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Artigo de Revisão ASPECTOS CLINICOS DA ANESTESIA PARA CIRURGIA DE RESTAURAÇÃO DA AORTA ABDOMINAL Paula Maria da Cruz * Manuel Luiz Moreira de Souza ** As cirurgias de restauração de aorta abdominal consti- tuem o tratamento efetivo para os aneurismas e obstruções orgânicas aorto-ilíacas. São procedimentos realizados na maioria das vezes em pacientes idosos, portadores de varia- das moléstias e sob tratamentos medicamentosos nem sem- pre eficazes. A anestesia para estas cirurgias deverá, entre outras medidas, contar com monitorização completa para constante ;reavaliação de cada parâmetro. As manobras de clampeamento da aorta abdominal são responsáveis por alterações pulmonares, hemodinâmi- cas, cardíacas e renais, podendo causar lesões irreversíveis para estes órgãos. A reposição volêmica com soluções ele- trolíticas e as transfusões sanguíneas maciças intensificam os desvios do metabolismo contribuindo para um pós-opera- tório de difícil domínio terapêutico. Unitermos: Arteriosclerose, Doença Aortica, Cirurgia, Anestesia. Trabalho realizado no Serviço de Anestesiologia do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo. as s}ste.nte do Serviço de Anestesiologia do HospItal da Beneficencla Portuguesa de São Paulo e do Hospi- tal Universitário da USP. Anestesiologista Titular do Serviço de Anestesiologia do Hospi- tal da Beneficência Portuguesa de São Paulo. CIR . VASCo ANG. 3 (1.1:7, 14, 1987 INTRODUÇÃO Este estudo tem a finalidade de rever e expor as prin- cipais características dos pacientes submetidos à cirurgia de restauração da aorta abdominal, bem como as repercussões orgânicas e condutas terapêuticas com que se defronta o anestesiologista em cada fase perioperatória. 1) Avaliação pré-anestésica: Considerações. a) Idade: Os doentes submetidos à cirurgia restaurado- ra da aorta abdominal estão geralmente compreendidos na faixa etária de 65 a 75 anos e são com maior freqüência do sexo masculino (12). São portadores de atrofia e degenera- ção funcional de todos os órgãos, exceto próstata e coração que se hipertrofiam. b) Moléstias associadas: Constituem, principalmente, aterosclerose, desnutrição, infecção crônica, insuficiência cardíaca, diabetes mellitus, tabagismo, alcoolismo, obesida- de, acidentes vasculares isquêmicos cerebrais, enfisema, bronquite (7, 11, 12). c) Fatores de risco: Os pacientes com história de in- farto do miocárdio poderão, com maior probabilidade, de- senvolver outro infarto durante o período perioperatório. A incidência de isquemias do miocárdio nestas condições é de 5 a 7% se o último infarto ocorreu 6 meses ou mais, de 16% se 3 meses e de 35% se menos de 2 meses (7). os portadores de moléstia arterial periférica são tidos de antemão como coronariopatas em potencial, embora. possam não apresentar quaisquer sintomas de is- quemia do miocárdio. São considerados de alto risco os doentes que possuem 50% ou mais de estenoseda artéria coronariana esquerda principal, ou das três maiores artérias coronarianas, ou da artéria descendente anterior associada a qualquer outra artéria coronariana (7). Os pacientes submetidos à revascularização do mio- cárdio permanecem com o risco próprio da idade e sexo, desde que tenham desaparecido por completo episódios de angina e falência cardíaca(7). Propôs-se uma equação que permite prever o risco ci- rúrgico (Rc) aproximado para cada paciente, segundo as va- riáveis (11): x 1- Insuficiência cardíaca congestiva; x2- Arritmias cardíacas; x3- Infarto do miocárdio; x4- Acidente vascular cerebral; x5- Eletrocardiograma anormal; Para cada variável, corresponderá um fator de correção: 0,46; 1.02; 0,62; 1.15; 1,25; Rc = antilog 2 (xlcl+x2c2+x3c3+ ... - 3- .. 80) Por exemplo, num doente que será submetido a cirurgia da aorta abdominal, com os seguintes antecedentes: ICC - ECG 7

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Artigo de Revisão

ASPECTOS CLINICOS DA ANESTESIA PARA CIRURGIA DE RESTAURAÇÃO DA

AORTA ABDOMINAL

Paula Maria da Cruz * Manuel Luiz Moreira de Souza **

As cirurgias de restauração de aorta abdominal consti­tuem o tratamento efetivo para os aneurismas e obstruções orgânicas aorto-ilíacas. São procedimentos realizados na maioria das vezes em pacientes idosos, portadores de varia­das moléstias e sob tratamentos medicamentosos nem sem­pre eficazes. A anestesia para estas cirurgias deverá, entre outras medidas, contar com monitorização completa para constante ; reavaliação de cada parâmetro.

As manobras de clampeamento da aorta abdominal são responsáveis por alterações pulmonares, hemodinâmi­cas, cardíacas e renais, podendo causar lesões irreversíveis para estes órgãos. A reposição volêmica com soluções ele­trolíticas e as transfusões sanguíneas maciças intensificam os desvios do metabolismo contribuindo para um pós-opera­tório de difícil domínio terapêutico.

Unitermos: Arteriosclerose, Doença Aortica, Cirurgia, Anestesia.

