentes a respeito do mundo, do que é e do que não é verdade.

Aqueles dentre nós que são muito atentos e cuidadosos provavelmente captarão algumas idéias

próximas da verdade. Mas a maioria de nós aceitará as idéias ensinadas por nossas organizações;

nossa interação influenciará aquilo em que acreditamos. Se compreendermos isso, nossas

discordâncias com outras pessoas perecerão mais diferenças sugeridas na interação – culturais – e

menos uma questão de verdade versus mentira. Numa discussão a respeito dos seres humanos, um

neuropsicólogo e um sociólogo provavelmente discordarão bastante quanto à razão que leva as

pessoas a atuarem de determinada maneira. O neuropsicólogo se concentrará no cérebro, o sociólogo

na vida social; mas nenhum dos dois se concentrará na educação recebida na infÂncia. Isso ocorre

138

Page 139: Apostila Sociologia

porque as pessoas aceitam uma cultura associada a suas profissões, culturas diferentes entre si. É

claro que discordaremos.

Talvez o neuropsicológico esteja errado, talvez o sociólogo ou talvez ambos estejam (suas

evidências são válidas?). É verdade, porém, que os dois têm algo importante a dizer e que a

discordÂncia entre eles em grande medida é cultural. Há boas razões por que determinada sociedade

desenvolve um conjunto de verdades e não outro. As pessoas desenvolvem uma filosofia, um sistema

de crenças, uma visão da realidade que lhes é útil. Que funciona para a organização dessas pessoas.

Tendemos a acreditar em idéias que nos guiam com êxito em nossas ações, que nos ajudam a

entender as experiências que vivenciamos, que apóiam a organização. As organizações sociais

desenvolvem verdades com o passar do tempo, à medida que as pessoas vão descobrindo maneiras

de lidar com seu ambiente. Desenvolvem-se verdades para resolver os problemas que enfrentamos,

para justificar nossas ações, para validar as estruturas que criamos. No fim, as idéias que funcionam

para a situação das pessoas tornam-se suas verdades; uma vez que cada organização social encontra-

se em uma situação diferente e possui uma história diferente, as culturas serão diferentes.

“No Brasil há oportunidades para quem batalha. É um lugar onde este tipo de pessoa pode

chegar ao topo. Tem por base a competição, que traz à tona qualidades, esforço e características

competitivas do ser humano. Se alguém conseguir o sucesso neste sistema, será capaz de manter o

que conseguiu. Se não for bem-sucedido, há chances de essa pessoa não ter se empenhado o

suficiente.” Essas idéias são culturais. Funcionam para proteger o sistema econômico e a

desigualdade social. Provavelmente encorajam os brasileiros a tentar arduamente melhorar sua

posição na vida. Os ricos certamente acreditarão e procurarão ensinar essas idéias ao restante de nós.

Elas podem ou não ser verdade. A verdade ou a mentira dependem de provas e não do fato de a

maioria acreditar nessas idéias.

Mas isso não é nada simples. Embora por outro lado um conjunto de verdades específico de

um povo possa ser funcional para essas pessoas, precisamos lembrar também o papel da estrutura

social na criação de idéias. O poder é um aspecto importante em todas as estruturas sócias, os que

têm mais poder produzirão o maior impacto na criação da cultura, em geral as idéias que prevalecem

na organização social como parte de sua cultura são idéias que beneficiam mais os que detêm o

139

Page 140: Apostila Sociologia

poder. Isso não quer dizer que eles necessariamente mintam e desencaminhem os outros, e sim que

suas verdades, muito coerentes com sua posição na sociedade, tendem a prevalecer como as únicas

verdades.

A CULTURA É UM CONJUNTO DE VALORES

A cultura também se compõe de idéias a respeito das coisas pelas quais vale a pena empenhar

(finalidades). Elas são de dois tipos: Às vezes é difícil distinguir entre valores e objetivos porque

ambos são idéias quanto ao que devemos buscar, que propósito deve ter nossa ação. Um valor é um

compromisso de longo prazo por parte da organização ou do indivíduo. É uma forte preferência, um

princípio organizador em torno do qual se estabelecem objetivos e ocorre a ação. O objetivo é uma

meta de curto prazo de um indivíduo ou organização específica social em uma situação específica.

Na maioria das situações, nossa escolha de ação depende de nossos compromissos com

valores. A honestidade é o valor mais importante para nós, ou o mais importante será um diploma

universitário? Deus ou a escola, amigos ou família, materialismo ou amor, liberdade ou igualdade,

coragem ou segurança, fazer o que é certo ou fazer o que todo mundo aplaude, o futuro, o presente

ou o passado, pessoas ou coisas, obter uma boa educação ou conseguir um bom emprego? Somos

guiados por esses valores, e eles, por sua vez, desenvolveram-se na interação com outras pessoas.

Todos nós temos diversos valores nos quais acreditamos. Muitas vezes surgem situações em

que precisamos escolher entre valores, pois se respeitarmos um não poderemos respeitar os outros.

Quase todos nós por exemplo, valorizamos a liberdade, a igualdade e a vida, mas quando ficamos

diante de uma situação a ser resolvida, alguns aspectos tornam-se mais importantes do que outros.

Um indivíduo pode ser a favor da igualdade para todas as pessoas, mas também pode almejar

determinado emprego que receia que seja dado a um candidato pertencente a alguma minoria:

precisará, então, comprometer-se com a igualdade ou com a segurança pessoal. Uma pessoa pode dar

valor a uma educação superior e a uma vida social ativa, porém também isso pode envolver uma

escolha em várias ocasiões.

140

Page 141: Apostila Sociologia

Os cursos acadêmicos às vezes nos obrigam a escolher entre a receptividade a novas idéias e

a segurança que deriva da certeza. Os valores não são guias simples, pois com freqüência se

contradizem. Mesmo assim, se fizermos um auto-exame atento, descobriremos um núcleo de valores

que nos influenciam em muitas situações. Aprendemos nossos valores na interação. Grupos,

organização formais, comunidades e a sociedade direcionam nossas prioridades ensinando-nos um

conjunto de valores. Cada organização social possui valores ligeiramente diferentes, e nós mudamos

quando traçamos de organização. Os valores que a sociedade nos ensina são difíceis de questionar,

pois normalmente parecem ser os únicos sensatos. As organizações têm interesse em nos ensinar a

valorizar certas coisas. Quanto nos empenhamos de corpo e alma em uma organização ou quando

passamos muito tempo interagindo dentro dela (por exemplo, numa comunidade) seus valores

passam a ser os nossos. Fica difícil aceitar valores alternativos se eles não possuírem alguma base

social, ou seja, se não emergirem de uma organização da qual nos sentimos parte.

Compromissos acentuados com valores normalmente refletem fortes compromissos sociais:

com uma religião, uma entidade estudantil, com feminismo, a família ou um partido político, por

exemplo. Um compromisso intenso com uma organização social significa que a própria organização

tornou-se um valor importante para o indivíduo. Podemos estar dispostos a dar nosso tempo, dinheiro

ou até mesmo a vida por ela; podemos constatar que todo o objetivo de nossa vida está ligado a ela.

As pessoas sacrificam-se pela família, trabalham arduamente para a empresa, atuam como

voluntários em igrejas e obras beneficentes e arriscam a vida pelo país. Às vezes isso deve-se ao que

essa organização social representa. A própria organização tornou-se um valor.

Sejam quais forem os valores desenvolvidos em uma organização, eles serão altamente

funcionais para ela. Assim como as idéias a respeito da verdade, os valores servem a um propósito:

mobilizam os indivíduos em torno de fins desejáveis e os levam a atuar de maneiras que ajudam a

organização. Não é por acaso que as empresas valorizam o lucro e o crescimento, a ética do trabalho

e o capitalismo, o planejamento e a não-interferência do governo. Esses valores auxiliam a

estabilidade e a continuidade da empresa, e os empregados são incentivados a adota-los como valores

pessoais. Além disso, os valores, assim como as verdades, refletem o que é útil e ensinado pelos que

se encontram no topo da estrutura social.

141

Page 142: Apostila Sociologia

OS VALORES REFLETEM-SE NA AÇÃO

Nossos valores não são necessariamente os que escolhemos em um questionário ou o que afirmamos

acreditar na frente dos amigos ou de nossos filhos. Declaramos apenas aqueles em que julgamos

acreditar. Os valores refletem-se verdadeiramente naquilo que fazemos, não no que dizemos. São

nossos objetivos, decisões e ações que revelam nossos valores. Você pode dizer aos outros que

valoriza a educação mas eles verão, por exemplo, pela sua falta de interesse pelos estudos, que isso

não é verdade. Pode dizer que acredita no amor, mas os outros verão que o amor não se reflete em

suas ações.

A ênfase dada nesta sociedade ao consumismo, ao ganho de dinheiro, ao julgamento dos

outros com base na riqueza, reflete um compromisso com valores materialistas por um grande

número de pessoas. A vida familiar hoje em dia é menos importante do que outrora – não importa o

que dizemos, nossas decisões

refletem o fato de que outros valores tornam-se mais importantes para nós.

A relação entre valores e ações é mais complexa do que isso. Pode ser que venhamos a atuar

de maneira diferente daquilo em que dizemos acreditar. E no entanto o que dizemos ainda assim

pode ter um impacto no longo prazo. Provavelmente é melhor afirmar “acreditado na democracia” do

que “ acredito na superemacia dos brancos”, independentemente de qual seja a realidade de nossas

ações. Pois se dissermos (e pensarmos) que acreditamos na democracia, alguém pode mostrar como

nossas ações contradizem nossos valores, havendo alguma chance de alterarmos nossos atos e torna-

los coerentes com os valores que proclamamos.

A igualdade, por exemplo, é um valor freqüentemente sustentado, mas claramente não a

temos respeitado em relação às minorias raciais. O êxito de movimentos para modificar a sociedade

depende em parte de seu apelo ao valor da igualdade. “Se você de fato acredita na igualdade, então

me mostre por atos que está disposto a fazer alguma coisa para alterar os injustos sistemas de

estratificação racial e sexual!” Seria muito mais difícil fazer um apelo aos que defendem a

142

Page 143: Apostila Sociologia

superioridade natural dos bancos e dos homens e que dizem apreciar uma sociedade alicerçada na

desigualdade.

EXISTE UM SISTEMA DE VALORES NACIONAL, MAS ELE É COMPLEXO E MUITAS

VEZES INCOERENTE

Nosso país como uma sociedade possui um sistema de valores que passamos a compartilhar

no decorrer de nossa história. Esse sistema se compõe em parte dos valores do individualismo,

igualdade e sucesso material. Contudo, pode-se argumentar que também valorizamos a harmonia,

uma sociedade segregada e segurança material. Enumerar os valores de um país é tarefa difícil, pois

existem numerosas exceções e contradições. Robin Williams (1970) tem um conhecimento do estudo

no qual procurou isolar e analisar o sistema de valores americano. Os valores que Williams arrolou –

sucesso, materialismo, trabalho, progresso, gosto pelo prático, democracia – parecem estar em

conflito com outros valores sustentados, como o lazer, a tradição e mesmo a supremacia racial.

Contudo, em um nível bastante geral, cada país de fato possui um sistema de valores em

comum, especialmente se analisados em contraste com outras sociedades. Na China, por exemplo, a

cooperação, o progresso da sociedade como um todo e a importância da família (independente do

que dizem ou fazem os líderes políticos) são dominantes. Enquanto isso, o individualismo e a

felicidade pessoal estão emergindo aqui como valores muito dominantes, e outros valores, mais

tradicionais – sacrifício pela família, trabalho árduo, lealdade ao emprego e à firma -, estão perdendo

importância.

Dentro de um país, cada comunidade também possui um sistema de valores, influenciado pela

sociedade mais ampla mas também único em virtude da interpretação que ocorre em determinada

comunidade ao longo do tempo. Blumenau, São Paulo, Aparecida, Brasília, Pontal do Paranapanema

são, todas, comunidade brasileiras.Cada uma compartilha da cultura dominante, porém cada qual é

de certo modo única nos valores que salienta. Algumas demonstram forte compromisso com a

família, outras com o trabalho, a religião, a “lei e a ordem”, a mudança radical. Cada organização

formal também desenvolve um sistema de valores, e o mesmo acontece para cada grupo e d íade.

143

Page 144: Apostila Sociologia

Por mais complexo e contraditório que possa ser o sistema de valores de uma organização,

ele ainda assim é diferente de outras organizações e importante para o que as pessoas fazem.

Embora o individualismo não seja defendido por todos como o valor mais importante, ele parece ter

sido um valor de extrema importância desde o princípio dessa sociedade. Está entrelaçado por toda a

sua história, e vem assumindo um lugar de destaque. É um individualismo ligado ao materialismo,

que ora inclui o livre-pensar, ora não o inclui. É um individualismo que tem todo o tipo de

implicações para as idéias a respeito de impostos, negócios, crime, esporte e sexo; que concorre com

valores como família, igualdade, responsabilidade pelos pobres e desfavorecidos e até mesmo

compromisso com uma educação humanista.

A CULTURA É UM CONJUNTO DE OBJETIVOS

Os objetivos, como os valores, são os fins pelos quais as pessoas trabalham. Objetivos são

metas práticas; valores são metas morais. Os objetivos devem ser atingidos e substituídos por outros;

os valores são guias gerais para a ação. Objetivos são os fins específicos em torno dos quais

organizamos nossa ação, os fins que criam os problemas mas que tentamos resolver. Os seres

humanos são solucionadores de problemas. Individualmente, estabelecemos objetivos a alcançar e

organizamos nossos esforços para alcança-los; juntos em, organizações, compartilhamos objetivos a

alcançar e cooperamos a fim de superar os problemas que podem surgir. Um time coopera para

ganhar um jogo ou ser campeão. Uma empresa pode tentar aumentar os lucros em 5% no primeiro

trimestre.

