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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ 2012-2013 CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ 2012-2013

Casos clinicos

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CASOS CLÍNICOSHOSPITAL DA LUZ

2012-2013

CASOS CLÍNICOS

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HOSPITAL DA LUZ

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UMA EDIÇÃO

CASOS CLÍNICOSHOSPITAL DA LUZ

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A PUBLICAÇÃO DESTE LIVRO CONTOU COM O APOIO DE:

UMA EDIÇÃO ESPÍRITO SANTO SAÚDE

COPYRIGHT 2013

ESPÍRITO SANTO SAÚDE - SGPSR. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, 17-9ºEDIFÍCIO AMOREIRAS SQUARE1070-313 LISBOAPORTUGAL+315 213 138 260

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada por qualquer sistema ou transmitida por qualquer forma ou meio, sem a prévia autorização do detentor dos direitos.

TIRAGEM3000 exemplares

ISBN 978-989-96054-6-6

DEPÓSITO LEGAL302371/09

CAPA E SEPARADORESFG + SG - Fotografi a de Arquitectura (www.ultimasreportagens.com)Fotografi a: Fernando Guerra | Produção Fotográfi ca: Sérgio Guerra

PRODUÇÃO GRÁFICAJorge Fernandes, Lda.

HOSPITAL DA LUZAvenida Lusíada, 1001500-650 Lisboa+351 217 104 400

www.hospitaldaluz.pt

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ÍNDICE | CONTENTS

PREÂMBULO | PREAMBLEIsabel VazPresidente do Conselho de Administração do Hospital da Luz e Presidente do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da Espírito Santo Saúde | Chairman of the Board of Directors of Hospital da Luz and Chairman of the Board of Directors and Chief Executive Offi cer of Espírito Santo Saúde

PREFÁCIO | PREFACEJosé RoquetteDiretor Clínico do Hospital da Luz | Clinical Director of Hospital da Luz

EDITORIAL | EDITORIALAmérico Dinis da GamaEditor | Editor

MEDICINA INTERNA, CARDIOLOGIA, CUIDADOS PALIATIVOS, ENDOCRINOLOGIA, PNEUMOLOGIA, NEUROLOGIA, IMUNOALERGOLOGIAINTERNAL MEDICINE, CARDIOLOGY, PALLIATIVE CARE, ENDOCRINOLOGY, PULMONOLOGY, NEUROLOGY, IMMUNOALERGOLOGY

PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO Acute generalized exanthematous pustulosis and multiple organ dysfunction. Case report Elisa Vedes, Pedro Raimundo, José Campos Lopes, Pedro Oliveira, João Sá

HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONARHyperthyroidism as a cause of pulmonary hypertensionJoão Melo Alves, Natália Marto, Alexandra Bayão Horta, João Sá

MIOCARDITE AGUDA RECORRENTE. CASO CLÍNICORecurrent myocarditis. Case reportVanessa Carvalho, Pedro Moraes Sarmento, Hugo Marques, Nuno Cardim, Alexandra Bayão Horta, João Sá

UMA APRESENTAÇÃO RARA DE TUBERCULOSE. CASO CLÍNICO A rare presentation of tuberculosis. Case reportBernardo Neves, Anabela Raimundo, Augusto Gaspar, Alexandra Bayão Horta, João Sá

SÍNDROME HIPEREOSINOFÍLICO E ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICOHypereosinophilic syndrome and stroke. A case reportPedro Mota, Filipa Malheiro, Raquel Gil Gouveia, António Almeida, João Sá

UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTEA strange case of intermitent patent foramen ovaleVanessa Carvalho, Raquel Gil Gouveia, Nuno Cardim, Rui Anjos, Daniel Ferreira

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CUIDADOS PALIATIVOS APÓS ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICOPalliative care after ischaemic stroke. Case reportIsabel Galriça Neto, Ana Luisa Bettencourt, Ana Sofi a Santos, Carlos Rodrigues, Marco Vieira, Vasco Silva

CRITÉRIOS ÉTICOS EM DECISÕES CLÍNICAS RELATIVAS A UM DOENTE EM FIM DE VIDAEthical criteria in clinical decisions for an end of life patientMaria Aparício, Ana Guedes, Cristina Rodrigues, Isabel Galriça Neto, Rita Abril, Vasco Silva

PANICULITE PANCREÁTICA PARANEOPLÁSICA. UM CASO CLÍNICO ACOMPANHADO EM CUIDADOS PALIATIVOS Paraneoplasic pancreatic panniculitis case report. Palliative care approach Isabel Galriça Neto, Catarina Amorim, Rita Abril, Rui Rodrigues

A UTILIZAÇÃO DE IODO-131 NA TERAPÊUTICA DA DOENÇA DE GRAVES EM JOVENS. A PROPÓSITO DE DOIS CASOS CLÍNICOSRadioiodine therapy in juvenile Graves’ disease. Two clinical cases report Francisco Sobral do Rosário, Lurdes Lopes, Cristina Loewenthal, Leone Duarte, Maria do Rosário Vieira, António Garrão

DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICOAlfa-1 antitripsine defi ciency. Case reportMaria da Graça Freitas, Margarida Felizardo

TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR?Chronic cough as atypical manifestation of gastroesophageal refl ux. How to treat?Nicole Murinello, Eduardo Pires, Carlos Vaz

ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃOParaneoplastic limbic encephalitis as a fi rst manifestation of a lung cancerMartin Lauterbach, Catarina Chester, Evelina Mendonça, Graça Freitas

UM CASO CLÍNICO DE ANAFILAXIA AO METAMIZOLAnaphylaxis to metamizol. Clinical Case report Teresa Vau, Sara Prates, Paula Leiria Pinto, José Rosado Pinto

CIRURGIA ROBÓTICA (CIRURGIA GERAL, CIRURGIA CARDÍACA, UROLOGIA)CIRURGIA GERAL, CIRURGIA VASCULAR, CIRURGIA PEDIÁTRICA NEUROCIRURGIA, OFTALMOLOGIA, UROLOGIAROBOTIC SURGERY (GENERAL SURGERY, CARDIAC SURGERY, UROLOGY)GENERAL SURGERY, VASCULAR SURGERY, PEDIATRIC SURGERY, NEUROSURGERY, OPHTHALMOLOGY, UROLOGY

REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICOIleal interposition reversal in two steps: Laparoscopic normal anatomy reconstruction and robotic duodenal switchCarlos Vaz, Cristina Pestana, Paulo Roquete, César Resende

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CIRURGIA DE REVASCULARIZAÇÃO CORONÁRIA POR MINITORACOTOMIA (MIDCABG) ASSISTIDA POR ROBOT. CASO CLÍNICO Minimally invasive direct coronary artery bypass grafting (MIDCABG) with robotic assistance. Case report Ricardo Arruda Pereira, Jean Luc Jansens, Fernanda Santos Silva, Francisco Pereira Machado, José Roquete

PROSTATECTOMIA RADICAL ASSISTIDA POR ROBOT NUM DOENTE COM TROMBOSE DA VEIA PORTARobotic assisted radical prostatectomy in a patient with portal vein thrombosisRui Formoso, Hugo Marques, Filipe Costa, José Bismarck, Kris Maes

NEOPLASIA MUCINOSA PAPILAR INTRADUCTAL PANCREÁTICA. CASO CLÍNICOPancreatic intraductal papillary mucinous neoplasm. Case reportCarlos Ferreira, José António Pedreira, Pedro Pinto Marques, Cristina Pestana, Pedro Oliveira, Adalgisa Guerra, Luis Gargaté, João Rebelo de Andrade

RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORETALRelevance of surgery and oncology in the treatment of liver metastases from colorectal carcinoma José António Pereira, Carlos Ferreira, Cristina Pestana, Mónica Nave, Tânia Rodrigues, Pedro Oliveira, Adalgisa Guerra, João Rebelo de Andrade

ADENOMA PARATIROIDEU ECTÓPICO. CASO CLÍNICOEctopic parathyroid adenoma. Case reportMaria Olímpia Cid, Vítor Moura Guedes, Mónica Justino, Ana Luísa Catarino, Fernando Martelo

TRATAMENTO CIRÚRGICO DE UMA DISSECÇÃO ESPONTÂNEA DO TRONCO CELÍACO CAUSADA POR DISPLASIA FIBROMUSCULAR. PRIMEIRO CASO DA LITERATURASurgical management of a spontaneous dissection of the celiac axis caused by fi bromuscular dysplasia. First clinical reportA. Dinis da Gama, Augusto Ministro, Gonçalo Cabral, Cristina Pestana, Pedro Oliveira

ISQUEMIA MESENTÉRICA CRÓNICA REVISITADAChronic mesenteric ischemia revisitedGermano do Carmo, António Rosa, Augusto Ministro, Cristina Pestana

HÉRNIA DE SPIEGEL CONGÉNITA COM TESTÍCULO ECTÓPICO Congenital Spigelian hernia with ectopic testis Vanda Pratas Vital, Rita Cabrita Carneiro, Filipe Catela Mota

TORACOTOMIA MINI-INVASIVA PARA O TRATAMENTO DE HÉRNIA DISCAL DORSAL GIGANTE POR VIA ANTERO-LATERALAnterolateral approach through mini-open thoracotomy for the treatment of giant thoracic disc herniationsÁlvaro Lima, Bruno Santiago

GRANULOMA DE CORPO ESTRANHO NA ÍRIS. CASO CLÍNICOIris foreign-body granuloma. Case reportFilomena Ribeiro, Bernardo Feijóo

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REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEALLaparoscopic ureteroneocistostomy with psoas hitch in a duplex urinary unit for the treatment of ureterovaginal fi stulaTito Palmela Leitão, Sónia Barata, Adalgisa Guerra, Filipa Beja Osório

PEDIATRIA, GINECOLOGIA-OBSTETRÍCIA, ANESTESIOLOGIA, MEDICINA MOLECULAR, IMAGIOLOGIA, MEDICINA FÍSICA E DE REABILITAÇÃOPEDIATRICS, GYNECOLOGY-OBSTETRICS, ANESTESIOLOGY, MOLECULAR MEDICINE, IMAGIOLOGY, PHYSICAL MEDICINE AND REHABILITATION

UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇADiscitis in children. Case reportAna Elisa Costa, Ana Carvalho, Pedro Fernandes, Carla Conceição

UM CASO CLÍNICO DE ENDOMETRIOSE MULTIFOCAL COM ENVOLVIMENTO DO CEGOMultifocal endometriosis with cecum involvement. Case reportJoão Sequeira Alves, Carlos Vaz, Adalgisa Guerra, David Serra, António Setúbal

IMPLICAÇÕES ANESTÉSICAS DA DOENÇA DE POMPE. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO Anesthetic implications of Pompe’s disease. Case reportMargarida Fonseca, Cristina Pestana, José Bismarck, Paulo Roquete

A IMPORTÂNCIA DA ANESTESIOLOGIA NA MEDICINA DO PERIOPERATÓRIO NA DOENÇA DE VON WILLEBRAND The role of anesthesiology in perioperative medicine in von Willebrand’s diseaseCristina Pestana, Rodrigo Roquete, João Valente, Hugo Correia, José Bismarck, Elisa Vedes, Augusto Ministro, Germano do Carmo

UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CTAsymptomatic tuberculous pleuritis identifi ed with 18F-FDG PET-CT. Case report Vanessa Sousa, Cristina Loewenthal, Maria do Rosário Vieira, Graça Freitas, Fernando Martelo

CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICASPeriosteal chondroma. Review of the imaging featuresP. Diana Afonso, Vasco Mascarenhas, Augusto Gaspar, Pedro Oliveira, Luís Correia, Rui Lampreia

PATOLOGIA DA TIROIDE COMO FATOR DE RISCO PARA A CAPSULITE ADESIVA DO OMBROThyroid disease as a risk factor for adhesive capsulitis of the shoulderJoão Pinto Coelho, Nuno Martins, Paloma Valdivia

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A sexta edição do Livro de Casos Clínicos do Hospital da Luz representa, mais uma vez, a vivência de uma instituição hospitalar em permanente inovação nas mais diversas áreas clínicas. Contudo, o que torna o Hospital da Luz tão especial é a comunhão perfeita que tem conseguido estabelecer entre a tecnologia, estandarte típico da inovação, a humanidade e a vida. Porque uma coisa não faz sentido sem as outras. Porque a inovação e a tecnologia têm de estar ao serviço dos doentes. O debate hoje no setor da saúde é dominado pela inevitabilidade da efi ciência por forma a assegurar a sustentabilidade do fi nanciamento da prestação de cuidados de saúde no futuro. A evolução clínica e tecnológica, sendo inexorável e magnífi ca no setor da saúde pelos benefícios que tem trazido à esperança de vida e ao bem estar das populações, representa também a mais séria ameaça à capacidade de fi nanciamento do setor a prazo. Por isso, quem paga exige cada vez mais a análise comprovada do custo-benefício das novas tecnologias, impondo naturalmente limi-tações à sua introdução. Do ponto de vista estratégico, a nossa instituição apostou, desde a sua génese, num posicionamento de vanguarda e incentiva os seus profi ssionais para um ciclo de permanente renovação e novas fronteiras de conhecimento, tendo sempre presente que o desafi o da efi ciência se deve centrar na redução do desperdício e não na limitação à abertura de novos caminhos terapêuticos e de diagnóstico. A inovação requer investimento e visão de longo prazo. Requer relações com as entidades que fi nanciam os cuidados de saúde baseadas na transparência e na integridade. Requer parcerias com as empresas fornecedoras baseadas na efi cácia, na confi ança e na partilha de risco. Como instituição de topo que é, o Hospital da Luz assume plenamente esse compromisso, tendo sido

continuamente pioneiro na introdução de novas tecnologias e desenvolvido uma capacidade ímpar de reconhecer o potencial da inovação que conduz à criação de valor num ciclo de longo prazo. O Corpo Clínico do Hospital da Luz está de parabéns neste livro, justifi cando, mais uma vez, por que merece estar entre os melhores. A todos os profi ssionais o meu agradecimento sentido pela ambição, competência e, sobretudo, pela capacidade extraordinária de antecipar o futuro. Acredito profundamente que é isso que faz de nós uma grande equipa ao serviço dos nossos doentes e do desenvolvimento científi co e tecnológico. A razão pela qual todos os dias fazemos consistentemente a diferença. O Hospital da Luz continua o seu caminho de luz, vida e renascimento!

Isabel VazPresidente do Conselho de Administração do Hospital da LuzPresidente da Comissão Executiva da Espírito Santo Saúde

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O Hospital da Luz tem divulgado desde a sua abertura, no livro que anualmente publica, inúmeros dos seus casos clínicos, os quais demonstram a capacidade diagnóstica, os meios utilizados, as atitudes terapêuticas e os resultados de todas as nossas práticas.Este ano, continuando a seguir o desafi o feito há sete anos pela Eng.ª Isabel Vaz, publicamos o sexto livro de «Casos Clínicos», dedicado ao ano de 2012-2013. Nele, estão retratados casos complexos, de patologias diversas, cobrindo várias especialidades, para os quais foram utilizados meios diagnósticos de elevada qualidade e tecnologia e terapêuticas médicas e cirúrgicas modernas. Tal como nas anteriores edições, os casos agora divulgados são mais um exemplo da colaboração multidisciplinar e do trabalho de equipa que têm sido, desde sempre, apanágio do Hospital da Luz.

No seu curto tempo de existência, esta Instituição tem demonstrado igualmente um forte dinamismo na área formativa, que este livro também contempla e que não posso deixar de enaltecer. Manifesto, pois, por todas estas razões - e mais uma vez -, o meu orgulho em ser Diretor Clínico deste já tão prestigiado Hospital.

O momento que o País atravessa é difícil e coloca-nos perante desafi os inesperados. Mas, quando se trabalha com um objetivo preciso, uma orientação clara e tendo sempre em vista a qualidade do serviço e a excelência nos atos clínicos, tudo é possível.

É assim que, através do esforço de todos os profi ssionais, continuamos a conseguir elevar o nome do Hospital e, através dele, o da medicina privada portuguesa.

Agradeço a todos por isso mesmo - pois sei que toda esta atividade é resultado dos vossos conhecimentos, experiência, motivação, dedicação e empenho.

Como é habitual, renovo os meus agradecimentos ao Prof. Dr. Dinis da Gama, editor dos «Casos Clínicos Hospital da Luz» desde a sua primeira publicação e a quem me ligam laços de uma já longa amizade que ultrapassa largamente a relação profi ssional, bem como à Prof.ª Dr.ª Marina Fraústo da Silva. A vossa persistência, qualidade científi ca e dedicação, tornaram esta publicação num marco da moderna prática clínica.

E quanto ao futuro, espero que consigamos melhorar tudo o que até aqui construímos. Desejo que os colegas que, até hoje, contribuíram para estes livros mantenham a mesma motivação e disposição; e que aqueles que ainda não o fi zeram se juntem a este projeto num futuro próximo.

José RoquetteDiretor Clínico do Hospital da Luz

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Tradicionalmente, as publicações médi-cas de caráter regular, como é o caso presente, têm, entre outros, o mérito de revelar casos clínicos raros, por vezes únicos, apresentações clínicas invulgares, metodologias diagnósticas modernas e abordagens terapêuticas singulares, originais ou criativas, recorrendo por vezes a tecnologias pioneiras ou de vanguarda.

Uma coletânea de livros desta natureza refl ete, no seu conjunto, a história do progresso e desenvolvimento da Medicina. Ano após ano, é-nos facultada a possibilidade de apreciar o percurso histórico e as etapas percorridas pela ciência médica em geral e pela cirurgia em particular, a qual registou, nas últimas décadas, três autênticas “revoluções”: a cirurgia laparoscópica, as técnicas endovasculares e a cirurgia robótica. São vários os campos de aplicação desta última, em crescente expansão, como é possível constatar através dos vários casos clínicos ora apresentados, em que foi utilizada em patologia urológica, em terapêuticas bariátricas, em oncologia e, mais recentemente, na revascularização do miocárdio, o que ocorre pela primeira vez no nosso país e não pode deixar de ser justamente considerado como louvável e permitir a abertura de mais um capítulo, credor de largas perspetivas de expansão e desenvolvimento, a curto prazo.

Em contraponto a esta vaga de trans-formações de índole tecnológica, são apresentados interessantes trabalhos provindo da área da medicina paliativa e controvérsias relativamente a opções terapêuticas em fi m de vida, que nos obrigam a refl etir sobre o caráter fi nito da existência e qual o verdadeiro signifi cado do sofrimento, da despersonalização e da angústia que acompanham esses últimos dias e que nenhuma tecnologia, por mais sofi sticada que seja, poderá algum dia prevenir ou modifi car.

São duas formas ou maneiras de ver a medicina, dir-se-á, que se deseja, veementemente, que se completem ou harmonizem. Efetivamente, a imparável “revolução” tecnológica da atualidade e o seu deslumbramento não podem deixar de tomar em consideração que não estão ao serviço da doença, mas sim do homem e das suas fragilidades e devem ser encaradas tão somente como um meio e não como um fi m em si, tal como nos ensina o código de valores que Hipócrates formulou há séculos e que, não obstante isso, mantém-se e deve manter-se vivo e pleno de atualidade, mais do que nunca, na era da “revolução tecnológica”.

Finalmente, um outro facto de natureza diferente merece ser digno de citação: alguns dos trabalhos publicados nesta edição dos “Casos Clínicos” foram

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realizados por internos dos Internatos das Especialidades em vigor no Hospital da Luz, ou receberam a colaboração de estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, ao abrigo de programas especiais de cooperação no ensino. Cumpre assim a Instituição mais um dos objetivos que, desde os primórdios, intentou prosseguir: estimular e desenvolver o ensino médico,

o que é, para além de um imperativo ético de uma medicina de qualidade, uma forma inteligente de garantir e salvaguardar a continuidade do futuro e dos seus propósitos.

A. Dinis da GamaEditor

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MEDICINA INTERNA

CARDIOLOGIA

CUIDADOS PALIATIVOS

ENDOCRINOLOGIA

PNEUMOLOGIA

NEUROLOGIA

IMUNOALERGOLOGIA

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PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO Acute generalized exanthematous pustulosis and multiple organ dysfunction. Case report

A pustulose exantemática generalizada aguda (PEGA) é caracterizada pela formação de pústulas estéreis não foliculares distribuídas de forma difusa, desencadeada, na maioria dos casos, por um fármaco e acompanhada de sintomatologia sistémica, tal como febre e astenia. De uma forma geral, o prognóstico da doença é benigno. No entanto, em casos raros, pode desencadear disfunção de órgão. Os autores apresentam o caso clínico de um doente de 41 anos de idade, com história conhecida de nefropatia de Berger, admitido no contexto de síndrome febril com exantema, que rapidamente evoluiu para PEGA com disfunção circulatória, renal, respiratória e hepática, tendo sido necessário internamento em cuidados intensivos. Apesar de elevada suspeição relativamente ao alopurinol, não foi possível estabelecer relação de causalidade, estando planeado patch test.

Acute generalized exanthematous pustulosis (AGEP) presents as multiple disseminated sterile non-follicular pustules, most often caused by drugs and associated with systemic symptoms, like fever and fatigue. Prognosis is generally benign. However, in rare cases, AGEP can cause organ dysfunction. The authors report the case of a 41-year old man, with previous history of Berger´s nephropathy, admitted at the hospital with fever and an exanthema that rapidly progressed to AGEP with circulatory, renal, respiratory and hepatic failure. He was admitted in the intensive care unit. Allopurinol was the main suspect; however it was not possible to prove causality. Therefore, a patch test is needed.

ELISA VEDESPEDRO RAIMUNDO

JOSÉ CAMPOS LOPESPEDRO OLIVEIRA

JOÃO SÁ

Departamentos de Medicina Interna e Medicina Intensiva, de Dermatologia e de Anatomia Patológica

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Diversas patologias podem causar erupções pustulosas cutâneas. Inicial-mente interpretada como psoríase pustulosa, só em 1980 surgiu a defi nição de pustulose exantemática generalizada aguda (PEGA) para caracterizar uma erupção pustulosa estéril não folicular que ocorre de forma difusa, com edema e eritema de predomínio nas pregas e face, acompanhada de febre e histologicamente sem alterações psoriáticas, mas com infi ltração por neutrófi los e exocitose de alguns eosinófi los.1,3

A PEGA tem uma incidência de 1 a 5 casos por milhão de pessoas/ano. É pouco frequente nas crianças, mais frequente nas mulheres, está sobretudo associada a fármacos (90% dos casos), mas pode surgir também em contexto de infeção viral - enterovírus, citomegalovírus (CMV), Epstein-Barr vírus (EBV), vírus da hepatite B, parvovírus B19 -,

infeção a Escherichia coli, Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae, Echinococcus granulosus, picadas de insetos, metais pesados, suplementos alimentares, quimioterapia, radiação e PUVA.1,2,3

Habitualmente, a PEGA não causa disfunção orgânica signifi cativa, com exceção de uma ligeira diminuição da clearance de creatinina e de um aumento moderado das transaminases. É autolimitada, com resolução em menos de quinze dias.1,3

Os autores apresentam um caso de PEGA num doente com nefropatia a imunoglobulina A (IgA) (doença de Berger), que desencadeou uma exsudação profusa, resultando em disfunção circulatória e renal, com necessidade de suporte em ambiente de cuidados intensivos.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 41 anos de idade, leucodérmico, com insufi ciência renal por doença de Berger, sem critérios de diálise crónica. Medicado em ambulatório com rosuvastatina, alopurinol, enalapril, prednisolona e pantoprazol.

Cerca de oito dias antes do internamento, o doente iniciou um quadro febril de 38 ºC, acompanhado de lesões cutâneas eritematosas, com cerca de 5 mm de diâmetro, confl uentes, na face anterior do tórax inferior. Negava mialgias, artralgias,

cefaleias, sintomatologia respiratória, gastrointestinal ou urinária. Não tinha história de contacto com animais ou águas paradas, viagens recentes ou outra epidemiologia a destacar. Sem alergias conhecidas.

Por febre persistente com manutenção do exantema recorreu ao médico assistente e foi encaminhado a um serviço de urgência, de onde teve alta após algumas horas. Por manutenção da sintomatologia, no dia seguinte regressou ao médico assistente e foi internado durante uma noite. Após

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PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO

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a alta, por recorrência da febre e agravamento do exantema, mais extenso e pruriginoso, recorreu ao Hospital da Luz.

Na admissão, o doente apresentava- -se vigil, hemodinamicamente estável, normotenso e normocárdico, bem oxigenado, sem sinais de difi culdade respiratória. Apresentava exantema macular eritematoso, confl uente, pruriginoso, com pústulas, que se tinha generalizado a todo o tórax,

abdómen e extremidades (Fig. 1). Não tinha alterações na auscultação cardiopulmonar nem na observação abdominal.

Analiticamente apresentava leucocitose (16x109 células/L), com eosinofi lia relativa (20%) e agravamento da função renal (creatinina de 4 mg/dL, tendo como valor de base 2,5 mg/dL). Apresentava também padrão de citocolestase (Quadro I).

Fig 1. Exantema macular eritematoso e confl uente, com pústulas, no tórax (A,B), abdómen, membros superiores (C,D) e inferiores (E,F)

Por suspeição de toxidermia, foi suspensa a terapêutica com rosu-vastatina, alopurinol, furosemida e prednisolona. Foram também efetuadas serologias para vírus da imunodefi ciência humana (VIH), sífi lis, Rickettsia, Brucela, Toxoplasma, hepatites A, B e C, citomegalovírus, vírus Epstein-Barr e Salmonela, todas com resultados negativos. O doente foi medicado sintomaticamente com hidroxizina e paracetamol. Foi igualmente efetuada reposição de fl uidos, tendo em conta o agravamento

da função renal. Pediu-se parecer da Dermatologia, que confi rmou tratar--se de uma lesão exantematosa sem critérios de gravidade, colocando a hipótese diagnóstica de pustulose exantemática generalizada aguda. No entanto, observou-se rápido agravamento do estado geral do doente. Em cerca de 24 horas, as lesões passaram a ocupar 95% da extensão corporal, com envolvimento palmo-plantar, aumento muito marcado do número de pústulas e exsudação profusa sobretudo na face, couro

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cabeludo e tórax, poupando mucosas (Fig 2).

Subsequentemente, observou-se hipo-tensão (tensão arterial média 45 mmHg), taquicardia (110 bpm), polipneia (30 cpm), saturação periférica de 98% (FiO2 30%), anúria e acidemia metabólica (pH 7,22, HCO3

- 16 mmol/L, lactato 14 mg/dL),

pelo que o doente foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI).

Procedeu-se a reposição hídrica com cristaloides, para um défi ce calculado de 10 a 14 L que repôs nas primeiras 12 horas. A monitorização com LiDCO Rapid confi rmou o elevado défi ce de volume, com uma variação da pressão de

Quadro I. Avaliação analítica sequencial

Parâmetro (unidade)Valores de referência

Dias de internamento hospitalarUm mês após a

altaDia 3 Dia 8 Dia 12

Hemoglobina (g/dL) 13,5 - 17,5 10,1 9,6 9,3 12,9

Leucócitos (x109/L) 4,0 - 10,0 27,9 14,9 11,9 10,2

Neutrófi los (x109/L) 1,5 - 7,59,6

(66%)8,2

(55%)3,7

(31%)5,9

(59%)

Eosinófi los (x109/L) <0,62,4

(10%)4,2

(28%)0,7

(8%)0,3

(3%)

Ureia (mg/dL) 15 - 39 156 132 101 135

Creatinina (mg/dL) 0,6 - 1,3 4,03 3,08 2,47 2,43

Transaminase glutâmico oxalacética, GOT, AST (UI/L) 15 - 37 58 120 129 31

Transaminase glutâmico pirúvica, GPT, ALT (UI/L) 30 - 65 176 229 359 115

Fosfatase alcalina, FA (UI/L) 50 - 136 211 371 327 92

Gama glutamiltransferase, GGT (UI/L) 15 - 85 163 681 899 231

Desidrogenase láctica, LDH (UI/L) 85 - 227 390 446 543 226

Bilirrubina T (mg/dL) <1,10 0,4 0,6 0,4 0,39

Potássio (mEq/L) 3,5 - 5,1 5,1 5,3 5,2 5,4

Proteína C reativa (mg/dL) <0,6 9,5 7,56 1,68 0,21

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PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO

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Fig. 3. Biópsia de punção cutânea com pústulas intraepidérmicas subcórneas a par de alterações de hiperplasia, espongiose, hiperqueratose e edema da derme num padrão compativel com PEGA

pulso de 40%, elevado índice cardíaco (5,7 L/min/m2) e diminuição da resistência vascular periférica. Numa fase inicial, foi também administrado bicarbonato de sódio. Tendo em conta as múltiplas lesões de continuidade, com exsudação, optou--se por colocar o doente em isolamento de contacto, em pressão positiva e com lençóis esterilizados. Foram efetuadas hemoculturas, urocultura e colheita do exsudado. Uma vez que tinha recorrido a várias instituições de cuidados de saúde, com um internamento prévio, optou-se por iniciar antibioterapia empírica com linezolide.

Foi novamente pedido novo parecer da Dermatologia, que confi rmou um quadro de dermatose maculo-pustulosa generalizada, poupando as mucosas,

Fig. 2. Agravamento do exantema, com aumento do número de pústulas e exsudação profusa, sobre-tudo na face (A), couro cabeludo e tórax (B), com envolvimento também dos membros superiores (B) e inferiores (C e D)

mantendo-se a suspeita de PEGA de etiologia a esclarecer. Foi iniciada metilprednisolona, 1 mg/kg, e efetuada biópsia, que confi rmou a hipótese diagnóstica (Fig. 3).

Page 24: Casos clinicos

CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O diagnóstico de PEGA é baseado na morfologia das lesões cutâneas, no curso da doença e nas características histológicas. Outras síndromes podem apresentar lesões semelhantes às da PEGA, entre elas a psoríase pustulosa, vasculite pustulosa, síndrome de hipersensibilidade a fármacos ou DRESS (Drug Rash,

Eosinophilia, Systemic Symptoms). Esta última cursa com erupção maculopapular generalizada e com edema da face, podendo resultar em febre, lesão hepática e nefrite intersticial. A eosinofi lia é característica desta síndrome e estava presente no caso descrito. No entanto, histologicamente as diferenças são claras.1

Apesar da instabilidade hemodinâmica inicial, com prostração, hipotensão persistente, entrada em fi brilhação auricular, agravamento da função renal e oligúria, o doente acabou por responder à fl uidoterapia.

Observou-se recuperação cardio-circulatória e do débito urinário (0,8-1 ml/kg/h), sem necessitar de aminas ou substituição renal. Por polipneia persistente e dessaturação, o doente necessitou ventilação não invasiva (VNI).

Observou-se emaciação, no contexto da redução da resistência vascular sistémica e reposição hídrica, com derrame pleural bilateral.

Procedeu-se a drenagem do líquido pleural, tratando-se de um transudado.

Quanto ao exantema, este migrou para as extremidades, com algumas fl ictenas e exsudação, à medida que as lesões iniciais se tornavam mais secas e descamativas. Passados quatro dias, foi suspensa a terapêutica com linezolide, por ausência de evidência infecciosa. A dermatose entrou em fase de resolução, com muito menor

edema, algo exsudativo nos membros superiores e com maceração nas pregas. Foi iniciada terapêutica hidratante tópica com creme nas pregas e loção na restante superfície corporal e iniciado desmame da corticoterapia sistémica. Observou-se descamação progressiva e resolução ao fi m de cerca de 10 dias.

O doente necessitou de internamento na UCI durante um período de sete dias, tendo os restantes sete dias permanecido na enfermaria. Aqui, por síndrome febril de novo, com isolamento de Staphylococcus aureus meticilino-sensível em hemocultura e Enterobacter cloacae em urocultura, o doente cumpriu antibioterapia com meropenem e linezolide, com resolução do quadro infeccioso.

No momento da alta, o doente apresentava uma quase normalização das lesões cutâneas, com descamação das extremidades em molde e retorno da função renal aos valores basais (creatinina 2,47 mg/dL). O doente regressou ao domicílio, medicado com esomeprazol 20 mg/dia, lepicortinolo 60 mg/dia, hidroxizina 12,5 mg/dia, lorazepam 2 mg/dia e lidocaína gel.

DISCUSSÃO

Page 25: Casos clinicos

PUSTULOSE EXANTEMÁTICA GENERALIZADA AGUDA E DISFUNÇÃO MULTIORGÂNICA. CASO CLÍNICO

23

Quadro II. Escala de validação da PEGA de acordo com o grupo EuroSCAR

MORFOLOGIA

Pústulas Típicas Compatíveis Insufi cientes

210

Eritema Típico Compatível Insufi ciente

210

Distribuição / Padrão Típicos Compatíveis Insufi cientes

210

Descamação pós-pustular Sim Não / Insufi ciente

10

CURSO DA DOENÇA

Envolvimento da mucosa SimNão

-2 0

Início agudo (<10 dias) Sim Não

0-2

Resolução < 15 dias Sim Não

0-4

Temperatura > 38ºC Sim Não

10

Neutrofi lia > 7x109/L Sim Não

10

HISTOLOGIA

Outra doença -10

Sem histologia 0

Exocitose de polimorfonucleares 1

Pústulas infracorneanas ou intraepidérmicas não espongiformes; pústulas não especifi cadas com edema papilar ou infracorneano; pústulas não especifi cadas sem edema papilar

2

Pústulas espongiformes infracorneanas ou intraepidérmicas com edema papilar 3

Legenda: -18 a 0: sem PEGA; 1 a 4: possível; 5 a 7: provável; 8 a 12: defi nitivo.2,3

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA1. Sidoroff A, Halevy S, Bavinck JNB, Vaillant L, Roujeau JC. Acute generalized exanthematous pustulosis (AGEP) – A clinical reaction pattern. J Cutan Pathol 2001; 28:113-9.2. Sidoroff A, Dunant A, Viboud C, et al. Risk factors for acute generalized exanthematous pustulosis (AGEP) – results of a multinational case-control study (EuroSCAR). Br J Dermatol 2007; 157:989-96. 3. Speeckaert MM, Speeckaert R, Lambert J, Brochez L. Acute generalized exanthematous pustulosis: an overview of the clinical, immunological and diagnostic concepts. Eur J Dermatol 2010;20(4):425-33. 4. Harr T, French LE. Toxic epidermal necrolysis and Stevens-Johnson syndrome. Orphanet J Rare Dis 2012;5:39.

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A psoríase e a vasculite pustulosas são caracterizadas por lesões bolhosas de dimensões variadas, necrose de queratinócitos e pior progressão clínica. À admissão na UCI, o doente apresentava um quadro de hipotensão persistente, mais característico dos casos de síndrome de Stevens-Johnson ou de necrólise epidérmica tóxica (NET). No entanto, estas cursam com lesões coalescentes, frequentemente de centro necrótico, com sinal de Nikolsky positivo e envolvem as mucosas de forma exuberante, o que não se verifi cou no caso analisado.4,5 Apesar de pouco frequente, existem três casos de PEGA com disfunção de órgão ou choque descritos na literatura.6,7,8 Utilizando o sistema de validação do grupo EuroSCAR para diagnóstico de PEGA, o doente em causa pontua 12 valores, correspondendo a um diagnóstico defi nitivo (Quadro II). Alguns testes podem auxiliar na determinação do agente causal. O gold standard em termos de sensibilidade e especifi cidade é o teste de provocação com o fármaco suspeito. No entanto, em casos

de choque ou disfunção de órgão este teste está contraindicado. Desta forma, os patch tests surgem como alternativa, apresentando uma sensibilidade de 50 a 80%.1 No caso descrito, o patch test pode ser útil para determinar qual o fármaco que desencadeou a doença, uma vez que muita da medicação previamente efetuada pelo doente deverá voltar a ser necessária, tendo em conta a doença de Berger. Existem também testes para detetar in vitro qual a etiologia da PEGA, entre eles, o teste de transformação linfocitária, o teste de desgranulação mastocitária e o do fator de inibição da migração macrofágica. No entanto, estes não são usados habitualmente na clínica.1 Contrariamente às situações de síndrome de Stevens-Johnson ou NET, nas quais a mortalidade pode chegar aos 90% em situações de disfunção de órgão, na PEGA o prognóstico é benigno. A mortalidade na PEGA está associada a sobre-infecção das soluções de continuidade, pelo que se impõem adequadas medidas de prevenção.1,4

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HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR

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RESUMO Abstract

HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR Hyperthyroidism as a cause of pulmonary hypertension

Na literatura médica, é rara a referência ao hipertiroidismo como causa de hipertensão pulmonar. Os autores relatam o caso clínico de um homem de 47 anos, previamente saudável, internado por um quadro clínico de dispneia de esforço, edemas periféricos e aumento do volume abdominal. Na admissão, apresentava-se em anasarca e com auscultação cardíaca arrítmica. O ecocardiograma mostrou sinais de sobrecarga de pressão do ventrículo direito e hipertensão pulmonar moderada. Laboratorialmente, confi r-mou-se uma doença de Graves. Realizou tomografi a computorizada que mostrou adenopatias generalizadas, cuja biópsia excisional revelou hiperplasia folicular reativa. Excluiu-se embolia pulmonar com cintigrafi a de ventilação-perfusão e o ecocardiograma

In the medical literature the reference of hyperthyroidism as cause of pulmonary hypertension (PHT) is infrequent. The authors report the clinical case of a 47 year-old man, previously healthy, admitted because of effort dyspnea and peripheral edema. On admission he was in anasarca, with arrhythmic heart sounds. The echocardiography demonstrated a dilated right heart and moderate PHT. Laboratory tests confi rmed a Graves’ disease. A CT scan evidenced polyadenopathies, which the biopsy showed to be reactive. Pulmonary embolism was excluded through a ventilation-perfusion scintigraphy. A transesophagic echocardiography showed no intracardial shunt. Diuretic therapy and beta-blockage were administered with an improvement of the fl uid overload. Under synthetic

JOÃO MELO ALVESNATÁLIA MARTO

ALEXANDRA BAYÃO HORTAJOÃO SÁ

Departamento de Medicina Interna e Medicina Intensiva

Page 28: Casos clinicos

CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A hipertensão pulmonar (HTP) é um problema frequente na prática clínica, alvo de uma abordagem multidisciplinar por internistas, cardiologistas, pneu-mologistas e outros profi ssionais. Os autores apresentam o caso clínico de um homem de 47 anos de idade com

apresentação primária de uma síndrome de hipertensão pulmonar, em que as principais etiologias foram excluídas e o diagnóstico e tratamento do estado hipertiroideu subjacente resultaram na resolução do quadro clínico inicial.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente de sexo masculino, de 47 anos de idade, previamente saudável, recorreu ao Atendimento Médico Permanente (AMP) do Hospital da Luz por um quadro clínico de agravamento progressivo de dispneia de esforço, astenia, edema dos membros inferiores e aumento do volume abdominal.

Cerca de nove meses antes iniciara queixas de ansiedade, astenia e emagrecimento (perda ponderal não quantifi cada), não tendo, nessa altura,

recorrido ao médico. Pouco tempo depois, numa consulta com o médico assistente por uma erisipela do membro inferior, foi detetado incidentalmente um hipertiroidismo, para o qual não iniciou terapêutica.

À admissão no AMP, o doente apresentava-se ansioso, emagrecido, eupneico em repouso, apirético e normotenso. À palpação identifi cavam--se adenopatias duro-elásticas móveis, com 1 a 1,5 cm, palpáveis nas cadeias

transesofágico não revelou shunt intracardíaco. O doente iniciou terapêutica diurética com melhoria da sobrecarga hídrica. Sob bloqueador-beta e anti-tiroideu de síntese, verifi cou--se cardioversão a ritmo sinusal. Reavaliado três meses depois, constatou-se remissão da hipertensão pulmonar, da dilatação das câmaras direitas e das adenomegálias. Os autores admitem assim a possibilidade de uma hipertensão pulmonar secundária ao hipertiroidismo, realçando a importância de considerar o hipertiroidismo na investigação de casos de hipertensão pulmonar.

anti-thyroid drugs the atrial fi brillation was cardioverted into sinusal rhythm. Three months later a remission of the PHT, right heart dilation and adenopathies was verifi ed. The authors admit the possibility of PHT secondary to a hyperthyroidism, and stress the importance of considering hyperthyroidism in the PHT workup.

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HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR

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cervicais, axilares e inguinais, e bócio de superfície bosselada, elástico e móvel. À auscultação cardiopulmonar eram percetíveis diminuição do murmúrio vesicular no terço inferior do hemitórax direito, tons arrítmicos e sopro sistólico paraesternal esquerdo II/VI na auscultação cardíaca. O abdómen era livre, com hepatomegália até cerca de 4 cm abaixo do bordo costal e verifi cava--se edema dos membros inferiores até ao joelho, com sinal de godé. Analiticamente, destacavam-se anemia normocítica normocrómica, discreta trombocitopenia, ligeiro aumento dos parâmetros de colestase e hormona estimulante da tiroide (TSH) suprimida, com demais valores bioquímicos dentro da normalidade (Quadro I). O eletrocardiograma (ECG) revelou ritmo de fi brilhação auricular com resposta

ventricular de aproximadamente de 120 batimentos/minuto. A radiografi a do tórax evidenciou um aumento do índice cardiotorácico e a obliteração do recesso costofrénico direito. O doente foi internado para estudo.

Foi instituída, de início, terapêutica com diurético e estratégia de controlo de frequência, com evolução favorável do quadro congestivo (Quadro II). Foi efetuado um ecocardiograma transtorácico (ETT) que revelou HTP (pressão sistólica da artéria pulmonar, PSAP de 46 mmHg), dilatação moderada das câmaras cardíacas direitas e veia cava inferior de diâmetro aumentado e com perda da cinética respiratória, sem outras alterações de relevo (Fig. 1 a 3).

Quadro I. Destaque das análises clínicas na admissão

Parâmetro (unidade)Valores de referência

Valores do doente na admissão

Hemoglobina (g/dL) 13,0 - 18,0 10,3

Volume globular médio, VGM (fL) 85 - 100 82

Hemoglobina globular média, HGM (pg) 27 - 34 27

Índice de distribuição eritrocitária, RDW (%) 12 - 15 17,3

Leucócitos (x109/L) 4,0 - 11,0 5,8

Plaquetas (x109/L) 150 - 450 106

Tempo de tromboplastina parcial ativada, aPTT (seg) 22 - 24 35,5

Gama glutamiltransferase, GGT (UI/L) 11 - 64 226

Sideremia (µg/dL) 60 - 160 43

TSH (µUI/mL) 0,35 - 5,5 <0,05

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Quadro II. Terapêutica no internamento

Composto Via de administração Dose Periodicidade

Furosemida Intravenosa (IV) 20 mg 8/8 horas

Propranolol Oral (PO) 40 mg 8/8 horas

Enoxaparina Subcutânea (SC) 60 mg 12/12 horas

Ranitidina PO 150 mg Uma vez/dia

Tiamazol PO 15 mg 12/12 horas

O doente fez uma cintigrafi a de ventilação/perfusão que não revelou defeitos segmentares, afastando-se assim a hipótese diagnóstica de tromboembolismo pulmonar. Realizou ainda um ecocardiograma transesofágico, que excluiu shunt intracardíaco. A ecografi a tiroideia revelou uma glândula assimetricamente aumentada, estruturalmente heterogénea, bossela-da, associada a pequenas formações ganglionares jugulo-carotídeas e submandibulares bilaterais. Em tomo-grafi a computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica sem contraste,

Fig. 1 Ecocardiograma transtorácico. PSAP = 46 mmHg

Fig. 3 Ecocardiograma transtorácico. Dilatação das câmaras direitas

Fig. 2 Ecocardiograma transtorácico. Veia cava inferior

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HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR

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Quadro III. Química e imunologia clínica (internamento)

Parâmetro (unidade) Valores de referênciaValores do doente no internamento

Triiodotironina,T3 (nmol/L) 0,92 - 2,79 11,16

T3 livre, FT3 (pmol/L) 3,5 - 6,5 23,83

Tiroxina, T4 (nmol/L) 63 - 151 337

T4 livre, FT4 (pmol/L) 11,5 - 22,7 73,9

Tiroglobulina (ng/mL) 0,2 - 70,0 >1.000,0

Gamaglobulina (%) 6,2 - 15,4 17,8

Pro-BNP (pg/mL) <125 739,9

Ac anti-recetor de TSH (U/L) <1,5 >40,0

Ac anti-tiroglobulina (UI/L) <60 Negativo

Ac anti-peroxidase microssomal, TPO (UI/L) <60 >1.300

ANA, pANCA, cANCA --- Negativo

objetivaram-se adenopatias em loca-lização mediastínica, lomboaórtica, mesentérica e inguinal (Fig. 4), sugestivas de linfoma ou de infeção viral sistémica; adicionalmente, verifi cou-se cardiomegália e discreto derrame pleural direito. Foi feita biópsia excisional de um gânglio linfático cervical com 12 mm, que revelou hiperplasia folicular reacional.

As análises adicionais no internamento evidenciaram FT3 e FT4 aumentadas e títulos elevados de anticorpos anti-receptor da TSH (TRAb) e anti-peroxidase microssomal. Os anticorpos antinucleares (ANA), anticorpos anti-citoplasma dos neutrófi los (ANCA) e serologias de doenças infeciosas (HIV, EBV, CMV, VDRL) foram negativos (Quadro III).

Foi introduzido na terapêutica um anti-tiroideu de síntese, verifi cando-se a cardioversão a ritmo sinusal.

Após sete dias de internamento, o doente teve alta em estabilidade clínica, referenciado para consultas de endocrinologia e de medicina interna e mantendo a terapêutica do internamento.

Passados três meses, quando reavaliado em consulta, constatou-se a normalização da função tiroideia. A TC de controlo revelou que, não obstante a persistência de uma glândula tiroideia aumentada, houve regressão do número e volume das adenopatias descritas, assim como resolução do derrame pleural (Fig. 5).

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Um novo ETT documentou um ventrículo esquerdo não dilatado, com paredes de espessura normal, boa função sistólica global sem alterações cinética segmentar, tronco e artérias pulmo- nares normais, ausência de alterações valvulares morfológicas, moderada dilatação de ambas as aurículas e ligeira dilatação do ventrículo direito, fl uxo mitral anterógrado monofásico, regurgitação mitral minor, regurgitação tricúspide moderada (raio de PIsA 0,7 cm) e PSAP de 31 mmHg, sem alterações do pericárdio e veia cava inferior, massas ou comunicações intercavitárias.

Foram assumidos como diagnósticos fi nais doença de Graves com tirotoxicose, HTP secundária ao hipertiroidismo tipo V da classifi cação da OMS 20081 (Quadro IV) e hiperplasia linfática associada ao hipertiroidismo.

Quadro IV. Classifi cação da hipertensão pulmonar (OMS, revisão de 2008)1

Grupo Exemplos

Grupo I - Patologia arterial

IdiopáticaFamiliarArteriopatiasFármacos/tóxicos

Grupo II - Patologia do coração esquerdoDisfunção sistólicaDisfunção diastólicaValvulopatias

Grupo III - Doença pulmonar e/ou hipoxemiaDoença pulmonar obstrutiva crónicaDoença do interstícioSíndrome de apneia obstrutiva do sono

Grupo IV - Doença trombótica/embólica crónica

Tromboembolismo pulmonarTrombose local (p. ex. paraneoplásica)

Grupo V - Mecanismos multifatoriais pouco esclarecidos

Doenças hematológicas (p. ex. mieloproliferativa)Doenças sistémicas (p. ex. sarcoidose)Doenças metabólicas (p. ex. glicogenose)

Fig. 4 Tomografi a computorizada. Adenopatias mediastínicas e derrame pleural

Fig. 5 Tomografi a computorizada. Adenopatias em regressão em número e volume. Resolução do derrame

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HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR

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DISCUSSÃOOs autores apresentam o caso clínico de um adulto jovem que se apresentou com um quadro clínico de insufi ciência cardíaca direita e fi brilhação auricular. A realização do ecocardiograma transtorácico revelou a existência de uma PSAP moderadamente elevada, consistente com o diagnóstico de HTP. A classifi cação vigente dos subtipos de HTP divide-os em cinco categorias, de acordo com o mecanismo.1 A epidemiologia da HTP não está sufi cientemente caracterizada para todos os grupos, estimando-se que a prevalência do grupo 1 se encontra entre 5-15 casos por milhão.2,3 É uma patologia progressiva, frequentemente fatal se não tratada, cuja história natural e prognóstico variam de acordo com a etiologia, e que culmina habitualmente em falência circulatória e respiratória por insufi ciência cardíaca direita.4

A semiologia da HTP é pouco específi ca, sobretudo nos casos secundários, em que podem prevalecer as manifestações da condição primária. O quadro inicial caracteriza-se por dispneia de esforço e astenia, sintomas que os doentes atribuem com frequência à idade, descondicionamento ou comorbilidades, perceção que, em muitos casos, atrasa o diagnóstico para fases avançadas da doença.5 Aos sintomas iniciais, resultantes da incapacidade de ajustar o débito cardíaco ao esforço físico, seguem--se angina de esforço, síncope de esforço, edema periférico e anorexia por congestão hepática, decorrentes da progressão da doença, hipertrofi a ventricular e insufi ciência cardíaca

direitas subsequentes. Paralelamente, ocorre a evolução das alterações ao exame objetivo, nomeadamente, a intensifi cação do componente pulmonar do S2 e o seu desdobramento fi xo, o surgimento do S4, sopros sistólicos e/ou diastólicos (p. ex. insufi ciência tricúspide/pulmonar), uma onda A proeminente e o aumento da pressão venosa jugular, hepatomegalia, ascite e edemas periférico.6 Quando a suspeita clínica de HTP é relevante, o exame de primeira escolha é o ecocardiograma, tendo o cateterismo do coração direito um papel nos doentes com suspeita muito elevada e/ou achados ecográfi cos inconclusivos.7 Nos casos de HTP não justifi cados por patologia do coração esquerdo, estão ainda indicados outros exames para identifi cação ou exclusão de causas alternativas, escolhidos de acordo com as hipóteses diagnósticas levantadas pela anamnese e exame objetivo (p. ex. provas de função respiratória, cintigrafi a de ventilação perfusão, TC com contraste vascular, análises).5

Neste doente em particular, não existiam sinais ecocardiográfi cos de doença do coração esquerdo nem de shunt intracardíaco. A doença pulmonar tromboembólica foi excluída com cintigrafi a de ventilação-perfusão e foram ainda excluídas causas menos frequentes, como a doença autoimune e a infeção VIH. Uma vez que já era conhecido um hipertiroidismo não medicado, realizaram-se exames para sua caracterização.

O hipertiroidismo é uma condição de elevada prevalência, com cerca de

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

1,3 casos por 100 habitantes, mais comum em mulheres (5:1),8 resultante de produção aumentada da hormona tiroideia (p. ex. na doença de Graves, hashitoxicose, adenoma tóxico, bócio multinodular tóxico), de destruição glandular (p. ex. tiroidite de Quervain, tiroidite de Hashimoto, toxicidade da amiodarona, tiroidite rádica) ou de causas externas/ectópicas (p. ex. iatrogenia por levotiroxina, tumores ováricos).9 São vários os efeitos cardiovasculares da hormona tiroideia que, atuando a nível cardíaco, circulatório e autónomo, resultam na redução das resistências vasculares periféricas e pressão arterial diastólica, e no aumento da frequência e contratilidade cardíacas, débito cardíaco, consumo de oxigénio, pressão arterial sistólica e pressão média da artéria pulmonar.10 Clinicamente, estas ações manifestam--se frequentemente com taquicardia, palpitações, hipertensão arterial sistólica, dispneia de esforço, angina e alterações eletrocardiográfi cas de isquemia (por vasospasmo coronário), irritabilidade miocárdica e fi brilhação auricular.11,12

No caso descrito, foi feito o diagnóstico de doença de Graves com tirotoxicose, com sintomas de ansiedade e perda ponderal. Um dos aspetos evidentes no exame físico do doente era a presença de adenopatias palpáveis nas principais cadeias periféricas, com concomitante evidência imagiológica de adenopatias generalizadas. O exame histopatológico afastou a hipótese de doença linfoproliferativa e foram excluídas as principais doenças infecciosas e infl amatórias que cursam com adenopatias generalizadas com

características de hiperplasia folicular. A regressão das adenopatias com o estado eutiroideu veio suportar a hipótese de que estavam associadas à tirotoxicose. Neste doente, foram também atribuídos à tirotoxicose a fi brilhação auricular e a hipertensão pulmonar com insufi ciência cardíaca direita, que resolveram quando o doente fi cou em eutiroidismo. São bem conhecidos os efeitos cardiovasculares do hipertiroidismo, como a fi brilhação auricular e insufi ciência cardíaca de alto débito.11 Porém, a observação da associação entre HTP e estados de hipertiroidismo é recente e os seus relatos ainda escassos na literatura médica indexada.

À data da redação deste trabalho (julho de 2013), uma pesquisa na MEDLINE pela conjugação dos termos MeSH pulmonary hypertension e hyperthyroidism revelava apenas 52 entradas nos últimos 20 anos, entre casos clínicos, revisões e estudos prospetivos.

Apesar disso, esta relação tem uma prevalência importante, estando presente HTP em 35% a 65% dos doentes com hipertiroidismo e verifi cando-se doença tiroideia autoimune em 49% dos doentes com HTP (valores ocultados pela frequente apresentação subclínica da doença tiroideia).13

Uma revisão de 164 doentes com hipertiroidismo e HTP tratados com anti-tiroideus de síntese, iodo radioativo e/ou tiroidectomia verifi cou diminuições signifi cativas da PSAP, confi rmando a relação entre as duas patologias.14

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HIPERTIROIDISMO COMO CAUSA DE HIPERTENSÃO PULMONAR

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O hipertiroidismo constitui uma signifi cativa causa de HTP, reversível com a terapêutica. Embora não esteja completamente esclarecida a fi siopatologia subjacente à associação entre a hipertensão pulmonar e o hipertiroidismo, a sua prevalência relevante, sustentada pelos relatos cada

vez mais frequentes na literatura, e o bom prognóstico associado ao diagnóstico e atingimento do eutiroidismo sublinham a relevância de considerar a disfunção tiroideia no estudo etiológico de todas as apresentações de HTP sem causa evidente.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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MIOCARDITE AGUDA RECORRENTE. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

MIOCARDITE AGUDA RECORRENTE. CASO CLÍNICO Recurrent myocarditis. Case report

A recorrência de uma miocardite é rara e a sua fi siopatologia é ainda pouco clara. Os autores apresentam o caso clínico de um homem de 38 anos de idade, admitido no Hospital da Luz três vezes no decurso dos últimos três anos e meio com o diagnóstico de miocardite. Nos três episódios, o doente apresentou vómitos e diarreia acompanhados de desconforto retroesternal. Nos dois primeiros internamentos, o ECG documentava elevação do segmento ST, mas na última admissão o ECG era normal. Analiticamente destacava-se, em todos os episódios, leucocitose e aumento da PCR e troponina I. Os ecocardiogramas transtorácicos realizados revelaram sempre boa cinética global e função sistólica ventricular preservada. Uma tomografi a computorizada realizada na sequência do primeiro episódio excluiu a existência de doença coronária. Uma ressonância magnética cardíaca realizada depois do terceiro episódio não

The recurrence of a myocarditis is a rare condition and its pathophysiology is still unclear. The authors report the clinical case of a 38 year-old man, admitted to Hospital da Luz three times in the last three and a half years, due to acute myocarditis. In each episode the patient’s chief complains were vomiting, diarrhea, and retrosternal discomfort. On the fi rst two admissions, the ECG documented ST segment elevation, but on the last admission the ECG was normal. Laboratory evaluation showed troponin I elevation and leukocytosis with an elevated PCR. The echocardiographic assessment revealed no alterations in ventricular function or wall motion abnormalities. On the fi rst episode, a computed tomography angiography excluded coronary disease. A cardiac magnetic resonance evaluation performed on the third episode showed no evidence of myocarditis sequelae. In all episodes symptoms were successfully

VANESSA CARVALHOPEDRO MORAES SARMENTO

HUGO MARQUESNUNO CARDIM

ALEXANDRA BAYÃO HORTAJOÃO SÁ

Departamentos de Medicina Interna e Medicina Intensiva e de Cardiologia, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A miocardite foi pela primeira vez descrita em 1837 por Soberheim. Refl ete um processo infl amatório do tecido cardíaco, caracterizado por um infi ltrado celular de linfócitos, macrófagos e outros leucócitos, com destruição de cardiomiócitos e miocitólise (critérios de Dallas).1 Múltiplos agentes infecciosos, toxinas e fármacos têm sido associados ao desenvolvimento desta doença. Apesar das miocardites infecciosas poderem ter como etiologia protozoários, fungos ou bactérias (Borrelia burgdorferi ou a Chlamydia pneumoniae), são os vírus que claramente predominam como agentes etiológicos, em particular na América do Norte e na Europa. Entre estes, destacam-se o enterovírus, o citomegalovírus e o adenovírus como sendo os responsáveis mais frequentes por miocardites.2

A apresentação clínica da miocardite é variável, incluindo desde sintomas não

específi cos, até colapso hemodinâmico fulminante e morte súbita. A sua recorrência é rara e os mecanismos fi siopatológicos subjacentes à mesma são ainda pouco claros.

As infeções virais do trato gastrintestinal e respiratório podem cursar com envolvimento cardíaco em 5% dos casos. Embora o quadro clínico de gastrenterite na apresentação clínica inicial da miocardite não seja raro, ainda não é bem conhecida a fi siopatologia dessa associação. A explicação mais frequentemente apresentada será a capacidade dos produtos do genoma enteroviral degradarem proteínas do hospedeiro (como a distrofi na), resultando em disfunção cardíaca.3

Os autores apresentam um caso clínico de miocardite aguda recorrente, sempre associada a queixas gastroentéricas.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 38 anos de idade, sem fatores de

risco cardiovascular, foi admitido no Hospital da Luz por vómitos,

evidenciou sequelas das miocardites. Em todos os episódios o doente foi medicado com ibuprofeno com sucesso, tendo tido alta entre o terceiro e o quinto dias de internamento. Os autores discutem os mecanismos fi siopatológicos subjacentes à recorrência dos episódios de miocardite e sua simultaneidade com quadros gastroentéricos.

controlled with ibuprofen, and the patient was discharged between the third and the fi fth day of hospitalization. The authors discuss the pathophysiological mechanisms underlying the recurrence of the episodes of myocarditis and its relation to the gastrointestinal manifestations.

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MIOCARDITE AGUDA RECORRENTE. CASO CLÍNICO

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Fig. 1 Ecocardiograma transtorácico (corte apical das quatro câmaras) mostrando um ligeiro espes-samento do pericárdio

diarreia e opressão retroesternal. Na admissão apresentava-se subfebril, sem alterações à auscultação cardíaca e pulmonar e sem edemas nos membros inferiores. O eletrocardiograma (ECG) evidenciou elevação do segmento ST em V3-V5, DI e aVL. Analiticamente apresentava leucocitose, elevação da proteína C reativa (PCR) (10,78 mg/dL) e da troponina I (13,46 µg/L). O ecocardiograma transtorácico (EcoTT) efetuado à cabeceira do doente revelou boa cinética global. Realizou angiografi a por tomografi a computadorizada (angio-TC) que excluiu doença coronária. Durante o internamento foi medicado com ibuprofeno, registando--se remissão da sintomatologia, tendo alta ao terceiro dia.

Passados cerca de 11 meses, foi readmitido, por novo episódio de diarreia e dor retroesternal. No exame objetivo não se identifi caram alterações relevantes. O ECG documentava elevação do segmento ST em D1, aVL e V2-V6. Analiticamente apresentava leucocitose, aumento da PCR (20 mg/dL), da troponina I (33 µg/L) e

NTproBNP de 923 pg/mL. O EcoTT revelou espessamento do pericárdio (Fig. 1), boa função sistólica global com strain sistólico longitudinal diminuído na parede lateral. Foi novamente medicado com ibuprofeno, evoluindo com melhoria clínica e analítica, tendo tido alta ao quinto dia de internamento. Foi realizada pesquisa serológica com positividade de IgG para o vírus Coxsackie A9 e B1, bem como IgG positiva para o vírus de Epstein-Barr e citomegalovírus (51 UA/mL).

Passados cerca de dois anos e meio, o doente foi reinternado por um quadro clínico de diarreia, febre e vómitos, acompanhado de desconforto retroesternal. No exame objetivo apresentava-se hipertenso e febril, sem alterações à auscultação cardíaca e pulmonar e sem edemas periféricos. O ECG não apresentava alterações. Analiticamente confi rmou-se o aumento dos parâmetros infl amatórios e uma ligeira subida da troponina I. Realizou ressonância magnética cardíaca (Fig. 2 e 3), que não evidenciou sequelas de miocardite, e uma angio-TC torácica que não documentou alterações coronárias ou pulmonares relevantes. Foi realizado estudo imunológico, com pesquisa de enzima conversora da angiotensina (ECA), anticorpos anti-nucleares (ANA), anticorpos lúpicos (anti-SSA; anti-SSB), anti-centrómero, anti-Scl-70; fator reumatoide e antimitocôndria (AMA), todos com resultados negativos. Os níveis dos fatores C3 e C4 do complemento estavam normais. O doente teve alta clínica ao quinto dia de internamento, com remissão da sintomatologia e em Classe I NYHA, medicado com ibuprofeno.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOA miocardite é, habitualmente, um evento isolado. A sua recorrência é rara, desconhecendo-se ainda as razões para que aconteça. A maioria das lesões do miocárdio pode induzir imunopatia com

recorrência, especialmente as infeções por enterovírus ou citomegalovírus.3 As viroses provocam o aparecimento de anticorpos, que podem ser patogénicos devido às suas propriedades citolíticas e

Desde então, decorrido mais um ano e meio relativamente à data do último internamento, não houve episódios de recorrência de miocardite ou gastroentéricos.

Tendo em conta a associação conhecida entre a recorrência de miocardite aguda e as doenças infl amatórias intestinais (doença de Crohn e colite ulcerosa), após a alta realizou pesquisa de anticorpos anticitoplasma dos neutrófi los (p-ANCA e c-ANCA), com resultados negativos, e colonoscopia que não revelou alterações (Fig. 4).

Fig. 3 Ressonância magnética cardíaca em realce tardio, sem alterações

Fig. 4 Colonoscopia normal

Fig. 2 Ressonância magnética cardíaca em corte longitudinal das quatro câmaras

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MIOCARDITE AGUDA RECORRENTE. CASO CLÍNICO

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citotóxicas. Por outro lado, as infeções virais ou bacterianas podem provocar uma quebra na auto-tolerância do hospedeiro, através de quatro mecanismos que são: - Modifi cação ou libertação de proteínas sequestradas imunologicamente; - Ativação policlonal dos linfócitos; - Ativação das células T pela libertação de citocinas; - Mimetismo molecular.

A quebra na auto-tolerância pode produzir uma resposta autoimune com mediação celular ou com mediação humoral.3-5

O diagnóstico de miocardite com base autoimune é confi rmado quando são cumpridos dois dos seguintes critérios:6,7

- Apresentação anormal de antígeneo leucocitário humano (HLA) no tecido do miocárdio, acompanhado de infi ltração mononuclear; - Anticorpos “anti-coração” (como o anti-α e anti-β de cadeia pesada, antigénios mitocondriais, translocador nucleotídeo da adenina, recetor cardíaco β1 adrenérgico e recetor M2 muscarínico, cadeia anti-ramo de transciclase di-hidrolipoil α-cetoácido desidrogenase ou linfócitos autorreativos isolados no soro ou em familiares saudáveis); - Linfócitos autorreativos e/ou anti-corpos presentes no tecido cardíaco; - Auto-antigénio envolvido na fi siopa-tologia; - Transfusão do soro, anticorpos ou linfócitos induzindo doença em animais; - Resposta clínica favorável à terapia imunossupressora.

Existem várias publicações que associam a recorrência de miocardite à infl amação intestinal. As doenças infl amatórias intestinais (DII), como a doença de Crohn e a colite ulcerosa, cursam habitualmente com manifestações extraintestinais, nomeadamente cardía-cas. No entanto, estas são frequentes na colite ulcerosa. Em cerca de um terço dos doentes, as DII podem cursar com episódios de miocardite, na sequência de uma infeção viral ou como reação adversa medicamentosa (p. ex. aos 5-aminossalicilatos). A remissão dos achados cardíacos e colónicos em resposta aos corticoides sugere que os mecanismos imunológicos são necessários à miocardite persistente e recorrente, mesmo sem genoma viral.4,5

No que respeita à terapêutica, os inibidores do eixo renina-angiotensina (p. ex. captopril, losartan) provaram que, além do efeito de diminuição do perfi l tensional, também modulam a infl amação, a expressão de adesão molecular e a fi brose. A bibliografi a publicada mostra que a modulação deste eixo é importante no tratamento da miocardite, havendo uma inibição da autoimunidade sem causar supressão imune.6,7

O caso clínico de miocardite recorrente descrito constitui um verdadeiro desafi o diagnóstico. Embora não se tenha identifi cado um agente responsável pelos episódios repetidos de miocardite, em simultâneo com os sintomas gastroentéricos, e tendo-se excluído uma patologia infl amatória intestinal, é possível que se esteja perante uma imunopatia de base que deverá continuar a ser investigada.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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UMA APRESENTAÇÃO RARA DE TUBERCULOSE. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

UMA APRESENTAÇÃO RARA DE TUBERCULOSE. CASO CLÍNICO A rare presentation of tuberculosis. Case report

A peritonite tuberculosa é uma forma rara de apresentação da infeção a Mycobacterium tuberculosis. Os au-tores apresentam o caso clínico de uma mulher, de 30 anos de idade, avaliada por um quadro clínico de ascite, emagrecimento e astenia, com três meses de evolução. A presença de líquido ascítico com exsudado de predomínio linfocítico e achados típicos na tomografi a computorizada abdominal levantaram a suspeita de peritonite tuberculosa, que foi confi rmada pelo exame cultural daquele líquido. A doente foi submetida a seis meses de terapêutica antibacilar com boa resposta clínica e imagiológica. A peritonite tuberculosa deve ser considerada no diagnóstico diferencial de ascite, especialmente em doentes oriundos de áreas onde a doença tem características endémicas.

