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Conhecendo um pouco da história dos surdos Silvana Araújo Silva 1 Atualmente tem-se ouvido falar em surdos e em língua de sinais – Libras, mas, o que realmente sabemos sobre os surdos? Torna-se relevante apresentar momentos na história desses indivíduos que certamente contribuem para que os surdos a cada momento conquistem o espaço que lhes é devido. Na antiguidade, os Gregos viam os surdos como animais, pois para eles o pensamento se dava mediante a fala. Sem a audição os surdos na época ficavam fora dos ensinamentos e com isso, não adquiriam o conhecimento. Os Romanos privavam os surdos de direitos legais, eles não se casavam, não herdavam os bens da família e diante da religião, a igreja católica considerava os surdos sem salvação, ou seja, não iriam para o reino de Deus após a morte. Pode-se dizer que a condição do sujeito surdo era a mais miserável de todas, pois a sociedade os considerava como imbecis, anormais, incompetentes. A mudança começou a partir de um religioso surdo chamado Ponce de León, um monge beneditino, que vivia em uma cidade da Espanha.Seus alunos eram surdos filhos de nobres que, preocupados com a exclusão de seus filhos diante da sociedade e da lei, procuravam León para os auxiliar. O monge dedicou- se a ensinar os surdos a ler, escrever, falar e aprender as doutrinas da fé católica, como afirma Moura (2000 p.18). “A possibilidade do Surdo falar implicava no seu reconhecimento como cidadão e conseqüentemente no seu direito de receber a fortuna e o título da família”. Partindo desse pressuposto de que o surdo teria que falar para ser humanizado, outros defensores do mesmo pensamento foram surgindo. Serão elencados alguns deles com suas contribuições. Juan Pablo Bonet – soldado do serviço secreto do rei, resolveu educar surdos. De acordo com a história, Bonet utilizava-se do alfabeto manual para 1 Professora de surdos na rede Estadual de Ensino, intérprete de Libras, professora de Libras na UEL e membro do Núcleo de Acessibilidade da UEL. - 2009 - Londrina – PR

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Conhecendo um pouco da história dos surdos

Silvana Araújo Silva1

Atualmente tem-se ouvido falar em surdos e em língua de sinais – Libras,

mas, o que realmente sabemos sobre os surdos? Torna-se relevante apresentar

momentos na história desses indivíduos que certamente contribuem para que os

surdos a cada momento conquistem o espaço que lhes é devido.

Na antiguidade, os Gregos viam os surdos como animais, pois para eles o

pensamento se dava mediante a fala. Sem a audição os surdos na época ficavam

fora dos ensinamentos e com isso, não adquiriam o conhecimento.

Os Romanos privavam os surdos de direitos legais, eles não se casavam,

não herdavam os bens da família e diante da religião, a igreja católica considerava

os surdos sem salvação, ou seja, não iriam para o reino de Deus após a morte.

Pode-se dizer que a condição do sujeito surdo era a mais miserável de todas, pois

a sociedade os considerava como imbecis, anormais, incompetentes.

A mudança começou a partir de um religioso surdo chamado Ponce de

León, um monge beneditino, que vivia em uma cidade da Espanha.Seus alunos

eram surdos filhos de nobres que, preocupados com a exclusão de seus filhos

diante da sociedade e da lei, procuravam León para os auxiliar. O monge dedicou-

se a ensinar os surdos a ler, escrever, falar e aprender as doutrinas da fé católica,

como afirma Moura (2000 p.18). “A possibilidade do Surdo falar implicava no seu

reconhecimento como cidadão e conseqüentemente no seu direito de receber a

fortuna e o título da família”.

Partindo desse pressuposto de que o surdo teria que falar para ser

humanizado, outros defensores do mesmo pensamento foram surgindo. Serão

elencados alguns deles com suas contribuições.

Juan Pablo Bonet – soldado do serviço secreto do rei, resolveu educar

surdos. De acordo com a história, Bonet utilizava-se do alfabeto manual para

1 Professora de surdos na rede Estadual de Ensino, intérprete de Libras, professora de Libras na UEL e

membro do Núcleo de Acessibilidade da UEL.

