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UNIVERSIDADE DO AMAZONAS MESTRADO “SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA” Reflexões sobre o Homem e a Objetividade Científica no âmbito das Ciências Humanas Maria das Graças Ferreira de Medeiros

Artigo Epistemologia

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UNIVERSIDADE DO AMAZONAS

MESTRADO “SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA”

Reflexões sobre o Homem e a Objetividade Científica no âmbito das Ciências Humanas

Maria das Graças Ferreira de Medeiros

Manaus, abril / 2002

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“O homem é algo que deve ser superado dizia ele para os homens da cidade. Que fizestes para superá-lo? perguntava. O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar. O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir. Amo aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam dizia ele.”

NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra

a infância dos povos tudo eram crenças e dogmas de fé. O que causava

espanto, horror, admiração assumia ou um caráter divino ou demoníaco,

e o homem criou divindades em toda parte onde havia mistério. Porém, eram

tantas as maravilhas e insatisfatórias as criações, que ele foi em busca das

causas, movido pelo desejo e a necessidade de conhecer a razão dos seres e

das coisas. E empreendeu a busca filosófica. Todavia, havia ainda um

infindável desenrolar de acontecimentos admiráveis, para os quais a análise

reflexiva parecia insatisfatória. E o homem criou a ciência, e a ciência

fragmentou o homem, dissecou-o, reduziu-o a minúcias infinitesimais, até que

perdeu a noção do homem-todo, o homem que criou as divindades, o homem

que se descobriu um ser pensante, o homem que criou a ciência.

N

E os segredos impalpáveis, e a natureza invisível e intangível das

coisas? Não permaneceu ainda o mundo metafísico fora dos domínios do

saber científico? Onde o homem por detrás das coisas, dos acontecimentos,

das doenças, das normas, dos comportamentos?

A história do conhecimento estacionou por longo tempo no hiato entre o

filosófico pensar-sobre-o-ser e o pensar-o-ser-pensante, inaugurado com o

advento das Ciências Humanas. Um grande espaço na nebulosa do tempo foi

ocupado quase que exclusivamente pelo primado das ciências naturais, cujo

jugo dirigiu o esforço intelectual para o palpável, o tangível, o comprovado. Ao

1

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longo dos séculos XVII e XVIII, denominado por Foucault1 de período Clássico,

o empreendimento intelectual centrou-se em organizar as representações

daquilo entendido como "mundo real", tal como se observa um quadro e dele

se depreende uma compreensão.

Uma racionalidade nova, num campo particular, foi inaugurada pelas

ciências humanas, sendo recusados os pensamentos de ordem e modelos

definidos. Nesse novo esforço de conhecimento da condição humana,

tomando-se o “ser pensante” como objeto, entretanto, se estabelece também

uma nova inquietação: trata-se de saber se a objetividade é possível e em que

condições. Questiona-se que sentido teria a chamada objetividade científica

para um discurso que toma como objeto o próprio sujeito que o elabora.

Pode a objetividade opor-se ao imperialismo do sujeito, de seus desejos

e fantasias? Será possível ao cientista submeter-se aos fatos, à realidade, sem

interferir no seu processo ou modificá-la? É uma dificuldade real.

Como é possível ao sujeito, em sua condição de existente, com toda a

densidade ontológica e emocional que lhe é pertinente, ser colocado na

condição de objeto sem que a sua natureza de sujeito seja desvirtuada? Não

seria o homem, como centro de interesse do saber, na qualidade de

questionador, naturalmente inconciliável com uma objetividade ou um método

científico? Tornando-se "objeto" da ciência o homem não deixaria de ser

sujeito? Em nome da objetividade, não estaria sendo abandonado sentido do

sujeito e de suas relações com o outro e com a história?

O propósito deste artigo é acompanhar a trajetória dessas reflexões ao

longo do tempo, especificamente a partir da análise foucaultiana e

apontamentos de Merleau-Ponty e Japiassu, buscando uma compreensão de

como se deram essas relações no processo de constituição das Ciências

Humanas, e as conseqüências do seu aparecimento para a formação do

pensamento científico contemporâneo.

1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

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O HOMEM NAS CIÊNCIAS HUMANAS

Desde épocas remotas até os nossos dias, o existir humano sempre se

apresentou sob diferentes perspectivas, coexistindo no tempo e no espaço,

diferentes e inúmeros modos de concebê-lo. Perfazendo um longo caminho,

que passa pelas suas obras e pelos seus feitos, a reflexão tenta recuperar o

sentido do homem. Assim como no passado se impôs a natureza humana ou a

"idéia" de homem, no limiar do século XX a “condição humana" se impôs como

questão à reflexão filosófica.