Tuberculous peritonitis is a rare presentation of Mycobacterium tuberculosis infection. The authors report the clinical case of a 30 year-old Angolan woman with ascites, weight loss and asthenia, with three months of evolution. The presence of a lymphocytic exudative ascites and typical fi ndings on abdominal computorized tomography raised the suspicion of tuberculous peritonitis, later confi rmed by cultural growing. The patient underwent antituberculous therapy for six months with good clinical and radiological response. Tuberculous peritonitis should be considered in the differential diagnosis of ascites, especially in patients, arising from endemic areas.

BERNARDO NEVESANABELA RAIMUNDO

AUGUSTO GASPARALEXANDRA BAYÃO HORTA

JOÃO SÁ

Departamento de Medicina Interna e Medicina Intensiva, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A tuberculose é um importante problema de saúde pública a nível mundial. Estima-se uma incidência de 8,7 milhões de novos casos de tuberculose em 2011, em todo o mundo, tendo morrido no mesmo período 1,4 milhões de pessoas devido à doença.1 Em 20% dos casos há envolvimento extrapulmonar, sendo o tubo digestivo particularmente afetado. A peritonite tuberculosa é uma forma de apresentação rara desta doença, ocorrendo em apenas 0,3-0,7% dos

casos.2,3 Ocorre mais frequentemente por disseminação hematogénea de um foco pulmonar primário ou por contaminação direta através de gânglios linfáticos ou dos órgãos abdominais.4

Os autores apresentam um caso clínico de peritonite tuberculosa numa mulher angolana de 30 anos de idade, avaliada por um quadro clínico de ascite, emagrecimento e astenia, com três meses de evolução.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo feminino, de 30 anos de idade, natural e residente em Angola, recorreu ao Hospital da Luz por aumento do volume abdominal, saciedade precoce, anorexia, emagrecimento acentuado e astenia, com três meses de evolução. O quadro clínico já tinha sido investigado no seu país de origem, sem qualquer resultado concreto. Negava outros sintomas, nomeadamente febre, alterações do trânsito intestinal ou do foro genito-urinário.

Os antecedentes pessoais eram irrelevantes no atual contexto e não havia conhecimento de história de tuberculose pulmonar. Por agravamento sintomático importante viajou para Portugal, onde recorreu a um serviço de urgência hospitalar, tendo sido medicada com laxante e procinéticos e referenciada para a consulta externa a médio prazo. Por manutenção do quadro clínico recorreu ao Atendimento Médico Permanente do Hospital da Luz.

À observação destacava-se um abdómen globoso, pouco depressível, indolor à palpação, com timpanismo central e macicez nos fl ancos, sendo o restante exame objetivo normal.

Analiticamente verifi cava-se anemia normocítica normocrómica, com valor de hemoglobina (Hb) de 10,3 g/dL e aumento dos parâmetros infl amatórios, nomeadamente sem leucocitose mas com velocidade de sedimentação (VS) de 72 mm/h e proteína C reativa (PCR) de 3,19 mg/dL. Foi efetuada tomografi a computorizada (TC) abdominal que revelou uma volumosa ascite envolvendo a globalidade dos recessos abdominais e pélvicos, assim como uma densifi cação e espessamento difuso do peritoneu (Fig. 1). Foi realizada paracentese com saída de 4 L de um líquido de aspeto amarelo citrino, cuja análise citoquímica foi negativa para células neoplásicas, tendo revelado um exsudado com gradiente sero-ascítico de albumina de 0,7 g/dL, pleiocitose de

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UMA APRESENTAÇÃO RARA DE TUBERCULOSE. CASO CLÍNICO

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1.920 células/μL com predomínio de linfócitos e adenosina deaminase (ADA) de 97,8 U/L. A serologia para o vírus da inunodefi ciência humana (VIH) foi negativa e o marcador tumoral CA-125 sérico estava aumentado, com um valor de 112,8 U/mL.

Pela elevada suspeição clínica de peritonite tuberculosa, a doente iniciou terapêutica antibacilar com o esquema habitual (rifampicina, pirazinamida, isoniazida e etambutol) e piridoxina, com melhoria progressiva das queixas, tendo o exame cultural do líquido ascítico

posteriormente confi rmado a hipótese diagnóstica, com isolamento de uma estirpe de Mycobacterium tuberculosis multissensível. Após seis meses de terapêutica, a doente está assintomática. As análises mostram regressão da anemia (Hb 11,8 g/dL), bem como normalização dos parâmetros infl amatórios e CA-125 sérico. Repetiu TC abdominal que revelou resolução total da ascite e do espessamento peritoneal (Fig. 2).

Fig. 2 Aquisição axial (A) e coronal (B) demonstrando as características habituais da distribuição das ansas digestivas, com resolução completa da ascite e sem outras alterações valorizáveis

Fig. 1 Aquisição axial (A) e coronal(B) demonstrando volumosa ascite não loculada e homogénea, ocupando todos os quadrantes do abdómen superior

A

A

B

B

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOO diagnóstico de peritonite por Mycobacterium tuberculosis constitui um desafi o clínico, pela inespecifi cidade das manifestações clínicas e pela raridade com que ocorre, comparativamente com outras etiologias.

Além do quadro clínico apresentado por esta doente - aumento do volume abdominal, saciedade precoce, ano-rexia, astenia e emagrecimento -, é típica a ocorrência de febre. Também, à semelhança do que ocorreu com esta doente, na maioria dos casos não existe doença pulmonar ativa concomitante, o que frequentemente atrasa o diagnóstico.5

Embora neste caso clínico a suspeita fosse elevada pelo facto de ser oriunda de uma região do globo onde a tuberculose é endémica, não estavam presentes os habituais fatores de risco para o desenvolvimento de peritonite tuberculosa, como cirrose hepática, diálise peritoneal, diabetes mellitus, doença oncológica, corticoterapia e infecção por VIH.6

A presença de anemia normocítica e normocrómica e o aumento dos valores de CA-125 sérico constatados neste caso são característicos.

O aumento do marcador tumoral, associado a uma clínica muitas vezes indistinguível, impõe importantes dúvidas diagnósticas na distinção entre carcinoma do ovário com carcinomatose peritoneal e peritonite tuberculosa. No entanto, tal como se verifi cou nesta doente, os níveis de CA-125 diminuíram com a instituição de terapêutica

antibacilar, o que nunca acontece nos casos de doença oncológica.7 A análise citoquímica também foi característica, ao revelar a presença de um gradiente sero-ascítico de albumina inferior a 1,1 g/dL, pleiocitose com predomínio linfocítico e aumento dos níveis de ADA. Esta tem uma sensibilidade e especifi cidade, em doentes não cirróticos, de 100% e 97%, respetivamente.8

O isolamento de Mycobacterium tuberculosis na cultura do líquido ascítico desta doente confi rmou o diagnóstico, continuando este método a ser o gold standard no diagnóstico desta doença.

Tal como foi observado no caso clínico descrito, a TC abdominal tem utilidade no diagnóstico, confi rmando a existência de ascite, presente na maioria dos doentes e tipicamente com altos valores de atenuação. São também achados típicos o espessamento peritoneal e a presença de linfadenopatias abdominais.9

Ao contrário do que aconteceu nesta doente, a peritonite tuberculose ocorre maioritariamente em associação com a infeção dos órgãos intra-abdominais e linfadenopatias, sendo raro apresentar- -se de forma isolada.3

A terapêutica da peritonite tuberculose é idêntica à da tuberculose pulmonar, para a qual estão preconizados seis meses de duração, esperando-se que ocorra resolução dos sintomas e da ascite durante os primeiros três meses de terapêutica,4 o que, aliás, ocorreu no caso descrito.

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Em conclusão, apesar da peritonite tuberculosa ser uma doença rara, pode ter consequências devastadoras e deve ser considerada como hipótese

diagnóstica em doentes provenientes de zonas geográfi cas em que a tuberculose tem características endémicas e/ou quando estão presentes fatores de risco.

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SÍNDROME HIPEREOSINOFÍLICO E ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

SÍNDROME HIPEREOSINOFÍLICO E ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO Hypereosinophilic syndrome and stroke. A case report

Os síndromes hipereosinofílicos são caracterizados por uma eosinofi lia mantida, em que a infi ltração dos eosinófi los e a consequente libertação de mediadores nos diferentes órgãos leva a lesão desses órgãos. Os autores descrevem o caso clínico de um doente de 82 anos de idade, com episódios recorrentes de pieira nos últimos anos anos, astenia e progressiva deterioração do estado geral. Laboratorialmente salientava-se uma eosinofi lia que foi aumentando progressivamente, tendo atingido um valor máximo absoluto de 13 x 109 células/L, não havendo alterações de relevo nos restantes exames complementares de diagnóstico realizados inicialmente. Durante o internamento constatou-se um quadro clínico de paresia facial e hemiparesia direita. Uma ressonância magnética

Hypereosinophilic syndromes are characterized by sustained eosinophilia. The infi ltration of eosinophils and the subsequent release of mediators in different organs lead to injury of these organs. The authors report the clinical case of a 82 year-old man admitted for recurrent episodes of wheezing, astenia and progressive general deterioration for the last two years. Blood tests revealed eosinophilia, which worsen attaining a maximum value of 13 x 109 cells/L. Several other diagnostic exams initially performed were normal. During hospitalization, right hemiparesis with homolateral facial paresis were noted. Brain magnetic resonance scans showed multiple abnormalities suggestive of bilateral embolism. Slight elevation of troponin was also noted, but the ecocardiography, carotid duplex

PEDRO MOTAFILIPA MALHEIRO

RAQUEL GIL GOUVEIAANTÓNIO ALMEIDA

JOÃO SÁ

Departamentos de Medicina Interna e Medicina Intensiva, de Neurologia e de Hematologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Os síndromes hipereosinofílicos são caracterizados por uma eosinofi lia superior a 1,5 x 109 células/L, em pelo menos duas ocasiões intervaladas por um período superior a um mês, e/ou hipereosinofi lia tecidual, após exclusão de causas secundárias de eosinofi lia, como são, por exemplo, doenças alérgicas ou parasitárias.1,2 As complicações cardiovasculares são as causas principais de morbilidade e mortalidade associadas a esta patologia.

Dada a raridade destes síndromes, não existem recomendações diagnósticas ou terapêuticas específi cas para a prevenção e tratamento das suas complicações, quer cardíacas quer trombóticas. O tratamento deve ser orientado de acordo com a gravidade da doença e inclui, numa fase inicial, a corticoterapia, sobretudo se existir envolvimento cardíaco.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 82 anos de idade, que recorreu ao Atendimento Médico Permanente do Hospital da Luz, em fevereiro de 2012, por um quadro clínico de astenia, anorexia e prostração de agravamento progressivo nos últimos 15 dias. Referia episódios recorrentes de pieira nos últimos dois anos, que se resolviam sem terapêutica de suporte.

No início do quadro, teria sido avaliado em consulta de Pneumologia, tendo efetuado vários exames complementares de diagnóstico, que, segundo referia, não tinham alterações relevantes. Cinco meses antes da apresentação, numa avaliação analítica tinha sido identifi cada hipereosinofi lia (>1,5 x 109 células/L), com subida gradual

encefálica revelou múltiplas alterações sugestivas de embolismo bilateral. Laboratorialmente, constatou-se nesta altura um aumento ligeiro da troponina. O ecocardiograma, ecodoppler dos vasos cervicais e um Holter não revelaram alterações de registo. Após discussão multidisciplinar envolvendo a Medicina Interna, Neurologia e Hematologia, foi iniciada corticoterapia, de acordo com o recomendado na literatura, registando--se melhoria clínica e laboratorial progressivas.

ultrasound and Holter register were also found normal. This clinical case was discussed by Internal Medicine, Neurology and Hematology and it was decided to start corticotherapy, according to literature. Clinical and laboratory improvement were progressively noted.

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SÍNDROME HIPEREOSINOFÍLICO E ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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da contagem absoluta nas avaliações analíticas subsequentes.

Por aumento da frequência dos episódios de pieira com deterioração do estado geral, maior prostração associada a alguns períodos de desorientação temporo-espacial, o doente foi conduzido ao Hospital da Luz. Negava febre, tosse, dispneia ou dor torácica à admissão.

Entre os antecedentes pessoais salientava--se um acidente vascular cerebral isquémico sete anos antes, sem sequelas e presentemente sem acompanhamento regular. Negava qualquet medicação habitual.

No exame físico realizado na admissão, o doente estava apirético, com pressão arterial de 129/74 mmHg, frequência cardíaca de 81 bpm, pulso rítmico e regular, saturação periférica de oxigénio de 91% (ar ambiente), aumento do tempo expiratório e sibilos bilaterais à auscultação pulmonar. O exame neurológico não revelou défi ces focais.

Nos exames complementares de diagnóstico realizados, constatou-se leucocitose (18,7 x 109 células/L) com eosinofi lia (10,1 x 109 células/L). Os restantes resultados do hemograma, transaminases, parâmetros de função renal e ionograma não tinham alterações. A proteína C reativa (PCR) estava aumentada para 5 mg/dL. Os valores da gasimetria arterial (ar ambiente) foram: pH 7,47, pO2 57 mmHg, pCO2 39 mmHg, HCO3 28,4 mmol/L, SO2 91%. A radiografi a de tórax não sugeria alterações de relevo.

O doente foi internado para avaliação do quadro clínico.

No estudo realizado e na evolução durante o internamento, salientava-se o aumento progressivo da contagem absoluta de eosinófi los até 13 x 109 células/L, aumento ligeiro da desidrogenase láctica (LDH) (391 UI/L, valores de referência 85-227 UI/L), eletroforese de proteínas séricas sem alterações, velocidade de sedimentação dentro dos valores normais, doseamento de IgE de 1.612 U/ml (valores de referência <114 UI/mL), triptase 34 µg/L (valores de referência <11,4 µg/L), enzima conversora da angiotensina dentro dos valores normais, anticorpos antinucleares (ANA) e anticorpos anticitoplasma de neutrófi los (ANCA) negativos, pesquisa de ovos, quistos e parasitas nas fezes negativa.

O doente foi objeto de uma tomografi a computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica, que mostrou um pequeno derrame pleural bilateral, cardiomegália e cálculo vesical não obstrutivo (com 8 mm de diâmetro), sem outras alterações de relevo.

Durante o internamento, verifi cou-se um aumento da prostração associado ao aparecimento de abundantes secreções brônquicas mucopurulentas e semiologia pulmonar compatível com pneumonia à esquerda. Constatou- -se ainda uma subida signifi cativa dos parâmetros infl amatórios. Foi admitida a possibilidade de uma pneumonia associada aos cuidados de saúde, sendo instituída terapêutica antibiótica empírica, broncodilatadores e fi sioterapia respiratória.

Dada a instalação de uma disfagia para líquidos com hemiparesia direita, o doente realizou uma ressonância magnética (RM) encefálica, que

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DISCUSSÃOOs síndromes hipereosinofílicos (SHE), defi nidos como hipereosinofi lia associada a lesão ou disfunção de órgão mediada por eosinófi los, atingem maioritariamente os indivíduos entre os 20 e os 50 anos de idade.1

Estes síndromes podem ser divididos em duas variantes: linfocítica - a mais frequente - e mieloproliferativa. Contudo, cerca de 50% dos SHE não são classifi cáveis nestas duas categorias.

Sem prevalência defi nida, os SHE têm igual distribuição por ambos os sexos, exceto no que se refere à variante mieloproliferativa associada às translocações envolvendo os genes FIP1L, PDGFRα, PDGFRβ ou FGF, que atingem predominantemente o sexo masculino.

As formas complexas de SHE com etiologia indeterminada, classifi cadas como “síndromes hipereosinofílicos

demonstrou evidência de múltiplas lesões de natureza vascular isquémica recentes, corticais e subcorticais, dispersas por ambos os hemisférios cerebrais e interessando também ambos os hemisférios cerebelosos e a protuberância em situação paramediana direita. Coexistiam diversas outras lesões de natureza vascular isquémica, não recentes, interessando a substância branca subcortical de ambos os hemisférios cerebrais, assim como o pedúnculo cerebeloso médio direito.

Perante o quadro clínico, após discussão multidisciplinar envolvendo a Medicina Interna, a Neurologia e a Hematologia, decidiu-se iniciar de imediato terapêutica com prednisolona, na dose de 1mg/kg/dia, de acordo com o recomendado na literatura, assim como antiagregação plaquetária e estatinas, além de fi sioterapia.

Para investigação etiológica, o doente realizou ecocardiogramas transtorácico e transesofágico, registo Holter e

ecodoppler carotídeo e vertebral, que não mostraram alterações signifi cativas. Dada a urgência no início da terapêutica, decidiu-se protelar a realização de um mielograma, admitindo que, havendo alteração clonal, seria expectável que esta se mantivesse apesar da introdução da terapêutica, permitindo chegar ao diagnóstico posteriormente.

Clinicamente, houve uma recuperação parcial dos défi ces motores, assim como do quadro de infeção respiratória. Ocorreu também melhoria laboratorial progressiva com normalização do valor de eosinófi los.

Após um mês de internamento, o doente teve alta do Hospital da Luz, referenciado para internamento em cuidados continuados.

Cerca de um mês depois, na sequência de vários episódios de pielonefrite, o doente acabou por falecer com o diagnóstico de urosépsis.

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SÍNDROME HIPEREOSINOFÍLICO E ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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idiopáticos”, representam a maior parte dos SHE, sendo difícil a sua distinção de outras patologias associadas a eosinofi lia, como o síndrome de Churg-Strauss. De salientar, igualmente, o grupo de doentes com “hipereosinofi lia de signifi cado indeterminado”, que consiste numa hipereosinofi lia persistente, sem causa aparente, não associada a lesões por eosinofi lia tecidual. Tanto a etiologia como o prognóstico neste sub-grupo de doentes permanecem indeterminados.1.

Os órgãos maioritariamente atingidos pelo SHE são o coração, a pele, os pulmões, o trato gastrointestinal ou, como no caso descrito, o sistema nervoso central.3 A apresentação pode desenvolver-se gradualmente ou ocorrer com eventos cardíacos e neurológicos súbitos, como o acidente vascular cerebral (AVC) isquémico.

O caso descrito reforça a importância de reconhecer o AVC isquémico como complicação de SHE. Com uma incidência estimada de 12% nos doentes com SHE, o AVC caracteriza-se, habitualmente, por enfartes múltiplos em diferentes territórios vasculares.4 O embolismo cardíaco é a etiologia mais provável. Na primeira fase do SHE, a dimensão do território enfartado é pequena e situa-se geralmente nos territórios de barreira da rede vascular cerebral. Com a persistência da eosinofi lia, ocorre extensão às áreas corticais e subcorticais.

Os eosinófi los têm por si, também, a capacidade de aumentar a trombogenicidade local, por conterem fator tecidual nos seus grânulos e estimularem a sua produção a

nível endotelial.4 Esta pode ser uma importante causa de pequenos enfartes cerebrais nas regiões de fronteira, geralmente associados a um bom prognóstico, comparativamente aos doentes que se apresentam com lesões embólicas múltiplas. Não foi possível, no doente descrito, apurar a causa do AVC, pois embora as imagens fossem sugestivas de embolismo, não foi possível apurar fonte embólica, pelo que iniciou antiagregação plaquetária.

A libertação de proteínas eosinofílicas leva à lesão do endocárdio e miocárdio. Esta lesão subclínica progride, no prazo de quatro a seis semanas, para uma segunda fase, trombótica, que resulta da libertação excessiva de fator tecidual pelo tecido lesado, levando ao embolismo periférico. Por último, ocorre a fi brose do endomiocárdio.

A ressonância magnética cardíaca é o exame não invasivo com maior sensibilidade para a deteção de trombos ventriculares e infl amação do miocárdio.4

Atualmente, a terapêutica dos casos de SHE consiste em corticoterapia, agentes citotóxicos, imunomoduladores, inibi-dores da tirosina cinase naqueles com translocações envolvendo os genes PDGFR, anticorpos monoclonais e transplante de medula óssea.5

Dado o caráter urgente de iniciar terapêutica dirigida, foi prescrita corticoterapia com prednisolona na dose 1 mg/kg/dia, como recomendado na literatura, protelando a realização do mielograma, o que não permitiu uma melhor caracterização do quadro hematológico.5

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA

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CONSIDERAÇÕES FINAISA complicação neurológica dos SHE deve ser equacionada na presença de hipereosinofi lia com agravamento neurológico, súbito ou gradual, caracterizando-se, tipicamente, por imagens com múltiplas zonas de

enfarte encefálico. Dado que a lesão neurológica por SHE ocorre por etapas, o diagnóstico precoce e a rápida instituição de terapêutica têm um forte impacto na redução da morbilidade e mortalidade associadas.

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UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTE

RESUMO Abstract

UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTE A strange case of intermittent patent foramen ovale

O foramen ovale permeável (FOP) tem sido associado a risco acrescido de acidente vascular cerebral (AVC) criptogénico. O seu encerramento espontâneo nos adultos é raro. Os autores apresentam o caso de uma mulher de 46 anos de idade, hipertensa e com enxaquecas frequentes, que recorreu ao Hospital da Luz por um quadro clínico de início súbito de défi ce motor do membro superior direito, difi culdade na marcha e da linguagem, com 30 minutos de duração e recuperação espontânea. Verifi cou-se novo evento cinco horas depois, com duração de 15 minutos. Na admissão não apresentava defeito neurológico. Realizou ressonância magnética crânio-encefálica, que documentou lesão vascular aguda lenticular e no braço posterior da cápsula interna esquerda. Na investigação etiológica do AVC, realizou Holter e ecodoppler carotídeo que não

The permeable foramen ovale (PFO) has been associated to an increased risk of cryptogenic stroke. Its spontaneous closure is rare in adults. The authors report the clinical case of a 46 year-old woman, with hypertension and frequent migraines, which was referred to the Hospital da Luz due to a sudden onset of motor defi cit of the right upper limb, diffi culty in walking and language, with 30 minutes duration and spontaneous recovery. The event was repeated after fi ve hours, lasting for 15 minutes. On admission the patient showed no neurological defect. Brain MRI was performed and documented acute vascular injury on lenticular arm and left internal capsule. Searching for the etiology of stroke, Holter and carotid Doppler ultrasound were performed and revealed no changes. Transesophageal echocardiography (TEE) was also held

VANESSA CARVALHORAQUEL GIL GOUVEIA

NUNO CARDIMRUI ANJOS

DANIEL FERREIRA

Departamentos de Medicina Interna e Medicina Intensiva, de Neurologia e de Cardiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O foramen ovale permeável (FOP) traduz-se como uma solução de continuidade do septo interauricular, que pode resultar em fl uxo sanguíneo entre as aurículas. Na maioria dos casos, o seu diagnóstico é acidental, feito por ecocardiograma transtorácico. Para a confi rmação da sua presença, recorre--se com frequência à ecocardiografi a transesofágica (ETE) complementada pela utilização de injeções de contraste (mais frequentemente de soro salino agitado), com ou sem manobra de Valsalva. A

existência de FOP cursa assintomática na grande maioria dos casos, mas tem vindo a ser associada a acidente vascular cerebral (AVC) criptogénico, enxaqueca ou cianose permanente. A prevenção de eventos embólicos (por embolia cruzada ou paradoxal) é, na maioria dos casos conservadora, com medicação antiagregante plaquetária ou anticoagulante oral. No entanto, em grupos selecionados, tem vindo a ser efetuado o encerramento do FOP (por via cirúrgica ou, mais frequentemente, percutânea).

INTRODUÇÃO

revelaram alterações. Realizou ainda ecocardiograma transesofágico (ETE), que documentou FOP, com shunt em toalha. A doente teve alta ao segundo dia, referenciada à consulta externa de Neurologia. Passados cerca de dois meses foi reinternada noutro hospital por novo AVC de etiologia provavelmente embólica e do qual fi cou sem sequelas. Após este internamento, foi então referenciada para encerramento percutâneo do FOP. Durante este procedimento foram efetuadas injeções de contraste na aurícula direita e nas artérias pulmonares, verifi cando-se não existir permeabilidade do FO, fístulas pulmonares ou outros shunts. Foi então agendado novo ETE, que se revelou normal, sem evidência de passagem de bolhas de soro agitado para as cavidades esquerdas mesmo com manobra de Valsalva. Os autores salientam a raridade deste caso, abordando hipotéticas causas do aparente “encerramento espontâneo” do foramen ovale.

and came remarkable for PFO with shunt towel. The patient was discharged on the second day referred to external Neurology consultation. After two months, the patient was readmitted to another hospital due to a new stroke, which etiology should probably be embolic and was discharged without sequelae. After this admission she was considered a candidate for percutaneous closure of PFO. During this procedure, contrast injections were made in right atrium and in the pulmonary arteries, showing no patency of the PFO, pulmonary fi stulae or other shunts. New ETE was scheduled revealing normal results and no evidence of passage of bubbles serum shaken to the left cavities, even with Valsalva maneuver. The authors emphasize the rarity of this case, addressing hypothetical causes of the apparent” spontaneous closure “ of the foramen ovale.

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UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTE

CASO CLÍNICODoente do sexo feminino, de 46 anos de idade, com antecedentes de hipertensão arterial e enxaqueca, medicada com anticonceptivo oral, mexazolam 1 mg e venlafaxina 75 mg. Tinha história familiar de doença cérebro-vascular, tendo o pai tido AVC aos 55 e 61 anos.

Recorreu ao Hospital da Luz por um quadro de início súbito de défi ce motor do membro superior direito, difi culdade na marcha e na linguagem, com disartria, com 30 minutos de duração e recuperação espontânea e completa. Verifi cou-se novo evento cinco horas depois do primeiro, com uma duração de 15 minutos.

Na admissão, a doente apresentava-se hemodinamicamente estável, sem alterações ao exame objetivo e sem defeito neurológico. Foi internada para investigação do quadro clínico. Analiticamente, destacava-se um perfi l lipídico alterado e uma velocidade de sedimentação normal. O screening de doenças autoimunes e de distúrbios da coagulação revelou-se negativo. Foi realizada ressonância magnética crânio-encefálica que documentou lesão vascular aguda no lenticular e braço posterior da cápsula interna esquerda e lesões periventriculares sequelares (Fig. 1).

O ECG de Holter não evidenciou alterações signifi cativas do ritmo cardíaco ou da condução aurículo-ventricular e o ecodoppler carotídeo não revelou alterações hemodinamicamente signifi cativas. Realizou ainda ETE, que documentou a presença de FOP tunelizado, com shunt direito/esquerdo em toalha, evidenciado pela passagem de múltiplas bolhas de soro agitado injetado

antes, durante e após a manobra de Valsalva, mas sem aneurisma do septo interauricular (Fig. 2). A doente teve alta ao segundo dia de internamento, medicada com antiagregante oral, estatina, inibidor da bomba de protões e venlafaxina, tendo

Fig. 1 RM-CE em sequência ponderada em difusão (DWI) documenta lesão vascular isquémica em fase aguda

Fig. 2 Imagem do primeito ETT documentando a presença de bolhas de soro agitado nas cavidades direitas e também nas cavidades esquerdas. AD: auricula direita; VD: ventriculo direito; AE: auricula esquerda; VE: ventriculo esquerdo

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

sido suspensa a anticonceção oral. Ficou referenciada à consulta de Neurologia. Passados cerca de dois meses, foi internada noutro hospital, por um quadro clínico sugestivo de novo AVC, com disartria, desvio da comissura labial e parestesias do hemicorpo direito. Foi realizada tomografi a computorizada crânio-encefálica, que documentou lesão isquémica subaguda lentículo-estriada esquerda e região sub-insular. Teve alta sob anticoagulação oral com varfarina e foi referenciada para um centro especializado para encerramento de FOP. Em ambulatório realizou um MAPA (monitorização da pressão arterial durante 24 horas) que documentou hipertensão arterial sisto-diastólica ligeira, de predomínio diurno. O estudo de fatores de coagulação com doseamento de proteínas C e S revelou-se de novo normal. Dois meses mais tarde, foi submetida a cateterismo cardíaco direito destinado ao encerramento percutâneo do FOP. Durante este procedimento, documentou-se a presença de tunelização do foramen ovale mas este não se mostrou permeável ao fi o-guia. Foram efetuadas várias injeções de contraste na aurícula direita e no interior do túnel do FO, sem que se conseguisse documentar passagem do contraste entre as duas aurículas (Fig. 3). Foram ainda efetuadas injeções de contraste em ambas as artérias pulmonares, que permitiram excluir também a presença de fístulas pulmonares que pudessem justifi car um shunt direito/esquerdo. Face a este inesperado resultado, foi decidido efetuar novo ETE para verifi car a reprodutibilidade dos achados do primeiro ETE e para pesquisa de outras eventuais causas do shunt direito/esquerdo. Neste segundo ETE, não foi documentada a passagem de bolhas de soro agitado entre as cavidades direitas e as esquerdas, quer espontaneamente quer durante as injeções

de contraste efetuadas antes, durante e após a manobra de Valsalva (Fig. 4). Concluiu--se pois pela ausência de permeabilidade do foramen ovale na altura da realização do cateterismo cardíaco e do segundo ETE e a adoente permaneceu em tratamento médico com antiagregação e estatina oral. Passados cerca de 18 meses, não voltou a referir novos eventos embólicos.

Fig. 3 Imagem do CAT documentando injecção de contraste no túnel do FOP, sem passagem de contraste para a aurícula direita. AD: auricula direita; VD: ventriculo direito; AE: auricula esquerda

Fig. 4 Imagem do ETE documentando presença de bolhas de soro agitado nas cavidades direitas mas a sua ausencia nas cavidades esquerdas. VAo: válvula aórtica; AD: auricula direita; VD: ventriculo direito; AE: auricula esquerda

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UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTE

DISCUSSÃOA permeabilidade do foramen ovale é uma situação relativamente frequente1 e, na maioria dos casos, assintomática. A relação entre a presença de FOP e a ocorrência de AVC é controversa, mas vários estudos demonstram que os doentes com AVC criptogénico têm uma prevalência de FOP seis vezes superior do que outras formas de AVC.2

Por outro lado, a presente doente queixava-se de enxaquecas, que, no passado, em casos graves e incapacitantes, se associavam à existência de FOP relacionando-se com a existência de shunts signifi cativos.

Os mecanismos fi siopatológicos subja-centes pressupunham a passagem de microêmbolos que poderiam causar depressão cortical ascendente ou substâncias vasoativas responsáveis pela enxaqueca,3,4 ou, por outro lado, a relação entre FOP e enxaqueca poderiam ser manifestação de defeito de lateralização embrionário (desvio pineal causado por níveis subóptimos de serotonina que, por sua vez, podiam promover enxaqueca e encerramento incompleto de FOP).5

Atualmente, acredita-se que a enxa-queca e o FOP são duas entidades frequentes e muitas vezes coincidentes no mesmo doente, mas a sua relação continua incerta.6 As indicações para o encerramento dos FOP também não são ainda consensuais. Contudo, a possibilidade de encerramento percutâneo é proposta em casos de doentes com história de eventos embólicos prévios não explicados por outra etiologia que não a possível

embolização cruzada através do FOP, mergulhadores ou pilotos de aviação, casos de cianose persistente, doentes portadores da síndroma de ortodeoxia-platipneia.7

O encerramento espontâneo é um acontecimento comum nas crianças, mas raríssimo na idade adulta, sendo escassa a literatura sobre o tema.

A existência de tunelização do FOP suporta a hipótese de que a variação de pressões entre as duas aurículas possa levar à abertura do foramen ovale no caso de um aumento súbito de pressões nas cavidades direitas (por exemplo, aumento de pressões nas cavidades direitas motivada por um tromboembolismo pulmonar signi-fi cativo), com consequente shunt direito-esquerdo e aumento da probabilidade de embolismo cruzado através do foramen ovale.8 O seu encerramento “funcional” poderia então ocorrer se se verifi casse restabelecimento das pressões normais na aurícula direita. Contudo, esforços físicos intensos ou manobras de Valsalva podem predispor a reaparecimento do FOP, quer pelo aumento de pressão na aurícula direita, quer pela alteração de pressão arterial pulmonar.9

No caso ora relatado, não foi, no entanto, documentada a presença de tromboembolismo pulmonar. Embora a realização das manobras de Valsalva efetuadas no primeiro ETE pudessem justifi car a permeabilidade temporária do foramen ovale, fi ca por explicar a sua não reprodutibilidade no segundo ETE.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZCASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZCASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Uma outra possibilidade teórica para explicar o caso clínico, seria a de o doente ter não um FOP mas sim uma fístula arteriovenosa pulmonar (situação que pode mimetizar a presença de FOP

no ecocardiograma de contraste), que entretanto teria encerrado. No entanto, este possível diagnóstico foi excluído na angiografi a pulmonar.

CONSIDERAÇÕES FINAISEste caso clínico é marcado pela sua raridade mas, por outro lado, abre horizontes para discussão sobre um tema polémico e ainda com algumas lacunas. Poder-se-ia especular que, caso fosse

possível defi nir fatores dinâmicos de encerramento do FOP, haveria lugar para o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas.

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CUIDADOS PALIATIVOS APÓS ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

CUIDADOS PALIATIVOS APÓS ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO Palliative care after ischaemic stroke. Case report

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente internada durante cerca de quatro meses na Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz, admitida duas semanas após ter sofrido um extenso acidente vascular cerebral (AVC) isquémico do território da artéria cerebral média esquerda. Deste evento resultou afasia global, hemiplegia direita, hemianópsia direita, disfagia e incontinência de esfíncteres, encontrando-se a doente, na admissão, totalmente dependente de terceiros para as atividades de vida diária. Para melhor compreensão do contexto, os autores descrevem as principais intervenções multidisciplinares implementadas du-rante o internamento da doente até à sua transferência para o centro de reabilitação do Alcoitão, com gestão do

The authors report the clinical case of a woman admitted for about four months in the Palliative Care Unit of the Hospital da Luz, two weeks after suffering an extensive ischaemic stroke of the left middle cerebral artery. From this event resulted global aphasia, right hemiplegia, right hemianopsia, dysphagia and sphincter incontinence. On admission, the patient was totally dependent on others for daily activities. To clarify the context, the authors describe the major multidisciplinary interventions implemented, in Hospital da Luz up to the patient discharge to Alcoitão rehabilitation center, under the responsibility of the Palliative Care Unit team in collaboration with professionals of Neurology, Physical Medicine and Rehabilitation, Imagiology, Cardiology

ISABEL GALRIÇA NETOANA LUÍSA BETTENCOURT*

ANA SOFIA SANTOSCARLOS RODRIGUES

MARCO VIEIRAVASCO SILVA

Unidade de Cuidados Paliativos

*Interna complementar de Medicina Geral e Familiar a realizar um estágio no Hospital da Luz

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Os cuidados paliativos são cuidados clínicos ativos e preventivos do sofrimento condicionado por doenças graves e irreversíveis e têm como objetivo principal uma intervenção global baseada no controlo sintomático, no respeito pelos valores do doente, na comunicação adequada e no apoio à família, que se prolonga no período do luto. Trata-se, atualmente, de um verdadeiro direito humano a incluir na prestação de cuidados de saúde modernos, permitindo, com a sua aplicação, que mais doentes tenham um fi m de vida com qualidade.

É consensual internacionalmente,1,2 e as referências nacionais na matéria também o sublinham (p. ex. o Programa Nacional de Cuidados Paliativos), que os cuidados paliativos devem ser prestados com base no sofrimento dos doentes e não apenas com base no diagnóstico ou no prognóstico. Assim, podem ser introduzidos, de forma estruturada, em fases mais precoces de doença grave e/ou avançada e irreversível, (qualquer que ela seja), mesmo quando outras terapêuticas, cuja fi nalidade seja a de prolongar a vida, estejam a ser utilizadas. Ao contrário

INTRODUÇÃO

caso pela equipa de Cuidados Paliativos em articulação com profi ssionais dos departamentos de Neurologia, Medicina Física e de Reabilitação, Imagiologia, Cardiologia e Gastrenterologia. Com este relato pretende-se, entre outros aspetos, sublinhar a relevância do conhecimento e aplicação dos critérios de inclusão de um doente com AVC nas situações que justifi cam a prestação de cuidados paliativos, bem como o benefício da sua referenciação atempada para estas unidades e a importância do seu trabalho multidisciplinar. Sublinha-se, uma vez mais, que os cuidados paliativos são prestados com base num conjunto de necessidades associadas ao sofrimento decorrente de doença grave, crónica e avançada - qualquer que ela seja -, não se destinando apenas a doentes oncológicos e/ou em fase terminal de vida. É fundamental conhecer estes princípios, para que mais doentes e famílias possam ter dignidade e qualidade de vida nas fases avançadas das suas doenças.

and Gastroenterology. With this case report the authors intend, amongst other issues, to highlight the importance of knowing and applying the inclusion criteria of a patient with stroke in the situations which justify the provision of palliative care. Furthermore, they want to emphasize the benefi ts of an early referral for these units and the importance of its interdisciplinary work. Palliative Care are provided regarding a set of needs associated with suffering caused by serious, chronic and advanced illness - whatever the diagnosis might be -, rather than being only designed for oncologic and/or dying patients. It is essential to understand these principles in order to allow more patients and their families to have dignity and quality of life in advanced stages of their diseases.

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CUIDADOS PALIATIVOS APÓS ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 76 anos de idade, casada, com dois fi lhos com os quais não coabitava (o fi lho principal cuidador reside habitualmente em Londres), natural da Índia, residente em Moçambique até 1973 e a partir de então em Lisboa. Era membro ativo da comunidade ismaelita, sendo voluntária no Hospital Pulido Valente. Anteriormente à doença era autónoma nas atividades de vida diária. No início de janeiro de 2013, foi transportada ao serviço de urgência do hospital da sua área de residência por quadro de alteração do estado de consciência, queda do leito sem traumatismo crânio-encefálico ou perda de consciência e instalação súbita de diminuição da força muscular à direita. Realizou tomogra-fi a computorizada crânio-encefálica

(TC-CE), que revelou hipodensidade cortico-subcortical fronto-temporo-parieto-opercular-insular esquerda, condicionando uma discreta atenuação sulcal adjacente em relação com lesão vascular isquémica recente no território da artéria cerebral média esquerda, sem sinais de transformação hemorrágica. Foi decidido pela equipa clínica que avaliou a doente que esta não teria critérios para a realização de trombólise, desconhecendo-se mais pormenores acerca dos motivos que justifi caram essa decisão. Assim, foi internada com o diagnóstico de AVC isquémico extenso da artéria cerebral média esquerda.

Nessa altura, apresentava-se afásica, com hemiplegia sensitivomotora direita, hemianópsia direita e incontinência de esfíncteres. Analiticamente, verifi cava-

do modelo tradicional dicotómico de prestação de cuidados de saúde - e ainda maioritariamente vigente -, em que os cuidados com intuito curativo (ou tratamento dirigido à doença) são oferecidos por tempo excessivo e em oposição aos cuidados paliativos, o que atualmente se preconiza é a implementação de um modelo integrado de cuidados - cuidados partilhados -, em que os cuidados paliativos são oferecidos em simultâneo com cuidados dirigidos à doença, precocemente no curso das doenças graves. É isso que deve acontecer no caso de doentes com acidentes vasculares cerebrais (AVC), mediante critérios que também estão hoje bem defi nidos.2,3 Estes critérios

apontam para a necessidade de oferecer cuidados paliativos na fase aguda dos AVC, quando estes são muito graves, na fase pós-aguda quando se atinge uma fase de estagnação com perdas crónicas signifi cativas e na fase evolutiva fi nal dos AVC, quando há um agravamento marcado.4

Na Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos (UCCP) do Hospital da Luz, no ano de 2012, dos 441 episódios de internamento registados no âmbito dos cuidados paliativos, 40% corresponderam a situações não oncológicas. Destes, 16 casos (9,3%) diziam respeito a quadros de acidente vascular cerebral.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

-se anemia microcítica hipocrómica (hemoglobina, Hb de 9,9 g/dL), aumento dos parâmetros infl amatórios (leucocitose de 13,12 x 109/L, proteína C reativa, PCR, de 14,2 mg/dL), gama glutamiltransferase (GGT) de 289 UI/L, desidrogenase láctica (LDH) de 843 UI/L, sem outras alterações relevantes. O eletrocardiograma revelava ritmo sinusal, sem sinais de isquemia aguda. O ecodoppler carotídeo-vertebral revelou múltiplas estenoses intra e extracerebrais (eixo carotídeo direito - carótida interna 50%; carótida externa 55%; eixo carotídeo esquerdo - carótida interna 50%; carótida externa 55%; artérias vertebrais direita e esquerda 50%, aspetos sugestivos de estenose das artérias cerebrais médias, artéria cerebral anterior direita, artérias vertebrais e artéria basilar). O ecocardiograma mostrou hipertrofi a do septo interventricular, disfunção diastólica de grau I e dilatação da aurícula esquerda, sem disfunção sistólica ou alterações da cinética segmentar. Durante o internamento nessa unidade hospitalar, a doente realizou antibioterapia com meropenem, por provável pneumonia de aspiração, sem isolamento de agente, com melhoria clínica e analítica. Foi alvo de reabilitação motora e da fala, sem ganhos signifi cativos, mantendo estado neurológico idêntico ao da admissão, com dependência total nas atividades de vida diária, sem controlo de esfíncteres e com as necessidades nutricionais a serem satisfeitas através de sonda nasogástrica.

Passadas cerca de três semanas, a pedido da família, a doente foi transferida e internada na Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz para

reabilitação, com o diagnóstico de AVC isquémico da artéria cerebral média esquerda, com quadro de afasia global, hemiplegia direita, incontinência de esfíncteres e outros sinais de mau prognóstico funcional na admissão (ausência de mobilidade no leito e de equilíbrio de tronco, entre outros). Cumpria assim critérios para ser incluída na tipologia paliativa reabilitativa.

De salientar como antecedentes pessoais hipertensão arterial (HTA), carcinoma bronquíolo-alveolar com invasão vascular do lobo médio do pulmão direito (T1N0Mx), submetida a cirurgia cerca de três meses antes, enfi sema, anemia microcítica hipocrómica, gamapatia monoclonal de signifi cado indeterminado, doença ateroescleróica, osteoartrose.

Na admissão encontrava-se vigil, com um score de Glasgow de 10 (O4, V1, M5), com afasia global (não compreendia ordens simples, não emitia nem repetia sons, não nomeava). Apresentava apraxia bucofacial, anartria, alexia e disfagia orofaríngea para líquidos e sólidos. A nível motor apresentava hemiplegia direita, com padrão espástico instalado, tipo Wernick-Mann, e ausência de equilíbrio estático e dinâmico na posição de sentada e/ou de pé. Assim, apresentava--se totalmente dependente de terceiros nas atividades de vida diárias, com 10 pontos de acordo com o Índice de Barthel, classifi cado como ajuda total. Neste instrumento de avaliação, os únicos itens avaliados com valores superiores a zero foram a eliminação vesical e intestinal, dado que a doente apresentava períodos ocasionais de continência.

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CUIDADOS PALIATIVOS APÓS ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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Fig. 1 Cadeira de rodas usada para o treino de locomoção

Uma vez que a doente tinha sido transferida de outra unidade hospitalar e de acordo com as normas vigentes da Comissão de Controlo de Infeção do Hospital da Luz, foram instituídas medidas de isolamento preventivo e colhidas amostras para pesquisas microbiológicas cutâneas com zaragatoa. A doente apresentava colonização cutânea com Enterococcus resistente à vancomicina (VRE+), pelo que se instituiu isolamento de contacto permanente. Esta circunstância impossibilitou a descida ao ginásio e interferiu com o plano de reabilitação.

A doente foi avaliada inicialmente por médicos de Medicina Física e Reabilitação e de Neurologia. Após TC-CE, realizada alguns dias depois do internamento no Hospital da Luz e que excluiu transformação hemorrágica, optou-se por iniciar terapêutica com varfarina.

Foi instituído um programa de reabilitação a realizar no quarto, que incluía intervenções articuladas de enfermagem de reabilitação, terapia ocupacional, terapia da fala e fi sioterapia (motora e respiratória).

Destacam-se, como intervenções espe-cífi cas de enfermagem de reabilitação no internamento:

- Mobilizações articulares e auto-mobilizações;- Atividades terapêuticas (ponte, rolamentos, facilitação cruzada);- Posicionamentos em padrão anti-espástico, com alternância de decúbitos;- Treino de transferências entre superfícies;- Treino de marcha controlada;

- Treino de equilíbrio sentado;- Treino de cuidados de higiene e de vestuário;- Treino de alimentação;- Treino de controlo de esfíncteres;- Treino de locomoção em cadeira de rodas (Fig 1).

Foram realizadas conferências familiares médicas e de enfermagem regulares e mantido o contacto por correio eletrónico e telefone com o fi lho residente em Londres, disponibilizando a revisão regular da situação clínica e alertando para o reduzido potencial de recuperação completa, apesar da possibilidade de adaptação às limitações existentes. O fi lho e a nora manifestaram assertividade permanente e integração de dados relativos ao prognóstico. Pelo contrário, o marido apresentou maior difi culdade na integração e incapacidade em aceitar a debilidade e os défi ces da mulher, mantendo uma esperança irrealista e aludindo de forma reiterada à ocorrência de um milagre. Este tema foi abordado pela equipa de cuidados paliativos, respeitando as crenças do marido da doente e clarifi cando que não seria esta equipa o obstáculo ao milagre, caso ele tivesse que acontecer. Antecipou--se também um possível cenário em que o milagre não aconteceria e qual a evolução expectável nessas circunstâncias, dei-

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xando sempre espaço para as práticas religiosas da cliente e da sua família.5,6

Foi possível retirar a sonda nasogástrica à doente, mediante intervenção de reabilitação (terapia da fala) e enfermagem, com técnicas de deglutição. De referir, durante este internamento, a ocorrência de um quadro de prostração acentuada, com reavaliação pela Neurologia após RM-CE em que se constatava a extensão do AVC no mesmo território com uma extensa lesão de encefalomalácia em fase subaguda tardia, interessando os lobos temporal, frontal e parietal à esquerda com perfusão do córtex em relação com o processo de gliose reparativa. Foram observadas de novo lesões isquémicas em fase aguda, interessando o núcleo lenticular e tálamo esquerdos e também pequena zona no centro semi-oval esquerdo, que foram interpretadas como correspondendo a uma extensão do enfarte cerebral no mesmo território. Ocorreu ainda um episódio de alteração do trânsito gastrointestinal, com melenas e agravamento da anemia já conhecida, com “toque renal”, tendo sido necessário suspender a varfarina e efetuar suporte transfusional com duas unidades de concentrado eritrocitário. Foi efetuada endoscopia digestiva alta para esclarecimento da situação gástrica, que apenas revelou uma hérnia do hiato. Na tentativa de iniciar anticoagulação oral, introduziu-se dabigatrano, tendo ocorrido um quadro de alteração progressiva e marcada das enzimas hepáticas, o que obrigou à revisão e remoção dos fármacos com potencial de hepatotoxicidade. Verifi cou-se então uma boa resposta laboratorial. Dado o risco de hemorragia gastrointestinal já observado, na altura da alta a doente

estava medicada com heparina de baixo peso molecular em dose profi lática.

A terapia da fala realizada durante o internamento traduziu-se numa melhoria da motivação e compreensão de material verbal simples, utilizando pictograma para otimizar a comunicação mas mantendo afasia. A terapia ocupacional também permitiu melhorar progressivamente, chegando a fazer treino de vestir e despir. Na área da medicina física e de reabilitação, no momento da alta, a doente fazia treinos de transferência e equilíbrio estático e dinâmico e exercícios no leito, bem como treino de marcha controlada (Fig 2).

Apesar do prognóstico reservado inicial, verifi cou-se uma evolução global favorável durante o internamento, com recuperação funcional parcial e em fase de plateau na altura da alta, apresentando hemiparesia direita de predomínio braquial (com tala para a mão direita adaptada), rotação externa do membro inferior direito e inversão do pé (a utilizar tala) e paresia facial direita.

Fig. 2 A doente numa sessão de treino de marcha controlada

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Passados cerca de quatro meses de internamento, por solicitação da família e depois de uma avaliação em consulta externa, a doente teve alta clínica para o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.

Nesta altura, estava consciente, com um score Glasgow de 13 (O4, V3, M6), com francas melhorias face à afasia, emitindo sons, com repetição, compreendendo ordens complexas, apesar de não nomear e apresentar discurso não fl uente, e sem alterações da deglutição. A nível motor, apresentava hemiparesia direita de predomínio braquial, força grau 0 em todos os segmentos do membro superior direito e força grau 3 na fl exão/extensão coxofemoral e grau 0 nos restantes segmentos do membro inferior direito, de acordo com a escala Lower.

Face à avaliação inicial, pode constatar--se que houve uma redução da espasticidade, nomeadamente ao nível dos segmentos proximais do membro superior e inferior direito, avaliando- -se espasticidade de grau 3 ao nível da mão, punho e antebraço e de grau 1+ na articulação coxofemoral, joelho, ombro e cotovelo, de acordo com escala de Ashworth modifi cada. Também no equilíbrio se registava uma melhoria progressiva, apresentando a doente um equilíbrio dinâmico e estático na posição de sentada, mantendo-se ausente na posição de pé, embora conseguindo manter ortostatismo com apoio.

Na avaliação da progressão do grau de autonomia nas atividades de vida diária, constatou-se que em relação à alimentação era totalmente independente, após preparação do

prato/tabuleiro; no vestuário neces-sitava de ajuda, sendo capaz de vestir e despir as peças de roupa parcialmente; relativamente à continência esfi ncte-riana, apresentava continência intestinal e um episódio diário de incontinência vesical.

Nas transferências, necessitava de ajuda mínima para o fazer, com capacidade para se movimentar em cadeira de rodas sem ajuda.

Os restantes itens do índice de Barthel mantinham a mesma pontuação no momento da alta, sendo o score fi nal de 45 pontos, que caracteriza um grau de dependência moderado.

Posteriormente, a doente teve alta do centro de Alcoitão.

Durante o período que esteve internada nessa unidade, sofreu uma fl ebotrombose no membro inferior direito e registou apenas discretos ganhos adicionais a nível da fala. Globalmente encontrava-se numa situação neurológica sobreponível à descrita para o momento da alta da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz. Continuou a ser seguida neste Hospital em consulta externa de Cuidados Paliativos.

Em setembro de 2013, foi internada no Hospital Pulido Valente com um quadro clínico de agravamento global, no contexto de urosepsis e de progressão da sua doença oncológica pulmonar, sem indicação para a realização de medidas desproporcionadas no grave contexto clínico que apresentava.

A doente veio a falecer no dia 27 de setembro de 2013.

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COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES Os AVC são uma das principais causas de morbilidade e mortalidade em todo o mundo,1,2,7 registando-se, no entanto, diferenças na incidência, prevalência e mortalidade nos diferentes países. Em Portugal, o AVC é a primeira causa de morte e a principal causa de incapacidade no idoso.7

O AVC pode ser defi nido como o desenvolvimento rápido de sinais clínicos de distúrbios focais (ou globais) da função cerebral, com sintomas que perduram por um período superior a 24 horas ou, em casos mais graves, conduzem à morte, sem outra causa aparente que não a de origem vascular.

Cerca de 80% dos AVC são de natureza isquémica e os restantes são hemorrágicos. As manifestações clínicas dependem do território vascular e da área cerebral afetados, podendo causar sequelas de gravidade variável, com diferentes graus de incapacidade.

Apesar de muitos progressos registados a nível dos cuidados disponíveis para este grupo de doentes, a morte pode vir a ocorrer nos primeiros dias ou horas. De acordo com a evidência disponível mais recente, a taxa de mortalidade hospitalar no primeiro mês após o AVC varia entre 17 e 30%.

Genericamente, o risco de morrer após um AVC diminui ao longo do tempo, podendo dizer-se que, em média, em cada dez pessoas que tenham sofrido um evento vascular cerebral, duas morrem ao fi m do primeiro mês, três ao fi m do primeiro ano e cinco ao fi m dos primeiros cinco anos.6

Nos primeiros 30 dias após um AVC os doentes podem integrar três diferentes categorias, correspondentes a três vias de abordagem:

- Aqueles em quem se antecipa um elevado grau de recuperação e, muito provavelmente, benefi ciarão de medidas reabilitativas com vista à regressão substancial das perdas;- Aqueles cuja extensão do AVC e/ou lesões irreversíveis é moderada ou incerta, existindo também incerteza quanto à probabilidade de sobrevivência, podendo ser possível ou provável que o doente não sobreviva aos 30 dias seguintes;- Aqueles em que parece existir um AVC extenso com lesões irreversíveis (e/ou comorbilidades relevantes associadas) e em que a morte representa um evento provável nos próximos dias.

Trata-se pois, de um conjunto de situações acompanhadas de inegável sofrimento, em que, frequentemente, o doente é confrontado de forma abrupta com novos sintomas e perda de capacidades importantes, e com um conjunto de limitações que têm um forte impacto na vida familiar, obrigando todos a adaptações relevantes.1,2,4 Muito se tem escrito sobre a prevenção secundária dos AVC e sobre as intervenções de reabilitação; comparativamente, muito menos se tem desenvolvido sobre a necessidade de prevenção terciária e de dar relevância à promoção da qualidade de vida de um grupo de doentes tão numeroso e que merece igual atenção, através da oferta de cuidados paliativos de qualidade.4,8

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Importa clarifi car em que situações se deve reconhecer que os doentes com AVC podem benefi ciar de cuidados paliativos.

Existem recomendações nesse sentido, entre as quais se destacam as que foram produzidas em 2001 pela National Hospice and Palliative Care Organization, nos EUA, e que indicam a necessidade de cuidados paliativos quer na fase aguda dos AVC - caso exista sofrimento intenso determinado por défi ces neurológicos graves (como compromisso da nutrição e hidratação, com possibilidade de recurso a medidas não-artifi ciais, por exemplo), ou coma com mais de três dias de duração -, quer na fase crónica, quando ocorra dependência funcional marcada (Karnofsky <50) e complicações médicas relevantes (pneumonia de aspiração, infeções urinárias) decorrentes do estado evolutivo de debilidade que ocorre no pós-AVC.8

Na linha do que já foi referido, também os Gold Standard Framework, através do desenvolvimento dos “prognostic factors” (cuja adaptação se realizou no Hospital da Luz9 como guia objetivo para a correta identifi cação dos doentes com necessidade de cuidados paliativos) clarifi cam as situações em que, no âmbito dos AVC, os doentes devem receber esta tipologia de cuidados:

- Persistência de estado vegetativo, de estado de consciência mínima ou paralisia grave; - Complicações médicas recorrentes; - Ausência de melhoria três meses após o acidente inicial; - Incapacidade cognitiva/demência sequelar pós AVC.

A natureza da abordagem a praticar aos doentes que sofreram um AVC, incluindo os que carecem de cuidados paliativos, é infl uenciada por vários fatores, que incluem a extensão do défi ce residual e disfunção concomitante, a probabilidade expectável de sobrevivência, a presença/ausência de cuidador e a idade do doente.6

Os cuidados paliativos a pessoas doentes com AVC abrangerão:1,2,4

- O controlo sintomático rigoroso (destacando-se os problemas mais frequentes como o delírio, vários tipos de dor, as alterações da comunicação e deglutição, a epilepsia pós-AVC, a ansiedade e depressão);- As necessidades de comunicação em torno do prognóstico e das perdas sofridas; - O apoio às famílias e aos cuidadores;- A intervenção em questões ético-clínicas específi cas e complexas (por exemplo, a ponderação sobre as medidas apropriadas e sobre o que é obstinação terapêutica em cada caso, a suspensão de medidas terapêuticas fúteis ou desproporcionadas) com a eventual discussão de decisões de fi m de vida e diretivas antecipadas; - A intervenção no luto, nos casos pertinentes.

Para além de partilharem um conjunto de necessidades comuns, o grupo dos doentes tratados em cuidados paliativos não é perfeitamente homogéneo, apresentando até algumas diferenças, que levam à consideração de várias tipologias. Assim, além dos doentes em fase aguda/instável, reconhecem-se os doentes estáveis, os agónicos, os doentes em fase de deterioração e os doentes paliativos reabilitativos.10

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Neste último subgrupo incluem-se doentes paliativos com um prognóstico estimado de meses e razoável estado geral, que podem suportar algumas intervenções mais invasivas (sempre proporcionadas) e medidas reabilitativas. É precisamente esta a tipologia em que se incluiu a doente cujo caso clínico se descreve. A reabilitação neste contexto paliativo tem objetivos muito claros, não completamente sobreponíveis àqueles que se verifi cam em doentes em situação aguda previsivelmente reversível: o objetivo central é a promoção do conforto e da qualidade de vida, a par da redução possível da dependência, com uma gestão adequada das expectativas e intervenção nas diferentes vertentes do sofrimento global. O enquadramento da intervenção faz-se pois tendo como referência principal e mais alargada a abordagem dos cuidados paliativos, sendo a intervenção reabilitativa um dos contributos - sempre em complementaridade - para a concretização da qualidade de vida e da redução do sofrimento.11 É imprescindível reconhecer a necessidade e mais-valia do trabalho articulado interdisciplinar entre várias áreas médicas e outros grupos profi ssionais. De ressaltar que a gestão das expectativas do próprio doente e dos seus familiares face à evolução clínica - e às

suas oscilações, progressos e retrocessos e ao nível de recuperação viável no futuro - é, nestes casos, um aspeto fundamental das intervenções da equipa. Exigem-se sólidas competências de comunicação e um conhecimento ético-clínico robusto. Com frequência podem surgir expectativas irrealistas, com o pedido de recurso a intervenções eticamente desproporcionadas e não recomendadas, bem como ideias infundadas sobre o papel da reabilitação. É neste contexto que a ideia de ocorrer um milagre pode acontecer e os profi ssionais de saúde têm que estar capacitados para abordar essa temática tão sensível com o próprio doente ou seus familiares.

A gestão rigorosa dos problemas associados à evolução clínica e a articulação entre os intervenientes que dão resposta às necessidades dos doentes é um verdadeiro desafi o na gestão de casos e, como se disse, um investimento que também acontece no âmbito dos cuidados paliativos.

Espera-se que o relato deste caso possa ter aberto horizontes sobre a ampla intervenção dos cuidados paliativos e faça com que mais doentes possam usufruir deste tipo de intervenção.

AGRADECIMENTOSÀ Doente e à sua Família, pela permissão para divulgar o caso e, acima de tudo, pelo seu exemplo e pela coragem para enfrentar as adversidades no contexto da doença. Às terapeutas Lina Góis e Anna Amorim, do departamento de Medicina Física e de Reabilitação, pelo seu empenhado contributo na

recuperação desta paciente. A todos os profi ssionais do Hospital da Luz das diferentes especialidades médicas e grupos profi ssionais, da Unidade de Cuidados Paliativos e dos restantes setores do Hospital, que se empenharam no tratamento desta doente.

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BIBLIOGRAFIA1. Department of Health, National Stroke Strategy, NHS, 2011.2. Harwood RH, Huwez F, Good D. Stroke Care: A Practical Manual. Oxford University Press, 2011.3. Burton CR, Payne S, Addington-Hall J, Jones A. The palliative care needs of acute stroke patients: a prospective study of hospital admissions. Age and Ageing 2010;39: 554-9.4. Creutzfeldt CJ, Holloway RG, Walke M. Symptomatic and palliative care for stroke survivors. J Gen Intern Med 2012;27(7); 853-60.5. DeLisser HM, A practical approach to the family that expects a miracle; CHEST 2009;135:1643-47.6. Sulmasy DP. Spiritual issues in the care of the dying patients. JAMA 2006;296:1385-92. 7. Silva MJ, Cuidados Paliativos no AVC em Fase Aguda. Dissertação do Mestrado em Cuidados Paliaticos. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2011.

8. Holloway RG, Ladwig S, Robb J, Kelly A, Nielsen E, Quill TE. Palliative care consultations in hospitalized stroke patients; J Pall Medicine 2013;13:407-12.9. Como identifi car doentes em fi m de vida (últimos 12 meses de vida). Adapt. de Gold Standard Framework UK - Prognostic Indicator Guidance. Documento disponíveis para orientação da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz.10. The Australian National Sub-Acute and Non-Acute Patient Classifi cation (ANSNAP): report of the National Sub-Acute and Non-Acute Casemix Classifi cation Study; Centre for Health Service Development, University of Wollongong; August 199711. Javier NSC, Montagnini ML, Rehabilitation of the hospice and palliative care patient. J Pall Medicine 2011;14(5):638-48.

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CRITÉRIOS ÉTICOS EM DECISÕES CLÍNICAS RELATIVAS A UM DOENTE EM FIM DE VIDA

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RESUMO Abstract

CRITÉRIOS ÉTICOS EM DECISÕES CLÍNICAS RELATIVAS A UM DOENTE EM FIM DE VIDAEthical criteria in clinical decisions for an end of life patient

Os autores descrevem o caso clínico de um homem de 68 anos de idade, com insufi ciência renal crónica, a realizar hemodiálise desde há dez anos no contexto de neoplasia maligna do rim (tumor de Gravitz), com progressão recente da doença, plurimetastização e agravamento global. O doente foi transferido pela equipa de Ortopedia, após revisão de prótese do joelho, para a Unidade de Cuidados Paliativos, inicialmente na tipologia de doente paliativo reabilitativo. Com o decorrer do internamento e o agravamento notório da situação clínica, a equipa daquela unidade deparou-se com a questão ético-clínica de, em função dos

The authors report the clinical case of a 68 year-old man, with chronic renal failure, on hemodialysis for the last ten years within the context of a Gravitz tumor, plurimetastizated, referred to the Palliative Care Unit by Orthopedics, identifi ed as a palliative rehabilitative patient. During the admission period, due to deterioration of the patient clinical condition, the team was confronted with the ethical/clinical question of hemodialysis withdrawal. The authors review the most important criteria that should guide the decision processes in such complex clinical cases, and report how the multidisciplinary team concluded that the withdrawal

MARIA APARÍCIOANA GUEDES

CRISTINA RODRIGUESISABEL GALRIÇA NETO

RITA ABRILVASCO SILVA

Unidade de Cuidados Paliativos

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Na prática clínica em cuidados paliativos, no contexto de doença crónica grave, progressiva e incurável - e não necessariamente apenas nos últimos dias ou horas de vida -, é expectável que os profi ssionais se deparem com questões éticas associadas à necessidade de adequar os objetivos de cuidados à evolução clínica observada, à evidência disponível e aos valores do doente e da sua família.1 Esse processo da tomada de decisão, ao qual está associado, inevitavelmente, um determinado grau de incerteza e de complexidade, deve ser tão rigoroso quanto possível e traduzir-se num investimento terapêutico proporcionado, que permita melhorar a qualidade global dos cuidados clínicos prestados.

Na prestação dos cuidados de saúde, o respeito pela autonomia do doente é um valor central e, da mesma forma que postula o respeito pela dignidade e o direito à decisão responsável e

informada, deve ter também em conta as evidências científi cas e o respeito pelas boas práticas. No entanto, o valor da autonomia do doente não deve ser entendido como absoluto e deverá ser ponderado em harmonização com outros valores que, à luz da ética principialista (princípios de Beauchamp e Childress), contemplam a benefi cência, a não malefi cência e a justiça na utilização e acesso aos cuidados de saúde.2

Com o caso clínico que descrevem, os autores pretendem ilustrar as questões que podem surgir em situações clínicas de elevada complexidade multidimensional, a forma como devem ser abordadas e o resultado fi nal. Estes aspetos devem ser contemplados na preparação dos profi ssionais de saúde, nomeadamente dos médicos, bem como na rotina das equipas multidisciplinares.

Salienta-se que o presente caso clínico se enquadra num contexto de decisão

INTRODUÇÃO

objetivos de cuidados, ser necessário rever as medidas terapêuticas em curso e suspender a hemodiálise. Neste trabalho, os autores descrevem os principais critérios que devem orientar os processos da tomada de decisão neste tipo de situações clínicas complexas, expondo a forma como a equipa multidisciplinar concluiu que a suspensão de todos os tratamentos considerados fúteis e/ou desproporcionados era a atitude clínica correta, tendo em conta todos os pilares da ética principialista (autonomia, benefi cência, não-malefi cência e justiça) e as recomendações deontológicas.

of all considered futile treatments was the best clinical attitude, based on the evidence and principles of benefi cence, non malfeasance, autonomy and justice.

