As Cartas Santa Catarina de Sena

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SANTA SENA

CATARINA

DE

AS CARTAS

PAULUS

INTRODUO

Chegaram at ns 381 cartas de Santa Catarina de Sena, ditadas nos dez ltimos anos (1370-1380) de sua breve vida de 33 anos. Oito dessas cartas podem ser lidas no texto original do amanuense ou secretrio de Catarina. Por exemplo, na Biblioteca Municipal de Sena esto arquivadas cinco cartas que Catarina ditou a Barduccio Cani-giani e uma ditada a Estvo Maconi. Consta-nos que certa vez a jovem missivista ditou trs (cartas) simultaneamente a Malavolti, Maconi e Pagliaresi. Como missivista, Catarina tinha algo de genial. Apresentamos nesta publicao apenas 33 cartas, sem maiores preocupaes na escolha. Uma leitura atenta de qualquer uma delas provar a veracidade dessa afirmao. Catarina tinha uma linguagem clara, lgica, ordenada em suas idias, apesar do fervilhar delas em sua cabea. No incio do escrito epistolar, diz sempre qual seu objetivo. Faz um estudo psicoteolgico dele e termina apli-cando-o ao caso da pessoa a quem escreve. Sua sinceridade total. Quando percebe que usou expresses por demais fortes, pede desculpas e justifica seu comportamento com a motivao do amor e interesse pessoal.

Em qualquer assunto, pronuncia-se com autoridade e maestria. Nesta breve seleo o leitor ver Catarina ocupando-se com assuntos diversos: questes familiares

(Carta 1, 2, 3), pessoais (4), carcerrias(5,6,9), monacais (7, 19, 20), sacerdotais (11, 18), espirituais (10, 14), humanas (8, 12, 13, 15, 23), pastorais (16,21, 22), eclesiais (17, 26, 28), governamentais no campo poltico (24, 25, 29) e religioso (27, 31, 32), e msticas (33). G. Bertoni (apud Piero Chiminelli, Santa CaWrina di Siena, Sales, Roma, p. 27ls) afirma que nas cartas de Catarina pode-se encontrar de tudo: o apaixonado, o l-gubre, o trgico, o terno, o suave, o tempestuoso, o sereno, a lgrima, o sorriso, o sangue, o paradisaco. Mas em tudo isso, e sempre, o amor por Deus, pela humanidade, o amor para cada ser existente no mundo, para cada pessoa. Amigo leitor! Medite sobre as mensagens profundamente crists destas cartas de Catarina de Sena, como se elas fossem dirigidas a voc, e depois acrescente outros elogios. Para facilitar-lhe a leitura coloquei um ttulo sugestivo e dividi a carta em itens, por assunto. O ttulo tradicional vai entre parnteses. Sobre a traduo em si mesma, esforceime por realizar o conselho de S. Toms de Aquino: "Um bom tradutor, por certo conservando o sentido das verdades que traduz, deve adaptar seu estilo ao gnio da lngua em que se exprime" (Prlogo do opsculo "Contra os erros dos gregos"). Frei Joo Alves Baslio O.P.

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1. NECESSIDADE DO AUTOCONHECIMENTO (Carta n9 1 sua me Lapa)

1. Saudao e objetivo 2. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amvel Maria, querida me em Jesus Cristo, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos conhecendo-vos e conhecendo a presena de Deus em vs.Necessidade do autoconhecimento Sem esse conhecimento no participareis da vida da graa. Vs deveis ter uma santa e grande preocupao: nada sois, e o que sois vem de Deus. Dele recebestes o ser e, dia aps dia, Ele vos concede muitos favores e graas.1

1 Me de 25 filhos, d. Lapa Piagenti Benincasa era uma mulher firme, de palavra fcil, um tanto nervosa. Podemos imaginar: com a morte do marido, c exlio de trs filhos, a venda da tinturaria da famlia ou pelo menos 8

as dificuldades financeiras, os achaques da velhice... punha-se a lamentar e a fazer comparaes e hipteses. Catarina, ausente de Sena, fica sabendo e manda-lhe alguns conselhos.

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Se fordes grata a Deus, alcanareis a perfeita pacir>cia e no ficareis a fazer comparaes entre sofrimentos 1" des e pequenos, pois ento os grandes vos parecer0 irn nada a ser suportado por Jesus Cristo crucificado- ^,a" liase o bom soldado de cavalaria no campo de hat*1^' tambm vossa alma tem de ser experimentada nd '"ta das grandes dores. Se vossa alma se mostrar bast3llte paciente, se no desanimar nem se revoltar, se riose escandalizar diante dos acontecimentos que I ) rus per"11" te, poder rejubilar-se, alegrar-se e, contente, espera1'a vida eterna. Apoiada na cruz e fortalecida pelas do** sofrimentos de Cristo, tranqila ela aguardar aeterBa viso de Deus. Quem perseguido e atribulado n^ste mundo depois ser saciado, consolado e iluminado na templao da Divindade, em gozo total, imediato,da divina doura. Mais ainda. Desde agora, o Senhor cons'a os que por Ele labutam. Mas sem o conhecimento de ^ mesmos e da presena de Deus em ns, jamais atinfp1*-mos to grande felicidade. Quanto sei e posso, suplc0" vos que procureis com empenho esse conhecimento p#ra jbtermos a recompensa dos nossos esforos 3. Concluso Permanecei no santo e doce amor de I ) eus-;>!i Por alguns instantes Catarina esquece o "vs" e diz "tu", certamente isado nas conversas informais com o tabelio. tomai como esposa a filha de Francisco Venture, (do bairro) de Camporeggio. 4. Concluso Nada mais acrescento. Rogo ao supremo e eterno Amor que vos conceda aquilo que sirva para a sua glria e para a vossa salvao. Que o Senhor envie sobre ambos a plenitude da graa e a sua sublime e eterna bno. Permanecei no santo amor de Deus. Jesus doce, Jesus amor!

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25 Nos tempos de Catarina, Camporeggio no era como hoje um bairro de Sena. O lugar recebera tal nome porque, em 1186, um rei de Roma chamado Henrique ali se acampara com seus soldados ao assediar a cidade. Em portugus diramos "Campo real". Ali vivia a candidata de Catarina ao casamento, mas Ghidini preferiu a viva e foi um bom marido. Quando ela morreu, anos aps a morte de Catarina, ele vestiu o burel dos enfermeiros de um hospital.

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9. A UM MONGE ENCARCERADO (Carta ng 4)

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Saudao e objetivo

24. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da terna Maria, diletssimo e carssimo irmo em Jesus Cristo, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Deus, vos escrevo no precioso sangue do Filho, desejosa de ver vosso corao e vossa alma unidos e transformados no perfeito amor do Filho de Deus.O cristo perfeito e o sofrimento Sem o verdadeiro amor no possumos a vida sobrenatural, nem suportamos com pacincia total e perfeita os sofrimentos. Carssimo irmo, no conheo outra forma26

26 Os mosteiros antigos possuam, quase todos, algumas celas carcerrias, mde eram retidos os monges julgados dignos de tal castigo. Alis, nem sempre ior motivos srios... Sabemos que o grande mstico S. Joo da Cruz esteve >reso durante uns oito meses num convento de Toledo em 1578. A presente :arta oferece a ocasio de notarmos como Catarina sabia tratar as pessoas, insta reler a carta aos encarcerados de 47

Sena e compar-la com a presente nissiva. Na primeira, ela conversava com um grupo diversificado de pessoas, lo muito versadas em espiritualidade; aqui, trata-se de um monge cartuxo, lolitrio e mais exposto as divagaes do esprito.

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de obter semelhante amor, porm, seno esta: refletir sobre o amor infinito que Deus tem por ns e meditar sobre Jesus morto no madeiro da cruz, na qual unicamente o amor o retinha pregado. Pois garanto-vos, irmo querido, com isso toda amargura torna-se suportvel e todo peso, leve. Chegaram ao meu conhecimento os numerosos sofrimentos e dificuldades que padeceis. Mas no os consideremos como males; se pensarmos bem em ns mesmos e na divina vontade, parecero consolaes. Conhecendo a ns mesmos e a Deus em ns, entenderemos que somos um nada, que em nosso passado apenas praticamos o mal e o pecado. Ao reconhecer dessa maneira que ofendeu o Criador, supremo Bem, a alma v nascer em si certo desprezo pela prpria pessoa, deseja reparar o mal, fazer justia, e alegra-se quando tem de suportar dores e dificuldades, quase como compensao pela ofensa feita ao Criador. Julga ser um grandssimo favor o fato de ser punido por Deus durante esta vida, e no na outra, na qual os castigos so eternos. Carssimo irmo em Jesus Cristo! Se no refletirmos sobre a utilidade do sofrimento nesta vida, na qual passamos como peregrinos em corrida para a morte, no evitaremos os males futuros. So muitos os bens que derivam do padecer agora. Em primeiro lugar, a pessoa configura-se com Cristo crucificado em dores e sofrimentos. E que tesouro para a alma revestir-se dos padecimentos de Jesus! Em segundo lugar, a pessoa se purifica, liberta-se dos prprios pecados e defeitos, cresce na graa divina e, pelas tribulaes, merece a vida celeste, remunerao que Deus d aos que sofrem. 3. No cair na tristeza Querido irmo, tambm no vos atemorizeis se notar-des que o demnio vos envia tristezas e trevas, com muitas 49

imaginaes e pensamentos, para diminuir a pacincia do vosso corao e da vossa alma. O prprio corpo poder rebelar-se contra o esprito. Numa outra vez o demnio tentar com blasfmias, procurando perturbar vosso corao com muitas dificuldades. Ele bem sabe que a alma no vai cair nessas tentaes, pois escolheu antes morrer a ofender a Deus mortalmente com um ato voluntrio; mas o demnio age assim para levar a pessoa tristeza, a julgar-se em pecado onde pecado no h; enfim, a abandonar todo exerccio de orao. Quero que no mergulheis na tristeza. Ningum deve abater-se na tristeza, qualquer seja a dificuldade, bem :omo abandonar a orao. No mnimo, coloque-se diante 3a cruz e diga: "Jesus, Jesus, eu confio em Jesus!" Vs o sabeis. Ainda que surjam pensamentos maus, a pessoa lo pecar, se sua vontade no consentir neles, preferin-io morrer a cometer uma culpa. Comeai por fortalecermos com uma vontade santa e reta; em seguida, no vos preocupeis com os pensamentos. Se Deus permite ao de-nnio molestar vossa alma, para que reconheais a xmdade divina na humildade, para que vos oculteis ias chagas de Cristo, como faz a criana que procura a ne. Ela, a mecaridade divina, vos acolher! Lembrai-ros de que Deus no quer a morte do pecador, mas que se :onverta e viva (Ez 33,11). Seu amor to grande que os envia sofrimentos, permite tentaes, consola-nos. A 'ontade divina quer apenas a nossa santificao! L Concluso Permanecei nas doces chagas de Jesus Cristo e no :anto amor de Deus! Jesus doce, Jesus amor!

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10. VEEMENTE APELO CONVERSO (Carta n9 21 a um annimo)

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Saudao e objetivo

26. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amvel Maria, carssimo irmo no doce Cristo Jesus, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos um devedor rgio, que paga a prpria dvida ao Criador.Todos somos devedores a Deus Vs sabeis que todos ns somos devedores para com Deus. Tudo o que possumos foi-nos dado por gratuidade e inestimvel amor. Sem que pedssemos a Deus que nos criasse, Ele nos fez sua imagem e semelhana, motivado pela chama do seu amor; e nos criou em altssima dignidade. No h lngua capaz de descrever, nem olho para ver ou corao para perceber a dignidade27

27 Escrita ao que parece em 1372, esta carta um grito de amor de Catarina ante a situao infeliz de um amigo de vida devassa. Lendo-a e meditando-a, compreenderemos por que Catarina de Sena conseguia atrair para Deus tantas pessoas de vida irregular.