Trabalho realizado no Serviço de Anestesiologia do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Anes~siologista ass}ste.nte do Serviço de Anestesiologia do HospItal da Beneficencla Portuguesa de São Paulo e do Hospi­tal Universitário da USP. Anestesiologista Titular do Serviço de Anestesiologia do Hospi­tal da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

CIR. VASCo ANG. 3 (1.1:7, 14, 1987

INTRODUÇÃO

Este estudo tem a finalidade de rever e expor as prin­cipais características dos pacientes submetidos à cirurgia de restauração da aorta abdominal, bem como as repercussões orgânicas e condutas terapêuticas com que se defronta o anestesiologista em cada fase perioperatória.

1) Avaliação pré-anestésica: Considerações.

a) Idade : Os doentes submetidos à cirurgia restaurado­ra da aorta abdominal estão geralmente compreendidos na faixa etária de 65 a 75 anos e são com maior freqüência do sexo masculino (12). São portadores de atrofia e degenera­ção funcional de todos os órgãos, exceto próstata e coração que se hipertrofiam.

b) Moléstias associadas : Constituem, principalmente , aterosclerose, desnutrição, infecção crônica, insuficiência cardíaca, diabetes mellitus, tabagismo, alcoolismo, obesida­de, acidentes vasculares isquêmicos cerebrais, enfisema, bronquite (7, 11, 12).

c) Fatores de risco: Os pacientes com história de in­farto do miocárdio poderão, com maior probabilidade , de­senvolver outro infarto durante o período perioperatório. A incidência de isquemias do miocárdio nestas condições é de 5 a 7% se o último infarto ocorreu há 6 meses ou mais, de 16% se há 3 meses e de 35% se há menos de 2 meses (7). E~tretanto, os portadores de moléstia arterial periférica são tidos de antemão como coronariopatas em potencial, embora . possam não apresentar quaisquer sintomas de is­quemia do miocárdio. São considerados de alto risco os doentes que possuem 50% ou mais de estenoseda artéria coronariana esquerda principal, ou das três maiores artérias coronarianas, ou da artéria descendente anterior associada a qualquer outra artéria coronariana (7).

Os pacientes já submetidos à revascularização do mio­cárdio permanecem com o risco próprio da idade e sexo, desde que tenham desaparecido por completo episódios de angina e falência cardíaca(7).

Propôs-se uma equação que permite prever o risco ci­rúrgico (Rc) aproximado para cada paciente, segundo as va­riáveis (11):

x 1- Insuficiência cardíaca congestiva; x2- Arritmias cardíacas; x3- Infarto do miocárdio; x4- Acidente vascular cerebral; x5- Eletrocardiograma anormal;

Para cada variável , corresponderá um fator de correção:

xl~cl x2~c2 x3~c3 x4~c4

x5~c5

0,46; 1.02; 0,62; 1.15; 1,25;

Rc = antilog2 (xlcl+x2c2+x3c3+ ... -3-.. 80)

Por exemplo, num doente que será submetido a cirurgia da aorta abdominal, com os seguintes antecedentes: ICC - ECG

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Paula Maria da Cruz e cal.

anonnal, AVC; teremos:

Rc antilog2 (xlcl +x2c2+x2c3 ... -3,80) RC antilog2 (1,02+1,25+1,15 - 3,80) Rc antilog2 (2,86 - 3,42) Rc antilog2 (-0,94) Rc 0,68 -+ 68%

Portanto, o risco aproximado para este dOente está avaliado em 68%.

A mortalidade operatória não está relacionada somente com a idade, mas principalmen te com o estado clínico vigente e com as moléstias associadas, como foi exposto acima. Ob­serva-se que os enfennos acima de 70 anos têm sobrevida pós-operatória significativamente maior quando compara­dos aos doentes mais jovens portadores de patologias asso­ciadas. Desta maneira, a idade por si só não apresenta risco cirúrgico importante, mas sim, a coexistência de patologias ou estado clínico atual muito grave(~).

2) Uso de medicamentos e suas interações:

a) Beta-bloqueadores: O uso clínico dos beta-bloquea­dores está reservado aos portadores de hipertensão arterial essencial ou renal, feocromocitoma, hipertireoidismo e co­ronariopatias. Atuam bloqueando a liberação de renina das células juxtaglomerulares dos néfrons renais e a conseqüen­te ativação das angiotensinas I e 11 (20). Seu uso não deve ser interrompido antes da cirurgia, podendo com isso causar hiperatividade do sistema nervoso autônomo simpático, com episódios de angina pectoris ou mesmo infarto do mio­cárdio (20).

Os beta-bloqueadores oferecem ação protetora ao músculo cardíaco durante as manobras de indução anestési­ca e intubação traqueal. Não devem ser combinados com agentes como metoxiflorano e tricloroetileno por causarem excessiva depressão do miocárdio. Têm interação sinérgica com os anti-colinesterásicos e causam retardo na resposta taquicardizante pela administração de atropina (20).

b) Ácido acetil-salicilico - Verificou-se que a adminis­tração do AAS 12 horas antes dá cirurgia inibe a produção de derivados do ácido aracdônico, principalmente a prosta­glandina e a tromboxantina (24).

A tromboxantina é elaborada nos rins, plaquetas, leu­cócitos e liberada para a circulação sistêmica imediatamente após o cIampeamento da aorta atuando como um dos fato­res responsáveis pelo aumento da pressão arterial (16,24).