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CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 68 anos de idade, caucasiano, casado e com um fi lho com quem não coabitava. O doente tinha sido admitido no Hospital da Luz por infeção de uma prótese total do joelho, colocada dois anos antes, por ressecção do fémur distal com deslocamento da haste femoral devido a metastização óssea de carcinoma do rim. Foi então realizada uma revisão da haste femoral e colocada uma nova prótese não cimentada. Passadas duas semanas de internamento, o doente foi referenciado para a Unidade de Cuidados Paliativos (UCP) para continuação da convalescença e de fi sioterapia, na tentativa de otimizar a sua autonomia funcional e o controlo sintomático. Antes do internamento no Hospital da Luz, o doente era independente na marcha, recorrendo ao apoio de canadianas, bem como nas principais atividades de vida diária (AVD) e não tinha qualquer alteração cognitiva.

Entre os antecedentes pessoais sa-lientava-se:

- Insufi ciência renal crónica com realização de programa de hemodiálise três vezes por semana desde há dez anos,

no contexto de tumor de Gravitz; na ocasião do internamento na Unidade de Cuidados Paliativos, este tumor estava em estadio IV (metastização óssea e pulmonar); - Aneurisma da aorta abdominal; - Angiodisplasia do tubo digestivo com várias hemorragias digestivas no contexto de antiagregação plaquetária, uma das quais com necessidade de gastrectomia parcial, tendo o último episódio de hemorragia digestiva ocorrido dois anos antes do internamento; - Doença arterial extensa, com cardiopatia isquémica e doença vascular periférica.

Durante a permanência na UCP, o estado de debilidade do doente agravou-se progressivamente, com uma incapacidade crescente para as atividades de vida diárias, objetivando--se então progressão de doença oncológica e um agravamento no nível de autonomia, com um valor para o índice de Karnofsky de C20. Este valor corresponde a um doente completamente acamado e dependente de cuidados médicos, apontando para um prognóstico muito desfavorável.

sobre a adequação das medidas e do investimento terapêutico num doente terminal (prognóstico estimado de meses a semanas), o que não equivale à precipitação de um evento fatal ou à negação de cuidados imprescindíveis ao bem-estar do doente. Acima de tudo, pretende-se mostrar como tais decisões

estão relacionadas com a prioridade dada ao conforto do doente face à irreversibilidade da doença e à morte próxima, com o respeito inquestionável pelo valor da vida humana, pelas boas práticas e pelo poder de decisão do indivíduo enquanto ser humano.

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Concomitantemente, foram identifi -cados períodos ocasionais de confusão/delírio com agressividade, associados a encefalopatia secundária a insufi ciência renal crónica grave, tendo sido excluídas outras etiologias possíveis. Esses mesmos períodos condicionaram uma grande ansiedade e angústia nos familiares. Surgiu também dor óssea de difícil controlo (agravada pelas mobilizações, necessárias nomeadamente para as sessões de hemodiálise) e úlceras de pressão nos calcâneos. Foi necessária uma abordagem multidisciplinar célere e rigorosa para promover o controlo sintomático, com estratégias de intervenção não farmacológicas e farmacológicas. Nesta última dimensão, realça-se a necessidade de ajustes frequentes das doses e via de administração de fármacos, nomeadamente neurolépticos e opióides.

Tendo em conta os sinais e sintomas descritos, realizaram-se diversos exames complementares de diagnóstico que revelaram metastização óssea de novo, com fratura femoral patológica à esquerda e neoformação metastática da cabeça do fémur à direita, o que justifi cava o quadro álgico existente. Estes exames revelaram ainda metastização pulmonar, excluindo, no entanto, metástases cerebrais ou outras alterações agudas do sistema nervoso central não condicionadas pela doença oncológica.

Estava-se, pois, perante um doente paliativo - já não na tipologia reabilitativa mas em deterioração rápida -, insufi ciente renal terminal, com doença oncológica avançada e plurimetastizada, irreversível, em progressão, com diversas comorbilidades relevantes.

Apresentava também dependência física acentuada (Karnofsky C20), competência cognitiva questionável e compromisso da sua qualidade de vida (de acordo com a avaliação do próprio doente). Após avaliação da situação clínica pela equipa de cuidados paliativos, e em colaboração com os profi ssionais da área de oncologia, concluiu-se que o doente não tinha indicação para terapêutica dirigida à neoplasia de Gravitz metastizada.

As sessões regulares de hemodiálise, que eram realizadas noutra unidade de saúde, implicavam deslocações que representavam momentos de enorme desconforto físico (essencialmente com agravamento a nível do quadro álgico) e também psicológico, com períodos de confusão, inquietação e também de falta de esperança, expressa pelo doente, durante os períodos de lucidez, como estando “cansado de viver”.

Perante esta situação, tornou-se evidente para a equipa a necessidade de defi nir novos objetivos de cuidados, dando prioridade ao conforto no contexto de doença grave e irreversível e de deterioração global acentuada, com adequação das medidas terapêuticas e a indicação ético-clínica para manter/suspender tratamentos dialíticos neste contexto.

Foram consultados os médicos que acompanhavam o doente, nomeadamente de ortopedia, de oncologia e de nefrologia, que confi rmaram a vontade expressa verbalmente pelo doente de não manter os tratamentos de hemodiálise se estes se traduzissem em maior sofrimento pessoal.

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A decisão ponderada e tomada em equipa, depois de considerados diversos aspetos, foi então de suspender a realização de tratamentos de hemodiálise, tendo deste facto dado conhecimento à direção clínica do Hospital da Luz.

Os fatores que orientaram esta tomada de decisão foram:

- Doente com patologia oncológica de base, com metastização pulmonar e óssea difusa, em progressão e sem indicação para manter tratamentos dirigidos à doença;- Doente sob hemodiálise há dez anos, apresentando insufi ciência renal terminal;- Doente com impossibilidade de recuperar a sua funcionalidade motora e autonomia pelas lesões ósseas existentes, com fratura óssea patológica bilateral a nível dos membros inferiores, impossibilitando a carga;

- Declínio físico e cognitivo importante nas últimas semanas, devido a quadro de encefalopatia associada a insufi ciência renal irreversível;- Informação dada pelo médico nefrologista assistente e pela família, de que o doente não pretendia que se mantivessem medidas que prologassem a sua vida à custa de sofrimento e ausência de qualidade de vida.- Referências do doente, em momentos de lucidez, a que “assim não queria viver” e que o seu estado clínico não fazia para ele sentido. Assim, suspenderam-se consensualmente tratamentos de hemodiálise e a utilização de quaisquer fármacos ou medidas que não fossem essenciais para o bem-estar do doente.

O doente faleceu tranquilamente, 11 dias depois do último tratamento de hemodiálise.

DISCUSSÃOEntre os doentes com doenças avançadas e incuráveis e que carecem de cuidados paliativos encontram-se, além dos doentes oncológicos, aqueles que têm insufi ciência avançada de órgão.

A vida dos doentes insufi cientes renais melhorou, quantitativa e qualitativamente, devido aos de-senvolvimentos médicos e tecnológicos que reduziram o impacto negativo da diálise e do transplante renal. A hemodiálise, sendo uma das opções de tratamento, deve ser proposta aos doentes tendo em conta os benefícios

e os problemas possíveis e envolvendo o doente e a família no processo de decisão.3 Assim, a prestação de cuidados aos doentes renais crónicos requer treino de comunicação, partilha de informação e decisão multi e interdisciplinar sobre a abordagem terapêutica a adotar.

A propósito deste caso, foi revista literatura médica, nomeadamente artigos e guidelines,4-9 bem como outros textos sobre informação e esclarecimento dos critérios de iniciação e suspensão de hemodiálise, incluindo

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a recente norma da Direção Geral de Saúde sobre esta temática,4 sendo do consenso geral que os doentes devem participar na discussão do seu tratamento. No entanto, por vezes, a degradação cognitiva associada à doença renal crónica avançada impede a participação efetiva do doente no processo da tomada de decisão, pelo que o planeamento das decisões sobre o que fazer na fase avançada da doença deve ser devidamente antecipado junto do doente e sua família.

A decisão de suspender ou de não iniciar os tratamentos de diálise era considerada por alguns como uma forma de antecipar a morte.8 Por vezes, consideram-se diferenças entre o facto de não se iniciar uma determinada terapêutica e o facto de se suspender uma terapêutica já iniciada. Na atualidade, a suspensão de uma terapêutica é aceite, com amplo consenso, como medida correta, atendendo, por um lado, a que as boas práticas recomendam que os clínicos não sejam obrigados a manter vivo um doente com uma doença grave e avançada, se isso acontecer à custa de relevante sofrimento associado, e por outro, considerando que é a própria doença irreversível a causa primeira da morte desse doente.

Esta decisão tem de ser baseada em critérios claros e fundamentada ética e juridicamente. No âmbito ético-clínico, um dos fatores que pesa na decisão é o momento em que a diálise deixa de representar um objetivo signifi cativo para a pessoa sujeita ao tratamento. Assim, o principal objetivo dos tratamentos de diálise não é apenas prolongar a vida, mas sim promover a qualidade de vida enquanto se registar um nível

considerado aceitável, de acordo com o conceito do doente, da família e dos profi ssionais de saúde.

Entre os critérios referidos na literatura para fundamentar a suspensão da hemodiálise destacam-se os seguintes:5 - Pessoas com alterações neurológicas consideradas irreversíveis, não apresen-tando sinais de orientação temporo-espacial, comportamento intencional;- Doentes que não apresentem condições médicas para a realização da diálise.

Adicionalmente, impõe-se que sejam considerados fatores prognósticos espe-cífi cos, como a idade, o estado funcional e a albuminemia.10 É consensual que, quanto maior a idade e menores o índice de Karnofsky e o valor de albumina sérica, pior será o prognóstico de sobrevivência.10-13

Outros autores determinam caracte-rísticas clínicas que estão presentes no fi nal de vida e às quais se deve dar destaque para estabelecer um prognóstico, quando da decisão sobre a suspensão terapêutica, como por exemplo:10

- Funcionalidade comprometida: agravamento da sintomatologia, com-portamento de recusa do doente, readmissões frequentes em internamento hospitalar (atendendo a que se deve proceder à exclusão de outras causas para estes problemas);- Debilidade acentuada: declínio funcional, úlceras de pressão, infeções recorrentes;- Diálise: difi culdade em realizar hemodiálise; - Aparelho cardiovascular: agravamento da doença vascular periférica;

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- Outras comorbilidades: demência progressiva, presença de qualquer outra condição clínica com prognóstico inferior a seis meses e sem tratamento curativo possível.

Os mesmos autores reforçam a importância das decisões serem discutidas precocemente com o doente e a relevância de envolver a família nesse processo.

No caso relatado, o doente apresentava um bom controlo sintomático global, mas com alterações do padrão de mobilidade (totalmente acamado) e do padrão cognitivo (períodos mais frequentes de desorientação e agitação), num contexto de doença oncológica plurimetastizada irreversível e em progressão e de insufi ciência renal terminal. Os fatores de decisão descritos reforçam o conceito de se tratar de uma situação clínica avançada e irreversível, bem como o facto de se estar perante um doente com mau prognóstico associado, e permitiram tomar uma decisão fundamentada e esclarecida sobre a continuidade ou suspensão da diálise.

Para além dos fatores clínicos referidos, importa também considerar, mais especifi camente, a moldura ética. Os princípios propostos pela ética principialista, que se defende, e pelos quais devem ser orientadas as tomada de decisões são os seguintes: benevolência, não malefi cência, autonomia e justiça. A estes princípios devem acrescentar- -se alguns conceitos que também foram considerados na discussão do problema ético-clínico em questão.

A intenção que presidiu à suspensão da diálise foi a de atuar no melhor

interesse do doente para lhe promover um benefício - e não para lhe provocar deliberadamente a morte -, atendendo a que não existiam meios para lhe prolongar a vida sem ser à custa de malefício signifi cativo.14

Deve ainda esclarecer-se o conceito de obstinação terapêutica, defi nida como a aplicação de tratamentos cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos da doença, ou inútil porque o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis.15 Este conceito está intimamente relacionado com o de futilidade terapêutica, que, na sua aceção mais lata, é frequentemente utilizado pelos profi ssionais de saúde na discussão da proporcionalidade de uma intervenção ou opção por determinado tratamento. No entanto, nem os profi ssionais de saúde, nem os peritos em ética clínica/bioética, concordam numa defi nição concisa e universal que possa ser aplicável a todas as situações clínicas.16

Ainda assim, empiricamente e recorrendo ao consenso, pode afi rmar--se que, se é improvável que uma determinada intervenção traga benefício a um doente, em particular num contexto de doença irreversível, e se não cumpre os objetivos de bem-estar do doente, é então uma intervenção fútil. Nenhum profi ssional de saúde está ética, clínica ou legalmente obrigado a prestar terapêuticas fúteis. Pelo contrário, a acontecer, deve ser considerado má prática clínica e ser sancionado pelos códigos deontológicos vigentes.14-17

Trata-se, assim, de fazer tudo o que se deve, mas não tudo o que se pode. Ao falar de processo de tomada de decisões e da necessidade de incluir

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precocemente no curso da doençaas discussões sobre as medidas terapêuticas a adotar numa fase fi nal de vida, deve ser abordada também a questão das diretivas antecipadas de vontade e o testamento vital.18

Na lei portuguesa, este regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV). A Lei nº 25/2012 de 16 de Julho19 regula e defi ne o conteúdo destes documentos, sendo unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, prevendo que uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifeste antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente. Clarifi ca ainda que, no caso de doentes sem capacidade e no caso de não existirem documentos escritos, as questões de fi m de vida sejam discutidas com os familiares ou representantes, tendo em conta a opinião da família e as vontades do doente previamente manifestadas (a outras pessoas ou profi ssionais, caso existam).

Assim sendo, deve salientar-se que mesmo sem a existência de um testamento vital - o que acontecerá na maioria dos doentes -, é imprescindível que o clínico e a restante equipa promovam discussões detalhadas e esclarecedoras, no sentido de os

doentes tomarem decisões realistas e esclarecidas. É também imprescindível que, perante um doente não competente para tomar decisões, se indague qual a vontade esclarecida que previamente terá manifestado.18-20

Estas questões colocam desafi os à relação médico-doente, à relação com os familiares e aos profi ssionais de saúde em geral e têm resposta através do desenvolvimento de competências de comunicação e de decisão ético-clínica. Julga-se com frequência, erradamente, que é à família que compete tomar decisões sobre as questões ético-clínicas. No entanto, é ao clínico, ouvida a família e considerada a vontade do doente, que compete a decisão fi nal, sempre no melhor interesse do doente, respeitando o valor da vida e também a inevitabilidade da morte próxima.

No caso descrito, o doente estava confuso e impossibilitado de tomar uma decisão consistente. Em alguns períodos anteriores de lucidez, referira não querer mais medidas terapêuticas invasivas e não proporcionadas. O médico nefrologista assistente foi ouvido, bem como a família do doente, opinando que deveria ser suspensa a hemodiálise, com base no facto de o doente ter previamente manifestado vontade de não prosseguir com essa terapêutica, caso ela não lhe proporcionasse qualidade de vida ou lhe prolongasse a vida à custa de grande sofrimento.

O impacto de uma doença crónica, avançada e incurável faz-se sentir não só sobre o doente, mas também em toda a sua unidade familiar, que, por vezes, sofre até mais que o próprio doente. Por isso mesmo, em cuidados paliativos, os

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profi ssionais incluem a família no plano de cuidados, para poder ajudá-la a lidar da forma mais construtiva possível com a crise que a doença terminal representa.5,18

Neste caso, foram avaliadas as necessidades da esposa e do fi lho, tendo-se realizado várias conferências familiares com profi ssionais distintos, para avaliar as suas expectativas sobre a situação, para ouvir a sua opinião e saber da vontade previamente manifestada pelo doente, para lhes prestar apoio emocional e, fi nalmente, para lhes transmitir a decisão sobre a suspensão do tratamento de hemodiálise.

Além da realização das conferências familiares, durante todo o processo de internamento na UCP a equipa ofereceu sempre o seu apoio à família. Este apoio, que decorre das necessidades da família e que é fundamental e imprescindível, implica também maior complexidade no nível de cuidados oferecidos e um desafi o na gestão do tempo e dos recursos humanos da equipa.

O trabalho em equipa é um pilar fundamental nos processos que envolvem decisões complexas em cuidados paliativos e assenta num processo partilhado de decisões, respeitando um plano de intervenção consensualizado. É reconhecida a importância da existência de uma equipa multidisciplinar no acompanhamento de doentes oncológicos em situação de doença avançada, existindo mesmo vários estudos e protocolos ofi ciais que se debruçam sobre esta temática.21,22 Além da pertinência deste tipo de equipas, tem sido estudada a forma como devem atuar quando é necessário tomar decisões clínicas.

Assim, sempre que seja necessário tomar uma decisão concreta, os elementos da equipa devem organizar uma reunião estruturada, onde estejam presentes todas as pessoas competentes para opinar sobre a decisão em causa e, de preferência, pelo menos um dos médicos que tem acompanhado o doente. Toda a informação relevante deve ser transmitida previamente à realização da reunião, para que todos os elementos da equipa possam contribuir de forma satisfatória para o processo da tomada de decisão. Tanto o doente como a sua família devem ser informados dessa reunião e dos seus objetivos. Durante a reunião, não será apenas decidida qual a intervenção clínica a implementar, mas também quem irá transmitir essa informação ao doente e sua família e de que forma o deverá fazer. É importante ressalvar que fazem parte da informação pertinente e fundamental a apresentar na reunião as preferências/necessidades transmitidas pelo doente e sua família relativamente à situação a resolver.

Todas as decisões clínicas que emanam destas reuniões devem cumprir três critérios:22 - Basear-se na evidência; - Centrar-se no doente;- Estar de acordo com quaisquer protocolos existentes e, no caso de se decidir proceder de forma diferente ao protocolo, existir documentação que possa fundamentar tal decisão.

Apesar dos estudos sobre as equipas multidisciplinares se basearem, muitas vezes, no acompanhamento de casos oncológicos, é necessário ter em conta o doente como um todo. Ou seja, a análise das comorbilidades existentes e do estado clínico prévio deve ser tida em conta para

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a tomada de decisão, evitando, desta forma, que o consenso a que se chegue não seja posto em prática. Esta é uma das principais razões apontadas para a não execução das decisões das equipas multidisciplinares,21 bem como para a não observação/análise das preferências / necessidades expressas pelo doente e sua família. Importa ainda sublinhar que a reunião multidisciplinar representa uma ferramenta imprescindível na decisão clínica e a ela está associada um consumo relevante do tempo de trabalho.

Neste caso em concreto, a equipa multidisciplinar de Cuidados Paliativos discutiu duas vezes o caso clínico em reunião alargada, com recurso aos dados clínicos, à opinião da família, a bibliografi a consultada e aos contributos de todas as especialidades envolvidas no caso, de forma a cumprir as boas práticas da tomada de decisões.4,6,23

Ao Doente e à sua Família, pelo seu exemplo e por desafi arem a nossa prática. Aos profi ssionais da Unidade de Cuidados Paliativos e de outros departamentos do

AGRADECIMENTOSHospital da Luz, que participaram na abordagem deste caso e nos cuidados prestados ao Doente. À Direção Clínica do Hospital da Luz pelo seu apoio.

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19. Lei nº 25/2012 de 16 de julho http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/0B43C2DF-C 9 2 9 - 4 9 1 4 - A 7 9 A - E 5 2 C 4 8 D 8 7 A C 5 / 0 /TestamentoVital.pdf, consultada em Julho, 2013.20. Michel D, Moss A. Communicating prognosis in the dialysis consent process: A patient-centered, guideline-supported approach. Adv Chronic Kidney Dis 2005;12(2):196-201.21. Blazeby JM, Wilson L, Metcalfe C, Nicklin J, English R, Donovan JL. Analysis of clinical decision-making in multi-disciplinay cancer teams. Ann Onc 2006;17:457-60.22. National Health Service 2010. The characteristics of an effective multidisciplinary team (MDT). In http://ncat.nhs.uk/sites/default/files/NCATMDTCharacteristics.pdf.23. Davison SN, Rosielle DA. Clinical care following the withdrawal of dialyses; EPERC, 2013. In http://www.eperc.mcw.edu/Fi leLibrary/User / j rehm/fast factpdfs /Concept208.pdf.

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PANICULITE PANCREÁTICA PARANEOPLÁSICA. UM CASO CLÍNICO ACOMPANHADO EM CUIDADOS PALIATIVOS

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RESUMO Abstract

PANICULITE PANCREÁTICA PARANEOPLÁSICA. UM CASO CLÍNICO ACOMPANHADO EM CUIDADOS PALIATIVOS Paraneoplasic pancreatic panniculitis case report. Palliative care approach

A paniculite integra um grupo de alterações infl amatórias com origem primária no tecido adiposo subcutâneo. Trata-se de uma entidade clínica rara, nomeadamente no contexto da doença pancreática, em que se manifesta em 2 a 3% dos doentes, estando associada principalmente a casos de pancreatite e adenocarcinoma do pâncreas. Mais rara é a associação desta manifestação a doença pancreática e a poliartrite. O conhecimento da associação de paniculite e poliartite a doença pancreática grave é de grande relevância. A literatura médica sobre o assunto é escassa, o que justifi ca também a apresentação deste caso clínico. Os autores descrevem o caso clínico de um homem de 61 anos de idade, com diagnóstico de carcinoma neuroendócrino do pâncreas, com invasão locorregional, extensa

Panniculitis is a group of infl ammatory disorders in which the primary site of infl ammation is the subcutaneous fat. It is a relatively uncommon clinical condition, namely when associated to pancreatic diseases (2 - 3%), above all pancreatitis and pancreatic carcinoma. The association of this event with pancreatic disease and polyarthritis is even rarer. The knowledge of the association of panniculitis and polyarthiritis with severe pancreatic disease is of major importance. Medical literature on this subject is scarce and justifi es the relevance of this clinical case report. The authors report the clinical case of a 61 year-old man, caucasinan, with the diagnosis of pancreatic carcinoma with locoregional invasion, extensive hepatic and splenic metastasis and paraneoplastic pancreatic panniculitis.

ISABEL GALRIÇA NETOCATARINA AMORIM

RITA ABRILRUI RODRIGUES

Unidade de Cuidados Paliativos, Serviços Farmacêuticos

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De acordo com a Organização Mundial de Saúde os cuidados paliativos podem defi nir-se como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes (e suas famílias) que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, da preparação e gestão do fi m de vida e do apoio no luto, com recurso à identifi cação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, mas também psicossociais e espirituais. Os cuidados paliativos são cuidados intensivos de conforto; são prestados de forma multidimensional e sistemática por uma equipa multidisciplinar, cuja prática e método de tomada de decisões se baseia na ética clínica.

O caso que se descreve, de uma situação clínica rara - carcinoma neuroendócrino do pâncreas com paniculite e poliartrite graves associadas -, é um bom exemplo desse tipo de abordagem. Em mais de

cem casos de carcinoma do pâncreas que foram acompanhados ao longo de praticamente sete anos de atividade da Unidade de Cuidados Paliativos (UCP) do Hospital da Luz, este foi o primeiro com paniculite e poliartrite associadas. O desafi o da intervenção da equipa traduziu--se não só pelas questões associadas ao controlo dessas duas entidades no contexto da irreversibilidade da doença de base, mas também pelas questões existenciais e familiares inerentes.

Na Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz foi feita uma abordagem global do doente, considerando todas as necessidades associadas ao seu sofrimento, condicionado pela doença grave, avançada, incurável e progressiva que apresentava. De notar que neste caso, além da progressão da doença oncológica de base, foram sobretudo as manifestações sistémicas associadas à doença que conduziram a um sofrimento mais intenso para o doente.

INTRODUÇÃO

metastização hepática e esplénica, paniculite pancreática e poliartrite paraneoplásicas. O internamento na Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz ocorreu cerca de ano e meio depois do diagnóstico, no âmbito de uma intervenção paliativa, com o objetivo de realizar uma intervenção multidisciplinar global no sofrimento condicionado quer pela dor, agravada à mínima mobilização, quer pelas questões existenciais relevantes no fi m de vida, apoio este que foi conseguido até ao falecimento do doente, 22 dias após a admissão.

He was admitted in the Palliative Care Unit at Hospital da Luz one and a half year after the diagnosis, to receive palliative care. The aim was of relieving the pain associated to mobilization and control other distressing symptoms with a multidisciplinary intervention on global suffering related to the described condition and all issues related with end of life care, was attained and the patient died 22 days after admission.

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CASO CLÍNICO

Indivíduo do sexo masculino, de 61 anos de idade, caucasiano, casado (sendo a mulher a principal cuidadora ), com diagnósti-co de carcinoma neuroendócrino do pâncreas, com invasão locorregional, extensa metastização hepática e esplénica, e poliartrite e paniculite pancreática paraneoplásicas.

O diagnóstico inicial foi feito por biópsia pancreática num hospital local - carcinoma neuroendócrino do pâncreas (grau III) – após exames imagiológicos, que revelaram a presença de uma massa pancreática e extensa metastização hepática e esplénica. Esses exames foram pedidos na sequência do aparecimento de nódulos dolorosos ulcerados nos membros inferiores, com exsudado hemato-purulento e aumento dos valores de desidrogenase láctica, fosfatase alcalina, gama glutamil-

transferase, alfafetoproteína e enolase neuroespecífi ca. Foi realizada biopsia dos nódulos cutâneos com confi rmação de paniculite (secundária à neoplasia pancreática), que levou à realização dos exames imagiológicos e da biopsia pancreática já referidos.

O doente foi submetido a vários tratamentos de quimioterapia, sempre com progressão da doença, bem como com complicações associadas e manutenção/exacerbação do quadro de paniculite e poliartrite (Quadro 1).

Cerca de um ano e meio após o diagnóstico, no início de Abril de 2013, o doente foi transferido para a Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz para controlo sintomático no contexto de progressão da doença oncológica de base e agravamento do quadro de panicultie e poliatrite,

Além da equipa base da UCP e da intervenção mais dirigida da equipa de enfermagem no tratamento das feridas (aqui não desenvolvido), salienta-se também neste caso um envolvimento

particular dos serviços farmacêuticos, através do profi ssional mais ligado à UCP, não só nas revisões terapêuticas como na exploração de soluções terapêuticas específi cas.

Quadro I Protocolos de quimioterapia realizados pelo doente

Etopósido + cisplatina, seis ciclos - Regressão das lesões cutâneas, progressão imagiológica

Carboplatina + Gemcitabina, cinco ciclos - Progressão bioquímica e imagiológica, lipase > 3.000 UI/L, recidiva de paniculine (controlo parcial sob prednisolona)

Topotecano, dois ciclos - Progressão da doença

Ciclofosfamida + adriamicina + vincristina, um ciclo - Progressão da doença, melenas, internamento

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Quadro II Avaliação analítica

Parâmetro (unidades) Admissão Segunda avaliação

Proteína C reativa (mg/dL) 30,3 14,84

Lipase sérica (UI/L) 6.110 37.939

Leucócitos (x 109/L) 32,69 31,1

Neutrófi los (%) 92,8 92,8

Plaquetas (x 109/L) 129 224

Ureia (UI/L) 46 82

Creatinina (mg/dL) 0,78 1,10

Glucose (mg/dL) 94 73

Desidrogenase láctica (UI/L) 1.069 654

Fosfatase alcalina (UI/L) 559 1.261

Gama glutamiltransferase (UI/L) 1.619 2.777

Albumina (g/dL) 3,1 2,1

Proteína total (g/dL) 4,9 ---

Bilirrubina, transamínases e amilasemia Normais ---

Hemoglobina (mg/dL) --- 10,1

a condicionar dependência total de terceiros nas atividade de vida diária (AVD) e impedindo o doente de fazer levante e de deambular. Tinha feito duas unidades de concentrado eritrocitário antes da transferência, por valor de hemoglobina de 8,1 mg/dL, sem controlo pós transfusional.

Nessa altura, o doente apresentava nódulos dolorosos nas mãos e membros inferiores e sem soluções de continuidade; lesões exsudativas nos pés com penso até aos joelhos limpo e seco; abdómen volumoso (sem tensão) com ascite e hepatoesplenomegália marcada. Manifestava dor severa

associada às lesões articulares e cutâneas, não controlada e claramente agravada à mínima mobilização, impedindo-o, nomeadamente de se mover sozinho no leito.

Na avaliação analítica realizada na admissão tinha leucocitose neutrofílica, com contagem de leucócitos de 32,6 × 109/L, neutrófi los 92,8%, proteína C reativa de 30,3 mg/L, gama glutamiltranspeptidase de 1.619 UI/L e lípase sérica de 6.110 UI/L. Os restantes achados analíticos não eram relevantes. Foi pedida reavaliação analítica às 48 horas para avaliar o rendimento da transfusão realizada (Quadro II).

Com base nestes parâmetros labora-toriais e na situação clínica observada, a estratégia de abordagem terapêutica

farmacológica instituída foi a referida no Quadro III.

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Quadro III Estratégia de abordagem farmacológica

Ingrediente ativo Posologia

Morfi na Dose a titular, via subcutânea

Dexametasona 4 mg, via subcutânea, pequeno-almoço e lanche

Octreótido Via subcutânea, 8 em 8 horas

Gabapentina 300 mg, 12 em 12 horas

Furosemida 10 mg, via subcutânea, duas vezes por dia

Bisacodilo SOS

Após 72 horas de internamento, os ganhos clínicos eram evidentes. O doente não tinha queixas álgicas em repouso e mobilizava-se com mais facilidade no leito, estando hemodinamicamente estável e apirético. No entanto, apesar da melhoria das lesões cutâneas nas pernas, apareceram novas lesões exsudativas nas coxas.

Manteve-se sem dor em repouso e assumiu este controlo álgico, mas com maior focalização na dor à mobilização, que descrevia como articular, evidenciando grande ansiedade e receio de voltar a ter dores semelhantes às que já vivenciara em fase anterior da doença. Apresentava novas tumefações no antebraço direito e punho do mesmo lado, com sinais infl amatórios evidentes que pareciam relacionadas com a paniculite e poliartrite, em fase mais exuberante.

A estratégia terapêutica foi discutida com o doente e com a Oncologia, no sentido de ponderar a indicação e benefício de realizar uma nova linha de quimioterapia paliativa, tendo-se levantado a hipótese de efetuar tratamento semanal com taxano, à partida com boa tolerância e que ainda não tinha sido tentado em tratamentos prévios, caso evidenciasse alguma melhoria clínica.

Foi então acordado que se avaliaria a evolução clínica nos dias seguintes para decidir o início ou não da quimioterapia. No entanto, por se ter verifi cado um agravamento global, com necessidade de permanecer acamado 24 horas por dia, o doente questionou o benefício da realização de quimioterapia tendo em consideração todo o contexto anterior. Foi-lhe transmitida toda a informação, devidamente discutida e ponderada, confi rmando a ausência de benefício em reiniciar quimioterapia e a abordagem terapêutica foi revista. Foi ainda decidido que se iniciaria antibioterapia (ceftriaxona subcutânea) dada a possível ocorrência de erisipela concomitante num dos membros e pediu-se observação pela Dermatologia, que concordou com a proposta terapêutica. Apesar da situação infecciosa, dada a magnitude das queixas articulares e cutâneas, entendeu-se que haveria indicação para aumentar a dose de dexametasona - anteriormente não tentada -, tratando-se de um coadjuvante importante na dor mista que ocorre neste tipo de situações (Quadro IV).

Durante todo este processo, e apesar da gravidade e progressão da doença de base, o doente foi melhorando em termos de sintomatologia álgica, tendo mesmo melhorado bastante

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Quadro IV Revisão da estratégia terapêutica

Ingrediente ativo Posologia

Dexametasona 8 mg, via oral, pequeno-almoço e lanche, prova terapêutica analgésica

Ceftriaxona1 g, via subcutânea, 12 em 12 horas, estratégia de controlo de provável erisipela local

InsulinaIncluindo alerta pelo aumento da corticoterapia – vigilância de glicemia

em termos de artralgias após estratégia terapêutica mista (analgésico opioide de acordo com a intensidade e coadjuvante - dexametasona -, de acordo com o tipo de dor), com efetiva mobilização, apesar da incapacidade e receio de fazer levante. Embora estivesse devidamente informado sobre a progressão da sua doença oncológica de base, a maior preocupação do doente residia na fl utuação e persistência das lesões nodulares cutâneas e nas artralgias. Neste contexto, concordou em iniciar fi sioterapia passiva no leito, na tentativa de maximizar a sua autonomia, aferindo progressivamente a sua tolerância ao esforço e a sua evolução.

Dado que se mantinha a debilidade de base, foi feita nova avaliação laboratorial duas semanas depois do internamento, que revelou agravamento da função renal, hipercaliemia e nova diminuição da hemoglobina para 8,1 g/dL.

Foi então reduzida a dexametasona e avaliado o impacto nas artralgias. O doente mantinha nódulos supurativos nos membros inferiores, alguns cicatrizavam e surgiam novas lesões.

Nos dias seguintes decidiu-se ponderar o benefício de uma transfusão, concluindo--se ter baixo benefício e rendimento e

ser uma atitude desproporcionada no contexto clínico observado.

O doente, apesar da tranquilidade e ausência de dor, inclusivamente quando era mobilizado, começou a revelar maior debilidade, permanecendo sem condições para tolerar levante. Foi mantida a otimização do controlo sintomático no leito e alertou-se a família para a possibilidade de um agravamento rápido.

Ao longo do processo de internamento e além das questões do controlo sintomático, emergiram aspetos exis-tenciais relevantes para o doente, que se prendiam com as questões da consciência de fi m de vida e com a preocupação com a situação psicológica da mulher e do seu fi lho. O doente esteve sempre mais sereno e adaptado à evolução desfavorável do seu quadro clínico do que a mulher e o fi lho, que tiverem maior difi culdade em aceitar a evolução negativa e, depois, a proximidade da morte. Foi por isso necessário realizar várias conferências familiares para rever a situação clínica, os objetivos terapêuticos e, também, validar todo o apoio da família e a coragem e tenacidade do doente.

No contexto do apoio global no sofrimento e dada a grave situação condicionada pelas lesões cutâneas e

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articulares com dependência quase total associada, foi entendido como relevante para a equipa da UCP intensifi car as estratégias promotoras da dignidade do doente, aferindo aspetos relevantes da sua narrativa de vida. Neste âmbito, a equipa valorizou o estoicismo revelado ao longo de todo o percurso da doença, nomeadamente na sua fase fi nal, pro-curando-se revelar que se pretendia ir além da doença. No âmbito do plano terapêutico, uma semana antes de falecer foi possível proporcionar uma visita muito motivadora, pelo guarda-redes do Sporting, clube da afeição do doente, que lhe ofereceu uma camisola assinada, o que muito satisfez e comoveu o doente (Fig. 1). Apesar da sua situação, sentiu-se valorizado e olhado para além das suas limitações - não apenas o cancro, não apenas os tratamentos, não apenas a morte.

No fi nal da terceira semana de inter-namento na UCP, desenvolveu um quadro clínico de retenção urinária, sendo, então algaliado.

Fig. 1 O jogador Rui Patrício acompanhado pelo diretor clínico do Hospit,al da Luz, José Roquette, na visita ao doente internado na Uni-dade de Cuidados Paliativos

COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES Os quadros clínicos com a associação de artrite, paniculite e doença pancreática representam uma tríade rara, ocorrendo em menos de 1% dos doentes com com pancreatite aguda ou carcinoma pancreático. As manifestações cutâneas podem até preceder em meses o aparecimento da doença abdominal. A literatura médica sobre este assunto é escassa e constituída sobretudo por relatos de casos de paniculite pancreática, associada a poliartralgias.1-3

Por este facto, os autores consideram relevante chamar a atenção para a importância de se poderem correlacionar os sinais e sintomas de paniculite, de doença pancreática oncológica e de artrite ou artralgias, permitindo que se possa realizar precocemente um correto diagnóstico e que a intervenção clínica vise uma abordagem consistente no sofrimento associado. Apesar dos avanços registados no tratamento dirigido e no diagnóstico precoce de

Estava subictérico, com pele e escleróticas a evidenciar tal facto, verifi cando-se um agravamento pro-gressivo, mas com manutenção do controlo sintomático, validada pelo próprio doente.

No dia seguinte estava prostrado, fracamente reativo e com recusa alimentar, falecendo tranquilamente na madrugada do dia 22 de Abril de 2013.

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várias doenças oncológicas, a neoplasia do pâncreas continua a ser uma entidade à qual está associado um prognóstico muito desfavorável - são menos de 20% os doentes cuja apresentação inicial é de um quadro clínico de doença localizada e a taxa de sobrevivência passados cinco anos do diagnóstico é inferior a 5%.4 Assim, na altura do diagnóstico são comuns os casos de doença avançada plurimetastizada, numa situação que prefi gura a indicação para cuidados paliativos e em que está hoje consensualizado o benefício de uma intervenção pluridisciplinar articulada, num modelo de cuidados partilhados. Como a própria American Society of Clinical Oncology recomenda,5 os doentes podem estar a receber tratamento oncológico dirigido à doença - desde logo, nestes casos, não curativo -, mas tal não deve impedir, antes pelo contrário, a referenciação precoce para cuidados paliativos.

A evidência hoje disponível corrobora a prática clínica da UCP do Hospital da Luz, reforçando o facto de que os doentes que recebem cuidados paliativos precocemente no curso da sua doença avançada têm vários benefícios associados,6.7 nomeadamente, melhor qualidade de vida no fi nal da mesma, são sujeitos a tratamentos menos agressivos e fúteis, com menores custos associados, e as suas famílias têm menor probabilidade de viver lutos patológicos. Lamentavelmente, com claros prejuízos para estes doentes e para as suas famílias, bem como para os serviços de saúde, os cuidados paliativos continuam ainda, frequentemente, a estar associados a uma ideia de “último recurso”, de “fi m de linha” e reservados a doentes moribundos. No caso concreto deste doente, é de salientar a importância da paniculite e da

poliatrite no contexto do sofrimento por ele manifestado. As paniculites defi nem- -se como uma infl amação da hipoderme, têm diferentes etiologias, mas a paniculite pancreática associa-se à necrose gorda que ocorre e que estará na sua origem. A etiologia precisa destas situações de paniculite não está completamente esclarecida,2,3 parecendo ocorrer uma lesão vascular que induz a lipólise pelas enzimas pancreáticas libertadas, sendo esse fenómeno que conduz à necrose gorda. Dada a diversidade de quadros que podem cursar com paniculite pancreática, crê-se que o primeiro passo da cadeia de eventos conhecida será uma lesão pancreática inespecífi ca. O diagnóstico é histopatológico, encontrando-se células características, que perderam o núcleo - “células fantasma” -, sendo dessa forma que se faz o diagnóstico diferencial com outros tipos de afeção do tecido celular subcutâneo, como o eritema nodoso, a paniculite de Weber Christian ou a paniculite lúpica.

As lesões associadas à paniculite descritas na literatura ocorrem maioritariamente na região inferior das pernas - tal como aconteceu no caso descrito - e são lesões eritematosas, de coloração vermelho-acastanhada, de aspeto nodular e que podem ulcerar, libertando um fl uido de aspeto oleoso (Fig. 2). Essas lesões são dolorosas e incomodativas, podem ou não cicatrizar e ocorrem, com frequência, de forma fl utuante - umas cicatrizam e outras novas vão surgindo. Desta forma, o doente pode precisar de pensos extensos e renovados com frequência, como estratégia para diminuir o seu desconforto.

A artrite associada a doença pancreática resulta da necrose gorda periarticular ou

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PANICULITE PANCREÁTICA PARANEOPLÁSICA. UM CASO CLÍNICO ACOMPANHADO EM CUIDADOS PALIATIVOS

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Fig. 2 Exsudado abundante de um dos nódulos de paniculite

do aparecimento de trajetos fi stulosos situados entre a articulação e os locais adjacentes onde se observa a necrose.2 O líquido sinovial é semelhante ao do exsudado das úlceras de pele, revelando uma elevada concentração de ácidos gordos livres. O envolvimento articular é variável, podendo ser mono ou poliarticular, simétrico ou assimétrico, manifestando-se em simultâneo ou de forma diferida dos nódulos subcutâneos.

O aumento dos níveis séricos das enzimas pancreáticas, também observado neste caso e sendo muito frequente nos casos de paniculite, parece estar na origem da necrose já descrita. Há alguns casos, muito raros, em que se verifi ca paniculite sem aumento das enzimas pancreáticas.3

Não existe um tratamento específi co para estas manifestações, pelo que as medidas a instituir coincidem com as relativas à doença pancreática de base. No caso de patologia irreversível, como o carcinoma do pâncreas, podem surgir quadros álgicos recorrentes de grande intensidade. Dessa forma, o tratamento sintomático rigoroso é imprescindível, recorrendo a analgésicos, que serão opióides no caso de dor de intensidade moderada ou forte. Há na literatura

médica relatos de casos em que a administração de octreótido,8 um análogo da somatostatina que reduz a ação secretora exócrina do pâncreas, terá evitado o aparecimento de novos nódulos dolorosos, mas tal não se verifi cou no caso aqui descrito.

A literatura também refere que a utilização de anti-infl amatórios não esteroides, de glucocorticoides ou de imunossupressores não parece trazer benefício à evolução clínica e ao tratamento da dor associada à paniculite e à poliartrite.1,2 No entanto, no caso descrito, decidiu-se fazer prova terapêutica com dexametasona, dado que o componente infl amatório era exuberante e que anteriormente o doente não o tinha experimentado. Registou--se uma resposta álgica favorável ao nível das manifestações articulares, mas não no que toca à redução das lesões cutâneas.

A ocorrência simultânea de paniculite, poliartrite e carcinoma do pâncreas está associada a um pior prognóstico evolutivo.1-3 Isso não deve no entanto motivar uma indesejável obstinação terapêutica e haverá sempre lugar no processo de decisão para a discussão do benefício e da indicação para realizar quimioterapia, como deve aliás sempre acontecer nas situações oncológicas avançadas.

A utilização adequada da quimioterapia nos doentes em fi m de vida é um assunto complexo. Existe evidência9,10 que aponta para uma utilização excessiva de tratamentos oncológicos agressivos no contexto clínico de cancro avançado, muitas vezes com expectativas e objetivos irrealistas e elevados custos

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

associados. Importa continuar a ponderar o contexto ético-clínico em que as decisões são tomadas. Referem--se a este propósito algumas sugestões para mudança de atitudes e práticas,11

Quadro V Alterações sugeridas na intervenção dos oncologistas

1. Dirija os testes de monitorização da doença (imagem e outros) para situações em que há benefício comprovado;

2. Limite os tratamentos de segunda e terceira linha nas situações de cancro metastático a monoterapias sequenciais para os tumores sólidos;

3. Limite a quimioterapia a doentes com bom performance status, com exceção para os casos de tumores com elevada taxa de resposta conhecida;

4. Substitua o uso por rotina de fatores de crescimento dos glóbulos brancos por uma redução de dose na quimioterapia nos tumores sólidos metastáticos;

5. Para os doentes que não responderam a três regimes consecutivos, limite a quimioterapia posterior a ensaios clínicos.

Quadro VI Alterações sugeridas nas atitudes e práticas

1. Os oncologistas devem reconhecer que os custos dos cuidados decorrem daquilo que decidem oferecer e não fazer aos seus doentes;

2. Doentes e médicos precisam de ter expectativas mais realistas sobre os objetivos dos cuidados oferecidos;

3. Deve rever-se a compensação para o apoio psicológico e para a comunicação adequada no processo de doença;

4. Deve melhorar-se a integração dos cuidados paliativos nos cuidados a doentes oncológicos;

5. Deve incluir-se a análise de custo-efetividade dos cuidados e também alguns limites aceitáveis aos cuidados prestados.

quer dos oncologistas (Quadro V), quer de todos os envolvidos nestas matérias (Quadro VI), adaptadas da literatura e que não devem ser ignoradas:

No caso concreto do carcinoma do pâncreas, o tratamento de quimioterapia atualmente preconizado é a gemcitabina, administrada individualmente ou em conjunto com compostos de platina, erlotinib ou uma fl uoropirimidina.4 Em alguns casos, poderá observar-se um aumento da sobrevida e esse facto deve ser devidamente equacionado face ao impacto/custo que o tratamento poderá ter na qualidade de vida doente e também na gestão de expectativas,

tantas vezes irrealistas, uma vez que o tratamento é sempre paliativo. No caso de o doente evidenciar uma elevada debilidade e baixa ou nula autonomia, é altamente duvidoso o benefício da realização de qualquer tipo de quimioterapia.

O doente que se acompanhou, e cujo caso aqui se discute sumariamente chegou à UCP do Hospital da Luz cerca de 16 meses após o seu diagnóstico de carcinoma do pâncreas, num estadio

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PANICULITE PANCREÁTICA PARANEOPLÁSICA. UM CASO CLÍNICO ACOMPANHADO EM CUIDADOS PALIATIVOS

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bastante avançado da doença, com ausência de resposta à quimioterapia paliativa previamente instituída e com grande descontrolo sintomático (dor descontrolada, artralgias e múltiplas lesões em diferentes etapas de evolução, devidas à paniculite). A estratégia de abordagem multi-disciplinar, apesar da situação difícil e da fase avançada da doença em progressão, permitiu objetivamente tomar decisões efi cazes, quer a nível terapêutico, no sentido de alcançar um excelente controlo sintomático - inclusivamente, a ponderação do benefício de instituir ou não uma nova linha de quimioterapia paliativa (paclitaxel) -, quer a nível da gestão das expectativas do doente e da sua família.

Foi claro para o doente e familiares que as intervenções não tinham intuitos curativos, mas sim o controlo da

Ao Doente e à sua Família, à equipa da Unidade de Cuidados Paliativos e a todos os profi ssionais do Hospital da Luz que se envolveram no apoio a este

AGRADECIMENTOScaso, nomeadamente nos departamentos de Oncologia e de Medicina Física e de Reabilitação.

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sintomatologia instalada e a promoção do máximo bem-estar possível. Foi possível verifi car, pela avaliação clínica e pela confi rmação do doente, que os objetivos de atuação tiveram resultados muito positivos na melhoria da sua qualidade de vida, com redução efetiva da dor e prevenção do agravamento das lesões da paniculite.

Houve ainda lugar a discussões pertinentes relacionadas com o sofrimento, frustrações e gestão das expectativas relacionadas com o decorrer da doença. Foi abordada pelos diferentes elementos da equipa a forma como o doente encarava a dependência e como associava esta situação à falta de dignidade, reforçando a importância de reinterpretar esses factos de modo a poder usufruir da vida com qualidade e tirando partido desse tempo, indo além das suas limitações e da doença.

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UM ESTRANHO CASO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL INTERMITENTE

RESUMO Abstract

A UTILIZAÇÃO DE IODO-131 NA TERAPÊUTICA DA DOENÇA DE GRAVES EM JOVENS. A PROPÓSITO DE DOIS CASOS CLÍNICOS Radioiodine therapy in juvenile Graves’ disease. Two clinical cases report

A doença de Graves é a causa mais comum de hipertiroidismo em crianças e adolescentes. As opções terapêuticas incluem fármacos anti-tiroideus, a tiroidectomia e o uso do Iodo-131. A utilização de anti-tiroideus apenas permite a remissão a longo prazo numa minoria de doentes e tem riscos signifi cativos de reações adversas, por vezes graves. A opção cirúrgica, que deve ser reservada para cirurgiões experientes, tem também riscos imediatos e a longo prazo. A utilização do Iodo-131 nos jovens, com uma experiência superior a 50 anos, demonstra bons resultados e segurança, não se confi rmando até à

Graves´ disease is the most common cause of hyperthyroidism in children and adolescents. Therapy may include antithyroid drugs, thyroidectomy and radioiodine. Antithyroid drugs can reach long term remission only in a minority of patients, with signifi cant risks of adverse reactions, which may be severe. Surgery must only be performed by skilled surgeons and also have acute and long-term complications. Juvenile Graves´ disease has been successfully treated with radioidine for more than 50 years. The concerns involving young patients radiation exposure have not been confi rmed, until now. The

FRANCISCO SOBRAL DO ROSÁRIOLURDES LOPES*

CRISTINA LOEWENTHALLEONE DUARTE

MARIA DO ROSÁRIO VIEIRAANTÓNIO GARRÃO

Departamentos de Endocrinologia e de Medicina Molecular* Unidade de Endocrinologia Pediátrica, Hospital de D. Estefânia.

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A doença de Graves é a causa mais comum de hipertiroidismo em idade pediátrica, afetando cerca de 0,02% dos jovens.1 Além do quadro clínico semelhante ao apresentado pelos adultos, naquela faixa etária assume especial importância a infl uência que o hipertiroidismo não controlado pode ter no processo de crescimento e desenvolvimento - inicialmente mais rápido, mas com encerramento precoce das cartilagens de crescimento e, consequentemente, com compromisso da estatura fi nal.2 As opções terapêuticas incluem fármacos antitiroiodeus, a cirurgia e o uso de iodo radioativo.3 Embora a opção inicial seja geralmente a utilização de fármacos anti-tiroideus com a expectativa de conseguir uma

remissão a longo prazo, a maioria dos doentes irá necessitar de terapêutica defi nitiva - com Iodo-131 ou cirurgia.4 A utilização de Iodo-131 em jovens tem sido objeto de polémica, devido às consequências a longo prazo da exposição a radiações, mas trabalhos recentes têm demonstrado a segurança daquela terapêutica.5 Os autores apresentam dois casos clínicos de jovens, em que se registou um aumento signifi cativo dos valores de enzimologia hepática após o início da terapêutica com tiamazol. A terapêutica com Iodo-131 permitiu reverter a situação de hipertiroidismo, com retirada da medicação com tiamazol e subsequente normalização dos valores de enzimas hepáticas anteriormente alterados.

INTRODUÇÃO

CASOS CLÍNICOS

CASO CLÍNICO 1Doente de sexo feminino, de 11 anos de idade, com história familiar de doença de Graves. Foi detetada uma

situação de tirotoxicose sem bócio ou oftalmopatia. A ecografi a tiroideia demonstrava uma glândula tiroideia de dimensões normais, heterogénea, sem

presente data as preocupações associadas à exposição a radiações em crianças e adolescentes. Os autores apresentam os casos clínicos de duas jovens com doença de Graves e com alterações signifi cativas dos valores de enzimas hepáticas, resultantes de reações adversas a anti-tiroideus. A terapêutica com Iodo-131 permitiu a remissão do hipertiroidismo e a resolução das reações adversas apresentadas.

authors report two cases of juvenile patients with Graves´ disease who presented signifi cant increases in liver enzymes as an adverse reaction to antithyroid drugs. Radioiodine allowed the hyperthyroidism remission and normalization of liver enzymes values.

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nódulos individualizáveis. O valor dos anticorpos antirreceptores de hormona estimulante da tiroide (TRAb) era inicialmente de 0,1 UI/L, tendo positivado cerca de três semanas depois do início da terapêutica (1,8 UI/L); os anticorpos anti-tiroglobolina e anti-peroxidase foram sempre positivos. A doente iniciou terapêutica com tiamazol, em doses progressivas. Foi obtido um bom controlo de função tiroideia com uma dose de 10 mg/dia. Passados cerca de seis meses da tirotoxicose inicial, os valores de transaminases e de gama glutamil transferase (GGT), inicialmente sem alterações, apresentavam um aumento de cerca de 4 a 6 vezes do limite superior da normalidade. Foi então proposta uma terapêutica com 5 mCi de Iodo-131, realizada dois meses depois, após interrupção da terapêutica com tiamazol. Não se verifi caram reações adversas à terapêutica, tendo sido cumpridas sem problemas, durante um período de quatro dias, as normas de radioproteção. A família, após ser explicada a situação, compreendeu e colaborou em todo o processo. Na sequência da terapêutica com Iodo-131 registou-se uma instalação progressiva de hipotiroidismo. Cerca de dois anos depois, a doente está medicada com levotiroxina, 0,075 mg/dia e apresenta valores normais de hormona tiroideia em circulação. Verifi cou-se uma normalização completa dos valores de enzimologia hepática. A doente está clinicamente bem e apresenta parâmetros de desenvolvimento dentro da normalidade.

CASO CLÍNICO 2Doente de sexo feminino, de 12 anos de idade. Aos 10 anos de idade, na sequência de um quadro clínico de tirotoxicose, foi diagnosticada doença de Graves, sem bócio ou oftalmopatia. A ecografi a tiroideia não mostrava nódulos tiroideus. O valor inicial de TRAb era de 1,07 UI/L (zona cinzenta), tendo positivado ao fi m de 14 meses (1,93 UI/L). Iniciou terapêutica com tiamazol, em doses crescentes, sendo obtido eutiroidismo com uma dose de 22,5 mg/dia. Concomitantemente, verifi cou-se um aumento progressivo dos valores de transaminases e GGT, até cerca de três a quatro vezes o limite superior da normalidade, associado a aumento dos valores de bilirrubina. A ecografi a hepática mostrava alterações inespecífi cas.

Cerca de dez meses após o diagnóstico, a doente realizou terapêutica com 5 mCi de Iodo-131, depois de interrompida a terapêutica com tiamazol, sem intercorrências. As normas de radioproteção, que implicaram quatro dias de restrição de contactos sociais, foram cumpridas em ambiente de férias escolares, com apoio ativo da família.

Verifi cou-se a instalação de hipo-tiroidismo. Passados cerca de dois anos, a doente está medicada com levotiroxina, 0,05 mg/dia, com valores normais de hormonas tiroideias e sem perturbações a nível do desenvolvimento.

DISCUSSÃOA maioria dos estudos com jovens revela remissão do hipertiroidismo após

terapêutica prolongada com antiroideus em apenas entre 20 a 30% dos in-

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

divíduos6,7 sendo de apenas de 15% em idades pré-púberes.8 Mais recentemente, foi publicado um estudo prospectivo9 em que a taxa de remissão aumentava ao longo do período de medicação, sendo de 20% ao fi m de dois anos, mas de 49% de 10 anos. A menor ou irregular adesão à terapêutica poderá ser um fator adicional contributivo para a elevada taxa de insucesso.5 As reduzidas taxas de sucesso a longo prazo da terapêutica com antitiroideus suportam a necessidade de efetuar uma terapêutica defi nitiva num número signifi cativo destes doentes.5

A frequência e gravidade das reações adversas associadas também limita a utilização destes fármacos. Cerca de 25% dos jovens apresenta reações ligeiras, como prurido, rash, mialgias, aumento da atividade das enzimas hepáticas ou leucopénia, podendo estas reações ser graves em até 0,5% das situações - com agranulocitose e falência hepática, em alguns casos conduzindo à morte.2,3

Pela gravidade e maior frequência das reações adversas associadas, o uso de propiltiouracilo é atualmente desaconselhado, estando reservado apenas para o primeiro trimestre de gestação, pela impossibilidade de utilização dos outros fármacos nesse período, sendo preferido o tiamazol ou o carbimazol.10

Em ambos os casos apresentados registou--se um aumento da atividade das enzimas hepáticas após o início da terapêutica com tiamazol. Os valores destes parâmetros podem estar aumentados em consequência da tirotoxicose,2 mas ao verifi car-se a sua alteração quando os valores de função tiroideia estão a normalizar torna-se plausível a hipótese de reação adversa ao fármaco.

No segundo caso descrito, acresce o facto de ter sido necessária uma dose relativamente elevada de tiamazol para obter o estado de eutiroidismo, o que faz supor resistência à ação dos antitiroideus e um intervalo provavelmente mais longo de terapêutica farmacológica, o que poderia potenciar os riscos de uma reação mais grave. No primeiro caso, observou--se um aumento muito signifi cativo dos parâmetros hepáticos num intervalo de tempo muito curto, o que levou à decisão rápida de suspender a terapêutica - o que apenas é possível de efetuar em segurança através da instituição de uma terapêutica defi nitiva, como é o Iodo-131.

A tiroidectomia não é recomendada como primeira opção, mas tem especial indicação em bócios de grandes dimensões resistentes à terapêutica com antitiroideus. Nestes casos, é pouco provável a resposta ao Iodo-131.5 Em doentes em que coexista uma situação de oftalmopatia em fase ativa, é também aconselhada a cirurgia, em contraponto à terapêutica com Iodo-131, que poderia conduzir ao agravamento oftalmológico.4 As complicações da tiroidectomia a longo prazo incluem lesão do nervo recorrente e hipoparatiroidismo defi nitivo. Embora raras (inferiores a 2% em centros especializados), quando acontecem implicam limitações para o resto da vida. Nos jovens, a questão da cicatriz cervical pode representar igualmente um problema. Nos casos apresentados, o volume da glândula tiroideia não estava aumentado.

Apesar de ser unanimemente considerado efi caz, o uso de Iodo-131 em jovens tem levantado várias questões. Uma delas prende-se com a exposição a radiações numa fase precoce de vida, em que os

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tecidos, em especial a glândula tiroideia, estariam especialmente sensíveis aos efeitos cancerígenos da radiação ionizante. Verifi cou-se um aumento da incidência de carcinoma da tiroideia após os acidentes nucleares de Chernobyl e de Hiroxima, ou após a exposição a radioterapia externa.11 No entanto, o risco de neoplasias tiroideias é maior com a exposição a níveis reduzidos de radiação (0,09-30 µCi/g), muito inferiores às atividades utilizadas na terapêutica da doença de Graves – em que, precisamente para obviar o risco de neoplasias tiroideias, é proposto efetuar terapêuticas com atividades de Iodo-131 variando entre 110 e 220 µCi/g. Acresce o facto de no acidente nuclear de Hanford, em que se verifi cou fuga de Iodo-131, não se ter observado aumento da incidência de carcinoma da tiroideia, tal como não se observou em 6.000 crianças que receberam Iodo-131 para efeitos de diagnóstico.5

Os estudos retrospetivos efetuados, envolvendo períodos de follow-up até 36 anos, não revelaram aumento do risco de carcinoma da tiroideia ou leucemia.5,12

Na literatura médica apenas estão descritos quatro casos de carcinoma da tiroideia após utilização de Iodo-131 na juventude, todos associados ao uso de doses mínimas de radioisótopos.5 O risco de mortalidade associado a qualquer tipo de cancro também não é aumentado.5

No entanto, dado ter-se verifi cado que o risco de carcinoma da tiroideia associado à exposição a radiações externas (por exemplo, no contexto de linfoma mediastínico) é máximo até aos cinco anos de idade, reduzindo em idades superiores, alguns autores defendem que será prudente evitar terapêuticas com

Iodo-131 em crianças com idade inferior a 5 anos.5

Outra das questões levantadas refere--se a eventuais repercussões a nível das gónadas. Os estudos retrospetivos revelam manutenção de fertilidade e inexistência de uma taxa aumentada de malformações ou abortos.12

A terapêutica com Iodo-131 tem poucas complicações imediatas. Nesta faixa etária dos doentes descritos, podem ocorrer náuseas, vómitos ou enurese.5,13 Nos dois casos apresentados, a terapêutica foi muito bem tolerada, com um reduzido impacto na vida das famílias dos doentes. Uma correta explicação dos riscos da exposição à radiação e das implicações das medidas de radioproteção permitem diminuir a ansiedade associada e aumentar a adesão à terapêutica. Em casos com oftalmopatia em fase ativa, que não estava presente nas jovens tratadas, a utilização de Iodo--131 exige cuidados acrescidos, por risco de agravamento do problema, sendo a terapêutica contraindicado em casos de oftalmopatia grave em fase ativa.4 O hipotiroidismo ocorre na maioria dos casos,12 o que é expectável pelas doses relativamente elevadas de radioisótopo que são utilizadas. Embora idealmente seja preferível tratar o hipertiroidismo sem induzir hipotiroidismo, é necessário ter em mente que o objetivo principal será tratar o hipertiroidismo, evitando recidivas, o que se obtém com o hipotiroidismo. A prevalência aumenta ao longo do tempo, o que implica um follow-up a longo prazo.4 A terapêutica com levotiroxina oral permite o correto equilíbrio da função tiroideia.4 Nos dois casos descritos assistiu-se à instalação de hipotiroidismo, mas uma vigilância atenta

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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permitiu a instituição de terapêutica com levotiroxina, evitando repercussões a nível do correto desenvolvimento ou de níveis de bem estar.

Em conclusão, a utilização da terapêutica com Iodo-131 permitiu controlar a situação de tirotoxicose associada a doença de Graves em duas jovens que apresentavam aumentos da atividade

das enzimas hepáticas, secundários à terapêutica com tiamazol. Ao consegui- -lo, evitou-se o uso do fármaco e reverteu--se a reação adversa. As publicações mais recentes demonstram que os receios em relação ao uso deste radioisótopo em jovens não têm fundamento, o que permitirá uma crescente utilização em situações similares.

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DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICO Alfa-1 antitripsine defi ciency. Case report

A defi ciência de alfa-1 antritripsina, descrita pela primeira vez em 1963, é uma doença hereditária causada por uma mutação genética localizada no braço longo do cromossoma 14. De diagnóstico tardio e raro, é relativamente frequente, existindo uma multiplicidade de alelos que se traduzem num espetro alargado de doenças com diversas manifestações clínicas. Mais frequentemente, a defi ciência de alfa-1 antitripsina predispõe para o aparecimento de enfi sema pulmonar e doença hepática e, com menos frequência, para paniculite e vasculite c-ANCA positiva. O fenótipo ZZ está associado à doença pulmonar obstrutiva, sobretudo nos fumadores, sendo responsável pelo aparecimento de enfi sema panacinar de predomínio lobar inferior. Os autores descrevem o caso clínico de uma doente fumadora com défi ce de alfa-1 antitripsina e fenótipo Pi*ZZ.

Described for the fi rst time in 1963, the alpha-1 antitrypsin defi ciency is an hereditary disease due to a genetic mutation located in the long arm of the 14th chromosome. Although its diagnosis is rare and late in life, it is a quite frequent disease, with a variety of alleles that result in a broad spectrum of diseases with several clinical manifestations. Pulmonary emphysema and liver disease are some of the most common manifestations of alpha-1 antitrypsin defi ciency; panniculitis and c-ANCA vasculitis can also be seen, but less frequently. The ZZ phenotype is associated to chronic obstructive pulmonary disease (especially in smokers), causing panacinar emphysema with inferior lobe predominance. The authors report the clinical case of a women, smoker, with alpha-1 antitrypsin defi ciency, Pi*ZZ phenotype.

MARIA DA GRAÇA FREITASMARGARIDA FELIZARDO

Departamento de Pneumologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A alfa-1 antitripsina (AAT) é uma proteína sérica produzida pelo fígado com uma semivida plasmática de quatro a cinco dias. Tem como principal função proteger o pulmão, pela sua ação inibidora das proteases, sobretudo da elastase neutrofílica. A defi ciência de AAT traduz-se numa menor proteção do pulmão relativamente à agressão das enzimas dos neutrófi los ativados.1

A produção da AAT é controlada por um par de genes no locus inibidor (Pi) da protease. O gene SERPINA 1, conhecido também como Pi, é responsável pela codifi cação da AAT. Está localizado no braço longo do cromossoma 14 (14q31-32) e faz parte da superfamília dos inibidores das proteases, sendo a sua principal função a inibição de uma série de enzimas, entre estas, a tripsina, a elastase neutrofílica e a protease.2

A defi ciência de AAT foi descrita pela primeira vez em 1963 por Carl-Bertil Laurell e Stern Eriksson na Suécia e o tratamento de reposição está disponível desde 1987.3

A defi ciência de AAT deve-se a uma mutação genética de transmissão autossómica codominante. A substi-tuição do ácido glutâmico por lisina na posição 342 do gene SERPINA 1 confi gura a proteína Z. O defeito genético altera a confi guração da molécula de AAT e impede a sua libertação a partir do hepatócito. Em consequência, os níveis séricos de AAT diminuem, bem como concentrações alveolares, local onde a AAT exerce uma ação protetora contra as proteases. Em resultado do excesso de proteases

no compartimento alveolar há uma destruição das paredes alveolares, com desenvolvimento de enfi sema. Nos hepatócitos, a acumulação de AAT provoca a sua destruição, causando doença hepática. O nível protetor de AAT é de 11 µmol ou 80 mg/dL. A AAT possui um grau elevado de polimorfi smo genético, estando descritos mais de 100 alelos, sendo os mais frequentes classifi cados pela mobilidade eletro-forética nas seguintes categorias:

- M: função e níveis séricos normais;- Z: níveis séricos baixos, acumulação intracelular hepática;- S: níveis séricos baixos, sem acumu-lação hepática;- Null: níveis séricos indetetáveis;- Disfuncional: níveis séricos normais, função anormal.

O fenótipo predominante é o proteinase inhibitor (Pi) MM, presente em 94 a 96% dos indivíduos caucasianos. As variantes defi citárias são mais frequentes em caucasianos de descendência europeia. Os alelos defi cientes mais comuns são o S e o Z, cujo fenótipo é designado, no caso de alteração homozigótica, de Pi*SS ou Pi*ZZ respetivamente. Existe também o alelo não expresso designado por “null”.

O fenótipo determina o nível sérico de AAT. O padrão Pi*ZZ é o que mais frequentemente se associa ao aparecimento de enfi sema pulmonar; a doença hepática ocorre em aproximadamente 10% dos recém-nascidos ZZ. Os fenótipos MZ, MS e SZ associam-se com menor frequência ao enfi sema pulmonar. Cerca de 95%

INTRODUÇÃO

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DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICO

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dos indivíduos doentes apresentam um fenótipo Pi*ZZ.

- Pi*MM - normal- Pi*MS - sem risco acrescido de doença pulmonar ou hepática;- Pi*MZ - sem risco signifi cativo de enfi sema;- Pi*SS - sem risco signifi cativo de enfi sema;- Pi*SZ - risco de enfi sema (20 a 50%);- Pi*ZZ- risco elevado de enfi sema (50 a 100%).