Uma sociedade pode negociar um tratado de paz, baixar a inflação ou redistribuir a renda

mediante um aumento dos impostos para alguns. Todos esses são objetivos. Os valores são

importantes para os objetivos. São nossos compromissos abstratos de longo prazo que atuam

supervisionando nossos objetivos. Trabalhamos em prol dos objetivos que são coerentes com nossos

compromissos de valores. Os objetivos de uma pessoa podem incluir ir à igreja aos domingos de

manhã, trabalhar para um fundo beneficente à tarde e passar um tempo à noite conversando sobre

144

Page 145: Apostila Sociologia

assuntos religiosos com seus filhos, objetivos esses que são todos coerentes com um compromisso

com valores religiosos. Ela também teria objetivo de mais longo prazo coerentes com esses valores:

tornar-se líder de sua igreja, fazer dela uma experiência mais significativa para a congregação,

ensinar aos filhos o valor da religião.

Uma pessoa que tem como valor a educação pode ter os objetivos de concluir o cursos

secundário,

formar-se na faculdade, fazer a pós-graduação, lecionar, incentiva seus filhos a aprender etc. Valores

e objetivos são dois componentes da cultura. Assim como as idéias a respeito da verdade, eles

surgem entre as pessoas à medida que ocorre interação com o passar do tempo. São importantes para

manter coesa a organização, para transformar valores e objetivos individuais em valores e objetivos

da organização e promover a cooperação do indivíduo. Alguns sociólogos ressaltam a importância de

objetivos e valores comuns para a comunidade de toda organização. Obviamente, é difícil ocorrer

cooperação ao longo do tempo se não houver ao menos algum acordo entre quanto a qual deve ser o

alvo de seus esforços.

Cultura significa concordância. Os indivíduos cujas verdades, valores e objetivos são

contrários aos das organizações nas quais interagem dificultam o sucesso da organização. Pense nos

relacionamentos de díade com seu pai ou sua mãe, um amigo, um professor ou seu chefe. Sem

alguma concordância nas idéias sobre a realidade, valores e objetivos, essas díades enfrentarão

conflito, tensão e talvez a dissolução.

A CULTURA É UM CONJUNTO DE NORMAS

O conjunto de normas que temos em comum é o quarto componente da cultura. Já

descrevemos as normas – as expectativas que temos uns dos outros – como se espera que atuemos, as

regras, as leis, o jeito certo. As normas estão associadas a posição da pessoa, sendo portanto parte da

estrutura (lembre-se de que elas compõe um papel), mas também estão associadas à participação no

grupo, independentemente da posição (compõe a cultura).

145

Page 146: Apostila Sociologia

Na interação, concordamos quanto às regras do jogo (os meios empregados para atingir os

fins), e concordamos em observá-las enquanto estamos na organização social. Elas podem ser

procedimentos simples a serem seguidos, ou expectativas informais, tradições, leis ou princípios

morais. Cada um de nós obedece às normas por motivos diferentes – compromisso moral, medo,

expectativa de repensa ou simplesmente por acreditar que as normas são necessárias -, mas a maioria

efetivamente as obedece. Na verdade, dificilmente pensamos realmente nelas. Simplesmente

aceitamos a maior parte das normas que aprendemos desde que entramos para as organizações. Com

conseqüência não refletimos que normas alternativas poderia ser mais racionais ou justas. As

organizações precisam de regras para funcionar. Uma organização social precisa que seus membros

concordem, ao menos em certo grau, em abrir mão de crenças pessoais e aceitar as crenças da

organização.

Isso não precisa estar sujeito a uma concorrência moral, e geralmente não está mesmo, mas

cada organização espera que certos modos de proceder, leis e tradições sejam observados. O grau em

que as regras são necessárias é tema de debate, mas a maioria de nós provavelmente concordará em

que algumas normas são necessárias para todas as organizações sociais. Espera-se que todos sejam

pontuais, fiéis, que ajudem-se mutuamente, procurem a companhia uns dos outros. Um gangue exige

que novos membros passem por ritos de iniciação, requer coragem pessoal e lealdade mais do que a

qualquer outra organização. Ela influencia os indivíduos a serem ousados e pede a todos que

contribuam com tempo e dinheiro e que obedeçam as ordens do líder. Um banco espera que seus

funcionários sejam honestos, alegres e simpáticos com todos os clientes, estipula procedimentos

complexos para garantir precisão e segurança, e desenvolve um conjunto de critérios para a

promoção dos empregados. As comunidades e

sociedades possuem costumes e leis que todos devem seguir.

Qualquer situação que vivenciamos é governada por normas. Comer, vestir-se, andar, dirigir

e até mesmo dormir são comandadas pro regras que surgiram no decorrer de uma longa história

sócia. O modo como adoramos Deus, celebramos o nascimento , lamentamos a morte e até sentimos

dor depende das normas da sociedade. A variedade é quase infinita: de procedimentos simples

146

Page 147: Apostila Sociologia

necessários ao funcionamento de um escritório a tabus cuja violação é punida com a exclusão da

sociedade. A organização é constituída com base na aceitação de normas, em grande medida.

Predizemos as ações dos estranhos na rua, no avião, nas lojas. Contamos com que as pessoas

esperarão sua vez, tratarão uma às outras com respeito e atuarão pacificamente. Um dos efeitos dos

crimes fortuitos e violentos e dos seqüestros de avião é o abalo de normas aceitas de longa data,

provocando desconfiança e medo em situações antes caracterizadas por uma confiança natural.

Essas normas, portanto, existem em toda organização social e fazem parte do padrão

denominado cultura. Elas influenciam, moldam ou controlam (dependendo da situação) a ação do

indivíduo. Certas regras (como as leis, por exemplo) são obedecidas porque percebemos que se não o

fizermos punidos ou a sociedade será ameaçada. Outras, entretanto, assumem importância moral,

tornam-se em nossas idéias sobre o certo e o errado; tornando mais do que regras justas pois a

consciência a culpa têm papel significativo para faze-las vigorar. A maioria das organizações sociais

procurará fazer com que suas regras pareçam moralmente corretas. Às vezes conseguem, às vezes

não. Para alguns indivíduos, uma regra torna-se um guia moral; para outros, permanece apenas uma

regra.

CULTURA, SUBCULTURA E CONTRACULTURA

Muitos sociólogos reservam o termo cultura para a perspectiva que as pessoas de toda uma

sociedade têm em comum, e introduzem outros termos para se referirem às culturas dentro dessa

sociedade. Às vezes distinguem subculturas, contraculturas, culturas de grupos e cultura dominante.

As subculturas são parte de qualquer comunidade ou grupo da sociedade. Ocasionalmente afirma-se

que os adolescentes formam uma subcultura, e se diz o mesmo com respeito a diversos grupos

étnicos, como os índios ou judeus. Subcultura não significa que a comunidade Possui uma cultura

“inferior”. Nenhum sociólogo usa o termo nessa acepção. O prefixo sub deve ser entendido como

“dentro de” e não “inferior a”.

O conceito de subcultura é importante, pois nos alerta que embora possa existir “uma cultura

brasileira”, há muitos grupos e comunidade marcadamente distintos no Brasil. Ao mesmo tempo,

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Page 148: Apostila Sociologia

contudo, o termo também implica que a subcultura não se desenvolve num vácuo, que ela é

influenciada pela cultura mais ampla de vários modos complexos e sutis. Por exemplo, como saliente

Marvin Olsen, a gangue juvenil acredita ser correto roubar carros pode parecer muito diferente da

cultura dominante, porém também ela dá ênfase ao sucesso monetário e à aceitação entre os iguais,

sendo nessa medida influenciada pelos valores da cultura dominante ( 1978, p. 162-3)

O termo contracultura é usado para designar outras culturas dentro da cultura dominante na

sociedade. A contracultura, ao contrário da subcultura, explicitamente “rejeita as normas e valores

que unem a cultura dominante, ao passo que (a subcultura) encontra modos de afirmar a cultura

nacional e a orientação fundamental de valores da sociedade dominante” (Roberts, 1978, p. 114). A

contracultura rejeita “os valores centrais da cultura, existindo maior discrepância entre a cultura e a

contracultura do que dentro de qualquer uma delas” (p. 115). Como qualquer sociedade, cada país

apresenta importantes contraculturas. No mundo, os boêmios da década de 1920, os beatniks dos

anos 1950 e os hippies da década de 1960 são exemplos bastante conhecidos. Em cada um desses

casos, comunidades separam-se da sociedade mais ampla e acolhem valores radicalmente diferentes,

enquanto ofereciam a determinadas pessoas uma alternativa real à cultura dominante. Essas

contraculturas atuaram como uma crítica importante às idéias e valores da cultura dominante. Em

cada caso, contribuíram para a sociedade dando acolhida aos desiludidos, muitas vezes as pessoas

mais criativas da sociedade. Todas as sociedades possuem contraculturas, as quais freqüentemente

proporcionam o cenário para as críticas que conduzem à mudança social.

O termo cultura de grupo ou organização formal. Assim como a subcultura e a contracultura

de grupo é um conceito útil. O time do Palmeiras possui uma cultura de grupo, assim como a Igreja

Universal do Reino de Deus e a União Nacional do Estudantes. Embora não tão distinta quanto uma

subcultura, uma cultura de grupo também tem suas próprias ênfases e orna membros pelo manos

ligeiramente diferentes dos não-membros.

Apesar dessas distinções, é mais importante perceber que existe uma semelhança básica entre

todas as culturas. Todas elas são padrões sociais que emergem da interação. Toda organização social

possui sua própria cultura, em certo grau. Cada uma delas difere, em maior ou menor grau, de todas

as demais. Cada uma exerce importante influência sobre os membros individualmente.

148

Page 149: Apostila Sociologia

A CULTURA É IMPORTANTE

A cultura é fundamental para o indivíduo e para a organização social. Primeiro, ela influencia

o que fazemos. Adoramos Deus, vários deuses ou deus nenhum em razão de nossas verdades, normas

e valores em comum: nossa cultura. Os brasileiros podem ser materialistas, mas isso não é inerente a

sua natureza. Origina-se da cultura, que dá muito valor a bens materiais e nos leva a tomar decisões

materialistas. Casamos, te mos filhos, arranjamos emprego, compramos uma casa nova porque isso é

o que nossa cultura nos leva a fazer. E se decidirmos não casar, não ter filhos, não arranjar um

emprego permanente ou não comprar uma casa nova, isso também pode ser associado à cultura: a

uma cultura que mudou nos últimos anos, induzindo muito mais pessoas dentre nós tomar tais

decisões. Somos influenciados não apenas pela cultura nacional, mas também pelas culturas de nossa

comunidade, organizações, grupos e díades.

Em segundo lugar, a cultura é importante para a organização social. Ela é um dos dois

padrões de toda organização social (o outro é a estrutura). Permite que as pessoas em interação se

entendam e compartilhem uma concepção de como é o mundo e como elas devem trabalhar juntas

nele. Sabemos o que esperar uns dos outros graças à cultura em comum; nós nos acostumamos às

ações e modos de pensar uns dos outros. Em conseqüência, somos capazes de cooperar, de

desenvolver problemas juntos, de encontrar soluções.

A maioria das pessoas não avalia o poder da cultura. Isso acontece porque o mundo em que

nos encontramos parece natural, apropriado, certo, normal. Passa a ser um mundo que aceitamos sem

questionar. AS verdades de nossa cultura tornam-se nossas verdades. Fica difícil entender por que

outras podem ser tão diferentes, fazer coisas que são estranhas, não querer as mesmas coisas que nós

ou “pensar de um jeito esquisito”. De fato, é fácil entender porque as organizações beneficiam-se

ensinando que sua cultura é correta e que outros modos de fazer as coisas são errados, todos

antinaturais ou pecaminosos.

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Page 150: Apostila Sociologia

A VERDADEIRA IMPORTÂNCIA DA CULTURA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA

REALIDADE

É fácil perder-se nos numerosos detalhes contidos neste capítulo. Também é fácil deixar de

perceber toda a importÇancia da cultura quando tentamos memorizar diversos aspectos secundários.

A verdadeira importância da cultura é que os seres humanos adquirem suas crenças por meio da

interação. Nossas verdades, princípios morais, valores e objetivos são, em grande medida,

socialmente criados. Este é um insight importante, e de difícil compreensão. A razão disso é que toda

organização social procura dar a entender que sua cultura é correta, que de fato é a única maneira

como “gente de bem” deve pensar ou atuar. Os cientistas geralmente denominam essa tendência

etnocentrismo, a idéia de que sua própria cultura (etno) é central (centrismo) para o universo e que

todas as outras culturas devem ser julgadas dessa perspectiva, sendo muitas vezes consideradas

inferiores.

Na verdade, assim que avaliarmos o significado de cultura, torna-se difícil ser etnocêntrico,

considerar nossas verdades em termos absolutos. Algumas delas podem de fato ser verdades

absolutas, nossos valores e princípios morais podem ser absolutamente corretos, mas nunca podemos

ter certeza disso. Tudo o que podemos saber com certeza é que, em grande medida, o que sabemos e

acreditamos a respeito do universo foi resultado da interação. É cultural.

A realidade pode existir “la fora”, independentemente do modo como a vemos. Contudo, o

modo como a vemos, o que pensamos sobre ela, o que valorizamos nela ou o que consideramos

correto, originou-se do que Peter Berger e Thomas Luckmann (1966) denominaram “a construção

social da realidade”. É por meio de nossa vida social que passamos a saber o que existe, que

aprendemos o que é real, que nome dar a isso e como usa-lo. Entre a “realidade como ela é” e a

“realidade como eu vejo” existe uma organização social e sua cultura, as lentes sociais por meio das

quais você olha.