Após viver longos séculos preocupado com o “mito da alma”, observa

Japiassu2, o homem moderno resolveu viver o mito da “consciência de si”,

suporte da teoria do conhecimento de Descartes, inaugurando-se uma

racionalidade dominadora, embora incapaz de integrar em si a diversidade

infinita das experiências humanas. “O que é o homem” passa a ser uma

questão primordial.

Como se deu essa entronização do homem no posto de objeto científico,

e os desdobramentos desse evento na história do conhecimento humano,

foram elementos de estudo para grandes pensadores como Michel Foucault e

Merleau-Ponty. Em Foucault, especialmente, essa análise foi magistralmente

feita em As palavras e as coisas, onde ele desenvolve uma “arqueologia” das

ciências humanas, num estudo da constituição histórica dos saberes sobre o

homem, mostrando porque antes da época moderna não houve, nem poderia

ter havido, um saber constituído sobre o homem.

Nessa arqueologia, Foucault procura neutralizar a questão da

cientificidade, e interrogar as condições de existência dos discursos, ainda

mesmo quando esses discursos não pretendem ser científicos. Assim, buscava

na arqueologia identificar conceitualmente a formação dos saberes, fossem

eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência. O

2 JAPIASSU, Hilton. Introdução às Ciências Humanas – análise de epistemologia histórica. São Paulo : Letras e Artes, 1994.

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caráter de objetividade ou cientificidade das ditas “ciências do homem” é então

questionado.

Antes do fim do século XVIII “o homem não existia”. O próprio conceito

de natureza humana e a maneira como ele funcionava impediam que houvesse

uma ciência clássica do homem. De acordo com Foucault, as ciências naturais

o tratavam do como uma espécie ou um gênero, pois a epistemê clássica se

articulava segundo linhas que não delimitavam um domínio próprio e específico

do homem. “Não havia consciência epistemológica do homem.”

É o aparecimento desse homem que Foucault reivindica para a idade

moderna como “um objeto de conhecimento e como sujeito que conhece”, um

“duplo empírico-transcendental. O limiar da nossa modernidade, segundo ele,

não está situado no momento em que se pretendeu aplicar ao estudo do

homem métodos objetivos, mas no dia em que se constituiu um duplo empírico-

transcendental a que se chamou homem, e porque é duplo empírico-

transcendental, o homem é também o lugar do conhecimento.

O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da

modernidade, como coisa empírica e como fundamento filosófico, não mais

considerado como objeto ou sujeito, mas como representação, faz estabelecer

uma correlação entre o homem como objeto e o homem como sujeito do

conhecimento, passando a filosofia moderna a ser uma analítica da finitude

(Foucault3). Desta forma, a cultura moderna pode pensar o homem porque ela

pensa o finito a partir dele próprio, porquanto nele se tomará conhecimento do

que torna possível todo conhecimento.

A linguagem clássica, como discurso comum da representação e das

coisas, excluía absolutamente qualquer coisa que fosse “ciência do homem”.

Enquanto essa linguagem predominou na cultura ocidental, não havia

possibilidade de que a existência humana fosse posta em questão por ela

própria. O nascimento das ciências humanas pressupunha o estabelecimento

3 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

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teórico das noções de homem e de história como categorias filosóficas. De

acordo com Foucault,

“... o campo epistemológico que percorreram as ciências humanas não foi prescrito anteriormente: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, algo como o homem.”4

Foucault identifica a emergência histórica de cada uma das ciências

humanas por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de

ordem teórica ou prática. No entanto, esse aparecimento foi atrelado a um

contexto cultural, geográfico e econômico bem preciso, constituindo-se um dos

graves problemas das Ciências Humanas o atrelamento ao etnocentrismo

europeu, tentando impor sua cultura, modo de reflexão, de desenvolvimento e

de produção de conhecimento como modelo para os outros. As Ciências

Humanas emergem quando a sociedade toma consciência de sua historicidade

autoprodutiva.