Fannacologicamente age como um potente vaso-cons­trictor e poderá causar espasmos coronarianos relevantes fa­vorecendo o infarto do miocárdio. O AAS na dosagem de 150 a 300 mg evita a produção de tromboxantina além de não interferir no processo de agregação pláquetária (24).

c) Corticosteróides: Administrados a longo prazo de­tenninam hipofunção da córtex supra-renal e hipotensão ar­terial. Desta maneira, 'o paciente pode responder inadequa­damente à ação de drogas simpaticomiméticas e a expanso­res plasmáticos (7).

d) Antihipertensivos: O uso prévio de antihipertensi­v:os e a sua interrupção ou não é assunto de controvérsia(5). O tratamento pré-operatório deve ser continuado e devida­mente adequado, evitando-se desta maneira, instabilidade durante a cirurgia (5).

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Anestesia em cirurgia da aorta

e) Digitálicos: O uso de digitálicos deve ser desconti­nuado durante a anestesia uma vez que podem aumentar a instabilidade ventricular ou favorecer disritmias cardíacas, principalmente -se combinados com a succinilcolina. Haverá propensão à intoxicação digitálica se a reposição de potássio durante a terapêutica com diuréticos não for logo instala­da(7).

f) Diuréticos - vide item 8.b)

3) Hidratação pré-operatória

Verificou-se que os pacientes previamente hidratados não apresentam hipotensão arterial brusca após o descIam­peamento da aorta devido à melhor redistribuição do fluxo sanguíneo nos membros inferiores (13-16). A liberação para circulação sistêmica dos metabolitos retidos na região sub­metida à isquemia causada pelo cIampeamento, tem seus efeitos atenuados sobre o sistema cardiovascular (16).

Os catabólitos provenientes das regiões transitoria­mente isquemiádas são cardiodepressores e agem sinergica­mente com substâncias vasoativas liberadas pelos rins. A hi­dratação pré-operatória recomendada consiste na infusão de 1.500 rnl de solução salina com 25 a 50 gramas de albumina a 20%. Deverá ser feita sob vigilância das funções cardíacas e pulmonares monitorizadas com cateter de Swan-Ganz nos cardiopatas e pneumopatas mais graves (13,28).

4) Abordagem clínica: Monitorização

A monitorização do paciente anestesiado é um proce­dimento que pennite avaliar registros clínicos constantes das alterações fisiológicas durante o ato cirúrgico.

a) Pressão venosa central .• Permite avaliar com relati­va fidelidade a pressão diastólica fmal do ventrículo direito, determinando-se assim as ~aracterísticas de seu enchimento e função, tomando-se um guia para a reposição do volume circulante. Seu valor oscila entre 2 a 10 cm H2 O a nível da linha axilar média e poderá ser usada para averiguação gros­seira da função ventricular esquerda se comprovadamente não houver moléstias desta câmara ou alterações pulmona­res(3). A medida da PVC é influenciada pela posição do doente na mesa operatória (Trendelenburg, procIive, decú­bitos laterais), ventilação com pressão positiva contínua ou intennitente e estímulos simpáticos na rede vascular. A priori, qualquer veia que permita o acesso de um cateter até o atrio direito poderá ser utilizada (3).

b) Pressão de átrio esquerdo - cateter de Swan-Ganz. A medida da pressão do átrio esquerdo poderá ser obtida com a utilização do cateter de Swan-Ganz que para isto de­verá ser colocado na artéria pulmonar (3). Este método ofe­rece subsídios para se detenninar a pressão de átrio esquer­do, pressão capilar pulmonar, estudo da função ventricular esquerda, débito cardíaco, oxigenação do sangue pulmonar, ' pressão venosa central e pressão arterial média. Seu valor nonnal está entre 8-12mm Hg a partir da linha média (3 , 6, 27).

Verificou-se que nas cirurgias de aorta abdominal as mudanças da PVC e da pressão de átrio esquerdo ocorrem simultaneamente e no·mesmo sentido enquanto esta última se mantiver em tomo de 5 a 7,5mm Hg. Acima destes valo­res as medidas não mais se correlacionam (17). A inserção do cateter de Swan-Ganz é um método invasivo, e seu uso deverá ser restrito aos pneumopatas graves e aos portadores de moléstias cardíacas que interferem com a função do veri~

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Paula Maria da Cruz e cal.

trículo esquerdo tais como coronariopatias, infart-o do mio­cárdio, insuficiência mitro-aórtica, dilatação ou região de ne­crose de parede ventricular (6, 21). A tabela abaixo permite avaliar as variações da pressão arterial sistólica, pressão arte­rial diastólica, débito e pressão de átrio esquerdo conforme os níveis de clampeamento da aorta (5).

PARÂMETROS VARIAÇÕES

CLAMP CLAMP INFRARENAL SUPRARENAL

Pressão Arterial Sistólica + 17% + 35%

Pressão Arterial Diastólica + 8% + 10%

I)ébito Cardíaco -18% -40%

Pressão Átrio Esquerdo + 20% + 65%

Tabela 1. Variação de dif~rentes parâmetros medid'ospelo cateter de Swan-Ganz conforme o clampeamento da aorta seja supra ou infra-renal (5).

c) Pressão arterial média. É o melhor parâmetro para se avaliar a perfusão periférir:a, devendo ser mantida em ní­veis adequados que permitam o débito urinário . E um méto­do útil para se avaliar o débito cardíaco nos doentes em po­sição supina sob anestesia geral. Para tal, disseca-se a artéria radial, que é de mais fácil acesso, recomendando-se a reali­zação prévia do teste de Allen para verificação de sua função nutriente . Contudo, a cateterização poderá causar trombose arterial se o seu uso for muito prolongado, as la­vagens insuficientes e o calibre do cateter muito fino (3, 5).