- 2009 -

Londrina – PR

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ensinar a leitura e a língua de sinais para ensinar a gramática apesar de ser um

defensor da oralidade, não dispensou o auxílio da língua de sinais em seu

trabalho.

Jacob Rodrigues Pereire – educador fluente em língua de sinais, porém

defensor da oralidade.Em suas aulas o objetivo a ser alcançado era o de fazer

surdos falarem, no entanto, usava a língua de sinais, como cita Moura (2000 p.19).

“Os sinais eram utilizados para instruções, explicações lexicais,

conversações com os alunos, até eles terem a capacidade de poder se comunicar

oralmente ou pela escrita [...]”.

Johann Conrad Amman – medico suíço, acreditava que os surdos eram

destituídos das bênçãos de Deus, pois não possuíam a fala.Para ele o uso dos

sinais atrapalhava o desenvolvimento do pensamento e conseqüentemente da

fala.Apesar de posicionar-se contra os sinais, Amman os utilizava como meio para

que os surdos adquirissem a fala.

John Wallis – é considerado na Inglaterra, o fundador do oralismo. Seu

trabalho resumiu-se em um livro sobre educação de surdos e uma história de

desistência de fazer os surdos falarem. Possuiu pouca experiência prática com os

surdos e como os outros, utilizava a língua de sinais.

Thomas Braidwood – seu objetivo em educar os surdos estava em faze-

los falar, pois para ele falar significava ser um sujeito pensante.A história relata

que em suas aulas, os surdos aprendiam a escrever, ler,o significado das palavras

bem como a leitura orofacial e pronuncia das palavras.Com o seu suposto

sucesso, Braidwood viu que o trabalho com os surdos trazia-lhe benefícios

financeiros e começou a comercializar o seu método.Aqueles que desejavam

utilizar seus métodos assumiam o compromisso de pagar metade de seus ganhos

ao criador e manter em absoluto segredo os passos para se trabalhar com os

surdos.Moura (2000, p.22) faz uma observação relevante.

“Podemos perceber, nas histórias acima apresentadas, que o oralismo tinha como argumento aparente a necessidade de humanização do Surdo, mas que, na verdade, escondia outras necessidades particulares de

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seus defensores,que visavam o lucro e o prestigio social”.

Como seus antecessores, Braidwood e sua família perceberam que o

fracasso de seu método estava exatamente na não utilização da língua de sinais.

Infelizmente, a tentativa de “curar” os surdos ainda estava em discussão,

apesar dos resultados negativos. Oliver Sacks, em seu livro Vendo Vozes (1998,

p. 38), relata a situação da época e deixa transparecer uma certa fragilidade no

discurso dos defensores da oralidade.

“Havia, de fato, verdadeiros dilemas, como sempre houvera, e eles existem até hoje. De que valia, indagar-se, o uso de sinais sem a fala? Isso não restringiria os surdos, na vida cotidiana, ao relacionamento com outros surdos? Não se deveria, em vez disso, ensina-los a falar (e ler os lábios), permitindo a eles, plena integração com a população em geral? A comunicação por sinais não deveria ser proibida, para não interferir na fala?”.

Observa-se que havia uma certa resistência em aceitar o fracasso, mas ao

mesmo tempo a visão da surdez como doença ainda persistia. Com isso, o falar

oralmente continuava sendo o objetivo maior na educação dos surdos.

A história dos surdos começou a caminhar por outra direção, graças as

discussões que giravam em torno da condição semi humana dos surdos. Alguns

filósofos da época como Sócrates, pensava que os símbolos tinham que ser

falados, já o Sócrates possuía o seguinte pensamento.

“Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos expressar coisas uns aos outros, não deveríamos, como aqueles que ora são mudos, esforçar-nos para transmitir o que desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras partes do corpo?”.

Apesar da ignorância que muitos possuíam sobre a surdez e o indivíduo

surdo, o filósofo teve uma compreensão da realidade surda que poucos tiveram

até aquele momento.