Nos indivíduos afetados o alelo mais frequente é o Z, predominando no norte da Europa (Suécia, Holanda, Dinamarca). O segundo alelo mais frequente é o S, com predomínio no sul da Europa (Portugal e Espanha). A prevalência da defi ciência de AAT na Europa diminui de norte para sul e de oeste para este.4

A nível mundial estima-se que 3,4 milhões de indivíduos apresentem os fenótipos Pi*ZZ, Pi*SS e Pi*SZ. Na península ibérica a variante S é predominante. Em Portugal estima-se que um em cada 3,8 indivíduos possua um dos cinco fenótipos com alelos defi cientes (Pi*MS, Pi*MZ, Pi*SS, Pi*SZ e Pi*ZZ). Em 2005 estimava-se que existissem no país cerca de 1054 a 3774 indivíduos com o fenótipo Pi*ZZ, estando numa fase inicial o registo destes doentes, lançado pela Faculdade de Medicina de Coimbra. Em fevereiro de 2011 foi constituída a Associação Alfa 1 de Portugal (www.aa1p.pt).

A defi ciência de AAT traduz-se uma predisposição para o desenvolvimento de várias doenças ao longo da vida, que se podem manifestar em vários órgãos,

principalmente a nível pulmonar e hepático.4 No pulmão, a presença de enfi sema pulmonar precoce (idade média de 45 anos) é a complicação clínica mais frequente e a maior causa de incapacidade e mortalidade. Os fumadores com défi ce de alfa-1 antritripsina desenvolvem enfi sema em média cerca de 10 anos mais cedo do que os não fumadores.

Este enfi sema é de tipo panacinar, de predomínio inferior, com presença de bronquiectasias na mesma localização. Funcionalmente, caracteriza-se por um declínio acelerado do volume expirado no primeiro segundo da expiração forçada (FEV1), que no fumador ativo pode atingir 130 mL/ano.

A segunda consequência mais frequente da defi ciência de AAT é a doença hepática, devendo-se esta à acumulação de polímeros de alfa-1 antitripsina nos hepatócitos. Nas crianças Pi*ZZ, a manifestação mais comum é a colestase neonatal. Nos adultos, o fenótipo Pi*ZZ determina um risco vinte vezes superior ao normal para doença hepática crónica. Dados mais recentes indicam que a cirrose e o carcinoma do fígado afetam 30 a 40% de doentes com defi ciência de AAT, cerca dos 50 anos de idade e são uma signifi cativa causa de morte em indivíduos não fumadores com o fenótipo Pi*ZZ.

A defi ciência de AAT também está envolvida em processos imunes. Desde 1993 vários trabalhos têm evidenciado uma relação entre o gene Z e a presença de c-ANCA (anticorpos anti-citoplasma de neutrófi los). A paniculite necrotizante, caracterizada por lesões necrotizantes e infl amatórias

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

2): revelaram alteração ventilatória obstrutiva moderada com insufl ação pulmonar, diminuição da capacidade de difusão e boa resposta ao broncodilatador.

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 50 anos de idade, fumadora de 30 UMA, foi referenciada em 2007 para a consulta de Pneumologia por um quadro clínico de dispneia de agravamento progressivo, acompanhada de tosse com expetoração mucosa de predomínio matinal e pieira. Fazia esporadicamente terapêutica com fl uidifi cantes, broncodilatadores e antibioterapia (dado que os episódios de agravamento clínico eram interpretados como intercorrências infecciosas). Os antecedentes pessoais eram irrelevantes. Nos antecedentes familiares salientava-se o facto do pai e tio paterno (ambos fumadores) terem falecido por doença respiratória e de existir uma irmã com “asma grave”.

No exame objetivo detetou-se uma diminuição generalizada do murmúrio vesicular. Entre os resultados dos exames complementares pedidos destaca-se:

- Tomografi a computorizada (TC) (Fig. 1): revelava enfi sema pulmonar difuso com predomínio lobar inferior. As áreas de enfi sema tinham características de enfi sema panacinar, embora também se identifi cassem algumas zonas de enfi sema centro-acinar. Associavam-se discretas alterações fi bróticas intersticiais em ambos os lobos superiores, com bronquiectasias retráteis no lobo médio e lobo superior esquerdo (lingula).- Provas de função respiratória (Fig.

da pele e tecido subcutâneo, representa a complicação menos comum da defi ciência da AAT. A associação da

AAT a aneurismas aórticos, aneurismas intracranianos, pancreatites e doença celíaca não está bem documentada.

Fig. 1. Tomografi a computorizada de tórax. Planos axial (A) e coronal (B)

A

B

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DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICO

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Fig. 2 Curvas de débito/pressão e débito/volume (antes e depois de broncodilatador)

- Prova da marcha de seis minutos: A doente percorreu 513 m (89% da distância prevista), com uma saturação média de 90,25% e saturação inferior a 88% durante 45 segundos (12,86% do tempo do registo).- Ecocardiograma: revelou alterações degenerativas fi brocalcifi cantes mitral e aórtica sem repercussão hemodinâmica, insufi ciências aórtica e mitral de grau ligeiro. Pressão sistólica na artéria pulmonar (PSAP) de 31 mmHg (normal). - Ecografi a abdominal sem alterações.- Doseamento de AAT foi de 22 mg/dL e o fenótipo ZZ.

Além da abstenção tabágica, a doente foi medicada com broncodilatadores e corticoides por via inalatória, de acordo com recomendações terapêuticas

GOLD para os doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), com tiotrópio, salmeterol e fl uticasona. Realizou ainda vacinação antigripal e anti-pneumococica (Pneumo 23 e Prevenar em 2012).5

O Índice de BODE, baseado na determinação do volume expiratório máximo por segundo (VEMS), prova da marcha de seis minutos, escala de dispneia e índice de massa corporal, que permite fazer uma previsão do risco de mortalidade desta doente foi de 2 (numa escala de 0 a 10).6

Desde então, a evolução clínica da doente tem-se caracterizado pela regressão dos sintomas iniciais e estabilização funcional (Quadro I), pelo que não se iniciou terapêutica de substituição.

Quadro I Evolução funcional

Ano CVF FEV1 FEV1/CVF FEV1 após BD CVF após BD

2008 4.240 (119%) 1.700 (55,5%) 55,50% + 13,2% (230 mL) +8,5% (360 mL)

2010 4.170 (117,2%) 1.960 (64,3%) 47,08% - 0,6% (10 mL) +2,5% (30 mL)

2011 3.940 (110%) 1.690 (55,5%) 43,01% + 19,5% (330 mL) +4,5% (170 mL)

2013 4.520 (129,9%) 1.760 (59,2%) 39,05% + 13,8% (250 mL) +5,5% (240 mL)

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOA defi ciência de AAT é frequentemente subdiagnosticada, com um intervalo médio de 7,2 anos entre o início dos sintomas e o diagnóstico. Esta tendência para o subdiagnóstico e atraso de diagnóstico não se tem modifi cado ao longo dos anos, apesar dos esforços educativos, da divulgação do tema e das recomendações das diferentes sociedades científi cas.7

O diagnóstico de defi ciência de AAT é confi rmado quando se detetam níveis séricos reduzidos com um fenótipo compatível com a doença. A sequenciação genotípica deverá ser efetuada quando existe uma discrepância entre a concentração de AAT e o fenótipo.

As orientações atuais recomendam o doseamento da AAT nas seguintes condições:

- Todos os doentes com o diagnóstico de DPOC;- Doentes com bronquiectasias em que não haja evidência de outra etiologia;- Rastreio familiar;- Sintomatologia respiratória em mui-tos membros de uma família;- Doença hepática de causa desco-nhecida;- Confi rmação de uma defi ciência de alfa-1 no proteinograma;- Doentes com vasculite ou paniculite de causa desconhecida.

Perante a suspeita clínica, deve ser efetuado o doseamento sérico da AAT. Se o nível for baixo, deve ser solicitada a fenotipagem da AAT, ao que se segue a avaliação funcional respiratória

(espirometria, pletismografi a, capaci-dade de difusão e gasimetria arterial) e a avaliação radiológica através de tomografi a computorizada do tórax.No caso clínico descrito, o sinal de alerta foi a história familiar de patologia respiratória e a presença de um enfi sema panacinar de predomínio lobar inferior. As alterações ra-diológicas do enfi sema de causa tabágica têm uma predileção para os andares superiores.

O conhecimento do fenótipo ZZ nesta doente permitiu também a identifi cação do mesmo fenótipo (ZZ) na irmã, tendo esta sido proposta para terapêutica de substituição, sem efi cácia, pelo que foi referenciada para transplante pulmonar, que não se efetuou por morte da doente (dois anos após o diagnóstico).

Em doentes com DPOC, a reabi-litação pulmonar, a terapêutica broncodilatadora, a corticoterapia inalada e a oxigenoterapia devem ser prescritas de acordo com a sintomatologia clínica, número de exacerbações anuais e níveis de gravidade funcional, de acordo com as recomendações terapêuticas GOLD 2013. Todos os doentes fumadores devem ser aconselhados a cessação tabágica, promovendo-a de uma forma ativa. Está igualmente aconselhada a vacina antigripal e antipneumocócica. A evicção tabágica reduz de forma signifi cativa o declínio anual do FEV1 (ou VEMS).5

O tratamento específi co da defi ciência da AAT está disponível desde

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DEFICIÊNCIA DE ALFA-1 ANTITRIPSINA. CASO CLÍNICO

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1987, consistindo na administração endovenosa da AAT purifi cada (tera-pêutica de substituição). O objetivo da terapêutica de substituição é aumentar e manter os níveis de AAT acima dos limiares de proteção (>50 mg/dL se determinados por nefelometria ou >80 mg/dL se determinados por imunodifusão radial).

O tratamento de substituição só está indicado nos doentes com enfi sema pulmonar associado a défi ce de AAT. Os critérios baseiam-se na determinação sérica de AAT e na evidência de enfi sema pulmonar com alterações funcionais.8

Estudos efetuados para avaliar a efi cácia clínica da terapêutica de substituição demonstraram uma redução da taxa de declínio do VEMS e da mortalidade nos indivíduos com VEMS entre 35 a 65% do valor de referência, sendo este benefício menos evidente em indivíduos com VEMS inferior a 35% ou superior a 65%.9

A terapêutica de substituição endovenosa com antiprotease humana é o único tratamento específi co aprovado. Em Portugal, estão comercializados três medicamentos, apenas para utilização hospitalar - Prolastina® (desde 1989), Zemaira® (desde 2003) e Aralast® (desde 2004) -, não estando publicados estudos comparativos relativos à sua utilização. A dose recomendada para a antiprotease humana é de 60 mg/kg/semana. Esta terapêutica tem um custo elevado, que se estima em cerca de 50.000 a 70.000 €/ano. A decisão de iniciar terapêutica de substituição deve basear-se em critérios de seleção

rigorosos, atendendo aos custos elevados e sua manutenção para toda a vida do doente.8-11

Assim, devem ser tidos em consideração os seguintes critérios de selecção:1

- Idade superior a 18 anos;- AAT<80mg/dL;- Não fumador ou ex-fumador (há mais de seis meses); - Obstrução brônquica ou rápido declínio do VEMS (>120 mL/ano).

Estes critérios são aplicáveis aos doentes com fenótipos Pi*ZZ, Pi*ZNull, Pi*NullNull e outros fenótipos associados a níveis inferiores a 80 mg/dL nomeadamente Pi*SZ. Os fenótipos Pi*MS e Pi*MZ não são candidatos a terapêutica de substituição, por não existir um risco signifi cativo de desenvolvimento de enfi sema. Os fumadores ativos não são candidatos a terapêutica de substituição de AAT, o mesmo acontecendo com os doentes com défi ce de IgA, pelo risco de anafi laxia. A doença hepática ou cutânea não tem indicação para terapêutica de substituição.

No caso clínico descrito, por existir uma estabilidade clínica e funcional, sem signifi cativa deterioração funcional, tem-se optado pela terapêutica broncodilatadora e anti-infl amatória (corticoides) por via inalatória. O recurso a cirurgia de redução pulmonar apresenta resultados pouco animadores e inferiores aos dos doentes com DPOC. A transplantação pulmonar estará indicada nos doentes com insufi ciência respiratória hipercápnica ou índice de BODE 5-6.6

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA1. American Thoracic Society / European Res-piratory Society Statement. Standards for the diagnosis and management of individuals with antitrypsin defi ciency. Am J Respir Crit Care Med 2003;168(7):818-900.2. Serra S, Banha G. Défi ce de alfa-1 antitripsina. A propósito de dois casos clínicos. Rev Port Pneumol, 2008; XIV(2):295-302.3. Ranes J, Stoller JK. A review of alpha-1 antrypsin defi ciency. Semin Respir Crit Care Med 2005;26(2):154-66.4. Gøtzsche PC, Johansen HK. Cochrane Database Syst Rev 2010;(7):CD007851. 5. Global Strategy for Diagnosis, Management, and Prevention of COPD. Updated February 2013.6. Celli BR, Cote CG, Marin JM, et al. The body-mass index, airfl ow obstruction, dyspnea, and exercise capacity index in chronic obstructive pulmonary disease. N Engl J Med 2004;350(10):1005-12.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A defi ciência de AAT é uma entidade frequentemente sub diagnosticada. Em Portugal, estima-se a existência de 1054 a 3774 indivíduos com o fenótipo Pi*ZZ. Destes, cerca de 75 a 85% estão em risco de vir a desenvolver patologia respiratória. Para o diagnóstico pre-coce desta afeção constituem sinais de alerta a presença de um enfi sema em idade jovem, de predomínio basal, sobretudo na ausência de fatores de risco associados (consumo de tabaco

ou exposição ocupacional), história familiar de doença respiratória (enfi sema, bronquite, bronquiectasias), doença hepática ou paniculite. Atualmente, a determinação sérica de AAT está recomendada em todos os indivíduos com DPOC. O fator de risco com maior contribuição para o desenvolvimento de DPOC nos indivíduos com défi ce de AAT é o consumo de tabaco.

7. Taliercio RM, Chatburn RL, Stoller JK. Knowledge of alpha-1 antitrypsin defi ciency among internal medicine house offi cers and respiratory therapist: results of a survey. Respir Care 2010;55(3):322-7.8. Costa CA, Santos C. Défi ce de alfa-1 antitripsina. A experiência do Hospital Pulido Valente com a terapêutica de reposição. Rev Port Pneumol 2009; XV (3):473-81.9. Camelier AA, Winter DH, Jardim JR, et al. Defi ciência de alfa-1 antitripsina. Diagnóstico e tratamento. J Bras Pneumol. 2008;34(7):514-27.10. Miravitlles M Alpha-1-antitrypsin and other proteinase inhibitors. Curr Opin Pharmacol 2012;12(3):309-14. 11. Mordwinkin NM, Louie SG. Aralast: an alpha 1-protease inhibitor for the treatment of alpha-antitrypsin defi ciency. Expert Opin Pharmacother 2007;8(15):2609-14.

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TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR?

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RESUMO Abstract

TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR? Chronic cough as atypical manifestation of gastroesophageal refl ux. How to treat?

A tosse crónica é uma queixa habitual em consultas de pneumologia. A asma brônquica e a doença do refl uxo gastroesofágico (DRGE) são algumas das suas causas mais frequentes. As manifestações da DRGE podem incluir quer sintomas esofágicos típicos, quer sintomas extraesofágicos ditos atípicos, de que são exemplo a tosse e os sintomas laríngeos. Nos casos em que predomina a sintomatologia atípica, a fundoplicatura pode constituir uma solução terapêutica efi caz, particularmente quando se trata de tosse relacionada com refl uxo gastroesofágico. Os autores descrevem o caso clínico de uma doente asmática, com queixas de tosse crónica e sintomas típicos de refl uxo gastroesofágico associados. A realização de uma fundoplicatura de Nissen permitiu o desaparecimento completo da tosse e a obtenção de um controlo efi caz das queixas típicas de refl uxo gastroesofágico.

Chronic cough is a common complaint in pulmonology consultations. Bronchial asthma and gastroesophageal refl ux disease (GERD) are some of its most common causes. GERD manifestations may include both typical esophageal symptoms as well as extraesophageal or atypical symptoms, like cough and laryngeal symptoms. In cases where atypical symptoms predominate, fundoplication may constitute an effective therapeutic solution, especially when dealing with cough related to gastroesophageal refl ux. The authors report the clinical case of an asthmatic patient with complaints of chronic cough and associated typical symptoms of gastroesophageal refl ux. A Nissen fundoplication allowed the complete disappearance of the cough and an effective control of GERD typical complaints.

NICOLE MURINELLO*EDUARDO PIRES

CARLOS VAZ

* Pneumologia, Hospital da Luz - Centro Clínico da Amadora Centro de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva e Departamento de Cirurgia Geral

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A tosse é uma queixa comum, associada virtualmente a todas as doenças res-piratórias, bem como a uma variedade de doenças extrapulmonares. Constitui um importante refl exo protetor das vias aéreas, mas pode também ser um sintoma muito incapacitante.1

A classifi cação da tosse em aguda (com duração inferior a oito semanas) ou crónica (com duração superior a oito semanas) permite aos clínicos orientar a investigação diagnóstica e o tratamento.1,2 Normalmente, na ausência de comorbilidades, a tosse de instalação aguda é benigna e autolimitada; contrariamente, a tosse crónica exige habitualmente uma investigação adi-cional, pela miríade de condições associadas, com gravidade variável.2

A queixa isolada de tosse crónica representa uma percentagem considerável - cerca de 10 a 38% - das referenciações para os especialistas em pneumologia.3,4 Entre as principais causas de tosse crónica com exames de imagem normais, estão a doença de refl uxo gastroesofágico (DRGE), a doença asmática, a bronquite eosinofílica e a rinosinusite.2

Com efeito, as manifestações da DRGE podem incluir quer sintomas esofágicos típicos, quer sintomas extraesofágicos,

ditos atípicos, de que são exemplo a tosse e os sintomas laríngeos. Em vários estudos, verifi cou-se que a DRGE estava implicada em 5 a 41% dos casos de tosse crónica.2

Os mecanismos fi siopatológicos da tosse na DRGE envolvem:2,5-9 - Fenómenos de macro e microaspiração do conteúdo gástrico (ácido, não ácido e gasoso) para as vias aéreas; - Ativação de refl exos vagais desenca-deadores de tosse, a partir da estimulação do esófago distal (refl exo esófago-traqueobrônquico); - Hiperreatividade brônquica provocada pela libertação de taquicininas, causada pelo refl uxo ácido no esófago.

Nos casos de RGE, em que predomina a sintomatologia atípica, a fundoplicatura poderá constituir uma solução tera-pêutica efi caz, particularmente quando se trata de tosse relacionada com refl uxo gastroesofágico.

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente asmática, com queixas de tosse crónica e sintomas típicos de refl uxo gastroesofágico associado, na qual a realização de uma fundoplicatura de Nissen permitiu o desaparecimento completo da tosse e um controlo efi caz das queixas típicas de RGE.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 65 anos de idade, caucasiana, não fumadora, com história de exposição profi ssional prolongada a colas sintéticas. Recorreu

à consulta de pneumologia no Hospital da Luz - Centro Clínico da Amadora por queixas de tosse seca irritativa com quatro meses de evolução, com

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TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR?

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instalação insidiosa e, na altura, com frequência diária, sem variação circadiana, acompanhada de cansaço para esforços. Negava dispneia, pieira, opressão torácica, ortopneia, dispneia paroxística noturna ou sintomas constitucionais. Tinha feito tratamento antibiótico, antihistamínico, broncodilatador (salbutamol e durante um mês fl uticasona-salmeterol 500/50 µg em dispositivo inalatório para pó seco – diskus), sem qualquer alívio sintomático. Fez também sessões de “termas”, sem benefício. Simultaneamente, referia pirose e intolerância ao decúbito dorsal por regurgitação. Negava azia ou exacerbação das suas queixas de rinosinusite.

Nos seus antecedentes pessoais sa-lientavam-se: - Rinosinusite alérgica desde a juventude, com sensibilização conhecida a ácaros; história de reação anafi lática com a toma de penicilina; asma diagnosticada aos 60 anos, sem manifestações em idade mais precoce. Era seguida em consulta de imunoalergologia e estava medicada com montelucaste (10 mg), budesonido spray nasal (64 µg, duas vezes/dia) e loratadina (5 mg em SOS), com controlo adequado dos sintomas nasais e brônquicos. - Esofagite e hérnia do hiato. Era seguida em consulta de gastroenterologia no Hospital da Luz e estava medicada com lansoprazol (30 mg/dia).- Hipertensão arterial essencial, con-trolada com amlodipina (10 mg/dia).

Nos antecedentes familiares registava-se história de atopia (asma) e neoplasia do cólon.

O exame físico não mostrou alte-rações signifi cativas. A auscultação

cardiopulmonar era normal. Apre-sentava, contudo, acessos de tosse irritativa e a orofaringe estava hiperemiada.

Admitindo que a descompensação da sua esofagite por refl uxo gas-troesofágico (RGE) pudesse estar na base da sua queixa de tosse cónica, irritativa, foram recomendadas medidas gerais anti-RGE e duplicada a dose habitual do inibidor de bomba de protões (IBP) durante um período de seis semanas. Perante a inefi cácia dessa medida, já que a doente manteve a tosse, foi proposta uma investigação diagnóstica complementar a fi m de excluir outras causas ou eventuais lesões endobrônquicas, com a realização dos seguintes exames:

- Tomografi a computorizada do tórax, que revelou uma discreta densifi cação adjacente à pequena cisura direita, grosseiramente nodular, com 9 x 5 mm de diâmetro, de baixa densidade, relacionada provavelmente com alterações fi brocicatriciais. Em topografi a basal, bilateralmente, evi-denciavam-se algumas densifi cações lineares, igualmente enquadráveis em alterações fi brocicatriciais.- Broncofi broscopia, que revelou uma mucosa hiperemiada e edemaciada, com secreções brônquicas purulentas à direita e que concluía tratar-se de um processo infl amatório inespecífi co. As biópsias brônquicas e lavado broncoalveolar foram normais.

Após a realização destes exames, a doente efetuou um curso de terapêutica antibiótica com levofl oxacina e iniciou um supressor da tosse contendo codeína, com escassa melhoria.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOÉ conhecido que os sintomas respiratórios, incluindo os associados a asma, têm uma prevalência aumentada em doentes com DRGE.10 Reciprocamente, a DRGE é frequente em doentes asmáticos, podendo constituir um desencadeante da doença.10 A prevalência de RGE em doentes com asma varia entre 30-90%;10 esta variabilidade deve-se a diferenças na defi nição de RGE e nos seus instrumentos de medição objetiva nos vários trabalhos.

O grupo de trabalho RHINE mostrou que há relação independente entre a obesidade, o RGE noturno, a roncopatia,

o início de asma e outros sintomas respiratórios em adultos.11 Esta relação foi também bem demonstrada noutros trabalhos,12,13 em que se observou, respetivamente, uma prevalência de 60% e 82% de sintomas de RGE em doentes asmáticos.

Os sintomas típicos de RGE incluem a sensação de pirose e a regurgitação. Já os sintomas de refl uxo para as vias aéreas incluem rouquidão, tosse crónica, expetoração, sibilância, estridor, dispneia, sensação de corpo estranho ou “pigarro” e disfonia.5 Um grupo de

Foi então avaliada em consulta de gastrenterologia, com revisão da terapêutica para RGE. Inicou ranitidina (150 mg/dia), com melhoria parcial das queixas de pirose, mas persistência de tosse com características idênticas.

Entretanto, realizou:

- Endoscopia digestiva alta, que revelou gastropatia do antro.- Manometria esofágica, que revelou esfíncter esofágico inferior hipotónico e mobilidade esofágica mantida.- Monitorização do pH esofágico com impedância, que revelou existir refl uxo ácido e não ácido patológicos, com extensão moderada a intensa ao esófago proximal e com correlação sintomática positiva para sintomas de pirose e regurgitação (quer para refl uxo ácido, quer não ácido).

Perante estes resultados, foi proposta uma abordagem cirúrgica da doença de

RGE e a doente foi submetida a uma fundoplicatura de Nissen (Fig. 1), por via laparoscópica. Desde então obteve- -se um controlo efi caz das queixas típicas de RGE, bem como o desaparecimento completo da tosse.

Fig. 1 Figura 1. Representação esquemática da fundoplicatura de Nissen

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TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR?

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consenso para a DRGE estabeleceu em 2006, que os sintomas da DRGE podiam incluir quer sintomas esofágicos típicos (pirose e regurgitação), quer sintomas extraesofágicos tais como tosse, sintomas laríngeos e asma.14

O estudo europeu ProGERD, que incluiu 6215 doentes com pirose, identifi cou uma prevalência de sintomas extraesofágicos de 32,8%.15

A fi siopatologia destes sintomas nem sempre depende de refl uxo ácido e, por isso, a terapêutica com inibidores de bomba de protões pode ser inefi caz.5,16 Salienta-se ainda que mais de um terço de doentes com DRGE podem referir apenas manifestações respiratórias, na ausência de sintomas digestivos.15 Demonstrou-se também que quando o RGE é responsável por tosse crónica, em 75% dos doentes este pode ser clinicamente silencioso no que diz respeito a sintomas digestivos.4

Finalmente, em doentes com sinto-matologia persistente apesar da tera-pêutica supressiva ácida, a clarifi cação da natureza ácida ou não-ácida do refl uxo e a sua correlação com os sintomas tem um impacto major na abordagem e tratamento dos doentes.

Assim, doentes com refl uxo ácido contínuo podem benefi ciar de doses intensifi cadas de supressores da acidez gástrica durante períodos prolongados. Já os doentes com refl uxo não ácido benefi ciam de tratamentos dirigidos ao aumento da barreira gastroesofágica.

Os doentes com sintomas dissociados dos episódios de refl uxo deverão ser orientados e investigados no sentido do rastreio de patologias associadas.8

A identifi cação da exposição ácida no esófago tem sido feita tradicionalmente por monitorização ambulatória con-vencional do pH (pHmetria), exame que apresenta algumas limitações na deteção do refl uxo fracamente ácido ou não ácido.7,8 No entanto, mais de metade dos eventos relacionados com o refl uxo não são detetados por pHmetria.5

Demonstrou-se que os episódios de refl uxo gasoso, pobre em ácido, são mais frequentes em doentes com dispepsia e laringite do que nos doentes com sintomas típicos de RGE ou nos controlos.17 Mais recentemente, a combinação da pHmetria com o teste de impedância intraluminal multicanal (MII-pH) permite a identifi cação de todos os tipos de refl uxo e a sua correlação com os sintomas,7,8 aumentando a sensibilidade diagnóstica em 48,6% face à pHmetria isolada.18

Trata-se de uma técnica que permite detetar a presença de líquido ou gás intraesofágicos, com base em diferenças de condutividade elétrica através do registo elétrico das resistências.8

O tratamento do refl uxo baseia-se numa combinação de medidas relativas a hábitos alimentares e comportamentais (p. ex. evicção de bebidas e alimentos contendo cafeína e bebidas gaseifi cadas, a suspensão dos hábitos tabágicos, a redução de peso e diminuição das quantidades de alimentos em cada refeição) e no tratamento farmacológico.5

Neste campo, os inibidores da bomba de protões têm representado um pilar fundamental da terapêutica da DRGE nas suas diferentes manifestações.5 No entanto, mais recentemente, o estudo de

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

CONSIDERAÇÕES FINAIS A relação entre a doença de refl uxo gastroesofágico e algumas doenças respiratórias, como a asma, é atualmente bem conhecida.

O caso clínico apresentado sublinha o interesse da fundoplicatura de Nissen no tratamento integrado do refl uxo gastroesofágico, particularmente nos casos que não respondem aos inibidores de bomba de protões, em que a

identifi cação de refl uxo fracamente ácido, não ácido ou gasoso pode ter um papel mais relevante.

A tosse crónica pode ser uma das manifestações atípicas do RGE e nestas situações, à semelhança do que se verifi cou no caso clínico apresentado, a fundoplicatura demonstrou ser efi caz no controlo dos sintomas.

doentes com tosse cónica relacionada com DRGE demonstrou que os IBP podem ter algum efeito, mas que este não é absoluto, questionando assim recomendações prévias quanto à utilização empírica dos mesmos e justifi cando a necessidade de maior investigação nesse domínio.16

No caso específi co de doentes com asma e RGE, tal como a doente descrita neste trabalho, uma anamnese detalhada é fundamental, dado que os doentes poderão não identifi car os seus sintomas como estando relacionados com o RGE.

Por outro, alguns sintomas atribuídos à sua doença respiratória, poderão, na verdade, dever-se ou ser desencadeados pelo RGE.10

A fundoplicatura de Nissen, conhecida também por cirurgia antirefl uxo, é uma abordagem terapêutica da DRGE que visa criar uma barreira mecânica aos vários tipos de refl uxo (ácido e não ácido).5 Quando indicada, é um tratamento seguro e com resultados bem demonstrados na resolução

do RGE. Em doentes com sintomas atípicos, os resultados descritos são menos consensuais.

Mais recentemente, diversos grupos têm demonstrado que os bons resultados também incluem os sintomas respiratórios, particularmente a tos-se,5-7,18,19 o que se verifi cou na doente descrita.

Neste caso, o procedimento foi realizado por via laparoscópica, tal como é prática habitual no Hospital da Luz.

Numa série que incluiu 129 doentes submetidos a cirurgia antirefl uxo por via laparoscópica, registou-se uma melhoria dos sintomas respiratórios associados a RGE em 70% dos casos.19

Nos doentes com uma associação clara entre os sintomas extraesofágicos e o refl uxo mas com resposta parcial ou inefi caz aos IBP, tem sido proposto o tratamento cirúrgico, com resultados encorajadores obtidos em vários estudos não controlados.7

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TOSSE CRÓNICA COMO MANIFESTAÇÃO ATÍPICA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO. COMO TRATAR?

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ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃO

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RESUMO Abstract

ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃO Paraneoplastic limbic encephalitis as a fi rst manifestation of a lung cancer

As encefalites límbicas são entidades raras, que podem ter uma etiologia paraneoplásica, associada a diversos auto-anticorpos neuronais. A síndrome paraneoplásica pode anteceder vários anos as manifestações do tumor primário. Os autores descrevem o caso clínico de uma encefalite límbica associada a um auto-Ac-SOX-1, típico dos tumores de pequenas células do pulmão. O quadro clínico e imagiológico da encefalite motivou a realização de exames de diagnóstico, com citologia aspirativa das adenopatias mediastínicas e caracterização citológica de carcinoma de pequenas células. O tumor primário nunca foi detetado. A remissão do tumor após radio-quimioterapia foi acompanhada de uma melhoria parcial das alterações neurológicas provocadas pela encefalite límbica.

Limbic encephalitis are rare diseases that can have a paraneoplastic etiology, associated to different neuronal auto-antibodies. These paraneoplastic syndromes can precede tumour related symptoms for years. The authors report the clinical case of a limbic encephalitis, associated to an auto-antibody SOX-1, which is typically related to small cell lung cancer. The clinical and radiological picture of the encephalitis led to a fi ne needle aspiration cytology of mediastinal lymphadenopathies; the cytological study revealed a small cell lung cancer. The primary tumour was never detected. The remission of the tumour after combined radio-chemotherapy caused a partial recovery of the neurological symptoms due to the limbic encephalitis.

MARTIN LAUTERBACHCATARINA CHESTER

EVELINA MENDONÇAGRAÇA FREITAS

Departamentos de Neurologia, de Anatomia Patológica e de Pneumologia

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A encefalite límbica (EL) é uma causa rara de crises epiléticas, associadas a perturbações mnésticas e afectivas. Trata-se de uma doença crónica do sistema nervoso central (SNC) imunomediada.1,2 Pode estar associada a quadros paraneoplásicos, com a presença de auto-anticorpos (auto-Ac) neuronais ou não-paraneoplásicos, por exemplo com auto-anticorpos contra os canais de potássio dependentes da voltagem (voltage gated potassium channel antibodies, VGKC-Ac).3 Em 2004 foram defi nidos critérios europeus para o diagnóstico da EL,4 que foram revistos recentemente.5 No caso de uma suspeita clínico-neurorradiológica fundamentada, com amnésia anterógrada, crises epiléticas do lobo temporal, perturbações afetivas e um sinal hiperintenso das estruturas temporo-mesiais em FLAIR e T2 na ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE), está indicada uma pesquisa de neoplasia, bem como um rastreio dos auto-anticorpos neuronais. O diagnóstico de uma EL é considerado seguro quando é demonstrada uma encefalite crónica temporo-mesial pela neuropatologia, a existência de auto-Ac neuronais “bem caracterizados” ou uma doença cancerígena associada. A investigação de uma doença neoplásica terá que ser feita de forma sistemática e rigorosa, incluindo tomografi a por emissão de positrões (PET) de corpo, dado que a terapêutica mais efi caz para a LE paraneoplásica consiste no tratamento da neoplasia. Os sintomas paraneoplásicas podem preceder em vários anos os sintomas do próprio tumor.

Os auto-Ac neuronais são classifi cados em diferentes grupos de evidência.4,5 Os auto-Ac classifi cados como “bem caracterizados” (por exemplo, anti-Hu, anti-Yo, anti-Ma, anti-CV, entre outros) estão, em mais de 95% dos casos, associados a tumores e dirigem--se contra antigénios intracelulares. Um segundo grupo são os auto-Ac “parcialmente caracterizados” (por exemplo, anti-Tr, anti-Zic4, anti-SOX-1, ANNA-3, entre outros), em que o valor preditivo quanto a uma neoplasia é incerto. O auto-Ac SOX-1 (sry-like high mobility group box-protein1) está associado a neoplasias de pequenas células do pulmão (SCLC-small cell lung cancer).6,7 Por último, existem os auto-Ac “facultativos” (por exemplo anti-NMDA-R; anti-VGKC, anti-AMPA-R), que nem sempre são associados a neoplasias.8,9 Estes auto-Ac dirigem-se contra estruturas da superfície celular. A experiência clínica tem vindo a revelar que as encefalites causadas por anticorpos que se dirigem contra estas estruturas reagem melhor ao tratamento imunosupressor,5 ao contrário das EL com anticorpos contra antigénios intracelulares, como acontece na maioria das EL paraneoplásicas. Os principais diagnósticos diferenciais para a EL paraneoplásica10 são doenças de etiologia infecciosa (por exemplo, encefalite herpética e doença de Creutzfeld-Jakob), gliomas, doenças autoimunes (lupus do SNC, síndrome de Sjoegren ou encefalopatia de Hashimoto) e doenças neurodegenerativas, como as diferentes síndromes demenciais.

INTRODUÇÃO

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ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃO

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CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 63 anos de idade, desenvolveu um quadro clínico de crises epiléticas parciais complexas, acompanhado por alterações da memória e lentifi cação psicomotora importante. Uma RM-CE revelou lesões bilaterais dos polos temporais internos, com sinal hiperintenso nas sequências FLAIR e T2 (Fig. 1).

O doente foi internado por suspeita clínica de encefalite herpética (hipótese diagnóstica considerada ainda durante algum tempo após o internamento), para tratamento com aciclovir por via endovenosa, iniciando-se também medicação antiepilética. Foi programada uma reabilitação cognitiva, supondo que se tratava de um quadro sequelar

A B

Fig. 1 RM-CE. Sinal hiperintenso nas sequências FLAIR (A) e T2 (B)

após encefalite herpética. Nos registos subsequentes do eletroencefalograma (EEG) continuou-se, sempre, a registar atividade crítica temporo-frontal. Na avaliação clínica era difícil distinguir em que medida as lesões bitemporais ou as crises temporais parciais complexas contribuíam para o quadro clínico. Para conseguir um controlo satisfatório das crises epiléticas foram necessárias várias adaptações da medicação antiepilética, até ser instituída uma medicação tripla com ácido valproíco, zonesamida e eslicarbazepina.

As avaliações neuropsicológicas seriadas demonstraram a existência de um esquecimento marcado da informação complexa após interferência de tempo longo, de um defeito moderado na memória verbal com interferência de tempo curto, uma difi culdade de nomeação de faces famosas e um defeito ligeiro na capacidade de memória visual. O doente produzia muitas confabulações não fantásticas e confusões temporais e espaciais. O seu perfi l neuropsicológico manteve-se praticamente inalterado nas três reavaliações subsequentes. A doença

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

teve um impacto relevante ao nível das atividades da vida diária, deixando o doente praticamente dependente de terceira pessoa para todas as tarefas que implicassem capacidade de planeamento e organização.

O resultado da reação em cadeia da polimerase para o HSV-1 teve resultados negativos.

A não recuperação do quadro neuropsicológico, as crises temporais com envolvimento da amígdala e a persistência das alterações infl amatórias revelada por uma RM de controlo levaram à suspeita de uma encefalite límbica não infecciosa, paraneoplásica. Como recomendado, iniciou-se uma pesquisa de neoplasia e foi feito um rastreio de auto-Ac neuronais. Os auto-Ac “bem caracterizados” anti-Hu, anti-

Yo, anti-Ma, anti-Ri e anti-CV2 foram todos negativos, bem como os auto-Ac “facultativos” anti-NMDA-R e anti-VGKC. Entre os auto-Ac “parcialmente caracterizados”, o ANNA-3 foi negativo, mas o auto-Ac-anti-SOX1 foi positivo.

Na investigação de diagnóstico foi, então, incluída uma tomografi a computorizada (TC) torácica e abdominal, uma broncoscopia e uma tomografi a por emissão de positrões com tomografi a computorizada (PTE-CT).

Na TC, a análise do parênquima pulmonar não revelou lesões nodulares focais, a árvore brônquica estava permeável. Foram detetadas adenopatias mediastínicas, principalmente no grupo traqueobrônquico esquerdo (4L), e sub-carinais (grupo 7). A avaliação abdominal não revelou alterações (Fig. 2).

A B

Fig. 2 TC tórax. Adenopatias sub-carinais (A) e abdómen (B)

A broncoscopia identifi cou alterações infl amatórias inespecífi cas, pelo que se procedeu, então, à realização de uma ecoendoscopia (EUS) esofágica com visualização através do eco de múltiplas adenomegálias mediastínicas isoecoides (morfologia benigna), nas estações

ganglionares 4L (paratraqueais esquerdas - 20 mm) e grupo 7 (subcarinais). Nesta localização identifi cou-se um conglomerado adenopático com 40 mm. A citologia aspirativa ganglionar (Fig. 3) transesofágica, por agulha fi na 19G, evidenciou uma neoplasia de

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ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃO

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Fig. 3 Metástase de carcinoma de pequenas células com imunofenótipo a favor de tumor primário do pulmão. A. Agregado de células tumorais pequenas, com moldagem nuclear, cromatina granular e cito-plasma escasso (MGG, x400). B. Citobloco: neoplasia de células pequenas com artefacto de esmaga-mento (“crush artifact”) (HE, x200). C. Marcação nuclear forte para TTF-1 (Citobloco, x400). D. Imunomarcação positiva para sinaptofi sina (Citobloco, x400). E. Marcação nuclear com Ki-67 (MIB-1) em >90% das células tumorais

células pequenas com moldagem nuclear, cromatina granular, citoplasma muito escasso e artefacto de esmagamento, reconhecendo-se ainda linfócitos pequenos e fragmentos de estroma desmoplásico. As células expressavam sinaptofi sina, TTF-1, citoqueratina (AE1/AE3) em dot e eram negativas para p63. Verifi ca-se ainda expressão de Ki-67 em mais de 90% das células, o que correspondia a um diagnóstico de metástase de carcinoma de pequenas células, com perfi l imunocitoquímico compatível com carcinoma primário do pulmão.

A PET-CT com fl uorodesoxiglucose (18F-FDG), de corpo inteiro, confi rmou a

atividade tumoral no mediastino (Fig. 4). Não se verifi cou captação de radiofármaco no parênquima pulmonar nem em outras localizações.

O doente iniciou radioterapia torácica e cerebral profi lática (justifi cada pela metastização frequente do carcinoma de pequenas células para o cérebro). Foi também submetido a quimioterapia com carboplatina e etoposido, acompanhado por um tratamento imunosupressivo com um pulso de metilprednisolona 1 g/dia durante seis dias. A RM-CE de controlo evidenciou uma diminuição da tumefação dos lobos temporais e uma atrofi a dos hipocampos, mais pronunciada à esquerda.

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DISCUSSÃOAs encefalites límbicas paraneoplásicas são patologias raras do SNC. Ocorrem menos do que uma vez em 10.000 casos de doenças malignas. Estima-se uma incidência de cerca de 0,005/100.000 de EL em doentes com neoplasias do pulmão.11 Em contraste, a encefalite herpética tem uma incidência cerca de cem vezes superior (0,5/100.000), representando uma das causas mais frequentes de encefalite límbica. No caso clínico descrito, a primeira suspeita foi de uma infeção herpética e a abordagem terapêutica inicial respeitou este primeiro diagnóstico. A reação em cadeia da polimerase negativa para o HSV-1 não excluiu de forma inequívoca o diagnóstico, pois, dependendo da fase da doença em que a análise é pedida, podem ocorrer resultados falsos

negativos.12 No entanto, neste caso, a persistência das alterações infl amatórias na RM-CE levou a repensar a etiologia do quadro. Diagnósticos diferenciais como a encefalopatia de Hashimoto (associada a uma tiroidite autoimune), gliomas ou doenças degenerativas foram excluídos pela imagiologia ou pelas análises laboratoriais. A comprovação da existência do auto-Ac-SOX-1 (auto-Ac “parcialmente caracterizado”) indicou a possibilidade de uma EL paraneoplásica. A presença de adenopatias mediastínicas acessíveis por eco-endoscopia esofágica (estação 4R e 7) permitiu a caracterização citológica de carcinoma de pequenas células, com perfi l imunocitoquímico compatível com carcinoma primário do pulmão.

Fig. 4 PET-CT. Volumosa adenopatia na estação 4L/aorto pulmonar com SUV de 12,5

As crises epiléticas parciais-complexas fi caram bem controladas com medicação antiepilética tripla. O tumor deixou de ter atividade quando avaliado pela repetição da PET-CT. O quadro neuropsicológico

manteve-se, com um défi ce importante da memória anterógrada; as confusões temporais e situacionais continuam a ser frequentes, o que se deve às lesões das estruturas do hipocampo.

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ENCEFALITE LÍMBICA PARANEOPLÁSICA COMO MANIFESTAÇÃO INAUGURAL DE UMA NEOPLASIA DO PULMÃO

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A presença de uma síndrome para-neoplásica pode permitir um diagnóstico precoce de um tumor de pequenas células – SCLC (small cells lung cancer). Este diagnóstico precoce pode aumentar signifi cativamente a taxa de sobrevivência passados cinco anos. Embora a EL e o SCLC sejam patologias graves, não justifi cam um niilismo terapêutico. O doente benefi ciou tanto do tratamento oncológico, como do tratamento imunosupressor. Atualmente, após quimioterapia e radioterapia, a atividade tumoral parece ter entrado

em remissão. A atividade infl amatória nos lobos temporais está estacionária; o controlo das crises parciais-complexas é total, devido ao melhor controlo da infl amação, mas também à introdução de novos fármacos antiepiléticos, como a eslicarbazepina.

As síndromes amnésicas podem ter causas tratáveis e devem ser investigadas detalhadamente, sobretudo quando os sintomas se instalam rapidamente e a sua constelação e evolução têm características atípicas.

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UM CASO CLÍNICO DE ANAFILAXIA AO METAMIZOL

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RESUMO Abstract

UM CASO CLÍNICO DE ANAFILAXIA AO METAMIZOL Anaphylaxis to metamizol. Clinical case report

Os anti-infl amatórios não esteroides (AINE) são medicamentos amplamente utilizados, com ou sem prescrição médica. A sua utilização está associada a uma elevada prevalência de reações de hipersensibilidade, que são ca-racterizadas pela imprevisibilidade, por não dependerem da dose administrada e por serem reprodutíveis. Os autores descrevem o caso clínico de um doente que, em duas ocasiões, desenvolveu uma reação de hipersensibilidade após a administração de metamizol. O primeiro episódio não foi reconhecido como reação alérgica e, por isso, não foi possível identifi car a etiologia e prevenir a recorrência de anafi laxia. A investigação posterior permitiu evidenciar um mecanismo IgE-mediado específi co para aquele fármaco.

Non-steroid anti-infl ammatory drugs (NSAIDs) are widespreadly used, with or without medical prescription. As a consequence, there is a high prevalence of hypersensitivity reactions. These are unpredictable, not dose dependent and reproducible. The authors report the clinical case of a patient who suffered two episodes of anaphylaxis after administration of metamizol. The fi rst episode was not recognized as an allergic reaction, so an etiologic relation could not be established, allowing the recurrence of the anaphylaxis. Subsequent investigation lead to the identifi cation of an IgE-mediated mechanism specifi c for metamizol.

TERESA VAUSARA PRATES

PAULA LEIRIA PINTOJOSÉ ROSADO PINTO

Departamento de Imunoalergologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Os AINE são a segunda causa mais frequente de hipersensibilidade a fármacos, particularmente em doentes com urticária crónica, asma e/ou polipose nasal.1 O quadro clínico é variável de acordo com o mecanismo fi siopatológico envolvido e a coexistência das patologias referidas. Podem surgir urticária com ou sem angioedema, difi culdade respiratória, anafi laxia ou reações cutâneas tardias, assim como envolvimento de outros órgãos.2 Um dos mecanismos fi siopatológicos possíveis

requer a participação do sistema imunitário, através de IgE específi ca ou de células, sendo estas reações designadas por alérgicas. Nestas, os testes cutâneos e alguns testes laboratoriais podem ser úteis para a confi rmação do diagnóstico. No entanto, na maioria dos casos, os sinais e sintomas surgem devido ao efeito farmacológico do fármaco, estando relacionados com a sua interferência no metabolismo do ácido araquidónico (reações de hipersensibilidade não alérgica).2

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 39 anos de idade, recorreu a um serviço de urgência por dor lombar, atribuída a cólica renal. Foi medicado com paracetamol e metamizol por via endovenosa e, após 15 minutos, iniciou queixas de mal estar geral e prurido cutâneo, inicialmente nas faces palmar e plantar, respetivamente, das mãos e dos pés e depois generalizado. Posteriormente, surgiu eritema cutâneo, dispneia, dor torácica, hipotensão e por fi m, paragem cardiorrespiratória. O ECG revelou infradesnivelamento do segmento ST nas derivações V2 a V6, interpretado como enfarte agudo do miocárdio, apesar da enzimologia cardíaca ser negativa. A avaliação posterior, incluindo ecocardiograma e coronariografi a realizados durante o internamento, excluiu a existência de patologia cardíaca.

Dois meses depois, na sequência de um traumatismo de um membro inferior, o doente automedicou-se com paracetamol

e metamizol, à semelhança do que fazia ocasionalmente por lesões associadas à prática desportiva. Cerca de meia hora depois, iniciou um quadro semelhante ao atrás descrito, embora menos intenso, com prurido, inicialmente palmo-plantar e posteriormente generalizado, e eritema cutâneo. Foi observado num serviço de urgência e medicado com corticosteroide endovenoso, havendo regressão do quadro três horas depois. No período que decorreu entre os dois episódios descritos, o doente tomou paracetamol e ibuprofeno, sem qualquer reação.

Por iniciativa própria, cerca de seis meses depois da data da reação, recorreu à consulta de imunoalergologia do Hospital da Luz, para confi rmar a suspeita de alergia ao metamizol, uma vez que este fármaco tinha estado presente em ambos os episódios e tinha voltado a estar exposto ao mesmo.

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UM CASO CLÍNICO DE ANAFILAXIA AO METAMIZOL

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Fig. 1 Resultado positivo no teste intradérmico com a diluição 1/100, com a formação de uma pápula com cerca de 7 mm de diâmetro

Numa primeira abordagem, foram pedidos testes laboratoriais - dosea-mento de IgE específica sérica para o metamizol e de cisteinil-leucotrienos libertados (CAST) -, que foram negativos. Posteriormente, foram realizados testes cutâneos com a formulação solúvel do fármaco, por picada na concentração 2.000 mg/5 mL e intradérmicos com as diluições 1/1.000 e 1/100. Registou--se um resultado positivo no teste intradérmico com a diluição 1/100, com a formação de uma pápula de 7 mm de diâmetro (Fig. 1).

DISCUSSÃO E COMENTÁRIOSOs AINE são medicamentos facilmente acessíveis ao público, administrados em múltiplos contextos, muitas vezes sem prescrição ou supervisão médica. Refl etindo a generalização do seu uso, as reações de hipersensibilidade são frequentes e constituem a segunda causa mais comum de hipersensibilidade a medicamentos.1

De acordo com a análise das situações de anafi laxia por fármacos, reportadas em Portugal entre 2007 e 2010, a maioria (48%) são causadas por AINE.3

Identifi cam-se dois padrões de reação a estes medicamentos.

O mais comum decorre da ação farmacológica do fármaco, pela inibição da ciclooxigenase 1 (COX-1) e consequente alteração do metabolismo do ácido araquidónico, com menor produção de prostaglandinas protetoras (PGE2) e aumento da síntese de cisteinil-leucotrienos (LTC4, LTD4, LTE4). Nestes

casos, algumas horas após a ingestão do anti-infl amatório, os doentes sensíveis desencadeiam urticária, angioedema e/ou dispneia e o quadro clínico é reprodutível com diversos anti-infl amatórios, sendo habitualmente tolerados os inibidores seletivos da COX-2.1,2

Num número menor de casos, identifi ca--se a participação do sistema imunitário através de um mecanismo específi co do fármaco, mediado ou não por IgE. Neste caso, existe tolerância aos outros anti-infl amatórios não esteroides, inde-pendentemente do seu grau de inibição da COX-1. O quadro clínico pode ser imediato (urticária, anafi laxia) ou tardio em que predominam as manifestações cutâneas.4 As pirazolonas, nomeadamente o metamizol, são os anti-infl amatórios que causam maior número de reações imediatas, IgE-mediadas e específi cas de fármaco.1 Nestas situações, os testes cutâneos por picada e intradérmicos são úteis para identifi car

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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a causa de situações potencialmente graves, que podem por em risco a vida do doente.5,6 Mais recentemente, tem havido um interesse crescente na utilização dos testes laboratoriais de ativação de basófi los no diagnóstico das reações alérgicas aos AINE, nomeadamente o CAST (doseamento de cisteinil-leucotrienos libertados) e o TAB (determinação de marcadores de membrana por citometria de fl uxo).7 No entanto, são técnicas que ainda têm baixa sensibilidade e requerem aperfeiçoamento.7,8 A sensibilidade de ambos os meios de diagnóstico (in vivo e in vitro) é inversamente proporcional ao tempo que decorre entre a reação e a realização dos testes ou seja, com o passar do tempo aumenta o número de indivíduos com testes cutâneos ou laboratoriais negativos, limitando a possibilidade de se poder fazer um diagnóstico correto.8

No caso clínico descrito, a sequência de sinais e sintomas que ocorreram na primeira reação é muito sugestiva de anafi laxia, embora não tenha sido reconhecida como tal, permitindo que a situação clínica evoluísse e pondo em risco a vida do doente. A relação temporal em ambos os episódios com a toma de AINE, era sugestiva de que estes seriam a causa mais provável. Tendo havido um contacto posterior com um dos fármacos implicados (paracetamol)

sem qualquer reação, o metamizol seria o principal suspeito da reação imediata, provavelmente específi ca do fármaco, uma vez que já tinha ocorrido também uma exposição subsequente ao ibuprofeno, sem reação. Os exames laboratoriais pedidos foram negativos, o que se justifi ca pela baixa sensibilidade destes métodos de diagnóstico, assim como pelo intervalo de tempo prolongado entre a reação e o início da investigação. O teste cutâneo intradérmico positivo evidenciou a presença de IgE específi ca para o metamizol, permitindo confi rmar o diagnóstico.

O caso clínico descrito ilustra a importância de reconhecer atempa-damente as manifestações de anafi laxia. O doente desenvolveu um quadro clínico grave, potencialmente fatal, que poderia ter sido evitado se o tratamento correto com adrenalina tivesse sido administrado após as primeiras manifestações. Por outro lado, a incorreta interpretação da situação clínica condicionou o atraso da investigação posterior, a identifi cação da causa e a prevenção de episódios subsequentes. Perante a ocorrência destes casos, os doentes deverão ser referenciados para a consulta de especialidade com a maior brevidade possível, de modo a permitir a realização atempada e efi caz do diagnóstico.

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UM CASO CLÍNICO DE ANAFILAXIA AO METAMIZOL

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

CIRURGIA ROBÓTICA(Cirurgia Geral, Cirurgia Cardíaca, Urologia)

CIRURGIA GERAL

CIRURGIA VASCULAR

CIRURGIA PEDIÁTRICA

NEUROCIRURGIA OFTALMOLOGIA

UROLOGIA

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

RESUMO Abstract

REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO Ileal interposition reversal in two steps: Laparoscopic normal anatomy reconstruction and robotic duodenal switch

Os autores descrevem o caso clínico de uma doente a quem, na sequência de um processo de recuperação de peso dois anos após uma gastrectomia em sleeve com interposição ileal, realizaram, em dois tempos cirúrgicos, uma reconstrução da anatomia normal (por laparoscopia) e um switch duodenal (robótico). Aos seis meses de follow-up, a doente tinha perdido 12 kg, continuando a perder peso de acordo com o previsto. Apesar da maior morbilidade, a cirurgia de revisão é um meio de solucionar complicações pós-operatórias ou de resgatar doentes em falência terapêutica. No caso descrito, a divisão do procedimento em dois

The authors report the clinical case of a woman submitted to a reconstruction of the normal anatomy (laparoscopic) and duodenal switch (robotic), following weight regain after a sleeve gastrectomy with ileal interposition, performed two years before. At six-months follow-up the patient had lost 12 kg, with a weight loss according to what was expected. Despite higher morbidity, redo surgery may solve postoperative complications or rescue patients treatment failures. In the case described, the division of the procedure in two steps intended to minimize the perioperative risks. The use of robotic surgery in

CÉSAR RESENDECRISTINA PESTANA

PAULO ROQUETECARLOS VAZ

Departamentos de Cirurgia Geral e de Anestesiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A gastrectomia em sleeve com interposição ileal (GS+II) é uma operação que foi desenvolvida por De Paula, em 2005,1 com o objetivo de tratar a diabetes tipo 2 - tanto em doentes obesos como não obesos - e assim dar corpo ao conceito de “cirurgia metabólica”. Consiste na redução do volume do estômago através de uma gastrectomia em sleeve e na interposição de um segmento de íleon, com uma extensão de 170 cm (que é retirado a 30 cm da válvula ileo-cecal) no jejuno proximal, a uma distância de 30 a 50 cm do ângulo de Treiz.

O objetivo desta operação visa:

- Reduzir a ingestão alimentar por efeito de volume; - Reduzir a produção de grelina assegurada pela remoção do fundo gástrico; - Apresentar precocemente os nutrientes ingeridos ao íleon terminal, assim estimulando a produção de incretinas, sobretudo peptídeo YY (PYY) e peptídeo 1 tipo glucagon (GLP1), importantes na homeostase da glicose; - Evitar a exclusão completa de qualquer segmento intestinal de forma a não causar um estado de malabsorção.

De acordo com a escassa literatura disponível, a GS+II tem demonstrado as vantagens esperadas:2,3 adequado controle da glicemia, perda de peso satisfatória nos doentes obesos e prevenção dos défi ces nutricionais associados à malabsorção.

A literatura médica sobre este tema descreve resultados satisfatórios no controlo do peso em doentes diabéticos e obesos, facto que tem justifi cado a utilização do procedimento também em doentes obesos não diabéticos, incluindo-a como mais uma opção para a cirurgia bariátrica. Contudo, não existe ainda evidência científi ca que suporte esta atuação. Mantêm- -se ainda dúvidas importantes, como, por exemplo, em que medida é que o mesmo resultado pode ser conseguido usando apenas uma gastrectomia em sleeve (sem a interposição ileal).

A literatura é particularmente escassa relativamente às opções para cirurgia de revisão em caso de falência terapêutica da GS+II, quando esta foi realizada para tratamento da diabetes tipo 2 (com persistência/recidiva da doença), para controlo ponderal (com perda de peso insufi ciente/recuperação

INTRODUÇÃO

tempos operatórios pretendeu minimizar os riscos perioperatórios. O recurso à cirurgia robótica no segundo tempo permitiu melhorar a qualidade do ato operatório e aumentar a segurança da intervenção, o que assume uma relevância particular em casos de cirurgia de revisão, como o descrito.

the second step improved the quality of surgery and increased the safety of the intervention, and has a particular relevance in cases of redo surgery like the one reported.

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 49 anos de idade, que recorreu à consulta de admissão ao Centro de Tratamento da Obesidade do Hospital da Luz por recuperação de peso na sequência de GS+II realizada cerca de dois anos antes numa outra unidade de saúde. À data dessa intervenção tinha 86 kg de peso corporal, 1,55 m de altura e um índice de massa corporal (IMC) de 35,8 kg/m2. Não era diabética.

Após a operação, a perda de peso da doente foi pouco satisfatória, atingindo um valor mínimo de 73 kg (IMC de 30,39 kg/m2; perda de 40% do excesso de peso) aos 12 meses do pós-operatório. A partir de então, tinha começado a recuperar peso e na altura da consulta no Hospital da Luz tinha 85 kg (IMC de 35,38 kg/m2).

A doente era consumidora social de etanol (sem adição), com um valor estimado de 50 g/dia; referiu que, por obrigações sociais e profi ssionais, teria difi culdade em corrigir este aspeto. Tinha ainda antecedentes de enfi sema pulmonar e era grande fumadora (40 cigarros/dia). Não apresentava outras comorbilidades ou antecedentes relevantes.

Foi feita uma avaliação radiológica do estômago e observou-se um tubo gástrico bem calibrado e não dilatado, mantendo boa restrição (Fig. 1).

de peso) ou ambas. Tem sido uma atitude empiricamente defendida por vários autores que, no caso de falência de uma técnica restritiva bem executada, a cirurgia de revisão, se indicada, deve passar pela transformação num procedimento indutor de malabsorção.

Os autores descrevem o caso clínico de uma doente de 49 anos de idade, a quem, na sequência da recuperação de peso passados dois anos de uma GS+II, realizaram em dois tempos cirúrgicos uma reconstrução da anatomia normal (por laparoscopia) e um switch duodenal (robótico).

Fig. 1 Avaliação radiológica do estômago

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Foi decidido adotar uma atitude conservadora, com seguimento nas consultas de Nutrição e Psicologia Clínica, com vista à reeducação alimentar e à introdução de exercício físico regular.

A doente perdeu peso nos primeiros três meses, atingindo um valor mínimo de 76,7 kg. De forma lenta mas progressiva, começou então a recuperar peso, atingindo, 11 meses após a primeira visita, 82,5 kg (IMC 34,34 kg/m2) e mantendo-se em recuperação ativa de peso. Referiu que não conseguiria manter o esforço conservador em curso sem uma ajuda adicional e solicitou uma nova solução cirúrgica, se tal fosse possível no seu caso. Foi-lhe proposta, neste contexto, uma cirurgia de revisão, com transformação da GS+II numa derivação biliopancreática com switch duodenal (DBP-SD), em dois tempos cirúrgicos intervalados por um período de dois meses. No primeiro tempo seria realizada a reconstrução da anatomia intestinal normal e no segundo tempo a derivação intestinal do switch duodenal.

Para apresentação desta proposta cirúrgica foram considerados os seguintes fatores:

- A falência terapêutica da cirurgia restritiva prévia; - O facto de a cirurgia prévia incluir uma gastrectomia em sleeve;- O perfi l de consumo regular de etanol (social e sem adição).

Assim, após estudo pré-operatório completo e avaliação multidisciplinar para cirurgia bariátrica, a doente foi submetida, por via laparoscópica, a desmontagem da interposição ileal.

As três anastomoses entero-entéricas foram realizadas com stapler linear de 60 mm e as brechas peritoneais foram encerradas. Foi realizada apendicectomia complementar. O tempo operatório foi de 170 minutos e o período de internamento foi de três dias. Não se registaram complicações intra ou pós-operatórias.

Como previsto, dois meses depois, a doente foi submetida a derivação intestinal do switch duodenal e colecistectomia.

Por via laparoscópica foi realizada a colecistectomia e a anastomose ileo-ileal com stapler linear de 60 mm; foi encerrada a brecha peritoneal. Foi depois feito o docking do sistema robótico Da Vinci Si HD e realizada, com apoio robótico, a dissecção retro-duodenal, transecção duodenal proximal à ampola de Vater com stapler linear de 60 mm e anastomose duodeno-ileal manual em dois planos; foi encerrada a brecha peritoneal (Fig. 2 e 3). O tempo necessário para o docking foi de sete minutos e o tempo operatório global foi de 230 minutos. O período de internamento foi de quatro dias. Não se observaram complicações intra ou pós-operatórias.

Desde então, a doente tem perdido peso lentamente mas de uma forma sustentada, adequada à duração do período de follow-up: às quatro semanas, três e seis meses o peso corporal da doente era de 81 kg (-6 kg), 77 kg (-10 kg) e 75 kg (-12 kg), respetivamente. Teve diarreias nas primeiras semanas, entretanto resolvidas. Tem boa tolerância alimentar e não tem outras queixas.

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

DISCUSSÃOO papel da cirurgia no tratamento da obesidade é peculiar no sentido, em que para um mesmo caso existem múltiplas

operações possíveis: podem aplicar-se técnicas restritivas, técnicas indutoras de malabsorção ou combinações de ambas.

X 1

X 6

X 6

X 5

X 4

X 1

X 2

X 4 X 5X 3 X 2

Fig. 2 Localização dos trocartes (A, B)1 - 12 mm - óptica2 - 12 mm - ajudante3, 4, 5 - 8 mm - robot6 - afastador de fígado

A

B

Fig. 3 Setup de cirurgia robótica para switch duodenal

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Por outro lado, existem variações na implementação de cada uma.

Com o crescimento que a cirurgia bariátrica tem conhecido nos últimos anos, será de esperar um aumento do número de operações de revisão, estimando-se que até 5% dos doentes operados venham a precisar dessas intervenções.4,5 A procura de cirurgia de revisão bariátrica deve-se a uma de duas razões: complicações da cirurgia inicial ou perda insufi ciente/recuperação de peso (falência terapêutica). Mesmo existindo uma multiplicidade de complicações pós-operatórias, dependentes da cirurgia inicial, é um facto transversal às várias séries publicadas que a maioria das revisões é feita por falência terapêutica.4

Apesar de serem o único recurso para doentes em falência terapêutica, as operações de revisão implicam a utilização de tecidos já manipulados e realizam-se, frequentemente, no contexto de complicações arrastadas. Este tipo de cirurgia está associado a um aumento da taxa de complicações, com séries a reportar 22 a 50% de morbilidade major.5,6 Por outro lado, apesar de ser menos efi caz do que a cirurgia primária, a cirurgia de revisão mantém níveis de efi cácia aceitáveis, com perdas de excesso de peso na ordem dos 56%,5 pelo que a sua indicação deverá ser individualizada.

Se o conhecimento dos mecanismos que levam à perda de peso após uma cirurgia de obesidade está longe de estar completo e ainda hoje não existem algoritmos de decisão estabelecidos, a falência terapêutica representa um desafi o particular. A estratégia pode incluir várias formas de revisão (por exemplo, correção de uma bolsa excessivamente

dilatada), conversão (aplicação de uma outra montagem cirúrgica) ou reversão para a anatomia normal.

Ao longo dos anos, a cirurgia de conversão tem demonstrado sucesso perante alguns problemas mais comuns. São disso exemplo a conversão de uma banda ajustável ou de uma gastroplastia vertical calibrada (operação de Mason) em bypass gástrico (BGYR) ou a de revisão de um BGYR em bypass distal.7

Em outras circunstâncias, como no caso em apreço, a decisão não encontra fundamentação científi ca pela peculiaridade da situação.

No caso apresentado, uma doente com uma gastrectomia em sleeve associada a interposição ileal (GS+Il) procurou o Centro de Tratamento da Obesidade do Hospital da Luz, por falência terapêutica.

Sendo uma intervenção predominante-mente restritiva, em que a interposição ileal procura, sobretudo, um efeito metabólico para o controlo da diabetes, foi proposta revisão para uma montagem indutora de malabsorção; na presença de uma gastrectomia em sleeve, a melhor opção é realizar uma derivação biliopancreática com switch duodenal (DBP-SD).

A derivação biliopancreática (DBP) para perda de peso foi descrita pela primeira vez por Scopinaro.8 Apesar de muito efi caz, apresenta elevadas taxas de complicações, sobretudo as que são geralmente associadas a uma gastrectomia com gastrojejunostomia (dumping, diarreia e ulceração da vertente intestinal da anastomose). A secção duodenal com duodenojejunostomia

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

proximal à ampola de Vater foi proposta posteriormente,9 como forma de evitar o refl uxo jejuno-gástrico e, em simultâneo, proteger o intestino da ulceração através da preservação do duodeno proximal - o switch duodenal (SD).