d) Monitorização cardíaca - A eletrocardioscopia con­tínua é mandatória e revela alterações da freqüência cardía­ca, aparecimento de disritmias, desempenho dos marcapas­sos, efeitos das drogas além de orientar a terapia hidro-ele­trolítica, devendo ser utilizada nas derivações DI, DII ou V5 (3).

e) Sondagem vesica1 - Utilizada l'ara avaliação da diu­rese durante cada tempo cirúrgico, permite averiguação grosseira de densidade urinária, presença de hematúria, além de facilitar colheitas de amostras para pesquisas laboratorial de glicose, Na, K e osmolaridade urinária.

f) Temperatura corporal - A hipotermia acidental du­rante a cirurgia de aorta abdominal ocorre facilmente nos idosos por diminuição do tecido celular subcutâneo, de me­tabolismo basal e alteração dos mecanismos termorregula­dores(19). A hipotetmia ocorre na vigência de temperatura central abaixo de 350 C sendo freqüentemente subestimada. A monitorização deverá ser contínua pela inserção de ter­mômetro no terço inferior do esôfago, no reto, na rinofarin­ge, ou no tímpano {l4). Há vários fatores que contribuem para o desenvolvimento da queda de temperatura corporal durante a cirurgia restauradora da aorta, além da própria constituição física do paciente:

I) Anestesia - Uso de relaxantes musculares, que im­possibilitam a contratura muscular responsável pela produ-

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Ane$tesia em cirurgia da aorta

ção de calor; anestésicos potentes como os halógenos, que atuam bloqueando o sistema nervoso simpático causando vasodilatação periférica; uso de hipotensores; diminuição do metabolismo; bloqueios espinais; infusão rápida de soluções resfriadas como sangue e seus derivados(14).

11) Cirurgia - Exposição e dissecção de grandes áreas intra-cavitárias para acesso à aorta abdominal e tempo pro­longado de cirurgia( 14).

A queda de temperatura central abaixo de 31 °C é res­ponsável por efeitos deletérios em vários órgãos:

a) Maior excitabilidade do músculo cardíaco e apare­cimento de disritmias como extrasístoles ventriculares, su­pra-ventricularés e graus variáveis de bloqueios átrio-ventri­culares(14).

b) Maior viscosidade sanguínea e oclusão vascular na micro circulação(I4).

c) Menor dissociação da hemoglobina, com maior afi­nidade ao oxigênio ainda agravada pela menor concentração de 2-3-disfosfoglicerato (2.3-DPG) do sangue transfundido, com significativo prejuízo para a oxigenação tecidual perifé­rica(14).

d) Diminuição do fluxo sanguíneo renal, da perfusão renal e queda do regime de fIltração glomerular(14).

5) Repercussões clínicas da cirurgia restauradora da aorta abdominal sobre o sistema cárdio-vascular.

o paciente submetido à cirurgia da aorta abdominal situa-se na faixa etária dos 65 aos 75 anos. Neste grupo, as patolOgias cardíacas são achados comuns sendo considera­dos cardiopatas em potencial. A insuficiência cardíaca, os distúrbios do sistema de condução e as calcificações valvu1a­res, são as anomalias mais freqüentes (17, 19). As complica­ções cardíacas ainda constituem a maior causa de mortalida­de e morbidade per-operatória e por isso o grande objetivo da anestesia nestas intervenções é proteger o coração dos es­tímulos nocivos como hiperatividade simpática e alterações volêmicas bruscas (17).

O índice de consumo de oxigênio pelo miocárdio po­de ser avaliado indiretamente pelo produto da freqüência cardíaca pela pressão arterial sistólica e seu valor numérico relaciona-se com alterações eletrocardiográficas de isquemia do músculo cardíaco(2).

Pode-se avaliar, para cada doente, o índice de consu­mo de O2 além do qual aparecerão distúrbios de irrigação do miocárdio. Este índice ideal deverá ser mantido durante

.toda a anestesia e será um parâmetro auxiliar para avaliação das funções cardíacas(2). A hipertensão e a taquicardia au­mentam o consumo de O2 pelo miocárdio, que não será adequadamente suprido de oxigênio por causa da diminui­ção do tempo diastólico, principalmente se já existe insufi­ciência da autoregulação das artérias 'coronarianas (7.13). A pressão arterial diastólica é responsável pela perfusão coro­nariana que se torna crítica se atingir níveis inferiores a 55-60mm Hg, causando diretamente a insuficiênçia da irrigação subendocárdoca. A hipotensão arterial sistólica não causará efeitos tão deletérios ao coração, mas sim- aos rins e circula­ção cerebral embora também aumente o trabalho cardíaco e o consumo de O2 (7). A hipotensão causada por vasodilata­ção venosa decorrente de bloqueio simpático por anestési­cos inalatórios, halogenados, ou por metabólicos vasoativos, significa diminuição de retorno venoso ao átrio direito, en­quanto que a hipotensão causada por vasodilatação arterial causa decréscimo da resistência vascular periférica. A bradi­cardia também aumenta o consumo de O2 pelo miocárdio

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Paula Maria da Cruz e col.

para que haja o sustento da tensão das paredes ventriçula­res, e por este motivo-<leverá ser corrigida. Pode ser decor­rente 'de efeitos iatrogênicos, distúrbios de condução do co­ração e reflexos neurogêrlicos causados pelo manuseio intra-cavitário da aorta (7). '