150

Page 151: Apostila Sociologia

RESUMO

Neste capítulo salientamos que todas as organizações sociais desenvolvem o padrão social

que aqui denominamos cultura. A cultura é uma visão em comum da realidade, uma perspectiva

partilhada, uma concordância geral quanto ao que é verdadeiro, correto e válido. A cultura, assim

como a estrutura social, origina-se da interação, influencia o ator individual e ajuda a garantir a

organização social. Um outro padrão social precisa ser explicado. É o padrão social chamado

instituição.

17 IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO SOCIAL

Às vezes percebemos que algumas idéias tomam vida própria e passam a nos dominar. Mal

sabemos o imenso poder que elas têm sobre nós quando estamos desatentos ou quando pensamos que

pensamos. Mas com consciência crítica, todos nós podemos elaborar nossas próprias concepções.

IDEOLOGIA é uma forma de consciência da realidade, mas uma consciência parcial, ilusória e

enganadora que se baseia na criação de conceitos e preconceitos como instrumentos de dominação.

Designa os sistemas de idéias que elaboram uma "compreensão da realidade" para ocultar ou

dissimular o domínio de um grupo sobre outro.

ANTERIORIDADE - a ideologia funciona como um conjunto de idéias.

GENERALIZAÇÃO - a ideologia tem como finalidade de produzir um consenso coletivo.

LACUNA- a ideologia é uma lógica construída na base de lacunas, omissões, silêncios e saltos.

A) A VONTADE SEM FORÇA

151

Page 152: Apostila Sociologia

A generalização da afirmativa "querer é poder" oculta o peso enorme das desigualdades

sociais que separam os homens em termos de alimentação, educação, trabalho e capital. O que é

contra a ideologia do "querer é poder" não elimina a importância da chamada "força de vontade" na

realização dos nossos objetivos.

B) IDEOLOGIA NA ESCOLA

CADA UM PARA SI a escola freqüentemente ensina os alunos a competirem uns com os outros.

OS SENTIMENTOS DE INFERIORIDADE E DE SUBMISSÃO- os alunos que fracassam.

na escola ou não conseguem o mesmo sucesso que os outros em geral são ridicularizados.

O RESPEITO PELA ORDEM SOCIAL VIGENTE- o aluno é levado a reverenciar a ordem social

existente.

A teoria filosófica constitui uma construção aberta, dinâmica e criadora. Ao contrário, as

ideologias são doutrinas fechadas, rígidas pretensamente completas.

C) A PARCIALIDADE DA RACIONALIZAÇÃO IDEOLÓGICA

A maior parte do raciocínio humano consiste em descobrirmos argumentos para

continuarmos a crer no que cremos.

D) RELAÇÕES CULTURAIS BRASIL X EUA ( um exemplo de ideologia)

A difusão de certos aspectos da cultura norte-americana é um fa-to inescapável de nosso

tempo. Vivemos no Brasil cercados de videocassetes e video games; comemos hot-dogs, hamburgers

e chips; tomamos cocas e sodas, vestimos T-shirts e blue-jeans. Os filhos de famílias mais aquinhoa-

das possuem skates, pranchas de surfe apreciam o motocross. Ou-vimos rocks e souk produzidos por

bands intituladas Kiss, Viliage People e assemelhados. Fenômenos sociais ligados á juventude

atravessaram fronteiras e aqui se estabeleceram com os nomes de origem, desde os beatniks passando

pelos hippies; e chegando aos punks. Temos até a novidade patológica do momento: a AIDS.

152

Page 153: Apostila Sociologia

Não se pode dizer porém que essa história começou ontem. Na década de 50, as crianças

brasileiras já brincavam de bandido e mocinho, reproduzindo o famoso "camôni, boy!" consagrado

nas telas de cinema. Àquela época, já dizíamos okay, morávamos num big país, líamos gibis e íamos

ao cinema aos sábados ver filmes de far-west. Batman, Capitão Marvel, Jesse James e o mito John

Wayne povoavam a fantasia infantil brasileira naqueles anos.

Para sermos mais exatos, a chegada visível de “Tio Sam” ao Brasil aconteceu mesmo no

início dos anos 40, em condições e com propósitos muito bem definidos. A presença econômica,

menos visível, era bem anterior e certas manifestações culturais, como o cinema de Hollywood, já

inculcavam valores e ampliavam mercados no Brasil. Mas a década de 40 é notável pela presença

cultural maciça dos Estados Unidos, entendendo-se cultura no sentido amplo dos padrões de

comportamento, da substância dos veículos de comunicação social, das expressões artísticas e dos

modelos de conhecimento técnico e saber científico. O traço comum às mudanças que então

ocorriam no Brasil na maneira de ver, sentir, explicar e

expressar o mundo era a marcante influência que aquelas mudanças recebiam do "american way of

life".

Proclamava-se naquela época a idéia de uma política de boa vizinhança entre os Estados

Unidos e os demais países americanos. Essa boa vizinhança significaria um convívio harmônico e

respeitoso entre todos os países do continente. Significaria também uma política de troca

generalizada de mercadorias, valores e bens culturais entre Estados Unidos e o restante da América

Foi nesse contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais

onipresentes à mesa por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada Coca-Cola. Começaram

também a trocar os sorvetes feitos em pequenas sorveterias por um sucedâneo industrial chamado

Kibon, produzido por uma companhia, que se deslocara às pressas da Asia, por efeito da guerra.

Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada chiclets e começaram a usar palavras novas que

foram se incorporando á sua língua falada e escrita. Passaram a ouvir ofox trot, o jazz, o boogie-

woogie entre outros ritmos e começaram a ver muito mais filmes produzidos em Hollywood.(...)

A boa vizinhança apresentava-se como unia avenida larga, de mão dupla, isto ê, um

intercâmbio de valores culturais entre as duas sociedades. Na prática, a fantástica diferença de

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Page 154: Apostila Sociologia

recursos de difusão cultural dos dois países produziu uma influencia de direção praticamente única,

de lá para cá. Nossos compositores populares perceberam a mão única da troca cultural que então se

propunha e a expressaram criticamente em suas músicas. Nos versos de Assis Valente, por exemplo,

"O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada.

Anda dizendo que o molho da baiana melhorou o seu prato...

Eu quero ver, eu quero ver eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar.."

Também se poderia lembrar, no plano artístico, as exportações do sul do continente para os

Estados Unidos e cujo melhor exemplo - antes da bossa nova da década de 60 - foi a nossa Carmen

Miranda, a "Pequena Notável", até hoje lembrada no mundo anglo-saxão como representante da

música brasileira. No entanto, é também verdade que as contribuições artísticas que seguiam da

América Latina para os Estados Unidos tinham seu "exotismo" freqüentemente temperado, de acordo

com os padrões do gosto norte-americano para facilitar sua digestão por nossos vizinhos. Esse

"tempero" tendia a transformar a América Latina numa unidade indistinta em suas manifestações

culturais, pondo-nos todos a usar sombreros mexicanos, a fazer a siesta e a dançar algo semelhante à

rumba. Cobertos de razão estavam os compositores Gordurinha e A. Castilho, ao proporem:

"Sô ponho bi-bop no meu samba quando Tio Sam pegar no tamborim, quando ele pegar no

pandeiro e. no zabumba, quando ele entender que o samba não é rumba."

18 ALGUMAS FORMAS HISTÓRICAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS

A) O Messianismo

Em 5 de outubro de 1897, soldados da emergente República varreram do mapa o Arraial de

Canudos, erguido em 1893 no sertão baiano pelos seguidores do líder religioso cearense Antônio

Conselheiro. Na época, pensou-se ser o ato o último dessa tragédia brasileira. Pode até ter sido , mas

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Page 155: Apostila Sociologia

cem anos após o fato, essa história ainda não tem uma versão final definitiva. Isso porque os

governos, mesmo os democráticos, tendem a pôr uma pedra sobre episódios que os envergonham,

não a encerrá-los – foi assim, também, com os EUA, que ainda ignoram o fiasco no Vietnã, em 1975.

No caso do Brasil, a ‘pedra’ é o Açude Cocorobó que, em 1968, auge do último ciclo militar,

inundou as ruínas do arraial. O Cocorobó foi providencial: afogou os vestígios de uma vitória

desonrosa. Afinal, os inimigos não eram adeptos de ideologias ou seitas extremistas, mas sertanejos

simples que apenas viram na vida comunitária do arraial a perspectiva de um dia-a-dia menos hostil.

Se, fisicamente, Canudos foi por água abaixo, na memória popular, teimosamente subversiva, ele

deixa à tona uma pergunta que não cala: como um país tido como pacífico pode cometer um

genocídio apenas para consolidar um sistema de governo, a República? Não há como responder, já

que em tempo algum, na História da humanidade, esses atos se justificaram.

Cabeças cortadas – É genocídio, de fato, é a palavra. No mínimo 4 mil pessoas pereceram na

batalha de outubro de 1897. Ao seu final, com as 5.200 casas do arraial queimadas, mulheres e

crianças foram arrebatadas pelos soldados, que as venderam como escravas ou as deportaram para

outras regiões. Entre os homens, quem se rendeu foi degolado. Como, aliás, o Conselheiro que, tendo

morrido pouco antes (22 de setembro de 1897), aos 69 anos, de causas naturais, foi exumado e teve a

cabeça exibida em Salvador, BA. Os sobreviventes da batalha foram contados nos dedos da mão:

quatro homens, sendo um negro, um caboclo e dois brancos - estes, um era velho e, o outro, um

menino de 16 anos.

Curiosamente, os poupados eram de três etnias diferentes, que, frente a um exército de 6 mil

soldados, guerreavam por algo que, para eles, não existia fora dali: um quilombo multiracial ou uma

comunidade igualitária, segundo alguns. Ou uma irmandade regida por um código religioso severo,

baseado em um cristianismo medieval, segundo outros. Ou ainda, o que era mais ameaçador à jovem

República, uma comunidade com legislação autônoma, sem polícia e impostos. E o que era

Canudos? Ao que consta, um pouco disso tudo, a se julgar pela personalidade de seu mentor.

Antônio Conselheiro, batizado como Antônio Vicente Mendes Maciel, era um leitor do

pensador inglês Thomas Morus (1480-1535), autor de Utopia, obra que imaginava uma ilha feliz e

cujos bens eram coletivos. Idealista, Conselheiro pôs tais idéias em prática. Em Canudos não havia

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Page 156: Apostila Sociologia

propriedade privada e as pessoas renunciavam à riqueza. Conta-se que, ao ser admitida, a pessoa

doava um terço dos bens para um fundo comum. O que não impediu o arraial de ser um dos mais

populosos da Bahia no fim do século 19, com 8 mil habitantes. Profeta socialista – Apesar da visão

política, Conselheiro baseava sua liderança na pregação religiosa. Sob sua orientação, os seguidores

oravam várias vezes ao dia e à noite assistiam a uma prédica de uma hora do líder. A cidade era

ordeira – o álcool, proibido – e organizada – havia escola para crianças e adultos analfabetos.

Também existia uma cadeia, mas até onde se sabe ela era chamada de "poeirão’, por ficar deserta.

De acordo com isso, Conselheiro tanto podia ser um socialista temporão ou um profeta

messiânico, nunca um louco, como a ordem vigente na época propagandeava. Tal imagem

predominou porque ele e Canudos ameaçavam a República, justamente quando esta, estabelecida há

pouco, em 1889, precisava se afirmar. Prova essa necessidade os excessos cometidos contra o povo,

como a tributação de novos impostos, dos quais só os fazendeiros e latifundiários ficaram isentos.

Foi por isso, a exemplo do ocorrido com Tiradentes durante a derrama no Império, que Conselheiro

surgiu em cena. Em Bom Conselho, na Bahia, em 1893, ele rasgou os editais de cobrança, atraindo

centenas de desvalidos – ex-escravos, camponeses e sem-terra – que, com ele, fundaram, às margens

do Rio Vaza-Barris, o Arraial

do Belo Monte, popularizado como Canudos.

A República viu em Conselheiro não um revoltado contra um excesso e uma miséria social

crônica – agravada por mais uma seca -, mas um inimigo financiado por monarquistas e pelo Conde

D’Eu, marido da princesa Isabel. Com isso, a reação do governo, comandada por militares, foi bélica,

em vez de diplomática. O primeiro ataque, de 1896, menosprezou Canudos: com apenas cem praças,

a expedição militar foi escorraçada. A Segunda (600 homens e um canhão) no final de 1896 e a

terceira (1500 homens e mais armamentos pesados), em fevereiro do ano seguinte, também.

Prêmio de sangue – Com tantos fracassos, destruir o arraial tornou-se questão de honra. Nem

tanto pela resistência dos sertanejos, mas pela fama de Canudos que se espalhava por todo o País,

colocando o regime em situação difícil perante a opinião pública. Um exemplo dessa notoriedade

foram as reportagens do enviado especial do jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, cujo

trabalho rendeu o épico Os Sertões. Como o governo não aguentaria um novo fracasso, enviou uma

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Page 157: Apostila Sociologia

expedição de 6 mil homens, comandada pelo próprio ministro da Guerra, general Machado

Bittencourt, que finalmente arrasou o arraial.

Em nome do quê? A rigor, de nada. Se fosse m julgados hoje por um júri internacional, os

ataques careceriam de fundamentos morais e jurídicos, pois Conselheiro e seus seguidores eram de

paz, não coagiam ninguém, nem sequer atentavam contra a propriedade privada. Tinham, apenas,

presumivelmente, opinião diferente da oficial, sobre como deveriam organizar suas vidas, o que aliás

fizeram sem agredir ninguém. Consumado o erro, com Canudos derrotada, conferiu-se ao vencedor,

na época, o posto de herói que, ironicamente, foi brindado com sangue. Na volta ao Rio de Janeiro,

em maio de 1898, ao ser saudado no Palácio do Catete, Bittencourt, o general da vitória, tombou

morto frente à sua tropa, em um atentado que tinha como alvo Prudente de Morais, primeiro

presidente civil do País. Objetivo do crime: restituir o poder aos militares. "Viva o general Floriano

Peixoto" – gritavam seus autores.