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humana em toda a sua extenso. Eis a dvida que temos para com Deus! Uma dvida a ser paga em moedas de amor, pelo amor. E conveniente e justo que uma pessoa, amada, tambm ame. Ora, Deus demonstrou por ns o maior amor possvel, morrendo por ns (cf. Jo 15,13). Ao notar que o homem perdera sua dignidade pecando e submetendo-se ao demnio, a suprema e eterna Bondade veio em seu socorro. Enamorado de sua criatura, Deus quis restituir-lhe a dignidade e perdola. Enviou seu Filho unignito como condenado a morrer para dar a vida da graa ao homem; enviou-o para resgatar a humanidade, para retir-la do crcere-pecado e do poder do demnio. Meu senhor!28 Quais so as pessoas que no se queimam nesse Fogo de amor? So aquelas que, diariamente, renovam sua promissria com o diabo e no valorizam Jesus Cristo, o Homem-Deus flagelado e saturado de opr-orios. Ai de mim, ai de mim! So pessoas que transformam o prprio corpo numa casa imunda, com muitos animais feios, sem qualquer racionalidade. 3. Apelo direto converso Ai de mim, irmo carssimo! No continueis a dormir na morte do pecado mortal! Afirmo-vos: o machado j jst posto raiz da rvore (Lc 3,9). Usai a p do temor anto de Deus com as mos do amor, e comeai a limpar a podrido da vossa alma e do corpo. No sejais cruel com /s mesmo, um carrasco, separando vossa cabea do bon-loso Cristo Jesus. Basta de podrido, basta de imundcie! decorrei ao Criador, abri os olhos da alma, contemplai a cha-na do amor divino. E um amor que vos sustenta vivo, o ordena terra que se abra diante de vs, nem que os 2" A palavra "senhor" no se refere a Deus, mas pessoa a quem escrevia. ) 52

evia ser, ento, algum de alta posio social. Talvez um sacerdote. animais ferozes vos devorem. Pelo contrrio, a terra vos d seus frutos, o sol vos aquece e ilumina, o cu vos d o movimento... para que vivais. Um amor que vos concede mais tempo, para que vos corrijais. E tudo isso, por amor. Devedor maldoso e falso, no demoreis mais. Oferecei a Jesus a mente, a alma, o corpo. No peo que vos mateis quanto ao corpo, mas quanto s tendncias sensveis. Morra a vossa vontade (egosta) e viva a racionalidade no seguimento de Cristo crucificado. Assim fazendo, paga-reis a dvida. Dai a Deus o que de Deus e terra o que da terra (cf. Mt 22,21). A Deus sejam dados corao, alma, afeio. Com empenho, sem m vontade. Toda a vossa atividade deve fundamentar-se em Deus. A terra, isto , sensualidade, que se deve dar? Aquilo que ela merece. Qual o merecimento de um homicida? A morte. Assim, preciso matar o amor-prprio, flagelar o corpo, afligi-lo, coloc-lo sob o jugo de Deus nos Mandamentos. No vedes que nossa carne mortal? Passa depressa o seu verdor, como a flor separada do caule. Por amor de Jesus crucificado, no continueis assim! Digo-vos que, se no mudardes de vida, Deus no vai tolerar tanta abominao e maldade; far um srio julgamento e vos condenar. Digo-vos que no somente Deus, mas nem os demnios vos suportam. Os demnios comprazem-se em ver todos os demais pecados, mas esse contra a natureza, no! Sois, por acaso, uma fera, um feio animal? Tendes a figura de homem, mas transformada em pocilga, com feios pecados mortais. Ai de mim, basta, por amor de Deus! Cuidai, cuidai da vossa salvao (eterna). Respondei a Cristo, que vos chama. Fostes criado para ser um templo de Deus, para acolher a graa divina, para viver virtuosamente, para participar do 53

sangue do Cordeiro, em que nossas maldades so avadas. Ai de mim, ai da minha desventurada alma! No sei amo sanar minhas maldades e as vossas. Como se tor-ou desapiedada a vossa alma, bestial vossa paixo sen-vel, que, alm desse pecado contra a natureza, ain-a...?29 Ai de mim! Explodam os coraes, abra-se o solo, tirem-se contra vs as pedras, devorem-nos os lobos..., or no suportarem tanta sujeira, tanta ofensa a Deus e vossa alma! Meu irmo, calam-se a lngua e todos os entimentos. Ai de mim, quero que mudeis. Ponde termo tais misrias. Recordo-vos que, se no vos corrigirdes, leus no vos suportar. . A misericrdia e a justia divina Se mudardes de vida para o restante da vossa vida, leus vos perdoar, pois misericordioso e benigno. Bon-osamente vos receber em seus braos (cf. Lc 15,20) e os far participar do prmio, alcanado pelo sangue do ordeiro em grande chama de amor. Ningum to pe-idor, que no alcance misericrdia. A misericrdia divi-a maior que nossas maldades. Mas sob a condio de ue desejemos nos corrigir na santa confisso, com o pro-sito de preferir a morte a retornar ao vmito (Pr 26,11). ssim fazendo, reconquistareis vossa dignidade perdida elo pecado e pagaremos nosso dbito a Deus. Mas lembrai-vos! Se no pagardes o dbito, caireis a mais escura priso que se possa imaginar. E quando d dbito no pago pela confisso e arrependimento, em necessrio outros gastarem energia para prender devedor, pois ele por si mesmo se encaminhar para as 2J Nos tempos de Catarina usavam-se expresses exageradamente fortes ira retratar a fealdade do pecado. Algumas 54

dessas expresses foram supri-idas pelos editores e copistas, como aconteceu neste lugar. Ou ento a pr-ia missivista no teve coragem de ditar o nome do pecado.

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profundidades do Inferno, na companhia dos demnios, patres aos quais serve. . Os caminhos da converso Meu irmo no doce Cristo Jesus! No quero que tal priso e condenao venham para vs. Pelo contrrio, peo-vos da parte de Deus pois desejo ajudar-vos que escapeis das mos do diabo. Saldai a dvida na santa confisso, arrependido da ofensa feita a Deus e com o propsito de no cair mais em to grande misria. Lembrai-vos de Cristo crucificado. Anulai o veneno inoculado em vosso corpo mediante a lembrana do corpo flagelado de Jesus, Homem-Deus. Pela unio da natureza divina com a humana (em Jesus), nosso corpo foi elevado a uma sublime dignidade e posto acima de todos os coros anglicos. Como deveriam envergonhar-se os tolos filhos de Ado, por se afundarem em to grande misria e perderem a prpria dignidade. Meditai sobre Cristo crucificado, escondei-vos nas suas chagas, afogai-vos no seu sangue. No demoreis, no espereis o tempo, pois o tempo no vos espera. Caso vos perturbe vossa fragilidade, condenai-a como bom juiz. Sentai-vos na ctedra da vossa conscincia e reprimi os impulsos no eliminados pela santa e doce lembrana de Deus. Animai-vos a resistir. No consintais ao pecado de desejo ou de ao. Dizei: "O minha alma, suporta s hoje este pequeno sacrifcio. Resiste, no consintas. Amanh a vida talvez j se acabou; e se estiveres viva, fars a vontade divina. Hoje, age deste modo!" Digovos que, se agirdes assim, vosso corpo e vossa alma hoje transformados em uma pocilga tornar-se-o um templo, no qual Deus se deleitar em habitar. Por fim, no trmino da vossa vida, recebereis a viso eterna de Deus, na qual h vida sem morte, saciedade sem fastio. No percais to grande bem por causa de um msero prazer. 3. Concluso Nada mais acrescento. Permanecei no 56

santo e doce imor de Deus. Perdoai minha maldade. Talvez vos ofen-3i com palavras, dizendo coisas que no gostssemos de iscutar. Desculpai-me. Foram a afeio e o amor, que telho pela salvao de vossa alma, que me levaram a isso. 3e eu no vos amasse, no me preocuparia, nem me da-ia cuidados, embora vos visse nas mos do demnio. Zomo vos amo, no consigo calar-me. Quero que parti-:ipeis do sangue do Filho de Deus. Jesus doce, Jesus amor!

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11. A DOIS PADRES QUE SE ODIAVAM (Carta n9 3)

1. Saudao e objetivo Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amvel Maria, carssimos pais e irmos em Jesus Cristo,30 eu Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos no seguimento do Cordeiro, morto por ns no madeiro da santa cruz. 2. Jesus, o caminho da paz Jesus fez-se nossa paz (Ef 11,14) e nosso mediador. Colocou-se entre Deus e a humanidade e transformou a grande guerra (do pecado original) em grandssima paz atravs de sua inestimvel bondade. Por essa razo vs dois, membros e escravos remidos por to precioso e glo30 Casole era uma parquia distante 35 quilmetros de Sena. Soube-se que o proco se desentendeu com um padre chamado Tiago Mansi, o quaj no era muito manso. Das entrelinhas da carta d para entender que os dois trocaram empurres e romperam relaes, odiandose. A carta de Catarina belssima rioso sangue, deveis trilhar os passos de Jesus. Sabei? Que Ele se colocou como norma e caminho, quando disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6). Jesus o caminho suave e iluminado. Quem por ele vai, no anda 58

na escurido (Jo 8,12). Mas ns, maldosos e infelizes, continuamente deixamos essa estrada e enveredamos pelas trevas, que conduzem morte eterna. Carssimos pais e irmos, no quero que faais assim. Quero que sigais as pegadas do Cordeiro, morto numa grande chama de amor, mediador da paz entre Deus e os homens. Este o caminho que desejo ver-vos percorrendo: sede vs mesmos os intermedirios 31 entre vs e Deus, -ntre a sensibilidade e a razo, expulsando o dio (pelo Prximo) com o dio (por si mesmo) e o amor (por si mesmo) com o amor (pelo prximo). Em outras palavras, odiai 3 pecado mortal, odiai a culpa contra Deus, odiai a sensualidade, odiai a lei perversa (Rm 3,23), sempre rebelde M) Senhor. Odiai o dio ao prximo. Quem odeia outra ressoa ofende a Deus. Mesmo os inimigos que sem razo ios ofendem e prejudicam, podemos odiar. Quem odeia mortalmente algum, de fato odeia mais a si mesmo que > adversrio. que vos odiardes por to pouco? Sabeis que o dio cresce na proporo da ofensa. As-liw, melhor o dio em quem ofendido na prpria pes-;oa do que em quem ofendido em palavras ou nos seus >ens. Nada mais precioso que a vida. Todos consideram frande injria a ofensa prpria pessoa e sentem mais >dio. Mas pensai bem: no h comparao entre a ofensa |ue uma pessoa comete contra outra e o prejuzo que causa 31 Em O Dilogo (ed. cit., pp. 38s) Catarina explica como a pessoa humana "meio" (aqui usado o termo "intermedirio") para revelarmos nosso amor Deus. No inimigo amamos o Deus amigo. 59

a si mesma. Que comparao h entre o imito e o infinito? Nenhuma! Vede: sou ofendido no corpo e, por tal motivo, odeio. Ao faz-lo, atinjo minha alma e a mato (espiritualmente), retirando-lhe a graa. Dou-lhe a morte. A morte eterna, se morrer com tal pecado, coisa muito possvel. Portanto, maior deveria ser meu dio contra mim mesmo, que matei minha alma, do que contra algum que maltratou meu corpo mortal, de qualquer modo perecvel, corruptvel, que subsiste apenas na medida do seu vigor. Subsiste o corpo e tem valor, enquanto conserva (em si) o tesouro da alma. Que ele sem tal pedra preciosa? Um saco de estreo, peso morto, alimento de vermes. No quero, pois, que ofendais a Deus e vossa alma, vivendo no dio e no rancor, por causa de uma ofensa feita ao corpo mortal. Maior motivo tendes para odiar vossos corpos, do que para odiar a Deus e vossas almas. Com o dio, expulsai o dio! Pelo dio contra vs, expulsa-reis o dio contra o prximo. Com um nico golpe, agra-dareis a Deus e ao prximo. Ao afastar o dio de vossas almas, fareis as pazes com Deus e com o prximo. 4. As ofensas nos purificam Queridos irmos! Se agirdes assim, imitareis o Cordeiro, norma e caminho pelo qual chegareis ao porto da salvao. Na cruz, o Senhor expiou em si a ofensa feita ao Pai e nos deu a graa. Somente por Ele a grande guerra se transformou em grandssima paz. Por causa da culpa humana e da ofensa feita ao Pai, Jesus assumiu o pecado e tirou vingana em si mesmo, embora jamais houvesse pecado (2Cor

