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9
FABRICIO PEDROSO BAUAB
Da Geografia Medieval s origens da Geografia
Moderna: contrastes entre diferentes noes de
Natureza, Espao e Tempo
Presidente Prudente
8
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CINCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
NVEL DOUTORADO
Da Geografia Medieval s origens da Geografia Moderna:
contrastes entre diferentes noes de natureza, espao e tempo
Tese de doutoramento apresentada junto ao programa
de Ps-Graduao em Geografia (rea de
Concentrao: Desenvolvimento Regional e
Planejamento Ambiental) da Universidade Estadual
Paulista, campus de Presidente Prudente, visando a
obteno do ttulo de doutor em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Eliseu Savrio Sposito
Presidente Prudente
2005
12
Agradecimentos
Aos amigos do curso de ps-graduao da Unesp, em especial s figuras no sentido
amplo do termo Marcelino e Jos Augusto.
Ao pessoal da AGB- Presidente Prudente (2003-2004).
Aos professores do curso e, em especial, ao Prof. Dr. Eliseu Savrio Sposito pela
agradvel convivncia enquanto orientador.
Aos professores Douglas Santos e Joo Lima pelas contribuies dadas no Exame de
Qualificao.
A Stela, por ter me acompanhado e estimulado durante uma parte significativa deste
trajeto.
Aos amigos de sempre, Carlos, Srgio, Viola e Palmieri, pela convivncia de quase vinte
anos.
Aos colegas professores do curso de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do
Paran: Cristiano, Marga, Valmir, Jlio, Fernando, Marlon, Broietti, Marcos Saquet, Roseli,
Luciano, Beatriz, Luis, Alexandre, Mafalda, Gilnei, Salete, Cristiane, Gilberto, Ricardo,
Rosane e Adriana..
Aos demais professores e funcionrios da Unioeste.
Aos alunos do curso de Geografia da Unioeste.
Ao Adilson e Ana Luiza pela amizade e pelo auxlio no aprendizado frente ao
computador.
Aos amigos Alexandre e Marcelo e Pedro.
Ao Jlio, ao Ricardo, a Slvia, ao Cludio, a Flaviana, a Renata e ao Rodolfo; a Flvia,
a Fernanda ao Marcelo e a Teresinha, amigos de Prudente.
Ao Claw.
Ao grande Pitoco, companheiro canino de horas e horas frente ao computador.
13
A Karise, fonte de inspirao recente em minha vida, indispensvel ajudante na
confeco da verso final da tese.
Ao Tavinho.
Finalmente, ao Andr, a Regina e a Juliana, por, mesmo distantes, figurarem enquanto
pessoas importantes em minha vida.
Aos meus demais familiares e amigos.
14
Dedicado a Alexandre Bauab Netto
e Suely Teresinha Rodrigues Pedroso
15
PALAVRAS-CHAVE: natureza, espao tempo, Deus, mensurao, cincia, religio e geografia.
RESUMO
Da Idade Mdia at a ecloso da Revoluo Cientfica do sculo XVII, que tratamos enquanto marco
estruturante/estruturado da/pela modernidade, referenciamos as discusses concernentes s noes de
Natureza, Espao e Tempo, sempre tendo como culminncia a incidncia de tais categorias em discusses
geogrficas. Sendo a Religio a base do conhecimento medieval, temos que a Natureza tratada enquanto
sujeito, figura vinculada ao drama cristo da salvao, ora sendo vista enquanto mudaneidade a ser
rompida via re-ligao com a Divindade, ora marca Desta, signo, significante de Seu significado. Espao e
Tempo, por seu turno, so, ambos, medidos pelos contedos religiosos, sendo vistos enquanto emanao
de um sentido somente presente no texto bblico ou na luminosidade das Autoridades. A Geografia do
perodo era tambm simblica, tantas vezes transcrita, desatualizada de informaes empricas. Um amplo
quadro de revolues constri os termos da ruptura efetuada com relao Idade Mdia. Destacamos, no
quadro revolucionrio citado, os Descobrimentos e o chamado perodo renascentista. Foram muitos os
impasses intelectuais trazidos pelos Descobrimentos, pela gradual descoberta do mundo enquanto orbe.
No plano interno europeu, foram muitas as transformaes surgidas no mesmo contexto histrico. Nicolau
de Cusa problematiza a questo da posio do sujeito frente interpretao do real. Coprnico defende a
centralidade do astro Sol. Giordano Bruno ope-se finitude do Universo advinda do legado aristotlico.
Kepler instaura a noo de causalidade matemtica dos fenmenos. Por outro lado, eclodem todas as
formas de misticismo, da magia astrologia. Por fim, tratamos das transformaes trazidas pela
Revoluo Cientfica, que redimensionaram o olhar humano sobre a Natureza, sobre a noo de Espao,
de Tempo, culminando na reinveno do discurso geogrfico. Em Galileu Galilei Tempo e Espao
aparecem enquanto externalidades, absolutos numricos que exatamente mediriam a passagem dos
fenmenos sem para eles transferir nenhum contedo religioso. Aqui, o nico a priori aceito o da
geometria euclidiana, da abstrao matemtica. Alada para dentro do mundo da vida, da natureza, tal
interpretao conduziria ao mecanicismo, presente em Galileu, escancarado em Descartes. No mesmo
sculo da Revoluo Cientfica surgir uma obra fundamental para a Geografia Moderna. A Geografia
Geral (1650) de Varenius surge cheia de aluses a Coprnico, Galileu, sendo editada na Inglaterra tempos
depois por Isaac Newton. Nela, maneira galileana, cartesiana, a matemtica tomada enquanto a priori
fundamental, instrumento de ordenao dos fenmenos no espao, base para a descrio precisa da
realidade que poria em alteridade todos os acidentes geogrficos, constituindo-os enquanto unidades
indivisveis. Em Varenius eclode, portanto, o fluxo das transformaes narradas na tese, que
redimensionaram, portanto, o discurso geogrfico. Como pano de fundo de todas estas discusses,
trouxemos o tema da Queda, do Gnesis at a interpretao inovadora de Francis Bacon, defensor assduo
da posse humana da natureza enquanto redeno religiosa.