O médico e filósofo Cardano no século XVI percebeu de forma clara que os

surdos poderiam ter acesso a língua falada de outras formas, ou seja, sem a

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necessidade de usar o canal oral , como será constatado no seguinte trecho de

sua fala, citado por Sacks (1998, p.29)

“É possível dar a um surdo – mudo condições de ouvir pela leitura e de falar pela escrita [...], pois assim como diferentes sons são usados convencionalmente para significar coisas diferentes, também podem ter essa função as diversas figuras de objetos e palavras. [...] Caracteres escritos e idéias podem ser conectados sem a intervenção de sons verdadeiros.”

As discussões sobre os surdos geraram uma inquietação no coração de

um religioso francês – Charles Michel de L´Epée. Em 1760 L´Epée, por motivos

religiosos, aproximou-se dos surdos para aprender a língua de sinais francesa,

pois como os surdos não ouviam e não falavam como os demais, estavam

condenados diante da fé católica.Os surdos não tinham acesso aos ensinamentos

do catolicismo e tão pouco os praticava, sem contar que não tinham direito a

confissão de pecados. L´Epée aprendeu os sinais e iniciou a educação de surdos

na França, ensinando além da religião, conhecimentos a nível escolar. Este fato

pode ser constatado com a seguinte passagem “[...] E então, associando sinais a

figuras e palavras escritas, o abade ensinou-os a ler; e com isso, de um golpe,

deu-lhes o acesso aos conhecimentos e à cultura do mundo”. Sacks (1998, p.30)

Outro fator importante que justifica seu sucesso com a educação de surdos

foi algo que pode ser considerado inovador para a época, ele possuía em sua sala

a presença de um intérprete de língua de sinais, auxiliando no processo de ensino

aprendizagem, Sacks explica de forma resumida a trajetória do abade como

professor de surdos.

“O sistema metódico de L´Epée – uma combinação da língua de sinais nativa com gramática francesa traduzida em sinais – permitia aos alunos surdos escrever o que era dito por meio de um intérprete que se comunicava por sinais, um método tão bem sucedido que, pela primeira vez, permitiu que

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alunos surdos comuns lessem e escrevessem em francês e, assim, adquirissem educação”.

Os surdos viviam um momento especial em suas vidas, pois

experimentavam o sabor de “falar” a sua própria língua, ser entendido, refletir e

opinar sobre diferentes assuntos, como pode-se comprovar através do relato de

Pierre Desloges – surdo que veio conhecer e utilizar a língua de sinais na idade

adulta.

“No início de minha enfermidade, e enquanto vivi separado de outras pessoas surdas [...] não tive conhecimento da língua de sinais. Eu usava apenas sinais esparsos, isolados e não relacionados. Desconhecia a arte de combina-los para formar imagens distintas com as quais podemos representar várias idéias, transmiti-las a nossos iguais e conversar em discurso lógico”. Sacks (1998 p. 31).

A experiência de Desloges foi realmente importante para se reconhecer a

língua de sinais como uma língua natural dos surdos e o caminho para o

conhecimento. Como a língua de sinais para os surdos é uma língua natural,

independente do tempo que esse surdo demorar em ter contato com a língua de

sinais, ele não terá dificuldades em aprende-la como teria com a língua oral.

Sacks ao observar o relato de Desloges sobre seu período de total

ignorância por ser um indivíduo surdo, faz uma reflexão sobre a situação de

surdez sem uma língua.

“Foi o que afirmei anteriormente que a surdez pré-lingüística é potencialmente muito mais devastadora do que a cegueira. Pois, ela pode predispor a pessoa, a menos que isso seja prevenido, à condição de ficar praticamente sem língua – e de ser incapaz de”proposicionar” - o que forçosamente se compara à afasia, um mal no qual o próprio raciocínio pode tornar-se incoerente e paralisado. Os surdos sem língua podem de fato ser como imbecis – e de um modo particularmente cruel, pois a inteligência, embora presente e talvez abundante, fica trancada pelo tempo que durar a ausência de uma língua.” ( 1998, p. 32-33).

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Observa-se que as dificuldades que os surdos possuíam não estavam de certa

forma associadas ao retardo mental, mas sim a falta de conhecimento de uma língua que

o levasse a pensar.