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5,21). Eis o que fez o dio, o que fez o amor! Eis o que fez o amor virtude, o que fez o dio ao pecado mortal. Repito-vos: tal a norma que deveis seguir! Bem o sabeis! Com nossos numerosos pecados, odimos e desprezamos a Deus, estamos em guerra contra Ele. Mas o ordeiro verteu o sangue e podemos fazer a paz. Resta-as, porm, um nico modo: participar do sangue do Cor-^iro, munindo-nos de dio e amor! Temos de considerar ignomnia, as dores, a desonra, os flagelos, a morte de risto na cruz; refletir que fomos ns que o matamos; e Je, dia a dia, continuamos a mat-lo ao pecar mortal-ente. No foi por pecados seus que Jesus morreu, mas los nossos. Isso far a pessoa conceber grande dio pe-s prprias culpas, eliminar o veneno do pecado mortal no desejar vingar-se no prximo. Pelo contrrio. Ama-i o desafeto e o ajudar a penitenciar-se de suas culpas. 27. que diz respeito ofensa recebida, no a considerar mo proveniente de uma criatura, mas como permitida do Criador, ou como algo merecido pelos prprios peca->s. No a tomar como ofensa, mas como misericrdia > Senhor, que achou por bem punir seus defeitos nesta da passageira em vez de faz-lo na futura, onde o arre-mdimento no mais existe. Eis a soluo. No h outra. Os demais caminhos nduzem todos morte. Mas nos caminhos do bom Je-is no h morte, nem fome; somente vida, perfeita ciedade, pois Ele o Homem-Deus. O caminho de Cris seguro, sem ameaas de inimigos, sejam eles dem-os ou homens. Quem vai por essa estrada caminha tran-lilo e repete com o apstolo Paulo: "Se Deus est a nosfavor, quem estar contra ns?" (Rm 8,31). 61

Incerta a hora da morte Vs sabeis muito bem que Deus jamais estar con28. vs, se no viverdes na infelicidade do pecado mortal; lo contrrio, Ele vos tomar consigo misericordioso e m. Pelo amor de Cristo crucificado, no abandoneis mais :aminho e a norma, a vs dados pelo vosso Chefe cruci-ado, o bondoso Cristo Jesus. Erguei-vos virilmente, sem mais demora. O tempo no vos espera. Somos mortais, morreremos. E sem saber quando. Uma coisa certa: sem um roteiro, no podemos ea-minhar. E o roteiro, como dissemos, aquele: dio e amor. Pelo dio (ao pecado) e o amor ( virtude) Jesus conseguiu o perdo, punindo em si mesmo nossas maldades. Erguei-vos virilmente, no continueis a dormir no leito da morte. Pelo dio expulsai o dio, pelo amor expulsai o amor. Penso no amor a Deus, a que sois obrigados por dever e mandamento; penso no amor salvao de vossas almas, presentemente em estado de condenao pelo rancor que tendes. Repito. Com tal amor afastareis o amor sensvel, sempre portador de sofrimento, morte e tribulaes a quem o segue e leva consigo, desde esta vida, a garantia do inferno. Desde agora o homem pode saborear a vida eterna, convivendo com Deus em dilogo de amor. No grande cegueira, por acaso, ser merecedor do inferno, vivendo com os demnios no dio e no rancor? Quem entende tamanha tolice! No se poderia tomar vingana.. .32 Parece que pessoas assim nem

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querem esperar a sentena do supremo Juiz, de irem para a companhia dos demnios (Mt 25,41). Eles mesmos j pronunciaram a sentena. Antes da alma deixar o corpo, durante esta vida, caminhantes e peregrinos, correm como o vento para a perdio eterna. Vo despreocupados, como loucos, em delrio... 6. O julgamento divino Ai de mim, ai de mim! Abri vossa inteligncia. No espereis a fora e o poder do Juiz supremo. Diante dele no existe apelao, nem advogados, nem procuradores. O advogado constitudo pelo Juiz divino a conscincia, 32 A frase chegou at ns truncada, interrompida e sem nenhum significado. que, naquele derradeiro juzo, condena a si mesma ac considerar-se digna de morte. Julguemo-nos ento, desde agora, por amor de Jesus crucificado. Se nos acharmos pecadores, ofensores de Deus, imploremos misericrdia. Se no estamos a julgar e condenar os outros, Deus nos perdoar. Pois devo usar com o prximo a misericrdia que desejo para mim. Agindo desse modo, saboreareis realmente a Deus, vivereis seguros, sereis os prprios intercessores junto de Deus. 7. Concluso Aps ter refletido sobre tudo isso, sinto compaixo de vossas almas. E por desejar que no continueis no escuro, ousei convidar-vos s amveis e gloriosas npcias (Ap 19,9). No fostes criados para outra coisa. A mim parece

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que o caminho da verdade est obstrudo em vs pelo dio mtuo, enquanto est aberto o caminho da mentira e do demnio, pai da mentira (Jo 8,44). Quero que abandoneis nteiramente esse caminho tenebroso, fazendo as pazes :om Deus e entre vs. Quero que retorneis estrada da /ida. Em nome de Deus, peo que no me recuseis esse vor. No quis ofender-vos com minhas palavras. Perma-lecoi no santo e suave amor. Jesus doce, Jesus amor!

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12. A UM ENFERMO SEM PACINCIA (Carta n9 5 a Francisco de Montalcino)

29.

Saudao e objetivo

Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amvel Maria, carssimo irmo no sangue de Jesus Cristo,33 eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos alicerado na pacincia perfeita e santa. 30. A impacincia faz da vida um inferno

Penso que, sem a pacincia, no conseguimos agradar a Deus e vivemos neste mundo a garantia do inferno. E como ingnuo quem prefere saborear o inferno, bem onde poderia ter um paraso. Se reflito, encontro no Cu apenas uma vontade calma, concorde e submissa vontade de Deus. L, os Eleitos apenas desejam o que Deus 33 Francisco de Montalcino era doutor em leis ou jurista, e tambm, ao que parece, professor na Universidade de Sena. Acometido por uma enfermidade que desconhecemos, tomara-se impaciente e queixava-se muito. Catarina ficou sabendo e lhe escreveu esta respeitosa carta, chamando-o de "pai", com timos conselhos sobre a 65

espiritualidade do enfermo cristo.

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felicidade deles fundamenta-se em tal pacfica !. Ao contrrio, os que esto no inferno ardem e con-se numa vontade m e pervertida, entre cruis tos, impacincia, dio e rancor. Corroem-se e vitristeza. Tal a conseqncia da maldade e da a humanas. Se eles tivessem sido sbios durante > da graa, ou seja, no tempo em que poderiam, lo, receber o perdo, teriam evitado tal situao. Pacincia fruto do egosmo lo carssimo! Acercai-vos das pessoas perfeitas, de esta vida tm experincia de Deus e possuem vontade com Ele. Toda a nossa fraqueza est no los coisas que no conseguimos alcanar. Quan-;m procure honras, riquezas, prazeres e posies om desordenado anseio e apego, e no os atinge, a perder, s vezes, o que possui..., cai em gransofrimento. Seu amor era por demais desorde->mo se v, a fonte do sofrimento nossa vontade, -se o egosmo e todo o sofrimento cessar. Como )? Despojando-nos do velho homem que somos e do-nos do homem novo, segundo o desejo do Fi->eus (Ef 4,22-23). Qual a vontade de Deus? A ntificao (lTs 4,3). Tudo o que Deus nos manda ite sofrimento, doena, em todas as suas for-tudo mandado ou permitido em grande mista nossa santificao e de acordo com as necessi-l nossa salvao. evitara impacincia? anto, no devemos ser impacientes 67

diante de ie existem para o nosso bem. Pelo contrrio, se-atos e consideremonos indignos da grande gra-

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a de sofrer por Cristo crucificado. Consideremonos no merecedores dos benefcios conseqentes dor. Merecedores, sim, de trabalhos, de desprezo, tambm quanto sensibilidade, que se revolta contra o Criador e o ofende. Se nos ocorrer o pensamento: "Parece que a sensibilidade no quer aceitar o sofrimento", dominemo-la com a recordao de Cristo crucificado, prendamo-la e ameacemos com estas palavras: " minha alma, suporta somente hoje; amanh, talvez, tua vida estar encerrada. Lembra-te de que deves morrer, e no sabes quando". Afinal, o sofrimento tem a mesma durao do tempo, e o tempo para o homem como a ponta de uma agulha. Nada mais! Deveremos afirmar, ento, que nenhum sofrimento grande? De modo algum. E se a sensibilidade se revoltar, lembremo-lhe: "Ateno, pois o fruto da impacincia o castigo eterno, que recebers no dia do juzo. melhor para ti querer o que Deus quer, amar o que Ele ama, ao invs de querer o que preferes e amar o que agrada sensibilidade. Quero que suportes virilmente a dor, j que os sofrimentos desta vida no tm comparao com a glria futura, preparada por Deus aos que o temem (cf. Rm 8,18 e ICor 2,9) e cumprem sua vontade". 5. Irritemos a pacincia de Cristo Alm dessas coisas, querido Pai, pensai no seguinte. Paraquem se domina pela razo na forma explicada, abre-se o entendimento: a pessoa compreende que um nada, que tudo lhe vem de Deus; entende que a inestimvel Bonde divina criou-a unicamente por amor, sua imagem e semelhana, para que participe de sua suprema e eterna beleza. E o que nos revelou a Verdade eterna. No foi para outra finalidade que o homem foi criado. Quando Jesusmorreu no madeiro da cruz, para nos dar novamente quan') tnhamos perdido, do seu corpo dilacerado derra

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mou-se o sangue em abundncia, numa chama ardente de amor. Ante tal fato, deveria dissolver-se a dureza dos coraes, toda impacincia teria de acabar, todos haveriam de atingir a perfeita pacincia. Nada existe to amargo, que no se torne doce no sangue de Cristo; nada to pesado, que no se torne leve. 6. Os queixumes no aliviam dores No continuemos a dormir! Correi virilmente durante 3 espao de vida que vos resta; agarrai-vos santa cruz mediante uma pacincia perfeita e santa. Pensai que o 'empo curto, as canseiras mnimas e o prmio, eterno. 3uero que no percais o grande bem por causa de um pequeno esforo. Queixumes e lamentos no aliviam do-*es; ao contrrio, duplicam-nas, pois me fazem colocar neus desejos em coisas que nem posso alcanar. Revestimos, revesti-vos de Jesus Cristo (Rm 13,14), forte escudo que nenhum demnio e nenhuma criatura conseguiro irar da vossa vontade. Ele a eterna doura, capaz de diminar toda amargura. Nele alimenta-se e sacia-se o omem, enquanto todo o resto passa a ser olhado como ?sterco e lixo (Fl 3,8). Tal pessoa comea a alegrar-se nas gnomnias, maus tratos e ofensas; nada mais deseja que :onfigurar-se com Cristo na cruz. Nele, colocou seu amor ! qualquer preocupao; alegra-se na proporo dos sofri-nontos; compreende que achou o caminho reto. Nem ouro caminho existe que tanto assemelhe o homem a Cris-o, quanto o caminho da dor. . Exortao final e concluso Quero que sejais, para mim, um soldado

forte! Que-o que, por Cristo, no rejeiteis a dureza da doena. Penai: grande a graa divina que, durante a doena, refreia

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os vcios e pecados, possveis quando se tem sade. A enfermidade desconta e purifica dos pecados cometidos. Na doena, por misericrdia divina, Deus se satisfaz com um sofrimento passageiro ante um castigo eterno, merecido. Vamos, coragem, por amor de Cristo crucificado; pre-gai-vos na cruz com Ele, refugiai-vos nas chagas do Senhor. Permanecei no santo e suave amor de Deus. Jesus doce, Jesus amor!