B) O Cangaço

No dia 28 de julho de 1938 chega ao fim a trajetória do mais popular cangaceiro do Brasil.

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi morto na Grota do Angico, interior de Sergipe. Por sua

inteligência e destreza, Lampião até hoje é considerado o Rei do Cangaço. Virgulino Ferreira da

Silva nasceu em 1897, na comarca de Vila Bela, região do Vale do Pajeú, Estado de Pernambuco.

Dos 9 irmãos, Virgulino foi um dos poucos a se interessar pelas letras. Freqüentava as aulas dadas

por mestres-escolas que se instalavam nas fazendas. No sertão castigado por secas prolongadas e

marcado por desigualdades sociais, a figura do coronel representava o poder e a lei. Criava-se desta

forma um quadro de injustiças que favorecia o banditismo social. Pequenos bandos armados,

chamados cangaceiros, insurgiam-se contra o poder vigente e espalhavam violência na região. Eram

freqüentes, também, os atritos entre famílias tradicionais devido às questões da posse das terras, às

invasões de animais e às

brigas pelo comando político da região.

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Page 158: Apostila Sociologia

Num desses confrontos, o pai de Lampião foi assassinado. Para vingar a morte do pai, entre

outros motivos, Lampião entra para o cangaço, por volta de 1920. A princípio segue o bando de

Sinhô Pereira. Mostrando-se hábil nas estratégias de luta, assume a chefia do bando em 1922, quando

Sinhô Pereira deixa a vida do cangaço. Lampião e seu bando vivem de assaltos, da cobrança de

tributos de fazendeiros e de "pactos" com chefes políticos. Praticam assassinatos por vingança ou por

encomenda. Pela fama que alcança, Lampião torna-se o "inimigo número um" da polícia nordestina.

Muitas são as recompensas oferecidas pelo governo para quem o capture. Mas as tropas oficiais

sempre sofrem derrotas quando enfrentam seu bando. Como a polícia da capital não consegue

sobreviver no sertão árido, surgem as unidades móveis da polícia, chamadas Volantes. Nelas se

alistam os "cabras", os "capangas" familiarizados com a região. As volantes acabam tornando-se

mais temidas pela população do que os próprios cangaceiros. Além de se utilizarem da mesma

violência no agir, ainda contam com o respaldo do governo. Lampião ganha fama por onde passa.

Muitas são as lendas criadas em torno de seu nome. Por sua vivência no sertão nordestino, em 1926,

o governo do Ceará negocia a entrada de seu bando nas forças federais para combater a Coluna

Prestes. Seu namoro com a lei dura pouco. Volta para o cangaço, agora melhor equipado com as

armas e munições oferecidas pelo governo.

Em 1930, há o ingresso das mulheres no bando. E Maria Déia, a Maria Bonita, torna-se a

grande companheira de Lampião. Em 1936, o comerciante Benjamin Abraão, com uma carta de

recomendação do Padre Cícero, consegue chegar ao bando e documenta em filme Lampião e a vida

no cangaço. Esta "aristocracia cangaceira" , como define Lampião, tem suas regras, sua cultura e sua

moda. As roupas, inspiradas em heróis e guerreiros, como Napoleão Bonaparte, são desenhadas e

confeccionadas pelo próprio Lampião. Os chapéus, as botas, as cartucheiras, os ornamentos em ouro

e prata, mostram sua habilidade como artesão. Após dezoito anos, a polícia finalmente consegue

pegar o maior dos cangaceiros.

Na madrugada do dia 28 de julho de 1938, a Volante do tenente João Bezerra, numa

emboscada feita na Grota do Angico, mata Lampião, Maria Bonita e parte de seu bando. Suas

cabeças são cortadas e expostas em praça pública. Lampião e o cangaço tornaram-se nacionalmente

conhecidos. Seus feitos têm sido freqüentemente temas de romancistas, poetas, historiadores e

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Page 159: Apostila Sociologia

cineastas, e fonte de inspiração para as manifestações da cultura popular, principalmente a literatura

de cordel. E nos versos de um poeta popular desconhecido, sua lenda se propaga: "Seo Virgulino

Ferreira, conhecido Lampião, Muito fala que é bandido"

C) Semana de Arte Moderna

A DÉCADA DE 20

Contexto Brasileiro - Neste momento, o Brasil parece entrar em outro contexto. A vitória do

bolchevismo na Revolução Russa teve repercussões no País, assim como no mundo todo. As idéias

comunistas ganharam espaço, e alguns líderes anti-anarquistas se tornaram Marxistas. Em 1917, em

São Paulo, cerca de 75 mil trabalhadores participaram de uma Greve. No Rio, neste mesmo ano, os

grevistas somaram 50 mil. Em 1922, foi fundado o partido Comunista, que se conside-rava mais

avançado

politicamente a outras organizações operárias.

O descontentamento com os governos republicanos atingia também os militares. Eles, que

haviam ocupado a presidência nos primeiros anos da República, consideravam-se agora

politicamente marginalizados. A oposição do governo se localizava, sobretudo a jovem oficialidade,

os tenentes que, na década de 20, se contra-punham ao poder central. A ação desses grupos iniciou-se

mais diretamente, com o Levante no Forte do Copacabana, no Rio de Janeiro, em 5 de Julho de 1922.

O Tenentismo tinha raízes nas insatisfações com a administração pública, com a corrupção

política, com o desrespeito as normas constitucionais. Não havia entre os tenentes um pensa-mento

político homogêneo e bem definido, ne m eles chegaram a formar um partido político. O que os

unificava era o desejo de mudança, de moralização dos governos. Não era contra a República, nem

tão pouco contra o Capitalismo.

Nem só de operários, tenentes, coronéis vivia a república do Brasil. Se as nossas poderosas

elites políticas se negavam a reformular sua prática administrativa, se as vanguardas européias

falavam numa revolução social, se os tenentes agitavam os quartéis e as ruas com seus protestos,

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Page 160: Apostila Sociologia

havia grupos de intelectuais pensavam em um outro Brasil, modernizado, mas sem perder sua

identidade cultural.

Ca ) MODERNISMO

Sob o termo genérico Modernismo resumem-se as correntes artísticas que, na última década

do século XIX, e na primeira do século XX propõe-se a interpretar, apoiar e acompanhar o esforço

progressista, econômico-tecnológico, da civilização industrial. São comum as tendências

Modernistas:

1- A deliberação de fazer uma arte em conformidade com sua época e a renúncia a invocação

de modelos clássicos, tanto na temática como no estilo;

2- desejo de diminuir a distância entre as artes "maiores" (Arquitetura, Pintura e Escultura) e

as "aplicações" aos diversos campos da produção econômica (construção civil, decoração,

vestuário, etc);

3- A busca de uma funcionalidade decorativa;

4- A aspiração a um estilo, linguagem internacional ou européia;

5- O esforço em interpretar a espiritualidade que se dizia inspirar e redimir o industrialismo.

Por isso, mesclam-se nas correntes modernistas, muitas vezes de maneira confusa, motivos

materialistas e espiritualistas, técnico-científicos e alegórico-poéticos, humanitários e sociais. Por

volta de 1910, quando o entusiasmo industrial sucede-se a consciência da transformação em curso

das próprias estruturas da vida e da atividade social, formar-se-ão no interior do Modernismo as

vanguardas artísticas preocupadas não mais apenas em modernizar ou atualizar, e sim em

revolucionar radicalmente as modalidades e finalidades da Arte.

Cb) A SEMANA DA ARTE MODERNA

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Page 161: Apostila Sociologia

Antecedentes - A Semana foi o coroamento de todo um longo processo de renovação que há

anos vinha ocorrendo. Suas princi-pais etapas são as que a seguir se enumeram: a chegada de Oswald

de Andrade ao Brasil em 1912, trazendo da Europa o conhecimento de novas formas de expressão

artística, como as de Paul Fort e as sugeridas pelo Manifesto Futurista de Marinetti; A exposição de

Lasar Segall em 1913, na cidade de Campinas, a 1º amostra de pintura não acadêmica apresentada no

Brasil; a ação crítica de Oswald de Andrade, a frente do semanário o Pirralho, no qual desde 1915,

defendia a necessidade de se dar à pintura brasileira uma motivação nacional; o lançamento, em

Portugal (1915), da revista Orfeu, dirigida por Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, cujos nomes

tutelares eram Camilo

Pessanha, Verlaine, Mallarmé, Walt Whiltman, Marinetti e Picasso; a exposição de Anita Malfatti,

em 1917, que Monteiro Lobato atacou violentamente, mas que, congregando jovens intelectuais e

artistas, arregimentou-os, neles criando também a consciência do novo e da rebelião; os ensaios

futuristas de Oswald em periódicos da Paulicéia; a projeção mundial dos postulados, estéticos de

Marinetti; a descoberta da escultura monumental de Vitor Brecheret numa sala do Palácio das

Indústrias; as advertências de Oswald de Andrade, em 1920, de que o centenário da independência

do Brasil se faria valer notadamente pela atuação de um grupo pequeno de escritores e artistas; a

revelação, ainda por Oswald, em artigo do jornal, da poesia insólita de Mário de Andrade, e os

ensaios deste, intitulados Mestres do Passado que analisam, sob novo ângulo crítico, a poesia de

Francisca Júlia, Raimundo Corrêa, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho; o

regresso de Graça Aranha ao Brasil em 1921, e

seu imediato contato com os intelectuais de São Paulo, que deles se valeram para coonestar a

aventura em planejamento; a constituição da bandeira futurista, que parte da capital paulista buscar

adeptos no Rio de Janeiro; e a exposição de Di Cavalcanti em São Paulo, em que se projeta a

realização de uma semana de arte moderna, um festival que reunisse um grupo inovador e ecoasse,

escandalosamente, para marcar, de forma nítida e definitiva, a divisão das mentalidades, a ruptura do

velho e a instauração do novo.

19 SOCIEDADE E A DISCRIMINAÇO SOCIAL

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Page 162: Apostila Sociologia

ALGUMAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO:

CONCEITO CONSTITUCIONAL:

A Constituição do Brasil em seu Artigo 153, § 1º assim reza: Todos São iguais perante a lei,

sem distinção de sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o

preconceito de raça. Atualmente, na maioria das nações modernas o igualitarismo é apresentado

como um ideal. Sabe-se que este ideal permanece e está longe de se tornar realidade. Contudo, tempo

houve em que a desigualdade era defendida como um valor. O cristianismo medieval, por exemplo,

não obstante a doutrina igualitarista evangélica primitiva, não hesitava em ver nas classes sociais

uma disposição fixa e imitável ditada pela vontade divina. Mais incisiva ainda era a posição do

hinduismo tradicional com o seu sistema de castas, onde ascensão social só poderia dar-se através da

reencarnação.

CRITÉRIOS ADMISSÍVEIS E NÃO ADMISSÍVEIS DE DISCRIMINAÇÃO:

Algumas das chamadas minorias sociais, na verdade, não são minorias. As mulheres, por

exemplo, já são mais numerosas que os homens na composição da população brasileira. Também os

negros e os mulatos formam um grupo numeroso: são aproximadamente 45% do total da população.

Minorias Sociais é a expressão usada para identificar determinados grupos sociais que

apresentam características e problemas específicos. Por exemplo, são discriminado, rejeitados e

sujeitos à toda sorte de violência e abandono. Mulheres, menores, idosos, negros, índios,

homossexuais, deficientes físicos e outros grupos fazem parte das minorias sociais. Sofrem, de várias

formas, a discriminação e a violência por parte da sociedade. Os pretos e os mulatos, por exemplo,

que em sua maioria pertencem às classes mais pobres, sofrem ainda outras pressões sociais em

função de sua cor: são preteridos no emprego, impedidos de entrar em determinados lugares, às vezes

mal vistos na escola, etc.

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Page 163: Apostila Sociologia

Os problemas que afetam especificamente as minorias sociais revelam realidades profundas

da nossa vida social, que têm permanecido encobertas ao longo do tempo, como o preconceito social

e racial, a discriminação e a violência contra pessoas e grupos em função de sua condição de classe,

sexo, raça, religião, tradição cultural, etc. Tem sido costume nosso negar a existência de qualquer

forma de racismo ou discriminação. As elites sociais e intelectuais e os governos sempre afirmaram

que o Brasil é uma democracia racial, e que aqui não existe o preconceito racial como existe em

outros países reconhecidamente racistas. Um dos argumentos que apoiam essa afirmação é o de que a

legislação brasileira garante a plena igualdade política e jurídica dos cidadãos. Quer dizer, todos são

iguais, têm os mesmos direitos perante a lei.

É evidente que esta posição não é totalmente verdadeira. Não faz muito tempo, nos anos da

ditadura militar, ouvia-se de algumas autoridades a seguinte afirmação: “todos são iguais diante da

lei, mas, cada macaco no seu galho”. Essa é a questão. Não basta que a lei proíba a discriminação. É

preciso que a sociedade não a pratique.

O MENOR

Para o governo, eles são 20 milhões. Para alguns estudiosos e segundo vários centros de

pesquisa, eles chegam a mais de 30 milhões. E um número terrível: existem no Brasil de 20 a 30

milhões de menores carentes, em situação de forte abandono social, vivendo principalmente nas

grandes cidades. Desgarrados da família e da escola, quase sempre sem um trabalho dignamente

remunerado e com mínimas possibilidades de estabilização social e profissional, os chamados

menores abandonados têm razões de sobra para rebelar-se e agredir a sociedade.