Em 1993, foi descrita a associação da operação de Scopinaro ao conceito de SD10 e ainda uma nova forma de gastrectomia parcial, tubular, preservando a pequena curvatura gástrica e o piloro, que viria a ser conhecida por gastrectomia em sleeve (GS). A versão contemporânea desta operação foi descrita por Hess em 1998,11 mas só em 2000 surge a primeira descrição do procedimento por via laparoscópica.12 Os alimentos passam o piloro e percorrem depois um segmento intestinal, do qual estão desviadas as secreções biliopancreáticas (ansa alimentar); estas entram no circuito alimentar apenas no ileon terminal, numa ansa que se denomina de ansa comum. O comprimento do segmento intestinal do circuito alimentar, que contacta com os alimentos, é fi xo e a soma dos seus constituintes deve ser de 250 cm a 300 cm (75 a 100 cm de ansa comum e 175 a 200 cm de ansa alimentar), por forma a assegurar uma sufi ciente absorção proteica. O intestino restante fi ca excluído, servindo de conduto biliopancreático.

A DBP-SD tem já resultados publicados que atestam a sua efi cácia e segurança.13 Contudo, continua a ser uma operação complexa e, mesmo no caso de cirurgia primária, são cada vez mais os cirurgiões que preferem executá-la em dois tempos, particularmente no caso dos doentes com super-obesidade (IMC>50 kg/m2).14 No caso descrito, a interposição de um segmento de íleon

distal no jejuno proximal levaria a que a futura montagem do SD se realizasse com segmentos intestinais diferentes daqueles com os quais a operação foi concebida, com resultados potenciais não conhecidos ou previsíveis. Por outro lado, numa perspetiva mais técnica, o facto de a cavidade peritoneal se encontrar atravessada pelo mesentério do segmento ileal interposto difi culta ou impossibilita outro tipo de montagem. Assim, foi proposta a reversão da intervenção primária para a anatomia normal, antes de proceder à derivação biliopancreática. Considerando o número total de anastomoses e o risco implícito, foi planeada a reversão da cirurgia primária para um primeiro tempo, reservando a montagem intestinal para um tempo posterior.

Instrumento valioso na dissecção e manipulação fi na das estruturas, a utilização do robot em cirurgia multi-quadrantes revela-se pouco prática e fastidiosa pela necessidade de mudanças da posição do carro operatório e do posicionamento do doente. A reversão para anatomia normal implica múltiplas secções intestinais e anastomoses em diversos quadrantes abdominais, que assim foi realizada por via laparoscópica tradicional. Pelas mesmas razões, no segundo tempo operatório realizou- -se também pela mesma via a medição das ansas intestinais, a entero-enteroanastomose e a colecistectomia. Na execução do SD, no segundo tempo operatório, é na dissecção do duodeno e na confeção da anastomose que a aplicação do robot se mostra especialmente relevante. A preservação dos primeiros centímetros de duodeno proximal é essencial, não só para a futura confeção de uma anastomose

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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segura, mas também porque é nesta área que são absorvidos alguns micronutrientes importantes.15 A minúcia exigida na dissecção da face posterior do duodeno numa área vizinha da via biliar e da cabeça do pâncreas, e a ulterior confeção manual da anastomose duodeno-ileal benefi cia de forma clara das vantagens do sistema óptico tridimensional de alta defi nição, que proporciona maior precisão na dissecção. A destreza que o sistema de instrumentos dotados de

articulação interna (Endowrist®) confere ao cirurgião facilita o acesso ao local da anastomose e proporciona segurança na sutura. Permite que a realização deste importante passo seja feita com maior conforto e segurança do que em cirurgia aberta e sem as condicionantes da angulação e resistência impostas por uma volumosa parede abdominal que, na cirurgia robótica, é suportada pelo carro operatório.

CONSIDERAÇÕES FINAISTal como a cirurgia bariátrica tem conhecido um crescimento sustentado, é de esperar um aumento de candidatos a operações de revisão. Apesar de estar associada a uma maior morbilidade, esta é um meio de solucionar complicações pós-operatórias ou de resgatar doentes em falência terapêutica. A divisão do procedimento descrito em dois tempos

operatórios é uma alternativa segura para minimizar o risco perioperatório. Os autores acreditam que, em casos como o descrito, o recurso à cirurgia assistida por robot permite melhorar a qualidade do ato operatório e aumentar a segurança das intervenções cirúrgicas neste grupo particular de doentes.

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REVISÃO DE INTERPOSIÇÃO ILEAL EM DOIS TEMPOS: RECONSTRUÇÃO DA ANATOMIA NORMAL POR LAPAROSCOPIA E SWITCH DUODENAL ROBÓTICO

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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CIRURGIA DE REVASCULARIZAÇÃO CORONÁRIA POR MINITORACOTOMIA (MIDCABG) ASSISTIDA POR ROBOT. CASO CLÍNICO

RESUMO Abstract

CIRURGIA DE REVASCULARIZAÇÃO CORONÁRIA POR MINITORACOTOMIA (MIDCABG) ASSISTIDA POR ROBOT. CASO CLÍNICO Minimally invasive direct coronary artery bypass grafting (MIDCABG) with robotic assistance. Case report

Os autores apresentam o caso clínico de um homem com doença coronária da artéria descendente anterior, diagnosticada por coronariografi a, submetido a cirurgia de revascularização coronária através da nova técnica de minitoracotomia com assistência robótica. Trata-se do primeiro caso de utilização do sistema de cirurgia robótica da Vinci Si HD em cirurgia cardíaca, realizado em Portugal. Descreve-se o papel do sistema de cirurgia robótica neste tipo de procedimentos, as suas vantagens, resultados fi nais e o plano que irá ocupar entre as alternativas terapêuticas futuras.

The authors report the clinical case of a patient with coronary anterior descending artery disease, diagnosed by coronary angiography, who underwent minimally invasive direct coronary artery bypass grafting (MIDCABG) with robotic assistance. This was the fi rst robot assisted cardiac surgery held in Portugal. The authors describes the role of robotic surgery system in these procedures, its advantages, fi nal results and the place that will take among the future therapeutic alternatives.

RICARDO ARRUDA PEREIRAJEAN LUC JANSENS*

FERNANDA SANTOS SILVAFRANCISCO PEREIRA MACHADO

JOSÉ ROQUETTE

Departamentos de Cirurgia Cardiotorácica, de Anestesiologia e de Cardiologia*Europe Hospitals, Bruxelas (Bélgica)

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Nas últimas duas décadas, todas as especialidades cirúrgicas evoluíram para procedimentos menos invasivos, com recurso a incisões mais pequenas, cirurgia vídeo assistida e, mais recentemente, cirurgia robótica ou com assistência robótica em alguma fase da cirurgia. Esta evolução e este tipo de procedimentos demonstraram a sua validade, reprodutibilidade e tornaram-se, na maioria das disciplinas e procedimentos cirúrgicos, o gold standart atual e uma exigência dos doentes. No campo da cirurgia cardíaca, a evolução foi mais lenta e depois de diversas tentativas ao longo de duas décadas, só mais recentemente, com o desenvolvimento dos sistemas de cirurgia robótica, nomeadamente o sistema Da Vinci Si HD, se registou alguma expansão destas novas abordagens.

Os procedimentos cirúrgicos cardíacos em que a cirurgia minimamente invasiva está mais desenvolvida são a cirurgia da válvula mitral, a revascularização coronária e alguns procedimentos de apoio à terapêutica de arritmologia.

As possíveis razões para esta adesão tardia estão relacionadas com a complexidade subjacente à cirurgia cardíaca, a reduzida formação e treino dos cirurgiões cardíacos clássicos em cirurgia vídeo assistida, além do facto de, efetivamente, a revascularização coronária com utilização dos ins-trumentos clássicos da cirurgia endoscópica ter fracassado. Como referido, só com o desenvolvimento dos sistemas de cirurgia robótica esta situação se viu alterada de forma defi nitiva.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 44 anos de idade, caucasiano, residente num país da Africa sub-sahariana, sem antecedentes relevantes do foro cardiovascular até cerca de dois anos antes. Tinha, como fatores de risco, hipertensão arterial, dislipidemia e obesidade com um índice de massa corporal superior a 30 kg/m2. Referia a ocorrência, nessa altura, de um quadro clínico de desconforto epigástrico, sudação e náuseas em repouso, mantido. Negava dor pré-cordial típica, assim como outro tipo de manifestação, nomeadamente dor mandibular ou ao nível do membro superior esquerdo. Dado que as queixas se mantinham, deslocou-se a uma unidade de saúde

da sua área de residência, onde após ter realizado um eletrocardiograma lhe foi diagnosticado um enfarte agudo do miocárdio, com provável localização na parede anterior. Foi então medicado com nitratos por via sublingual e teve alta para o domicílio. Não havendo no país de residência meios necessários para um diagnóstico mais preciso, após alguns dias de repouso, durante os quais não ocorreram mais episódios semelhantes, o doente veio para Portugal e recorreu ao Hospital da Luz. Perante a história clínica, realizou uma prova de esforço que foi positiva para isquemia da parede anterior, e um ecocardiograma que mostrou acinésia da parede anterior,

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embora com função global ainda dentro da normalidade. Realizou então um cateterismo, sendo-lhe diagnosticada uma oclusão proximal da artéria descendente anterior. A tentativa de abertura do vaso para angioplastia não foi bem sucedida. O doente retornou ao país de residência, sob medicação anti-anginosa. Passados cerca de 20 meses, o doente não teve novos episódios semelhantes ao inaugural. No entanto, reconhecia uma limitação funcional, que se manifestava por cansaço para determinadas atividades físicas e que não existia antes do enfarte agudo do miocárdio. Neste contexto, foi programado um novo cateterismo em que se manteve o diagnóstico inicial - oclusão proximal da artéria descendente anterior -, sendo novamente impossível a reperfusão do vaso (Fig 1). Perante a situação, o doente foi proposto para cirurgia de revascularização coronária,

Fig. 1 Coronariografi a

Fig. 2 Setup de cirurgia robótica para cirurgia de revascularização coronária (A) e representação esquemática da localização dos trocartes (x) no terceiro, quinto e sétimo espaços intercostais (B)

que foi aceite. Após explicação das vantagens e dos riscos, o doente aceitou ser operado com a técnica de minitoracotomia (MIDCABG, minimally invasive direct coronary artery bypass grafting) assistida por robot. Nesta intervenção, foi realizado um bypass com artéria mamária interna

A B

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Fig. 3 Incisão de minitoracotomia. Imagem intraoperatória (A) e aspeto depois da cicatrização (B)

Fig. 4 Angio-TC de controlo realizada aos três meses de pós-operatório

esquerda para a artéria descendente anterior. Todo o procedimento foi feito com apoio do sistema de cirurgia robótica Da Vinci Si HD, até à anastomose (Fig 2). Após esses procedimentos, foi feita uma minitoracotomia de 5 a 7 cm, no quarto espaço intercostal e, através desta, foi feita a anastomose sob visualização direta, com o coração a bater, evitando--se deste modo a esternotomia e a circulação extracorporal (Fig. 3). O pós-operatório decorreu sem problemas e o doente teve alta menos de 72 horas após a cirurgia, sem queixas álgicas. No

follow-up imediato, há apenas a referir um derrame pleural residual que se resolveu espontaneamente. Três semanas após a cirurgia, o doente regressou ao país de residência, iniciando a sua atividade profi ssional. Aos três meses do pós-operatório, o doente encontrava--se bem e assintomático. Foi realizada uma angiografi a por tomografi a computorizada (angio-TC) de controlo, que mostra um resultado fi nal excelente, com reperfusão do vaso desde a sua porção proximal (Fig 4).

A B

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DISCUSSÃOIndependentemente da técnica, método ou abordagem usada, a anastomose entre artéria mamária interna esquerda e a artéria descendente anterior constitui a melhor opção para a revascularização do miocárdio. Existe um follow-up de praticamente 30 anos do seu uso e a taxa de permeabilidade deste procedimento é elevadíssima. A falência do bypass após os primeiros anos está mais relacionada com a progressão da doença coronária, nativa ou outra, do que propriamente com o bypass.

Apesar de todos os desenvolvimentos na área da cardiologia de intervenção e da qualidade dos stents, todos os estudos demonstram que a transposição da artéria mamária interna esquerda para a artéria descendente anterior, continua a ser o gold standart da revascularização deste território a curto, médio e longo prazo.

O mesmo não se pode afi rmar em relação a outros vasos em que mesmo com uma utilização generalizada, nos últimos anos, de condutos arteriais, as taxas de oclusão se tenham revelado bastante superiores. Nestes casos, a cardiologia de intervenção tem um papel fundamental, com resultados excelentes.

Até ao desenvolvimento das abordagens minimamente invasivas, a realização de uma anastomose da artéria mamária interna esquerda na artéria descendente anterior obrigava a uma esternotomia. Como tal, não seria muito lógico sujeitar um doente a uma esternotomia, quando aquela anastomose fosse possível realizar por métodos não invasivos.

Presentemente, o paradigma da revas-cularização do miocárdio está a mudar. Cada vez mais, a junção do melhor da cirurgia cardíaca com a melhor expertise da cardiologia de intervenção permitirá atingir os melhores resultados.

A possibilidade de o doente poder optar por um procedimento híbrido - MIDCAB assistida por robot ou cirurgia de revascularização coronária total endoscópica (TECAB) e angioplatia coronária percutânea transluminal (PTCA) - é uma realidade e dentro em pouco poderá vir a ser uma exigência dos doentes.

Este tipo de procedimento baseia-se na existência de um heart-team (equipa de cirurgiões cardíacos e cardiologistas de intervenção), na discussão individual da situação de cada doente e na predisposição desta equipa para propor esta nova abordagem de revascularização.Mais especifi camente, as principais vantagens desta técnica robótica são as já conhecidas para as abordagens cirúrgicas minimamente invasivas, a que se acrescentam as especifi cidades da cirurgia cardíaca:

Evitar a esternotomia. Apesar de ser uma abordagem excelente, de permitir o acesso a qualquer zona do coração e de tratar cirurgicamente todas as patologias cardíacas, a esternotomia é sempre dolorosa no início e, principalmente, incapacitante para muitas atividades diárias durante um período alargado de tempo. O exemplo mais comum é a inibição de condução durante quatro a seis semanas, muitas vezes com incapacidade conseguinte para o desempenho

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da atividade profi ssional. Por outro lado, muitos doentes só deixam de ter sintomatologia, como dores torácicas, osteoarticulares e musculares, dois a três meses depois de serem submetidos a uma esternotomia.

Menor dimensão da incisão. Inde-pendentemente das razões estéticas, que nestes doentes não serão certamente o fator mais importante, as abordagens minimamente invasivas com incisões de pequena dimensão, como acontece em todas as outras áreas cirúrgicas, estão associadas a uma menor incidência de problemas relacionados com a ferida operatória, entre os quais deiscência e infeção.

Menos dor. Embora a intensidade e duração da dor esteja também relacionada com o tipo de cirurgia realizada, as abordagens minimamente invasivas são, globalmente, menos dolorosas, benefício que é potenciado na abordagem robótica.

Menores necessidades transfusionais. Pelas suas características de invasi-bilidade, nas abordagens minimamente invasivas na cirurgia cardíaca, com-parativamente à abordagem clássica por esternotomia, o traumatismo dos tecidos é menor, as perdas de sangue são menos importantes e as necessidades de sangue e derivados são menores.

Menor risco de infeção. A probabilidade de complicações com infeção local ou

sistémica consequente a uma cirurgia cardíaca minimamente invasiva é substancialmente inferior quando comparada com a abordagem por esternotomia.

Menos tempo de internamento. Sendo esta abordagem menos agressiva, o período de internamento pós-operatório é reduzido de forma signifi cativa. Tanto na abordagem MIDCAB assistida por robot como na TECAB, e desde que se evite também a circulação extra corporal, é possível extubar os doente no bloco operatório, reduzir a permanência em cuidados intensivos para menos de 24 horas e dar altas hospitalares mais precoces, ao terceiro ou quarto dia de pós-operatório

Retorno mais rápido às atividades diárias. É expectável que os doentes submetidos a cirurgia cardíaca minimamente invasiva retornem mais rapidamente às suas atividades profi ssionais já que, comparativamente à abordagem clássica, não são submetidos a esternotomia e portanto não têm necessidade de manter protegida durante um período prolongado uma incisão de grande dimensão, a intensidade e duração da dor é inferior, a probabilidade de complicações é inferior e têm alta hospitalar mais precocemente. Tem-se verifi cado que passadas duas semanas, a maioria dos doentes está apta para reiniciar a sua vida normal sem quaisquer limitações.

BIBLIOGRAFIABonatti J, Schachner T, Bonaros N, Lehr E, Zimrin D, Griffi th B. Robotically assisted totally

endoscopic coronary bypass surgery. Circulation 2011;124:236-44.

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PROSTATECTOMIA RADICAL ASSISTIDA POR ROBOT NUM DOENTE COM TROMBOSE DA VEIA PORTA

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RESUMO Abstract

PROSTATECTOMIA RADICAL ASSISTIDA POR ROBOT NUM DOENTE COM TROMBOSE DA VEIA PORTA Robotic assisted radical prostatectomy in a patient with portal vein thrombosis

Os autores descrevem o caso clínico de um doente de 50 anos de idade com um adenocarcinoma da próstata localizado e com um diagnóstico prévio de trombose da veia porta e seus confl uentes, submetido a uma prostatectomia radical assistida por robot. Embora se trate de uma entidade rara, a etiologia e a fi siopatologia da trombose da veia porta são conhecidas, sabendo-se, também, que pode ser uma complicação da cirurgia laparoscópica. Contudo, desconhecem--se as consequências possíveis de uma laparoscopia num doente com trombose prévia da veia porta. Considera-se, em geral, que a cirurgia intra-abdominal,

The authors report the clinical case of a 50 year-old man with a localized prostate cancer and a previous diagnosis of portal vein thrombosis, submitted to a robot assisted radical prostatectomy. Although rare, the portal vein thrombosis etiology and its pathophysiology have been already described, and it is well known that it can be regarded as a possible complication of laparoscopy. However, the possible effects of laparoscopy on pre-existing portal vein thrombosis are still unknown. It is generally accepted that intra-abdominal surgery, particularly in these patients, holds a considerable risk of thrombosis; therefore surgery is

RUI FORMOSOHUGO MARQUES

FILIPE COSTAJOSÉ BISMARCK

KRIS MAES

Centro de Cirurgia Minimamente Invasiva e Robótica, Centro de Imagiologia, Departamento de Anestesiologia

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O cancro da próstata (CP) é atualmente a neoplasia não cutânea mais frequente no sexo masculino e a segunda causa de morte por cancro nos homens.1,2 A sua prevalência aumenta com a idade, sendo raro antes dos 40 anos e pouco frequente entre os 40 e os 50 anos de idade. As características epidemiológicas do cancro da próstata têm uma relação geográfi ca importante. Com efeito, o CP representa 15% das neoplasias masculinas nos países desenvolvidos e apenas 4% nos países em vias de desenvolvimento.3 Nas últimas três décadas, a incidência desta doença tem sofrido um aumento signifi cativo, o que, certamente, tem também alguma relação com a generalização da determinação do antigénio específi co da próstata (PSA) e com o diagnóstico precoce.

Presentemente, a prostatectomia radi-cal é considerada o tratamento de eleição para o CP localizado, com

benefícios na sobrevivência específi ca da doença, comparativamente a uma atitude expectante.4,5 Numa revisão e meta-análise recente de todos os dados publicados,6-8 conclui-se que a prostatectomia radical robótica é estatisticamente superior à prostatectomia aberta ou laparoscópica, no que se refere à recuperação da continência urinária6 e da função erétil.7 Por outro lado, também a taxa de complicações, as perdas hemáticas e a taxa de transfusões são mais favoráveis na abordagem robótica, comparativamente à prostatectomia aberta ou laparoscópica.8 Os resultados oncológicos são comparáveis nas abordagens robótica e aberta.4,9,10

As alterações fi siológicas causadas pela insufl ação pressurizada de dióxido de carbono e seus efeitos na circulação esplâncnica estão também bem estudadas. O desenvolvimento de

INTRODUÇÃO

especialmente nestes doentes, aumenta o risco de trombose; por isso, é evitada ou é realizada da forma menos invasiva possível. Os autores descrevem as precauções e as alterações da técnica habitual de prostatectomia radical robótica adotadas para minimizar o risco de complicações. Os resultados obtidos demonstram que a prostatectomia radical assistida por robot realizada com abordagem pré-peritoneal é um procedimento seguro e efi caz em casos complexos como o descrito. Tanto quanto é do conhecimento dos autores não existem relatos de casos semelhantes descritos na literatura.

either avoided, or is performed under the least invasive approach possible. The authors describe the precautions taken, as well as the technical modifi cations they introduced to the robotic radical prostatectomy technique to minimize the risks of complications. The results obtained show that robotic radical prostatectomy with preperitoneal approach is a safe and effective procedure in very demanding cases, like this one. As far as the authors are aware this particular approach has never been described in medical literature.

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PROSTATECTOMIA RADICAL ASSISTIDA POR ROBOT NUM DOENTE COM TROMBOSE DA VEIA PORTA

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CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 50 anos de idade, com diagnóstico de trombose idiopática da veia porta, veia mesentérica superior e esplénica (Fig.

1 e 2), realizado dois meses antes, na sequência de um quadro de epigastralgia com irradiação ao dorso, transfi xiva, agravado com a ingestão de alimentos, enfartamento precoce e vómitos biliosos, referindo também queixas esporádicas de distensão abdominal e náuseas, com alguns meses de evolução. Desde então estava medicado com enoxaparina na dose de 160 mg/dia.

Entre os antecedentes pessoais destacava--se o síndrome de Jessner Kanof; entre os antecedentes familiares, o pai e quatro tios tinham cancro da próstata.

Os exames realizados no contexto da investigação diagnóstica referida registaram um valor total para o antigénio específi co da próstata (PSA) de 8,99 ng/mL com fração livre/total de 10%. O doente foi então referenciado para uma consulta da Urologia. O toque retal revelou uma próstata ligeiramente hipertrofi ada, indolor e sem nódulos nem alterações da consistência. Na ecografi a transretal estimou-se um volume prostático de 47 cm3 e não se detetaram imagens suspeitas. O doente

fenómenos trombóticos e de alterações da coagulação em doentes submetidos a cirurgia laparoscópica estão descritos na literatura médica.11 No entanto, o inverso, ou seja, as consequências da cirurgia laparoscópica em doentes com fenómenos trombóticos e alterações da coagulação já diagnosticadas, não estão descritas.

Os autores descrevem o caso clínico de um doente de 50 anos de idade com um

adenocarcinoma da próstata localizado e com o diagnóstico prévio de trombose da veia porta e seus confl uentes, submetido a uma prostatectomia radical assistida por robot. Por parecer lógico assumir que uma abordagem laparoscópica pode aumentar o risco de agravamento de uma trombose prévia da veia porta, os autores introduziram alterações à técnica habitual e à monitorização realizada, com o intuito de minimizar esse risco.

Fig. 1 Trombose do ramo direito da veia porta e circulação colateral

Fig. 2 Ecodoppler abdominal mostrando trom-bose ramo direito da veia porta

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realizou uma biopsia prostática transretal guiada por ecografi a, que revelou um adenocarcinoma da próstata de grau 6 de Gleason (3+3) nos fragmentos da base bilateralmente e no terço médio esquerdo.

Uma tomografi a computorizada (TC) revelou, além da trombose referida, uma ligeira esplenomegália, homogénea, densifi cação do mesentério e circulação venosa colateral, não se detetando adenomegálias. A cintigrafi a não detetou metástases ósseas. A revisão de lâminas corroborou o diagnóstico prévio.

Estava-se assim perante um doente de 50 anos de idade, com um adenocarcinoma da próstata Gleason 6, assintomático, em estadio clínico e histológico T2bN0M0, com PSA de 8,99 ng/mL, sem queixas urinárias e sexualmente ativo, com trombose da veia porta e confl uentes.

Foram apresentadas ao doente as várias opções terapêuticas possíveis para o seu caso, que incluíam radioterapia (externa ou braquiterapia) ou cirurgia (prostatectomia realizada por via aberta, laparoscópica convencional ou assistida por robot), os seus riscos e benefícios. Ressalvou-se, em particular, o risco acrescido de qualquer uma das abordagens cirúrgicas, quer pela necessidade de manter a anticoagulação, quer pela possibilidade de progressão da trombose apesar dessa medicação.

Após ponderação, o doente optou por uma prostatectomia radical laparoscópica assistida por robot (Fig. 3). Pelas especifi cidades do doente, considerou--se necessário introduzir algumas modifi cações, não só na técnica cirúrgica habitual, como também no controlo imagiológico, de modo a conseguir vigiar

o comportamento da trombose durante o procedimento. A anticoagulação com enoxaparina não foi interrompida.

Para diminuir a exposição abdominal a pressões elevadas de pneumoperitoneu e de dióxido de carbono, optou-se por uma abordagem pré-peritoneal do espaço de Retzius, com dissecção laparoscópica pura do mesmo e docking posterior do robot aos trocartes inseridos, o que permitiu também reduzir o ângulo da posição de Trendlenburg. Efetuou-se uma dissecção nerve-sparing interfascial bilateral. Foi realizado um ecodoppler abdominal, imediatamente antes, durante e depois do pneumoperitoneu (Fig. 4), verifi cando-se que não houve progressão da trombose durante o procedimento.

A cirurgia foi realizada sem intercorrências, tendo demorado três horas e dez minutos, com um tempo de consola de duas horas. As perdas hemáticas foram estimadas em cerca de 200 mL.

Fig. 3 Sala de cirurgia robótica do Hospital da Luz. Imagem obtida durante a realização de uma pros-tatectomia radical. O ajudante permanece junto ao doente e robot, assistindo o cirurgião durante a fase de consola enquanto segue a intervenção no monitor

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DISCUSSÃOO cancro da próstata constitui a quarta neoplasia maligna mais comum a nível mundial.10 Na Europa, é o cancro mais comum no sexo masculino, representando cerca de 11,9% de todos os cancros e 9% de todas as mortes por cancro.12

As guidelines da Associação Europeia de Urologia defi nem como meios para a avaliação do risco de cancro da próstata a combinação do toque retal (DRE) e da determinação sérica do PSA. O método de eleição para o diagnóstico histológico é a biopsia prostática transretal guiada por ecografi a (TRUS). 12-14

Os tumores não palpáveis (estadio clínico T1c do American Joint Committee on Cancer) representam cerca de 75% dos cancros da próstata de diagnóstico recente.5 Em cerca de 80% dos casos, o CP encontra-se na zona periférica do órgão, em 15% na zona de transição e em 5% na zona central.15

A validade da prostatectomia radical na redução da mortalidade por cancro da próstata foi recentemente confi rmada num estudo prospetivo randomizado, o que torna esta modalidade terapêutica a única com grau de evidência 1.10

A sua efi cácia foi demonstrada em tumores localizados de risco baixo a

Fig. 4 Realização de ecodoppler abdominal intra-operatório

O pós-operatório decorreu sem compli-cações major, sendo de referir apenas dois hematomas de pequena dimensão em torno da incisão de duas portas. Durante o pós-operatório, não houve alterações laboratoriais relevantes. A ecografi a e a tomografi a computorizada

realizadas no segundo e no terceiro dia do pós-operatório revelaram que não houve modifi cações da trombose nem desenvolvimento de coleções internas. O doente fez levante ao segundo dia, teve alta algaliado ao quarto dia e retirou a algália ao oitavo dia do pós-operatório.

O estudo anatomopatológico da peça operatória confi rmou tratar-se de um adenocarcinoma Gleason 6 (3+3) envolvendo o terço médio e o ápex bilateralmente e a zona de transição, com margens cirúrgica livres e estadio pT2cNxR0.

Aos seis meses do pós-operatório o doente tinha um valor de PSA de 0,03 ng/mL, mantendo a continência urinária e a função erétil. Ao longo de dois anos de seguimento, os níveis de PSA mantiveram-se inferiores ao limite de deteção.

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muito elevado, sendo o benefício tanto maior quanto mais elevado o risco.16 O objetivo da prostatectomia é a cura da doença, com um mínimo de efeitos secundários, designadamente mantendo a continência urinária e a função erétil. Esta conjugação, designada trifecta, é conseguida em cerca de dois terços dos doentes.17,18 A prostatectomia radical assistida por robot permite manter o resultado oncológico cirúrgico mas com um melhor resultado funcional.6-8

A prostatectomia radical foi desen-volvida inicialmente por Young, no início do século XX, usando uma abordagem perineal. Posteriormente, Memmelaar e Millin realizaram o procedimento por via retropúbica. Em 1982, Walsh e Donker descreveram a anatomia do complexo venoso dorsal e os feixes neurovasculares, popularizando assim a técnica nerve-sparing, do que resultou numa redução signifi cativa das perdas sanguíneas e uma melhoria das taxas de manutenção da continência urinária e da função erétil. Passados cerca de dez anos, Schuessler realizou com êxito as primeiras prostatectomias radicais laparoscópicas. Contudo, esta abordagem não teve uma aceitação generalizada, não só devido à sua complexidade técnica, como também pelo facto de não oferecer vantagens relativamente à prostatectomia radical aberta. Nas séries iniciais de prostatectomias laparoscópicas, os tempos operatórios variavam entre as oito e as 11 horas, com um tempo médio de internamento de cerca de sete dias. A prostatectomia radical laparoscópica ganhou um novo interesse quando os grupos franceses liderados por Guilloneau e Abbou, em 1999 e 2000,

respetivamente, publicaram a sua experiência. Estes autores introduziram modifi cações à técnica laparoscópica original, o que resultou em tempos operatórios inferiores, entre quatro e cinco horas, perdas sanguíneas de cerca de 400 mL e tempos de internamento mais curtos por remoção mais precoce da algália. Mesmo com a modifi cação da técnica e com a evolução vertiginosa do instrumental laparoscópico, a dissecção nerve-sparing dos feixes neurovasculares e a anastomose vesico-uretral constituem passos cuja realização é extremamente complexa. Assim, a abordagem laparoscópica foi adotada em centros mundiais com grande volume de doentes, mas não pela generalidade dos urologistas fora desses centros.

A prostatectomia radical robótica foi desenvolvida e divulgada por Menon e seus colaboradores no Vattikuti Urology Institute no Hospital Henry Ford em Detroit, Michigan (EUA), em 2002. Teve uma excelente aceitação nos Estados Unidos e na Europa e tem sido adotada em todo o mundo. Oferece as vantagens da abordagem laparoscópica (minimamente invasiva), encurtando simultaneamente a curva de aprendizagem e facilitando o domínio da técnica, mesmo para os cirurgiões com pouca ou nenhuma experiência em laparoscopia.

Em termos técnicos, as vantagens da cirurgia robótica comparativamente à laparoscopia convencional são:

- A projeção da imagem na direção das mãos do cirurgião, restabelecendo a coordenação olho-mão;- A câmara de 11 mm integra duas

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câmaras de 5 mm cada uma. As imagens de cada câmara são apresentadas ao cirurgião de modo a criar uma visão tridimensional com perceção de profundidade;- Os movimentos cirúrgicos são intuitivos, ao contrário do que acontece na laparoscopia, em que são contra-intuitivos e com efeito de alavanca;- A fi ltragem do tremor de mão, a ampliação de 10 a 15 vezes e a desmultiplicação da amplitude do gesto 3:1;- Usa pinças articuladas com sete graus de liberdade de movimentos (imitando os movimentos do pulso), ao contrário dos quatro graus da laparoscopia convencional;- Elevação da parede abdominal pelos trocartes, o que contribui para uma melhor visualização.

Em termos funcionais, as vantagens da cirurgia robótica comparativamente à laparoscopia convencional são:

- Tempo operatório, perdas hemáticas, tempo de internamento e tempo de permanência de algália inferiores;- Taxas de margens cirúrgicas positivas e recidiva bioquímica são semelhantes, mas as taxas de manutenção da continência urinária e função eréctil são signifi cativamente melhores;6-10

A trombose da veia porta é um acontecimento raro, representando cerca de 5 a 15%19 dos fenómenos isquémicos mesentéricos. É também uma complicação, embora rara, da cirurgia laparoscópica. A trombose relacionada com capnopneumoperitoneu é causada por um conjunto de fatores sistémicos e mecânicos que induzem alterações da coagulação e da hemodinâmica

cardiovascular e esplâncnica. Diversos estudos revelam que estas alterações hemodinâmicas estão mais relacionadas com a absorção de dióxido de carbono do que com o aumento de pressão intra-abdominal. A hipercapnia aumenta a pressão venosa portal e induz uma vasoconstrição mesentérica. Contudo, com pressões abdominais superiores a 16 mmHg pode haver uma redução superior a 50% da pressão venosa portal, 30% de redução de débito cardíaco e 65% aumento da resistência vascular sistémica.20

Atualmente, a tomografi a computo-rizada (TC), o ecodoppler e a ressonância magnética permitem fazer um diagnóstico imagiológico completo e correto em mais de 90% dos casos. Enquanto o ecodoppler permite demonstrar a trombose no sistema porta, a TC revela o início de uma trombose e a sua consequente circulação venosa colateral.

Dado não ser do conhecimento dos autores a publicação de casos de doentes com trombose da veia porta submetidos a cirurgia laparoscópica, apenas consideraram a possibilidade desta abordagem agravar o risco de progressão da trombose durante a cirurgia. Assim, foi mantida a anticoagulação com heparina de baixo peso molecular (enoxaparina 160 mg/dia), iniciada quando do diagnóstico da trombose da veia porta e que tinha indicação para continuar durante seis meses.

Na intervenção cirúrgica optou-se por uma abordagem pré-peritoneal (extra-peritoneal), para limitar a pressão intra-abdominal e a absorção de

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dióxido de carbono. O peritoneu funciona por si como um afastador dos órgãos intra-abdominais, dimi-nuindo também a necessidade do posicionamento habitual de 29 graus. Manteve-se a pressão de insufl ação em 12 mmHg. A desvantagem destas alterações é o menor espaço para realizar a dissecção e as suturas.

A presença de um médico radiologista responsável pela realização do eco-doppler abdominal, imediatamente antes, durante e depois do pneumo-peritoneu, teve também a intenção de dispor de uma opinião fulcral perante a necessidade de decisão de conversão para uma cirurgia aberta, caso se evidenciasse progressão do trombo.

Tanto quanto é do conhecimento dos autores não existem relatos de casos semelhantes na literatura médica. Os resultados obtidos demonstram que a prostatectomia radical assistida por robot realizada com abordagem pré-peritoneal é um procedimento seguro e efi caz em casos complexos como o descrito. No entanto, os autores consideram que apesar da evolução favorável do caso descrito, a experiência de outros casos poderá ajudar a delinear o melhor

CONSIDERAÇÕES FINAISmodo de atuação em circunstâncias semelhantes.

Neste doente de 50 anos de idade, com um bom estado geral, com desejo de preservar a continência urinária e a função erétil, a cirurgia robótica foi o tratamento de eleição, mesmo considerando os obstáculos raros que estavam presentes e que era necessário ultrapassar.

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PROSTATECTOMIA RADICAL ASSISTIDA POR ROBOT NUM DOENTE COM TROMBOSE DA VEIA PORTA

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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NEOPLASIA MUCINOSA PAPILAR INTRADUCTAL PANCREÁTICA. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

NEOPLASIA MUCINOSA PAPILAR INTRADUCTAL PANCREÁTICA. CASO CLÍNICO Pancreatic intraductal papillary mucinous neoplasm. Case report

Anteriormente consideradas entida-des clínicas raras, as neoplasias mucinosas papilares intraductais pancreáticas (NMPI) são reconhecidas atualmente como uma doença comum, nomeadamente em doentes assintomáticos, em que se apresentam como um achado ocasional. São caracterizadas por uma grande produção de mucina e por um crescimento predominantemente intraductal, po-dendo classifi car-se em três grupos em função da localização anatómica - no ducto pancreático principal, nos ductos secundários ou com um componente misto. Por serem potencialmente malignas, a sua distinção pré-operatória

Previously considered as rare clinical entities, pancreatic intraductal papillary mucinous neoplasms (IPMN) are nowadays recognized as a common disease, even in asymptomatic patients in which they can be considered as incidental fi ndings. These tumors are characterized by an high mucin production and a predominant intraductal growth, being classifi ed in three main types based on its anatomic location: the main pancreatic duct, the secondary ducts and a mixed component. The preoperative distinction between benign and malignant lesions is important in order to select the most appropriate approach and treatment,

CARLOS FERREIRAJOSÉ ANTÓNIO PEREIRAPEDRO PINTO MARQUES

CRISTINA PESTANAPEDRO OLIVEIRA

ADALGISA GUERRALUIS GARGATÉ

JOÃO REBELO DE ANDRADE

Departamentos de Cirurgia Geral, de Anatomia Patológica e de Anestesiologia, Centro de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Após a primeira descrição de “tumores pancreáticos secretores de mucina”, realizada em 1982 por Ohashi e seus colaboradores,1 o conhecimento clínico, imagiológico e patológico destas entidades evoluiu de forma importante culminando, em 1996, com a proposta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de designação desta patologia como neoplasia mucinosa papilar intraductal (NMPI).2 As NMPI fazem parte do grupo dos tumores quísticos do pâncreas produtores de mucina e são defi nidas pela OMS como neoplasias intraductais hiperprodutoras de mucina, com epitélio colunar alto, por vezes com projeções papilares e consequente dilatação quística do ducto principal e/ou dos seus ramos secundários.

A incidência de NMPI tem aumentado signifi cativamente nos últimos anos, para o que contribuiu o avanço nas tecnologias de imagem de diagnóstico e a divulgação da realização destes exames.3

As NMPI são potencialmente malignas, o que justifi ca a importância da deteção

precoce e da caracterização das lesões.3 Macroscopicamente, as NMPI podem ser classifi cadas em três tipos, em função da sua localização anatómica: NMPI do ducto principal (NMPI-DP), NMPI dos ramos secundários (NMPI-DS) e NMPI mistas, em que estão envolvidos o ducto principal e também os ductos secundários.

Cada um destes tipos tem associadas prevalências de benignidade e mali-gnidade diferentes, sendo a malignidade mais provável nos NMPI-DP.4

Por vezes, é difícil decidir quais os doentes com NMPI que podem benefi ciar de ressecção cirúrgica, o que se deve, principalmente, ao conhecimento limitado da história natural destes tumores, à variabilidade histológica e à difi culdade em obter um diagnóstico pré-operatório de malignidade. Por estas razões, para defi nir qual a melhor estratégia para o seu tratamento, é desejável uma abordagem multidisciplinar de especialistas na área hepatobiliopancreática.4

INTRODUÇÃO

é importante para selecionar a melhor abordagem a adotar, melhorando desta forma o prognóstico. Os autores descrevem o caso clínico de um homem de 69 anos de idade, com uma neoplasia mucinosa papilar intraductal, realçando a importância da estratégia oncocirúrgica defi nida por uma equipa multidisciplinar, com experiência em patologia hepatobiliopancreática.

with an improved prognosis. The authors report the clinical case of an intraductal papillary mucinous neoplasm (IPMN) in a 69 year-old man, highlighting the importance of the surgical strategy defi ned by a multidisciplinary team, with expertise in hepatobiliopancreatic pathology.

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NEOPLASIA MUCINOSA PAPILAR INTRADUCTAL PANCREÁTICA. CASO CLÍNICO

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CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 69 anos de idade, referenciado para a consulta de cirurgia hepatobiliopancreática do Hospital da Luz por queixas dispépticas. Era portador de uma tomografi a computorizada (TC) que revelava a existência de um tumor quístico do pâncreas. Não tinha sintomas de insufi ciência pancreática exócrina. Entre os antecedentes pessoais, salientava-se uma intervenção cirúrgica, realizada um ano antes, por meningioma da fossa craniana média, com epilepsia sequelar, hipertensão arterial e diabetes mellitus não insulino-dependente. Não tinha história de trauma, de consumo etanólico, nem antecedentes pessoais ou familiares

de patologia pancreática. A avaliação analítica não apresentava alterações, nomeadamente dos marcadores tumorais antigénio carcinoembrionário (CEA) e antigénio carboidrato (CA 19-9) e dos autoanticorpos. Para investigação do achado imagiológico da TC de que era portador, o doente realizou uma ressonância magnética (RM) dirigida particularmente à avaliação pancreática (Fig. 1), que mostrou um envolvimento multiquístico milimétrico e difuso do pâncreas, envolvendo as diferentes porções desta glândula, que apresentava alguma expressão atrófi ca do rema-nescente glandular, traduzindo uma neoplasia mucinosa papilar intraductal.

Fig. 1 RM. Observa-se expressão difusa multiquística que envolve as diferentes porções do pâncreas com atrofi a parenquimatosa signifi cativa

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Não se detetaram adenomegálias nos diferentes grupos ganglionares do abdómen superior.

Para caracterização das alterações imagiológicas observadas na RM, o doente foi submetido a uma ultrassonografi a endoscópica (USE) (Fig. 2).

Esta avaliação revelou um parênquima pancreático heterogéneo, verifi cando--se dilatação do ducto da cabeça (6 - 10 mm) e da cauda (5,4 mm) do pâncreas. Comunicando com o ducto pancreático principal, em toda a sua extensão, estavam presentes inúmeros quistos, sendo o de maiores dimensões localizado na cauda (30 mm de diâmetro).

Não se detetaram nódulos ou septos espessados. Optou-se pela realização de uma punção transbulbar do ducto principal dilatado, com agulha 22 gauge numa só passagem, com aspiração de cerca de 4 mL de mucina.

O exame citológico revelou um único agregado papilar de células, aparentemente de revestimento epitelial foveolar gástrico, sendo os aspetos insufi cientes para um diagnóstico morfológico defi nitivo.

O caso foi discutido em reunião multidisciplinar de patologia hepatobilio-pancreática, tendo-se proposto o doente para ressecção cirúrgica. Assim, na semana seguinte, foi realizada uma duodenopancreatectomia total com preservação do baço e colecistectomia, que decorreram sem intercorrências (Fig. 3).

O exame extemporâneo revelou uma proliferação multiquística envolvendo toda a estrutura pancreática, sem aparência macroscópica de carcinoma invasivo.

O pós-operatório decorreu sem com-plicações e o doente teve alta hospitalar ao décimo dia do pós-operatório, referenciado para as consultas externas de cirurgia e de endocrinologia. Fig. 2 Aspecto endoscópico sugestivo de NMPI

do ducto principal e ductos secundários

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NEOPLASIA MUCINOSA PAPILAR INTRADUCTAL PANCREÁTICA. CASO CLÍNICO

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DISCUSSÃOCom a melhor defi nição das NMPI, com os desenvolvimentos na área das técnicas de imagem e com a divulgação do uso destes exames, a identifi cação das NMPI aumentou consideravelmente na última década.5,6 As NMPI correspondem a 21-33%

de todas as neoplasias quísticas do pâncreas, com uma prevalência de 7% entre todos os tumores pancreáticos.7-9

Desenvolvem-se, mais frequentemente, na cabeça do pâncreas (60%), mas também são encontradas no corpo ou cauda (28%). O envolvimento difuso

Fig. 3 Imagem intraoperatória de dissecção (A) e aspeto fi nal após ressecção pancreática (B)

Fig. 4 Peça operatória de duodenopancreatecto-mia, observando-se múltiplas formações quísticas de conteúdo mucoide (A). Imagem microscópica com revestimento de epitélio de tipo gástrico fo-veolar e displasia de baixo grau (B)

A avaliação anatomopatológica (Fig. 4) revelou uma neoplasia mucinosa papilar intraductal, envolvendo sobretudo as ramifi cações ao longo do canal de Wirsung, embora este apresentasse um revestimento de epitélio de tipo gástrico

foveolar e displasia de baixo grau. Não se documentou qualquer componente invasivo e os gânglios isolados, bem como a vesícula biliar, não tinham alterações valorizáveis.

A

A

B

B

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

em toda a glândula ocorre com menor frequência (12%).4,8,10

A idade média de diagnóstico das NMPI varia entre os 60 e 70 anos, sem predomínio do sexo ou raça.8,10,11

A etiologia das NMPI é desconhecida. Alguns autores referem que a maioria dos doentes incluídos nas suas séries era fumadora. Os doentes com NMPI têm por vezes, numa percentagem que se cifra em 19 a 32%, malignidades síncronas ou metácronas em outros órgãos, o que sugere alterações genéticas nos NMPI partilhadas por outras condições malignas.10

Não existe uma apresentação clínica patognomónica para as NMPI e a maioria dos doentes é assintomática, sendo estes tumores detetados incidentalmente durante exames de imagem justifi cados por outros problemas.11 No entanto, esta doença pode manifestar-se com sintomas vagos de dor abdominal epigástrica, por vezes pancreatite recorrente, esteatorreia, diabetes mellitus, perda de peso e, mais raramente, icterícia.3,9

As NMPI podem ser lesões pré-malignas e têm vários subtipos histopatológicos, desde hiperplasia, adenoma, carcinoma in situ e carcinoma invasivo, podendo coexistir diferentes estadios de evo-lução do tumor no mesmo doente.8 São classifi cadas também em função da sua localização anatómica em NMPI do ducto principal (NMPI-DP), dos ductos secundários (NMPI-DS) e NMPI mistas. Estes aspetos infl uenciam a abordagem terapêutica. No caso das NMPI-DP, a mucina produzida por estes tumores usualmente resulta em dilatação do

ducto pancreático de forma focal ou difusa. Se existirem lesões de longa duração pode resultar uma obstrução ligeira, com alterações de pancreatite crónica. As NMPI-DS desenvolvem- -se, mais frequentemente, na cabeça ou no processo uncinado (cerca de 60%) na forma de uma estrutura quística simples ou como lesões quísticas multiloculadas (grape-like cluster), com uma dimensão média de 20 mm, separadas por septos e que podem estar ligadas ao ducto pancreático e este estar dilatado.8

As NMPI-DP e as neoplasias mistas apresentam uma prevalência de malignidade em 57-92% dos casos, enquanto os NMPI-DS são na maioria incidentalomas e com baixo risco de carcinoma, especialmente quando se trata de lesões com menos de 3 cm de diâmetro.2,11

Os exames de imagem constituem o método preferencial para distinguir as características de benignidade ou malignidade das NMPI e também para as distinguir de outras formações quísticas do parênquima pancreático. A TC e a RM são usadas para evidenciar as características morfológicas típicas destes tumores, a sua relação com os vasos e também para fazer o diagnóstico diferencial com outras patologias.10

Quando a incerteza diagnóstica persiste, a USE identifi ca a dilatação focal ou difusa do ducto pancreático na ausência de pancreatite crónica e/ou de massa obstrutiva e também as dilatações múltiplas pancreáticas dos ramos secundários, sendo mais sensível para detetar nódulos murais. Com a USE também se pode realizar

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análise citológica e determinação das concentrações de marcadores tumorais, podendo este exame, na complexidade estrutural desta doença, ser uma mais-valia no indicador de malignidade.12

Contrariamente à situação do adeno-carcinoma ductal, existe ainda controvérsia sobre qual a melhor terapêutica para os doentes com NMPI, em particular quais os doentes que mais benefício terão da ressecção cirúrgica.4

Este facto deve-se ao conhecimento limitado da história natural destas neoplasias, à variabilidade histológica, à difi culdade em obter o diagnóstico pré-operatório de malignidade e ao “peso” maligno distinto dos diferentes tipos de NMPI.

Em 2006, foi publicado o consenso da Associação Internacional de Pan-creatologia, que estabeleceu crité-rios preditivos de malignidade desta doença: a apresentação clínica (p. ex. icterícia, esteatorreia, diabetes), o tipo de envolvimento ductal (principal ou secundário), o tamanho da neoplasia (> 3 cm), os nódulos murais e o espessamento das paredes ou septos, a dilatação do ducto principal (> 10mm) e a citologia positiva para malignidade.11 Além destes fatores, existem outros dados em estudo que poderão melhorar no futuro a previsão de malignidade, tais como as características citológicas destas lesões, o tipo de mucina presente e o valor dos marcadores tumorais no líquido pancreático (CEA e CA 19-9).4

Tendo em consideração estas guidelines, todos os NMPI-DP e de variante mista devem ser ressecados, mesmo em doentes assintomáticos, pois têm um risco elevado de malignidade.2

Os NMPI-DS estão associados a malignidade em 25% dos casos, sendo os doentes maioritariamente sintomáticos, com lesões superiores a 3 cm ou com nódulos murais e paredes e septos espessados. Quando têm estas características, os NMPI-DS também deverão ser operados. Nos doentes com NMPI-DS assintomáticos ou com lesões inferiores a 3 cm e sem nódulos associados, o risco de malignidade é baixo, correspondendo a 0-5% dos casos, devendo estes doentes ser vigiados de forma periódica por TC ou RM e seguidos por uma equipa multidisciplinar na área pancreática.6,9

A ressecção cirúrgica precoce é o tratamento de eleição quando os fatores preditivos de malignidade estão presentes.6,8 No caso descrito, dado o envolvimento misto e multifocal do ducto principal e o elevado risco de evolução maligna, optou-se pela realização de uma a duodenopancreatectomia total. A extensão de ressecção necessária para o adequado tratamento da NMPI pancreática ainda é controversa. Dependendo do local da lesão, o tratamento de eleição é a pancreatectomia. Os doentes que fi quem com pâncreas após a ressecção cirúrgica devem ser seguidos imagiologicamente de forma periódica, para detetar precocemente possíveis recorrências (11% dos casos) e lesões metácronas.4,7

O prognóstico é excelente após a ressecção completa de NMPI benignas e malignas não invasivas. A sobrevida aos cinco anos é, na maioria das séries, de 43-60% nos tumores invasivos e de 77-100% nas NMPI não invasivas.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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A presença de uma lesão NMPI aumenta o risco de desenvolver um carcinoma, pelo que a vigilância clínica ulterior é imprescindível para detetar o aparecimento de um tumor invasivo.

Só recentemente se começou a com-preender a biologia da tumoro-génese

do NMPI. Uma melhor compreensão das alterações moleculares existentes no desenvolvimento do NMPI pode, no futuro, dar informações importantes para a distinção fenotípica destes tumores e ajudar a prever mais assertivamente o seu potencial maligno e o risco de recorrência.5,6

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RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORRETAL

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RESUMO Abstract

RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DO CARCINOMA COLORETALRelevance of surgery and oncology in the management of colorectal carcinoma liver metastases

O desenvolvimento de novas terapêuticas sistémicas na área da oncologia, associado a terapêuticas cirúrgicas agressivas, melhorou signifi cativamente a sobrevivência dos doentes com metástases hepáticas de carcinoma coloretal. A abordagem das metástases hepáticas síncronas é um dos melhores exemplos da efi cácia do esforço integrado da oncologia e da cirurgia no controlo desta doença. Os autores descrevem o caso clínico de uma doente de 62 anos de idade com um adenocarcinoma do cólon sigmoide e com cerca de vinte metástases hepáticas síncronas. A doente realizou quimioterapia de conversão, com uma resposta muito favorável. A estratégia

The emergence of new systemic therapies in oncology associated with aggressive surgical therapies signifi cantly improved the survival of patients with liver metastases from colorectal carcinoma. The approach of synchronous liver metastases is one of the best examples of the effectiveness of an integrated effort from oncology and surgery in the management of this disease. The authors report the clinical case of a 62 year-old woman with a sigmoid colon adenocarcinoma and about twenty synchronous liver metastases. The patient underwent conversion chemotherapy with a favorable response. The surgical strategy consisted in the surgery of

JOSÉ ANTÓNIO PEREIRACARLOS FERREIRACRISTINA PESTANA

MÓNICA NAVETÂNIA RODRIGUES

PEDRO OLIVEIRAADALGISA GUERRA

JOÃO REBELO DE ANDRADE

Departamentos de Cirurgia Geral, de Anestesiologia, de Oncologia Médica e de Anatomia Patológica, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Nas últimas duas décadas, os de-senvolvimentos na área da on-cologia médica, nomeadamente o desenvolvimento de novas terapêuticas sistémicas, como o oxaliplatino, o irinotecan e, mais recentemente, os anticorpos monoclonais (cetuximab, bevacizumab e panitumumab), melho-raram a sobrevivência dos doentes com metástases hepáticas de carcinoma coloretal.1-3

Apesar desta melhoria, a ressecção cirúrgica continua a ser a única alternativa terapêutica relacionada com uma sobrevivência prolongada destes doentes. Numa metanálise recente, que envolveu 142 trabalhos publicados entre 1999 e 2010, os dados confi rmaram estes factos. Com efeito, a sobrevivência aos cinco anos é neste estudo de 16% a 71% (média 38%) após a ressecção hepática das metástases.4 Acrescente-se que estes resultados foram obtidos por grupos especializados no tratamento das

doenças do foro hepatobiliopancreático. Na verdade, é consensual a convicção de que estes doentes só deverão ser tratados no âmbito de unidades multidisciplinares especializadas, de modo a maximizar a possibilidade de sobrevivência a longo prazo.

Na altura da sua apresentação, a maioria das metástases hepáticas de carcinoma colorretal é irressecável. A quimioterapia de conversão, associada a algumas estratégias técnicas, como as hepatectomias iterativas, possibilita, num número signifi cativo de doentes, tornar as metástases ressecáveis.

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente com metástases hepáticas de carcinoma coloretal síncronas e irressecáveis na altura da sua apresentação e que se tornaram ressecáveis após quimioterapia de conversão.

INTRODUÇÃO

cirúrgica posterior consistiu na realização de uma sigmoidectomia associada a um primeiro tempo de ressecção das metástases hepáticas com sectorectomia posterior com preservação da veia suprahepática direita e metastasectomias. A avaliação anatomopatológica das peças operatórias confi rmou a elevada efi cácia da quimioterapia. O segundo tempo de hepatectomia consistiu numa segmentectomia do segmento 4 alargada à veia suprahepática média e metastasectomias. Passados seis meses, a doente não tem sinais de recorrência hepática ou extrahepática.

the primary tumor (sigmoidectomy) associated with a fi rst operative approach of metastasis ressection (posterior sectorectomy with preservation of right suprahepatic vein and metastasectomies). Histologic evaluation of surgical specimens confi rmed the high effi cacy of chemotherapy. The second time of hepatectomy consisted of a 4 segmentectomy extended to medium suprahepatic vein and metastasectomies. After six months, the patient shows no signs of hepatic or extrahepatic recurrence.

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RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORRETAL

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CASO CLÍNICODoente do sexo feminino, de 62 anos de idade, que realizou uma colonoscopia no contexto de queixas de alterações do trânsito intestinal.

Este exame revelou um tumor do cólon sigmoide, cuja biopsia mostrou tratar- -se de um adenocarcinoma.

Para estadiamento da doença, a doente realizou uma tomografi a computorizada (TC), que revelou uma metastização hepática múltipla bilobar. As cerca de 20 metástases contabilizadas distribuíam--se por todos os segmentos, poupando o segmento 2 e os segmentos 5 e 8 parcialmente (Fig. 1).

Fig. 1 Tomografi a computorizada. Metástases hepáticas bilobares (*)

O caso foi discutido em reunião multidisciplinar e, tendo em conta que se tratava de um tumor do cólon sigmoide assintomático com metastização hepática síncrona e irressecável, foi decidida a realização de quimioterapia de conversão com o objetivo de tornar a doença hepática ressecável.

A doente realizou então um protocolo de FOLFOX + bevacizumab (K-Ras mutado) durante nove meses, com uma resposta radiológica (Fig. 2) e biológica muito favorável. O valor do antigénio

carcinoembrionário (CEA) diminuiu de 68,0 ng/mL para 3,0 ng/mL. Uma tomografi a por emissão de positrões com tomografi a computorizada (PET-CT), realizada também nesta fase, não revelou focos de hipermetabolismo, quer no tumor primário quer nas metástases hepáticas.

Foi então decidido, em nova reunião multidisciplinar, a realização de cirurgia de ressecção hepática com hepatectomia em dois tempos e ressecção do tumor primário no primeiro tempo da hepatectomia.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Nesta intervenção, a avaliação da doença hepática através da ecografi a intraoperatória revelou a seguinte distribuição de metástases:

- Segmento 3 - quatro metástases- Segmento 1 - uma metástase- Segmento 4a e 4b - cinco metástases - Segmento 5 - duas metástases - Segmento 8 - duas metástases- Segmento 6/7 - seis metástases

Durante esta operação, foi realizada a sigmoidectomia, com colostomia e ileostomia de proteção. No primeiro tempo da cirurgia hepática, procedeu-se a sectorectomia posterior (segmentos 6 e 7) com preservação da veia suprahepática direita e alargada a duas lesões do segmento 5, metastasectomia do segmento 8, segmentectomia do segmento 3 e metastasectomia do segmento 1.

Foram proteladas para o segundo tempo de hepatectomia as lesões do segmento 4, que invadiam a veia suprahepática média e uma lesão do segmento 8, em contacto com a veia supra-hepática direita.

O pós-operatório decorreu sem com-plicações e a doente teve alta ao nono dia do pós-operatório.

O exame anatomopatológico das peças operatórias revelou o seguinte:

- Na peça de sigmoidectomia, com 14 gânglios removidos, identifi cavam-se acumulações de mucina extracelular no tumor primário assim como em quatro dos 14 gânglios removidos. Não foram observadas células neoplásicas.- Das 14 lesões hepáticas removidas, apenas a do lobo caudado tinha tumor viável e em apenas 20% da lesão.

Fig. 2 Tomografi a computorizada. Metástases hepáticas após quimioterapia

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RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORRETAL

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Fig. 3 Metástases hepáticas antes da segunda hepatectomia

Uma reavaliação imagiológica reali-zada após dez semanas e dois ciclos de FOLFOX, revelou crescimento do

fígado restante, com estabilidade das lesões conhecidas e sem outras novas lesões (Fig. 3).

Foi então realizado o segundo tempo da hepatectomia, em que se fez a ressecção do segmento 4 alargada à veia suprahepática média (Fig. 4). As lesões adjacentes aos pedículos glissonianos foram removidas sem qualquer margem. Procedeu-se ainda a metastasectomia do segmento 8, que contactava com a veia supra-hepática direita. A doente manteve os segmentos hepáticos 5, 8 e 2 e parte do 1. Neste tempo operatório foi ainda realizado o encerramento da ileostomia.

A doente teve alta ao sexto dia do pós-operatório, sem complicações.

O exame anatomopatológico das múltiplas lesões revelou a presença de tumor viável em apenas uma lesão do segmento 4 (células viáveis em apenas 1% da lesão). As margens cirúrgicas não continham células tumorais.

Passados seis meses, a doente não tinha qualquer evidência de doença hepática ou extrahepática.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOA quimioterapia de conversão, denominação consensual para a quimioterapia realizada com o objetivo de converter doença irressecável em doença ressecável (AHPBA, 2012), tem a sua utilização justifi cada na resposta apresentada por alguns doentes com doença inicial irressecável e que se tornam candidatos à ressecção cirúrgica depois de a realizarem, tendo assim uma possibilidade de sobrevivência, passados cinco anos, de 33% a 58%.5,6

A efi cácia do protocolo de qui-mioterapia FOLFOX associado ao antiangiogénico bevacizumab (K-ras mutado) está reconhecidamente de-monstrada, com taxas de conversão que podem atingir 40%.7,8

No caso descrito, a efi cácia da quimioterapia foi constatada inicial-

mente pela diminuição dos marcadores tumorais. Do ponto vista radiológico, assistiu-se a uma dimuição ligeira do volume das lesões e, sobretudo, a uma melhor defi nição. Esta resposta excecional foi ainda constatada na PET-CT e, fi nalmente, confi rmada pelo exame anatomopatológico das peças cirúrgicas do primeiro tempo operatório. Na verdade, a existência de acumulações de muco e inexistência de células tumorais viáveis em praticamente todas as lesões permitiu encarar a segunda hepatectomia como uma intervenção curativa, mesmo sabendo que as lesões do segmento 4, em contacto com os pediculos glissonianos, e a lesão do segmento 8, em contacto com a veia suprahepática direita, iriam ser ressecadas sem margem.

A hepatectomia em dois tempos é uma técnica utilizada pelos grupos que se dedicam ao tratamento das doenças do

Fig. 4 Segunda hepatectomia: segmentectomia 4 alargada à veia suprahepática média e metastasectomia do segmento 8 adjacente à veia supra hepática direita

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RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORRETAL

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foro hepatobiliopancreático. Faz parte do conjunto de técnicas que permitem recrutar e transformar uma doença hepática cirurgicamente irressecável em ressecável.

É utilizada em casos como o de uma doença extensa bilateral inicialmente irressecável, por não permitir manter um volume de fígado sufi ciente que previna a insufi ciência hepática pós-operatória.

A hepatectomia em dois tempos, com ou sem embolização dos ramos da veia porta, pressupõe o crescimento do fígado remanescente entre as duas hepatectomias, possibilitando a ressecção sem a falência hepática pós-operatória e com resultados muito encorajadores passados três anos, de uma sobrevivência global de 86% e de uma sobrevivência livre de doença de 51%.9,10

No caso descrito, a estratégia passou por uma primeira cirurgia de ressecção do tumor primário (sigmoidectomia), associada ao primeiro tempo da ressecção hepática.

Nestas situações de ressecções colorectais síncronas (cólon esquerdo e reto), os autores defendem a realização sistemática de uma ileostomia de proteção, dado ser crítico o cumprimento rigoroso dos intervalos de tempo estabelecidos para atingir o objetivo de ressecção e permitir sobrevivências prolongadas.

Nesta doente, a doença hepática além de ser múltipla e bilobar, tinha lesões centrais em contacto com os pedículos glissonianos principais e invasão direta da veia suprahepática média.

A estratégia de ressecção inicial do setor posterior, poupando a veia suprahepática direita, deveu-se à sua maior carga tumoral e à necessidade de manter esta via de drenagem após a segunda hepatectomia.

Com efeito, no primeiro tempo cirúrgico pretendeu-se preparar o segundo tempo de hepatectomia, confi nando a doença a um segmento principal, o segmento 4, que tinha a segunda maior carga tumoral e cuja localização era mais problemática.

O objetivo foi tornar exequível a segunda hepatectomia R0 e tal foi conseguido.

A resposta patológica associada à quimioterapia é um fator preditivo importante de prognóstico após a ressecção.11

Neste caso, houve uma resposta verdadeiramente excecional à quimioterapia, sem contudo haver um desaparecimento radiológico das lesões.

Este facto facilitou a abordagem e o planeamento cirúrgico. A resposta radiológica completa deve ser evitada a todo o custo, pois é sabido que não equivale a uma resposta histológica completa.

Na verdade, nestas situações, a doença microscópica residual pode ser encontrada em até 90% das lesões ressecadas. Por isso, o consenso internacional sobre metástases que desaparecem após quimioterapia é que a ressecção deve incluir todos os locais originais da doença.12

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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RELEVÂNCIA DA CIRURGIA E DA ONCOLOGIA NO TRATAMENTO DAS METÁSTASES HEPÁTICAS DE CARCINOMA COLORRETAL

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RESUMO Abstract

ADENOMA PARATIROIDEU ECTÓPICO. CASO CLÍNICO Ectopic parathyroid adenoma. Case

report

Os autores relatam o caso clínico de um doente de 71 anos de idade, que recorreu à consulta de Cirurgia Geral do Hospital da Luz por lesão nodular do mediastino superior e hipercalcemia grave, com compromisso da função renal. Durante a investigação diagnóstica, o doente foi submetido a diversos exames complementares, constatando-se um aumento signifi cativo dos valores séricos da hormona paratiroideia. O estudo cintigráfi co cervical com 99mTc-sestamibi revelou uma marcada captação de sestamibi no terço médio do tórax, apontando para o diagnóstico de hiperparatiroidismo primário por lesão ectópica retro-esternal.

The authors report the clinical case of a 71 year-old male patient, who went to the General Surgery outpatient clinic of Hospital da Luz due to the presence of a nodular lesion of the anterior mediastinum and a severe hypercalcemia with renal impairment. The diagnostic workup revealed a signifi cant increase in serum parathyroid hormone. A cervical scintigraphic study with 99mTc-sestamibi showed a marked uptake of sestamibi in the middle third of the chest, pointing to the diagnosis of primary hyperparathyroidism with a retrosternal ectopic lesion.

MARIA OLÍMPIA CIDMÓNICA JUSTINO*

VÍTOR MOURA GUEDESANTÓNIO GARRÃO

ANA LUÍSA CATARINOFERNANDO MARTELO

Departamentos de Cirurgia Geral, de Endocrinologia, de Anatomia Patológica e de Cirurgia Cardiotorácica* Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca, Amadora

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O hiperparatiroidismo primário (HPP) caracteriza-se por uma produção aumentada de hormona paratiroideia (PTH) com a consequente hipercalcemia. A prevalência na população europeia é de três casos em cada 1.000 habitantes na população em geral e de 21 casos em cada 1.000 habitantes para a população do sexo feminino com idades compreendidas entre os 55 e os 75 anos. O sexo feminino é o mais afetado com uma taxa de 3:1.1

Em 85% dos casos, o hiperparatiroidismo primário é causado pela presença de um adenoma da paratiróide e, em 10% dos doentes, o adenoma apresenta uma localização ectópica.2-4 Mais raramente, pode ser atribuído à hiperplasia da

totalidade das glândulas, situação frequentemente associada a síndromes familiares, ou ao carcinoma da glândula paratiróide. Embora na maioria dos casos atualmente diagnosticados, o hiperparatiroidismo seja ligeiro e assintomático, existem algumas situações em que os níveis elevados de PTH e de cálcio sérico condicionam sintomas que colocam em risco a vida do doente.

Os autores relatam o caso de um doente de 71 anos de idade, que recorreu à consulta de Cirurgia Geral do Hospital da Luz, por lesão nodular do mediastino médio, sugestiva de adenoma ectópico da glândula paratiróide.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 71 anos de idade, caucasiano, recorreu à consulta de Cirurgia Geral por lesão nodular do terço médio do tórax e hipercalcemia grave com compromisso da função renal.