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13. NO TER MEDO DE NADA (Carta nQ 31 a dona Mitarella)

. Saudao e objetivo Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa laria, muito dileta e querida me do bondoso Cristo Je-as, eu, Catarina, intil serva de Jesus Cristo, recomen-o-me a vs e vos conforto no seu precioso sangue, dese>sa de ver-vos serva fiel diante de Deus, ou seja, cheia aquela f que traz alegria e paz nossa alma. . Confiar sempre em Deus Essa a f que devemos possuir, conforme as pala-ras de nosso Salvador: "Se tiverdes f como um gro de lostarda e disserdes a esta montanha, que se mude, ela54

34 Dona Mitarella era esposa de Ludovieo de Mogliano, influente poltico Sena e proprietrio de muitas glebas em Mogliano, condado de Fermo. Numa volta popular por volta de 1371, viu-se ameaado de morte, com perigo de a :nlia perder toda a sua riqueza. Amedrontada, dona Mitarella escreveu a itarinn, pedindo oraes. O caso deve ter-se resolvido bem, pois Ludocivo, JS tarde, foi senador em Sena durante 18 meses, de fevereiro de 1373 a osto de 73

1374. Catarina diz o que pensa sobre o assunto, com a clareza e a ceridade de sempre.

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se mudar" (cf. Lc 17,6). Querida irm, rogovos que tenhais uma f assim. Vs me mandastes dizer que no fato ocorrido (ao esposo) e parece-me que foi grande o vosso temor apenas vos restaram a f e a esperana nas oraes dos servidores de Deus. Pois bem, em nome de Deus Pai e do amor de Jesus Cristo, eu vos peo que vos conserveis na f. Oh f santa e suave, que nos ds a vida! Se vos conservardes na f, jamais vosso corao cair na tristeza. A tristeza fruto unicamente da confiana que depositamos nas criaturas. As realidades criadas so coisas perecveis e caducas desaparecem, ao passo que nosso corao somente acha repouso em algo que seja estvel e slido. Ao se apoiar nas criaturas, nosso corao no se sente seguro. A pessoa humana hoje est viva; amanh, morta. Se queremos repouso, temos de depositar o corao e a alma em Cristo crucificado, pela f e pelo amor. Somente assim teremos a alma repleta de alegria. Oh Jesus, amor dulcssimo! 3. .Vo temer os homens Minha irm, no tenhais medo dos homens! Disse o bom Jesus: "No temais os que matam o corpo, mas no podem matar a alma. Temei a mim, que posso matar a alma e o corpo" (cf. Mt 10,28). Temamos a Ele, que afirma no querer a morte do pecador, mas que se converta e vira (cf. Ez 33,11). Oh inestimvel caridade de Deus! Primeiro nos ameaa com a morte do corpo e da alma, a fim denos conduzir humildade e ao santo temor. Oh bondade divina! E depois, para alegrar a alma, afirma no querer a nossa morte, mas que nele (Deus) vivamos. Irm carssima, mostrareis que estais vivendo (em Deus), quando vossa vontade estiver unida e conformada vontade divina. Ela vos dar a f e a esperana viva, aliceradas em Deus. Duas convices indispensveis

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Para que a vossa f seja viva, recordai-vos de duas usas. Em primeiro lugar, que Deus s pode querer o nosso im. Para dar-nos o Bem verdadeiro, entregou-se hu-ilhante morte na cruz. O pecado nos privara dele; com rnura, Deus humilhou-se a fim de nos conceder a graa libertar-nos do orgulho. Sim, Deus deseja unicamente o )sso bem. Em segundo lugar, crede realmente que tudo o que )s acontece morte ou vida, enfermidade ou sade, queza ou pobreza, injrias de amigos, parentes ou de-ais pessoas , tudo acontece por permisso ou vontade s Deus. Fora do querer divino, nenhuma folha cai da vore. No tenhais medo. Deus somente nos manda o le podemos suportar. Nada mais. Querida irm, aceitemos tudo com respeito, julgan--nos at indignos da grande honra de poder sofrer por ius. Se porventura o demnio procurar infundir gran-i medo, no fato que vos preocupa, recorrei imediatamen-s armas da f, confiante que seremos libertados pelo 'isto crucificado. Ao acreditar que Deus somente quer o isso bem, como afirmei, estareis em profundssima ale-ia. Fortalecei-vos no Cristo crucificado e no tenhais sdo. Concluso Nada mais acrescento, a no ser que todas as vossas es sejam praticadas no amor e no temor de Deus. !mbrai-vos de que devereis morrer um dia e no sabeis ando. O olhar de Deus est sobre vs (SI 34,16) e leva 1 considerao todas as vossas atividades. Deus bondo-, dai-nos antes morrer, que vos ofender. Louvado seja sus Cristo.

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14. AS FLECHAS DO AMOR DIVINO I (Carta n9 97 a dona Paula e companheiras)

31.

Saudao e objetivo

32. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs, diletssima e carssima filha e irm em Jesus Cristo, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesusj Cristo, escrevo, conforto e abeno no seu precioso sangue,! desejosa de ver-vos unidas em ardentssima caridade, naquele amor que torna a alma uma s coisa com Deus.A caridade, me das virtudes Oh caridade, repleta de alegria, prazer e total segurana, que mudas as tempestades em paz e bonana! Oh caridade, me terna e muito amada, me de todas as virtudes!35

36 Dona Paula era uma das discpulas de Catarina. Morava em Sena. Ao que parece, passou algum tempo em Fisole e encontrou algumas outras discpulas bastante desunidas. Uma delas, d. Bartolomea, andava at desanimada ao cumprimento dos compromissos que Catarina pedia. Com esta carta sobre I amor a Deus e o amor de Deus, a "Mamma" (me) procura dar-lhes uma injeo de entusiasmo.

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Minha diletssima irm, vs sabeis que nenhuma drtude viva sem a caridade. O apaixonado (apstolo) ^aulo, vaso de eleio, afirmou: "Se eu falasse a lngua ios anjos, se distribusse os meus bens aos pobres, mas io possusse a caridade, de nada isso me valeria" (ICor 13,13). Realmente assim, pois sem o amor a alma nada -onsegue fazer que seja agradvel a Deus. Apenas gera filhos mortos. Por que mortos? Pela ausncia de Deus, que lhes d a vida no amor. Quem est na caridade, est em Deus e Deus nele (Uo 4,16). 33. As flechas de um Deus louco de amor

A esposa de Cristo, que foi ferida pela flecha do amor, jamais pra de labutar. E como acontece num ferimento recente, que faz o corao pulsar fortemente. Todos os dias a esposa recebe novas flechas, flechas de ardentssimo amor. A cada instante, Deus atira fagulhas incandescentes sobre ns. Quando pensamos na vida que Deus nos concedeu, vemos que Ele nos criou somente por amor, para gozarmos das suas riquezas, para nos conceder a vida eterna. Por essa razo So Paulo diz que Deus nada mais deseja que a nossa santificao (lTs 4,3). Tudo o que Ele nos d tem essa finalidade: sermos nele santificados. Oh! Verdade suprema e eterna, revelastes-nos que, ao perder a graa, no participaramos dos vossos bens (Gn 2,17). E ao ver que sua vontade no mais se realizaria (aps o pecado original), louco de amor por ns, Deus obrigou-se a enviar seu Filho unignito, para "lavrar no seu corpo" (SI 128,3) os nossos pecados. 34. Jesus, o cavaleiro do amor

Assim, logo que o Verbo se enxertou em nossa carne, no ventre de Maria, Deus o condenou vergonhosa morte (na cruz) e o colocou na terra em campo de batalha, a 78

pelejar por sua esposa, para libert-la das mos do demnio, que a tinha como adltera. Como diz So BernardoJ esse amvel guerreiro montou sobre o madeiro da crua como num cavalo, tomou o elmo feito de espinhos profundos] os cravos nas mos e nos ps, e a lana na chaga do peit para revelar o segredo do seu corao. Ai de mim, amor, amor! No vos parece assim be armado o nosso doce Salvador? Confortemo-nos, pois el vencer a batalha por ns. Eis o que disse aos Discpulos^ "Alegraivos, pois eu venci o prncipe do mundo" (cf. J 12, 31; 16,33). E Santo Agostinho ensina que ele, com as m pregadas e cravadas na cruz, derrotou os demnios. Mi nhas queridas filhas, quero que nenhum temor venha so-| bre vs por causa de demnios visveis ou invisveis. Se o demnio vos der muitas lutas, iluses ou medo de no per-severardes nas obras comeadas, confortai-vos dizendo. 'Tudo posso no Cristo crucificado porque, para mim, el derrotou os demnios". . Invocaes ao amor de Cristo Oh! Jesus, dulcssimo amor, brincaste com a mort nos braos da cruz. Ento a morte venceu a vida e a vid venceu a morte, quer dizer, pela morte do seu corpo Je sus destruiu a nossa morte, e pela nossa morte (no peca do) destruiu a vida do seu corpo. Oh inestimvel dile da caridade! Tudo isso nos revela o amor, a inteno e finalidade pelos quais nos criaste: dar-nos a vida eterna Oh! doce amor, que fogo no se deixar acender e to grande chama, ao ver que Deus Pai nos deu seu Filho unignito e o Filho morreu por ns num ardor to gran-! de, que parecem insuficientes para exprimido aquelas palavras: "Desejei ardentemente comer esta pscoa con-vosco antes de morrer" (Lc 22,15). Oh! amor dulcssimo, falavas da 79

pscoa como sacrifcio do teu corpo ao Pai por ns. Oh! amor, com que afeio e alegria pronunciaste tais palavras referentes tua morte, pois j te vias prximo do fim. Agiste como uma pessoa que, aps desejar uma grande faanha, a v quase realizada e sente grande prazer e contentamento. Foi por essa alegria que Cristo, apaixonado, correu para a humilhao da santa cruz. 6. Exortao e concluso Rogo-vos, pois, irm e filhas, que vos alegreis em suportar humilhaes. Encostai, encostai a boca na chaga do peito de Cristo. E uma ferida que dardeja o fogo do amor e derrama sangue para lavar nossos pecados. Eu vos digo: a alma que ali repousa e pela chaga contempla o corao (de Jesus) consumido e ferido por amor receber grande semelhana com Cristo. Vendo-se to amada, no conseguir ficar sem am-lo. Ser uma alma bem-ordenada: tudo ama em Deus e fora de Deus nada ama; torna-se uma nica coisa com Ele pela caridade, visto que no procura outra vontade, alm da divina. No sejais negligentes. Correi sempre, eliminando o amor-prprio. Minhas filhas, permanecei no santo amor de Deus! Es-forai-vos por realizar esse meu desejo, de modo que vos veja unidas e transformadas em Deus. Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo. Fortalecei D. Barto-lomea e as demais companheiras. Dizei-lhes que, tendo a mo no arado, no fiquem a olhar para trs, mas perse-verem no santo propsito. Sem perseverana, no alcan-areis a coroa. Louvado seja Jesus Cristo. Jesus doce, Jesus amor!

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15. CONSELHOS A UM POETA (Carta n9 99 a Neri Pagliaresi)

35.

Saudao e objetivo

36. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs, muito amado e carssimo irmo e filho em Cristo Jesus, eu, Catarina, serva e escrava dos servos da Jesus Cristo, escrevo e conforto no seu precioso sangueJ desejosa de ver-vos unido, transformado e configurado a Jesus Cristo.O mundo, seus enganos e Deus Meu bonssimo filho! Ningum consegue realizar tal coisa, isto , configurar-se perfeitamente com Cristo, se] no se afastar de toda conformidade com o mundo. Nada36 1

36 Neri (ou Ranieri) Pagliaresi foi um dos discpulos mais amados de S. Catarina de Sena. Atuou como secretrio seu, ao lado de Estevo Barduccio Canigiani, na composio de O Dilogo. Foi encarregado por ela de levar cartas pessoais a Gregrio XI, a Urbano V e rainha Joana de Npoles. Catarina d-lhe o respeitoso tratamento de "vs". Neri era de famlia nobre, poeta muito conhecido em Sena, onde a juventude toda recitava ou cantava suas composies. Nas cartas posteriores, Catarina o trata familiarmente por "tu".