Os menores carentes, que muitas vezes são violentos, apresentam, de forma geral, as

seguintes características:

- vêm das famílias mais pobres (grupo de aproximadamente 4 milhões de famílias em todo o país);

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Page 164: Apostila Sociologia

- começam a trabalhar muito cedo, antes dos 10 anos, tornando-se complemento indispensável da

renda familiar;

- abandonam rapidamente a escola por desinteresse e por causa da necessidade do trabalho;

- são levados muito cedo a enfrentar(a vida, devido à desagregação familiar, freqüente entre as

famílias muito pobres;

- chegam à juventude (15 a 20 anos) semi-analfabetos, despreparados profissionalmente,

desequilibrados emocionalmente e, muitas vezes, já envolvidos na delinqüência e no crime.

Os milhões de menores abandonados, celeiro de onde saem os menores e jovens infratores,

são um dos piores frutos dos desequilíbrios econômicos e sociais do país. A extrema desigualdade da

distribuição da renda e das oportunidades de participação econômica, social e política produziu essa

imensa massa de pobres e miseráveis que se vê por toda a parte e cuja expressão mais cruel são os

milhões de crianças e jovens carentes e muitos deles abandonados.

Através de instituições como a FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem estar do Menor)

e FUBEMS (Fundações estaduais), órgãos viciados no autoritarismo do regime militar, dificilmente

o estado e a sociedade conseguirão solucionar a grave questão dos menores abandonados. Antes de

mais nada, é preciso garantir escolas públicas e trabalho digno para essa população carente, além de

programas de apoio e orientação familiar. Só assim a sociedade terá condições morais e políticas

para se defender da violência dos trombadinhas e trombadões, punindo as infrações e tentando

corrigir os infratores.

O Negro

A palavra negro tem sido usada pelos cientistas sociais brasileiros para designar pretos e

Pardos* e suas expressões sociais e culturais no conjunto da vida do país. A população negra (pretos

e pardos) vem crescendo nas últimas décadas. Em 1940 representava 35% do total da população

brasileira, e, em 1980, chegava aos 45%, aproximadamente. Veja os números dos censos

demográficos. A população negra vem crescendo cada vez mais, ampliando sua participação

percentual no conjunto da população do país. Porém, isto não contribuiu para mudar em quase nada a

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Page 165: Apostila Sociologia

posição dos negros no mercado de trabalho, na distribuição da renda, no grau de instrução etc. Entre

os que ganham mais de 10 salários mínimos por mês, 86% são brancos e 10% são negros. Apenas

6% dos negros passam do primeiro grau, enquanto que 16%, dos brancos completam o segundo grau.

Cerca de 73% dos negros começam a trabalhar entre 5 e

14 anos de idade, o mesmo ocorrendo com 61% dos brancos. Dos trabalhadores não-manuais,

78% são brancos e 20% são negros.

Não há nenhuma dúvida de que os negros fazem parte do grupo social mais pobre e com

menores oportunidades de acesso à instrução e à preparação profissional. São os negros menos

inteligentes ou menos capazes que os brancos ? Evidentemente que não. Os números mostrados

acima apenas comprovam a discriminação social que existe contra os negros. Discriminação que não

esta nas leis, mas está na prática, no dia-a-dia da nossa sociedade. A sociedade branca

(principalmente as camadas mais privilegiadas) ainda olha com algum desprezo os negros,

atribuindo-lhes, como herdeiros da antiga escravidão, uma condição social, econômica e cultural

inferior.

Assim como durante o regime escravagista, nos tempos da Colônia e do Império, os negros se

rebelavam contra a opressão, hoje eles procuram ampliar e fortalecer suas organizações para

participar livre e democraticamente da sociedade brasileira. Desde 1930, quando foi fundada a Frente

Negra, que de São Paulo espalhou-se por todo o Brasil, até 1978, quando foi criado o Movimento

Negro Unificado, os negros não têm cessado de denunciar e de resistir contra todas as formas de

discriminação que ocorrem em escolas, empresas, condomínios, sindica-tos, clubes, partidos

políticos, órgãos públicos etc. O objetivo das organizações negras, sociais, políticas ou culturais é o

mesmo: defender a cultura negra e fortalecer o grupo para que possa participar, em condição de

igualdade, com os demais grupos, da vida social do país.

A Mulher

Como vimos atrás, as mulheres hoje são a maioria da população brasileira. No mercado de

trabalho, as mulheres vêm participando cada vez em maior número. Porém, apesar disso, elas ainda

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Page 166: Apostila Sociologia

não alcançaram a justa igualdade social com os homens. Em geral, ganham salários inferiores,

sofrem restrições para o exercício de determinadas profissões, permanecem em condição inferior na

estrutura da família, têm maior dificuldade em trabalhar fora de casa por causa dos filhos etc.

A luta das mulheres brasileiras por seus direitos vem de longe. Pelo menos desde 1922,

quando a doutora Berta Lutz, cientista e militante feminista, fundou a Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino. No início dos anos 30, as mulheres conseguiram o direito de votar e candidatar-

se a cargos eletivos. Enfrentaram a ditadura do Estado Novo (1937-45), denunciando o regime

ditatorial e racista. Após a Segunda Guerra Mun dial, em 1949, foi criada a Federação das Mulheres

Brasileiras. Com o golpe militar de 1964, os movimentos independentes de mulheres foram

bloqueados, preservando-se os que davam apoio ao regime autoritário.

Foi a partir de 1975 (Ano Internacional da Mulher) que as organizações de mulheres

recuperaram sua força. Através de congressos, encontros, jornais revistas e estudos científicos

difundiram-se idéias e criaram-se inúmeras associações e movimentos locais, regionais e nacionais.

Esses movimentos assumiram diferentes lutas pelos direitos das mulheres, de acordo com as

condições econômicas, sociais e culturais de seus participantes: campanhas por creches, movimentos

contra a carestia e contra a violência sexual, debates sobre a reforma do Código Civil, sobre o aborto

etc. E ao lado da mobilização por essas questões específicas, as mulheres também participaram, junto

com os sindicatos, partidos políticos e outras entidades, das grandes campanhas nacionais pela

anistia, pelas eleições diretas, pelo fim do regime militar.

O que as mulheres querem agora, como antes, são os seus direitos. Que eles sejam

estabelecidos na nova Constituição e incorporados à vida social: igualdade plena com os homens, na

família, no trabalho, na política; salários iguais aos dos homens para trabalhos iguais; meios

materiais para poderem exercer sua profissão sem prejudicar a educação dos filhos menores (creches,

pré-escola etc.); participação em todas as decisões políticas importantes que afetem a vida das

mulheres, como o planejamento familiar, a legalização ou não do aborto e outras.

O Idoso

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Page 167: Apostila Sociologia

O fato de ser uma pessoa idosa, não significa que seja uma pessoa doente. Como toda

criatura humana, o velho é um ser sensível e capaz de realizar trabalho produtivo, se saudável. Se for

doente, como acontece às crianças, aos jovens, aos adultos, necessita de cuidados especiais que

visem o restabelecimento da saúde. Se incapaz para o trabalho, criança, jovem ou velho, torna-se

dependente. Neste momento surge uma decisão dramática para a família. Cercá-lo de cuidados e

afeição, no próprio lar, ou interná-lo. Mantê-lo em casa é ocupar uma pessoa para tratá-lo, o que não

lhe é possível, pela necessidade de todos precisarem trabalhar para o sustento da própria família .

Duas soluções, neste caso, caberiam ao Estado Social: interná-lo num ambiente próprio ou

destinar-lhe uma verba. Qual a melhor solução, a mais barata, se o idoso não necessita de cuidados

médicos? Pagar-lhe uma aposentadoria, mantê-lo no seu lar. Em seu discurso, na abertura do

Seminário Nacional sobre "Estratégias de Política Social para o Idoso no Brasil", o Ministro

Nascimento e Silva, afirmou: "O que se pretende é levantar a situação atual do idoso, do ponto de

vista social e estudar os seus problemas principais, com o objetivo de fixar estratégias capazes de

dar-lhes solução no quadro das possibilidades nacionais - tentar, enfim, o estabelecimento de uma

Política Nacional para o Idoso".

O próprio Ministro pergunta: " Haverá mesmo necessidade de se traçarem os lineamentos de

uma política nacional para o idoso? A velhice, para sociedades ainda bem próximas de nós, não

significava, de modo algum, uma marginalização, nem acarretava situações de desamparo ou perda

de status. Nelas foi sempre atribuída aos mais velhos uma posição de respeito e predominância, como

fonte de experiência e sabedoria. E mais: "Também a organização familiar ou a estrutura agrária,

podiam proporcionar um natural amparo àqueles cuja aptidão física para o trabalho ia

desaparecendo".

Graças a isso, o idoso não se sentia segregado da vida social, mas um ser válido e estimado,

tratado sempre com respeito e consideração. Finaliza o Ministro Nascimento e Silva: "Agora,

entretanto, em todos os países, estuda-se o idoso como um problema social, e uma parcela

considerável de suas respectivas populações se sentem e estão de fato marginalizada da vida social,

quando não em condições de total desamparo, à míngua de cuidados e proteção". No mesmo

seminário foi declarado: "Apesar de os números revelarem uma maior incidência de sintomas,

167

Page 168: Apostila Sociologia

cicatrizes e males entre as pessoas idosas, a velhice não é uma doença, como também, a infância, a

adolescência e a maturidade, não são sinônimos de saúde".

Prossegue a mesma informação: "É justamente por desconhecer a diferença entre a doença e a

velhice que, em geral, se rotula a infância com o protó tipo de saúde". Estudos efetuados nas artérias

de jovens soldados norte-americanos, mortos na guerra da Coréia, revelaram, claramente, sinais de

arteriosclerose. "A grande ilusão ótica da velhice como uma fase estática da vida, costuma gerar uma

série de preconceitos, que só têm servido para distorcer uma visão plena e plural do homem idoso,

assim como agrava, em nossos dias, a relação dos mais velhos na família, na sociedade, com outros

grupos e, principalmente, com os jovens" - declarou, naquele Seminário, o Dr. Marcos Candau. O

Professor Volkmar Bohlan, especialista em geriatria, afirma categoricamente: "A velhice não é uma

doen ça e sim uma fase da vida como todas as demais".

O Índio

No começo, quando o Brasil foi descoberto pelos portugueses, havia aqui cerca de 5 milhões

de índios que tinham o domínio de todo o território brasileiro. Hoje, os nossos índios são

aproximadamente 250 000 e suas terras não chegam a l % do território. Se não se tomarem as

medidas necessárias para proteger as reservas e as populações indígenas, estas poderão vir a

desaparecer.

A Nossa história registra as formas pelas quais os índios brasileiros foram sendo despojados

de suas terras e, ao mesmo tempo, eliminados. Durante a colonização, a captura do índio foi um

recurso constantemente usado para garantir mão-de-obra barata, ao lado da mão-de-obra dos

escravos negros. As necessidades econômicas da sociedade branca dominante foram dispersando as

populações nativas e desagregando sua vida social, política e cultural. As terras dos índios foram

sendo ocupadas pela cana-de-açúcar, pela pecuária, enfim, pela atividade agrícola e extrativa da

sociedade dominante. Essa ocupação ocorreu primeiro nas regiões mais próximas ao litoral e,

progressivamente, estendeu-se por todo o interior. A ocupação mais recente foi a da Amazônia,

região onde se concentra a maior parte das

168

Page 169: Apostila Sociologia

populações nativas restantes.

Hoje, a sociedade brasileira está mais consciente da gravidade da questão indígena. Por força

de um trabalho permanente de estudo e apoio às culturas indígenas realizado por inúmeras entidades,

ligadas principalmente à Universidade e às igrejas, tem aumentado o interesse social pelos índios e

pelos conflitos que ainda enfrentam. Esses conflitos são, quase sempre, conflitos de terras: de um

lado, os índios reivindicam seu direito sobre as terras, sem as quais não podem sobreviver e crescer,

e de outro, os grupos poderosos de latifundiários, criadores, madeireiros, mineradores, nacionais e

multinacionais, também brigam pela posse da terra para desenvolverem suas atividades exploradoras.

O Estado não tem conseguido resolver esses conflitos, e muitas vezes cedeu aos interesses

mais fortes dos grupos econômicos. Nos incidentes dos últimos anos, os esforços oficiais para apurar

e punir os responsáveis pelo assassinato de índios não deram resultado. A demarcação das terras

indígenas vem sendo feita muito devagar, essa demora ajuda a manter acesa a disputa pelas terras, na

qual os índios quase sempre perdem.

Os índios brasileiros, que também estão procurando organizar-se principalmente em torno da

UNI (União das Nações Indígenas), querem terra para sobreviver e respeito para conviver

dignamente com a sociedade civilizada. São povos e culturas diferentes, parceiros menores e mais

fracos da nossa sociedade, mas que têm exatamente os mesmos direitos básicos da maioria. Direito à

vida, à sua cultura, ao seu trabalho, à sua terra. E é bom observarmos que esses direitos, além de

fundamentais, são também direitos históricos dos povos indígenas, pois foram eles os primeiros

ocupantes do território nacional.

20 GLOBALIZAÇO

A) O QUE É GLOBALIZAÇÃO?

Globalização tornou-se uma palavra que está em "moda", de um conceito muito amplo e

abrangente, sendo empregada em diversas ocasiões, mas nem sempre com o mesmo significado.

169

Page 170: Apostila Sociologia

Poderíamos conceituar esse termo de forma básica como, o conjunto de transformações na ordem

política e econômica mundial que vem acontecendo nas últimas décadas, onde o ponto central da

mudança é a integração dos mercados numa "aldeia-global", explorada pelas grandes corporações

internacionais.

Politicamente, os Estados trabalham gradativamente nas barreiras tarifárias para proteger sua

produção da concorrência dos produtos estrangeiros e abrem-se ao comércio e ao capital

internacional. Mas economicamente estamos vendo crescer de maneira destacada o neoliberalismo,

que é uma política econômica que visa a saída parcial do Estado da economia, deixando o mercado

livre, por isso é que se vê a grande onda das privatizações existentes hoje. Esse processo tem sido

acompanhado de uma intensa revolução nas tecnologias de informação: telefones, computadores e

televisão, contribuindo de forma surpreendente para a maior integração de todo o mundo.