Tinha antecedentes pessoais de hipertensão arterial, dislipidemia, doença renal crónica e hábitos tabágicos. A medicação do ambulatório incluía ramipril, clopidrogrel e sinvastatina.

Cerca de seis meses antes tinha sido internado num hospital do sul do país por quadro clínico de mioclonias e mal-estar geral. Durante o internamento, foram identifi cados vários problemas ativos:

- Hiperparatiroidismo com hipercal-cemia grave: cálcio sérico corrigido de 13,9 mg/dL (valores de referência 8,5-10,1 mg/dL), PTH de 2.087 pg/mL (valores de referência 15-65 pg/mL) e vitamina D de 14,5 ng/dl (defi ciência «20 ng/dL) - Gamapatia monoclonal por IgG kappa cujo mielograma excluiu mieloma múltiplo;- Doença renal crónica agudizada em contexto de hipercalcemia e desidratação.

Durante a investigação diagnóstica então realizada, o doente foi submetido a diversos exames complementares, nomeadamente ecografi a e tomografi a computorizada (TC) cervicais, que excluíram a existência de lesões das

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ADENOMA PARATIROIDEU ECTÓPICO. CASO CLÍNICO

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glândulas paratiroides. Após estabi-lização da função renal, normalização da calcemia sob terapêutica com ácido zelendrónico e remissão da sintomatologia, o doente teve alta, sendo referenciado à consulta de Cirurgia Geral do hospital da área de residência. Em ambulatório, realizou estudo cinti-gráfi co das glândulas paratiroides com 99mTc-sestamibi, verifi cando-se uma marcada captação de sestamibi no terço médio do tórax,

fortemente suspeita de lesão ectópica da paratiróide (Fig. 1). Realizou ainda TC torácica, que confi rmou a presença de uma lesão nodular homogénea, no mediastino anterior com 3,8 cm de maior eixo (Fig. 2).

O doente recorreu então à consulta de Cirurgia Geral do Hospital da Luz. O exame físico revelou mau estado geral com adinamia, astenia, atrofi a muscular generalizada e emagrecimento acentuado.

Da avaliação bioquímica ressaltava a calcemia de 10,8 mg/dL (valores de referência 8,5-10,1 mg/dL), PTH

Fig. 1 Cintigrafi a óssea (A) e cintigrafi a das paratiroides (B) com 99mTc-sestamibi (a seta indica a lesão retro-esternal)

Fig. 2 TC torácica coronal (A) e sagital (B) com visualização de lesão nodular (identifi cada pela seta) com 3,8 cm no mediastino anterior

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

de 996 pg/mL (valores de referência 15-65 pg/mL), fosforemia dentro dos valores normais e creatinina de 2.5 mg/dL (valores de referência 0,2-1,3 mg/dL). Não foram identifi cados aspetos clínicos ou bioquímicos que sugerissem a existência de síndrome genético associado ao HPP. Foi-lhe então proposta a ressecção cirúrgica da lesão nodular suspeita e o doente foi submetido a para-tiroidectomia por esternotomia parcial (Fig. 3 e 4).

Intra-operatoriamente foram doseados os níveis de PTH, verifi cando-se

Fig. 3 Excisão cirúrgica do adenoma através de esternotomia parcial

Fig. 4 Peça operatória da paratiroidectomia

normalização dos mesmos aos vinte minutos após a ressecção cirúrgica.

O resultado do estudo anatomo-patológico confi rmou a suspeita de adenoma da paratiróide com 22 gramas de peso e 62 x 4 x 25 mm de maiores eixos.

No pós-operatório, verifi cou-se a esta-bilização dos valores da PTH (82.8 pg/mL) e da calcemia (8.1 mg/dL). O doente teve alta e continua assintomático dois meses após a intervenção.

DISCUSSÃOO HPP traduz uma desregulação do metabolismo do cálcio caracterizada por hipercalcemia secundária a uma secreção inadequadamente alta de PTH. A PTH aumenta a reabsorção óssea e a absorção intestinal de cálcio, com consequente hipercalcemia, hipercalciúria, perda de massa óssea, litíase renal e nefrocalcinose. O diagnóstico de HPP surge na

sequência da identifi cação simultânea de hipercalcémia e níveis normais ou elevados de PTH, após ter sido excluída a toma de fármacos como o lítio, que diminuem a sensibilidade da célula paratiroideia ao cálcio e a hipercalcémia hipocalciúrica familiar, que cursa com calciúrias baixas. A carência concomitante de vitamina D ou a toma de bifosfonatos pode condicionar

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normocalcémia no contexto de um HPP. A hipercalcemia associada à doença maligna deve ser excluída, sendo geralmente acompanhada por sintomatologia relacionada com o tumor primitivo e níveis de PTH baixos.5

Com o aperfeiçoamento dos testes de doseamento do cálcio sérico e dos métodos de diagnóstico por imagem, a conhecida descrição da sintomatologia clínica do HPP de Fuller Albright dos anos 30, “renal stones, painful bones, abdominal moans and fatigue overstones”, foi substituída

progressivamente por uma nova forma de apresentação assintomática ou signifi cativamente menos sintomática.7

Nestas circunstâncias, a indicação cirúrgica pode tornar-se questionável e controversa, tendo desta evi-dência resultado as Guidelines da International Conference on the Management of Asyntomatic Primary Hyperparathyiroidism de 2009, que mantêm a aposta na identifi cação dos doentes que poderão benefi ciar de simples follow-up em detrimento da abordagem cirúrgica.8 (Quadro I)

Quadro I Guidelines para indicação cirúrgica no HPP

Calcemia: 1.0 mg/dL acima do limite superior da normalidade

Taxa de fi ltração glomerular: < 60 mL/min

Densidade óssea: T-score < -2,5 (coluna lombar, cabeça do fémur ou fratura prévia)

Idade: < 50 anos

Follow-up previsivelmente difícil ou impossível

Por outro lado, o custo-benefício do follow-up prolongado desta doença demonstrou exceder largamente os custos envolvidos no tratamento cirúrgico. Este apresenta uma efi cácia rondando os 98%, embora dependa objetivamente da experiência do cirurgião.9

Quando presentes, os sintomas mais referidos são astenia, fadiga, alteração do sono, irritabilidade, síndrome depressivo, geralmente acompanhados por um exame físico normal. Só muito raramente são observadas formas mais graves associadas a osteíte fi brosa quística, pancreatite, insufi ciência renal, atrofi a muscular, fasciculações

musculares, hiperrefl exia e perturbação do estado de consciência. Estas situações devem, sempre que possível, ser encaminhadas para tratamento cirúrgico.

Os exames de localização das glândulas afetadas apoiam-se essencialmente na conjugação dos achados ecográfi cos e cintigráfi cos.

As glândulas paratiroides normais não são habitualmente detetáveis em exames de imagem devido às suas diminutas dimensões e à sua semelhança com o tecido tiroideu. Contudo, a ecografi a de alta resolução, executada por ecografi sta experiente, permite

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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diagnosticar alterações glandulares numa percentagem signifi cativa de doentes.5,9,10,11

A sensibilidade da cintigrafi a das glândulas paratiroides com 99mTc-sestamibi, atinge os 90%. Os falsos negativos são atribuíveis à presença de hiperplasia glandular ou de pequenos adenomas. Os falsos positivos po-dem ocorrer, entre outros, em nódulos tiroideus de células oxifílicas que captam de forma acentuada o sestamibi.8 A fusão de imagens da cintigrafi a com 99mTc-sestamibi com a tomografi a computorizada tem uma sensibilidade acrescida, sobretudo nas localizações ectópicas.9 A localização ectópica mediastínica ocorre em cerca

de 1 a 3% dos casos, o que torna muitas vezes inviável a abordagem cirúrgica por via cervical, continuando a ser um desafi o cirúrgico.9,11

No caso apresentado, o adenoma paratiroideu tinha uma localização retro-esternal baixa, sendo apenas ressecável por esternotomia. Por tudo isto, o HPP implica uma investigação metódica do doente que permita o estabelecimento da correta abordagem cirúrgica. Os avanços verifi cados, quer na localização pré-operatória, quer no doseamento intra-operatório da PTH, permitiram uma abordagem mais direta e menos invasiva com a consequente diminuição da morbilidade.

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TRATAMENTO CIRÚRGICO DE UMA DISSECÇÃO ESPONTÂNEA DO TRONCO CELÍACO CAUSADA POR DISPLASIA FIBROMUSCULAR. PRIMEIRO CASO DA LITERATURA

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RESUMO Abstract

TRATAMENTO CIRÚRGICO DE UMA DISSECÇÃO ESPONTÂNEA DO TRONCO CELÍACO CAUSADA POR DISPLASIA FIBROMUSCULAR. PRIMEIRO CASO DA LITERATURA Surgical management of a spontaneous dissection of the celiac axis caused by fi bromuscular dysplasia. First clinical report

Os autores apresentam o caso clínico de um indivíduo do sexo masculino, de 46 anos de idade, que referiu a ocorrência de uma dor epigástrica súbita e forte, não acompanhada de outros sintomas ou sinais e que justifi cou o recurso aos serviços de urgência de um hospital local. A investigação clínica e laboratorial então efetuadas permitiram excluir um quadro de abdómen agudo convencional, razão pela qual foi objeto de avaliação por TC e angio-TC, que demonstraram a existência de uma dissecção espontânea e dilatação

The clinical case of a 46 years old male is reported, who complained of a sudden and sharp epigastric pain, with no other accompanying symptoms or signs. The patient was evaluated in the emergency department of a local hospital and the clinical and laboratory analysis excluded the occurrence of a common acute abdominal pathology. A CT and an angio CT study disclosed a spontaneous dissection and aneurismal dilatation of the celiac axis, along its extension. The patient underwent surgical management, consisting in the resection and prosthetic

A. DINIS DA GAMA AUGUSTO MINISTRO

GONÇALO CABRAL CRISTINA PESTANA

PEDRO OLIVEIRA

Departamentos de Cirurgia Vascular, de Anestesiologia e de Anatomia Patológica

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A entidade patológica designada por “dissecção” foi descrita por Morgagni em 1761,1,2 atingindo particularmente a aorta em toda a sua extensão. Ao longo dos tempos e até à atualidade, muito se tem progredido no conhecimento dos seus mecanismos íntimos, cir-cunstâncias predisponentes, história natural, meios auxiliares de estudo e diagnóstico e formas de tratamento médico, cirúrgico ou endovascular.1,2

A ocorrência de um processo se-melhante, autónomo e estritamente confi nado às artérias colaterais da aorta é muito mais rara e pode afi rmar-se que só nas últimas décadas do século XX foi sendo identifi cada, nomeadamente atingindo as artérias coronárias, carótidas, vertebrais, renais e muito mais rara nas artérias digestivas, ou seja, o tronco celíaco e as artérias mesentéricas, superior e inferior.3,4

A dissecção do tronco celíaco é efetivamente uma entidade muito rara5 e pouco conhecida na sua essência, circunstâncias etiológicas, manifestações

clínicas e história natural, pois são escassas as informações, credíveis e fundamentadas, que se podem extrair das cerca de três dezenas de casos publicados na literatura, em que a maioria foi objeto de tratamento conservador e, por conseguinte, sem possibilidades de se obterem elementos para estudos mais profundos, nomeadamente de natureza histopatológica.

O presente caso clínico, amplamente documentado e objeto de tratamento cirúrgico, permitiu um estudo detalhado do material recolhido no ato operatório, o qual veio a revelar a existência de um processo de displasia fi bromuscular subjacente à dissecção, o que se confi gura como uma circunstância excecional, provavelmente única, justifi cando-se por isso a sua publicação, como mais um contributo para o conhecimento de uma entidade obscura e ignorada, para a qual se torna necessário chamar a atenção, visto serem graves e até fatais as suas potenciais consequências, imediatas, a médio ou a longo prazo.

INTRODUÇÃO

aneurismática do tronco celíaco, em toda a sua extensão. O doente foi objeto de tratamento cirúrgico, que consistiu na ressecção e substituição protésica do tronco celíaco e o estudo histopatológico da peça de excisão permitiu formular o diagnóstico de displasia fi bromuscular, o que se confi gura como uma situação excecional, provavelmente única, de acordo com os dados da literatura, justifi cando-se por isso a sua publicação e divulgação.

replacement of the celiac axis and the pathological studies of the specimen revealed a fi bromuscular dysplasia, which seems to be, according to the literature, an exceptional situation, never reported before, thus justifying its publication and dissemination.

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TRATAMENTO CIRÚRGICO DE UMA DISSECÇÃO ESPONTÂNEA DO TRONCO CELÍACO CAUSADA POR DISPLASIA FIBROMUSCULAR. PRIMEIRO CASO DA LITERATURA

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CASO CLÍNICODoente do sexo masculino, de 46 anos de idade, referiu a súbita ocorrência, um mês antes da observação, de uma dor abdominal forte, localizada inicialmente à região epigástrica e estendendo-se aos restantes quadrantes abdominais, assumindo as características de dor “em cinturão”.

A dor foi caracterizada como “muito forte” desde o início, embora evidenciasse curtos períodos de diminuição de intensidade e era acompanhada por um “mal-estar geral” indefi nido. O doente negava contudo a ocorrência de náuseas, vómitos ou diarreia. Notou, porém, que a dor se agravava com a ingestão de alimentos ou simplesmente de água.

Permaneceu acamado no domicílio e três dias depois, como não registasse melhoria, recorreu aos serviços de urgência de um hospital local, onde foi avaliado clinicamente e formulado o diagnóstico provisório de “pancreatite aguda”, o que as análises subsequentes permitiram excluir, tal como um quadro clínico de abdómen agudo infeccioso ou ainda um acidente coronário agudo. Para uma melhor caracterização da situação clínica, foi-lhe pedida uma tomografi a computorizada (TC) abdominal, que revelou unicamente como suspeita uma imagem grosseira de espessamento dos tecidos em torno do tronco celíaco. Para seu melhor esclarecimento, realizou uma angio-TC, que mostrou uma imagem inequívoca de dissecção circunscrita e dilatação aneurismática (1,3 cm) do tronco celíaco, desde a sua origem até à bifurcação, com uma clássica imagem de dois lúmenes arteriais separados pela íntima dissecada (Fig. 1 A a C).

Fig. 1A, B, C Angio-TC com imagens característi-cas da dissecção do tronco celíaco, com a formação de dois lumes, separados pela íntima dissecada

A

B

C

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A operação consistiu na ressecção do tronco celíaco em toda a sua extensão, desde a origem até à bifurcação hepato-esplénica e sua substituição por uma prótese vascular e foi efetivada através de uma laparotomia mediana supra e infraumbilical, abertura do pequeno epíploon, secção dos pilares do diafragma e descoberta e isolamento da aorta supracelíaca. O objetivo seguinte consistiu no isolamento do tronco celíaco e das artérias hepática, esplénica e coronária estomáquica, tendo esta última sido laqueada por necessidade de acesso. O tronco celíaco encontrava-se rodeado por um processo infl amatório denso, envolvendo a parede arterial, que difi cultou o seu completo isolamento. A aorta foi clampada e o tronco celíaco seccionado na sua emergência, a qual foi de imediato encerrada com sutura contínua, permitindo a libertação da clampagem aórtica, que durou poucos minutos. O topo distal do tronco celíaco foi seccionado junto à bifurcação hepato-esplénica e removido na totalidade, permitindo visualizar-se perfeitamente os dois lúmenes arteriais (Fig. 2).

As restantes artérias viscerais (mesentéricas superior e inferior), bem como a aorta e as artérias renais eram normais.

O doente fora sempre saudável, negava a existência de doenças genéticas e tivera um desenvolvimento psicofísico normal, sem acontecimentos de saúde dignos de registo. Negava a existência de fatores de risco para doença cardiovascular, nomeadamente diabetes mellitus, hipertensão arterial, tabagismo ou hiperlipidemia. Tinha uma vida sedentária e não praticava ginástica ou outro exercício físico regularmente.

O exame físico mostrava um indivíduo moderadamente obeso (109 kg, 1,83 m), referindo apenas uma discreta dor abdominal epigástrica. O pulso era regular, rítmico e amplo, com 56 ppm, e a tensão arterial era de 120/80 mmHg em ambos os membros superiores. O restante exame físico, geral e vascular, foi considerado dentro dos limites da normalidade, nomeadamente a palpação abdominal era indolor e não se identifi cavam massas anormais, nomeadamente pulsáteis, nem se auscultavam sopros abdominais. Os pulsos arteriais eram palpáveis em ambos os membros inferiores, amplos e simétricos.

Com o diagnóstico de dissecção espontânea do tronco celíaco, sinto-mática, de etiologia não esclarecida, foi--lhe proposto tratamento cirúrgico, com o triplo objetivo de tratar os sintomas, prevenir potenciais complicações (rotura arterial, oclusão, progressão da dissecção, formação de aneurismas) e esclarecer a etiologia do processo, o que o doente aceitou.

Fig. 2 Imagem intra-operatória inequívoca da dissecção do tronco celíaco

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A sua substituição foi realizada através da implantação de uma prótese de politetrafl uoretileno (PTFE) de 8 mm de diâmetro, proveniente da aorta supracelíaca até à bifurcação, o que implicou uma clampagem aórtica com a duração de 16 minutos (Fig. 3). O doente tolerou bem o procedimento, que decorreu, porém, com instabilidade hemodinâmica, resultante das clampagens e desclampagens aórticas e foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) em condição satisfatória. Cerca de três horas após a operação, ocorreu uma hemorragia intraperitoneal por deiscência parcial da anastomose aorto-protésica, que obrigou a uma laparotomia de urgência e reparação da deiscência.

O pós-operatório decorreu normalmente, sem complicações signifi cativas, o doente abandonou a UCI ao terceiro dia e teve alta domiciliária ao 13º dia, assintomático, com bom estado geral, a incisão operatória cicatrizada e os agrafes cutâneos removidos.

Fig. 3 Substituição protésica do tronco celíaco, utilizando um conduto de PTFE de 8 mm de diâmetro

O estudo histopatológico da peça operatória revelou imagens sugestivas e inequívocas de fi brodisplasia arterial (Fig. 4), o que confi gura uma situação excecionalmente rara, provavelmente única, de acordo com os dados pesquisados na literatura internacional.

Fig. 4 Estudo histológico do tronco celíaco re-movido: A. Falso lúmen aneurismático adjacente ao tronco celíaco origi-nal, onde se observa um foco protuberante de fi brose da média (seta) (H&E, x5); B. Fibrodis-plasia da média (H&E, x10); C. Preservação das membranas elásticas in-terna e externa (orceina, x10); D. Substituição das células musculares da média por fi brose (tricrómio, x10)

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DISCUSSÃOA dissecção aórtica, descrita pela primeira vez por Morgagni em 1761, é uma doença comum na prática clínica cardiovascular contemporânea e existe uma vasta gama de informação sobre a sua essência e natureza, mecanismos íntimos, manifestações clínicas, meios auxiliares de diagnóstico e modalidades terapêuticas, médicas ou cirúrgicas.1 A doença é essencialmente uma enfermidade da aorta, que se pode estender desde a origem, no seu segmento ascendente até à aorta terminal, culminando ou podendo envolver, frequentemente, as artérias ilíacas. A progressão do “hematoma dissecante” ao longo da aorta atinge e lesa com frequência as colaterais que emergem da aorta, sejam as artérias coronárias ou os troncos supra-aórticos, as artérias digestivas e renais, as intercostais e lombares, contribuindo para a complexidade do quadro clínico e agravamento dos índices de morbi-mortalidade que o acompanham.1,2

A ocorrência de um processo de dissecção idêntico mas autónomo, estritamente confi nado a artérias colaterais da aorta, é bastante mais rara e tem sido identifi cada em artérias diversas como a carótida interna, a vertebral, coronárias, renais e artérias digestivas, ou seja, o tronco celíaco, a mesentérica superior ou a mesentérica inferior.3,4

A dissecção espontânea isolada do tronco celíaco, tal como descrita no presente caso clínico, é uma entidade muito rara e existem poucos casos reportados na literatura. O primeiro caso foi descrito por Bauersfeld em 1947,2 como achado no decurso de uma autópsia, a que se seguiram outras referências igualmente

feitas em autópsias.3,4,6 O primeiro caso clínico descrito “in vivo” data de 19907 e desde essa data até ao presente momento encontram-se transcritos na literatura cerca de três dezenas de casos, a maioria reportados sob a forma de caso clínico isolado. Apenas alguns autores8-10

descrevem curtas séries, compostas respetivamente por 5, 6 e 4 doentes.

A idade média da generalidade dos doentes é, aproximadamente, de 55 anos, com um predomínio acentuado do sexo masculino (5:1) sobre o feminino.5,11

Muitos e diversifi cados têm sido os fatores de risco e as circunstâncias etiológicas subjacentes à patogénese da doença, entre os quais se encontra a hipertensão arterial, a necrose médio-quística, o trauma, a iatrogenia, a gravidez e as doenças do tecido conjuntivo, congénitas (síndrome de Marfan e Ehlers-Danlos, aórtica bicúspide) ou adquiridas.5,9,12

Todavia, torna-se oportuno salientar que esta é uma área credora de mais e melhor informação, mais objetiva e fundamentada, visto que a grande maioria dos doentes foi objeto de tratamento conservador e só excecionalmente aqueles que foram objeto de cirurgia aberta puderam facultar material para estudo histopatológico, tal como sucedeu com o presente caso clínico.

A dor abdominal súbita, de predomínio epigástrico e de intensidade variável, constitui o sintoma cardinal na maioria dos casos, podendo irradiar para os fl ancos e região dorso-lombar, simulando a dor “em cinturão” tão característica da pancreatite aguda, que pode de imediato ser excluída

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pelos estudos analíticos laboratoriais específi cos.13-15 Outros quadros clí-nicos de abdómen agudo podem ser confundidos (colecistite aguda, perfuração de úlcera péptica) e ainda situações de cardiopatia isquémica ou até de dissecção da aorta abdominal.16

São raros os sintomas ou sinais acompanhantes referidos pelos doentes, que incluem náuseas ou vómitos, angor abdominal ou rápida perda de peso. Noutras circunstâncias, que cursam com situações de isquemia visceral (intestinal, hepática, esplénica), o quadro clínico pode assumir feições mais graves e complexas. Num plano totalmente oposto, a doença pode ocorrer e decorrer de forma assintomática e vir a ser revelada posteriormente por um estudo imagiológico suscitado por razão diversa, como já foi acentuado por alguns autores.8,14,17,18 Por via desse facto, é possível conceber-se que a incidência e frequência da doença sejam maiores do que a reportada até à atualidade.

A tomografi a computorizada e a angio-TC constituem-se consensualmente como os métodos auxiliares de excelência para o seu estudo e diagnóstico, mas a ressonância magnética nuclear, a ultrassonografi a e a angiografi a convencional também têm sido utilizados, embora mais raramente.9

Os achados sugestivos na tomografi a computorizada e angio-TC incluem o mais frequente e patognomónico que é a revelação de dois lúmenes arteriais separados pela íntima dissecada,9 mas existem outros elementos que são de alguma forma sugestivos, como é o

caso da dilatação aneurismática do tronco celíaco,8,14 a existência de um trombo mural excêntrico e a presença de uma reação infl amatória dos tecidos em torno do tronco celíaco,14,19 cuja natureza é difícil de explicar e que pode tornar o seu isolamento cirúrgico difícil de realizar, como sucedeu com o presente caso clínico.

Incidentalmente, a tomografi a compu-torizada e a angio-TC podem revelar imagens de propagação do processo de dissecção às artérias hepática ou esplénica, ou oclusão das mesmas, traduzidas por infartos esplénicos ou hepáticos ou ainda e noutro plano, dissecção concomitante das artérias renais ou da mesentérica superior.10

A história natural da dissecção espontânea do tronco celíaco é mal conhecida, dada a raridade da situação. Porém, da casuística publicada, é possível concluir-se que o processo pode evoluir de forma diversa e benigna, culminando na resolução espontânea nalguns casos, em contraste com outros em que ocorreu a rotura da artéria e a morte do doente.20

Quadros de isquemia aguda hepatobiliar ou esplénica, ou ainda intestinal, podem resultar da oclusão do tronco celíaco e/ou dos seus ramos, de gravidade e prognóstico variáveis. A médio e a longo termo, foram descritas degenerescências aneurismáticas do tronco celíaco ou dos seus ramos hepatoesplénico.

Em virtude do desconhecimento da história natural da doença, torna-se difícil confi gurar a melhor ou a mais adequada abordagem terapêutica, que varia do tratamento conservador à intervenção cirúrgica corretiva e, ocasionalmente, à intervenção endovascular.

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A grande maioria dos casos clínicos reportados na literatura foi objeto de tratamento conservador, baseado essencialmente no controlo farmacológico da dor, da hipertensão arterial e na administração de anticoagulantes, antiagregantes pla-quetários, anti-infl amatórios e até esteroides.9,14,21,22 A efi cácia desta abordagem tem sido escrutinada apenas em alguns casos, com recurso às técnicas de imagem e por períodos de tempo que raramente ultrapassam os dois anos, razão pela qual existe um desconhecimento quase absoluto sobre as consequências a médio e longo prazo da enfermidade, além de se desconhecerem as suas reais causas.

Os poucos casos que foram objeto de tratamento cirúrgico reparador dizem respeito às situações complicadas e mais graves, com implicação vital (rotura da artéria ou expansão aguda, isquemia visceral, progressão da dissecção, persistência da sintomatologia dolorosa) e consistiram essencialmente na ressecção da artéria dissecada e promovida a sua substituição, ou na utilização de procedimentos vários de revascularização hepatoesplénica, recorrendo a condutos protésicos ou autoenxertos venosos.8

A intervenção endovascular tem sido empregue excecionalmente, possivel-mente devido às difi culdades que experimenta no manejo da patologia do tronco celíaco e apenas há a referir um caso resolvido por fenestração de uma dissecção iatrogénica, resultante de um cateterismo arterial para quimioembolização.23

No presente caso clínico, a intervenção cirúrgica confi gurou-se como a opção

de escolha com o triplo objetivo de tratar os sintomas dolorosos e a dor anginosa abdominal, prevenir as potenciais complicações da doença já descritas e obter dados e elementos que permitissem formular um diagnóstico etiológico subjacente à dissecção - objetivos que foram plenamente conseguidos, nomeadamente no que concerne ao estudo histopatológico da artéria excisada, que permitiu revelar uma insuspeitada mas inequívoca situação de fi brodisplasia arterial, o que se confi gura como uma situação excecional, porventura única, nunca antes demonstrada, justifi cando-se por isso a sua publicação e divulgação.

Foi publicado em 201124 um caso clínico de displasia fi bromuscular complicada com dissecção espontânea de quatro artérias periféricas (tronco celíaco, mesentérica superior, renal esquerda e ilíaca externa direita), ocorrendo num homem de 30 anos de idade. O doente foi objeto de tratamento conservador, o que não permitiu efetuar qualquer estudo histológico e o diagnóstico presuntivo de “fi brodisplasia da média” foi baseado em dados de imagem da tomografi a computorizada, que para o efeito são grosseiros, equívocos e inespecífi cos, como o próprio trabalho tão claramente evidencia, fi cando por isso por demonstrar a credibilidade diagnóstica de tão singular quanto insólito caso clínico. É justo e oportuno salientar, a fi nalizar, que Diogo Cunha e Sá e colaboradores25 publicaram, em 2009, aquele que parece ser o primeiro caso da literatura mundial de uma fi brodisplasia não complicada do tronco celíaco, expressa por um quadro clínico de isquemia intestinal crónica, tratada efi cazmente por ressecção arterial e substituição protésica.

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RESUMO Abstract

ISQUEMIA MESENTÉRICA CRÓNICA REVISITADA Chronic mesenteric ischemia revisited

Os autores apresentam dois casos clínicos de situações raras e complexas, uma dissecção da aorta e uma aortite, que tinham como denominador comum um quadro de isquemia mesentérica crónica. Discutem as indicações e as estratégias cirúrgicas adotadas.

The authors report two clinical cases of rare and complex situations - an aortic dissection and an aortitis -, which had as a common denominator a chronic mesenteric ischemia. They discuss the indications and surgical strategies adopted.

GERMANO DO CARMOANTÓNIO ROSA

AUGUSTO MINISTROCRISTINA PESTANA

Departamentos de Cirurgia Vascular e de Anestesiologia

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A isquemia mesentérica crónica é uma condição rara, mais frequente nas mulheres, a partir da sexta década de vida,1 cuja etiologia é, quase sistematicamente, a aterosclerose. Se as lesões obstrutivas hemodinamicamente signifi cativas interessarem pelo menos duas das três artérias digestivas, ou em casos muito particulares, apenas uma artéria, e se a colateralidade entre os vários territórios for insufi ciente, haverá seguramente uma diminuição crítica da perfusão visceral. Pensa-se ser incontroverso que a partir do momento em que é feito o diagnóstico de isquemia mesentérica crónica haverá indicação formal para um procedimento de revascularização. O objetivo é, além de tratar a dor e melhorar o estado nutricional dos doentes afetados, minimizar o risco de enfarte intestinal, que teria, quase inevitavelmente, um desfecho fatal.

A revascularização mesentérica é, seguramente, um desafi o para qualquer cirurgião vascular, pois sendo uma patologia incomum,

nenhum cirurgião terá, isoladamente, uma experiência vasta. São cirurgias exigentes, habitualmente em doentes com comorbilidades relevantes. Por outro lado, muitas das questões relacionadas com o procedimento (cirurgia convencional ou intervenção endovascular), com a estratégia cirúrgica (revascularização anterógrada a partir da aorta supra-celíaca, ou retrógrada a partir da aorta infrarrenal ou artérias ilíacas), com o tipo de enxerto usado (veia autóloga ou prótese sintética) e com a revascularização de uma ou de todas as artérias com lesões são questões em aberto, não existindo estudos determinantes que orientem num ou outro sentido em qualquer dos pontos supracitados.

A pertinência da apresentação deste trabalho está relacionada com o facto de a etiologia da isquemia visceral não ser aterosclerótica, serem situações quase únicas e a estratégia cirúrgica ser, de alguma forma, original, pela necessidade imperativa de adaptação ao quadro clínico, à anatomia e à topografi a das lesões.

INTRODUÇÃO

CASOS CLÍNICOS

CASO CLÍNICO 1

Doente do sexo masculino, de 63 anos de idade, hipertenso, ex-fumador, com dislipidemia, com história de dissecção da aorta tipo A, cerca de 12 anos antes, tendo sido submetido a cirurgia

de Yacoub numa outra instituição hospitalar (excisão da aorta ascendente desde do segmento sinotubular até à emergência do tronco arterial braquiocefálico, e interposição de prótese de Dacron®). No mesmo tempo operatório, foi efetuada laparotomia

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exploradora, não havendo evidência de lesões isquémicas abdominais irreversíveis. A evolução pós-operatória imediata foi complicada com acidose metabólica grave. Foi seguido, desde então, em consulta de Cardiologia. Na evolução posterior não se registaram intercorrências, com ecocardiograma mostrando válvula áortica sem sinais de insufi ciência aórtica residual. Não tinha queixas de relevo do foro cardiovascular e manteve uma vida ativa durante 12 anos, quando, após esforço, iniciou um quadro de dor abdominal difusa e dor acompanhada de parestesias em ambos os membros inferiores, sintomas intensos e persistentes. Por este motivo, recorreu ao serviço de urgência do hospital local numa cidade do norte do país, onde, face à história pregressa, realizou tomografi a computorizada (TC) toraco-abdominal que mostrou uma dissecção da aorta com aneurismas dissecantes ao nível da crossa (Fig. 1), aorta torácica descendente e aorta abdominal, sem sinais de rotura. Eram observados dois lúmens, o verdadeiro, mais anterior, que dava origem ao tronco celíaco, mesentérica superior, renal direita (com rim direito atrófi co, não perfundido) e que se continuava com a aorta infrarrenal e artérias ilíacas. O falso lúmen, francamente mais volumoso, parcialmente trombosado, comprimia quase totalmente o verdadeiro lúmen ao nível da transição toraco-abdominal, terminava irrigando a artéria renal esquerda (Fig. 2). O doente foi transferido para um hospital central, para continuação de cuidados, com evidência de isquemia aguda do membro inferior esquerdo (MIE). Neste hospital foi, segundo as descrições, submetido a trombectomia dos eixos arteriais do membro inferior esquerdo. Após alguns

dias de internamento de convalescença, foi transferido para o hospital da sua área de residência no centro do país, onde repetiu o ecocardiograma e a pan-angio-TC. Teve alta para o domicílio, anticoagulado com varfarina, anti-hipertensores e analgésicos.

Três dias depois, recorreu ao Atendimento Médico Permanente do Hospital da Luz, pedindo para ser internado, pois não tolerava as dores abdominais, que se acentuavam com a ingestão de alimentos, bem como as dores e parestesias dos membros inferiores, insuportáveis em decúbito. Tinha emagrecido cerca de 6 kg nas duas semanas anteriores.

Fig. 1 Aneurisma dissecante ao nível da crossa da aorta

Fig. 2 Origem da artéria renal esquerda e compressão do verdadeiro lúmen pelo falso lúmen

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Na observação clínica deparou-se um doente extremamente emagrecido, quase caquético, deprimido e de-sesperado. Os pulsos carotídeos e nos membros superiores eram normais. A nível abdominal era palpável, no epigastro, uma volumosa massa, com discreta pulsatilidade, não havendo sinais de abdómen agudo. Não se palpavam pulsos nos membros inferiores, sendo extrema a palidez dos pés, particularmente quando foram elevados. O Doppler demonstrava curvas monofásicas aplanadas em ambas as artérias femorais. Repetiu a angio-TC, que reproduziu os aspetos atrás descritos.

Resumindo, tratava-se de um doente em que a enorme evolução aneurismática do falso lúmen levara a uma estenose pré-oclusiva do verdadeiro lúmen, por compressão extrínseca, condicionando uma isquemia visceral, do rim direito e dos membros inferiores (Fig. 3).

Pediu-se uma avaliação por um cirurgião cardiotorácico relativa à possibilidade de resolução cirúrgica do aneurisma dissecante da crossa da aorta, sem o que não seria possível tratar a dissecção e os aneurismas da aorta torácica descendente e da aorta abdominal, a isquemia visceral e dos membros inferiores. A complexidade e o risco de um tratamento cirúrgico convencional ou endovascular da dissecção de toda a aorta eram extremos, particularmente num doente nas condições precárias descritas.

Perante o sofrimento do doente e todos os condicionalismos descritos, optou--se por um procedimento, de alguma forma original nestas circunstâncias, mas apenas paliativo, uma vez que

trataria os sintomas mas não resolveria a doença.

O doente foi operado e foi realizado um bypass axilo-femoral direito, um bypass femoro-femoral supra-púbico (com a anastomose do eixo dador distal à anastomose do bypass axilo-femoral) e um bypass femoro-mesentérica superior (com a anastomose femoral realizada

Fig. 3 Reconstrução tridimensional em que são notáveis as calcifi cações da aorta infrarenal e artérias ilíacas

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na transição ilio-femoral), todos com prótese de politetrafl uoretileno (PTFE) de 8 mm (Fig. 4,5 e 6). Serão discutidos posteriormente os pormenores técnicos que determinaram estas opções. O pós-operatório decorreu sem complicações relevantes, tendo o doente deixado de referir dores abdominais e nos membros inferiores, melhorando substancialmente o seu estado geral e o seu défi ce ponderal.

Aguardar-se-ia que o doente se restabelecesse e conseguisse atingir as condições ideais para a correção defi nitiva da sua dissecção, mas no resultado anatomopatológico da peça de esplenectomia (foi efetuada uma esplenectomia de necessidade no fi nal da cirurgia por rotura do baço, sem causa aparente), foi identifi cada uma metástase de adenocarcinoma. Está atualmente em estudo a origem do tumor primitivo.

Fig. 4 Representação dos bypass axilo-femoral, femoro-femoral e femoro-mesentérica superior

Fig. 5 As três anastomoses na artéria femoral direita

Fig. 6 Revascularização da artéria mesentérica superior

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CASO CLÍNICO 2

Doente do sexo feminino, de 39 anos de idade, não hipertensa, não fumadora, não diabética, sem dislipidemia, com duas gestações e dois partos, história de litíase renal e emagrecida. Referia, desde há vários anos, desconforto abdominal incaracterístico, que nunca valorizou.

Duas semanas antes do internamento, referiu um episódio de hematúria que a obrigou a recorrer ao serviço de urgência de um hospital no sul país. No decurso da investigação de uma possível cólica renal, realizou TC abdominal que demonstrou (Fig. 7, 8 e 9):

- Oclusão da origem do tronco celíaco,- Oclusão da origem da artéria mesentérica superior,- Small aortic disease, com um diâmetro da aorta ao nível da placa visceral de 9 mm,

- Aneurisma sacular da artéria renal direita,- Aneurima sacular da aorta, ime-diatamente após a origem da renal direita, - Aneurisma da aorta com 3,8 cm de diâmetro,- Aneurisma de artéria polar renal es-querda,- Aneurisma da origem da artéria mesentérica inferior com 3,9 cm de diâmetro,- Exuberante artéria marginal de Drummond.

A observação clínica da doente era normal mas, perante a multiplicidade de lesões descritas, algumas das quais com presumíveis implicações vitais a curto prazo, foi proposta uma terapêutica cirúrgica. Não se afi gurou qualquer possibilidade de uma terapêutica endovascular, mesmo que parcial, na estratégia para o tratamento da doente.

Fig. 7 Complexidade das lesões da aorta abdominal e das lesões de todos os seus ramos

Fig. 8 Pormenor das lesões da aorta abdominal e seus ramos

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A doente foi operada, tendo sido realizado (Fig. 10 e 11):

- Bypass da aorta supra-celíaca-bifurcação aórtica, com prótese de Dacron® de 16 mm (anastomose proximal latero-terminal e anastomose distal termino-terminal),- Bypass protésico-artéria hepática, com prótese de PTFE de 6 mm,- Exclusão do aneurisma da artéria renal direita, seguido de bypass protésico-renal direita com prótese de PTFE de 6 mm. Para a dissecção e isolamento da artéria renal direita foi necessário efetuar a secção da veia renal esquerda que foi, posteriormente reconstruída,- Bypass protésico-mesentérica superior com prótese de PTFE de 6 mm,- Ressecção de toda a aorta infrarrenal com laqueação e suturas complementares do coto aórtico, distalmente à artéria renal esquerda,- Ressecção do aneurisma da artéria polar renal esquerda,- Ressecção do aneurisma da artéria mesentérica inferior. Reimplantação do coto da artéria mesentérica inferior na prótese aorto-aórtica.

Fig. 9 Aneurisma da aorta e da artéria mesentérica inferior

Fig. 10 Representação da reconstrução da aorta e das revascularizações para as artérias lesadas

Fig. 11 Prótese em posição aorto-aórtica, com os bypass para as artérias renal direita e mesentérica superior e reimplantação da artéria mesentérica inferior

Durante a permanência na Unidade de Cuidados Intensivos, verifi cou-se uma boa evolução clínica e laboratorial, com rápida recuperação do estado de consciência, mantendo uma ventilação espontânea com hipoxemia ligeira, corrigida com oxigenioterapia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃO

A isquemia mesentérica crónica é uma entidade clínica relativamente rara, apesar de, com o advento e o uso cada vez mais comum das novas tecnologias de imagem, nomeadamente a angio-TC, serem detetadas frequentemente lesões obstrutivas das artérias viscerais. Enquanto no caso dos doentes assintomáticos não há uma diretriz consensual quanto à atitude a tomar, nos

doentes sintomáticos parece não existir qualquer dúvida quanto à indicação para um procedimento de revascularização. Nos doentes assintomáticos, a postura geralmente adotada pelos autores é revascularizar os indivíduos que tenham lesões de duas das três artérias viscerais, pois o risco de evolução de uma doença assintomática para uma catástrofe é signifi cativo.2

a 2 L/min. Mantinha-se hemo-dinamicamente estável, com norma-lização dos lactatos. Desenvolveu uma insufi ciência renal aguda discreta, ligeiramente oligúrica, com pico de creatinina de 1,36 mg/dL. A função renal normalizou para valores de creatininemia inferiores a 0,7 mg/dL antes do terceiro dia do pós-operatório, altura em que se manifestou sub-febril, com aumento da leucocitose para 18 x 109 células/L, com neutrofi lia. Paradoxalmente, a proteína C reativa descia para valores normais. A acompanhar estas alterações laboratoriais, era relevante

uma hipertensão diastólica, a atingir sistematicamente 100 mmHg, refratária à terapêutica com atenolol e amlodipina. Foram feitas colheitas para hemoculturas e uroculturas e, por receio de uma infeção, foi introduzida antibioterapia de largo espetro. A persistência deste quadro justifi cou a realização de uma TC toraco-abdomino-pélvica, que demonstrou a permeabilidade de todos os enxertos, mas uma isquemia dos polos inferiores de ambos os rins, o que corresponde à não revascularização das artérias polares inferiores renais. Este facto justifi caria todas as alterações atrás referidas. A doente teve alta ao décimo dia após a cirurgia, com todos os valores laboratoriais normalizados, normotensa e assintomática.

O exame anatomopatológico da peça operatória de ressecção do aneurisma da aorta e da artéria mesentérica revelou tratar-se de uma dilatação aneurismática associada a alterações da parede vascular enquadráveis em fi brodisplasia muscular arterial, sem evidência de lesões infl amatórias ou de aterosclerose (Fig. 12).

Fig. 12 Peça operatória de ressecção do aneurisma da aorta e da artéria mesentérica

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ISQUEMIA MESENTÉRICA CRÓNICA REVISITADA

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As dúvidas surgem após essa de-cisão: Optar por um procedimento endovascular ou por uma cirurgia de revascularização convencional? A mortalidade é sobreponível e, embora exista uma maior morbilidade e o período de internamento seja mais longo, a taxa de reestenoses, reoclusão e reaparecimento dos sintomas é menor na cirurgia convencional.3

Após optar por uma cirurgia de revascularização convencional, levan-tam-se outras questões: Usar um enxerto venoso ou uma prótese? Realizar uma revascularização anterógrada ou retrógrada? Revascularizar apenas um ou todos os territórios? Mais uma vez, em resposta a todas estas perguntas, não há uma orientação consensual.4

A taxa de permeabilidade dos enxertos venosos e sintéticos é sobreponível nesta localização, pelo que apenas fará sentido escolher um enxerto venoso se se operar num terreno potencialmente infetado. O resultado e a permeabilidade dos enxertos é sensivelmente igual se se tomar como origem do bypass a aorta supra-celíaca, a aorta infrarrenal ou as artérias ilíacas. As revascularizações anterógradas serão mais fi siológicas e a probabilidade de existirem angulações do enxerto são menores, ao contrário das revascularizações retrógradas. No entanto, o acesso é mais difícil e trabalhoso e, embora mínimo, existe o risco de uma pancreatite traumática, pela necessidade de afastar este órgão para aceder à aorta e pelo facto de o enxerto ser tunelizado no espaço retro-pancreático.5 Não deve também ser esquecida a possibilidade de

reimplantação direta, termino-lateral, da artéria mesentérica superior ou da artéria mesentérica inferior na aorta ou prótese em posição aórtica, que, sendo as condições anatómicas propícias, seria a opção de eleição dos autores. Nos doentes revascularizados a apenas uma das artérias, a sobrevida e o período livre de sintomas são menores do que aqueles que foram revascularizados a dois ou três territórios, mas a morbilidade associada às cirurgias mais complexas é superior.4 Em ambos os casos descritos, não seria possível - por questões anatómicas no primeiro, e pela longa esperança de vida no segundo -, conceber-se, mesmo que apenas parcialmente, uma abordagem endovascular.

No caso clínico 1, julga-se que a solução encontrada é inédita. Foi feita uma revascularização mesentérica a partir da artéria axilar direita. Existia uma hipoperfusão de todas as artérias que dependiam do verdadeiro lúmen da aorta, pelo que foi necessário ter como fonte de infl uxo uma das artérias dos troncos supra aórticos. Realizou-se uma pontagem axilo-femoral direita. A aorta infrarrenal era aneurismática e as artérias ilíacas, além de lesões obstrutivas hemodinamicamente si-gnifi cativas, estavam extremamente calcifi cadas, pelo que não constituíam uma opção razoável. Habitualmente, quando se faz um bypass axilo-bifemoral, anastomosa-se o ramo para o membro contralateral no corpo da prótese. Neste caso, pelo receio de que pudesse existir um fenómeno de roubo do débito proporcionado pelo enxerto axilo-femoral, optou-se por fazer a anastomose proximal do bypass femoro-femoral supra-púbico, na artéria femoral comum distal ao bypass

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA1. Derrow AE, Seeger JM, Dame DA, et al. The outcome in the United States after thoracoabdominal aortic aneurysm repair, renal artery bypass, and mesenteric revascularization. J Vasc Surg 2001;34:54-61.2. Thomas JH, Blake K, Pierce GE, Hermreck AS, Seigel E. The clinical course of asymptomatic mesenteric arterial stenosis. J Vasc Surg 1998;27:840-4.3. Oderich GS, Bower TC, Sullivan TM, Bjarnason H, Cha S, Gloviczki P: Open versus endovascular revascularization for chronic mesenteric ischemia: Risk-stratifi ed outcomes. J Vasc Surg 2009;49:1472-9.

4. Mateo RB, O’Hara PJ, Hertzer NR, Mascha EJ, Beven EG, Krajewski LP. Elective surgical treatment of symptomatic chronic mesenteric occlusive disease: Early results and late outcomes. J Vasc Surg 1999; 29:821-32. 5. Dinis da Gama A, Ministro A, Cabral G, Pestana C, Pimentel I. Revascularização simultânea dos troncos supraórticos e das artérias viscerais do abdómen. Caso clínico. In: Dinis da Gama A, eds. Casos Clínicos Hospital da Luz 2011 - 2012. Lisboa, Espírito Santo Saúde, 2012:131-140.

CONSIDERAÇÕES FINAISA isquemia mesentérica crónica é uma entidade potencialmente letal, independentemente da sua etiologia. A revascularização das artérias viscerais pode ser realizada com segurança, mesmo nas condições mais adversas.

Após um procedimento cirúrgico bem sucedido, sem intercorrências relevantes, é expectável uma longa permeabilidade dos enxertos, com os doentes livre de sintomas.

axilo-femoral e a anastomose dadora do bypass femoro-mesentérica superior na transição ilío-femoral, acima, portanto, da fonte de infl ow.

No caso clínico 2, revascularizaram-se todos os territórios. A pontagem para o tronco-celíaco foi anterógrada, a partir da prótese aorto-aórtica implantada a esse nível. O bypass para a artéria mesentérica superior foi retrógrado,

com o cuidado de a prótese desenhar um arco sufi cientemente lato para que não existisse a hipótese de angulação. O coto da artéria mesentérica inferior, após a ressecção do aneurisma, foi reimplantado na prótese em posição aórtica. Desta forma, minimizou-se a possibilidade de recorrência das queixas por falência de um dos enxertos, o que é relevante numa doente jovem, credora de uma esperança de vida prolongada.

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HÉRNIA DE SPIEGEL CONGÉNITA COM TESTÍCULO ECTÓPICO

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RESUMO Abstract

HÉRNIA DE SPIEGEL CONGÉNITA COM TESTÍCULO ECTÓPICO Congenital Spigelian hernia with ectopic testis

A hérnia de Spiegel é uma entidade rara na criança. Manifesta-se habitualmente por uma tumefação da região antero-lateral do abdómen. Nos rapazes, é frequente a associação com testículo não descido. Os autores apresentam o caso clínico de um rapaz de cinco meses de idade, observado em consulta de cirurgia pediátrica, cujo diagnóstico de hérnia de Spiegel com testículo ectópico dentro do saco herniário foi suspeitado durante a observação e confi rmado ecografi camente. A correção cirúrgica permitiu o encerramento do defeito e a correção da ectopia testicular, evitando assim o risco de encarceramento e estrangulamento do conteúdo herniado.

Spiegel´s hernia is a rare condition in children. Usually, it appears as a swelling of the anterolateral view of the abdomen. In boys, it is frequently associated with undescended testis. The authors report the clinical case of a 5 month-old boy observed in a pediatric surgery consultation. Spiegel´s hernia with an ectopic testis within the hernia sac was suspected during the observation and confi rmed by ultrasound. Surgical repair of the defect was accomplished together with correction of the ectopic testis, thus avoiding the risks of incarceration and strangulation of the herniated content.

VANDA PRATAS VITALRITA CABRITA CARNEIRO

FILIPE CATELA MOTA

Departamento de Cirurgia Pediátrica, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O anatomista Adriaan van den Spiegel descreveu a linha semilunar pela primeira vez em 1645. No entanto, foi Klinkosch, em 1764, o primeiro a descrever uma hérnia na linha semilunar de Spiegel.1

A hérnia de Spiegel é uma protusão de gordura pré-peritoneal ou de um saco peritoneal, contendo ou não um órgão intra-abdominal (intestino, testículo ou epíploon), através de um defeito congénito ou adquirido. Este defeito ocorre na união do bordo externo do músculo reto abdominal com o bordo interno do músculo transverso do abdómen, normalmente ao nível da linha semilunar de Spiegel e distalmente ao umbigo.2

A hérnia de Spiegel é uma entidade clínica rara, representando 0,1% a 2% das

hérnias da parede abdominal.2 Apenas 3% das hérnias de Spiegel ocorrem nos jovens com menos de 16 anos de idade,3 sendo a maioria destas (72,7%) em crianças com menos de dois anos de idade. Ao contrário do que acontece nos adultos, nos jovens a hérnia de Spiegel é mais frequente no sexo masculino, com uma relação de 3,7 para 1, e em cerca de 21,2% dos casos são bilaterais.3 Nos rapazes, é frequente a associação da hérnia de Spiegel com testículo não descido.

Os autores apresentam um caso clínico de hérnia de Spiegel com testículo ectópico, cujo diagnóstico foi suspeitado durante a observação e confi rmado ecografi camente, e destacam a importância do tratamento cirúrgico atempado.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Rapaz com cinco meses de idade, referenciado para a consulta de cirurgia pediátrica por tumefação do quadrante inferior direito da parede abdominal anterior. Não tinha antecedentes relevantes, nomeadamente história de traumatismo, tosse ou obstipação.

Ao exame objetivo constatou-se a presença de uma tumefação, com cerca de 5 cm de estensão, ao longo do bordo externo do músculo reto anterior do abdómen, redutível, com gorgolejo e com testículo palpável no seu interior.

O testículo esquerdo estava posicionado normalmente.

Foi realizada uma ecografi a da parede abdominal, inguinal e escrotal, que documentou, em topografi a paramediana direita, ligeiramente cefálica em relação à linha que passa pelo orifício profundo do canal inguinal, um volumoso saco herniário, com cerca de 4,5 cm de diâmetro e com colo alargado (19 mm de diâmetro), com conteúdo intestinal e testículo direito de características normais, no plano da linha umbilical. Não se identifi cou o cordão espermático direito na topografi a habitual. O grande volume do saco e a topografi a do anel herniário sugeriram a hipótese de hérnia de Spiegel, com ectopia testicular associada.

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HÉRNIA DE SPIEGEL CONGÉNITA COM TESTÍCULO ECTÓPICO

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Fig. 1 Saco herniário da hérnia de Spiegel, bem defi nido, contendo o testículo ectópico

Fig. 2 Saco herniário dissecado e aberto identifi -cando-se o testículo com aspeto normal

Na exploração cirúrgica fez-se uma incisão transversa infraumbilical direita, ao nível da tumefação e identifi cou-se um saco herniário bem defi nido, que foi dissecado até ao defeito na linha de Spiegel (Fig. 1).

DISCUSSÃO E CONCLUSÕESA etiologia da hérnia de Spiegel nas crianças não está completamente esclarecida, podendo estar relacionada com um defeito congénito no decurso do desenvolvimento da parede abdominal. De acordo com alguns autores, os músculos oblíquo interno e transverso apresentam áreas fasciculares fi bro-adiposas, com menor resistência, que quando são excessivas podem ser responsáveis pela herniação a este nível.

Fatores considerados predisponentes, como uma cirurgia prévia, obesidade, doença pulmonar obstrutiva crónica, trauma abdominal e presença de outras hérnias são frequentes em adultos e raros nas crianças.3

A associação entre a hérnia de Spiegel e testículo não descido homolateral ocorre em 33% dos rapazes e, na maioria dos casos, o testículo encontra-se no saco herniário, tal como se constatou no caso presente.4

O saco foi aberto, reduziu-se o conteúdo intestinal e identifi cou-se o testículo direito com aspeto normal (Fig. 2). Criou--se um trajeto inguinal para o testículo e depois procedeu-se à orquidopexia extra-dartos. Finalmente, procedeu-se à herniorrafi a simples do defeito. Um mês após o procedimento, a criança encontrava-se bem, com o testículo direito bem posicionado na bolsa e sem recidiva da hérnia.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA1. Klinkosch JT. Programma Quo Divisionem Herniarum. Novumque Herniae Ventralis Specium Proponit. Rotterdam: Benam; 1764.2. Sanchez MI, Deysine M. Spigelian and other uncommon hernia repairs. Surg Clin N Am 2003;83:1235-53.3. Losanoff JE, Richman BW, Jones JW. Spigelian hernia in a child: case report and reviewof the literature. Hernia 2002;6:191-3.4. Raveenthiran V. Congenital spigelian hernia with cryptorchidism: probably a new syndrome. World J Hernia Abdom Wall Surg 2005;9:378-80.

5. Ostlie DJ, Zerella JT. Undescended testicle associated with spigelian hernia. J Pediatr Surg 1998;1426-8.6. Al-Salem AH. Congenital Spigelian hernia and criptorchidism: cause or coincidence? Pediatr Surg Int. 2000;16:433-6.7. Levy G, Nagar H, Blachar A, et al. Pre-operative sonographic diagnosis of incarcerated neonatal Spigelian hernia containing the testis. Pediatr Radiol 2003;33:407-9.

Alguns autores referem que a hérnia de Spiegel predispõe ao aparecimento de ectopia testicular (testículo fora da sua linha habitual de descida). Ao diminuir a pressão intra-abdominal, o testículo não desce para o escroto e entra no saco herniário, seguindo a menor resistência.5,6 No entanto, em alguns casos, a hérnia de Spiegel parece ser secundária à ectopia testicular homolateral. O testículo não descido, acompanhado do seu processus vaginalis, pode herniar através da linha semilunar quando ocorre aumento da pressão intra-abdominal.4

A hérnia de Spiegel requer um diagnóstico e uma correção cirúrgica atempados, pois existe risco de encarceramento e estrangulamento do seu conteúdo.

No que se refere ao diagnóstico, para complementar a observação, ou quando existem dúvidas, a ecografi a ou a tomografi a computorizada podem ajudar a confi rmar o diagnóstico de hérnia de Spiegel.7 No caso presente, a ecografi a permitiu confi rmar a suspeita inicial. A resolução cirúrgica da hérnia de Spiegel consiste no encerramento do defeito. Quando associada a ectopia testicular, esta também deve ser corrigida. Nas crianças, normalmente o defeito é pequeno, não sendo necessária a colocação de prótese. A cirurgia laparoscópica tem surgido nos últimos anos como uma via de abordagem possível para a correção cirúrgica da hérnia de Spiegel.

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TORACOTOMIA MINI-INVASIVA PARA O TRATAMENTO DE HÉRNIA DISCAL DORSAL GIGANTE POR VIA ANTERO-LATERAL

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RESUMO Abstract

TORACOTOMIA MINI-INVASIVA PARA O TRATAMENTO DE HÉRNIA DISCAL DORSAL GIGANTE POR VIA ANTERO-LATERAL Anterolateral approach through mini-open thoracotomy for the treatment of giant thoracic disc herniations

Apesar da evolução dos meios de diagnóstico e das técnicas cirúrgicas, o tratamento das hérnias discais dorsais mantém-se controverso. Os principais problemas clínicos estão relacionados com o diagnóstico, com a correlação entre os sintomas e os aspetos imagiológicos e com o tratamento cirúrgico que, habitualmente, é invasivo e está associado a riscos elevados de lesão neurológica. No caso das hérnias discais dorsais gigantes, o tratamento cirúrgico mais seguro consiste na sua excisão por via antero-lateral, através de toracotomia, de forma a reduzir a manipulação da medula e os riscos de lesão neurológica. Os autores apresentam o caso clínico de uma doente com uma volumosa hérnia discal

In spite of the evolution of diagnostic tools and surgical techniques, the treatment of thoracic disc herniations remains controversial. The main clinical problems are related to the diagnosis, the correlation between symptoms and imagiological aspects and the surgical treatment that usually is invasive and is associated with a high risk of neurological injury. When leading with giant thoracic disc herniations, the safer surgical treatment is its excision using an anterolateral approach, through thoracotomy, in order to reduce the manipulation of the spinal cord and the risks of neurological injury. The authors report the clinical case of woman with a giant disc herniation T8-T9, partially calcifi ed, treated surgically

ÁLVARO LIMABRUNO SANTIAGO

Departamento de Neurocirurgia

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A hérnia discal dorsal sintomática é uma doença da meia-idade, afeta na mesma proporção o sexo masculino e feminino e, habitualmente, não está associada a um traumatismo ou a um evento precipitante.1 É uma patologia vertebral rara, com uma incidência estimada em um caso por milhão de habitantes.2 A maioria (75%) das hérnias discais dorsais sintomáticas envolve os níveis inferiores da coluna dorsal, entre D8 e D12, com particular incidência no nível D11-D12.3

A forma de apresentação das hérnias discais dorsais é frequentemente incaracterística, o que origina atrasos e erros no diagnóstico. Os sintomas e sinais resultam do sofrimento radicular ou medular a nível da coluna torácica. A compressão radicular origina uma dor torácica ou abdominal, que irradia em cinturão, a partir da coluna, no trajeto do dermátomo da raiz que está em sofrimento. O compromisso medular provoca inicialmente sintomas ligeiros de sensação de falta de força ou dormência nos membros inferiores, e desequilíbrio na marcha. A progressão da lesão medular provoca um quadro de paraparésia, descoordenação da

marcha, diminuição da sensibilidade nos membros inferiores, alterações do controlo do esfíncter anal e vesical e, por fi m, paraplegia.4

As hérnias discais dorsais gigantes foram descritas recentemente e têm a característica de ocuparem mais de 40% do diâmetro do canal raquidiano e de se apresentarem, maioritariamente, calcifi cadas.5 Em virtude das suas características, o risco de lesão medular é muito elevado e, consequentemente, o cuidado no planeamento cirúrgico e a excelência do procedimento são fundamentais.

Os principais objetivos do tratamento cirúrgico da hérnia discal dorsal são o controlo da dor ou melhoria do quadro neurológico, por descompressão da medula espinhal e/ou da raiz nervosa, e a prevenção ou correção da instabilidade ou deformidade da coluna dorsal. Os resultados da laminectomia descompressiva convencional, com ou sem discectomia, não são satisfatórios, com uma elevada percentagem de morbilidade grave ou mortalidade.6 Em alternativa, surgiram outras abordagens postero-laterais - a transpedicular, a

INTRODUÇÃO

D8-D9, parcialmente calcifi cada, tratada cirurgicamente por via antero-lateral, com abordagem torácica mini-invasiva e técnica microcirúrgica. A opção da abordagem mini-invasiva teve como objetivo reduzir as sequelas cirúrgicas inerentes à toracotomia, reduzir as complicações e acelerar a recuperação e o regresso à vida ativa.

by anterolateral approach, through a mini-invasive thoracotomy and with microsurgical technique. The choice of the mini-invasive approach is aimed at the reduction of the consequences inherent to the surgical thoracotomy, the lowering of complications and the speeding of recovery and return to work.

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TORACOTOMIA MINI-INVASIVA PARA O TRATAMENTO DE HÉRNIA DISCAL DORSAL GIGANTE POR VIA ANTERO-LATERAL

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CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 55 anos de idade, anteriormente saudável, apresentava um quadro clínico de dorsalgias crónicas, dores e cansaço nos membros inferiores. No exame neurológico, não se observaram défi ces motores segmentares ou alterações das sensibilidades superfi ciais ou profundas. Os refl exos osteotendinosos eram vivos e simétricos e os refl exos cutâneo-plantares fl exores. Não havia alterações do controlo dos esfíncteres anal e vesical. A tomografi a computorizada (TC) da coluna dorsal mostrou uma volumosa hérnia discal D8-9, parcialmente calcifi cada, com ocupação de cerca de 80% do diâmetro antero-posterior do canal raquidiano (Fig. 1).

A ressonância magnética (RM) da coluna dorsal confi rmou o diagnóstico e mostrou que a medula, apesar de estar comprimida e desviada posteriormente, não apresentava alterações do sinal (Fig. 2), Com o objetivo de impedir a progressão da doença e evitar uma deterioração neurológica que poderia resultar em sequelas graves, foi então proposto à doente o tratamento cirúrgico.

A doente foi submetida a anestesia geral e a intubação orotraqueal foi feita com

transfacetária e a costotransversária -, e abordagens antero-laterais - a lateral extracavitária, a transtorácica e a toracoscópica.7 Para hérnias discais centrais ou paracentrais, sobretudo no caso de hérnias discais gigantes calcifi cadas, as abordagens antero-laterais são preferidas, pela possibilidade de realizar a excisão

da hérnia discal sob visão direta, reduzindo o risco de lesão medular.8 Neste trabalho é descrita uma abordagem transtorácica mini-invasiva, que permite tratar as hérnias discais gigantes calcifi cadas com segurança, minimizando as complicações e as sequelas da abordagem cirúrgica transtorácica.

Fig. 1 TC da coluna dorsal. Cortes sagital (A) e axial (B)

A

B

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tubo de duplo lúmen, com o objetivo de excluir o pulmão esquerdo, se necessário. A doente foi posicionada em decúbito lateral direito e fi xada de forma a assegurar que o plano do dorso fi cava a 90º em relação ao plano da marquesa e que a sua posição se mantinha inalterada durante a intervenção. Este posicionamento garante que, durante a abordagem do disco intervertebral, seja mantida a orientação em relação à posição do canal raquidiano e da medula, de forma a evitar complicações desastrosas. Na região dorsal abaixo de D7, é aconselhável que a abordagem seja feita no hemitórax esquerdo, para evitar a posição mais alta do diafragma à direita, causada pela posição do fígado e porque há menor risco de lesão vascular ou do canal torácico.

Durante a intervenção, foi feita a monitorização dos potenciais evocados somatossensitivos e motores.

Com o apoio de intensifi cador de imagem, foi marcada uma incisão de cerca de 6 cm sobre a costela de D6, na região média da costela para trás da linha médio-axilar, tentando obter a posição

mais próxima da linha vertical entre o espaço discal D8-D9 e a superfície da parede torácica (Fig. 3). Depois da incisão cutânea, fez-se a dissecção dos músculos latissimus dorsi e serratus anterior sem seccionar as fi bras musculares e expôs- -se a costela. O periósteo da costela foi incisado com coagulação monopolar e os músculos intercostais foram desinseridos dos bordos da costela, com o cuidado de preservar o feixe vasculo-nervoso localizado no bordo inferior da costela. Posteriormente, a costela foi dissecada da pleura parietal e da fáscia endopleural. Na parte mais anterior da costela exposta, foi feita uma única osteotomia e assegurou-se que a costela deslizava o sufi ciente para cima, de forma a dar espaço para a colocação do afastador e realização do procedimento a nível da coluna vertebral. Fez-se uma tentativa de descolar a pleura parietal da face interna das costelas de D5, D6 e D7, para abordar a coluna vertebral

Fig. 3 Imagem intra-operatória do posicionamento e planeamento da incisão

Fig. 2 Corte sagital de ressonância magnética da coluna dorsal, ponderação T2

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por via extrapleural, mas a pleura acabou por romper. Usou-se então uma abordagem transpleural. Com apoio de uma valva afastou-se o pulmão, que foi ligeiramente desinsufl ado, e colocou-se o afastador de mini-toracotomia de Mayer (Miaspas mini-TTA; Aesculap AG &Co. KG, Tuttlingen, Germany)9 sobre a cabeça da costela que, neste nível, se insere exatamente sobre o espaço discal. Depois de confi rmado novamente com intensifi cador de imagem o correto posicionamento do afastador no nível D8-D9, iniciou-se a abordagem da coluna vertebral com apoio do microscópio ótico. A pleura parietal foi incisada de forma a expor a cabeça da costela e os pedículos vasculares acima e abaixo, que foram isolados e laqueados. De seguida, procedeu-se à drilagem da cabeça da costela e exposição do espaço discal subjacente (Fig. 4).