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se conseguir. Exatamente isso! No por outro motivo, o Homem-Deus escolheu a perfeita pobreza, as injrias, os maus tratos, as ofensas, a fome, a sede. Ele procurou sempre a glria do Pai e nossa salvao; perseverou na pacincia, sem nenhum orgulho; em grande humildade. Oh amor sem preo e amado, diversamente do mundo Tu viveste! O mundo vai procura da glria, das honras, dos prazeres, do orgulho, da impacincia; da cobia, do dio, do rancor e do amor-prprio com uma estreiteza de corao to grande, que no d espao ao amor ao prximo por causa de Deus. Como se enganam as pessoas, tolas, configurando-se ao mundo pecador! E no entanto, sequio-sas de honras, vivem desprezadas; sfregas de riqueza, vivem pobres da verdadeira riqueza, que nem procuram; ansiosas de alegrias e satisfaes, passam a vida na tristeza e amargura, sem Deus, alegria suprema. Fugindo da morte e da angstia, nelas vivem; querendo solidez e estabilidade, esto longe da Pedra viva. 3. A felicidade est em Cristo crucificado Vede, filho carssimo, que diferena existe entre Cristo e o mundo! Por essa razo os servidores de Deus, ao perceberem que o mundo em nada se assemelha a Cristo, com todo empenho se esforam por conformar-se a Ele. Afastam-se do mundo com deciso, comeam a amar tudo o que Deus ama e desejam assemelhar-se a Cristo crucificado, seguem-lhe os passos, inflamados de amor pelas virtudes. Esses seguidores de Cristo assumem para si tudo o que percebem ter sido escolhido por Ele. Na realidade, recebem o oposto do que procuram: ao querer a pobreza e a humilhao, so continuamente honrados, vivendo na paz, prazer, alegria, contentamento, consolao, sem nenhuma 82

tristeza. Configuram-se, transformam-se na suprema e eterna Verdade, na Bondade de Deus, que contm toda perfeio e saciam os mais santos e perfeitos desejos. boa coisa, pois, seguir Jesus Cristo, aps separar-se e deixar completamente a tenebrosa vida mundana. Realiza-se tal separao mediante a espada do dio a si e do amor puro a Deus. Afirmo-te, porm, filho carssimo, que no obtereis tal espada sem a contnua lembrana de Deus, sobretudo sem a lembrana do sangue do Filho de Deus, em que Cristo se banhou ao derram-lo no madeiro da cruz, numa ardentssima chama de amor. No sangue encontrareis a espada do dio (por si mesmo), uma vez que na cruz Jesus morreu por repulsa do pecado; e (encontrareis) o amor, que mantinha Jesus na cruz. Como dizem os Santos, a madeira e os cravos no conseguiriam reter Jesus, no fossem as amarras do amor divino. Quero que o vosso pensamento se fixe e descanse continuamente na cruz. Nela achareis e amareis as virtudes verdadeiras, como a perseverana, pela qual nenhum demnio ou criatura conseguir vos afastar do bem; na cruz obtereis a deciso voluntria de vos submeter a toda outra pessoa, por Deus, em perfeita humildade; na recordao do sangue alcanareis tdio e desprezo pelo mundo e suas atividades, e tambm a sede e a fome da salvao do prximo, pois esse o alimento dos servidores de Deus. A respeito deste assunto, rogo-vos e aconselho-vos a vos inte-ressardes com gosto. Muito embora vos considereis fraco,37 no desanimeis. Deus olha mais nossa boa vontade que nossos defeitos. 37 O jovem poeta senense, estando em Asciano, escrevera a Catarina pe-.jrido para ser acolhido entre os seus filhos. Mas dizia que era "fraco" e imper-(.jto. Catarina, que nesta carta o acolhe "com afetuoso amor" na Famlia, itariniana, 83

p>ede-lhe nesta passagem que no desanime. Alis, "tenha cora- m firme" vai ser o conselho repetido por Catarina nas 11 cartas que lhe jram escritas. 4. Comeai a trabalhar por Deus?

Digo-vos mais. O fogo que purifica a alma encontra-se no amor pelo prximo, fundamentado em Deus. Para que vossa alma fique pura, ajudai Fr. Bartolomeu Domi-nici' is quanto puderdes, no trabalho de arrebatar almas das mos do demnio. Se eu pudesse, iria ajudar-vos com prazer. Mas parece que tal no a vontade de Deus, pois disponho de pouco tempo. Assim mesmo, faremos o que Deus nos permitir. Sabei que se nada fao exteriormente, espiritualmente Fiz e fao algo. Pedistes-me de vos acolher como filho (na Famlia catariniana). Embora indigna e msera, j vos acolhi e acolho com afetuoso amor. Comprometo-me a colocar minha pessoa diante de Deus como pagadora (da dvida) dos vossos pecados, agora e no futuro. Mas peo que realizeis o meu desejo, isto , de configurar-vos com Cristo, crucificado e afastar-vos do ambiente mundano pela maneira explicada. Outro modo no existe de nos assemelharmos a Cristo. Revesti-vos, revesti-vos de Cristo crucificado. Ele a veste nupcial (Mt 22,12) que vos dar, aqui na terra, a graa de ser no cu um comensal na mesa dos eleitos. 5. Concluso Nada mais acrescento. Abenoai e confortai Frei Bartolomeu (Dominici) e Frei Simo (de Cortona) em Cristo Jesus.

38 Frei Bartolomeu Dominici, dominicano, grande admirador de Catarina, estava em Asciano pregando Palavra de Deus com o confrade frei Simo de Cortona. Neri Pagliaresi 84

convidado a ajud-los quanto mais puder. Um dos ensinamentos de Catarina era o de que Deus no quer palavras, mas aes (veja-se em O Dilogo, ed. cit., p. 45).

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16. COM SAUDADE DOS AMIGOS (Carta nQ 70 a Fr. Bartolomeu Dominici)

37.

Saudao e objetivo

38. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs, diletssimo e carssimo irmo, e tambm pai por respeito ao sacramento da Eucaristia, eu, Alessia, Catarina de Scetto e Catarina, intil serva de Jesus Cristo, nos recomendamos desejosas de ver-vos unido e transformado no nico desejo de Deus.Somos semeadores do fogo divino Oh fogo ardente, sempre a queimar! s realmente uma chama! Assim pareceu-me ouvir de Deus: "Eu sou fogo, vs as fagulhas". O fogo sempre procura voltar sua fonte; por tal razo se eleva. O Amor inestimvel! Dizes que somos fagulhas. Assim como as fagulhas nascem da chama, tambm ns re39

39 Esta carta, escrita quando chegavam a Sena as primeiras notcias da peste que assolou a Itlia por volta de 1374 (veja Vida de Santa Catarina de Sena, Paulus, p. 47), uma das primeiras enviadas pela santa. Serviu de secretria Alessia Saracini, em cuja casa Catarina

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se hospedava.

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cebemos o ser do primeiro Princpio. Se Deus disse: "Eu sou o fogo, tu s a fagulha", ento a alma no deve cair na soberba. Faa-se como a fagulha, que primeiro sobe e depois desce. Tambm o primeiro movimento do nosso desejo santo deve ser o conhecimento de Deus, sua glria. Aps termos subido, descemos ao conhecimento da nossa misria e negligncia. adormecidos, acordai! Seremos humildes, quando nos encontrarmos no abismo da caridade divina. O doce me, caridade! Nenhuma pessoa deveria ser to endurecida e sonolenta, que no percebesse e no se dissolvesse em to grande fogo de amor. Abri, abri a vossa alma a fim de acolher o prximo por amor e desejo (santo). Mas no vejo como possais ter esse desejo (santo), se vosso olhar, como o da guia, no se fixar no lenho da vida. Jesus, amor dulcssimo, que dissestes: "Queres ser entusiasta da minha glria e da salvao dos homens? Queres ser forte para suportar qualquer tribula-o com pacincia? Olha para mim, Cordeiro dessan-grado por ti na cruz. Todo inteiro, da cabea aos ps, eu derramo sangue, e nenhum grito meu de murmurao se ouviu. No olho tua maldade, nem a tua ingratido me impede, enlouquecido e sedento por ti, de procurar tua salvao". carssimos e bonssimos irmos, 40 saiamos de tanta negligncia; corramos esforadamente no caminho da verdade! Mas corramos solcitos e mortos. No nos desanime a ingratido das pessoas. Semeai, semeai a palavra de Deus. Fazei frutifcar os talentos que recebestes. E Deus no vos consignou apenas um talento, mas dez. Para vs e para o vosso prximo. So os dez mandamen40 A carta era dirigida a frei Bartolomeu Dominici e a frei 'Ibms Nasci Caffarini, dominicanos e confessores de Catarina, que se achavam em Pisa como professores. 88

tos, vida da vossa alma. Empenhai-vos, pois, emobser-v-los. Lembro-vos, aquela santa habitao, a cela (interior ^> da alma e do corpo. Falai disso tambm a Frei Toms (Nacci Caffarini) e aos outros nossos irmos. Peo que-ejais esforados: o tempo curto, o caminho longo. Eu, snuiurie*. msera miservel. Como se multiplicaram os meus peca dos, depois que viajastes no fui digna de receber o doce s venervel sacramento da Eucaristia.41 Digo-vos isssoara que me ajudeis a chorar, me socorrais e eu receba a plenitude da graa. Padre, perdoai minha maldade e orai por mim durante a vossa santa Missa, de modo que eu espiritualmente receba de vs o doce corpo do Filho de Deus. 3. O recado de Alessia Saracini Eu, Alessia,42 rogo que supliqueis ao doce Cordeiro que conceda viver e tranformar-me convosco no amor de Deus e no conhecimento de mim mesma. Recomendo-me a vs cem e mais cem mil vezes. Maravilho-me de que ainda no nos tenhais enviado notcias vossas, muito embora eu vos pedisse. Segundo quanto fiquei sabendo, parece-me que h mortandade (de peste) em Pisa. Conversai com Frei Toms. Se houver mesmo peste e se parecer bem a ele,43 vinde embora vs dois. 41 Como se pode ler em O Dilogo, (Paulus, pp. 321-322), nem sempre era Tcil a Catarina receber a comunho diariamente, pois os celebrantes achavam que ela distraia os fiis com seus xtases nos bancos da igreja. 42 A secretria Alessia acrescenta poucas palavras, mas bem revelacoras io seu temperamento loquaz. Alis, em quatro cartas que Catarina lhe escreveu, sempre lhe aconselhado que domine a lngua. 43 Frei Toms era um telogo muito entendido em Sagrada Escritura. Pos89

sumos uma carta sua a Catarina, explicando-lhe o Salmo 13 (apud Drane, 3toria di S. Caterina da Siena e dei suoi compagni, p. 163). 4. Concluso Nada mais acrescento. Recomendo-vos vosso confrade Toms e os outros irmos, irms e filhas (espirituais). Rogo-vos que escrevais uma carta a dona Gmina. Nisto mereceis uma repreenso, pois viajastes e nenhum sinal destes. Louvado seja Jesus Cristo crucificado. Amai-vos, amai-vos unidos.

