2
A ala Liberdade de Pensar afirma, com saudade Faltam-nos “Aristides” No Sábado passado decidi ir ao cinema. Já não é o hábito dos tempos de estudante, mas há histórias que compensam o desconforto da sala e “O cónsul de Bordeus” justificou a viagem ao Fórum. Suficientemente realizado, ainda que representado com garra e convicção por um Vítor Norte tão solitário no esforço, valeu bem mais pela personagem apresentada do que pelas qualidades cinematográficas (personagens pequenas em pobrezinhas representações, distraindo-se com as folhas e esquecendo a árvore). Mas não pretendo meter a foice em seara alheia e fico-me por aqui na crítica ao grande ecrã. Interessa-me ressaltar a função de apologia da dignidade de um Homem valiosamente raro, como todos os que merecem a maiúscula. E aconcheguei-me à ideia de que pudesse ser verdade a utopia do padre António Vieira, quando dizia, falando das virtudes de Santo António, que “para haver tudo isto em cada um de nós bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.” Mas, como Vieira, olho à volta, e para mim mesmo, e compreendo o desiludido lamento. Neste momento da vida da nação, que falta nos fazem, os Aristides! A sua coragem no combate à lei injusta sem se esconder na cobardia do “só cumpro ordens” dos seus correlegionários; o seu gigantismo moral que envergonhou (e envergonha) o nanismo calculista dos politicamente corretos ou lambebotamente leais; a sua trágica liberdade de cristão que desafiou os cantos de sereia do ter, poder e prazer que garantiriam o seu boçal bem-estar. Homens assim incomodam o poder: não se domam, não se vendem nem se compram, desorganizam os cálculos feitos, ocupam espaço visível mesmo depois de mortos (como as árvores). Assim se entende por que os arbustos e ervas daninhas da ditadura e, mais tarde, da pseudo- democracia tanto se desconfortavam por tê-lo perto. Por isso, foram necessários catorze anos (catorze após a revolução) para a pressão externa e da família não ser já suportável e verem-se obrigados os nossos mesquinhos políticos a re-habilitar a memória desta grande alma (o nosso Mahatma). Vergonha!!! Homens assim incomodam a religião: são farpas permanentes nas garras da consciência (numa igreja tão demoniacamente silenciosa, perante o massacre), obrigam à escolha diária do quente ou do frio (a tibieza é vómito para Cristo), desafinam na burguesa segurança da melodia ritual, trazem o desconforto das palavras evangélicas (ninguém pode servir a dois senhores…). Por isso, só na entrada do século XXI a igreja se lembrou de que ele era um dos seus filhos maiores. Vergonha!!!

Aristides

Embed Size (px)

DESCRIPTION

reflexão

Citation preview

A ala Liberdade de Pensar afirma, com saudade Faltam-nos Aristides

No Sbado passado decidi ir ao cinema. J no o hbito dos tempos de estudante, mas h histrias que compensam o desconforto da sala e O cnsul de Bordeus justificou a viagem ao Frum.Suficientemente realizado, ainda que representado com garra e convico por um Vtor Norte to solitrio no esforo, valeu bem mais pela personagem apresentada do que pelas qualidades cinematogrficas (personagens pequenas em pobrezinhas representaes, distraindo-se com as folhas e esquecendo a rvore). Mas no pretendo meter a foice em seara alheia e fico-me por aqui na crtica ao grande ecr. Interessa-me ressaltar a funo de apologia da dignidade de um Homem valiosamente raro, como todos os que merecem a maiscula. E aconcheguei-me ideia de que pudesse ser verdade a utopia do padre Antnio Vieira, quando dizia, falando das virtudes de Santo Antnio, que para haver tudo isto em cada um de ns bastava antigamente ser portugus, no era necessrio ser santo. Mas, como Vieira, olho volta, e para mim mesmo, e compreendo o desiludido lamento.Neste momento da vida da nao, que falta nos fazem, os Aristides! A sua coragem no combate lei injusta sem se esconder na cobardia do s cumpro ordens dos seus correlegionrios; o seu gigantismo moral que envergonhou (e envergonha) o nanismo calculista dos politicamente corretos ou lambebotamente leais; a sua trgica liberdade de cristo que desafiou os cantos de sereia do ter, poder e prazer que garantiriam o seu boal bem-estar.Homens assim incomodam o poder: no se domam, no se vendem nem se compram, desorganizam os clculos feitos, ocupam espao visvel mesmo depois de mortos (como as rvores). Assim se entende por que os arbustos e ervas daninhas da ditadura e, mais tarde, da pseudo-democracia tanto se desconfortavam por t-lo perto. Por isso, foram necessrios catorze anos (catorze aps a revoluo) para a presso externa e da famlia no ser j suportvel e verem-se obrigados os nossos mesquinhos polticos a re-habilitar a memria desta grande alma (o nosso Mahatma). Vergonha!!!Homens assim incomodam a religio: so farpas permanentes nas garras da conscincia (numa igreja to demoniacamente silenciosa, perante o massacre), obrigam escolha diria do quente ou do frio (a tibieza vmito para Cristo), desafinam na burguesa segurana da melodia ritual, trazem o desconforto das palavras evanglicas (ningum pode servir a dois senhores). Por isso, s na entrada do sculo XXI a igreja se lembrou de que ele era um dos seus filhos maiores. Vergonha!!!Perante este Homem, da mais elementar justia a humilde vnia da nossa pequenez. No consigo sequer imaginar o profundo sofrimento pessoal daqueles dias de retiro em meados de Junho de 1940, em que Sousa Mendes subiu ao seu Jardim das Oliveiras, suando o sangue das convices crists, e decidiu que: Se h que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens que a uma ordem de Deus. E, se alguma dvida houvesse sobre a plena conscincia das consequncias dos seus atos, relembro o que respondeu, j destituido do cargo e sem meios para sustentar a prpria famlia: __Se milhares de Judeus sofreram por causa de um Cristo (Hitler), certamente que um Cristo pode sofrer por tantos judeus.__

Desta massa se fazem os Santos.

Manuel Rocha

(12 de Novembro de 2012)