Faz-se relevante a explicação com relação a surdez associada a outras doenças,

pois o surdo nem sempre será apenas surdo. Em algumas situações, o surdo pode nascer

surdo-cego, surdo com problemas mentais, surdo com problemas psíquicos, surdo com

paralisia cerebral, entre outras. Essas situações podem ocorrer por dificuldades na hora

do parto, doenças durante a gravidez e por fatores genéticos.

A situação de calamidade que envolvia os surdos era apenas lingüística,

após o conhecimento da língua de sinais esta situação mudou, pois os surdos

começaram a partir daí uma “nova vida”, com identidade e cultura própria. Eles

passaram a acreditar mais em si, a reconhecer suas limitações e a buscar a

superação desses limites.

Foi no auge da língua de sinais que houve um grande número de

professores surdos nas escolas e consequentemente, mais escolas para surdos

foram surgindo. Moura (2000), torna-se objetiva ao se referir a vida de um surdo

que faz uso da língua de sinais para se comunicar:

“Apenas quando o Surdo pode se ver e ser visto, encarnar e ser encarnado como um sujeito com capacidades e habilidades, possibilidades de ser e vir a ser é que ele poderá ter o seu papel de ser social totalmente desempenhado na sociedade”.(p. 60)

Infelizmente os surdos não foram tão bem aceitos como esperavam, pois a

sociedade mesmo vendo a capacidade dos surdos, demoraram a aceitar a

utilização da língua de sinais, os surdos uniram-se cada vez mais em prol de uma

comunidade, de uma cultura e de uma língua.

Em 1789, L´Epée morre e a França passa por um período difícil e de

mudanças significativas que de certo modo atingiria os surdos. Abbé Sicard é o

novo sucessor do abade morto e assume brilhantemente o seu cargo. Ele

escreveu dois livros, um sobre gramática e o outro apresentando métodos de

como educar os surdos. Como L`Epée, Sicard fez a escola crescer e isto

despertou a inveja se assim pode-se dizer dos defensores do oralismo.

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A morte de Sicard em 1822 daria o direito natural a sucessão ao famoso

professor surdo Jean Massieu. Infelizmente por motivos de força maior, Baron

Joseph Marie de Gérando, diretor administrativo do Instituto, nomeou Jean Marc

Itard. Juntos tornaram-se terríveis opositores da língua de sinais.

Joseph Marie de Gérando, diretor administrativo do Instituto, nomeou Jean

Marc Itard, juntos tornaram-se terríveis opositores da língua de sinais. Itard não

possuía nenhuma formação para educar surdos, na verdade ele era médico

cirurgião. Seu interesse iniciou com o atendimento de um surdo dentro do Instituto

Nacional de Surdos – mudos e tornou-se médico residente lá. Como médico que

era, empenhou-se em descobrir as causas da surdez. Suas experiências dão

margem a diferentes tipos de interpretações, uma delas poderia ser vista como um

ato desumano e cruel. A outra seria tomar o lugar de Deus, tentando realizar o

impossível. Moura (2000,p.).

“[...] Para realizar seus estudos, ele dissecou cadáveres de Surdos e tentou vários procedimentos: aplicar cargas elétricas nos ouvidos de Surdos, usar sanguessugas para provocar sangramentos, furar as membranas timpânicas de alunos (sendo que um deles morreu por este motivo). Fez várias experiências e publicou vários artigos sobre uma técnica especial para colocar cateteres no ouvido de pessoas com problemas auditivos, tornando -se famoso e dando nome à Sonda de Itard”.

Todas as tentativas eram valorizadas com relação a cura dos surdos. Não

importavam os caminhos, pois para a sociedade a surdez era uma doença que

necessitava ser curada a qualquer preço.

Itard empenhou-se em treinar os surdos para a fala, pois de acordo com

Moura (2000 p.27).

“A única esperança para se” salvar “o Surdo seria através do desenvolvimento da fala, que o transformaria, e isto só poderia ser feito através de treinamento articulatório e da restauração da audição, pois, se a audição fosse restaurada, a fala também o seria”.