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17. GRANDES SONHOS DE CATARINA (Carta nQ 127 a Frei Bartolomeu Dominici e Frei Toms Caffarini)

1. Saudao e prece Em nome de Jesus Cristo crucificado e da terna. Maria,44 diletssimos e carssimos pais por respeito ao sacramento (da Eucaristia), e muito queridos irmos no sangue de Jesus Cristo! Vosso querido pai45 e os irmos (discpulos) vos enviam cem mil saudaes, conforto e bno no grande amor, que reteve Jesus pregado na cruz. O chama abissal de caridade! s um fogo que arde e no consome! Es alegria, prazer e suavidade! Ao corao ferido por tua seta de amor, toda amargura parece agradvel e todo peso, leve. O doce Amor, que alimentas e fortaleces a nossa alma! Dissemos antes que ardes e no consomes. Agora digo o contrrio, pois destris e dissolves todo defeito, maldade e negligncia da alma. Pois o amor no ocioso, mas realiza grandes coisas. 44 Perdeu-se, nesta carta, a costumeira saudao na qual Catarina diz o jbjetivo de sua missiva. Veja-se a nota n 49. Frei Raimundo de Cpua. 2. Deus quer grandes coisass 46

Eu Catarina, intil serva, padeo no desejo santo,46 comovida interiormente em dor e 91

pranto, ao ver e sentir nossa maldade e negligncia no amar a Deus, que nos concede tantas graas com imenso amor. Irmos carssimos, no sejais ingratos, malagradecidos! Facilmente secar em vs a fonte da piedade. negligentes, negligentes! Despertai desse perverso sono. Vamos! Acolhamos nosso Rei que vem a ns manso e humilde.47 vos, orgulhosos! Eis que o mestre da humildade vem sentado numa jumenta. Uma das razes pelas quais Ele veio assim montado foi indicar-nos que a natureza humana a jumenta que devemos dominar, na maneira como Ele cavalgava e dominava por causa do pecado.48 Realmente no h diferena entre ns e aquele animal. Pelo pecado o homem torna-se irracional. O Verdade antiga, ensinaste-nos a maneira. Quero que montes esta cavalgadura e, manso e humilde, a domines. Com que ps montaremos, dulcssimo Amor? Odiando a negligncia e amando a virtude. Mas fiquemos por aqui, embora eu tivesse muita coisa a dizer. No posso mais. Mas faamos assim, meus filhos e irmos. A fonte est aberta e escorre. Se precisamos reabastecer a pequena barca da nossa alma, vamos at a doce fonte, que o corao, a alma e o corpo de Jesus Cristo. Encontr-laemos jorrando com tal amor, que facilmente poderemos plenificar nossas almas. Mas vos digo: no demoreis em fixar o olhar pela janela (do corao de Cristo). Garanto-vos que Deus nos forneceu 46 Catarina sofria, preocupada com a salvao eterna da humanidade e a glria divina. 92

47 Esta carta certamente foi escrita nas proximidades da semana santa; talvez, mesmo, no domingo de Ramos, em que a liturgia recorda a entrada de Jesus em Jerusalm sentado numa jumenta. O texto original italiano, nesta passagem, bastante irregular, mas no de difcil compreenso. 4" Para Catarina, a jumenta smbolo de nossa natureza humana pecado-ra, que Jesus ensina a cavalgar e dominar.

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tempo e maneira para realizar grandes aes por Ele . Por isso afirmei49 que vos esforsseis por crescer no de sejo santo. No vos contenteis com pequenas coisas. Deus as quer grandes. 3. Contatos com o papa Gregrio XI Comunico-vos que o papa (Gregrio XI) mandou at aqui (Em Sena) um seu representante, o diretor espiritual daquela condessa que morreu em Roma.50 E aquele que renunciou ao episcopado por amor virtude. Ele veio falar comigo em nome do Santo Padre, pedindo que eu fizesse orao por ele e pela santa Igreja. Como sinal, trouxe-me uma santa indulgncia. Gaudete et exultate (alegrai-vos e exultai), porque o santo Padre est comeando a olhar para a honra de Deus e da santa Igreja.Ir at vs (em Pisa) um jovem levando esta carta. Acreditai no que ele diz, pois tem uma santa vontade de visitar o Sepulcro (de Jesus). Antes, quer pedir a bno do santo Padre (em Avinho), para si e para outras pessoas religiosas e leigas. Escrevi uma carta ao Papa rogando, por amor ao sangue de Cristo, que permita que entreguemos nossos corpos a qualquer perigo.51 52 Rogai ao 49 No texto atual da carta no encontramos a afirmao de Catarina. Certamente, na saudao inicial, ela se dizia desejosa de ver os dois frades preocupados em crescer no desejo santo. r, Quem visitou Catarina em nome do papa foi Afonso de Vadatera. bispo de Jaen na Andaluzia (Espanha). Com a aprovao de Urbano V, renunciara ao governo da diocese e fizera-se eremita. Foi diretor espiritual e confessor de Santa Brgida, "a condessa que morreu em Roma" em 1373. A pedido de Santa Brgida, Afonso trabalhou com Catarina de Sena pelo retorno de Gregrio XI de Avinho para Roma. Morreu perto de Gnova em 1388. 51 "No um grande elogio ao Papa. Ao que parece, Catarina achava que o papa Gregrio XI, em sua corte de Avinho, no se preocupasse muito. Por isso fala em latim, coisa inslita" (nota de Niccol Tommaseo). 52 Ao que parece, Catarina pedia ao papa a licena de participar da cruzada, juntamente com os discpulos que 94

constituam a "famlia catariniana". A carta de Catarina ao papa no chegou at ns.

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sumo e eterno Deus que, se isso for o melhor, conceda essa licena a ns e a vs, de modo que numa bela brigada demos a vida por Ele. Estou segura de que, se for o melhor, ele nos conceder. 4. Concluso Nada mais acrescento.53 Alessia recomenda-se a vs cem mil vezes, desejosa de encontrar-vos e ver-vos cheios de ardente caridade. Maravilha-se muito de que no nos tenhais escrito. Conduza-nos o Senhor quele lugar onde nos veremos face a face diante do nosso Deus. A negligente Alessia gostaria de envolverse nesta carta e ir at vs. Dona Giovanna (de Capo) vos manda lembranas abenoando, e pede que vos recordeis dela junto de Deus. Jesus, Jesus, Jesus! Eu Catarina, intil serva de Jesus Cristo, vos conforto e abeno cem mil vezes. Catarina Marta04 pede que rezeis por ela a Deus. Recomendaes a Frei Toms, ao vosso prior e a todos os demais. Jesus doce, Jesus amor!

A concluso desta carta chegou "completa" at ns, pois os copistas do passado eliminavam as notcias pessoais. Percebe-se que a secretria que escreveu a carta foi Alessia, a qual se define como "negligente". 64 Os dois nomes Catarina e Marta parecem indicar uma nica pessoa, como pede o verbo no singular. Talvez seja a prpria Catarina de Sena, "atare-fada" 96

como a Marta do Evangelho. 18. A UM SACERDOTE POUCO EXEMPLAR (Carta ne 24 ao cura Biringhieri Arzochi)

39.

Saudao e objetivo

40. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs, reverendssimo e carssimo pai em Jesus Cristo, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, escrevo e me recomendo no precioso sangue do Filho de Deus, desejosa de ver-vos verdadeiro sacerdote de Cristo e seguindo os seus passos.A vida sacerdotal e o pecado Sede, sede aquela flor perfumada que deveis ser; espargi o bom odor (2Cor 2,15) na doce presena de Deus. Sabeis que a flor, conservada durante muito tempo na gua, no exala perfume, mas fedor. A mim parece, pai, que vs e os demais sacerdotes deveis ser assim uma flor.55

55 0 pe. Biringhieri morava na cidadezinha de Asciano, uns 20 quilmetros a sudeste de Sena, como proco. Seus parentes de Sena devem ter feito um pedido a Catarina que lhe escrevesse uma carta de correo fraterna. Ela o faz com muita sinceridade, mas tambm amor e humildade. Mas tambm essa flor, imersa nas guas inquas e putrefatas dos pecados e misrias do mundo, no exala perfume, mas fedor. Oh, como msero e infeliz quem posto na santa Igreja como flor, responsvel pelos seus sdi97

tos! Vs sabeis que Deus os quer lmpidos e puros. Infeliz de mim, infeliz de mim, venervel pai! E o contrrio que acontece. Comportam-se de tal maneira, que no apenas so ftidos, mas tambm arruinam todos aqueles que deles se avizinham.Acordai e no continueis dormindo! J dormimos bastante, mortos para a graa. No nos resta mais tempo, soou a hora da sentena, estamos condenados morte. Pai dulcssimo, considerai por um instante a nossa perigosa situao, perigosamente imersos num triste mar de pecados mortais. Por acaso, no acreditamos que haveremos de chegar ao momento da morte? No devemos duvidar: homem algum, por rico e nobre que seja, conseguir evit-lo. Oh, como ser miservel e infeliz, ento, aquela pessoa que usou como espelho as afeies carnais e nelas se revolveu como o porco na lama. De ser racional torna-se feio animal. Revolve-se, ainda, em corrupta avareza, ao vender muitas vezes os favores e dons espirituais. Inchados de soberba, sempre a gastar em honras e banquetes, com muitos servos e fogosos cavalos, o que deveria ser dado aos pobres. Tais so as obras que apresentam para o julgamento e sentena da coitadi-nha da alma no momento da morte. O infeliz acreditava estar agindo contra Deus, mas de fato agia contra si mesmo. Tornou-se um juiz a condenar a si mesmo, merecedor da morte eterna. Mas no sejamos simplrios. Grande tolice tornar-se homem digno da morte, quando pode ter a vida.56

66 Leiam-se pensamentos semelhantes em O Dilogo, ed. cit., p. 258 e seguintes. 3. Examinai-uos e corrigi-vos Como pertence a ns escolher a vida ou a 98

morte, pela liberdade que Deus nos deu, peovos encarecidamente e com amor, quanto posso e sei, que sejais uma flor e exaleis perfume diante de Deus e sobre os vossos sditos. Qual verdadeiro pastor, entregai se for preciso a vossa vida pelas vossas ovelhas. Corrigi os vcios, confirmai a virtude dos bons. A falta de correo corrompe, como faz um membro infeccionado no corpo de uma pessoa doentia. Estai atento a vs mesmo e aos vossos sditos. No vos parea cruel arrancar as razes, pois a doura dos frutos vos ser mais doce que o amargor do esforo. pai carssimo, considerai o inefvel amor que Deus tem pela vossa salvao. Abri os olhos para ver seus imensos benefcios e dons. Existe, por acaso, maior amor do que morrer pelo amigo (Jo 15,13)? Maiores louvores, ainda, merece quem morre pelos inimigos. No mais se desculpem, portanto, os nossos coraes; percam sua dureza; no continuem sempre pedras. Que se rompam os laos e as amarras com que muitas vezes o demnio nos retm manietados. A fora do desejo santo, o desprezo pelos vcios e o amor da virtude dissolvero tais amarras. Enamoraivos das verdadeiras virtudes, que agem em sentido contrrio aos vcios. Como o pecado traz amargura, a virtude traz doura e faz saborear durante esta existncia a vida eterna. E ao chegar o doce momento da morte, a virtude entrar em ao: responde pela pessoa, defende-a do julgamento de Deus, d-lhe segurana, livra da confuso, conduz vida interminvel, na qual h vida sem morte, sade sem doenas, riqueza sem misria, honra sem humilhao, liberdade sem escravido. Nela todos sero senhores. Quanto menor tiver sido algum nesta vida, maior ser na futura, e quanto maior pretender ser nesta existncia, menor ser na outra. Sede, ento, pequenino com uma humildade 99

perfeita e profunda. Pensai em Deus, que por vs se humilhou como homem. No vos torneis indigno daquilo que Deus vos fez digno, isto , do precioso sangue do seu Filho, com que fostes comprado num ardentssimo amor. Somos servos adquiridos, no podemos mais revender-nos. Quando nos achamos em pecados mortais, como cegos nos vendemos ao demnio. Rogo-vos, pois, pelo amor de Cristo crucificado: sa de to grande escravido. 4. Concluso Nada mais acrescento. Apenas vos afirmo que meus defeitos so infinitos. E prometo fazer um ramalhete de mirra (Ct 1,13) com os meus e os vossos defeitos e o colocarei no peito, para um perene pranto de amargura. Tal amargura, enraizada no verdadeiro amor, nos far chegar doura e consolao da vida durvel. Perdoai minha presuno e soberba. Orai por mim e abenoai toda a minha famlia em Cristo Jesus. Rogo-lhe que vos conceda sua eterna bno. Uma bno to forte, que quebre e reduza a pedaos as amarras que afastam Deus de vs. Permanecei no santo e doce amor de Deus. Jesus doce, Jesus amor!

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19. EM DEFESA DE UM VOCACIONADO (Carta nQ 8 a Frei Justo, prior dos Olivetanos)

41.