As fontes de informação também se uniformizam devido ao alcance mundial e à crescente

popularização dos canais de televisão por assinatura e da Internet. Isso faz com que a globalização

ultrapasse os limites da economia e política, e comecem a provocar uma certa homogeneização

cultural entre os países. Temos como exemplo disso a forte influência da cultura americana em todo

o mundo.

Outro ponto de forte importância que vem se destacando na globalização, é a questão do meio

ambiente, onde as empresas, cidadãos, instituições e ONG's se dedicam cada vez mais a conservar e

restaurar esta. Vemos isso nos diversos debates de alcance mundial que acontecem em torno desse

assunto, e o surgimento de instituições como o Green Peace, que tem caráter radical e postura firme

contra a degradação da natureza.

Histórico da Globalização

Fatos históricos marcantes ocorridos entre o final da década de 80 e o início da de 90

determinaram um processo de rápidas mudanças políticas e econômicas no mundo. Até mesmo os

analistas e cientistas políticos internacionais foram surpreendidos pelos acontecimentos:

170

Page 171: Apostila Sociologia

· A queda do Muro de Berlim em 1989;

· O fim da Guerra Fria;

· O fim do socialismo real;

· A desintegração da União Soviética, em dezembro de 1991, e seu desdobramento em novos Estados

Soberanos (Ucrânia, Rússia, Lituânia etc.);

· A explosão étnica ou das nacionalidades em vários lugares, acompanhada da guerra civil: antiga

Iugoslávia, Geórgia, Chechênia etc.;

· O fim da política do Apartheid e a eleição de Nelson Mandela para presidente, na África do Sul;

· A formação de blocos econômicos regionais (União Européia, Nafta, Mercosul, etc.);

· O grande crescimento econômico de alguns países asiáticos (Japão, Taiwan, China, Hong-kong,

Cingapura), levando a crer que constituirão a região mais rica do Século XXI;

· O fortalecimento do capitalismo em sua atual forma, ou seja, o neoliberalismo;

· O grande desenvolvimento científico e tecnológico ou Terceira Revolução Industrial ou

Tecnológica.

Até praticamente 1989, ano da queda do Muro de Berlim, o mundo vivia no clima da Guerra

Fria. De um lado, havia o bloco de países capitalistas, comandados pelo Estados Unidos, de outro, o

de países socialistas, liderado pela ex-União Soviética, configurando uma ordem mundial bipolar. A

reformas iniciadas por Gorbatchev, na ex-União Soviética, em 1985, através da Perestroika e da

Glasnost, foram pouco a pouco minando o socialismo real e, conseqüentemente, essa ordem mundial

bipolar. A queda do Muro de Berlim, com a reunificação da Alemanha, e muitos outros

acontecimentos do Leste Europeu alteraram profundamente o sistema de forças até então existente

no mundo.

De um sistema de polaridades definidas passou-se, então, para um sistema de polaridades

indefinidas ou para a multipolarização econômica do mundo. O confronto ideológico (capitalismo

versus socialismo real) passou-se para a disputa econômica entre países e blocos de países.

O beneficiário dessa mudança, historicamente rápida, que deixou muitas pessoas assustadas,

foi o sistema capitalista, que pôde expandir-se praticamente hegemônico na organização da vida

social em todas as suas esferas (política, econômica e cultural). Assim, o capitalismo mundializou-se,

171

Page 172: Apostila Sociologia

globalizou-se e universalizou-se, invadiu os espaços geográficos que até então se encontravam sob o

regime de economia centralmente planificada ou nos quais ainda se pensava poder viver a

experiência socialista.

A globalização não é um acontecimento recente. Ela se iniciou já nos séculos XV e XVI, com

a expansão marítimo-comercial européia, conseqüentemente a do próprio capitalismo e continuou

nos séculos seguintes. O que diferencia aquela globalização ou mundialização da atual é a velocidade

e abrangência de seu processo, muito maior hoje. Mas o que chama a atenção na atual é, sobretudo o

fato de generalizar-se em vista da falência do socialismo real. De repente, o mundo tornou-se

capitalista e globalizado.

Consequências da globalização

Mudança no papel do Estado

É de suma importância saber que a questão da globalização não está apenas ligada à

economia, mas também influencia no Estado, ou seja, este é “modificado” para que as exigências

globais sejam cumpridas. Isto quer dizer que tanto a opinião pública internacional quanto o

comportamento dos mercados passaram a desempenhar funções que antes não tinham na redefinição

dos limites possíveis de ação do Estado. Os países e seus líderes, estão sob vigilância constante da

opinião pública internacional, sendo assim qualquer passo em falso poderá resultar em penalidades

para estes países.

Um outro aspecto mudado no Estado em função da globalização, foi o de que suas ações

governamentais deverão ser dirigidas agora para fazer com que as economias nacionais sustentem e

desenvolvam condições para competir em escala global. Isso resulta na canalização de recursos para

setores vitais do Estado como a educação, saúde e, este também, tem que estar preparados para

passar para a mão de privadas empresas antes administradas pelo Estado. Dessa forma acredita-se

estar contribuindo para uma promoção de maior igualdade de oportunidades, aumentando o grau de

172

Page 173: Apostila Sociologia

mobilidade social. Por isso, este Estado precisa ser ainda mais forte no desempenho de suas tarefas

sociais e melhor preparado para regulamentar as atividades recentemente privatizadas.

Considerações políticas sobre a globalização

O mercado é, com certeza, um fator decisivo no que se diz respeito à globalização. É

importante saber que o contorno dentre os quais o mercado atua, são definidos politicamente. Por

isso é errado afirmar que tudo o que esta a favor das forças e mercado é visto como bom, positivo,

isto é, fator de desenvolvimento pois, tem que se reconhecer que não há limites ao mercado que

permitem países como o nosso atuar politicamente na defesa dos interesses nacionais.

A globalização econômica é uma nova ordem mundial e, devemos aceitar este fato com

sentido de realismo pois, ao contrário, nossas ações estarão destituídas de qualquer impacto efetivo.

Isto significa uma perspectiva totalmente nova sobre as formas de agir na cena internacional. Temos

que admitir que a participação no economia mundial pode ser positiva se for manejada com cuidado,

ou seja, o sucesso dessa integração depende de vários pontos como a articulação diplomática e as

parcerias comercias adequadas e, da realização de reformas internas democraticamente conduzidas.

Globalização e a questão da inclusão e exclusão

A globalização esta gerando uma nova divisão internacional onde se encontram os países que

fazem parte do processo de globalização e os países que não fazem. Os primeiros estariam

associados à idéias de progresso, riqueza e, melhores condições de vida, já os outros estaria

destinados à um mundo de exclusão, marginalização e, miséria. É importante perceber que, apesar

disso, a globalização produziu oportunidades para que mais países pudessem ingressar na economia

mundial mas é preciso aproveitar as oportunidades dadas por esta economia através da adoção de um

conjunto de políticas que incluem, entre

outros, uma força de trabalho qualificada, aumento substancial da taxa de poupança doméstica, etc.

173

Page 174: Apostila Sociologia

Em países em desenvolvimento mais complexo, a integração na economia global está sendo

feita à custa de maior esforço de ajuste interno e numa época de competição internacional mais

acirrada. Mas, os países menores serão capazes de superar os desafios impostos pela globalização?

Esta é uma questão que não pode ser deixada de fora pois não é possível a comunidade internacional

conviver com a indiferença e a paralisia dos países mais pobres, pois estaríamos, assim, destinando-

os ao fracasso, como se nada pudesse ser feito. Este é um ponto que deve ser ainda muito discutido

em âmbito internacional.

REVOLUÇÃO TECNOCIENTÍFICA E A INTEGRAÇÃO DO MUNDO

A rápida evolução e a popularização das tecnologias da informação (computadores, telefones

e televisão) têm sido fundamentais para agilizar o comércio e as transações financeiras entre os

países. Em 1960, um cabo de telefone intercontinental conseguia transmitir 138 conversas ao mesmo

tempo. Atualmente, com a invenção dos cabos de fibra óptica, esse número sobe para l,5 milhão.

Uma ligação telefônica internacional de 3 minutos, que custava cerca de 200 em 1930, hoje em dia é

feita por US$ 2. O número de usuários da Internet, rede mundial de computadores, é de cerca de 50

milhões e tende a duplicar a cada ano, o que faz dela o meio de comunicação que mais cresce no

mundo. E o maior uso dos satélites de comunicação permite que alguns canais de televisão - como as

redes de notícias CNN, BBC e MTV - sejam transmitidas instantaneamente para diversos países.

Tudo isso permite uma integração mundial sem precedentes.

Vale destacar como forte novidade na área de tecnologia, e instrumento de integração entre as

nações, a Internet. Está que já está presente nos principais países do mundo e que representa um novo

ramo de mercado, o mercado virtual. Este é caracterizado por ser de alto risco e de certa forma

abstrata, sendo valorizado por seu valor virtual. Como fonte de divulgação de cultura e informações

diversas, a Internet é a maravilha do século XXI, pois nunca a humanidade foi tão capaz e bem

servida de informações como hoje em dia. Para nós já é simples fazer uma pesquisa para a escola em

sites dos Estados Unidos, teclar com estudantes franceses, discutir com os ingleses e ainda pedir

auxílio a um técnico do Canadá. Isso, com certeza, foi a grande revolução tecno-científica.

174

Page 175: Apostila Sociologia

AS TRANSNACIONAIS

A globalização é marcada pela expansão mundial das grandes corporações internacionais. A

cadeia de fast food McDonald's, por exemplo, possui 18 mil restaurantes em 91 países. Essas

corporações exercem um papel decisivo na economia mundial. Para exemplificarmos a

grandiosidade dessas empresas, existem pesquisas que levantaram o faturamento das nove maiores

empresas do mundo, e que deram, somadas, todo o faturamento dos maiores países da América do

Sul, mais a Nova Zelândia.

Outros pontos importantes desse processo são as mudanças significativas no modo de

produção das mercadorias. Seguindo as tendências de concentração e dispersão das empresas (vemos

isso no Brasil através da concentração industrial no sudoeste e a gradativa dispersão para outras

regiões), e auxiliadas pelas facilidades na comunicação e nos transportes, as transnacionais instalam

suas fábricas em qualquer lugar do mundo onde existam as melhores vantagens fiscais, mão-de-obra

e matérias-primas baratas. Essa

tendência leva a uma transferência de empregos dos países ricos - que possuem altos salários e

inúmeros benefícios - para as nações industriais emergentes, como os Tigres Asiáticos. O resultado

desse processo é que, atualmente, grande parte dos produtos não tem mais uma nacionalidade

definida. Um automóvel de marca norte-americana pode conter peças fabricadas no Japão, ter sido

projetado na Alemanha, montado no Brasil e vendido no Canadá.

Desemprego

A crescente concorrência internacional tem obrigado as empresas a cortar custos, com o

objetivo de obter preços menores e qualidade alta para os seus produtos. Nessa reestruturação estão

sendo eliminados vários postos de trabalho. Uma das causas do desemprego é a automação de vários

setores,

em substituição à mão de obra humana. Caixas automáticos tomam o lugar de pessoas que iriam

trabalhar nesta posição, fábricas robotizadas dispensam operários, escritórios informatizados cortam

175

Page 176: Apostila Sociologia

despesas de vários funcionários, produções agrícolas com tratores e máquinas substituem o trabalho

de várias pessoas. Nos países ricos, o desemprego também é causado pelo deslocamento de fábricas

para os países com o custo de produção mais baixo (transnacionais).

Mas por outro lado, o fim de milhares de empregos, no entanto, é acompanhado pela criação

de outros pontos de trabalho. Novas oportunidades surgem, por exemplo, na grande área de

informática que vem crescendo muito nos últimos anos. A IBM, por exemplo, empregava 400 mil

pessoas em 1990, mas

desse total somente 20 mil produziam máquinas. O restante estava envolvido em áreas de

desenvolvimento de outros computadores. Mas a previsão é de que esse novo mercado de trabalho

dificilmente absorverá os excluídos, uma vez que os empregos exigem um alto grau de qualificação

profissional. Dessa forma, o desemprego tende a se concentrar nas camadas, com baixa instrução

escolar e pouca qualificação.

Como lidar com a complexa questão do desemprego é um desafio com o qual se defrontam

praticamente todos os países da economia global. Esta é uma das questões mais graves a serem

enfrentados pelos líderes políticos de todo o mundo.

Blocos econômicos

São associações de países, que estabelecem relações comerciais privilegiadas entre si e que

atuam de forma conjunta no mercado internacional como se fossem um único país. Com a formação

de um bloco econômico também há a redução ou eliminação total das alíquotas de importação e

aumentando a interdependência das economias entre os países membros. A Comunidade Econômica

Européia foi o primeiro bloco econômico a surgir (1957). Mas o firmamento dos blocos econômicos

deu-se só depois da Guerra Fria, pois houve o desaparecimento dos dois grandes blocos liderados por

EUA e URSS. Esse desaparecimento estimula a formação de zonas independentes de livre comércio.

MERCOSUL

176

Page 177: Apostila Sociologia

O primeiro passo para a criação do MERCOSUL foi dado de 26 de março de 1991 com o

Tratado de Assunção. Os presidentes do Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil, e seus respectivos

Ministros das Relações Exteriores assinaram este acordo que estabelece a integração econômica dos

quatro países para seu desenvolvimento tecnológico e científico. Pelo Tratado ficou estabelecido:

a) A Livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países eliminando-se os direitos

alfandegários e tarifas (É claro que essa mudança vai acontecendo gradualmente, e não de uma hora

para outra);

b) O estabelecimento de uma tarifa externa comum

c) Coordenação política macroeconômica e setorial entre os Estados-Partes - (de comércio exterior:

agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais: de serviços, alfandegária, de transportes

e comunicações e outras) - a fim de assegurar as condições concorrência.

d) Compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para

lograr o fortalecimento do processo de integração.