“Pode-se dizer que o conhecimento do homem, diferentemente das ciências da natureza, está sempre ligado, mesmo sob sua forma mais indecisa, a éticas ou a políticas; mais profundamente, o pensamento moderno avança naquela direção em que o outro do homem deve tornar-se o Mesmo que ele. (...) O homem constituiu-se no começo do século XIX em correlação com essas historicidades, com todas essas coisas envolvidas sobre si mesmas e indicando, através de seu desdobramento, mas por suas leis próprias, a identidade inacessível de sua origem.”5

O processo de elaboração da idéia de uma Ciência do Homem, segundo

Japiassu6, foi desencadeado quando se alterou a imagem do homem e de sua

vida, provocada por determinadas forças coletivas, por sua vez dando origem a

mutações radicais na ordem estabelecida e profundos transtornos nos

costumes e hábitos tradicionais. Ao despontarem como ramos do saber

reivindicando autonomia de fato e de direito, as Ciências Humanas fazem o

homem ingressar numa nova era, caracterizada pela perda da ingenuidade em

relação a si mesmo como sujeito, e com relação às suas próprias obras.4 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.5 Idem.6 JAPIASSU, Hilton. Introdução às Ciências Humanas – análise de epistemologia histórica. São Paulo

: Letras e Artes, 1994.

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“Esta perda da ingenuidade da consciência clássica foi decisiva para o ingresso do conhecimento, não somente do mundo exterior e da natureza, mas também do próprio homem, na era da positividade, por oposição à era da representação: o homem “positivo” não é mais o homem da “representação”, nem objetiva nem subjetivamente. Ele passa a ser visto de modo inteiramente diverso, como objeto de ciência.’ 7

Observa o autor que até o século XIX o destino das Ciências Humanas

estava vinculado ao da filosofia, mas, a partir daí, estas se convertem em

estudo do homem em sua totalidade e suas relações com o resto da natureza.

O homem passa a ser situado no encadeamento dos seres vivos, como um ser

que emerge de uma série evolutiva, com características de ser da natureza,

enquanto pertencente a um mundo regido por leis biológicas, e de ser de

cultura, enquanto ser falante e instituinte de uma civilização. Segundo ele, a

antropologia modificou profundamente nossa visão do mundo e do homem,

contribuindo decisivamente para que a filosofia passasse do estudo da

consciência humana ao estudo do intercâmbio entre a consciência e o mundo.

Deve-se observar, no entanto, recomenda Japiassu, que o seu advento

no limiar de nossa época, não é fruto do acaso. Ele é requerido pela própria

contextura do saber moderno, o que não significa que hoje sejamos mais

humanos do que antes, e não está em questão o ressurgimento do

humanismo. A questão é que os modernos não conseguem mais pensar sem

uma referência ao homem, mesmo que velada.

“As “ciências humanas” apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental, ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que se deve saber. (...) o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não problematizadas; tornava-se, a fortiori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem.”8

OBJETIVIDADE E CIENTIFICIDADE NAS CIÊNCIAS HUMANAS

73 Idem.8 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

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Segundo Japiassu9, as ciências humanas desde a sua origem estão

vinculadas ao espírito de positividade das ciências naturais, partindo-se do

princípio que há fenômenos e processos humanos acessíveis à observação,

podendo, portanto, ser analisados empiricamente. Pode-se dizer, segundo ele,

que os vários tipos de obstáculos interpostos entre as Ciências Humanas e o

estatuto de cientificidade foi o naturalismo, o grande responsável pelo

cientificismo do século passado e, ainda hoje, o pano de fundo histórico do

cientificismo contemporâneo.

O naturalismo considera que somente as ciências da natureza detêm o

modelo ou método dos conhecimentos, e constituem a base de todo e qualquer

conhecimento com pretensões à objetividade. Por esse modelo, as Ciências

Humanas precisam se curvar aos critérios de cientificidade propostos pelas

ciências naturais, ou permanecerão constantemente num estado de

imaturidade epistemológica. Um conhecimento deverá ser experimental ou não

será científico.

O positivismo advoga a idéia de que as Ciências Humanas devem imitar

os procedimentos das ciências naturais, limitando-se à observação e à

explicação causal dos fenômenos de forma neutra, objetiva, isenta de valores

e de ideologias. Essa orientação, segundo Japiassu, tornou-se um obstáculo

ao desenvolvimento das CH, que passaram a adotar os métodos e

procedimentos dos físicos e dos biólogos, como se o critério de cientificidade

residisse exclusivamente nas ciências naturais.

“A ‘objetividade’ não pode ser entendida como a descoberta da racionalidade total do mundo humano. Nem mesmo podemos falar da racionalidade total do mundo físico, onde inúmeros fenômenos permanecem inexplicados. (...) Com maior razão, há múltiplas racionalidades nas diversas disciplinas que tomam o homem como objeto: há racionalidades diferentes em atividades distintas e há racionalidades diferentes para pontos de vista distintos. Trata-se, em ambos os casos, de modos de abordagem, de pontos de vista; numa palavra, de métodos diferentes. Não temos o direito de afirmar que determinado ponto de vista é melhor ou menos válido que os outros. Todos são lícitos, na medida em que conduzem a um conhecimento de seu objeto.”10

9 JAPIASSU, Hilton. Introdução às Ciências Humanas – análise de epistemologia histórica. São Paulo : Letras e Artes, 1994.