Fig. 4 Ilustração da visão antero-lateral da coluna dorsal13 (adaptado)

Fig. 5 Corte axial de TC intra-operatória, demonstrando a área de ressecção óssea

O disco intervertebral foi aberto e removido na sua porção mais posterior atá ao ligamento comum vertebral posterior. Como a hérnia discal estava calcifi cada e se estendia acima e abaixo do nível do disco, foi feita a drilagem

do ângulo póstero-inferior do corpo vertebral de D8 e do ângulo póstero-superior do corpo de D9, procurando obter um defeito ósseo de dimensões sobreponíveis às da hérnia discal, tanto no sentido céfalo-caudal, com no sentido transversal (Fig. 5). A intervenção prosseguiu com a identifi cação do buraco de conjugação e do pedículo esquerdo de D9, que foi também totalmente removido. Desta forma, conseguiu-se uma exposição ampla da face lateral do canal raquidiano e foi possível dissecar a dura-máter, acima e abaixo da hérnia discal, de forma a identifi car o seu volume. De forma muito cautelosa, a hérnia discal foi sendo drilada e removida em pequenas porções. Assim, a dura-máter foi sendo descomprimida, à medida que se conseguia remover e afastar para a frente a volumosa hérnia discal calcifi cada. Estas manobras foram sempre acompanhadas com avaliações frequentes dos potenciais evocados motores e monitorização contínua dos potenciais evocados somatossensitivos. Quando a hérnia discal foi removida na totalidade, inspecionou-se toda a extensão do canal raquidiano exposta, para garantir a descompressão do saco

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DISCUSSÃOApesar da evolução dos meios de diagnóstico e das técnicas cirúrgicas, o tratamento das hérnias discais dorsais mantém-se controverso. A sua baixa incidência, em comparação com as hérnias discais cervicais e lombares, e o desconhecimento da sua fi siopatologia levantam inúmeras dúvidas em relação à evolução clínica e ao melhor tratamento a realizar em cada situação. O segmento torácico da coluna vertebral tem

características particulares que devem ser equacionadas na altura da decisão terapêutica. A curvatura cifótica da coluna dorsal condiciona um deslocamento anterior da medula espinhal e esta estreita proximidade com os elementos posteriores dos corpos vertebrais torna-a mais vulnerável à procidência dos discos intervertebrais. Por outro lado, como o segmento medular torácico é o menos vascularizado, está mais suscetível a

Fig. 6 Corte sagital de TC (A) e de RM ponderação T2 (B) da coluna dorsal pós-operatória

A

B

dural e verifi car a hemostase. Para terminar a intervenção, a pleura parietal foi encerrada sobre a coluna vertebral, verifi cou-se a hemostase e colocou-se um dreno pleural, ligado a um sistema de vácuo. Por fi m, a pleura parietal foi suturada, reaproximaram-se os bordos da costela, que foram fi xados com seda, e encerrou-se a ferida operatória por planos.

Não houve intercorrências no pós-operatório e a doente não apresentou défi ces neurológicos. A drenagem torácica foi removida às 24 horas de pós-operatório e também não houve complicações torácicas ou pulmonares.Cerca de seis meses após a intervenção, a doente mantém nevralgia intercostal no nível da abordagem cirúrgica e raquialgias crónicas relacionadas com patologia degenerativa grave.

A TC de controlo da coluna dorsal confi rmou a remoção total da hérnia discal e a preservação da estrutura dos corpos vertebrais. A RM de controlo da coluna dorsal confi rmou a adequada descompressão medular e a inexistência de lesão medular (Fig. 6).

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insultos isquémicos provocados por algum tipo de compressão medular.

Na decisão terapêutica é fundamental defi nir a situação clínica, caracterizar morfologicamente a lesão e tentar prever a sua evolução, de acordo com o conhecimento da sua história natural.

O espetro clínico da forma de apresentação das hérnias discais dorsais é amplo, variando desde a raquialgia crónica à mielopatia grave, e o diagnóstico torna-se difícil porque na maioria dos casos a sintomatologia é incaracterística, exigindo ao médico um elevado grau de suspeição. Numa série de revisão da literatura que estudou 179 doentes, 57% apresentavam dorsalgia, 24% alterações das sensibilidades, 17% défi ce da força muscular, e 2% alterações do controlo dos esfíncteres.3 Mais recentemente, numa série de 60 doentes tratados cirurgicamente, observou-se mielopatia em 70% dos casos, radiculopatia em 51,7%, dorsalgia em 76,7% e alterações do controlo dos esfíncteres em 26, 7%.10

O diagnóstico das hérnias discais dorsais foi revolucionado com a generalização da utilização da ressonância magnética, que, de forma clara, permite caracterizar a lesão e fazer o diagnóstico diferencial com patologias de natureza infeciosa, tumoral, traumática ou congénita.11

A tomografi a computorizada também é muito importante, sobretudo, no planeamento cirúrgico, para caracterizar as estruturas ósseas e avaliar o grau de calcifi cação da hérnia discal ou do ligamento comum vertebral posterior.

A história natural das hérnias discais dorsais é ainda desconhecida e são

legítimas as dúvidas no tratamento de quadros de dor axial, sem compromisso neurológico, ou quando existe uma óbvia desproporção entre o quadro clínico e os aspetos imagiológicos. A indicação cirúrgica é consensual nos casos de dor radicular resistente ao tratamento médico e/ou mielopatia de evolução progressiva. Nas situações de dor axial, não existe consenso e deve-se optar pelo tratamento conservador, exceto se os exames imagiológicos revelarem hérnias discais volumosas, com acentuada compressão medular, e risco grave de mielopatia.12,13

Esta decisão é ainda mais difícil nos casos de hérnia discal dorsal gigante calcifi cada, porque constituem um verdadeiro desafi o para o tratamento cirúrgico.

Tomada a decisão de realizar tratamento cirúrgico, é necessário estudar as características morfológicas da lesão, a sua localização e relação com as estruturas neurológicas, para se poder escolher a melhor via de abordagem.

A abordagem posterior por laminectomia foi a primeira técnica cirúrgica descrita para o tratamento desta patologia,14

mas os resultados foram dececionantes, com taxas de morbilidade e mortalidade muito elevadas. Posteriormente, sur-giram outras abordagens posteriores - a costotransversectomia, a abordagem transpedicular e a abordagem trans-facetária sem remoção do pedículo -, e abordagens antero-laterais - a transtorácica e a extrapleural. Numa série de 71 doentes tratados cirurgicamente com a utilização de quatro abordagens diferentes, concluiu-se que não existiam diferenças estatisticamente signifi cativas entre os quatro grupos em relação à evolução neurológica e à melhoria da dor.15 Em relação à taxa de complicações,

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foi feita uma análise da literatura e concluiu-se que não havia diferenças entre as várias vias de abordagem e que a escolha da técnica cirúrgica deveria depender da localização anatómica, dimensão e consistência (mole vs. calcifi cada) da hérnia discal, do estado geral do doente e da experiência do cirurgião.16 No caso das hérnias discais gigantes calcifi cadas, é consensual a vantagem de uma abordagem antero-lateral, que permite remover a hérnia discal da face ventral do saco dural sob visão direta, reduzindo o risco de lesão medular.17

A abordagem antero-lateral da coluna dorsal pode ser realizada pela via clássica, transtorácica, ou por via extrapleural. A via transtorácica é uma abordagem transpleural, que está associada a um número signifi cativo de complicações, periperatórias e pós-operatórias: lesão pulmonar, lesão de grandes vasos torácicos, perdas sanguíneas acentuadas, atelectasia, pneumonia, pneumotórax e dor torácica.16 A abordagem extrapleural permite expor a face lateral da coluna dorsal e evitar as complicações inerentes à abertura da pleura.18

Nos últimos anos, a evolução no tratamento cirúrgico tem consistido na utilização de técnicas minimamente invasivas: a toracoscopia e a toracotomia mini-invasiva. A toracoscopia é realizada com técnicas laparoscópicas, menos familiares para o cirurgião de coluna e a sua utilização implica uma prolongada curva de aprendizagem. Mesmo no caso de cirurgiões experientes, esta técnica difi culta uma disseção efi caz e segura da interface hérnia discal/dura-máter e impede a reparação de eventuais roturas da dura-máter.19

A toracotomia mini-invasiva representa uma abordagem intermédia entre a via transtorácica clássica e a endoscopia.20 Embora de menores dimensões, o campo de trabalho permite abordar de forma adequada as patologias e controlar e as estruturas anatómicas essenciais, como, por exemplo, o saco dural.

A técnica cirúrgica é familiar aos neurocirurgiões: microcirurgia clássica com instrumentos em baioneta sob visão direta, com apoio de microscópio ótico.9 Como em qualquer abordagem antero-lateral da coluna torácica, esta técnica possibilita a remoção do disco intersomático e, se necessário, parte dos corpos vertebrais adjacentes, de forma a criar espaço para dissecar e fazer recuar a hérnia discal, sem manipular a dura-máter de forma arriscada. No caso do tratamento cirúrgico das hérnias discais dorsais gigantes calcifi cadas, outra vantagem em relação às técnicas posteriores e à toracoscopia, é a possibilidade de reparar, sob visão direta, eventuais roturas da dura-máter ou defeitos durais provocados pelo seu crescimento.17 Embora seja controverso, há autores que defendem que a realização de discectomia e remoção da parte posterior dos corpos vertebrais apenas provoca compromisso da coluna média, o que, à luz da teoria das três colunas de Dennis, seria insufi ciente para causar instabilidade e, portanto, não implicaria a realização de qualquer tipo de artrodese.21 Outros autores defendem a realização de fusão intervertebral anterior para prevenir a ocorrência de cifose, dorsalgia ou deterioração neurológica pós-operatória.22

Como em todas as abordagens mini-invasivas, o objetivo é concretizar o plano

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TORACOTOMIA MINI-INVASIVA PARA O TRATAMENTO DE HÉRNIA DISCAL DORSAL GIGANTE POR VIA ANTERO-LATERAL

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operatório reduzindo o trauma cirúrgico e a morbilidade, de forma a permitir uma convalescença mais fácil e rápida. Através da redução da incisão operatória, pretende-se diminuir a incidência da toracalgia e nevralgia intercostal pós-operatória, as perdas hemáticas e a taxa de complicações. Numa revisão da literatura, o valor referido para a taxa de complicações global nas séries de doentes operados por via aberta é de 36,7% e nas séries de doentes operados por via mini-invasiva é de 28,4%. Na avaliação da evolução clínica, a taxa global de doentes com evoluções boas ou excelentes foi de 64,4% nos doentes operados por via aberta, e de 81,2% nos doentes operados por via mini-invasiva.10 No caso específi co do tratamento de hérnias discais gigantes calcifi cadas, foram publicadas duas séries em que se utilizou uma abordagem mini-invasiva e técnica microcirúrgica para a sua excisão. Em ambas as séries a técnica foi considerada segura e efi caz.21,23

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente com uma hérnia discal dorsal gigante calcifi cada, que condicionava

uma grave compressão medular. A doente foi submetida a excisão da hérnia discal por uma abordagem antero-lateral esquerda da coluna dorsal, através de uma toracotomia mini-invasiva e utilizando técnica microcirúrgica. A evolução clínica foi favorável, com ausência de sequelas neurológicas.

As hérnias discais dorsais gigantes calcifi cadas são lesões com elevado risco em virtude do compromisso medular e constituem verdadeiros desafi os cirúrgicos. Porém, quando o planeamento e a técnica cirúrgica são cuidadosas, é possível remover estas lesões evitando sequelas neurológicas, que podem ser muito incapacitantes.

A via antero-lateral através de toracotomia é, sem dúvida, a técnica mais segura e a utilização de abordagens mini-invasivas, com apoio de microscópio ótico, permite manter a efi cácia e a segurança, reduzindo as complicações e as sequelas da intervenção por via aberta.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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HÉRNIA DE SPIEGEL CONGÉNITA COM TESTÍCULO ECTÓPICO

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RESUMO Abstract

GRANULOMA DE CORPO ESTRANHO NA ÍRIS. CASO CLÍNICO Iris foreign-body granuloma. Case report

Os corpos estranhos intraoculares resultam muitas vezes num quadro clínico indolente e de diagnóstico complexo. Quando se trata de corpos estranhos de madeira, podem permanecer quiescentes durante longos períodos de tempo, antes de produzirem sintomatologia. Os autores apresentam o caso clínico de um doente com um pequeno fragmento de madeira intraocular, localizado na espessura da íris, não identifi cado na altura de um traumatismo ocular com um ramo de uma árvore e que resultou num quadro clínico de infl amação ocular recorrente, durante vários meses, com formação de um granuloma na íris e consequentes complicações clínicas.

Intra-ocular foreign bodies can often result in an indolent clinical picture which can be regarded as a diffi cult diagnosis. Wood foreign bodies can remain quiescent for long periods of time before causing any symptoms. The authors report the clinical case of a patient with an intra-ocular small wood splinter, located in the iris stroma, not identifi ed at the time of trauma, and that caused recurrent ocular infl ammation episodes during several months, with the formation of an iris granuloma and consequent clinical complications.

FILOMENA RIBEIROBERNARDO FEIJÓO

Departamento de Oftalmologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Os corpos estranhos intraoculares correspondem a quase 40% dos traumatismos oculares penetrantes, sendo uma importante causa de perda de acuidade visual.1 Associam--se frequentemente com a atividade profi ssional e o grupo etário mais afetado é o dos adultos jovens, dos 20 aos 40 anos de idade. O diagnóstico e remoção precoces são importantes fatores para o prognóstico visual destes doentes. Os corpos estranhos intraoculares são, mais frequentemente, diagnosticados

no momento do traumatismo. Contudo, podem passar despercebidos e ter apresentações clínicas distintas que podem difi cultar a sua deteção e os sintomas podem tornar-se aparentes somente após um prolongado período de tempo. Os autores apresentam o caso clínico de um doente com um corpo estranho intraocular na câmara anterior que passou despercebido durante vários meses e que acabou por ser detetado apenas quando resultou na formação de um granuloma.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 31 anos de idade, caucasiano, que recorreu ao Atendimento Médico Permanente do Hospital da Luz por traumatismo da hemiface esquerda com um ramo de árvore. Referia dor no olho esquerdo (OE), com irradiação para a região supraciliar e frontal.

O doente era portador de lentes de contacto hidrófi las descartáveis para correção de miopia bilateral. Não apresentava antecedentes médicos ou familiares relevantes.

O exame objetivo revelou eritema e edema palpebral à esquerda, com hiposfagma extenso da conjuntiva bulbar. A biomicroscopia mostrou no OE uma ferida da córnea transfi xiva paracentral inferior, com 4 mm de comprimento, com encarceramento da íris e hifema que ocupava metade da câmara anterior.

O doente foi internado, iniciou terapêutica endovenosa com corticoides e antibiótico, e foi submetido a uma intervenção cirúrgica com exploração da integridade da esclerótica, lavagem da câmara anterior, redução do prolapso de íris e sutura da ferida da córnea. Teve alta hospitalar mantendo terapêutica com corticoides e antibiótico de largo espetro sistémico e tópico, bem como com antifúngico tópico, por se tratar de um traumatismo com material de origem vegetal.

Nas consultas de seguimento do pós-operatório, assistiu-se a uma diminuição progressiva da reação infl amatória de câmara anterior com restabelecimento gradual da acuidade visual. No entanto, desenvolveu hipertensão ocular, con-trolada com a aplicação tópica de hipotensor ocular e que normalizou após a suspensão da corticoterapia. Atingiu uma melhor acuidade visual

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GRANULOMA DE CORPO ESTRANHO NA ÍRIS. CASO CLÍNICO

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corrigida de 8/10 no OE, tendo fi cado com uma cicatriz da córnea e uma discreta irregularidade pupilar com descentramento inferior. Teve alta da consulta no Hospital da Luz e passou a ser seguido no local de residência, numa cidade do interior do país.

Quatro meses depois, o doente referia uma redução da acuidade visual do OE associada a olho vermelho, fotofobia intensa e presença de uma lesão esbranquiçada no segmento inferior da íris. Foi observado em consulta de Oftalmologia, na sua área de residência, tendo sido diagnosticada uveíte anterior e foi medicado com corticoterapia e antibioterapia tópica e sistémica. Após uma semana de terapêutica, referia desaparecimento da lesão da íris mas mantinha uma franca diminuição da acuidade visual, tendo então recorrido à consulta de Oftalmologia do Hospital da Luz. Nessa altura, apresentava uma melhor acuidade visual corrigida de 3/10 no OE, com hipertensão ocular, tyndall de câmara anterior e edema da mácula confi rmado por tomografi a de coerência ótica. Foi mantida a corticoterapia, que foi progressivamente reduzida mediante a resolução do quadro clínico, tendo sido associada ainda terapêutica hipotensora e antifúngico tópico durante este período. O doente manteve-se assintomático durante três meses, quando iniciou um novo quadro sintomatológico do OE, sobreponível ao anterior, recorrendo de imediato à consulta no Hospital da Luz. Além da reação infl amatória da câmara anterior, associada a um ligeiro edema da mácula, identifi cou-se pela primeira vez uma lesão esbranquiçada de cerca de 1 mm de extensão na íris inferior (Fig. 1), imediatamente posterior à cicatriz da córnea.

Como intercorrências, apenas de referir, quatro meses antes, o diagnóstico de onicomicose da unha do terceiro e quinto dedos, respetivamente da mão direita e esquerda, que resolveu com terapêutica anti-fúngica instituída, tendo sido atribuída à corticoterapia prolongada e consequente imunossupressão. Mediante o quadro clínico presente, iniciou-se terapêutica corticoide, antibiótica, an-tifúngica e hipotensora ocular. Com o tratamento, verifi cou-se, no prazo de uma semana, uma rápida diminuição das dimensões da lesão esbranquiçada (Fig. 2), que foi submetida a exploração cirúrgica.

Fig. 1 Granuloma de corpo estranho na íris

Fig. 2 Aspeto após uma semana de tratamento médico

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DISCUSSÃOOs corpos estranhos na câmara anterior do olho são relativamente pouco comuns, representando apenas cerca de 15% de todos os corpos estranhos intra-oculares.2 A reação que desencadeiam depende da extensão da lesão causada às estruturas adjacentes, ou seja, o endotélio da córnea, íris e cristalino, bem como da sua natureza orgânica. A reação ao material vegetal depende fundamentalmente da introdução concomitante de microrganismos na altura do traumatismo. O material contaminado pode produzir uma endoftalmite piogénica aguda ou uma resposta granulomatosa proliferativa crónica com a formação de uma massa infl amatória.3

No caso descrito, o fragmento de madeira, que na primeira cirurgia passou despercebido pelas reduzidas dimensões e coloração semelhante à da íris do doente,

desencadeou uma reação infl amatória crónica com formação de um granuloma. Embora o diagnóstico diferencial de uma lesão com estas características inclua tumores e lesões infl amatórias granulomatosas, como a sarcoidose, a história de traumatismo tornou muito provável a hipótese de granuloma de corpo estranho. A melhoria clínica signifi cativa a que se assistiu com a corticoterapia instituída também reforçou este diagnóstico. No entanto, a presença intraocular de material orgânico exige um elevado grau de suspeição da existência de contaminação no momento do traumatismo, associada à maior probabilidade de desenvolvimento de endoftalmite bacteriana ou fúngica.

O caso descrito é também ilustrativo das complicações intraoculares que podem decorrer de uma infl amação ocular mantida e do tratamento com corticoides,

Através de uma incisão corneana de 1,1 mm, e com auxílio de material viscoelástico e de uma pinça coaxial, foi removido um fragmento de madeira (Fig. 3), com menos de 1 mm de comprimento, inserido na espessura da íris castanha escura. Administrou-se também uma injeção intracamerular de antibiótico. O doente teve alta hospitalar com uma melhor acuidade visual corrigida de 8/10. Aos dois meses do pós-operatório, detetou-se na consulta uma baixa da acuidade visual para 4/10, sem reação infl amatória presente, tendo sido diagnosticada uma catarata subcapsular posterior, com indicação operatória.

Fig. 3 Fragmento de madeira removido

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GRANULOMA DE CORPO ESTRANHO NA ÍRIS. CASO CLÍNICO

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nomeadamente a hipertensão ocular, o edema macular, o desenvolvimento de catarata subcapsular posterior e a imunossupressão sistémica.Em conclusão, os corpos estranhos intraoculares podem por vezes produzir

um quadro clínico arrastado e pouco claro. É fundamental valorizar a história de traumatismo e manter um elevado nível de suspeita clínica, independentemente do intervalo entre o traumatismo e os sintomas presentes.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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GRANULOMA DE CORPO ESTRANHO NA ÍRIS. CASO CLÍNICO

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RESUMO Abstract

REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEAL Laparoscopic ureteroneocistostomy with psoas hitch in a duplex urinary unit for the treatment of ureterovaginal fi stula

Embora a laparoscopia esteja comple-tamente consagrada em urologia para muitos procedimentos ablativos, está menos desenvolvida para procedimentos reconstrutivos. Os autores apresentam o caso clínico de uma doente de 42 anos de idade, com uma fístula ureterovaginal iatrogénica após his-terectomia abdominal, associada a uma duplicidade pieloureteral congénita, descrevendo a identifi cação desta situação e a sua correção com uma ureteroneocistostomia dupla com psoas hitch, realizada por via laparoscópica. Concluem que a via laparoscópica é possível na ureteroneocistostomia

Although laparoscopy is a well established approach in urologic ablative procedures, for reconstructive procedures it is still less widespread. The authors report the clinical case of a 42-year old woman with an iatrogenic ureterovaginal fi stula after an abdominal histerectomy, associated to a congenital double ureter. They describe the procedure for the identifi cation of the fi stulous tract and the ureteral duplication, as well as the correction of the fi stula using a laparoscopic double ureteroneocistostomy with psoas hitch. The authors conclude that laparoscopy is a safe and effective approach for

TITO PALMELA LEITÃOSÓNIA BARATA

ADALGISA GUERRAFILIPA BEJA OSÓRIO

Departamentos de Urologia e de Ginecologia-Obstetrícia, Centro de Imagiologia

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Embora a laparoscopia esteja comple-tamente consagrada em urologia para muitos procedimentos ablativos, para procedimentos reconstrutivos não está numa fase tão avançada.1 A ureterólise e a pieloplastia laparoscópicas são procedimentos reconstrutivos já considerados como gold standard e realizados por rotina, mas os procedimentos reconstrutivos pélvicos são ainda, frequentemente, realizados por cirurgia aberta. A primeira descrição de uma ureteroneocistostomia laparoscópica para a reparação de uma lesão ureteral após um procedimento ginecológico data de 1992.2 Em 1993, foi publicado o primeiro relato de uma ureteroneocistostomia com psoas hitch laparoscópica.3 Desde então, foram divulgadas outras pequenas séries.4-10 A realização deste procedimento por

cirurgia robótica foi relatada pela primeira vez em 2007.11

As fístulas ureterovaginais são raras, sendo a sua etiologia mais habitual os traumatismos iatrogénicos do ureter distal durante a cirurgia ginecológica. Os autores descrevem o caso clínico de uma mulher com uma fístula ureterovaginal iatrogénica após histerectomia abdominal, associada a duplicidade ureteral, corrigida com uma ureteroneocistostomia dupla com psoas hitch realizada por via laparoscópica, procedimento sobre o qual é conhecida apenas uma publicação.12 Demonstram, assim, a possibilidade de uma abordagem minimamente invasiva para resolução de uma complicação rara associada a uma anomalia congénita.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente de 42 anos de idade, recorreu à consulta de Urologia com queixas de perda de urina pela vagina, de forma contínua e involuntária, com cerca de 12 meses de evolução e após uma histerectomia total realizada por

laparotomia. A doente tinha já um diagnóstico de fístula urinária, de localização a esclarecer, tendo sido submetida previamente, no hospital de origem, a uretrocistoscopia e pielografi a retrógrada sem identifi cação do trajeto

com psoas hitch para tratamento das lesões ureterais distais e que a cirurgia minimamente invasiva permite a resolução de patologias urológicas complexas, de forma segura e efi caz, devendo tornar-se numa abordagem de rotina para procedimentos de reconstrução urológica pélvica.

complex urologic situations, and should be regarded as a standard approach for urologic pelvic reconstruction procedures.

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REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEAL

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fi stuloso, bem como a cateterização ureteral bilateral durante dois meses, sem resolução do quadro clínico.

Dada a complexidade da situação e as tentativas prévias de identifi cação e resolução do problema, o caso foi abordado por uma equipa multidisciplinar, com intervenção da Urologia, Ginecologia e Imagiologia. Foi realizado um exame ginecológico, acompanhado de algaliação e instilação vesical de azul-de-metileno, tendo sido constatada perda de urina não corada pelo ângulo esquerdo da cúpula vaginal, sugestiva de fístula ureterovaginal esquerda.

Devido a história signifi cativa de alergias, não foi possível a realização de uma urografi a por tomografi a computorizada (TC) com contraste. Assim, a doente realizou uma ressonância magnética (RM) (Fig. 1) que permitiu identifi car uma fístula ureterovaginal, envolvendo o terço distal do ureter esquerdo e a vertente esquerda da cúpula vaginal. Este exame foi também sugestivo de uma duplicidade pieloureteral ipsilateral. Os hemi-rins apresentavam aproximadamente a mesma dimensão, com parênquima simétrico e de boa espessura, sem qualquer dilatação pielocaliceal. A doente realizou ainda uma uretrocistoscopia que não revelou alterações, nomeadamente presença de meato ureteral ectópico. Foi depois submetida a uma pielografi a retrógrada esquerda, não havendo identifi cação do trajeto fi stuloso ou de dilatação pielocaliceal, tendo sido colocado um cateter ureteral duplo J no ureter esquerdo visualizado.

Procedeu-se então à correção da fístula por via laparoscópica, com dissecção e isolamento do terço distal dos dois ureteres esquerdos, dissecção da fístula ureterovaginal, incisão de ambos os ureteres acima da região de fi brose da fístula, em tecido são, laqueação dos cotos distais dos ureteres e cateterização ureteral com cateter duplo J do segundo ureter. Verifi cou-se que o comprimento restante dos ureteres não seria sufi ciente para assegurar uma ureteroneocistostomia direta com uma anastomose livre de tensão, pelo que se optou pela ureteroneocistostomia com psoas hitch. Esta técnica consiste na dissecção e libertação da bexiga das suas fi xações laterais e anteriores, dissecção do músculo psoas esquerdo e fi xação da bexiga ao tendão do psoas minor esquerdo com duas suturas não reabsorvíveis.

Fig. 1 Imagem de RM, com ponderação T2 FS 3D, em que se visualiza a cúpula vaginal preenchida por gel, hiperintenso, e onde se identifi ca o trajeto fi stuloso entre o fórnix vaginal esquerdo e o ureter esquerdo

Fístula ureterovaginal

Cúpula vaginal

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Fig. 2 Dissecção dos dois ureteres esquerdos e da zona da fístula ureterovaginal com fi brose densa

Fig. 3 Incisão de um dos ureteres, visualizando-se o cateter ureteral duplo J no seu interior. Visuali-za-se à direita o segundo ureter esquerdo

Assim, a bexiga é aproximada dos ureteres, permitindo a criação de uma anastomose livre de tensão. A técnica de ureteroneocistostomia escolhida foi a de Lisch Gregoir modifi cada, que consiste numa incisão vesical longitudinal da sua parede muscular (músculo detrusor) até expor a mucosa vesical e numa incisão dessa mucosa apenas na extremidade anterior da incisão. A anastomose do ureter é feita ao orifício da mucosa, com os pontos anteriores da anastomose ancorados ao detrusor. A extremidade distal do ureter reimplantado repousa sobre a restante porção de mucosa vesical exposta, sendo posteriormente criado um túnel de detrusor sobre este segmento ureteral, com múltiplos pontos simples. Este túnel forma um novo mecanismo anti-refl uxivo vesicoureteral (Fig. 2 a 10).

Após a reimplantação dos dois ureteres de acordo com a técnica descrita, com uma distância entre si de cerca de 2 cm, foi realizado um teste de estanquecidade com instilação intravesical de 400 mL de soro fi siológico com azul-de-metileno (Fig. 11). Após a constatação da ausência de fuga nas anastomoses ou

de hemorragia, foi colocado um dreno abdominal aspirativo. O procedimento teve a duração de 210 minutos, com cerca de 100 mL de perdas hemáticas. No pós-operatório, não se registaram intercorrências, tendo o dreno abdominal sido removido ao sexto dia, com drenagem vestigial desde o segundo dia. A doente teve alta ao sétimo dia, algaliada.

Ao 14º dia de pós-operatório, foi efetuada uma cistografi a (Fig. 12) que revelou um bom posicionamento do psoas hitch e ausência de extravasão de contraste ou de refl uxo vesicoureteral, pelo que se procedeu à remoção da algália. Na terceira semana de pós-operatório, foi diagnosticada uma infeção do trato urinário baixo não complicada, que foi resolvida com sete dias de terapêutica com cefuroxime por via oral. Os stents ureterais foram removidos à sexta semana de pós-operatório. Na última avaliação de seguimento, realizada passados cerca de três meses, a doente não tinha queixas de perdas urinárias, dores ou complicações, tendo retomado completamente a sua vida pessoal e profi ssional.

Fístula ureterovaginal

Duplicidade ureteral Cúpula vaginal

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REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEAL

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Fig. 4 Laqueação da união dos dois ureteres com Endo-Loop™

Fig. 5 Visualizam-se os dois ureteres seccionados e cateterizados com cateteres ureterais duplo J

Fig. 6 Incisão longitudinal da camada muscular da bexiga, visualizando-se a mucosa vesical, aberta na extremidade superior da incisão. Esta incisão permite a anastomose de um ureter à bexiga e a criação de um túnel submucoso segundo a técnica de Lisch Gregoir modifi cada, com o objetivo de criar um mecanismo anti-refl uxivo

Fig. 7 Passagem do primeiro ponto da ureteroneo-cistostomia na mucosa vesical

Fig. 8 Passagem do primeiro ponto da ureteroneo-cistostomia no ureter

Fig. 9 Dissecção e exposição do músculo psoas e do tendão do músculo psoas minor, onde vai ser fi xada a bexiga

Tendão do músculo psoas minor

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Fig. 11 Enchimento vesical com 400 mL de soro fi siológico adicionado de azul-de-metileno através da algália, verifi cando-se a estanquecidade das duas anastomoses

Fig. 12 Cistografi a realizada no 14º dia de pós-operatório, com enchimento vesical com 500 mL de contraste, revelando bom posicionamento do psoas hitch e a ausência de extravasão de con-traste ou de refl uxo vesicoureteral

Fig. 10 Resultado fi nal da ureteroneocistostomia de Lisch Gregoir modifi cada dupla com psoas hitch, com a bexiga vazia. É possível visualizar as suturas de tração e fi xação da bexiga ao tendão do músculo psoas minor, à esquerda, e a implan-tação ureteral dupla na transição da parede pos-terior para a cúpula vaginal, no centro da imagem

DISCUSSÃOO sintoma de apresentação mais comum de uma fístula genitourinária iatrogénica é a drenagem contínua de urina pela vagina após um procedimento cirúrgico pélvico, nomeadamente ginecológico. A fístula pode manifestar--se imediatamente após o procedimento

ou, mais frequentemente, uma a quatro semanas depois.13 No caso descrito, a doente iniciou perdas de urina por via vaginal uma semana depois de ser submetida a uma histerectomia realizada por laparotomia. A incidência de lesões ureterais iatrogénicas em cirurgia

Sutura do psoas hitch

Ureteroneocistostomia de Lisch Gregoir modifi cada dupla

Ureteroneocistostomia de Lisch Gregoir modifi cada dupla

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REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEAL

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ginecológica é de 0,5 a 2,5%.14 A fístula ureterovaginal é a mais grave das fístulas genitourinárias, pelo risco de sépsis e perda do rim envolvido. Nos países desenvolvidos, cerca de 75% das fístulas genitourinárias são secundárias a histerectomias realizadas por via abdominal ou vaginal.15

Os mecanismos destas lesões iatrogénicas podem ser diversos, nomeadamente laceração, secção, avulsão, esmagamento, laqueação parcial ou completa, cauterização ou desvitalização e isquemia do ureter.13 Estas lesões acontecem porque o trajeto do ureter na cavidade pélvica cruza o ligamento cardinal do útero imediatamente abaixo da artéria uterina, distando entre apenas 0,1 e 5,3 cm (média 2,3 cm) do colo do útero.16

As lesões ureterais podem inicial-mente ser abordadas através de um procedimento endoscópico, nomea-damente uma cateterização ureteral retrógrada. As taxas de efi cácia destes procedimentos são variáveis, referindo--se desde valores baixos, entre 5 e 15%,17 até 35%.18 Na maioria dos casos, é necessária uma abordagem cirúrgica, com a secção do segmento de ureter envolvido e restabelecimento da continuidade do aparelho excretor. Neste contexto, existem várias opções, como a ureteroureterostomia, a ureteroneocistostomia (direta, com psoas hitch ou com fl ap de Boari), a transureteroureterostomia ou o autotransplante renal, de complexidade crescente neste sentido. A técnica utilizada com mais frequência é a ureteroneocistostomia, também chama-da reimplantação ureteral.

A reimplantação ureteral direta é a técnica mais efi caz para a reparação da maioria das fístulas ureterovaginais que persistem após cateterização ureteral. A fi brose periureteral pode tornar complexa a identifi cação do local preciso do trajeto fi stuloso. Intra-operatoriamente, o trajeto das fístulas uroginecológicas (e a fi brose envolvente) pode ser excisado ou, simplesmente, ser excluído e laqueado. Neste caso, não foi excisado o trajeto fi stuloso, de modo a diminuir a morbilidade da cirurgia, nomeadamente o traumatismo vaginal adicional, com possível repercussão na função sexual, bem como um maior risco de hemorragia e de lesão vesical.

A reimplantação ureteral com psoas hitch é a melhor abordagem quando não é possível realizar uma ureteroureterostomia ou uma reimplantação ureteral direta sem tensão.18-20 Esta técnica foi descrita originalmente em 1896 por Witzel19

e desenvolvida nos anos 1960 por Zimmerman20 e Turner-Warwick.21 Aplicam-se ao psoas hitch os seguintes princípios cirúrgicos:22

- Mobilização circunferencial da bexiga;- Ancoragem da parede vesical ao tendão do músculo psoas minor com suturas não-absorvíveis, evitando a lesão ou o repuxar do nervo genitofemoral;- Colocação de um cateter ureteral duplo J no ureter;- Reimplantação ureteral;- Colocação de um dreno no local da anastomose;- Algaliação.

No caso descrito, a doente apresentava, além da fístula ureterovaginal, uma duplicidade pieloureteral. Com base

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AGRADECIMENTOSOs autores agradecem a contribuição do Dr. António Setúbal e do Dr. João Varela na discussão multidisciplinar deste caso

clínico, bem como a colaboração de toda a equipa do bloco operatório.

CONSIDERAÇÕES FINAISA via laparoscópica é uma abordagem segura e efi caz para a ureteroneocistostomia com psoas hitch aplicada ao tratamento de lesões ureterais distais. Permite a resolução de uma patologia urológica complexa através de uma abordagem minimamente invasiva, com benefícios

signifi cativos e bem conhecidos para os doentes, nomeadamente menos perdas sanguíneas, menos dor, menor necessidade de analgésicos e uma recuperação mais rápida, devendo, assim, tornar-se a abordagem standard também para procedimentos de reconstrução urológica pélvica.

em resultados de estudos de autópsias, estima-se que esta anomalia congénita ocorra em 0,8% da população.13 Há uma predominância de casos no sexo feminino, com uma relação de 1,6:1, e a duplicação unilateral é seis vezes mais frequentemente do que a bilateral.

Na bibliografi a disponível está descrito apenas um caso de ureteroneocistostomia dupla com psoas hitch realizada por via laparoscópica, no contexto de estenose ureteral por endometriose profunda12 e um caso de ureteroneocistotomia dupla com psoas hitch realizada por via aberta, no contexto de uma fístula ureterovaginal.23 Assim, tanto quanto é do conhecimento dos autores, este é o primeiro relato deste procedimento realizado por via laparoscópica para o tratamento de uma fístula ureterovaginal.

Num estudo retrospetivo, foram comparadas as reimplantações ureterais

por via laparoscópica e aberta, concluindo-se que a laparoscopia reduz signifi cativamente as perdas sanguíneas (370 vs. 610 mL), a necessidade de analgesia (4,9 vs. 21,5 mg de piritramida), o tempo de internamento (9 vs. 19 dias) e o tempo de convalescença (2,3 vs. 4,2 semanas).1 A duração da operação está relacionada com a curva de aprendizagem; inicialmente, era bastante superior na laparoscopia (228 vs.187 minutos), mas nos últimos casos da série o tempo da cirurgia laparoscópica diminuiu para cerca de 190 minutos, valor próximo do registado no caso presente.

As ureteroneocistostomias apresentam elevadas taxas de sucesso, acima de 90%.13,24 As complicações possíveis incluem estenoses da anastomose, em menos de 5% dos casos, e reformação de fístula urinária, em menos de 1% dos casos.

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REIMPLANTAÇÃO LAPAROSCÓPICA URETERAL DUPLA COM PSOAS HITCH PARA CORREÇÃO DE FÍSTULA URETEROVAGINAL COM DUPLICIDADE PIELOCALICEAL

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇA

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PEDIATRIA

GINECOLOGIA-OBSTETRÍCIA

ANESTESIOLOGIA

MEDICINA MOLECULAR

IMAGIOLOGIA

MEDICINA FÍSICA E DE REABILITAÇÃO

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇA

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RESUMO Abstract

UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇA Discitis in children. Case report

A espondilodiscite é uma entidade clínica rara nas crianças e, por isso, subdiagnosticada, com os consequentes atrasos de início de terapêutica. Os autores apresentam o caso clínico de uma criança do sexo feminino, de 22 meses de idade, com espondilodiscite de L4-L5, salientando a importância do grau de suspeição clínica que deve existir para fazer o diagnóstico, instituir a terapêutica atempadamente e, assim, evitar sequelas.

Discitis in children is a rare disease and may be underdiagnosed. The authors report the clinical case of a 22 month-old girl, with L4-L5 discitis, pointing out the importance of the high index of suspicion required to establish the diagnosis, and start the treatment as soon as possible in order to achieve a good long-term outcome.

ANA ELISA COSTAANA CARVALHO

PEDRO FERNANDESCARLA CONCEIÇÃO

Departamentos de Pediatria e de Ortopedia, Centro de Imagiologia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A espondilodiscite é uma entidade clínica rara nas crianças. Caracteriza-se por um processo infl amatório/infeccioso que envolve o disco intervertebral, com consequente estreitamento sintomático (doloroso) do espaço intervertebral. Geralmente, o processo estende-se às vértebras contíguas, com infl amação e erosão das corticais e, em casos mais graves, necrose. A etiologia é predominantemente infecciosa sendo os agentes mais frequentes o Staphylococcus aureus e a Kingella kingae. As mani-

festações clínicas variam com a idade. O diagnóstico é imagiológico, através de ressonância magnética em que se observam as imagens características de espondilodiscite. A instituição de terapêutica antibiótica endovenosa e a imobilização são medidas fundamentais para uma evolução favorável da situação, evitando-se sequelas futuras. Os autores descrevem um caso clínico de espondilodiscite numa criança de 22 meses de idade, salientando a importância dos aspetos referidos.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Criança do sexo feminino, de 22 meses de idade, que recorreu ao Atendimento Médico Permanente de Pediatria do Hospital da Luz por difi culdade em se sentar e levantar havia uma semana e com agravamento progressivo das queixas. Nesse intervalo de tempo, tinha já sido observada pelo médico assistente e feito radiografi a da coluna lombar que não apresentava alterações (Fig. 1).

A mãe negava a ocorrência de traumatismo ou doença febril em semanas anteriores. No exame objetivo estava apirética, com bom estado geral, auscultação cardiopulmonar e palpação abdominal sem alterações. Na pele observaram-se pequenas cicatrizes nos membros inferiores. No exame neurológico sumário salientava-se marcha vacilante, refl exos osteotendinosos presentes, simétricos e normais. Na posição de decúbito dorsal

Fig. 1 Radiografi a extralonga da coluna sem altera-ções (dia 5 de doença)

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UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇA

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mobilizava-se bem, nomeadamente os membros inferiores, com força mantida e simétrica. Apresentava ligeira hiperextensão da cabeça como posição preferencial. Para se levantar adotava a posição “de gatas”. O restante exame físico era normal.

Foram colocadas as seguintes hipóteses de diagnóstico:

- Sinovite da anca- Processo infeccioso e/ou infl amatório intra-abdominal, do músculo psoas ou da coluna vertebral - Lesão expansiva (neoplásica? vas-cular?) da medula espinhal - Mielite transversa pós-infecciosa

Entre os resultados dos exames laboratoriais de hematologia sa-lientavam-se hemoglobina de 12,5 g/dL, hematócrito 36,3%, constantes globulares normais, leucócitos 10,6 x 109 células/L, com 66,5 % de neutrófi los, 2,0% de eosinófi los, 0,0% de basófi los, 27,1% de linfócitos e 4,4% de monócitos, plaquetas 422 x 109 células/L, proteína C reativa (PCR) de 4,94 mg/dL, velocidade de sedimentação (VS) de 65 mm/h. Nos exames bioquímicos salientavam- -se os valores de ureia de 25 mg/dL, creatinina de 0,70 mg/dL, proteínas totais de 7,3 g/dL, albumina de 4,2 g/dL, aspartato aminotrasferase 24 UI/L, alanina aminotransferase de 37 UI/L, desidrogenase láctica de 246 UI/L, creatinina cinase de 51 UI/L, sódio 138 mmol/L, potássio 4,20 mmol/L, cloro 98 mmol/L. A hemocultura foi negativa, bem como a urocultura. As serologias para Mycoplasma pneumoniae, CMV, VH1 e 2 foram negativas. Foi realizada uma punção lombar. O liquor (LCR)

apresentava-se límpido, incolor, com proteínas de 21 mg/dL, glucose de 68% e leucócitos 3 células/µl. O exame bacteriológico foi negativo

A ecografi a abdominal revelou uma discreta esplenomegália homogénea e de contornos regulares, de sugestão infl amatória/infecciosa inespecífi ca.

A ecografi a osteoarticular das ancas indicou uma apreciação globalmente favorável das articulações coxofemorais, sem líquido em topografi a intra-articular ou espessamento sinovial que pudesse indicasse artrite ou sinovite.

A ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE) revelou uma malformação de Chiari I (achado imagiológico) (Fig. 2). A RM do neuroeixo assinalou a existência de um “subtil hipersinal T2, envolvendo a vertente lateral esquerda e o anel fi broso adjacente do disco L4-L5, que estava discretamente abaulado e de altura reduzida, aspeto este que se associava também a um subtil hipersinal T2 da vertente adjacente dos corpos vertebrais L4 e L5, mas com manutenção da integridade da cortical nas imagens obtidas. Coexistia apagamento da gordura latero-vertebral adjacente, com pequena faixa de hipersinal T2 e isosinal T1, existindo também ligeiro hipersinal T2 por provável edema na vertente interna do músculo psoas esquerdo, mas sem evidência de imagens quístico-necróticas. Não havia evidência de alterações epidurais, sendo os aspetos detetados compatíveis com espondilodiscite L4-L5 (sem evidência de abcessos associados e ainda sem alterações destrutivas somáticas ver-tebrais)” (Fig. 3).

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A criança fi cou internada e permaneceu hospitalizada durante 28 dias. Cumpriu antibioterapia endovenosa com ceftriaxone durante dez dias e fl ucloxacilina durante 28 dias. Durante os primeiros quatro dias de internamento teve febre, atingindo o valor máximo de 38,8 ºC no primeiro dia (D1). A partir do oitavo dia de internamento começou a registar-se melhoria clínica e a criança começou a gatinhar em D10. Em D12, fez uma radiografi a lombar, observando-se “estreitamento do espaço intervertebral, diminuição da lordose fi siológica e fusão parcial dos corpos vertebrais L4-L5” (Fig. 4). Em D15, repetiu a ressonância da coluna lombo-sagrada, em que, por comparação com o primeiro exame, se observou a extensão das lesões aos corpos vertebrais com erosão da cortical e tecidos adjacentes e atingimento do músculo psoas esquerdo (Fig. 5). Em D18, no bloco operatório e

sob anestesia geral, foi colocado gesso lombopelvicalção (Fig. 6). Após este procedimento, a melhoria sintomática foi signifi cativa e a criança recomeçou a andar sem dor.

A criança teve alta hospitalar aos 28 dias, com colete gessado que usou durante seis semanas. Posteriormente, foi colocado um colete ortopédico que usou durante três meses (Fig. 7).

Manteve a terapêutica com fl ucloxacilina oral até completar quatro semanas. Continuou a ser seguida em consulta de Ortopedia.

Fig. 2 Ressonância magnética revelou malfor-mação de Chiari

Fig. 3 RM do neuro eixo em D1. Espondilodiscite L4-L5

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Fig. 4 Radiografi a da coluna dorso-lombar revela a fusão dos corpos vertebrais L4-L5 (D15 internamento)

Fig. 5 RM do neuro eixo em D12. Erosão da cor-tical dos corpos vertebrais de L4-L5

Fig. 6 Gesso lombopelvicalção

No follow-up, verifi cou-se uma recu-peração total do disco intervertebral e dos corpos vertebrais adjacentes;

13 meses após o início da doença a radiografi a da coluna lombar não revelou alterações (Fig. 8).

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DISCUSSÃOA espondilodiscite caracteriza-se por um processo infeccioso/infl amatório do disco intervertebral, atingindo as vértebras contíguas, com o consequente estreitamento do espaço intervertebral. Trata-se de uma entidade clínica pouco frequente na infância, não se conhecendo a sua incidência exata. Pensa-se que represente cerca de 2% das infeções ósseas juvenis.1 Num centro académico, estimou-se a ocorrência de dois casos por ano, em 32.500 crianças observadas. Outros autores referem incidências que variam entre um caso em 100.000 e um caso em 250.000.5 Na infância, a doença ocorre maioritariamente em crianças com idade inferior a cinco anos, mas também em crianças mais velhas e adolescentes.1 A incidência no sexo masculino é

ligeiramente superior, com uma relação de 1,4:1.5 A preponderância da doença em crianças mais jovens deve-se provavelmente a causas anatómicas e de maturação do disco intervertebral, que é vascularizado e tem comunicação com a vascularização das vértebras adjacentes. As vértebras mais atingidas são as lombares (45% dos casos), sobretudo a L3-L4 e L4-L5, seguidas das torácicas (35%).1-3

O caso clínico descrito está de acordo com estas características gerais indicadas na literatura. Nas crianças mais velhas, a infeção fi ca circunscrita ao corpo vertebral, sem atingir o disco, dado que a comunicação vascular entre este e a vértebra deixa de existir.

Fig. 7 Colete ortopédico que a criança usou du-rante três meses

Fig. 8 Radiografi a da coluna dorso-lombar sem alterações aos 13 meses após o início da doença

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O agente etiológico mais frequente-mente envolvido na espondilodiscite é o Staphylococcus aureus. Outros microorganismos envolvidos incluem a Kingella kingae, Streptococcus do grupo A, Streptococcus pyogenes e Escherichia coli.1-3 A infeção desenvolve-se por via hematogénica a partir do foco primário. Pode ser precedida de intercorrência infecciosa obvia, nos dias ou semanas anteriores (localizada por exemplo na pele, tecido subcutâneo, aparelho respiratório, aparelho genito-urinário) ou de traumatismo.2 Nesta criança, observaram-se cicatrizes de feridas antigas nos membros inferiores que, eventualmente, podem ter sido a porta de entrada do agente infeccioso.

O quadro clínico da espondilodiscite varia com a idade, caracterizando-se nos lactentes por irritabilidade, recusa alimentar e choro à manipulação dos membros inferiores, bem como queixas na posição sentada. Nas crianças jovens, verifi ca-se habitualmente recusa na marcha e na posição sentada, sem atingimento do estado geral; nas crianças mais velhas, há geralmente referência a dor lombar, podendo ou não ser acompanhada de marcha claudicante. Noutros casos, a dor abdominal pode ser um sintoma de apresentação da doença e o doente assume uma posição antálgica de decúbito com hiperextensão da coluna. Neste caso, a posição de hiperextensão da coluna era assumida como uma posição antiálgica e o achado imagiologico de malformação de Arnold-Chiari, não parecia estar relacionado.

No exame físico pode haver dor à percussão da zona da coluna afetada, incapacidade de fl exão do tronco,

postura com perda da lordose fi siológica e, em alguns casos, dor e rigidez da anca. A febre pode ou não estar presente. O período de tempo entre o início da sintomatologia e o diagnóstico é referido em três semanas a três meses.2,3

Pode haver sinais neurológicos, como diminuição da amplitude dos refl exos e da força muscular e íleus paralítico (em lesões a nível de T8-L1, sendo estas ocorrências mais raras).2,3 Nestes casos, o diagnóstico diferencial deve ser feito relativamente a patologia abdominal, como apendicite aguda, pielonefrite, abcesso do músculo psoas. Dependendo do contexto epidemiológico (por exemplo, no caso de deslocações a regiões endémicas ou de doentes imunodeprimidos), deverá também ser considerada a possibilidade de tuberculose, brucelose e infeções fúngicas, que envolvem, mais frequentemente, o segmento anterior das vértebras.

A patologia neoplásica, envolvendo predominantemente os segmentos anteriores da coluna, como nos casos de leucemia, linfoma ou granuloma eosinofílico, são hipóteses diagnósticas, bem como as doenças reumatológicas, como a artrite idiopática juvenil.3

Os achados laboratoriais são bas-tante inespecífi cos, podendo não haver alterações signifi cativas dos parâmetros de infeção e agentes de fase aguda (leucograma e PCR). No entanto, a velocidade de sedimentação está elevada em mais de 90% dos casos. As hemoculturas são positivas em 50 a 60% dos casos, sendo o agente mais frequentemente isolado o

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Staphylococcus aureus.1-3 No entanto, alguns autores referem também hemoculturas positivas em cerca de 30 a 50% dos casos.5 Quando a terapêutica antibiótica não é efi caz e o agente infeccioso não foi isolado, deve ser ponderado o recurso a meios de diagnóstico mais invasivos, como a punção aspirativa do disco intervertebral.5

A biópsia guiada por tomografi a computorizada é um procedimento minimamente invasivo, que permite o diagnóstico histológico da doença e a cultura de tecidos. No entanto, estas culturas só são positivas em cerca de 50% dos casos, especialmente quando já se iniciou a terapêutica antibiótica. Nestes casos, a alternativa é uma biópsia cirúrgica. Segundo alguns autores, este procedimento é o que está associado a uma percentagem de isolamento do agente mais elevada, tratando-se também do método de diagnóstico mais invasivo. No entanto, alguns estudos comparativos entre a terapêutica antibiótica endovenosa com ou sem desbridamento associado não evidenciaram diferenças signifi cativas.5

No caso descrito, o agente infeccioso não foi isolado. No entanto, o diagnóstico foi formulado com base dos resultados da ressonância magnética e a criança respondeu bem à terapêutica antibiótica endovenosa, não tendo sido necessário recorrer a meios mais invasivos.

A radiografi a da coluna pode estar normal no início da doença, tal como se verifi cou no caso presente, aparecendo as alterações características duas a três semanas mais tarde. Estas caracterizam-

-se por um estreitamento do espaço intervertebral, seguido de destruição dos pratos vertebrais adjacentes. No caso clínico descrito, as alterações radiográfi cas surgiram duas semanas e meia depois do início do quadro clínico.

A ressonância magnética é a técnica de imagem de eleição para o diagnóstico das lesões vértebro-discais nas crianças, nomeadamente para o diagnóstico de discite. No caso descrito, a RM realizada no dia de internamento (sétimo dia de doença) permitiu formular o diagnóstico. Com efeito, visualizam--se as alterações características desta patologia, com edema dos corpos vertebrais, diminuição do espaço e do disco intervertebrais, erosão parcial da cortical das vértebras adjacentes podendo observar-se o estado das estruturas circundantes, nomeadamente, a eventual existência de abcessos ou coleções epidurais, paravertebrais e do músculo psoas (Fig. 3). A RM permite também fazer o diagnóstico diferencial relativamente a osteomielite vertebral e a lesões tumorais e da medula.1-3

O tratamento da espondilodiscite consiste em antibioterapia endovenosa e imobilização. O antibiótico escolhido deve ter um espetro de cobertura que abranja principalmente o Staphylococcus aureus e Kingella kingae, tal como é o caso da fl ucloxacilina, clindamicina, vancomicina ou uma cefalosporina de terceira geração, como o ceftriaxone ou o cefotaxime. A terapêutica deve ser mantida até se verifi car uma melhoria sintomática e diminuição da velocidade de sedimentação para metade ou um terço do valor alterado, o que acontece em média em seis a oito semanas.

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UM CASO CLÍNICO DE ESPONDILODISCITE NUMA CRIANÇA

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Posteriormente, o tratamento deve ser completado por via oral, durante quatro a seis semanas.1,5

A imobilização com colete gessado e, numa fase posterior, com colete ortopédico, permitiu um alívio sintomático importante e deve ser mantida até seis meses.

Quando diagnosticada atempadamente e tratada tal como é preconizado, o prognóstico da espondilodiscite é favorável, com recuperação do espaço intervertebral e manutenção do disco. Em alguns casos, podem ocorrer

lesões residuais do disco e vértebras adjacentes, com diminuição do espaço intervertebral, fusão dos corpos vertebrais envolvidos e deformidades cifóticas e escolióticas de caráter assintomático.1

A espondilodiscite é uma patologia por vezes subdiagnosticada devido a um quadro clínico, laboratorial e imagiológico inicial inespecífi co. Assim, deve manter-se um grau de suspeição elevado e, uma vez diagnosticada uma espondilodiscite, é muito importante iniciar a terapêutica atempadamente, de modo a evitar sequelas.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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UM CASO CLÍNICO DE ENDOMETRIOSE MULTIFOCAL COM ENVOLVIMENTO DO CEGO

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RESUMO Abstract

UM CASO CLÍNICO DE ENDOMETRIOSE MULTIFOCAL COM ENVOLVIMENTO DO CEGOMultifocal endometriosis with cecum involvement. Case report

Os autores apresentam o caso clíni-co de uma mulher de 42 anos de idade, com queixas de dismenorreia, dispareunia, disúria e disquezia, bem como diarreia, náuseas e vómitos durante a menstruação e sem causa aparente. O exame ginecológico revelou a presença de um nódulo retovaginal, levantando a suspeita de adenomiose e endometriose do apêndice íleo-cecal. A ressonância magnética revelou uma exuberante endometriose intestinal multifocal, transparietal, associada a endometriose profunda na pélvis também multifocal e adenomiose

The authors report the clinical case of a 42 year-old women with dysmenorrhea, dyspareunia, dyschesia, dysuria and diarrhea, nausea and vomiting during menstruation, with no apparent reason. Magnetic resonance showed multifocal endometriosis with bowel transparietal infi ltration. A colonoscopy confi rmed the diagnosis of endometriosis of the cecum, vermiform appendix and terminal ileum. The patient underwent a laparoscopic segmental bowel resection and hysterectomy with adnexectomy. Hystological analysis confi rmed transparietal bowel infi ltration and

JOÃO SEQUEIRA ALVESCARLOS VAZ

ADALGISA GUERRADAVID SERRA

ANTÓNIO SETÚBAL

Departamentos de Ginecologia-Obstetrícia e de Cirurgia Geral, Centro de Imagiologia, Centro de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A endometriose tem uma prevalência estimada de 8-12% das mulheres em idade reprodutiva, com cerca de 20% destas mulheres com endometriose considerada profunda - ou seja, com infi ltração da camada muscular dos órgãos pélvicos - e cerca de 8-12% com endometriose afetando os órgãos digestivos.1 Além da endometriose digestiva ser uma entidade clínica pouco comum, apenas cerca de 4% das mulheres atingidas tem endometriose do cego.2

Idealmente, as doentes nestas circuns-tâncias devem ser acompanhadas por

equipas multidisciplinares experientes, que incluam, além de ginecologistas com experiência cirúrgica em endometriose, cirurgiões digestivos, imagiologistas, gastrenterologistas, anatomopatologistas e outros profi ssionais de saúde.

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente com endometriose multifocal afetando o cego, submetida a uma histerectomia com anexectomia, ressecção segmentar do cego e exerese de tumor retovaginal, usando uma abordagem laparoscópica.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo feminino, de 42 anos de idade, que teve menarca aos 12 anos, com uma gestação e um parto, recorreu à consulta de Ginecologia-Obstetrícia do Hospital da Luz por queixas de

dismenorreia e dispareunia (classifi cadas em 8 numa escala de 10 pontos), disúria e disquezia, bem como diarreia, náuseas e vómitos durante a menstruação e sem causa aparente. Estas queixas

difusa. A colonoscopia confi rmou o diagnóstico de endometriose do cego, apêndice íleo-cecal e íleon terminal. A doente foi submetida a histerectomia com anexectomia, ressecção segmentar do cego e exerese de tumor retovaginal, usando uma abordagem laparoscópica. O exame anatomopatológico da peça operatória revelou endometriose in-testinal transparietal, endometriose retovaginal e adenomiose difusa. Quatro meses após a cirurgia, a doente estava recuperada e assintomática.

difuse adenomyosis. Four months after surgery the patient is completely recovered and asymptomatic.

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UM CASO CLÍNICO DE ENDOMETRIOSE MULTIFOCAL COM ENVOLVIMENTO DO CEGO

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tinham cerca de 12 anos de evolução, agravando-se com o passar do tempo e a sua causa não tinha sido identifi cada anteriormente em diversas consultas de ginecologia e de gastrenterologia.

Nos antecedentes pessoais salientava-se uma ooforectomia esquerda realizada por via laparoscópica cerca de três anos antes. O exame físico revelou a presença de um nódulo retovaginal e levou à suspeição de adenomiose e endometriose do apêndice íleo-cecal. Analiticamente, a doente apresentava um valor para o antigénio carbohidrato 125 (CA 125) de 132 U/mL (valores de referência <35 U/mL).

No processo de investigação diagnóstica, a doente foi objeto de uma ressonância magnética (Fig. 1) que revelou endo-metriose intestinal multifocal, trans-parietal - na transição retosigmoideia com 3,5 cm de comprimento; no cego com cerca de 5 cm; na última ansa ileal e no apêndice ileocecal -, associada a endometriose profunda na pélvis, também multifocal.

O útero tinha evidência de adenomiose difusa. Os ureteres estavam repuxados medialmente, sem ureterohidronefrose. Uma colonoscopia posterior confi rmou o diagnóstico de endometriose do cego, apêndice íleo-cecal e íleon terminal (Fig. 2).

Fig. 1 Ressonância magnética pré-operatória

A B C

A doente foi submetida a uma intervenção cirúrgica, por via lapa-roscópica (Fig. 3 a 5), em que se realizou a lise de aderências pélvicas com ureterolise bilateral, histerectomia com anexectomia bilateral (ovário restante à esquerda), ressecção íleo-cecal com anastomose latero-lateral e shaving de lesão retal e retosigmoideia.

No fi nal, as provas de segurança realizadas com ar e com solução de azul de metileno comprovaram a integridade da parede do reto.

Foi feita a aplicação de cola biológica autóloga nas áreas de maior fragilidade da parede intestinal. A cistoscopia realizada para verifi cação da integridade funcional dos ureteres revelou uma boa ejaculação de ambos os lados.

A avaliação macroscópica da peça operatória demonstrava envolvimento do segmento intestinal pela lesão (Fig. 6). Histologicamente, verifi cou-se que o segmento do íleon terminal e o cego, com 19 cm de extensão, apresentavam

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Fig. 2 Imagens da colonoscopia revelando focos de endometriose no reto

Fig. 3 Imagem intraoperatória de lesão de endometriose intestinal

Fig. 5 Aspeto fi nal após a sutura da vagina

Fig. 6 Peça operatória de ressecção intestinal mostrando a infi ltração da espessura da parede

Fig. 4 Imagem intraoperatória de lesão de endometriose infi ltrativa

C

focos de endometriose na camada muscular, o útero e anexos uterinos tinham uma extensa adenomiose e a lesão retovaginal, com 2 cm, evidenciava também endometriose.

Quatro meses após a cirurgia a doente estava clinicamente recuperada, sem queixas ou perturbações funcionais do trânsito intestinal.

A B

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UM CASO CLÍNICO DE ENDOMETRIOSE MULTIFOCAL COM ENVOLVIMENTO DO CEGO

247

DISCUSSÃOA endometriose é uma doença benigna que assume, por vezes, um comportamento agressivo em relação aos órgãos envolvidos. O objetivo do tratamento cirúrgico é a remoção da doença, tentando preservar os órgãos envolvidos. O caso clínico descrito ilustra o tratamento cirúrgico de uma doente com endometriose multifocal com endometriose do cego. A endometriose que afeta o cego pode apresentar-se de uma forma ainda mais agressiva, nomeadamente com obstrução3 ou mesmo com perfuração intestinal.4

O planeamento cirúrgico tem inúmeras exigências nos casos de envolvimento de

órgãos abdominais. O caso clínico descrito benefi ciou, neste aspeto, da evidência de infi ltração da parede intestinal nos exames pré-operatórios, o que permitiu planear a ressecção intestinal. No entanto, este planeamento nem sempre é possível; frequentemente, existe a dúvida pré-operatória acerca da infi ltração ou não da parede intestinal, sendo um shaving retal sufi ciente. Assim, os especialistas responsáveis pelos exames pré-operatórios nesta doença devem ter uma formação específi ca. No caso do Hospital da Luz, a equipa multidisciplinar que se dedica à endometriose é liderada por um ginecologista e inclui, além de cirurgiões, imagiologistas e gastrenterologistas, treinados em diagnóstico da endo-metriose.

BIBLIOGRAFIA1. Koninckx PR. Biases in the endometriosis literature. Illustrated by 20 years of endometriosis research in Leuven. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 1998;81(2):259-71.2. Koninckx PR, Ussia A, Adamyan L, Wattiez A, Donnez J. Deep endometriosis: defi nition, diagnosis, and treatment. Fertil Steril 2012;98(3):564-71.

3. Cirillo F, Vismarra M, Buononato M, Magnani E, Vergoni F, Martinotti M. Endometriosis of the caecum and ileo-caecal valve. A case report and review of the literature. Chir Ital 2008;60(4):603-6.4. Fu CW, Zhu L, Lang JH. Terminal ileum perforation: a rare complication of intestinal endometriosis. Chin Med J 2007;120(15):1381-2.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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PATOLOGIA DA TIROIDE COMO FATOR DE RISCO PARA A CAPSULITE ADESIVA DO OMBRO

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RESUMO Abstract

IMPLICAÇÕES ANESTÉSICAS DA DOENÇA DE POMPE. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO Anesthetic implications of Pompe’s disease. Case report

A doença de Pompe é causada por um défi ce da enzima ácido-α-glucosidase que hidrolisa o glicogénio lisossomal. Este acumula-se em vários tecidos, sendo os músculos esquelético e cardíaco os mais afetados. O controlo anestésico dos doentes com esta patologia constitui um verdadeiro desafi o. Os autores apresentam o caso clínico de uma doente de 56 anos de idade, com doença de Pompe com paresia diafragmática, submetida a uma gastrectomia em sleeve, discutindo a avaliação pré-anestésica e a estratégia anestésica.

Pompe’s disease is caused by a lack of acid α-glucosidase enzyme which hydrolyses the lysosomal glycogen. This builds up in several tissues, with cardiac and skeletal muscles being the most affected. The anesthetic monitoring of patients with this pathology is a real challenge. The authors report the clinical case of a 56 year-old woman with Pompe’s disease with diaphragmatic paresis, who underwent a sleeve gastrectomy, and discuss the pre-anesthetic and anesthetic strategies.

*Estudante da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa a estagiar no Hospital da Luz no âmbito da unidade curricular opcional Estágio de Especialidade

MARGARIDA FONSECA*CRISTINA PESTANA

JOSÉ BISMARCKPAULO ROQUETE

Departamentos de Anestesiologia e de Cirurgia Geral

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

A doença de Pompe, também designada doença de armazenamento do glicogénio tipo II ou defi ciência em ácido maltase, é uma doença rara - com uma incidência de um caso em cada 40.000 pessoas - e progressiva, que se deve a um défi ce de ácido-α-glucosidade, enzima que hidrolisa o glicogénio lisossomal. O glicogénio lisossomal acumula-se em vários tecidos, especialmente nos músculos esquelético e cardíaco. A atividade enzimática residual correlaciona-se inversamente com a gravidade da patologia.1

A doença de Pompe é muito heterogénea no que se refere à idade de início da sintomatologia, à progressão da doença e ao envolvimento orgânico.2 De acordo com a idade de aparecimento dos sintomas, é classifi cada em três formas: infantil, juvenil e do adulto. A forma infantil manifesta-se nos primeiros meses de vida; é caracterizada por cardiomegália com cardiomiopatia hipertrófi ca, hepatomegalia, hipotonia e fraqueza muscular, com morte por

falência cardiorrespiratória no primeiro ano de vida. Na forma juvenil, as crianças apresentam miopatia proximal progressiva, com ligeiro ou nenhum envolvimento cardíaco e morte antes da terceira década de vida. A forma adulta pode manifestar-se em qualquer idade, sendo caracterizada por miopatia proximal progressiva com envolvimento diafragmático e dos músculos acessórios da respiração e sem patologia hepática ou cardíaca associada.1-3 O envolvimento muscular sistémico que caracteriza a doença de Pompe tem várias implicações anestésicas. As singularidades da avaliação pré-anestésica e do controlo anestésico nestes doentes, bem como o facto de estarem descritos poucos casos de anestesia geral em adultos com doença de Pompe, justifi cam a descrição do caso de uma doente de 56 anos de idade com paresia diafragmática submetida a uma gastrectomia em sleeve.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 56 anos de idade, proposta para gastrectomia em sleeve. Para além da obesidade mórbida (índice de massa corporal, IMC - 43 kg/m2), que motivou o procedimento cirúrgico em causa, apresentava como comorbilidades hipertensão arterial, diabetes mellitus não dependente de insulina, hipotiroidismo e doença de Pompe (variante adulta) com paresia diafragmática.