Saudao e objetivo

Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, carssimo pai no doce Cristo Jesus, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos faminto e sedento de almas na escola de Jesus. 42. Jesus quer vocaes monsticas

Com fome e sede da nossa salvao, Jesus clamava sobre o madeiro da cruz: Sitio (tenho sede), como a dizer: "Tenho sede e desejo da vossa salvao, em medida berra maior do que este sofrimento possa mostrar". De fato, a sede do seu desejo infinita, ao passo que o sofrimento, finito. Embora sentisse sede fisicamente, Jesus revela seu desejo da salvao da humanidade. O Jesus amvel! Ao mesmo tempo dizes estar com sede e pedes que te seja dado de beber. Quando pedes nossa alma que te d de beber? Ao demonstrares, meu Senhor, tua afeio e teu amor. Carssimo pai! Compreendei que o amor inefvel (de Jesus) manifesta-se no sangue. Por amor Ele nos deu seu sangue. E com amor nos pede de beber. Em outras palavras:

aquele que ama, deseja ser amado e servido. E muito justo que seja amado, aquele que ama. Ao pagar amor com amor, a alma dessedenta Cristo. No entanto, a criatura no pode ser diretamente til a Deus, mas somente atravs do prximo. Eis o motivo porque a alma, com tanto empenho, se pe a servir o prximo naquilo que percebe ser do agrado divino e nisso persevera. Mas entre todos os modos de servir ao prximo, o mais agradvel ao nosso Salvador livrar algum das mos do demnio, tirlo do ambiente secular, das vai-dades do mundo, e conduzi-lo ao santo estado da vida consagrada.57 Quando as pessoas nos procuram com grande desejo, no se pode perd-las ou afugent-las. Ao contrrio, a fim de afast-las do mundo ocorre enfrentar at a morte corporal. Tal a bebida que o Filho de Deus nos pedia sobre a cruz. No devemos ser negligentes, mas esforados em dar de beber a Cristo. Vede bem: foi por tal sede que Ele morreu! No faamos como os judeus, que lhe deram fel e vinagre. Recebe Jesus fel e vinagre de ns, quando permanecemos no amor-prprio sensvel, em negligncia fundamentada na preocupao de aparecer e agradar ao mundo, com pouca viglia de orao, com pouca sede da glria divina e da salvao das almas. Tudo isso constitui realmente um vinagre misturado com fel, em grande amargor, que desagrada a Deus e nos prejudica. 67 Catarina era leiga consagrada (Veja-se em O Dilogo, ed. cit., pp. 385ss), mas amava e respeitava demais

a vida religiosa das ordens de So Bento, So Francisco e S. Domingos (veja-se ib., pp. 366ss). De acordo com o prior dos dominicanos de Sena, ela enviou um mensageiro ao mosteiro olivetano da cidade, com o pedido de receber um jovem. A resposta foi negativa. Catarina mandou ao prior esta extraordinria carta. 43. O segredo acolher a todos com amor Que nos ocorre fazer, para no dar a Cristo tal mis-tura como bebida? Uma nica coisa: amar as pessoas. O amor s nasce do amor. Na luz o amor se eleva e atrai amor. Em outras palavras: cheia de afeio e desejo (santo), nossa inteligncia contempla Cristo crucificado, que nos revelou a vontade e o amor do Pai eterno. Juntamente com o Pai, Jesus nos criou para uma nica finalidade: alcanarmos a vida eterna. O sangue do Filho de Deus nos revela tal amor e essa finalidade da criao. Ao abrir-se para o amor de Cristo crucificado, nossa inteligncia atrai a si o amor: comea a amar o que Deus ama, a desprezar o que Ele despreza. Assim, como Deus no ama o pecado, a alma tambm o odeia e despreza; no apenas lhe desagrada que algum peque, mas daria mil vidas, se as possusse, para libertar algum do pecado mortal. Carssimo pai! Dai de beber a Cristo! Bem sabeis com quanto amor Ele nos pede. Aumentai em vs o desejo, bom e santo, desse alimento salutar. No olheis, nas pessoas, sua dignidade, pequenez ou grandeza, legitimidade ou ilegitimidade.08 O Filho de Deus, cujos passos devemos palmilhar, jamais desprezou ou despreza algum, por motivo de posies sociais ou no, de santidade ou de pecado. Ele acolhe qualquer um com igual

amor, contanto que a pespoa queira libertarse da sujeira do pecado mortal, da vaidade humana, e voltar graa. 44. Aceitai aquele vocacionado Tal foi o ensinamento que Cristo nos deixou. Deu-o a todos, mas muito mais a vs 59 e aos demais superiores e 58 A razo pela qual os olivetanos recusaram o rapaz foi por ele ser filho de uma unio matrimonial ilegtima. 59 Catarina fala pessoalmente ao prior frei Justo e aos seus colaboradores diretos, implorando com extremo vigor que acolham o jovem. Suas palavras revelam nesta carta uma abertura de idias inslita para aqueles tempos. responsveis da ordem (olivetana). Quando pessoas bondosas vos procuram com o desejo e a inteno de entrar para a Ordem, 50 quando por amor virtude deixam o mundo e procuram o jugo da obedincia, por razo nenhuma se deve recus-las e afast-las, qualquer seja a sua procedncia. Deus no ama menos quem concebido no pecado mortal, do que a pessoa nascida em matrimnio (legtimo). Nosso Deus ama os desejos santos e bons. Rogo-vos, pois, que acolhais este jovem, enviado pelo prior (dos dominicanos) com o pedido de que fosse recebido na (vossa) Ordem. A inteno do jovem santa e reta. Por amor inclinou-se vida consagrada e o Esprito Santo o chama especialmente para ser olivetano. Admiro-me muito de que a resposta tenha sido negativa. Fiquei muito surpreendida. Talvez foi falha do mensageiro, que no soube desempenhar-se melhor. No

que tenha errado algo, mas no tenha sabido agir melhor. Peo-vos agora, por amor de Cristo crucificado, que vos disponhais inteiramente a acolh-lo. Ele ser de glria para Deus e para a Ordem. No o percais, pois um bom jovem. Se no o fosse, eu no o mandaria! Imploro como um favor. No plano da caridade, um dever para vs aceit-lo. No sejais avaros, com quem vos pede um bem; dai-lhe. Disso concluirei que estais debaixo da cruz, dando de beber aos sedentos que vos procuram. No vejo outro caminho pelo qual possais ser agradveis a Deus. Por isso disse antes (1.) que desejava ver-vos faminto e sedento de almas para a glria de Deus. 5. Concluso Nada mais acrescento. Permanecei no santo e doce amor de Deus. Jesus doce, Jesus amor! 60 A Ordem dos olivetanos fundada pelo B. Bernardo Tolomei, senense, em 1313, uns 60 anos antes, constitui uns dos ramos da Ordem de So Bento. Santa Catarina dedicava um especial amor aos olivetanos.

20. A UM MONGE IRREQUIETO (Carta n9 37 a Niccol di Ghida)

1. Saudao e objetivo Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, carssimo filho no amvel Cristo Jesus, eu, Catarina, serva dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos morador na cela do conhecimento de vs mesmo e da presena de Deus em vs. 2. A cela do corao Esta cela um quarto ntimo, que o homem leva consigo por toda parte. Nela adquirem-se as virtudes perfeitas e reais, especialmente a humildade e a ardente caridade. No conhecimento de si, a pessoa se humilha, tomando conscincia da prpria imperfeio e do prprio nada. De61

61 Talvez por informaes dadas pelo prprio prior dos olivetanos, Catarina ficou sabendo que o monge Nicolau de Ghida andava muito relaxado em relao clausura monacal. Nicolau tinha sido mdico em Sena antes de entrar para o mosteiro. Esta carta mostra bem todo o amor que Catarina lhe dedicava, pessoalmente.

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outro lado, compreende que de Deus recebeu o ser; reconhecendo que do Criador recebeu a existncia, a Ele atribui o ser e tudo o que ao ser foi acrescentado. Adquire assim a caridade perfeita e verdadeira, e com ela comea a amar a Deus de todo o corao e afeto, com toda a alma. Graas a esse amor, v nascer em si dio pela prpria sensualidade e alegrase em Deus de que Ele puna, como quer, as prprias iniqidades. A alma logo se torna paciente ante todos os sofrimentos, interior e exteriormente. De boa vontade suporta as dificuldades ntimas, julgando-se indigna da paz e tranqilidade que nota nos demais servos de Deus. E donde procede tudo isso? Daquele conhecimento. Quem se conhece, conhece tambm a Deus e sua bondade para consigo. E por isso, ama-o. 3. Frutos desse conhecimento na vida do monge Em que se alegra uma pessoa assim? Alegra-se em sofrer, sem culpa pessoal, por Cristo crucificado. Pouco lhe importam as perseguies do mundo e as falsas acusaes dos homens. Com prazer suporta os defeitos dos outros. Procura viver realmente as austeri-dades da sua Ordem, prefere morrer a desobedecer, submete-se no s aos superiores, mas tambm e sempre aos menores responsveis. No presunoso, nada atribui a si. Em Cristo crucificado submete-se a todos, no para agradar ou por qualquer outra fraqueza, mas por humildade e amor virtude. Evita a convivncia com

pessoas do mundo e leigos; evita o contato e at a recordao dos prprios parentes, como se fossem serpentes venenosas. Torna-se amante da cela conventual, dedica-se salmodia. em orao contnua e humilde. Para tal pessoa, a cela tornou-se um cu; prefere ali ficar entre perturbaes e tentaes do demnio a estar fora dela em paz e tranqi lidade. Donde provm tal conhecimento e amor? Da cela

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do autoconhecimento. Quem nunca morou na cela interior, nunca deseja e ama a cela exterior. Somente a amar, quando vier a conhecer em si mesmo como perigoso perambular e estar fora da cela. 4. Perigos da vida irrequieta para o monge Realmente, fora da cela, o monge morre como o peixe fora da gua. Como perigoso para um monge ficar perambulando! Quantas colunas vimos ruir por terra, por ficarem andando e viverem fora das suas celas, em tempos proibidos e contrrios Regra. Se tal coisa acontece por obedincia ou por algum motivo de verdadeira e expressa caridade, a alma no sofre danos; mas sofre, quando por irreflexo ou mera vontade de ajudar algum, razes com que o demnio ilude o ignorante a permanecer fora da cela. No entende que a caridade leva antes ao cuidado de si, isto , a no se prejudicar com uma ao culp-vel, a no impedir a perfeio pessoal com a justificativa de ser til a outros. Por que motivo to prejudicial permanecer fora da cela exterior? Porque, antes de deix-la, a pessoa j havia abandonado a cela interior do autoconhecimento. No fosse assim, conheceria a prpria fraqueza, com a qual inconveniente sair, e teria permanecido na cela. Conheceis as conseqncias da permanncia fora da cela exterior? Algo mortfero: distrai-se a mente ao procurar a companhia dos homens e esquecer a dos Anjos; esvazia-se a mente dos santos pensamentos sobre Deus, enchen-do-a de pensamentos humanos; a boa vontade e a devoo decaem por causa de preocupaes dissipadas e ms; escancaram-se as portas dos sentidos: do olho, para ver o que no se deve; dos ouvidos, para escutar o que contrrio vontade de Deus e salvao das almas; da lngua, para pronunciar palavras inteis e deixar de falar sobre

Deus. Afinal, pela falta de orao e de bons exemplos, a pessoa prejudica a si mesma e os outros. As palavras so insuficientes para descrever os males derivantes. E se a pessoa no estiver atenta, sem perceber ir decaindo aos poucos, chegando at a abandonar o sagrado aprisco da vida consagrada. 5. O recolhimento monacal Quem possui autoconhecimento percebe tal perigo e refugia-se na cela (exterior). Abraado cruz, ele ali enriquece sua mente na companhia dos santos Doutores que, cheios de iluminao sobrenatural, falaram da imensa bondade divina e da pequenez pessoal. Eles eram homens apaixonados pela virtude e se alimentavam na cruz (de Cristo), ansiosos pela glria de Deus e pela salvao das almas; suportavam sofrimentos, ainda que mortais, com grande perseverana. Quem possui o autoconhecimento alegrase com tais companhias e acha penoso ficar longe da prpria cela. quando tal coisa lhe imposta pela obedincia. Ausente da cela (exterior), nela se encontra pelo desejo bom e san to. Quando est na cela, alimenta-se do sangue (de Cris to) e une-se pelo amor ao Bem supremo e eterno; no recu sa o trabalho. Embora na cela, verdadeiro soldado nc campo de batalha: defende-se dos inimigos com a espad do dio e do amor, com o escudo da santssima f. Jamai olha para trs. Persevera na esperana e na f, at rece ber a coroa da glria. Mune-se com a riqueza das virtu des, adquirindo-as no mercado do autoconhecimento e d( conhecimento de Deus. Reside, assim, na cela interior i exterior, sem o que no teria adquirido jamais as virtudes Por julgar que no existe outro caminho, afirmei (aci ma) que desejava ver-vos morador na cela do conheci mento de vs mesmo e do conhecimento da bondade di

Deus em vs. Recordai-vos de que fora de tal cela nada alcanareis. Quero, pois, que retorneis a vs mesmo na disciplina, permanecendo na cela. Seja-vos desagradvel estar fora dela, exceto quando a obedincia e a necessidade extrema o exigirem. Parea-vos um tormento ficar andando; e um veneno, conviver com os seculares. Na realidade, fugi de vs mesmo e no sejais cruel contra vs mesmo. Filho carssimo, no continuemos a dormir. Despertemo-nos pelo autoconhecimento. Dessa forma encontraremos o sangue do Cordeiro humilde e sem mancha. 6. Concluso Nada mais acrescento. Permanecei no santo e doce amor de Deus. Recomendai-nos com insistncia ao Prior62 e a todos os outros monges. Jesus doce, Jesus amor!