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Havia um grande equívoco, que mais tarde seria reconhecido, o surdo não

precisaria falar pelo meio oral para se tornar um ser pensante ou um cidadão. A

língua de sinais lhe dava as mesmas condições que uma língua falada dá aos

seus usuários ouvintes. Como se pode confirmar através do brilhante e

emocionante relato de Sacks (1989 p.32).

“[...] Os surdos sem língua podem de fato ser como imbecis – e de um modo particularmente cruel, pois a inteligência, embora presente e talvez abundante, fica trancada pelo tempo que durar a ausência de uma língua. Assim, o abade Sicard está correto, além de ser poético, quando escreve que a introdução da língua de sinais ' abre as portas da [...] inteligência pela primeira vez”. “A língua [de sinais] que usamos entre nós, sendo uma imagem fiel do objeto expresso, é singularmente apropriada para tornar nossas idéias acuradas e para ampliar nossa compreensão, obrigando-nos a adquirir o hábito da observação e análise constantes. Essa língua é vívida; retrata sentimentos e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra língua é mais adequada para transmitir emoções fortes e intensas”.

Pode surgir a questão de que esse relato carrega a visão de um

ouvinte, defensor da língua de sinais, com isso seu discurso talvez não tenha tanto

“peso”. Neste caso, será exposto um trecho no qual Sacks (1989, p.33), coloca a

fala de Pierre Desloges, um surdo que conheceu a língua de sinais após adulto.

“A língua [de sinais] que usamos entre nós, sendo uma imagem fiel do objeto expresso, é singularmente apropriada para tornar nossas idéias acuradas e para ampliar nossa compreensão, obrigando-nos a adquirir o hábito da observação e análise constantes. Essa língua é vívida; retrata sentimentos e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra

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língua é mais adequada para transmitir emoções fortes e intensas”.

Apesar de seu fracasso com a oralidade Itard tentou se “safar” de uma

possível culpa e Moura (2000, p.27) apresentam razões que comprovam esse

fato.

“Ele passou então a treinar a fala diretamente. Isto fez com que os alunos falassem, mas logo ele descobriu que eles não o faziam de maneira natural e fluente. Desde que a sua proposta era a transformação do Surdo em ouvinte, a ausência da fala fluente não serviu ao seu propósito e ele então culpou a Língua de Sinais usada na escola pela falha de desenvolvimento da capacidade de fala dos Surdos”.

Segundo a história, Itard após dezesseis anos de tentativas e experiências

frustradas de oralização, reconheceu que o Surdo só pode ser educado através da

língua de sinais.

O reconhecimento de Itard não foi em vão e muito menos sem uma

comprovação de sua parte. Sacks (1998, p.67) apresenta em seu livro – Vendo

Vozes, um trecho da carta escrita por uma intérprete de língua de sinais, Susan

Schaller, em que ela coloca a situação antes e atual do surdo que ela

acompanhava.

“Atualmente [escreveu Schaller] estou escrevendo um relato sobre a bem – sucedida aquisição da primeira língua num surdo de 27 anos com surdez pré – lingüística. Ele nasceu surdo e nunca tinha sido exposto a nenhuma língua, inclusive a língua de sinais. Meu aluno, que jamais se comunicara com outro ser humano durante 27 anos ( exceto por expressões concretas e funcionais via mímica), espantosamente sobreviveu à sua vida de “confinamento solitário”sem a desintegração de sua personalidade”.

Pode-se observar neste relato que um indivíduo surdo em idade adulta, ao

ter contato com a língua de sinais, a adquiriu com naturalidade, comprovando o

que Itard demorou em reconhecer.

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“Por que a pessoa surda sem instrução é isolada na natureza e incapaz de comunicar-se com os outros homens? Por que ela está reduzida a esse estado de imbecilidade? Será que sua constituição biológica difere da nossa? Será que ela não possui tudo de que precisa para ter sensações, adquirir idéias e combiná-las para fazer tudo o que fazemos? Será que não recebe impressões sensoriais dos objetos como nós recebemos? Não serão essas, como ocorre conosco, a causa das sensações da mente e das idéias que a mente adquire? Por que então a pessoa surda permanece estúpida enquanto nos tornamos inteligentes? Sacks “(1998, p.28)”.