A questão Chile e Bolívia

Chile é um parceiro não membro do MERCOSUL e a Bolívia é um parceiro a um passo da

integração. O Chile já tem contatos e relações econômicas principalmente com o México (País

integrante do NAFTA) e tenta contato com os Tigres Asiáticos. Já a Bolívia faz parte dos Países do

Pacto Andino. E Nesse caso é uma situação mais delicada para tornar-se parceiro do MERCOSUL,

pois uma das condições do Pacto Andino seria que nenhum país integrante poderia fazer parte de

qualquer outro grupo comercial.

O MERCOSUL segue uma nova tendência no mundo moderno, que é a união de várias

nações em grupos ou blocos. É importante ressaltar que o objetivo do MERCOSUL não é isolar os

países membros do resto do mundo e mudar somente o comércio, economia interna, mas sim,

fortalecê-los para melhor competir com os outros países e blocos econômicos.

O Capitalismo está num estágio que pede a evolução do comércio internacional. E esse

processo seria impossível ocorrer dentro dos limites de um país ou de uma região pequena.

177

Page 178: Apostila Sociologia

Simplesmente não haveria dinheiro suficiente para tal. Somente com a associação de várias

economias é viável, hoje, obter-se tecnologias mais avançadas por um preço mais reduzido. Neste

caso a cooperação viabiliza o processo de barateamento dos custos da produção de equipamentos

cada vez mais modernos. Da mesma forma a união de empresários vai resultar em produtos mais

baratos e competitivos internacionalmente.

Por outro lado, assim como colocamos nossos produtos à disposição do resto do mundo, aqui

também haverá uma "injeção" de produtos estrangeiros a preços baixíssimos que desafiará os

fabricantes de nosso país a fazer produtos de qualidade com preços para concorrer com os

internacionais. Quem só tem a ganhar é o consumidor, que leva produtos de melhor qualidade por

preços reduzidos.

O Paraguai possui o melhor algodão do planeta, o Uruguai um excelente rebanho bovino, o

Brasil - o primeiro Parque Industrial dos países emergentes e a Argentina uma das agriculturas mais

desenvolvidas do globo. Portanto, essa fase de unificação não é o último estágio. Não consiste

apenas em criar um mercado de trocas e proteção mútua pura e simplesmente. A unificação é uma

fase intermediária, que visa capacitar seus países-componentes a enfrentar em condições adequadas a

competição no mercado internacional, já que se anuncia ameaçadora para nações menos

desenvolvidas.

Se não for assim, a CE, NAFTA e Tigres Asiáticos, que já possuem níveis de

desenvolvimento científico e tecnológico superior e são, por isso, mais competitivos, vão dominar

ainda mais hegemonicamente o mercado mundial. E com evidentes - e graves - prejuízos para seus

concorrentes: nós. Ou seja, à distância entre os países ricos e pobres aumentariam mais ainda.

Nessa corrida a única saída é aliar-se pelo aprimoramento de sua produção, pela conquista de

novos mercados, incremento da economia, e, por fim, pela garantia de uma vida mais digna para seus

povos. Vale salientar também, que o MERCOSUL é um acordo recente e tem muito que crescer e se

aperfeiçoar. Nós não podemos esquecer nossa cultura e deixar de ser brasileiros, mas precisamos nos

lembrar que temos irmãos uruguaios, paraguaios, argentinos e agora também chilenos e bolivianos.

PASSADO X FUTURO

178

Page 179: Apostila Sociologia

Como já foi dito, antigamente, as grandes empresas dispunham de uma grande oferta de

empregos, pois o trabalho era quase todo manual. Mais com o passar do tempo, essas grandes

empresas passaram a se modernizar, usufruindo do melhor que a tecnologia pode lhes oferecer,

ocorrendo assim um grande número de pessoas demitidas, substituídas pelas máquinas.

Nas grandes empresas das principais potências mundiais, como Estados Unidos, esse número

de demissão é ainda maior, pois a tendência dessas grandes empresas é de se espalharem pelo

mundo. Geralmente essas empresas vão para os países subdesenvolvido, pois lá têm uma maior

abundância na mão de obra, que conseqüentemente fica mais barata, sem contar o fato de que essa

mão de obra é desqualificada, o que barateia mais seu preço. O número de desemprego dessas

grandes empresas aumentam mais ainda quando olhamos pelo ponto de vista que para cortar custos,

para se sobressaírem as empresas concorrentes, elas demitem mais empregado para adquirir

máquinas. A esse processo de

mecanização, damos o nome de “desemprego estrutural”. À dispersão dessas empresas pelo mundo,

nós damos o nome de globalização.

Outro ponto ruim da globalização, apesar do desemprego, é o fato de que o governo de um

país perde completamente o controle do capital internacional dentro de seu país. O maior exemplo

dessa falta de controle, é o México, que no final de 1994 quebrou devido à desvalorização do Peso

(moeda mexicana) frente ao Dólar. Mas apesar disso tudo, os governantes não podem fazer nada,

pois se eles criam uma legislação protegendo o trabalhador, seu país fica excluído do plano das

grandes multinacionais. Como prova da grande modernização que o mundo tecnológico sofreu, nos

temos o fato de que há 40 anos atrás um “simples” computador pesava 30 toneladas, enquanto hoje

qualquer pessoa pode carregar um computador.

A1 - GLOBALIZAÇÃO, EXCLUÇÃO SOCIAL E GOVERNABILIDADE

Após quase duas décadas de implantação de profundas reformas associadas à abertura e à

integração de suas economias ao mercado global, uma parte expressiva das nações - em especial os

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Page 180: Apostila Sociologia

grandes países da periferia do capitalismo - têm apresentado medíocre desempenho do PIB per capita

e piora de sua concentração de renda. Os indícios de aumento da exclusão social estão por toda a

parte. Este quadro, recentemente agravado pelas sucessivas crises internacionais nos finais de 97 e 98

e pelo crescimento do desemprego e da informalidade, começa a provocar sintomas de erosão de

legitimidade das representações políticas que sustentaram esses programas de reformas. Aumenta a

dissonância entre o

discurso oficial da necessidade do aprofundamento dos ajustes e a dúvida das populações desses

países sobre se, ao final de outros sacrifícios adicionais, poderá surgir de fato um processo de

crescimento acelerado e auto-sustentado que melhore sua renda e a empregabilidade. A análise das

eventuais alternativas de enfrentamento dessa questão crítica recomenda a retomada de alguns

conceitos inerentes ao atual modelo econômico mundial e a investigação da natureza dos seus

impactos psicossociais.

O CAPITALISMO GLOBAL E SUAS DIALÉTICAS

A partir do final da década dos 70, foram intensas as modificações socioeconômicas

relacionadas ao processo de internacionalização da economia mundial. Desde já, é preciso enfatizar

que esse processo não é novo. Mas ganhou características inusitadas e um assombroso impulso com

o enorme salto qualitativo ocorrido nas tecn ologias da informação. Essas mudanças permitiram a

reformulação das estratégias de produção e distribuição das empresas e a formação de grandes

networks. A forma de organização da atividade produtiva foi radicalmente alterada para além da

busca apenas de mercados globais; ela própria passou a ser global.

A revolução tecnológica atingiu igualmente o mercado financeiro mundial. Isso permitiu a

mobilidade de capital requerida pelo movimento de globalização da produção. Essas modificações

radicais atingiram o modo de vida de boa parte dos cidadãos, alterando seu comportamento, seus

empregos, suas atividades rotineiras de trabalho e seu relacionamento com os atores econômicos

produtores de bens e serviços.

180

Page 181: Apostila Sociologia

O capitalismo atual convive com duas dialéticas centrais: concentração versus fragmentação e

exclusão versus inclusão. De um lado, a enorme escala de investimentos necessários à liderança

tecnológica de produtos e processos – e a necessidade de networks e mídias globais – continuará

forçando um processo de concentração que habilitará como líderes das principais cadeias de

produção apenas um conjunto restrito de algumas centenas de empresas gigantes mundiais. Essas

corporações decidirão basicamente o que, como, quando, quanto e onde produzir os bens e os

serviços (marcas e redes globais) utilizados pela sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, elas

estarão competindo por redução de preços e aumento da qualidade, em um jogo feroz por Market

Share e acumulação. Enquanto essa disputa continuar gerando lucros e expansão, parte da atual

dinâmica do capitalismo estará preservada.

Simultaneamente, este processo radical em busca de eficiência e conquista de mercados força

a criação de uma onda de fragmentação – terceirizações, franquias e informatização –, abrindo

espaço para uma grande quantidade de empresas menores que alimentam a cadeia produtiva central

com custos mais baixos. Tanto na sua tendência de concentrar como na de fragmentar, a competição

opera como o motor seletivo desse processo.

A outra contradição que alimenta o capitalismo contemporâneo é a dialética exclusão versus

inclusão. Apesar do desemprego estrutural crescente (incapacidade progressiva de geração de

empregos formais em quantidade ou qualidade adequadas), o capitalismo atual tem garantido sua

dinâmica também porque a queda do preço dos produtos globais incorpora continuamente mercados

(inclusão) que estavam à margem do consumo por falta de renda. Não é à toa que alguns dos maiores

crescimentos de várias empresas globais de bens de consumo têm sido registrados nos países

periféricos da Ásia e da América Latina, onde se concentra grande parte do mercado dos mais

pobres.

Nesse ambiente, os principais atores que regem a economia global – as grandes corporações –

tomam suas decisões visando maximizar sua condição de competição (binômio preço-qualidade) e

buscando a maior taxa de retorno sobre os recursos de seus investidores. Isso não significa, porém,

que o espaço das pequenas e médias empresas irá desaparecer. Durante toda a Revolução Industrial,

elas foram vitais ao desenvolvimento do capitalismo e à geração do emprego. Atualmente, assumem

181

Page 182: Apostila Sociologia

um novo papel, associando-se às grandes corporações graças à possibilidade de controle

descentralizado da informação e de sua integração em um sistema flexível associado a estratégias

globais conduzidas por empresas maiores, porém basicamente subordinadas às decisões estratégicas

das empresas transnacionais – e integradas a suas cadeias produtivas. A já mencionada dialética

exclusão versus inclusão afeta indivíduos, mas também territórios. Os espaços que não são

funcionais à nova lógica sistêmica não conseguem se inserir na economia mundial. Dentro das

cidades, isso se expressa na dualização acelerada de suas configurações sociais, levando a uma

verdadeira separação de seus processos urbanos.

A MUDANÇA DE PARADIGMA NO MERCADO DE TRABALHO

No passado a articulação de fordismo, consumo de massa e keynesianismo, expressando uma

determinada correlação de forças entre as diversas categorias sociais, havia permitido à classe

operária a conquista de algumas de suas reivindicações históricas no período do pós-guerra. O

modelo de acumulação capitalista desse período, com base na organização taylorista do trabalho,

demandava mão-de-obra intensiva que, somada a uma grande mobilização e organização dos

trabalhadores, permitia condições muito favoráveis de negociação. Como conseqüência das novas

estruturas de acumulação expandidas multinacionalmente, ocorreu um crescimento maciço do poder

social do operariado. Isso ficou claramente evidenciado no final dos anos 60 e começo dos 70 por

uma onda de mobilização

social que atingiu quase todos os países.

Porém, nos anos 70, com a incorporação maciça de tecnologias aos processos produtivos,

operou-se uma mudança de base na correlação de forças entre as classes sociais. No início da década

dos 80, o conflito en tre capital e trabalho passou a apresentar uma nova situação estrutural, da qual

destaco alguns fatores determinantes: o desemprego estrutural passa a funcionar como disciplinador

nato da força de

trabalho. Com a marcha da automação e, posteriormente, da fragmentação – o poder de barganha dos

assalariados passou a sofrer grande erosão.

182

Page 183: Apostila Sociologia

A flexibilidade conseguida pelo atual modelo racionaliza o uso do capital, colocando-o onde

as

melhores condições do mercado apontam. É cada vez menor a simetria entre a flexibilidade das

condições de produção e as exigências de sobrevivência dos trabalhadores. Pode-se produzir mais ou

menos, aqui ou ali, pois a programação da produção por meio da informática e a transmissão de

dados em tempo real o permitem. Mas o trabalhador vive a instabilidade de poder estar ora dentro,

ora fora do mercado de trabalho.

A rearticulação das empresas levou a uma inadequação das estruturas trabalhistas e forçou

uma tentativa mal-sucedida de rearticulação dos sindicatos. As novas limitações são imensas, a

começar pela coexistência em uma mesma fábrica de trabalhadores da empresa central e das

terceirizadas, freqüentemente com salários e condições de trabalho diferentes, quebrando – por

exemplo – a isonomia de sua situação de classe do período anterior. Na prática, as empresas têm tido

condições de se reordenar com maior flexibilidade e rapidez diante das exigências dos novos padrões

de acumulação.

As novas formas de organização do trabalho, mais flexíveis e menos hierarquizadas, colocam,

assim, um desafio importante para os sindicatos: como aglutinar em projetos político-sindicais

comuns trabalhadores cada vez mais dispersos e em situação progressivamente precária?

Apresentam-se dificuldades crescentes em gerenciar acordos coletivos e encontrar uma linguagem

comum para interesses divergentes, especialmente em relação aos trabalhadores em postos flexíveis,

que percebem os sindicatos como um clube de privilegiados preocupados em manter esses

privilégios.