10 Idem.

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Em As palavras e as coisas Foucault mostra que as denominadas

Ciências Humanas vão se estabelecer como um conjunto de métodos objetivos

aplicados, não ao estudo de um homem que teria sempre existido, mas sim ao

estudo de "um duplo empírico-transcendental a que se chamou homem". Para

ele, Ciências Humanas não são ciências porque sejam imaturas, nem porque

seu objeto - o homem - seja por demais complexo para se deixar "dominar" por

um saber específico. Sua constituição como ciência não é possível,

simplesmente porque sua configuração epistemológica não é adequada à sua

emergência como ciências autônomas.

“O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, sua precariedade, sua incerteza como ciência, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal, não é, como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafísico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam, mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas, sua relação constante com as três dimensões que lhes confere seu espaço.”11

São científicas, afinal, as Ciências Humanas?"

Para Foucault, o estatuto a ser dado às Ciências Humanas não deve ir

além de compreendê-las como um "corpo de conhecimentos que toma por

objeto o homem no que ele tem de empírico."

“(...) As “ciências do homem” fazem parte da epistemê moderna como a química ou a medicina ou alguma outra ciência; ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da epistémê clássica. Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemológico significa somente que elas nele enraízam sua positividade, que nele encontram sua condição de existência, que não são, portanto, apenas ilusões, quimeras pseudocientíficas, motivadas ao nível das opiniões, dos interesses, das crenças, que elas não são aquilo a que os outros dão o estranho nome de “ideologia”. O que não quer dizer, porém, que por isso sejam ciências.”12

Foucault enfatiza, porém, que não o fato de não preencherem os

critérios formais de um conhecimento científico e sua configuração ser

radicalmente diferente daquela das ciências no sentido estrito, que as ciências

vão deixar de pertencer ao domínio positivo do saber.

11 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.12 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

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“Essa configuração que lhes é peculiar não deve ser tratada como um fenômeno negativo: não é a presença de um obstáculo, não é alguma deficiência interna que as fazem malograr no limiar das formas científicas. Elas constituem, na sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueológico, outras configurações do saber.”

...“Inútil, pois, dizer que as “ciências humanas” são falsas ciências;

simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências.” 13(507)

Nesse embate entre objetividade, como sinônimo de cientificidade, e

subjetividade, Merleau-Ponty traz também à reflexão o caráter universal da

subjetividade, evidenciando uma transcendência que atravessa a idéia do que

é ou não científico. Há uma metafísica intrínseca nesse processo de

conhecimento.

Em sua concepção, pela razão mesma de que é a partir do homem que

se dá a produção do saber, não há como se furtar a esse caráter de

subjetividade. “Não atingimos o universal abandonando nossa particularidade,

mas fazendo dela um meio para alcançar os outros, em virtude de uma

afinidade misteriosa que faz com que as situações se compreendam entre si.”14

“É diante de nós, na coisa onde somos colocados por nossa percepção, no diálogo em que somos lançados por nossa experiência do outro, num movimento cujas molas não são conhecidas por nós em sua totalidade, que se encontra o germe da universalidade ou a “luz natural”, sem as quais não haveria conhecimento. Há metafísica a partir do momento em que, cessando de viver na evidência do objeto – seja o objeto sensorial ou o objeto da ciência – apercebemos indissoluvelmente a subjetividade radical de toda nossa experiência e seu valor de verdade.”15

Merleau-Ponty aponta para a tendência do saber dito científico, de

procurar livrar-se de toda subjetividade, de ignorar a presença do homem, do

ser pensante, por detrás do objeto científico:

“Há, também, um mito do saber científico que espera da simples anotação dos fatos, não somente a ciência das coisas do mundo, mais ainda a ciência dessa ciência, uma sociologia do saber, que deve fechar o universo dos

13 Idem.14 MERLEAU-PONTY M. Textos Escolhidos. Tradução Marilena Chauí et alii. São Paulo : Abril

Cultural, 1980.15 Idem.