Pierre Desloges em 1779 foi o primeiro surdo a ter seu livro publicado, contando sua experiência como um surdo sem-língua, vivendo em uma sociedade preconceituosa e equivocada. No trecho a seguir, citado por Sacks(1998), observa-se a emoção do surdo ao se referir a língua de sinais que o tirou da ignorância aparente em que vivia:

“A língua [de sinais] (grifo do autor) que usamos entre nós, sendo uma imagem fiel do objeto expresso, é singularmente apropriada para tornar nossas idéias acuradas e para ampliar nossa compreensão, obrigando-nos a adquirir o hábito da observação e análise constantes. Essa língua é vívida; retrata sentimentos e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra língua é mais adequada para transmitir emoções fortes e intensas”.(p.33).

Quantos anos os surdos viveram de imagens das quais não possuíam idéia

do que realmente eram ou do que se tratavam por não possuírem uma língua. A

língua de sinais permitiu aos surdos o uso de suas capacidades intelectuais e

emocionais.

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Em 1789, ano da morte do abade de L'Epée, haviam criado cerca de vinte

e uma escolas para surdos na França e Europa.

possível, com isso, iniciou uma série de experiências médicas para tentar

descobrir causas visíveis da surdez. Moura (2000) descreve os tipos de

experiências realizadas pelo médico:

“Para realizar seus estudos, ele dissecou cadáveres de surdos e tentou vários procedimentos: aplicar cargas elétricas nos ouvidos de surdos, usar sanguessugas para provocar sangramentos, furar as membranas timpânicas de alunos ( sendo que um deles morreu por este motivo) .( grifo do autor)[...] Ele também fraturou o crânio de alguns alunos e infeccionou pontos atrás das orelhas deles.”(p.25)

As tentativas de restaurar a audição dos surdos foram fracassadas, então,

começou um treinamento auditivo com o intuito de fazer com que os surdos

falassem.Os resultados foram negativos e fizeram com que Itard mais uma vez

mudasse a sua estratégia, passando a treinar a fala, porém, sem resultados

eficazes.Os surdos não possuíam nenhuma fluência como os ouvintes e,

consequentemente associou-se este fracasso a língua de sinais,caso ela não

existisse, os surdos não teriam outra forma de comunicação e seriam forçados a

utilizar a língua oral. Este pensamento ainda permeia algumas mentes nos dias

atuais, mentes de familiares de surdos e até de professores de surdos.

Itard após muitos anos de tentativas rende-se a um fato incontestável, os

surdos precisam da língua de sinais para o seu aprendizado, como afirma Moura

(2000).

“O próprio Itard, após dezesseis anos de tentativas e experiências frustradas de oralização e remediação da surdez, sem conseguir atingir os objetivos desejados, rendeu-se ao fato de que o surdo só pode ser educado através da Língua de Sinais. Ele continuaria defendendo a tese de que alguns poucos poderiam se beneficiar do treinamento de fala, mas mesmo para estes ele passou a considerar que a única forma possível de comunicação e de ensino deveria ser a Língua de Sinais”.(p.27)

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Apesar deste reconhecimento, outro poderoso defensor do oralismo se

levanta, Alexander Grahan Bell, homem de autoridade e prestígio por ser um

gênio tecnológico, votou a favor da oralidade no Congresso Internacional de

Educadores de Surdos, em 1880 em Milão.

Vale apena ressaltar que neste Congresso, os professores surdos foram

excluídos da votação, suas opiniões não eram de grande valia e sim, as opiniões

dos ouvintes.