O clampeamento e o desclampeamento da aorta infra­renal é responsável por alterações hemodinâmicas de impor­tância fundamental com diferentes repercussões nos porta­dores de aneurismas e nos doentes com obstrução orgânica da aorta. Os doentes submetidos à derivação têm maior to­lerância ao clampeamento pois pela própria moléstia, acaba­ram desenvolvendo circulação colateral suficiente para dar vazão à sobrecarga parcial provocada agudamente a este ní­vel(13). Ao contrário, os pacientes submetidos à aneuris­mectomia, sofrem hipertensão arterial logo após o clampea­mento que gera aumento da resistência periférica, bradicar­dia reflexa, sobrecarga de ventrículo e átrio esquerdo, hiper­tensão em pequena circulação com o aumento da pressão capilar pulmonar e aumento da pressão venosa central. Nes­te momento podem desenvolver edema agudo de pulmão e acidente vascular cerebral hemorrágico. Estes distúrbios tor­nam-se potencialmente mais danosos se ocorrem em corona­riopatas, pneumopatas, ou em pacientes em uso de marca­passo(7). Os doentes com cardiopatia caracterizada por dé­bito fixo como estenose mitral e aórtica acabam não tole­rando as grandes variações volêmicas e evoluem com maior facilidade para insuficiência cardíaca(13). O uso do nitro~ prussiato de sódio na dosagem de até 8ngr/kg/min poderá atenuar a pós-carga, melhorar o trabalho cardíaco e dimi­nuir a resistência periférica (7, 15). Entretanto o uso conti­nuado deste fármaco afeta diretamente a circulação corona­riana alterando a auto regulação já deficiente pelo processo ateromatoso. A interrupção do uso do nitroprussiato de só­dio provoca hipotensão arterial transitória referente ao res­tabelecimento gradual do tônus dtls artérias periféricas(13).

O clampeamén to' infra-renal é responsável por isquemia temporária dos membros inferiores, perineO?, genitais, retos e porção distal do sigmóide. Durante este períodc ocorrerá grau variável de sofrimento tissular com acúmulo de catabó­litos provenientes de metabolismo anaeróbios tais como mioglobina, potássio, creatinina, N2, radicais ácidos (ácido láctico, ácido piruvico) e enzimas (creatino-fosfoquinase', transarninase e desidrogenase lácticaX13). O desclampea­mento causa brusca redução do retomo venoso, hipotensão arterial isistêmica,' por queda do débito cardíaco, bradicar­dia, vasodilataçãó periférica, "shunt" pulmonar, queda do fluxo sanguíneo visceral e renal com diminuição da flltração glomerular; hipofluxo cerebral e liberação de catabólitos provenientes das regiões isquemiadas para a circulação sistê­micas (13, 28). Estes catabólitos, são primariamente cárdio­depressores e favorecem o infarto do miocárdio neste perío­do. As perdas sanguíneas podem ser importantes se as anas­tomoses da prótese com a aorta não estiverem suficiente­mente impermeabilizadas pela sutura e coágulos(28).

6) Repercussões clínicas da cirurgia de aorta abdominal no aparelho respiratório

O paciente geriátrico sofre alterações signifioativas do aparelho respiratório, incluindo modificações estruturais funcionais que oferecem parâmetros diferentes daqueles en­contrados nos jovens (7, 19).

a) AI teração estrutural ' da caixa torácica e calcificação das cartilagens condro-costais, com perda do movimento respiratório típico em alça de balde. A ventilação pulmonar

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Anestesia em cirurgia da aorta

toma-se praticam~nte abdominal e qualquer tumoração ou dor nesta região afetà diretamente a função respiratória.

b) Enfisema pulmonar crônico senil, encontrado em pelo menos em 60% da população geriátrica. e caracteriza­da pelo aumento dos espaços não respiratórios aéreos, estreitamento dos bronquíolos, fibrose da árvore tráquio­brônquica, e do parênquima pulmonar com maior dificulda­de de difusão alvéolo-capilar.

c) Bronquite crônica, mucosas congestas e inflama­das, e importantes secreção de muco.

d) Aumento de capacidade residual funcional. Duran­te a cirurgia de aorta abdominal é imperiosa a manutenção da oxigenação adequada do sangue mormente por se trata­rem de enfermos coronariopatas graves. Por isso atenta-se ,para manutenção da menor alteração possível da oxigena­ção alvéolo-capilar para que haja menor repercussão na p02 arterial(I7). Dentre as principais causas de aumeJ;lto de dite­rença alvéolo-capilar, estão o "shunt" pulmonar, a ventila­ção alveolar, a fração inspirada de O2, o débito cardíaco, hemoglobina plasmática, pH e temperatura do sangue. Con­tudo a grande causa de dessaturação da hemoglobina é o "shunt" pulmonar resultante das áreas perfundidas e não ventiladas dos pulmões (shunt fisiológicoXI7). Os "shunts" pulmonares são decorrentes dos seguintes fatores(17):

I) Diminuição da capacidade residual funcional ou aumento do volume puL'TIonar de fechamento (fração da ca­p'acidade pulmonar total abaixo da qual ocorre rápido fe­

,chamento das vias aéreas)(10),:Haverá formação de atelecta­sias em ,várias regiões da parênquima, com absorção dos ga­ses intra-alveolares (PrincipaLllente se enriquecidos com O2) com conseqüente colapso alveolar.