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fatos sobre si mesmo, aí inserindo até mesmo as idéias que inventamos para interpretá-los, e que acaba, por assim dizer, desvencilhando-nos de nós mesmos.”16

A discussão sobre a cientificidade das Ciências Humanas não fica

restrita ao círculo acadêmico. Antes, extrapola ao senso comum a idéia de

essas são ciências “menores”, fato cabalmente demonstrado pelo desprestígio

com que os profissionais dessa área são tratados em relação aos de outras

áreas, como as Ciências Exatas ou Ciências Biológicas. Há um “quê” de

descrédito quase que generalizado, calcado na idéia de que as Ciências

Humanas estão baseadas no “achismo”.

A propósito das interpretações, Japiassu enfatiza que tanto a

objetividade quanto a racionalidade não escapam à intervenção de valores.

Segundo ele, no fundo a racionalidade consiste na escolha dos meios mais

aptos para se atingir um fim.

“(...) A crença na “neutralidade” e na “objetividade” da Ciência se funda em certas exigências epistemológicas fundamentais: silenciar os preconceitos pessoais, evitar todo pressuposto metafísico, fazer experimentações sistemáticas a fim de que os fatos possam falar. A Ciência se funda no método que, por sua vez, nasce da Razão.”17

Segundo ele, as Ciências Humanas só são prestigiadas, em nossas

sociedades, na medida em que podem ser recuperadas pela ideologia

dominante e postas a serviço da gestão da ordem estabelecida. .”... pedir aos

cientistas humanos que sirvam a algo, significa que sirvam ao poder. E que

renunciem à sua função teórica, que é a de compreenderem o mundo social e

humano, a começar pelo mundo do próprio poder”18

Japiassu acrescenta, ainda, que a chamada “objetividade científica”

reside unicamente na tradição crítica. “Um cientista objetivo e isento de valores

não constitui um ideal: sempre tem um interesse particular a motivá-lo. Embora

isto seja mais manifesto nas ciências sociais, o fato é que não há nenhuma

16 Ibidem.17 JAPIASSU, Hilton. Introdução às Ciências Humanas – análise de epistemologia histórica. São Paulo :

Letras e Artes, 199418 .Idem.

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ciência de pura observação, mas somente ciências que teorizam de modo mais

ou menos consciente e crítico.”

Para Merleau-Ponty19, as ciências do homem, em geral, cada uma à sua

maneira, orientam-se para a mesma revisão das relações do subjetivo com o

objetivo, e é preciso rever a nossa idéia de conhecimento para alcançar uma

compreensão mais precisa:

“Se quisermos alcançar o movimento pelo qual os homens assumem e elaboram as condições dadas de sua vida coletiva, coroando-as com valores e instituições originais, então precisaremos, ainda uma vez, rever nossa idéia do conhecimento científico e objetivo: o conhecimento sociológico sendo em seu ponto mais alto o conhecimento de alguém, exige que retomemos, guiando-nos pelos índices objetivos, a atitude humana que constitui o espírito de uma sociedade.”20

Isso equivale a dizer que o denominado “conhecimento” é sempre uma

forma de relação do sujeito a um objeto, ou seja, que a apreensão de sentido

das coisas é sempre resultante de uma determinada modalidade de vínculo

entre uma dimensão da subjetividade com outra dimensão da objetividade,

uma vez que qualquer hipótese com referência a esse mundo depende

diretamente de uma subjetividade apreendedora.

Essas reflexões fazem depreender que a tarefa de compreensão da

condição humana, portanto, vai muito além das disputas teóricas. Tal tarefa é

infinda, não se esgota, já que, sendo o homem histórico, os pontos de

articulação estão sempre se modificando. Segundo Merleau-Ponty, as próprias

idéias de homem transformam-se, pois a situação humana se modifica, e toda

mudança na representação do homem traduz uma mudança no próprio

homem.

Retomando a citação de Nietzsche, “o homem é uma corda sobre um

abismo”, o abismo incomensurável de si mesmo, na sua condição de ser-

mistério, criatura-criador, pensante-pensado, sujeito-objeto, e todas as infinitas

19 MERLEAU-PONTY M. Textos Escolhidos. Tradução Marilena Chauí et alii. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

20 MERLEAU-PONTY M. Textos Escolhidos. Tradução Marilena Chauí et alii. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

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dubiedades e ambigüidades que se possa criar metaforicamente, pois eis que o

homem é também uma metáfora. “O que é grande no homem – falou

Zaratustra – é que ele é uma ponte e não um fim.”

E aí reside a assustadora beleza do conhecimento.

OBRAS CONSULTADAS

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

JAPIASSU, Hilton. Introdução às Ciências Humanas – análise de epistemologia histórica. São Paulo : Letras e Artes, 1994.

MERLEAU-PONTY M. Textos Escolhidos. Tradução Marilena Chauí et alii. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

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