Nos antecedentes pessoais cirúrgicos referia herniorrafi a, laminectomia sagrada, correção de dedo em gatilho, adenoidectomia sob anestesia geral e colocação de balão intragástrico sob sedação, procedimentos que foram realizados sem intercorrências. Além de terapêutica de substituição enzimática para a doença de Pompe, a doente estava medicada com orlistato, levotiroxina sódica, sinvastatina e ezetimibe por via

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IMPLICAÇÕES ANESTÉSICAS DA DOENÇA DE POMPE. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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oral, e com fl uticasona com salmeterol e brometo de ipatrópio inalados.

Da avaliação pré-operatória destacava-se: - Mallampati II, boa mobilidade da coluna cervical, ausência de macroglossia;

- Baixa tolerância ao esforço, com menos de quatro equivalentes metabólicos (EqMET); o ecocardiograma revelou válvulas cardíacas sem alterações, ventrículo esquerdo não hipertrofi ado e não dilatado, boa função sistólica global, fração de encurtamento de 37%, fração de ejeção de 66%;

- Provas de função respiratória com padrão obstrutivo não reversível com broncodilatador, diminuição da capacidade de difusão; estudo polissonográfi co do sono não sugestivo de síndrome de apneia obstrutiva do sono; a doente realizava BiPAP noturno com pressões de 16/6 mmHg;

- Radiografi a torácica com ligeiro reforço hilar;

- Avaliação laboratorial com hemo-globina de 14,5 g/dL, creatinina de 0,58 mg/dL; glicemia de 166 mg/dL, aspartato aminotransferase (AST) de 55 UI/L, alanina aminotransferase (ALT) de 115 UI/L e gama glutamiltransferase (GGT) de 109 UI/L, eutiroidismo.

A doente foi considerada apta para a cirurgia, tendo sido submetida a gastrectomia em sleeve sob anestesia geral endovenosa pura.

A anestesia foi induzida com etomidato e mantida com fentanil e propofol,

tendo sido utilizado rocurónio em bólus de acordo com a monitorização do bloqueio neuromuscular por train of four (TOF). Além da monitorização do bloqueio neuromuscular, realizou--se monitorização standard com ele-trocardiograma (ECG), saturação periférica de O2, concentração máxima de dióxido de carbono no fi nal da expiração (etCO2), pressão arterial (PA) não invasiva, bem como medição do índice biespectral (BIS), PA invasiva, pressão venosa central (PVC) e débito cardíaco (DC) e resistências vasculares periféricas (RVP) por Lidco Rapid®.

Fez correção de hipocaliemia inicial, antibioterapia profi lática para a infeção do local cirúrgico com cefazolina (2 g por via endovenosa) e foi preenchida com 1.500 mL de cristaloides.

Verifi cou-se estabilidade hemodinâmica durante todo o procedimento, bem como estabilidade ventilatória com etCO2, saturação periférica de O2 e gasimetrias arteriais dentro dos limites normais e temperatura esofágica também dentro dos limites normais.

No fi nal do procedimento cirúrgico, além da reversão da hipnose anestésica, procedeu-se à reversão do bloqueio neuromuscular com sugammadex, tendo a doente sido transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) em ventilação espontânea, hemodinamicamente estável e sem défi ces neurológicos aparentes.

No pós-operatório não houve inter-corrências. A doente teve alta da UCI às 24 horas e alta hospitalar às 72 horas do pós-operatório.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

DISCUSSÃOGeralmente, a anestesia locorregional é recomendada com sendo a melhor opção em caso de doença muscular, como a doença de Pompe.4 No caso clínico apresentado, a cirurgia a que a doente seria submetida impedia a utilização dessa técnica anestésica, exigindo uma anestesia geral. Dado o elevado risco anestésico, é aconselhada nestes doentes a monitorização standard com ECG de cinco derivações e a medição da PA invasiva com cateter arterial.1 Além da monitorização recomendada, a equipa de anestesiologia responsável pelo caso preferiu monitorizar, ainda, a PVC, o DC e a RVP por Lidco Rapid®.

Devido à doença muscular subjacente, os indivíduos com doença de Pompe são mais sensíveis ao bloqueio neuromuscular. A utilização de rocurónio aumenta o risco de curarização residual e consequente necessidade de ventilação mecânica pós-operatória, apesar de diminuir as necessidades metabólicas e prevenir a assincronia ventilatória. Pelo elevado risco de rabdomiólise e hipercaliemia, devem ser evitados fármacos como a succinilcolina. Devem ser tomadas as precauções necessárias para a possível ocorrência de hipertermia maligna, nomeadamente com a preparação de dantroleno e com a presença de soros gelados e mantas de arrefecimento no bloco operatório.1,4,5,6

A disfunção cardíaca, frequente nos doentes com a variante infantil da doença, pode resultar em isquemia miocárdica e/ou diminuição do débito cardíaco durante a anestesia. Pretende--se, nesse contexto, que sejam mantidas pressões de enchimento ventricular

elevadas, de forma a não diminuir a pré-carga, e resistências vasculares periféricas normais a elevadas, para assegurar uma perfusão coronária normal. Para indução anestésica recomenda-se a utilização de etomidato ou ketamina. Geralmente, os agentes anestésicos inalatórios provocam diminuição da resistência vascular periférica e aumento do risco de disritmia cardíaca, devendo ser, por isso, evitados. O propofol, ao diminuir a pressão arterial sistémica e a resistência vascular periférica, aumenta o risco de isquemia cardíaca, devendo ser utilizado com precaução. Recomenda- -se um preenchimento vascular vigoroso, de forma a prevenir a hipovolemia que poderá exacerbar o gradiente dinâmico no trato de saída do ventrículo esquerdo, em caso de hipertrofi a ventricular.1,4,5,7 No caso clínico descrito, o ecocardiograma revelava ausência de hipertrofi a ventricular, com boa função sistólica global; no entanto, foram tomadas medidas preventivas como a utilização de anestesia geral endovenosa pura e monitorização invasiva, nomeadamente da PA, DC e RVP.

A realização de provas funcionais respiratórias deve fazer parte da avaliação pré-operatória, de modo a conhecer-se, com maior rigor, o grau de compromisso respiratório. Geralmente, verifi ca-se diminuição dos volumes pulmonares, devida a fraqueza diafragmática em estadios avançados. Os refl exos da tosse e deglutição podem também estar debilitados pela fraqueza muscular, o que aumenta o risco de atelectasia, aspiração e pneumonia no pós-operatório. No presente caso clínico, a doente efetuara terapêutica com BiPAP noturno para

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IMPLICAÇÕES ANESTÉSICAS DA DOENÇA DE POMPE. A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os riscos anestésico e cirúrgico são condicionados, geralmente, não só pelo procedimento cirúrgico, mas também pelas comorbilidades associadas. A evolução das áreas cirúrgica e anestésica confronta muitas vezes o anestesista com patologias associadas e fatores de risco frequentes e também com doenças

corrigir a hipoventilação causada pela paresia diafragmática e assim se procedeu no pós-operatório imediato. As comorbilidades desta doente justifi caram,

por critérios de segurança, a permanência em Unidade de Cuidados Intensivos nas primeiras horas do pós-operatório.

BIBLIOGRAFIA

1. Kishnani PS, Steiner RD, Bali D, et al. Pompe disease diagnosis and management guideline. Genetics in Medicine 2006;8(5):267-88. 2. Di Rocco M, Buzzi D, Tarò M. Glycogen storage disease type II: clinical overview. ActaActa Myologica 2007;26:42-4. 3. TePas E. Lysosomal acid maltase defi ciency (glycogen storage disease type II, Pompe disease). www.uptodate.com, consulta em junho de 2012. 4. Kim WS, Cho AR, Hong JM, et al. Combined general and epidural anesthesia for major abdominal surgery in a patient with Pompe disease. J Anesth 2012;24:768-73.

5. McFarlane HJ, Soni N. Pompe’s diease and anaesthesia. Anaesthesia 1986;41:1219-24. 6. Bismarck J, Pestana C. Procedimentos de emergência para casos de hipertermia maligna. Protocolos do Departamento de Anestesiologia Hospital da Luz, 2009. 7. Stoelting RK, Miller RD. Basics of Anesthesia, Philadelphia: Churchill Livingstone, 2000:24.

raras. Assim, a partilha entre pares da experiência com doenças raras, como a doença de Pompe, é essencial, pois permite que o médico melhore o seu conhecimento e atue com mais segurança, o que contribui para a diminuição da morbimortalidade dos procedimentos.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

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A IMPORTÂNCIA DA ANESTESIOLOGIA NA MEDICINA DO PERIOPERATÓRIO NA DOENÇA DE VON WILLEBRAND

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RESUMO Abstract

A IMPORTÂNCIA DA ANESTESIOLOGIA NA MEDICINA DO PERIOPERATÓRIO NA DOENÇA DE VON WILLEBRAND The role of anesthesiology in perioperative medicine in von Willebrand’s disease

Os autores apresentam o caso clínico de uma doente com estenose pré-oclusiva sintomática da artéria carótida interna direita, proposta para endarterectomia da bifurcação carotídea e em cuja avaliação pré-anestésica foi formulado o diagnóstico de doença de Von Willebrand. Neste contexto, discutem a estratégia anestésica nestes doentes e as abordagens implementadas. Concluem que este caso é mais um exemplo revelador de como uma estratégia anestésica perioperatória adequada condiciona signifi cativamente o sucesso do procedimento cirúrgico.

The authors report the clinical case of a woman with a symptomatic pre-occlusive stenosis of the right internal carotid artery, scheduled for endarterectomy of the carotid bifurcation, and whose pre-anesthetic evaluation allowed the diagnosis of von Willebrand’s disease. In this context, the authors discuss the anesthetic strategy in these patients and the implemented approaches, concluding that this is an example of how an adequate perioperative anesthetic strategy can signifi cantly infl uence the surgical procedure outcome.

CRISTINA PESTANARODRIGO ROQUETTE*

JOÃO VALENTE*HUGO CORREIA*JOSÉ BISMARCK

ELISA VEDESAUGUSTO MINISTRO

GERMANO DO CARMO

Departamentos de Anestesiologia, de Medicina Interna e Medicina Intensiva e de Cirurgia Vascular

*Estudantes da Faculdade de Medicina da Lisboa a estagiar no Hospital da Luz no âmbito do Programa BESup

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O prognóstico de muitos procedimentos cirúrgicos depende da interação entre a reserva fi siológica do doente e a resposta infl amatória provocada pela agressão cirúrgica, resposta esta modulada pelo tipo, qualidade e estratégia anestésica e cirúrgica.1 O objetivo da Anestesiologia como medicina do perioperatório é proporcionar a melhor avaliação e preparação pré-operatórias, a manutenção da homeostasia intraoperatória e os cuidados pós-operatórios adequados ao sucesso da cirurgia.

A doença de Von Willebrand é a doença hereditária da coagulação mais frequente, atingindo cerca de 1% da população em geral.2 Deve-se a uma mutação no braço curto do cromossoma 12 e caracteriza-se por uma diminuição dos níveis do fator de von Willebrand.

Este fator é responsável pela adesão das plaquetas ao endotélio lesado, tendo também uma ação primordial na formação do trombo plaquetário pela aglutinação das plaquetas entre si. É também responsável pela estabilidade do fator VII. O quadro clínico típico da doença de Von Williebrand caracteriza-se por uma discrasia hemorrágica de intensidade e gravidade variáveis, manifestando-se mais frequentemente por hemorragias mucocutâneas após traumatismos diversos como, por exemplo, feridas (em cerca de 35% dos casos), pós-parto (25% dos casos) e pós-cirurgia (20% dos casos).3 Uma avaliação pré-operatória correta e a decisão do timing cirúrgico minimizam as complicações perioperatórias nestes doentes.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 83 anos de idade, com história recente de múltiplos episódios de amaurose fugaz, em cuja investigação etiológica foi feito o diagnóstico de estenose pré-oclusiva da carótida interna direita (>90%), tendo sido proposta para endarterectomia e enviada a consulta de Anestesiologia, para estratifi cação do risco e otimização pré-operatória.

Como antecedentes pessoais médicos relevantes referia hipertensão arterial (HTA), história de alergia alimentar a favas (com dois episódios de edema da glote) mas sem carência da desidrogenase da glucose-6-fosfato, bem como alergia

ao telmisartan e à efedrina. Negava diabetes mellitus e hábitos tabágicos. Não tinha história de episódios coronários agudos, não referia ortopneia nem dispneia paroxística noturna e tinha uma boa tolerância ao esforço (>8 equivalentes metabólicos, MET).

Como antecedentes cirúrgicos referia:

- Amigdalectomia aos 18 anos de idade, tendo tido então uma grande hemorragia, que justifi cou um internamento prolongado, a colocação de drenos e o recurso a selantes hemostáticos;- Histerectomia aos 50 anos de idade, tendo também tido perdas hemáticas

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A IMPORTÂNCIA DA ANESTESIOLOGIA NA MEDICINA DO PERIOPERATÓRIO NA DOENÇA DE VON WILLEBRAND

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consideráveis que justifi caram poli-transfusão (10 unidades);- Colecistectomia aos 76 anos, com necessidade de converter laparoscopia a laparotomia por hemorragia não controlada.

Apurou-se ainda que a doente estava medicada com ácido acetilsalicílico (100 mg/dia) desde o diagnóstico da estenose pré-oclusiva da carótida.

O exame objetivo foi normal, com exceção de sopro na região cervical direita e pressão arterial de 180-90 mmHg. Perante esta história foi posta a hipótese diagnóstica de doença de Von Willebrand e pedidos os seguintes exames complementares de diagnóstico:

- Estudo completo da coagulação (incluindo tempo de hemorragia); - Teste da ristocetina; - Doseamento de fator VIII.

Entre os resultados dos exames comple-mentares de rotina já disponíveis na altura da consulta, salientavam-se:

- Eletrocardiograma (ECG) revelando ritmo sinusal sem alterações signifi cativas;- Ecocardiograma, que revelou doença fi brocalcifi cante mitroaórtica com regurgitação ligeira, sem compromisso hemodinâmico e boa função sistólica global. O procedimento cirúrgico proposto foi protelado, apesar da sua urgência, até esclarecimento da eventual patologia hematológica.

Na investigação realizada verifi cou--se que os resultados do hemograma (incluindo número de plaquetas) e função renal eram normais. Quanto aos parâmetros de coagulação, o tempo de protrombina (TP) era normal, o tempo de tromboplastina parcial (APTT)

Resultados Valores de referência 12,0 12,0 - 15,0

4,19 3,8 - 4,8 36,0 36,0 - 46,0

85,9 80,0 - 97,0 28,6 27,0 - 32,0

33,3 32,0 - 36,0 14,0 11,6 - 14,0

5,1 4,0 - 10,0 52,0 - 2,64 40,00 - 80,00

3,6 - 0,18 1,00 - 6,00 0,6 - 0,03 0,00 - 2,00 31,4 - 1,59 20,00 - 40,00 12,4 - 0,63 2,00 - 10,00

43,00 60,00 - 200,00

Parâmetro (unidade) Hemoglobina (g/dL) Eritrócitos (x1012/L) Hematócrito (%) Volume globular médio, VGM (fL) Hemoglobina globular média, HGM (pg) Concentração de HGM, CHGM (g/dL) Índice de distribuição eritrocitária, RDW (%) Leucócitos (x109/L) Neutrófi los (% - 109/L) Eosinófi los (% - 109/L) Basófi los (% - 109/L) Linfócitos (% - 109/L) Monócitos (% - 109/L) Act. cofator da ristocetina (%)

Quadro I Hematologia: resultados do hemograma e cofator da ristocetina

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

estava ligeiramente prolongado, o resultado do teste da ristocetina era de 40% (para um limite mínimo de 60%) e o fator VIII estava diminuído (23%) (Quadros I a III). Estes valores confi rmaram o diagnóstico de doença de von Willebrand (tipo I), sendo então iniciada terapêutica com desmopressina (DDAVP) intranasal, na dose de 0,2 g/kg de peso corporal/dia, durante os quatro dias anteriores à data prevista para a intervenção cirúrgica. No dia previsto, sob anestesia geral balanceada, a doente foi submetida a endarterectomia carotídea direita (Fig. 1).

Na indução anestésica foram admi-nistrados 100 mg de hidrocortisona. O procedimento foi realizado sem intercorrências, com estabilidade hemodinâmica, embora com perfi l hipertensivo. O tempo de clampagem carotídea foi de 12 minutos, tendo sido feita heparinização sistémica pré-clampagem com 30 U de heparina não-fracionada (HNF)/kg de peso corporal.

No fi nal, apesar dos cuidados instituídos relativamente à hemostase, foi decidido manter a intubação orotraqueal e a ventilação mecânica durante 12 horas, até certifi cação absoluta da não existência de diátese hemorrágica e consequente compressão da via aérea. O dreno cervical foi retirado às 24 h de pós-operatório.

Parâmetro (unidade)Tempo de protrombina (segundos) Percentagem

International normalized ratio (INR)Tempo de tromboplastina parcial ativada, aPTT (segundos)

Fibrinogénio (fator I) (mg/dL)Fator VIII (%)Proteína S (funcional) (%)

Parâmetro (unidade)Glicemia (mg/dL)Uremia (mg/dL)Creatinemia (mg/dL)

Resultados11,5097,701,00

38,40

364,4023,058,1

Resultados8244

0,77

Valores de referência10,30 - 12,80

82,00 - 121,002,0 - 3,5

23,00 - 31,80

180,00 - 360,0050 - 15052 - 118

Valores de referência75 - 110

<500,60 - 1,30

Quadro II Hematologia: parâmetros de coagulação

Quadro III Patologia clínica

Fig. 1 Peça operatória da endarterectomia carotí-dea direita. A branco representam-se os diâmetros da artéria carótida externa permeável (CE) e da artéria carótida interna com estenose pré-oclusiva (ponta de seta)

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A IMPORTÂNCIA DA ANESTESIOLOGIA NA MEDICINA DO PERIOPERATÓRIO NA DOENÇA DE VON WILLEBRAND

259

No pós-operatório foi mantida a terapêutica com DDAVP durante 24 horas e foram transfundidos 2 pools de crioprecipitado de fatores.

A doente teve alta da Unidade de Cuida-dos Intensivos (UCI) às 48 horas do pós-

-operatório e alta hospitalar ao quarto dia, sem défi ces neurológicos, sem diátese hemorrágica, hemodinamicamente está-vel, medicada com dipiridamol 150 mg/dia e referenciada à consulta de Cirurgia Vascular.

DISCUSSÃOComo referido anteriormente, a doença de Von Willebrand é a alteração hereditária da coagulação sanguínea mais frequente, atingindo cerca de 1% da população em geral.2 São sinais sugestivos desta doença as hemorragias mucocutâneas pós-traumatismos, no-meadamente cirúrgicos.

No caso clínico descrito, a doente tinha tido diversas complicações hemorrágicas anteriores, sem que tivesse sido esclarecida a sua etiologia.

A estenose pré-oclusiva da carótida é uma causa importante de acidente vascular cerebral (AVC). As estenose superiores a 70% e sintomáticas têm um risco de 26% de desenvolver um acidente vascular cerebral major com terapêutica conservadora, comparativamente a um risco de 2,5% se submetidas a resolução cirúrgica. O estudo NASCET refere ainda que nos indivíduos tratados de forma conservadora, o risco de AVC fatal é superior a 13,1%.4

Na doente descrita neste trabalho, com uma estenose pré-oclusiva (>90%) sintomática, a indicação cirúrgica era inequívoca.

A patologia hematológica desta doente, aliada à necessidade de heparinização pré-clampagem intra-operatória da carótida, aumentava signifi cativamente o risco de hemorragia e compressão da via aérea no pós-operatório da cirurgia. Em centros de grande experiência estima--se um risco de 1,4% nos doentes sem patologias hematológicas.

Face ao exposto e perante os antecedentes pessoais da doente, foi sem dúvida de extrema importância esclarecer a doença hematológica e atuar de modo a minimizar as complicações. Também a manutenção da intubação orotraqueal nas primeiras 12 horas do pós-operatório constituiu uma atitude de segurança para minimizar o potencial risco de compressão da via aérea.

CONSIDERAÇÕES FINAISA adequada avaliação pré-operatória, o esclarecimento e a otimização de comorbilidades permitem ao anestesiologista estratifi car o risco

anestésico e cirúrgico e minimizá-lo. A manutenção da homeostasia intra--operatória e o seguimento no pós- -operatório contribuem para assegurar

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

BIBLIOGRAFIA1. Pearse RM,Holt PJ,Grocott PJ.Managing perioperative risk in patients undergoing elective non-cardiac surgery.Br Med J 2011;343:d57592. Rodeghiero F,Castman G, Dini E. Epidemiological Investigation of the prevalence of Von Willebrand’s disease. Blood 1987;69(2):454-9.3. Perutelli P, Biglino P, Mori P. Von Willebrand Factor: Biological Functions and molecular Defects. Pediatric Hematology and Oncology 1997;14(6):499-512.4. Billee J, Fenburg W, Castelado J, et al. Guidelines for carotid endarterectomy: a statement for healhcare professionals from a special writing group of stroke. Council, American Heart Association. Circulation 1998;97:501-9.

5. Shakespeare WA, Lanier WL, Perkins WJ, Pasternak JJ. Airway management in patients who develop neck Hematomas after carotid endarterectomy. Anesth Analg. 2010;110(2):588-93.6. Dinis da Gama A. O exercício da cirurgia é “cosa mentale”. Rev Port Cir Cardiotorac Vasc 2008;XV(2):71-2.

o êxito dos procedimentos e honram a relação impar entre os anestesiologistas e o doente. Como refere Dinis da Gama ”…doente o qual, anestesiado e indefeso, desprovido de sensibilidade,

inteligência e livre arbítrio, permite que outrem, em quem confi a, penetre e modifi que a sua interioridade, para a obtenção de alívio ou cura dos males de que padece”.6

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UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CT

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RESUMO Abstract

UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CT Asymptomatic tuberculous pleuritis identifi ed with 18F-FDG PET-CT. Case report

A fl uorodesoxiglucose marcada com Flúor-18 (18F-FDG) é usada amplamente para o diagnóstico, estadiamento e seguimento de tumores malignos, devido à sua acumulação nas células neoplásicas. A fl uorodesoxiglucose acumula-se tam-bém nas células do sistema imunitário metabolicamente ativas, o que lhe confere valor na investigação de doenças infl amatórias e infecciosas. Os autores descrevem o caso clínico de um doente de 74 anos de idade, assintomático, que recorreu a uma consulta de cirurgia do Hospital da Luz, após ter realizado, a pedido do seu médico de família, uma tomografi a computorizada torácica, que revelou a presença de uma massa pulmonar esquerda associada a derrame pleural ipsilateral e múltiplos nódulos pulmonares bilaterais. Dados os ante-

18F-fl uorodeoxyglucose is widely used in diagnosis, staging and follow-up of malignant neoplasms, due to its accumulation in malignant cells. It also accumulates in metabolically active cells of the immune system, making it a valuable tool in the study of infl ammatory and infectious diseases. The authors report the clinical case of a 74 year-old patient with the diagnosis of multiple pulmonary nodules and ipsilateral pleural effusion in a CT-scan. Due to the past history of smoking and to the radiological characteristics of the largest lesion, a malignant lung neoplasm was considered. During the diagnosis workup, a bronchofi broscopy was performed in which no neoplastic cells were identifi ed and no alcohol-acid resistant bacilli were detected. A staging

VANESSA SOUSACRISTINA LOEWENTHAL

MARIA DO ROSÁRIO VIEIRAGRAÇA FREITAS

FERNANDO MARTELO

Departamentos de Medicina Molecular, de Pneumologia e de Cirurgia Cardiotorácica

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

No âmbito clínico, a maioria das tomografi as por emissão de positrões com tomografi a computorizada (PET-CT) com fl uorodesoxiglucose marcada com Flúor-18 (18F-FDG) que é solicitada destina-se ao diagnóstico, estadiamento e seguimento de neoplasias malignas. No entanto, trata-se também de uma técnica cada vez mais utilizada no diagnóstico e seguimento de possíveis processos infl amatórios e infecciosos, pela capacidade que as células do sistema imunitário metabolicamente ativas têm, como os macrófagos, de reter a fl uorodesoxiglucose no meio intracelular.

Em Portugal, a tuberculose tem uma incidência importante, quando comparada com a dos restantes países europeus. Dados epidemiológicos de 2011 referem 2.231 novos casos, o que remete para uma incidência de 21/105.1

Os autores descrevem um caso clínico de pleurite tuberculosa assintomática, cujo diagnóstico foi orientado por PET-CT com 18F-FDG, em que a marcada atividade metabólica da pleura contrasta com a baixa atividade da doença parenquimatosa.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, de 74 anos de idade, caucasiano, autónomo nas atividades de vida diária, assintomático, que recorreu

à consulta de Cirurgia Torácica do Hospital da Luz, após ter realizado uma tomografia computorizada (TC) torácica a pedido do seu médico de

cedentes tabágicos e as características radiológicas da massa, admitiu-se, inicialmente, poder tratar-se de uma neoplasia maligna do pulmão, estadio IV. No decurso da investigação o doente realizou uma broncofi broscopia. A histologia não identifi cou alterações e a pesquisa de bacilos ácido-álcool resistentes nas secreções brônquicas foi negativa. A PET-CT com 18F-FDG revelou uma marcada atividade metabólica na pleura esquerda, com menor expressão metabólica na massa pulmonar, justifi cando a realização de uma biópsia. A avaliação histológica da pleura demonstrou infeção a Mycobacterium tuberculosis.

PET-CT with 18F-FDG revealed a markedly increased uptake in the whole left pleura and a relatively less uptake in the pleural mass/nodules, orienting the biopsy towards the pleura. Histological diagnosis of the pleura confi rmed a Mycobacterium tuberculosis infection.

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UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CT

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família. Esta TC (Fig. 1) revelara uma massa com 33 mm de diâmetro no lobo superior pulmonar esquerdo, associada a um discreto derrame pleural ipsilateral e a múltiplos micronódulos pulmonares dispersos bilateralmente.

Entre os antecedentes pessoais salientava-se consumo de tabaco quantificado em 50 UMA, hiper-tensão arterial, enfarte agudo do miocárdio aos 45 anos de idade, doença cerebrovascular (acidente isquémico transitório dois anos antes e acidente vascular cerebral isquémico um ano antes) com ligeira diminuição da força muscular no hemicorpo esquerdo, endarderectomia carotídea direita realizada há dois anos, doença pulmonar obstrutiva crónica e doença arterial periférica. O doente fazia medicação do foro cardiovascular.

Da restante anamnese não se destacavam outros aspetos de relevância patológica.

No exame objetivo, o doente apresentava-se vigil e colaborante, orientado no tempo e no espaço, com mucosas coradas e hidratadas, eupneico, apirético e hemodinamicamente estável. A auscultação cardiopulmonar não tinha alterações relevantes. Perante os antecedentes tabágicos importantes e as características imagiológicas da massa, foi admitido tratar-se de uma neoplasia maligna do pulmão, estadio IV. Foram solicitados exames complementares para confirmação diagnóstica e estadiamento.

Analiticamente registou-se anemia normocítica e normocrómica (he-moglobina de 10,7 g/dL, hema-

Fig. 1 TC torácica que mostra uma massa de aproximadamente 33 mm de maior eixo e múltiplos peque-nos nódulos pulmonares bilaterais

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

tócrito de 32,7%, volume globular médio de 94fL, hemoglobina globular média de 31 pg, concentração de hemoglobina globular média 33 g/dL), índice de distribuição eritrocitária de 15,5%, leucograma sem alterações, plaquetas 216 x 109/L, ureia de 49 mg/dL, creatinina de 1,15 mg/dL, ionograma sérico com sódio (Na+) de 146 mmol/L, potássio (K+) de 4,2 mmol/L e cloro (Cl -) de 108 mmol/L.

A broncoscopia não identifi cou sinais endoscópicos diretos de neoplasia. Revelou uma mucosa hiperemiada da árvore brônquica direita e alargamento do esporão de divisão B1+2/B3 da árvore brônquica esquerda. Foram realizadas biópsias e enviados produtos para bacteriologia e histopatologia. O resultado anatomopatológico das biópsias brônquicas revelou uma

infl amação ligeira não associada a alterações valorizáveis. Da avaliação das secreções brônquicas destacavam--se: células epiteliais <10/campo; polimorfonucleares >25/campo; fl ora saprófi ta rara, Ziehl-Neelsen negativo. O exame microbiológico cultural foi negativo e, nesta altura, aguardavam-se ainda os resultados do exame cultural para o bacilo de Koch.

Na PET-CT com 18F-FDG, realizada cerca 24 horas após a broncofi broscopia, concluiu-se que se tratava de uma doença hipermetabólica pleural esquerda com alguma nodularidade pulmonar bilateral também captante (embora com menor metabolismo), a merecer caracterização histológica. Evidencia-se também um discreto derrame pleural esquerdo (Fig. 2 e 3).

Fig. 2 Marcada atividade metabólica difusa de toda a pleura esquerda que contrasta com a baixa atividade da massa que motivou a vinda do doente à consulta cirurgia torácica e que se admitiu inicialmente tratar-se de uma neoplasia do pulmão em doente com antecedentes de importante carga tabágica

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UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CT

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Figura 3. Análise semiquantitativa: SUV (standard uptake value) máximo da pleura 12; SUV máximo da massa parenquimatosa 5

O doente realizou então uma VATS (video-assisted thoracoscopic surgery), na qual se verifi cou que a pleura parietal estava muito espessada, com cerca de meio centímetro, tornando o hemitórax esquerdo impenetrável. Procedeu-se ao alargamento da incisão e descolamento extra-pleural.

Nas biópsias pleurais esquerdas identifi cou-se um processo infl amatório crónico granulomatoso.

Os granulomas apresentavam necrose central e células gigantes multinucleadas, sendo altamente sugestivos de infeção por Mycobacterium tuberculosis. Não se identifi cou qualquer foco neoplásico.

Entretanto, o resultado do exame cultural das secreções brônquicas para micobactérias fi cou disponível e corroborou a hipótese de tuberculose, tendo identifi cado microrganismos do complexo Mycobacterium tuberculosis.

Os resultados do teste de sensibilidade aos antibióticos mostrou sensibilidade à estreptomicina, isoniazida, rifampicina, etambutol e pirazinamida.

Perante o diagnóstico de pleurite tuberculosa, o doente foi referenciado para o centro de diagnóstico pneumológico, iniciando terapêutica específi ca, que mantém até ao presente.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

O envolvimento pleural pela tuberculose, que poderá surgir na sequência de uma tuberculose primária ou pós-primária, apresenta-se frequentemente sob a forma de derrame pleural.2 O empiema, o espessamento pleural e a calcifi cação são outras formas de envolvimento pleural e, habitualmente, coexistem com doença parenquimatosa.2

A tuberculose pleural pode resultar da rotura subpleural de focos caseosos do pulmão para o espaço pleural, da disseminação hematogénea ou da contaminação através de gânglios linfáticos adjacentes infetados.3-5

Numa PET-CT com 18F-FDG, a infeção por Mycobacterium tuberculosis pode mimetizar neoplasias malignas, gerando resultados falsos positivos, uma vez que os granulomas que caracterizam a infeção são ricos em macrófagos ativados e linfócitos com uma elevada afi nidade para a glucose.

Quando o envolvimento é pa-renquimatoso, o diagnóstico diferencial impõe-se relativamente a uma neoplasia maligna do pulmão, ou a outras infeções. Quando o envolvimento é pleural, nomeadamente se a pleura se encontrar espessada e discretamente nodular, a diferenciação diagnóstica deve ser feita com mesotelioma maligno, linfoma pleural, metástases pleurais hematogéneas, timoma maligno e, em casos raros, sarcoidose.2,3

A confi rmação diagnóstica é obri-gatória e o tratamento da infeção por Mycobacterium tuberculosis é muito

DISCUSSÃObem sucedido, particularmente nos doentes imunocompetentes.6

A apresentação clínica da pleurite tuberculosa pode ser subtil ou abrupta e severa;7 a forma assintomática é rara.8 Os sintomas referidos com maior frequência na literatura médica incluem tosse (71 a 94%), febre (71 a 100%), toracalgia (78 a 82%) e dispneia.8 Habitualmente, a tosse é não produtiva, principalmente se não coexistirem lesões pulmonares associadas. Podem ainda associar-se hipersudorese noturna, cansaço e perda de peso. O exame físico revela o murmúrio vesicular diminuído e macissez à percussão, se coexistir derrame associado. O atrito pleural está descrito em 10% dos doentes.

Nem sempre é fácil diagnosticar uma pleurite tuberculosa6 pois os achados típicos, como um exsudado pleural rico em linfócitos associado a granuloma necrótico caseoso na biópsia pleural, Ziehl Neelsen positivo, Lowenstein positivo e teste de Mantoux positivo, não estão sempre presentes.9 Assim, o diagnóstico de pleurite tuberculosa é habitualmente estabelecido pela análise do líquido pleural ou amostras de biópsia pleural, sendo esta última superior.6

Recentemente, diversos investigadores têm-se debruçado sobre a utilidade de marcadores, como a adenosina deaminase (ADA), a lisozima, INF-a e outras citocinas para melhorar a efi ciência diagnóstica porém, o diagnóstico mantém-se complexo.9

Em presença de um derrame pleural passível de toracocentese, esta técnica

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UM CASO DE PLEURITE TUBERCULOSA ASSINTOMÁTICA IDENTIFICADA COM 18F-FDG PET-CT

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BIBLIOGRAFIA1. Programa nacional de luta contra a tuberculose “STOP TB 2012”; www.dgs.pt2. Sciammas FD, Shetty S, Navani S. Multiple pleural nodules. Chest 1971;59:673. 3. Cabrera A, Klein JS. Bilateral pleural masses and shortness of breath associated with multiple myeloma. Chest 1997;111:1750-3.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

deverá ser realizada. A contagem celular (entre 100-5.000 células/mL) apresenta, habitualmente, em cerca de dois terços dos casos, mais de 90% de linfócitos.10 O líquido pleural contém um conteúdo proteico elevado (>5 g/dL) ou >50% da concentração de proteínas plasmáticas,7,11 uma concentração de glucose baixa e um valor para a desidrogenase láctica (LDH) superior a 200 U/dL.8 O exame direto com coloração Ziehl-Neelsen requer uma concentração bacilar de 10.000/mL para ser considerado positivo. Na tuberculose primária a presença de microrganismos no espaço pleural é limitada e portanto as culturas raramente são positivas (0-1%).7,10 O Mycobacterium tuberculosis é isolado

A infeção por Mycobacterium tuberculosis é causa de resultados falsos positivos nos doentes em que há suspeita de neoplasias malignas e que realizam PET-CT com 18F-FDG. Os resultados na PET-CT devem-se à composição dos granulomas, que são ricos em macrófagos ativados e em linfócitos com alta afi nidade para a glucose. A análise semi-quantitativa de SUV (standard

por cultura do líquido em 20 a 40% dos doentes com pleurite tuberculosa. As culturas requerem, habitualmente, duas a seis semanas, mas recorrendo ao BACTEC (radiometric mycobactrium culture system) é possível dispor do resultado em cerca de 18 dias .11

A pesquisa de bacilos ácido-álcool resistentes (BAAR) na expetoração raramente é positiva nos casos de tuberculose primária e as culturas são positivas em 25-33% dos casos. Em contrapartida, nas situações de reativação, a pesquisa de BAAR é positiva em 50% dos casos e a cultura em 60%. A biópsia pleural deve ser realizada sempre que se suspeite de pleurite tuberculosa.12

uptake value) e a técnica de imagem em dual time não permitem seguramente diferenciar neoplasias malignas da tuberculose ativa. No entanto, são de extrema utilidade, pois orientam a avaliação subsequente através da determinação da atividade metabólica da doença e da sua extensão, permitindo ainda detetar focos ocultos distantes e avaliar a resposta à terapêutica.

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

6. Patel A, Choudhury S. Pleural tuberculosis presented as multiple pleural masses: An atypical presentation. Lung India 2013;30(1):54-6.7. Villegas W, Labrada LA, Saravia NG. Evaluation of polymerase chain reaction, ADA and interferon-a in pleural fl uid for the differential diagnosis of pleural tuberculosis. Chest 2000; 18:1355-64.8. Haa DW. Mycobacterial disease. In: Mandell principals and practice of infection disease. Churchill Livingston of Harcourt Health Science Co, 2000.9. Morehead RS. Tuberculosis of the pleura. Southern Medical Journal 1998;91:630-4.

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CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICAS

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RESUMO Abstract

CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICASPeriosteal chondroma. Review of the imaging features

A propósito de um caso clínico referenciado para o Hospital da Luz e recorrendo a imagens das quatro técnicas principais que fazem parte do arsenal da radiologia atual (radiologia convencional, tomografi a computorizada, ressonância magnética e ecografi a), os autores revêm as principais características das imagens dos condromas periosteais e relembram o seu diagnóstico diferencial (particularmente com o condrossarcoma periosteal), com o objetivo de ajudar o clínico, e também o anatomopatologista na missão conjunta de formular o diagnóstico correto e de delinear a estratégia cirúrgica mais apropriada.

The authors report the clinical case of a periosteal chondroma referred to Hospital da Luz and using images from the four major imaging techniques (conventional radiology, computed tomography, magnetic resonance and ultrasound) they review the main imaging features of this tumor and the characteristics that allow to shorten the differential diagnosis of its mimickers, with particular emphasis on its malignant counterpart, helping the clinician as well as the pathologist, in their mission of formulating an accurate fi nal diagnosis and outline the most appropriate surgical strategy.

P. DIANA AFONSOVASCO MASCARENHAS

AUGUSTO GASPARPEDRO OLIVEIRA

LUÍS CORREIARUI LAMPREIA

Centro de Imagiologia, Departamentos de Anatomia Patológica e de Ortopedia

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

Os tumores ósseos cartilaginosos primários, com exceção dos osteo-condromas (e de alguns en-condromas e condroblastomas), são desafi antes do ponto de vista de diagnóstico, dado que existe um espetro contínuo entre os achados imagiológicos e anatomopatológicos, desde os encondromas até aos condrossarcomas.1,2 Esta sobreposição é observada não apenas nos tumores cartilaginosos intramedulares, mas também nos justacorticais, como é o caso do condroma periosteal, sendo

vital o seu diagnóstico diferencial com o condrossarcoma periosteal e também com os osteossarcomas de superfície.

Torna-se assim importante que os radiologistas, os clínicos e os anatomopatologistas estejam familia-rizados com as características imagiológicas deste tipo de tumor para que, de forma interdisciplinar, consigam chegar ao diagnóstico fi nal correto e delinear a estratégia cirúrgica mais apropriada.

INTRODUÇÃO

CASO CLÍNICODoente do sexo feminino, de 13 anos de idade, caucasiana, recorreu à consulta de Ortopedia por tumefação no terço proximal interno da tíbia esquerda, com quatro meses de evolução. Não tinha queixas dolorosas nem história de episódios traumáticos. Os antecedentes pessoais eram irrelevantes. Os resultados laboratoriais foram incaracterísticos. Na abordagem diagnóstica inicial, realizou um estudo radiográfi co convencional, seguido de tomografi a computorizada

(TC) e de ressonância magnética (RM). Posteriormente, para confi rmação do diagnóstico, foi realizada uma biópsia guiada por ecografi a.

Na radiologia convencional, a tumefação traduziu-se por uma massa de tecidos moles justacortical, na vertente interna da metáfi se da tíbia proximal, de matriz parcialmente calcifi cada e de contornos ligeiramente lobulados, com cerca de 5,5 cm de dimensão craniocaudal (Fig. 1).

Fig 1. Expressão ra-diográfi ca da massa justacortical, com cal-cifi cações notadas

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CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICAS

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A tomografi a computorizada (TC) confi rmou a presença de uma lesão justacortical com matriz mineralizada, envolvida por líquido bursal dos tendões da pata de ganso. Não se visualizou destruição (break-off) da cortical óssea adjacente. Pelo contrário, havia duas pequenas áreas focais discretas de “scalloping” da cortical da tíbia (Fig. 2), com uma pequena exostose esboçando continuidade cortico-medular. Admitiu--se poder tratar-se de produção óssea

reativa a um tumor condral justacortical, circundado por duas erosões de pressão contíguas (dada a pequena dimensão relativamente ao componente de tecidos moles), embora no diagnóstico diferencial, pudesse traduzir um osteocondroma com bursa adjacente com osteocondromatose sinovial secundária. Por imagem são menos prováveis calcifi cações heterotópicas ou osteossarcoma de superfície.

Fig. 2 Representação 2D, corte axial de TC (A), e representação 3D Volume rendering por TC (B)

A B

A ressonância magnética (RM) revelou tratar-se de uma massa de hipersinal T2, hiposinal T1 e realce marginal, com focos lobulados de “void de sinal” no seu interior (calcifi cações). Visualizou- -se, melhor do que na TC, o líquido na bursa dos tendões da pata de ganso, onde se localizavam estes focos de “void de sinal”. Não havia continuidade nem envolvimento com a cavidade medular (Fig. 3). A globalidade dos achados favorecia uma natureza indolente e benigna desta lesão. Foi então realizada uma biópsia guiada por ecografi a com agulha 16 gauge, procedimento que decorreu sem complicações. A ecografi a

mostrou uma massa de tecidos moles sólida hipoecogénica, heterógenea, com calcifi cações grosseiras, condicionado um cone de sombra, junto aos tendões da pata de ganso, na vertente medial da tíbia esquerda (Fig. 4).

O resultado anatomopatológico revelou tratar-se de tecido de cartilagem hialina de estrutura lobular, bem circunscrito, com algum estroma fi broso adjacente, compatível com o diagnóstico de condroma periosteal. Foi programada a ressecção cirúrgica da massa tumoral (excisão local “em bloco”), com envio da peça operatória, composta

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CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ

macroscopicamente por quatro nó-dulos de aspeto cartilaginoso e com dimensões entre os 5 e 22 mm, alguns com matriz calcifi cada, para exame anatomopatológico (Fig. 5). O resultado microscópico mostrou tratar-se de uma proliferação cartilaginosa multinodular, revestida por uma pseudocápsula fi brosa, o que reconfi rmou o diagnóstico fi nal de condroma periosteal. A lesão foi excisada na totalidade e o pós- -operatório decorreu sem complicações.

Na primeira consulta após a cirurgia a doente apresentava-se clinicamente bem e não reportou qualquer intercorrência ocorrida no intervalo de tempo desde a intervenção.

Fig. 3 Coronal DP com supressão de gordura (A), e axial DP com supressão de gordura (B). É demonstra-do os “voids” de sinal (“calcifi cações”) com distensão da bursa anserina. Pelo comportamento indolente, condicionam erosão de pressão focal na cortical da tíbia adjacente (seta)

A B

Fig. 4 Corte de ecografi a (em coronal), que mostra várias calcifi cações intra-nodulares

Fig 5. Fase inicial da excisão em bloco do tumor (A) e o tumor excisado (B)

A

B

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CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICAS

273

DISCUSSAOOs condromas periosteais, benignos e malignos são, por defi nição, tumores de natureza cartilaginosa com origem na camada subperiosteal dos ossos,3 sendo esta localização justacortical, aliada às características imagiológicas típicas de qualquer tumor de natureza cartilaginosa, útil na formulação desta hipótese diagnóstica. Com efeito, estreita o diagnóstico diferencial, não apenas com as outras lesões de natureza condroide, mas também com lesões de superfície da linhagem osteoide (osteosarcomas periosteais e mesmo, paraosteais). No diagnóstico diferencial, há outras considerações a excluir, como calcifi cações heterotópicas, osteocondromas ou tumores de partes moles que condicionem erosões ósseas de pressão (incluindo metástases).

Os tumores cartilaginosos periosteais são relativamente raros (1 a 2% das neoplasias ósseas), sendo os condromas três a quatro vezes mais comuns que os condrossarcomas. Ocorrem, mais frequentemente, no sexo masculino, com uma relação 2:1, e na segunda a quarta décadas de vida, sendo os condrossarcomas mais tardios.3,4

Os condromas periosteais ocorrem mais frequentemente (dois terços dos casos) na metáfi se dos ossos tubulares, nomeadamente do úmero (predileção pela vertente externa do úmero proximal), fémur, tíbia, rádio e falanges do pé e da mão, enquanto a ocorrência de condrossarcomas periosteais se destaca no fémur.3

Os sinais e sintomas são insidiosos, mesmo nos tumores malignos, podendo

ser indolores, apresentar-se com dor ligeira ou edema.3

O estudo radiográfi co deve ser a primeira modalidade de imagem a ser usada, sendo esta a que mais informações fornece relativamente à natureza e à agressividade de qualquer tumor ósseo.5

O condroma periosteal apresenta-se tipicamente como uma lesão de tecidos moles, sólida, com epicentro fora do córtex da superfície óssea (“periosteal-based”) em topografi a justametafi siária ou, mais raramente, justadiafi sária. Geralmente é bem defi nido (podendo ter um fi no halo cortical periférico), com um diâmetro inferior a 3 cm, com matriz com calcifi cações de tipo condroide (em cerca de metade dos casos) e podendo condicionar erosões de “pressão” da cortical óssea adjacente (“saucerização”). Em resposta, o córtex do osso adjacente está muitas vezes espessado/esclerosado e com bordos elevados e butstressing marginal.3,4,6 A reação periosteal adicional, particularmente perpendicular (“hair-on-end”), está ausente, ao contrário do que acontece em alguns osteossarcomas de superfície, e não se visualiza um pedículo ósseo, ao contrário dos osteocondromas.7

A TC está indicada, principalmente, quando se pretende visualizar melhor a mineralização da matriz do tumor, defi nir melhor a extensão do envolvimento da cortical óssea e delinear a sua relação com estruturas ósseas complexas envolventes (por exemplo, a bacia ou a cintura escapular).

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A RM, em virtude do seu contraste de tecidos moles superiores, confi rma a natureza da lesão (mostra a morfologia lobulada e o hipersinal T2WI e intermédio em T1WI típico da lesões condroides) e está indicada no estadiamento locorregional de qualquer tumor músculo-esquelético, particularmente na defi nição da sua relação com estruturas neurovasculares envolventes.3,4,7 Um halo de hipossinal periférico é muitas vezes visualizado na RM, principalmente nas sequências T2* GRE. Após administração de contraste de gadolínio, pode ser notado um realce marginal e septal. O edema perilesional ou medular reativo é raro (tipicamente poupa a cavidade medular)

O tratamento de eleição para estes tumores é a ressecção em bloco. A curetagem tem risco de recorrência.

Diagnóstico diferencial

Condrossarcoma periosteal. Estes tu-mores ocorrem, tipicamente, num grupo etário diferente - na quarta e quinta décadas de vida -, são maiores (>5 cm), mais permeativos (ou seja, menos circunscritos), e podem ter extensão medular. Contudo, à semelhança dos seus pares intramedulares (encondromas e condrossarcomas de baixo grau de malignidade), há uma sobreposição de alguns achados imagiológicos, o que difi culta a distinção de tumores condroides benignos e malignos. Com base nos resultados de uma série de 22 tumores condroides periosteais,4 concluiu-se que o critério imagiológico mais fi ável na distinção relativamente a lesões condroides benignas é o seu tamanho.3,4,7

Osteosarcoma periosteal. É caracte-rizado pela presença de reação periosteal perpendicular ao córtex na radiologia convencional, maior frequência em idade jovem – segunda e terceira décadas de vida -, localização diafi sária e componente osteoblástico na análise histológica.7

Osteossarcoma paraosteal. Pode ser radiologicamente semelhante ao con-drosarcoma justacortical, ter uma localização anatómica semelhante (vertente posterior do fémur) e ocorrer no mesmo grupo etário - terceira e quarta décadas de vida. Contudo, o osteossarcoma paraosteal apresenta, geralmente, um pedículo à cortical óssea, invade o canal medular até 50% e tem uma extensa matriz osteoide, com pouco ou nenhum tecido cartilaginoso, que se traduz em distensão histológica destas lesões.7

Ossifi cação heterotópica. Também designada miosite ossifi cante, trata-se de uma lesão pseudotumoral extra-óssea (formação de osso e cartilagem nos tecidos moles). Frequentemente, está associada a um traumatismo anterior. Apresenta uma organização classicamente zonal, com maturação centrífuga gradual: calcifi cações/ossifi cação periférica (tecido maduro) com centro não-ossifi cado (tecido imaturo).

Osteocondroma. É o tumor ósseo benigno mais frequente, afetando cerca de 3% da população. Pode ser séssil ou pediculado, atinge preferencialmente a metáfi se e o joelho. Tipicamente, projeta-se no sentido distal à epífi se e condiciona alagarmento da metáfi se (“undertubulation”). Entre as suas características chave está a continuidade

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CONDROMA PERIOSTEAL. REVISÃO DAS CARACTERÍSTICAS IMAGIOLÓGICAS

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BIBLIOGRAFIA1. Reliability of histopathologic and radiologic grading of cartilaginous neoplasms in long bones. J Bone Joint Surg Am, 2007;89(10):2113-23.2. Melo I, Martínez V. Tumores oseos condroides: condromas versus condrosarcomas convencionales. Revista Chilena de Radiología 2005;11(4)170-8. 3. Douis H, Saifuddin A. The imaging of cartilaginous bone tumours. I. Benign lesions. Skeletal Radiology 2012;41(10):1195-212. 4. Robinson P, White LM, Sundaram,M, et al. Periosteal chondroid tumors: radiologic evaluation with pathologic correlation. AJR American Journal of Roentgenology 2013;177(5):1183-8.

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CONSIDERAÇÕES FINAISOs tumores músculo-esqueléticos são classifi cados histologicamente em função do tipo de tecido que apresentam. Os exames de imagem, e particularmente a TC e a RM, continuam a ser a modalidade de escolha na avaliação, estadiamento e seguimento dos doentes com estes tumores.

Embora alguns destes tumores possam ser facilmente reconhecidos pelas suas características imagiológicas (“don’t touch lesions”), a maioria é de natureza indeterminada ou apresenta sobreposição de achados imagiológicos com o equivalente maligno, sendo necessário recorrer a uma biopsia e avaliação histológica para formular o diagnóstico fi nal e delinear a estratégia cirúrgica.

cortico-medular e o cap cartilagíneo (<1 cm). Frequentemente podem ser complicados por bursas adventícias.

Raramente se desenvolvem focos de osteocondromatose sinovial nestas bursas adventícias.

Os tumores de natureza cartilaginosa (medulares e justacorticais) não são exceção. Acresce, neste caso, o facto de o próprio diagnóstico anatomopatológico ser desafi ante, com um espetro con-tínuo, desde os condromas até aos condrossarcomas, passando pela patologia osteocondromatosa sinovial, com inerente difi culdade diagnóstica.

Assim, torna-se fundamental que os radiologistas, os clínicos e anatomopatologistas estejam familia-rizados com as características imagiológicas destes tumores para que, de forma multidisciplinar, consigam limitar os diagnósticos diferenciais e formular um diagnóstico fi nal e uma estratégica cirúrgica apropriada.

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PATOLOGIA DA TIROIDE COMO FATOR DE RISCO PARA A CAPSULITE ADESIVA DO OMBRO

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RESUMO Abstract

PATOLOGIA DA TIROIDE COMO FATOR DE RISCO PARA A CAPSULITE ADESIVA DO OMBRO Thyroid disease as a risk factor for adhesive capsulitis of the shoulder

A capsulite adesiva do ombro é uma doença conhecida de há longa data, mas ainda de difícil compreensão quanto à sua etiologia e mecanismos de resolução. Existem múltiplos fatores de risco associados e a patologia da tiroide é um deles. Estão descritos alguns tratamentos que controlam essencialmente os sintomas álgicos, limitam as sequelas articulares e funcionais e, em alguns casos, encurtam o curso da doença. Os autores descrevem quatro casos clínicos que demonstram a diversidade do quadro clínico em doentes com capsulite adesiva associada a doenças da tiroide, com o objetivo de sensibilizar para a associação entre estas patologias e, assim, contribuir para o diagnóstico precoce e encaminhamento para um tratamento efi caz.

Adhesive capsulitis of the shoulder is a well known disease for years, but its etiology and mechanisms of resolution are not yet very well understood. There are multiple risk factors involved and thyroid disease is one of them. Many interventions have been devised for the treatment of this condition mainly, for reduction of pain, prevention of articular stiffness and functional limitations and in some cases, reduction of the natural course of the disease. The authors report four clinical cases with the diagnosis of adhesive capsulitis related to thyroid disease. Their purpose is to raise the awareness to the association between these diseases in order to render possible an early diagnosis and forward these patients to a proper and effective treatment.

JOÃO PINTO COELHONUNO MARTINS

PALOMA VALDIVIA

Departamento de Medicina Física e de Reabilitação

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A capsulite adesiva do ombro, também conhecida por ombro congelado, é uma doença de etiologia desconhecida que se caracteriza por uma reação infl amatória de reparação da sinovial com aumento da vascularização local e crescimento de aferências nervosas e ainda por formação de fi brose da cápsula articular, constituída essencialmente por fi broblastos e matriz de colagénio, conduzindo a restrição do movimento.1

Classicamente, a evolução da doença é descrita em três fases. A primeira fase caracteriza-se pelo início do quadro doloroso, que progride para uma segunda fase de perda progressiva da mobilidade articular do ombro e dor, associada essencialmente às amplitudes extremas. A terceira e última fase caracteriza-se por uma redução da dor e retorno lento às amplitudes normais que, no entanto, pode não ser total. Todo este processo pode demorar semanas a vários meses.3

A capsulite adesiva do ombro é mais comum entre os 40 e 65 anos de idade; pode haver envolvimento bilateral em 5 a 40% dos doentes.2,3 São conhecidos diversos fatores de risco, nomeadamente traumatismos, imobilização prolongada, diabetes mellitus, acidente vascular cerebral, discopatia da coluna cervical e enfarte do miocárdio, entre outros.1,2,4

As primeiras descrições da associação entre doenças da glândula tiroideia e patologia articular datam de 1885 e 1928.1 Desde então, nunca se chegou a um entendimento claro sobre o mecanismo fi siopatológico subjacente à capsulite adesiva e o papel das hormonas tiroideias no desenvolvimento desta doença.

A glândula tiroideia tem uma função importante no metabolismo celular e no sistema musculoesquelético e a sua associação com a capsulite adesiva está descrita tanto em doentes com hipotiroidismo como com hipertiroidismo.1 Está indicada uma percentagem de doentes com diagnóstico de capsulite adesiva em que foi identifi cada patologia da tiroide de 13,4% e de 21,1% na população feminina.3,4 A prevalência da capsulite adesiva em doentes com hipertiroidismo ou hipotiroidismo é de 10,9%.4

Os autores descrevem quatro casos clínicos de capsulite adesiva que demonstram a diversidade do quadro em doentes com patologia da tiroide, pretendendo sensibilizar para a sua associação e, assim, contribuir para o diagnóstico precoce e encaminhamento dos doentes para um tratamento adequado e efi caz.

INTRODUÇÃO

CASOS CLÍNICOS

Os autores descrevem quatro casos clínicos avaliados em consulta de Medicina Física e de Reabilitação e tratados no último ano neste

departamento do Hospital da Luz, que exemplificam a diversidade da idade e quadro clínico dos doentes com patologia da tiroide associada

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a capsulite adesiva do ombro. O diagnóstico de capsulite adesiva foi realizado com base na anamnese e no exame objetivo, com os critérios de diminuição das amplitudes articulares passivas e ativas com menos de 50% do arco do movimento de rotação externa do ombro e em dois outros planos (flexão, abdução, rotação interna) comparativamente ao mem-

bro contralateral, se considerado normal.3 Foram excluídos aqueles com outros fatores de risco para capsulite adesiva ou com problemas associados a nível do ombro. O diagnóstico de patologia tiroideia foi realizado com base na história clínica (antecedentes pessoais e medicação habitual) e em exames laboratoriais (quando existentes).

CASO CLÍNICO 1

Doente do sexo feminino, de 51 anos de idade, recorreu à consulta por quadro clínico de omalgia direita associada a dorsalgia e perda de funcionalidade, com seis meses de evolução. Tinha história pessoal de hipotiroidismo desde os 13 anos de idade, medicado com levotiroxina, asma brônquica medicada com inalador de budesonida e formoterol. Fazia também medi-cação habitual com esomeprazol e alprazolam. Negava qualquer tipo de traumatismo ou doença que tivesse motivado a imobilização do ombro. Referia ter tido, poucos anos antes, um episódio de dor e limitação do ombro contralateral, com três anos de duração até à sua resolução. No exame objetivo, apresentava limitação das amplitudes de rotação externa, com 30º à direita e 45º à esquerda, e limitação da abdução e flexão, a 140º de flexão e abdução à direita e a 170º à esquerda, com dor nos últimos graus de flexão. Era portadora de radiografia, que não revelava alterações significativas, e de ressonância magnética (RM), que mostrava espessamento capsular inferior, a traduzir capsulite (Fig. 1). Foi formulado o diagnóstico de

capsulite adesiva à esquerda em fase 2 e de capsulite adesiva à direita, antiga em fase resolutiva. Foi medicada e iniciou programa de reabilitação com tratamentos regulares. Na última reavaliação, realizada aos três meses, apresentava uma melhoria significativa da dor a nível dorsal e apresentava amplitudes de 40º de rotação externa, 160º de flexão e 170º de abdução, com melhoria da funcionalidade.

Fig. 1 Ressonância magnética do ombro direito

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CASO CLÍNICO 2

CASO CLÍNICO 3

CASO CLÍNICO 4

Doente do sexo feminino, de 67 anos de idade, com queixas de omalgia direita de tipo mecânico, de agravamento progressivo, associada a queixas de dor cervical paravertebral. Estava medicada com anti-inflamatório, com alívio parcial das queixas. Tinha história pessoal de hipotiroidismo há vários anos e tinha como única medicação habitual levotiroxina. No exame objetivo, apresentava limitação das amplitudes articulares em todos os planos, com rotação externa de 30º, abdução e flexão de 170º e rotação interna de -20º. A radiografia

Doente do sexo feminino, de 33 anos de idade, avaliada em consulta por quadro clínico de omalgia esquerda incapacitante com cerca de três meses de duração, associada a dor intensa com alívio momentâneo com clonixina. Fora observada seis meses antes por quadro de dor no mesmo ombro, tendo realizado uma série de tratamentos com melhoria do quadro. Tinha história pessoal de hipertiroidismo com nódulo em vigilância a aguardar tratamento com iodo-131 e estava medicada com tiamazol. Na avaliação apresentava exoftalmia e limitação das amplitudes com rotação externa de -30º, abdução de 70º, flexão de 120º e rotação interna

Doente do sexo feminino, de 61 anos de idade, que recorreu à consulta

do ombro revelava alterações degenerativas da articulação acrómio-clavicular. Iniciou programa de reabilitação regular que interrompeu durante um mês por pneumonia, com regressão dos ganhos adquiridos até então. Na avaliação aos cinco meses, apresentava dor controlada mas com agravamento das amplitudes articulares, com rotação externa de 50º, abdução de 130º, flexão de 160º e rotação interna de -20º. Manteve o programa de tratamentos centrado no ganho de amplitudes articulares, característico para uma fase 2 atual.

de -10º. Foi realizada infiltração intra-articular com corticoide, tendo--se objetivado melhoria da dor e de alguns graus de amplitude articular, com abdução para 90º e flexão para 140º. Foi colocado o diagnóstico de capsulite adesiva em fase 2. Iniciou programa de fisioterapia com agentes físicos, mobilização articular e fortalecimento muscular que manteve de forma regular durante quatro meses. Na reavaliação em consulta apresentava rotação externa e interna de -10º, abdução 100º e flexão 140º. Interrompeu os tratamentos para início da terapêutica com iodo no Centro de Patologia da Tiroide do Hospital da Luz.

por queixas de omalgia direita com dois meses de duração e dor

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predominantemente noturna quando em decúbito lateral sobre o membro direito. Tinha história pessoal de hipertensão arterial medicada com valsartan, hipercolesterolemia medi-cada com atorvastatina e neoplasia da tiroide submetida a tiroidectomia e tratamento com iodo-131. Na avaliação apresentava dor nas amplitudes máximas, com ligeira limitação de 10º nas rotações externa e interna do ombro, e dor à palpação no ponto-gatilho ao nível do músculo trapézio direito. Era portadora de radiografia e ecografia do ombro, que revelava tendinose do tendão

do supraespinhoso. Foi realizado tratamento injetável de mesoterapia para tratamento do ponto-gatilho com resolução do mesmo. Iniciou programa de reabilitação com os objetivos de controlo da dor e melhoria das amplitudes articulares e controlo muscular da cintura escapular. Foi reavaliada cinco meses depois do início do programa, com melhoria significativa do quadro doloroso e mantendo as amplitudes articulares. Foram feitas recomendações e ensinados exercícios para realizar no domicílio.

DISCUSSÃONesta amostra destaca-se o facto de todos os doentes serem do sexo feminino, o que está de acordo não só com o predomínio da população feminina nas doenças da tiroide mas também da capsulite adesiva. Estes quatro casos incluem diversas doenças da tiroide, como o hipotiroidismo, o hipertiroidismo e a neoplasia da tiroide, tratados.

Nos três primeiros casos, o diagnóstico de capsulite adesiva foi simples de fazer pois as limitações articulares estavam estabelecidas, sendo o caso típico de uma fase 2. O caso 1 é representativo do envolvimento bilateral do ombro em fases distintas da doença. A doente do caso 3, que tinha inicialmente um diagnóstico de tendinopatia da coifa, desenvolveu depois um quadro de capsulite adesiva. Neste contexto, a etiologia foi, provavelmente, multifatorial, sendo a patologia tiroideia mais um fator de risco associado.

No caso 4, apesar de a limitação articular ser pouco signifi cativa e de haver referência a alterações ecográfi cas da coifa, os antecedentes de patologia da tiroide podem apontar para uma fase 1 de uma capsulite adesiva, que só a evolução do quadro clínico permitirá aferir. Alguns doentes com dor e limitação articular que respondem rapidamente aos tratamentos não têm provavelmente o diagnóstico de capsulite adesiva.

Numa fase inicial, o diagnóstico de capsulite adesiva pode ser complexo e a situação confundida com outra patologia articular do ombro. Mesmo na fase em que já há restrição das amplitudes articulares, a limitação pode passar despercebida no exame clínico por existir compensação com movimento da omoplata ipsilateral. Os exames complementares de diagnóstico permitem a exclusão de outros tipos de patologia

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e, em alguns casos, a visualização de alterações características da capsulite adesiva em ecografi a, RM do ombro (Fig. 1) e artro-RM.2

A avaliação destes casos permite salientar a importância deste tipo de patologia e a limitação funcional com que muitas vezes estes doentes se vêem confrontados nas suas atividades de vida diária. Muitos destes doentes receberam vários tipos de intervenções e o tratamento foi demorado. Alguns doentes permaneceram com limitações articulares mas, de uma forma geral, satisfeitos com os resultados obtidos.

O tratamento da capsulite adesiva deve ser adaptado à fase em que se encontra o doente. Existem várias modalidades terapêuticas preconizadas na capsulite adesiva, como a medicação com anti- -infl amatórios e/ou analgésicos, a injeção com corticoide por via posterior ou subacromial, a utilização de agentes físicos e as técnicas cinesiológicas. Entre

os agentes físicos utilizados, aqueles que a literatura refere com melhores resultados são a terapêutica com ultra-sons e ondas curtas, o calor local, a eletroanalgesia e as ondas de choque. Nos casos descritos, as técnicas cinesiológicas realizadas pelo fi sioterapeuta com o objetivo de ganho das amplitudes articulares e controlo da dor também foram efi cazes.2,3

É de extrema importância a explicação aos doentes das características da capsulite adesiva para garantir uma boa adesão ao tratamento e a não criar falsas expectativas, que podem conduzir a frustração durante o longo processo de recuperação. O doente deve fazer parte do programa de reabilitação, com a realização diária de exercícios no domicílio, de forma a otimizar os resultados.

Nos casos de falência do tratamento conservador, pode estar indicada a mobilização sob bloqueio anestésico, a manipulação sob anestesia geral e a artrolise artroscópica do ombro.1,3

CONSIDERAÇÕES FINAISBaseados na sua experiência, os autores sugerem que na avaliação de doentes com patologia tiroideia sejam incluídas na anamnese algumas perguntas dirigidas a sintomatologia articular, mais concretamente a nível do ombro. É sugerida ainda a realização de um exame rápido para a deteção de limitações articulares do ombro, nomeadamente da rotação externa (Fig. 2). Estes factos justificam-se pela importância do diagnóstico precoce e referenciação para um tratamento eficaz, de modo

a evitar sequelas e incapacidade funcional.

A avaliação em consulta de Medicina Física e de Reabilitação passa pela confirmação do diagnóstico, caracterização da fase da doença e das limitações encontradas, pela realização do tratamento mais adequado e pela utilização de escalas funcionais validadas para o ombro.

Da mesma forma, nos doentes com diagnóstico de capsulite adesiva

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Fig. 2 Exame do ombro – avaliação da rotação externa com cotovelos a 90º e encostados ao tronco enquanto os antebraços rodam externamente. O arco de movimento normal é de 60º e a sua diminuição refl ete uma restrição da cápsula anterior

do ombro, deve ser pesquisada a existência de algum fator de risco conhecido, nomeadamente patologia

da glândula tiroideia, ou de alguma sintomatologia característica da sua disfunção.

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2012-2013