11) Cifoescoliose I1I) Obesidade IV) Posição supina sob anestesia geral V) Administração rápida de fluidos

A instituição da ventilação com pressão positiva expi­ratória fmal (''PEEP'') de até 5 cm H2 O auxiliará a manu­tenção da capacidade residual funcional acima do volume de fechamento. A efetividade deste recurso é controlada pe­la diferença de oxigenação alvéolo-capilar. Seu uso deve ser criterioso e está contra-indicado nos enfisematosps. Nestes doentes o ''PEEP'' devesersubstituido pela CPAP (resistên­cia expiratória adicionalXI7). O clampeamento e desclam­

'peamento da aorta causam transtornos pulmonares impor-tantes. O clampeamento provoca a congestão e hipertensão da circulação pulmonar com precipitação de edema agudo. O desclampeamento conduz à hipotensão arterial e à queda do débito do ventrículo direito, diminuindo a irrigação sanguínea para os ápices pulmonares, que passam a receber pouco ou nenhum sangue embora permaneçam bem ventila­dos(24). Estes fatores contribuem para aumento da diferen­ça de oxigenação alvéolo-capilar por conduzirem ao "shunt" anatômico (fração do débito cardíaco que não passa pelos capilares pulmonaresX24). Poderá haver disseminação de coágulos para a árvore circulatória pulmonar apesar do uso prévio de heparina endovenosa. Esta complicação é docu­mentl!da pelo maior consumo de fibrinogenio nos pulmões com formação de produtos degradados dafibrina, micro­embolizações e alterações da microestrutura pulmonar com lesões celulares (1, 15,28).

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Paula fI/faria da Cruz e cal.

7. Repercussões clínicas da cirurgia de aorta abdominal na função renal:

A partir dos 50 anos de idade há lenta e progressiva diminuição da função renal, acompanhada de atrofia do pa­rênquima e redução de número de néfrons fisiologicamente ativos(7). A hipofunção glomerular pode levar à elevação de taxas sanguíneas de creatinina, ácido úrico e uréia. A hipo­função tubular significa por sua vez, redução da capacidade de concentração urinária e conseqüente retenção de eletróli­tos · (Na e Cl). Haverá prejuízo da função reguladora do equilíbrio ácido-base pela maior dificuldade de eliminação de radicais ácidos fixos(7).

As principais causas de falência renal durante a 'cirur­gia de aorta abdominal são:

a) Moléstias renais prévias - Estenose acentuada das artérias !enais por processo aterosclerótico acompanhando oclusão aorto-ilíaca(1)

b) Otoque do desclampeamento. De especial impor­tância nos pacientes com lesões obstrutivas da aorta e arté­rias quando a fIltração glomerular se faz em regime hiper­tensivo(25). Estés doentes comportam-se refratariamente às medidas de reposição volêmica e à terapêutica vaso-constri­tora para tratamento de hipertensão arterial. O desclampea­mento, quando lento e progressivo, pode evitar a hipoten­são arterial brusca (28). O hipofluxo renal corticál associa­se à liberação sistêmica de catecolaminas que prOmOvem va­so-constricção da arteríola aferente glomerular e conseqüen­te ativação do mecanismu renina-angiotensina com secreção de aldosterona(25). As quedas do fluxo sanguíneo renal e do ritmo de fIltração glomerular são responsáveis por lesões anatômicas irreversíveis dos túbulos distais e dutos coleto­res, que a longo prazo acabam não mais respondendo ao hormônio anti-diurético secretado em resposta às alterações da osmoralidade sanguín~a.

c) Período de isquemia do clampeamento - Responsá­vel pela produção e acúmulo de catabólitos como a mioglo­bina que, ao passarem para a circulação sistêmica, precipi­tam nos túbulos renais após fIltração glomerular(I).

8. Medidas de prevenção de falência renal:

a) Fluido de perfusão renal. Durante o período de clampeamento os rins podem ser perfundidos pela solução composta de Ringer Lactato a 4'OC com manitol a 20% (18gr/l), de heparina 2000/UI e hormônio adrenocortical (prednisolona) (50Orng/l). A infusão de 200 a 400rnl desta solução nas artérias renais protege a função renal por perío­dos de isquemia de uma hora ou mais(I).

b) Diuréticos - A administração de diuréticos antes do clampeamento permitirá manutenção do rítrno de fIltração glo~erular, evitando a precipitação de cristais(1). O manitol prevme edema e alterações morfológicas das células endote­liais glomerulares. Seu uso deverá ser criterioso por se tratar de um composto hiperosmolar podendo provocar aumento súbito da volêmia se administrado rapidamente(5). A dose preconizada é de 12,5 a 25gr a 25%.

A furosemida atua no ramo asêendente da alça de Henle bloqueando a reabsorção de sódio causando natriure­~ e menor reabsorção de água(25). A expoliação do potás­SIO resulta da sua maior secreção d\stal e é proporcional ao aumento da velocidade de fluxo neste segmento. A dose­preconizada é de 20-5Orng(18).

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Anestesia em cirurgia da aorta

c) BiCàrbonato de sódiQ - Administração do bicarbo­nato de sódio, além de corrigir a acidose metabólica causada pela liberação sistêmica de radicais ácidos produzidos du­rante a isquemia do clampeamento e pelas transfusões san­guíneas em massa, previne a precipitação de mioglobina nos glomerulos renais por alcalinizar a urina(25).

d) Dopamina - Na dosagem de até Smg/kg/min possui efeito vasodilatador nas artérias renais e circulação esplânc­nica(2S)