1 No sabemos quem era este prior, pois Nicolau residiu tanto no mosteiro principal da Ordem olivetana de Volterra como no mosteiro de S. Bento da cidade de Sena.

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21. PARTICIPANDO NO APOSTOLADO DOS DISCPULOS (Carta nQ 200 a Fr. Bartolomeu Dominici o.p.)

45.

Saudao e objetivo

Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs63 amado e carssimo irmo e filho meu em Jesus Cristo, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Deus, escrevo e conforto no precioso sangue do Filho de Deus, desejosa de ver realizada em vs aquela palavra que o nosso Salvador disse aos seus discpulos: "Vs sois a luz do mundo e o sal da terra" (Mt 5,13-14). 46. Ser apstolo como Jesus

Com grandssimo desejo, minha alma quer que sejais um filho iluminado pela chama e ardor do Esprito Santo, condimentado pelo sal da verdadeira sabedoria, capacitado para expulsar com solicitude o pecado e os dem83 Em 1372, fr. Bartolomeu Dominici, frade dominicano de Sena, estava em Asciano pregando durante a Quaresma, acompanhado por fr. Simo de 'Ibrtonn. Como no conseguisse pacificar e converter certas famlias, escrevera a Catarina, pedindo que viesse ajud-lo. Catarina responde justificando sua ausncia. 112

nios das almas que se encontram nas trevas. Mas s conheo um modo de realizar, possuir e cumprir esse meu desejo: ter um amor contnuo e inflamado, uma busca perene e infatigvel de unio com a iluminao, a sabedoria, a chama e o calor da caridade divina, revelada a ns na unio de Deus com o homem (em Jesus Cristo). Filho bonssimo, afirmo que ningum, ao contemplar o Homem-Deus correndo para a ignomnia da cruz e derramando o seu sangue em torrentes, deixar de procurar, participar e encher-se do verdadeiro amor. Tal pessoa saborear o alimento que Jesus saboreou (Jo 4,32) e se tornar um faminto e um sedento de almas. As almas constituem um alimento to doce e saboroso, que saciar e tornar dispensvel todo outro alimento. Ento vossos dentes fracos ficaro robustos, aptos a digerir bocados grandes e pequenos. Empenhai-vos, pois, em todo ministrio, por afastar as trevas e construir a luz. No vos preocupeis com vossa fraqueza e pensai que pelo Cristo crucificado tudo podereis. 3. Participao de Catarina no apostolado Mediante aquela invisvel viso''4 que o Esprito Santo nos d, estarei ao vosso lado, jamais vos abandonarei. A menos que Deus disponha diversamente, por agora no vejo o modo de ir ter covosco. Houvesse Deus permitido, de boa vontade teria viajado, para glria de Deus, para alegria vossa e tambm minha, a qual seria grande. Mas o tempo est chuvoso e a sade do corpo piorou bastante nestes ltimos dez dias. A tal ponto, que com dificuldade vou igreja no domingo. Frei Toms (delia Fonte) ficou 64 Catarina tinha conscincia de seus dons carismticos (ou parapsicolgicos, diriam alguns hoje), com os quais seguia o trabalho dos discpulos, ainda que distncia. Catarina explicava a origem desses dons como "iluminao infusa" pelo Esprito Santo. Veja-se em O Dilogo, op. cit., pp. 172ss. com pena de mim e achou que no devia viajar. Alis, eu nem podia mesmo.

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Espiritualmente farei o que puder. Acreditaime. Se Deus quisesse que eu fosse at vs, eu no oporia resistncia. Nem o farei nunca. Rogai, pois, a Deus que se realize o que for para a sua maior glria. 4. Recados e concluso Antes do vosso retorno (a Sena), procurai reconciliar aquelas pessoas sobre as quais me escrevestes. Abenoai e confortai todas essas ovelhinhas famintas e sedentas de Jesus Cristo, bem como o proco Biringhieri65 e as demais famlias (de Asciano). Dizei-lhes que no demorem em abandonar as obscuras ocupaes e preocupaes do mundo o os inquos pecados mortais, que destroem a vida (do esprito). Que procurem a graa e a luz do Esprito Santo. Abenoai Fr. Simo (de Cortona), meu filho em Cristo Jesus. Dizei a Neri que se esforce por seguir os passos de Cristo crucificado. Alessia (Saracini), Lisa (Colombini) e Francisca (Gori) recomendam-se a vs. Jesus doce, Jesus amor!

Vejn-sc a carta a ele escrita, p. 76.

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22. AMAR O POVO PECADOR (Carta n9 204 a Fr. Bartolomeu Dominici)

47.

Saudao e objetivo

48. Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, a vs, meu amado irmo em Cristo Jesus, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, escrevo e conforto no precioso sangue de Deus, desejosa de vervos imerso e inflamado em Cristo Jesus, para renun-ciardes inteiramente a vs mesmo.O comportamento de Jesus Mas no conheo outra maneira de fazer tal coisa, alm da elevao do prprio pensamento, com grande desejo (santo) e acima de si mesmo, at atingir o inefvel amor divino, com o qual Deus pensou e pensa no homem, Frei Bartolomeu Dominici continuava pregando a Quaresma em Asciano. Certamente escrevera a Catarina, queixando-se do povo de Asciano e definin-do-o como infiel e extraviado. E perguntara, mesmo, que fazer. Como tratar os pecadores? A resposta de Catarina de uma clarividncia impressionante: que o pregador "conviva" com tais pessoas com grande abertura de esprito e muito amor... como fazia Jesus.

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ainda antes de cri-lo. Ao pensar o homem na prpria Divindade, Deus enamorou-se dele desmedidamente. Desejando, ento, que ele gozasse e participasse do bem divino, por amor o criou. Todavia, por causa do pecado de Ado, esse desejo divino no iria realizarse mais. Ento, levado pela sua caridade, Deus enviou seu amoroso Filho Jesus para resgatar o homem e tir-lo da priso. Foi quando o Filho correu em direo morte na cruz, to humilhante, e conviveu com os pecadores, publicanos, extraviados e todo tipo de pessoas. Como ao amor-caridade no se pode impor normas e medida, Jesus no pensava em si mesmo, no procurava os prprios interesses. Por causa do egosmo, o primeiro homem cara das alturas da graa divina. Foi preciso que Deus fizesse a caminhada inversa, enviando o Cordeiro imaculado com um amor abrangente e inefvel, esquecido de si, unicamente preocupado com a glria do Pai e a nossa salvao. Oh! meigo e amoroso Cavaleiro, em nada te preocupam a morte, a vida, a vergonha. A morte venceu a vida do teu corpo, mas tua morte destruiu nossa morte. Como vedes, a razo movente (de Cristo) foi o amor, pois Ele visava glria do Pai. Dessa maneira realizou em nosso favor o seu grande desejo: de que gozssemos de Deus Pai, finalidade para a qual tnhamos sido criados. 3. O apstolo cristo imita Jesus e Paulo Meu carssimo e bondoso filho! Quero que vos assemelheis ao Verbo divino, Jesus.

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Ele a norma para ns, como o foi para os Santos que o seguiram. Sereis uma s coisa com Ele e participareis de sua abertura ("larghezza") de alma, sem nenhuma mesquinhez ("stremit"). Eu j disse antes: se o homem no se elevar, no contemplar e no procurar a desmedida bondade e caridade divina tal e qual a ns se revelou, jamais chegar a grande abertura de alma e perfeio, mas se tornar mesquinho, incapaz de acolher a si mesmo e o prximo. Eis porque eu dizia estar desejosa de ver-vos imerso e inflamado em Cristo, a refletir sempre no seu amor. S assim amareis perfeitamente o que Ele ama e desprezareis o que Ele despreza. Afastai, afastai o corao maldoso e a conscincia desordenada e estreita. No sigais o perverso demnio, que procura impedir a virtude e no quer ser expulso da cidade (de Asciano). Quero que faais isso com virilidade de corao e perfeita dedicao, consciente de que a lei do Esprito Santo diferente da lei dos homens. Imitai o bondoso e apaixonado Paulo (apstolo). Sede um vaso de dileo,66 67 que leva e espalha o nome de Jesus. Pareceme que Paulo se espelhava nesse amor (divino) e nele se perdia. Ali buscava sua grande abertura de alma, de modo que desejava e preferia "ser antema e separado de Cristo" (Rm 9,3) em favor dos irmos. Paulo enamorou-se dos amores de Deus. Ele compreendeu que o amor no ofende, nem aceita confuso.

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4. O apstolo ama o povo pecador Por desejar a glria de Deus, Moiss preferia ser pessoalmente riscado do Livro da vida a ver seu povo na morte (Ex 32,32). Pela mesma razo, eu exijo e quero que permaneais firme em Cristo, extirpando os vcios e promovendo a virtude, semelhana de Jesus e dos Santos, que seguiram seus passos. No imponhais normas ao desejo santo,68 nem limites, pois ele no tolera limites. 67 0 texto bblico, no qual pensa Catarina, diz "vaso de eleio" (At 9,15). Ao que parece, a mudana da palavra "eleio" para "dileo" foi proposital. Por causa do valor da expresso "desejo santo" na espiritualidade de Catarina, lembramos mais uma vez que seu significado : preocupao de todo cristo pela glria de Deus e a salvao das almas. Estais no meio de um povo infiel, extraviado e maldoso; pela fora do amor, deveis conviver com ele. Digo-vos a maneira: convivei na caridade, isto , no desejo de salv-lo. Se a nossa convivncia fosse por amor-prprio, por satisfaes espirituais ou materiais, no por causa da salvao das almas, seria conveniente evit-la. Afastai de vs, pois, toda amargura e restrio (pelos outros). Acreditai mais nas pessoas que em vs mesmo. Se o demnio vier perturbar vossa conscincia, man-dai-o acertar contas comigo sobre isso e outros assuntos. Quem responde pelo filho a me! Quero ver-vos ardoroso. Nenhum acontecimento ou assunto ser to forte, que a caridade-amor no vena e no vos

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fortalea. 5. Comunicaes e concluso Abenoai por mim meu filho Fr. Simo (de Cortona). Dizei-lhe que corra (na vida apostlica) apoiado no desejo santo da cruz. Mandai-me dizer como na cruz repousais e como vai a glorificao de Deus. Alessia (Saracini), a gorducha, pede que rezeis por ela e por mim, bem como por Francisca (Gori), a preguiosa. Jesus doce, Jesus amor!

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23. A VIDA DE UM DISCPULO (Carta ir 258 a Ristoro Canigiani)

49.

Saudao e objetivo

Em nome de Jesus Cristo crucificado e da bondosa Maria, carssimo irmo no doce Cristo Jesus, eu, Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de ver-vos