Por outro lado, a globalização e a inovação tecnológica reduzem a capacidade de manobra

dos Estados e dos sindicatos. A mobilidade do capital e a possibilidade de deslocar segmentos da

cadeia produtiva para outras regiões desestabilizam a estrutura de salários, deslocando a concorrência

para fora da esfera nacional. Como conseqüência de todos esses fatores, a disparidade de renda está

crescendo; e a pobreza, o desemprego e o subemprego estão engrossando a exclusão social.

AS TRÊS GRANDES REFORMAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

183

Page 184: Apostila Sociologia

A aceleração da integração das economias ao mercado global efetivou-se suportada por três

importantes reformas que afetaram a lógica econômica deste final de século: o livre fluxo de capitais,

a meta da estabilidade monetária e a rigidez dos orçamentos públicos equilibrados. Seus efeitos tem

sido complexos.

A livre movimentação dos capitais mundiais transformou cada economia em foco alternativo

de oportunidade de risco ou especulação financeira. Um capital desvinculado de compromissos

nacionais e estritamente ligado a suas motivações endógenas, de um lado sustenta os processos

estratégicos de investimento dos líderes das cadeias globais, de outro provoca graves danos às

economias mais frágeis que deles passaram a depender, quando exerce sua absoluta volatilidade em

momentos de crise.

Quanto à estabilidade monetária, conseguida a duras penas a partir de heróicos esforços

de economias que haviam chegado ao descontrole inflacionário quase total, ela acabou se

incorporando aos ideários nacionais como um importante valor social. A volta a regimes

inflacionários não parece conscientemente desejada por nenhum segmento da sociedade. Por outro

lado, o fim da inflação endêmica criou problemas sérios para os orçamentos públicos, diminuindo a

flexibilidade dos seus ajustes e causando maiores resistências na viabilização de reformas profundas

na previdência social. Os ajustes previdenciários, durante décadas providenciados por uma inflação

que corroía o valor real dos benefícios, agora têm que ser feitos transparentemente, à frio, mediante a

supressão formal de direitos adquiridos.

Finalmente, o rigor do cumprimen to de metas de orçamentos públicos equilibrados,

necessárias para a manutenção da estabilidade monetária, acarretam uma redução significativa dos

recursos alocados a programas sociais, justamente no momento em que a exclusão social aumenta e a

demanda por esses programas se acentua.

A RETOMADA DA LEGITIMIDADE NA INTERMEDIAÇÃO POLÍTICA

184

Page 185: Apostila Sociologia

Em função da complexidade de um quadro econômico mundial que agrava o desemprego, a

informalidade e a exclusão, Jürgen Halbermas constata: “Os Estados Nacionais têm manifestado

progressiva incapacidade de dar provas de ações de comando e de organização: desaparece a

integridade funcional da economia nacional, quer dizer, a confiável presença nacional daqueles

fatores complementares - sobretudo capital e organização - de que depende a oferta de trabalho

originada por uma sociedade, a fim de capacitar-se à produção. Um capital isento do dever de

presença nacional vagabundeia à solta e utiliza suas opções de retirada como uma ameaça. Os

governos nacionais perdem, assim, a capacidade de esgotar os recursos tributários da economia

interna, de estimular o crescimento e, com isso, assegurar bases fundamentais de sua legitimação.”

A questão é extremamente complexa. É preciso perguntar, como fez Alain Touraine em

Pourrons-Nous Vivre Ensemble, qual o espaço atual para a liberdade, a solidariedade e a igualdade

quando o lugar central - o do príncipe - está vazio; e a sala do trono é varrida por correntes globais de

ar, bandos de espectadores e paparazzi. As instituições, das quais se esperava que instaurassem a

ordem, tornam-se amiúde agentes da desordem, da ineficácia e da injustiça. Seu lugar está sendo

ocupado pelas estratégias das grandes organizações financeiras, industriais e comerciais. Touraine

lembra que a ordem política não funda mais a ordem social. A crise de representatividade e de

confiança se acentuou a medida que os partidos tornaram-se empresas políticas que mobilizam

recursos legais e ilegais para produzir

eleitos que podem ser “comprados” pelos eleitores que os considerem defensores de seus interesses

particulares, não dos da sociedade como um todo. Este vazio político inquietante tampouco é

preenchido pelos apelos das organizações humanitárias que substituíram os filantropos nas ruínas das

políticas de integração social.

A questão primordial atual é saber se para além dos Estados nacionais, num plano

supranacional e global, o poder destrutivo ecológico, social e cultural do capitalismo planetário pode

ser novamente posto sob controle. Já sabemos que o Estado isolado não é mais suficientemente

capaz de defender seus cidadãos contra efeitos externos decididos por outros atores. É o que

constatamos nos ônus ambientais, no crime organizado, no tráfico de armas, nos riscos da alta

tecnologia (como a recente polêmica dos alimentos transgênicos) e as conseqüências de políticas

185

Page 186: Apostila Sociologia

autônomas de Estados-nacionais sobre seus vizinhos (por exemplo, a questão dos reatores atômicos

em regiões fronteiriças).

RESPOSTAS POLÍTICAS AOS EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO

São confusas e retóricas as respostas políticas disponíveis para lidar com os fortes efeitos

negativos da globalização. A ortodoxia neoliberal insiste em recomendar a subordinação

incondicional do Estado ao imperativo de uma integração social planetária por meio do mercado. O

Estado continuaria a abandonar seus cidadãos à liberdade negativa de uma competição mundial e

limitar-se-ia a por a disposição infra-estruturas que fomentem as atividades empresariais. Mesmo

imaginando essa economia mundial absolutamente liberalizada - com mobilidade irrestrita de fatores

produtivos - conseguisse um dia o prometido equilíbrio global e uma divisão simétrica de trabalho,

no período de transição poder-se-á

assistir a um aumento drástico da desigualdade social e da fragmentação da sociedade, além de

corrupção dos critérios morais e culturais. Ainda que supondo viável essa visão ultra - otimista,

quanto tempo seria necessário para atravessar o "vale de lágrimas" e quantas vítimas - indivíduos e

regimes políticos - ficariam pelo caminho durante a "destruição criadora" ? E qual seria o espaço

para a democracia, especialmente nos grandes países da periferia?

Por outro lado, o furor protecionista e a xenofobia já não encontram mais espaço no mundo

dominado pela tecnologia da informação. O Estado nacional é incapaz de recuperar sua antiga força

mediante uma política de enclausuramento. Surge, então, a formulação de Anthony Guiddens sobre

uma Terceira Via. Em sua variante defensiva, prega que o Estado deve dotar as pessoas com

qualidades empreendedoras típicas de quem saiba cuidar de si própria. Seria o princípio da "ajuda

para a auto-ajuda" , de tal modo a estimular a afirmação competente do indivíduo no mercado de

trabalho, para não ter ele, como fracassado, de lançar mão da assistência do Estado. Mal disfarçado

por um tom evangélico de otimismo triunfante, na verdade esse discurso oculta a definitiva

desistência do objetivo político do pleno emprego e do welfare state; o que torna inevitável rebaixar

o padrão público da justiça distributiva ou divisar alternativas.

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Page 187: Apostila Sociologia

Na sua variante ofensiva, a Terceira Via prega a idéia das unidades políticas maiores e

regimes transnacionais que, sem necessariamente romper a cadeia de legitimação democrática,

possam compensar a perda de funções do Estado nacional. A União Européia é o exemplo evidente

deste projeto. Porém, a política só será capaz de "ter precedência" sobre os mercados globalizados

quando lograr produzir, a longo prazo, uma sólida infra-estrutura que não seja desvinculada dos

processos de legitimação. Na realidade, a solidariedade cívica, hoje restrita ao Estado nacional, teria

de se estender de tal forma que, por exemplo, portugueses e suecos se dispusessem a amparar uns aos

outros. Resta saber se o grupo cada vez menor de atores influentes no cenário político mundial pode

e tem interesse em construir, no quadro de uma organização mundial reformada, uma rede em

direção a um governo mundial.

DESAMPARO, VIOLÊNCIA, SOLIDARIEDADE E GOVERNABILIDADE

O Estado contemporâneo não se sente mais responsável pelo pleno emprego. As corporações

transnacionais, que definem os vetores tecnológicos que parametrizam a empregabilidade, também

não . Cada um que encontre sua oportunidade , corra o seu risco, seja um responsable risk taker.

Quem está na periferia do capitalismo mundial, que encontre seu lugar no informal, que invente seu

emprego. Está-se em busca, de certa forma, do resgate da ética protestante do trabalho para aplicá-la

em sociedades que, ao contrário dos EUA do começo do século, não geram oportunidades de

emprego.

Vale lembrar que a concepção cristã do trabalho era um ato de expiação do pecado original.

Por um breve momento da história, Calvino o redimiu. Com o declínio da crença religiosa, que Marx

saudou, o trabalho mais uma vez tornou-se penoso. No entanto o desemprego e a exclusão da

sociedade global acabam de resgatar o posto de trabalho formal fordista como altamente desejável e

o transformam em quase um sonho distante de segurança e estabilidade. Agora sem a proteção do

Estado, o homem volta a sentir-se com toda força sua dimensão de desamparo. Freud nos havia

lançado num mundo sem Deus, renegando o discurso iluminista de uma ciência que garantiria o

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bem-estar para todos e afirmando não haver fórmula universal para a felicidade. O discurso freudiano

colocou a figura do desamparo no fundamento do sujeito.

Os grandes países da periferia do capitalismo estão acuados com o atual nível de violência de

suas sociedades. A principal causa parece estar nas tensões geradas pela crescente concentração de

renda e exclusão social de grandes contigentes populacionais urbanos, convivendo com uma mídia

global que valoriza o comportamento anti-social e estimula padrões de consumo que poucos podem

ter. Os Estados nacionais e os partidos políticos passam a perder legitimidade e capacidade de

mediação dessas tensões utilizando os controles tradicionais. É o que ocorre atualmente no Brasil na

questão dos sem-terra e na

descontrolada criminalidade urbana, especialmente entre os jovens.

É interessante fazer-se um paralelo entre o comportamento dos adolescentes infratores das

grandes metrópoles periféricas e, por exemplo, os jovens pistoleiros das guerrilhas curdas de 1993 ou

dos recentes conflitos civis na Bósnia. Para todos eles, portar uma arma significa um rito de

passagem para a adolescência: o menino, com uma arma na mão, passa a se comportar como homem.

No entanto, Eric Hobsbawm lembra que a maioria dos europeus a partir de 1945 – inclusive nos

Bálcãs – viveu em sociedades em que os Estados desfrutavam de um monopólio da violência

legítima. Quando eles se esfacelaram, o mesmo aconteceu com esse monopólio. Para alguns jovens,

o caos resultante desse colapso propicia – lá e aqui – a oportunidade de entrar num paraíso de

violência fortemente erotizada, onde tudo lhe é permitido pelo uso da força. Para esses grupos

perigosos, constituídos por jovens desesperançados e sem perspectivas – desenraizados entre a

puberdade e o casamento – não existem mais limites para seu comportamento.

Em tese o conflito social atual – pressão dos excluídos (desempregados, pobres, crianças de

rua, jovens carentes ou infratores) sobre os incluídos – pode ser controlado mediante certas válvulas

de segurança, como tantos outros conflitos plebeus urbanos em cidades pré-industriais o foram. Mas,

para tanto, é preciso institucionalizar “rituais de rebelião” através dos quais o Estado controla esses

conflitos e

legitima a ordem social, mantendo-se ostensivamente fora deles (o rei distante como “fonte de

justiça”), criando mecanismos institucionais e políticos que perpetuem uma sociedade que – de outro

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modo – poderia ser esfacelada por suas tensões internas. O Estado, no entanto, pode perder essa

capacidade de mediação se for percebido envolvendo-se simplesmente numa “conspiração dos ricos

em seu próprio interesse”.

O quadro se complica porque vivemos hoje um mundo em que a performance define o lugar

social de cada um. O sujeito da pós-modernidade é performático, vive só o momento, está voltado

para o gozo a curto prazo e a qualquer preço. E a perversão agora não é mais um desvio, como na

modernidade, mas a regra. As grandes doenças estudadas pela psiquiatria hoje são aquelas em que a

performance falha: a depressão e a síndrome d o pânico. A produção de medicamentos vem para

revertê-las. As drogas, oficiais e ilegais, oferecem a possibilidade de as pessoas voltarem a ter uma

boa performance. Daí também, a relação sutil existente hoje entre o narcotráfico e a psiquiatria,

ambos tentam dominar o desamparo com a ajuda de drogas.

Como os atuais processos econômicos globais são de natureza conflituosa e excludente,

especialmente nos países pobres, parece inevitável que a sobrevivência do espaço de ação dos

Estados exija a competência de construir modelos de equilíbrio que – ainda que baseados em tensão

ou conflitos – apontem para algum crescimento econômico, políticas de emprego e certa

desconcentração da renda. O mal-estar da civilização está hoje traduzido no desamparo do cidadão

da sociedade global. Haverá um determinismo inevitável na direção dos vetores tecnológicos que

geram simultaneamente acumulação e exclusão? Forças atuantes e organizadas da sociedade mundial

serão capazes de atuar no sentido de condicionar os novos e imensos saltos tecnológicos já

programados de modo a garantir empregabilidade e inclusão social?

Norberto Bobbio estará certo – em seus momentos de otimismo – quando afirma que a maior

parte das desigualdades são sociais e não estruturais, e com tal um dia serão eliminadas? Mesmo que

constatemos, com Freud, que essa questão se enquadra no conflito entre pulsão e civilização e jamais

será ultrapassada por sujeitos que nunca se livrarão do desamparo - só nos restando uma gestão

interminável e infinita deste conflito - ainda assim da qualidade dessa gestão dependerá o nível do

desamparo. E ela depende da governabilidade e do conteúdo democrático que soubemos operar em

nossas sociedades.

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*Apostila baseada no livro de Maria Cristina Costa – Sociologia: Introdução à ciência da

sociedade.

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