9. Reposiçãl) volêmica: sangue total e frações

O paciente geriátrico caracteriza-se pela redução do volume sanguíneo total em razão da menor atividade hematopoiética da medula, da redução da vida média dos gl-óbulos ·verm~lli.os e dos processos hemorrágicos, totali~ zando diminuição de 50% de volume corporal total de água(7). As enfermidades pulmonares são responsáveis pela poliglobulia e aumento da viscosidade sanguínea. A conta­gem de hemácias pode atingir cifras de até 6.000.000 glóbulos vermelhos por mm3 com o hematócrito acima de 40% (7). O aumento da viscosidade do sangue, reduzindo a velocidade do fluxo sanguíneo favorece o aparecimento de estase com maior facilitação para agregação plaquetária e trombose. A obstrução dos vasos por processo ateroscle­róticos. e diminuição da luz vascular facilita o aparecimento de fenomenos tromboembólicos nos membros inferiores. A rep.osição volêmica visa a manutenção da oxigenação dos teCIdos, que por sua vez poderá variar de acordo com a saturação de oxigênio na hemoglobina (10). Os fatores responsáveis pela diminuição de ' grau de afinidade do oxigênio pela hemogiobina entre outros são:

a) Temperatura corporal - Já que quanto mais inten­sa a hipoterrnia, menor a dissociação do oxigênio.

b) Eletrólitos - Uma vez que a dissociação é dificulta­da na vigência de concentrações sanguíneas baixas de Na, Cl e CaCho

c) A diminuição das taxas sanguíneas de CO2 (alcalo­se r:spiratória) é responsável pela menor dissociação de O2 (efeIto BOHR). Ao contrário a liberação facilitada de O2 para os tecidos proporciona maior afinidade de hemoglobi­na pelo CO2 (efeito HALDANE).

d) O. teor de 2-3-difosfoglicerato nas hemácias (2,3, DPG),. enZlffia reconhecida como fator liberador do O2 para os teCIdos, torna-se fator relevante na medida em que a sua carência nas hemácias favorece a maior afmidade da hemo­globina pelo O2 , diminuindo sua dissociação. (13 mili­moles/gr de Hb) e liberação tissular.

A transfusão de elementos do sangue pode ser feita com sangue total estocado, sangue total fresco lavado de hemácias, plasma, plaquetas e crioprecipitado. '

O sangue total estocado apresenta uma série de des­vantagens, entre as quais a diminuição do pH, queda do teor de C:02 pelo met~bolismo das .c~lulas sanguíneas, reduçãO' c~nsIderavel do numero e plastICIdade de plaquetas, libera­çao de fatores }ábeis de coagulação, e do cálcio ionizado por consumo de cItrato com queda de 2-3-DPG cuja concentra­ção na hemácia diminui conforme o tempo de estocagem

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(9). Este últimb fator, quando presente em concentrações normais, é responsável pela menor afmidade de hemoglobi­na pelo oxigênio, permitindo desta maneira a oxigenação te­cidual, conservando a p50 (tensão em que a hemoglobina está 50% saturada em pH de 7,5 e equivale aproximadamen­te a 25mm Hg). Conclui-se deste modo que o sangue perde gradualmente sua propriedade de oxigenação, além de apre­sentar concentrações elevadas de K, citrato, fosfato, amônio com aumento da viscosidade e hemólise(29). O sangue fres­co total ainda permite relativa oxigenação dos tecidos mes­mo na vigência de hiportemia durante o ato cirúrgico. Após uma transfusão de sangue fresco total, os níveis de 2-3-dis­fosfoglicarato das hemácias lentamente se restauram(l5,22).

As transfusões sanguíneas em massa na cirurgia de reparo de aorta abdominal causam efêitos nocívos como a hipotermia, reações pirogênicas, reações alérgicas, hipóxia tecidual, diminuição do 2-3-DPG agravada ainda pela tera­pia com bicarbonato de sódio (instituida para neutralizar a acidose metabólica decorrente do desclampeamento) e alte­rações pulmonares severas pela disseminação de microagre­gados para pequena circulação com lesões celulares (15,26).

A transfusão de plaquetas está indicada nos casos de trombocitopenias agudas (geralmente ocasionadas pela ex­cessiva destruição de plaquetas) sendo necessária para com­pensar a atividade tromboplástica deficien te do sangue total estocado administrado. A unidade para transfusão está sob a forma de plasma rico em plaquetas que podem ser recolhi­das depois de pequena lavagem com soro fisiológico, obten­do-se até 1O.000jrnl (23).

O crioprecipitado é proveniente da congelação rápida do plasma pelo que se conserva vários fatores de coagula­ção, principalmente o fibrinogênio(29). Está indicado na vigência de coagulopatias de consumo causadas por libera­ção de tromboplastinas teciduais, endotoxinas bacterianas, hemólise intra-vascular e lesões endoteliais praticamente mevitáveis na cirurgia de aorta abdominal. O fibr:mogênio circulante será convertido em fibrina causando ativação da plasmina(23).

A terapia com trasilol e ácido aminocapróico só deverá ser instituida se o processo de coagulação ultra-vascular dis­seminada for comprovadamente. decorrente de excesso de atividade fibrinolítica primária.