Sacks (1998), cita a situação do momento após a abolição oficial da Língua

de Sinais, que deixa claro o momento de caos que se instala:

“Os alunos surdos foram proibidos de usar sua própria língua” natural “(grifo do autor) e, dali por diante, forçados a aprender, o melhor que pudessem, a (para eles) (grifo do autor)” artificial “língua falada. E talvez isso seja condizente com o espírito da época, seu arrogante senso da ciência como poder, de comandar a natureza e nunca se dobrar a ela”.(p.40)

O oralismo foi uma proposta que não trouxe nenhum benefício para os surdos

profundos, pois nem todos os surdos foram bem-sucedidos com a leitura labial e

muitos emitiam sons incompreensíveis aos ouvintes.Com isso, os surdos se

sentiam incapazes e doentes por não conseguirem ser como os ouvintes. De

acordo com Bell, os surdos eram doentes e para serem curados deveriam negar a

sua própria surdez e passar a agir como ouvintes. Pode-se dizer que este

momento na vida dos surdos foi de grande agonia, pois teriam que viver uma vida

que não condizia com a sua natureza e ter que adotar posturas as quais não

faziam parte da sua realidade surda.

Quadros (1997), define em poucas palavras o que o oralismo fez com os

surdos além de desconsiderar a sua língua, ela “simplesmente desconsidera

essas questões relacionadas à cultura e sociedade surda”.(p.23)

A proposta oralista a cada momento se fortalecia, pois surgiam fortes

defensores como Ferreri, líder dos educadores de surdos na Itália, que via na

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língua de sinais algo rudimentar, constrangedor e primitivo, como Moura (2000)

relata que “para ele a língua de sinais era uma mímica violenta e espasmódica”.

Esse tipo de preconceito com relação a língua de sinais se espalhou por

muitos países que adotaram essa concepção de Ferreri. Os surdos ao usarem a

língua de sinais em sala ou dentro do limite escolar eram repreendidos com a

seguinte fala: _ Pare! Você é igual a um macaco? Os surdos sem direito de

defesa, aceitavam aquela condição repressora, humilhante, sem respeito ao

direito humano de usar a sua própria língua. Os familiares também viam a língua

de sinais como algo feio, vergonhoso, inconcebível para um ser humano normal.

A proibição trouxe resultados negativos para a comunidade dos

surdos, pois muitos com dificuldades na oralidade, deixaram de adquirir

conhecimentos, de se comunicar em sala de aula e expor sua opinião.Os

professores eram defensores da oralidade e em suas aulas davam enfoque ao

falar palavras e expressões, do que trabalhar os conteúdos, pois o importante não

era adquirir conhecimento e sim, a fala.

Enquanto crianças ouvintes em escolas comuns aprendiam conteúdos

relacionados a idade e série em que estavam, os surdos tinham seus preciosos

horários gastos em exercícios que auxiliassem a oralidade. Se havia alguma

pretensão em igualar os surdos com os ouvintes, essa situação não estava

contribuindo.

Ao percorrer um pouco da história dos surdos, pode-se observar um trajeto

cheio de imposições, de experimentos sem sucesso e muito preconceito. Os

surdos como eram vistos realmente não teriam muitas chances nesta sociedade

oralista e denominada superior diante de uma língua espaço visual mas, alguém

começou a enxergar diferente e hoje os surdos podem utilizar a sua língua sem

medo e sem a vergonha que antes pesava sobre os seus ombros. Para que os

surdos vivam em igualdade com os ouvintes, primeiramente eles precisam ser

aceitos como são – surdos que utilizam uma língua diferente, porém rica e

expressiva como qualquer outra língua.

Com a utilização de sua língua natural, a língua de sinais, os surdos

conseguiram mostrar que é capaz de pensar, aprender, interagir com o seu meio,

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exercer a sua cidadania, porém, ainda falta uma parcela da comunidade ouvinte

que necessita mudar o seu olhar com relação ao ser surdo. O preconceito em

grande parte é fruto da ignorância, ou seja, o desconhecimento gera crenças

errôneas, mitos, desconforto e até uma certa repulsa.

Nota-se que as tentativas de fazer o surdo se tornar ouvinte não foram

poucas, felizmente os resultados mostraram que as tentativas deveriam caminhar

para a aceitação da condição do surdo e de sua língua, que difere de uma língua

oral sim, mas tão rica e tão expressiva quanto. Sem dúvida os surdos não poderão

ser tratados iguais aos ouvintes em alguns aspectos, principalmente no aspecto

da língua, pois isto levaria ao mesmo erro do passado, mas pode-se buscar meios

aos quais o surdo possa sentir-se capaz em todos os sentidos e respeitado.