O sangue no campo operatório pode ser reaproveItado desde que previamente heparinizado. Este artifício consiste na reinfusão do sangue coletado no campo operatório com a utilização do aparelho de Bentley - A TS - 100. O san­gue é aspirado, mtrado, e permanece estocado em câmaras para seu uso posterior .(1, 6). Neste procedimento o sangue reinfundido é autólogo, não apresentando os efeitos colate­rais próprios do sangue homólogo. É conservado aquecido com pH próximo do normal, evitando-se a necessidade de banco de sangue. É método indicado para cirurgias onde se prevê grandes perdas sanguíneas tais como ressecção de aneurisma dissecante de aorta, aneurisma roto e cirurgias de acesso especialmente difícil (1, 6). O método requer, contudo, técnica especializada, material oneroso, além de poder causar embolia aérea, plaquetopenia, diminuição de tlbrinogênio e fatores de coagulação, com aparecimento de produtos de degradação da fibrina e hemolise traumática pela fIltração em esponjas com aumento de hemoglobina li­vre e conseqüente hemoglobinuria (6). •

10) Pós-operatório - falência de múltiplos órgãos

O estado clínico debilitado, a coexistência de patolo­gias de base, a idade avançada, as grandes manipulações ci-

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Anestesia em cirurgia da aorta

rúrgicas, o tempo prolongado de anestesia, as reposições vo­lêmicas rápidas e, infecções, são alguns dos fatores que cola­boram para um pós-operatório associado a um intenso des­vio metabólico que requer cuidados intensivos especiais( 4).

Os fatores intra-operatórios que contribuem para o aparecimento da síndrome da falência de múltiplos órgãos na cirurgia restauradora da aorta abdominal são:

a) Lesões múltiplas de vários órgãos; b) Períodos de hipovolêmia e choques hipovolêmicos

repetitivos; c) Transfusões sanguíneas maciças; d) Instabilidade cárdio-vascular associada à diminui­

ção de débitos cardíacos; e) AI teração prévia de função renal associada aos pe­

ríodos de clampeamento e desclampeamento. 1) Insuficiência respiratória prévia, associada ao de­

senvolvimento de atelectasia, aspiração e embolia. g) Catabolismo intenso com depressão do sistema

imunitário propiciando infecções graves. h) Septicemia invasiva proveniente da cavidade peri­

toneal .

,A falência de um órgão contribui para a de outro,ou um determinado fator contribui para a falência de um determi· nado órgão. Assim, a insuficiência respiratória no pós-opera­tório é um fato comum mas por si só raramente é fatal. Po­rém, se associada a septicemia, facilmente cursará com debi­litação e morte. A deteriorização das funções renais, hepáti­cas e principalmente respiratórias em doentes assintomáti­cossugerem a presença de foco séptico intracavitário, mor­mente após cirurgias de grande porte como são as aneuris­mectomias ou derivações aorto-bifemorais. A insuficiência respiratória que evoluí cóm edema pulmonar poderá indicar pancreatite infecciosa com produção de fatores tóxicos co­mo a fosfolipase e ácidos graxos livres. Estas entidades libe­radas para a circulação sistêmica lesam a membrana capilar alveolar. Um processo infeccioso agudo determina hiperdi­narnismo da circulação sistêmica com aumento do fluxo sanguíneo renal, clinicamente traduzido por poliúria, lesão tubular juxta-glomerular e diminuição da reabsorção pelos túbulos coletores. O resultado é isquemia cortical com flu­xo renal insuficiente, mascaradas clinicamente pelo alto ní­vel urinário. Deste maneira, o diagnóstico de insuficiência renal não poderá ser feito pelo débito urinário, mas sim pela dosagem de sódio na urina, que, se abaixo do normal, suge­re decréscimo na·perfusão renal e instalação de isquemia. A poliúria induz erroneamente a interrupção da infusão veno­sa de líquidos, e se isto acontecer, haverá maior agravo para a função renal(7).

O choque hemorrágico hipovolêmico resulta em dimi­nuição da opsonição e fagocitose, distúrbios nutricionais, depressão imunitária com alterações nos linfócitos T e B, e depleção do sistema de complementos, ainda agravados pela circulação de fatores imunossupressores produzidos pelo ca­tabolismo proteico no período pós-operatório. Estas entida­des contribuem simultaneamente para a má-nutrição e insta­lação de infecções rebeldes e persistentes que, por si só ini­ciam processo de falência de múltiplos órgãos.

CONCLUSÃO

As cirurgias de restauração da aorta abdominal consti­tuem tratamento único e imprescindível para a correção dos aneurismas e obstruções orgânicas aorto-ilíacas. Entretanto,

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apesar do desenvolvimento de técnicas cirúrgicas e boa qua­lidade das próteses, continuam sendo intervenções relacio­nadas a altos índices de morbidade e mortalidade. Para isto contribuem a idade avançada dos enfermos, a associação . de patologias importantes, tratamentos clínicos inadequados e o mau estado geral em que os doentes se encontram no mo­mento da cirurgia. Desta maneira, muitos que se submetem a estas cirurgias nestas condições acabam não tolerando as técnicas anestésicas e as m~obras cirúrgicas demasiadamen­te agressivas para uma estrutura orgânica muito debilitada.

' Estes procedimentos cirúrgicos além de significarem alterações importantes no estado clínico do enfermo, reque­rem suporte em unidades de terapia intensiva para que· se dê continuidade à evolução de um pós-operatório imediato sa­tisfatório.

SUMMARY

CLlNICAL ASPECTS OF ANESTHESIA FOR SURGERY OF THE ABDOMINAL AORTA

Surgical repair of the abdominal aorta is the effective tratment for aneurysm and organic obstructions. Neverthe­less it is mostly performed in elderly patients with criticai clinicai deficiences either because of associated pathologies or inadequate terapy.

Anesthesia In such procedures requires as many mea­surements of vital parameters as possible. Aortic cross-clam­ptng and declamping are responsable for changes in hemodi­namic, pulmonar~ cardiac and renal functions; volume repla­cement and transfusion therapy contribute to adverse affects on metabolism and for a hazardous post-operative course.

Uniterms: Atherosclerose, Aortic discase, Surgery, Anes­thesia.

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