16
KEY-WORDS: nature, space, time, God, measuring, science, religion, geography.
ABSTRACT
From the Middle Age to the Scientific Revolution emergence, in the century XVIII, that we have as structure/structured mark of/for modernity, we report the concerning debatings to the concepts of
Nature, Space and Time, always having as culmination the incidence of such categories in geographic
debatings. Being the Religion the basis of the Medieval Knowledge, the Nature is treated like individual,
shape linked to the Christian salvation drama, but being seen while mundane ness, to be broken by re-tied
with the Divinity, but mark of This, sign, significant of Its meaning. Space and Time, by their turn are,
both, measured, by the religion contents, being seen as emanation of a meaning only present in the biblical
text or in the Authoritys brightness. The Geography of the period was also symbolic, many times
transcribed, in out of date empiric information. A wide list of revolutions build the time limit occurred
with regard to the Middle Age. We emphasize in the revolutionary list mentioned, the Discoveries and the
called Renaissancist Period. There were many intellectual impasses brought by the Discoveries, for the
gradual discovery of the world as a globe. Inside the European plan, there were many transformations
arised in the same historical context. Nicola of Cusa argues the matter of the individual position facing to
the real interpretation. Copernicus defends the Sun as center of Universe. Giordano Bruno opposes to the
end of Universe ad coming from Aristotelians legate. Kepler institutes the notion of mathematics causality
in the phenomena. On the other hand, every mysticism form emerges, from the magic to the astrology. At
last, we discuss about the transformations brought by the Scientific Revolution, which re-calculate the
human look on the Nature, on the notion of Space, of Time, ending in the reinvention of the geographic
speech. In Galileo Galilei Time and Space, appears as externalities, numerical absolutes that would
exactly measure the course of the phenomena without transferring any religious contents. Here, the only, a
priori accepted is the Euclidian geometry of the mathematics abstraction. Competence inside the world of
the life, of the nature, such interpretation would take to the mechanism, present in Galileo, public in
Descartes. In the same century of the Scientific Revolution will appear a fundamental work for the
Modern Geography. General Geography (1650) of Varenius appears full of allusions to Copernicus,
Galileo, being published in England by Isaac Newton. In it, the Galilean and the Copernicus way,
mathematic is taken the fundamental priori, methodical tool of the space phenomena, base for the exact
description of the reality that would put in change every geographical accident, constituting them as
indivisible units. In Varenius arises, therefore, the main point of the transformations told in the thesis that
re-calculated, therefore, the geographic speech. As backdrop of all these debates, we brought the theme of
the Drop, from Genesis to the innovative interpretation of Francis Bacon, constant defender of the human
possession of the nature as religious redemption.
17
Sumrio
Introduo................................................................................................................................ p.8
PRLOGO - A Queda bblica e a Queda em
Blake...........................................................................................................................................
p.22
PARTE I - A NATUREZA NA IDADE MDIA E OS CONTEDOS DO ESPAO E
DO TEMPO..............................................................................................................................
p.29
CAP. 1 - A NATUREZA..........................................................................................................
p.30
1.1- O papel do trabalho nos primeiros sculos do cristianismo......................................... p.30
1.2- O privilgio da condio humana.................................................................................... p.40
1.3- Apologias da tcnica nos fins da Idade Mdia............................................................... p.44
CAP. 2- OS CONTEDOS DO ESPAO E DO TEMPO...................................................
p.48
2.1- Os contedos do mundo................................................................................................... p.48
2.2- Os contedos do espao.................................................................................................... p.59
2.3- Os contedos do tempo..................................................................................................... p.75
PARTE II- AS ABERTURAS DO MUNDO: CRISTVO COLOMBO E OS
DESCOBRIMENTOS.............................................................................................................
p.82
CAP.1- CRISTVO COLOMBO E O NOVO MUNDO: EXEGESE E RUPTURAS..
p.83
Introduo: Colombo e os descobrimentos............................................................................ p.83
1.1- Alguns antecedentes: Toscanelli...................................................................................... p.86
1.2- A viso das ndias............................................................................................................. p.89
1.3- Exegese e rupturas............................................................................................................ p.95
1.4- A grande abstrao: o recorte do aprazvel e mercantilizao da natureza............... p.101
1.5- As profecias....................................................................................................................... p.103
18
CAP.2- UM ENSAIO SOBRE O AMPLO SENTIDO DOS DESCOBRIMENTOS......... p.109
PARTE III: A NATUREZA NA RUPTURA FEUDAL E OS NOVOS CONTEDOS
DO ESPAO E DO TEMPO..................................................................................................
p.125
Introduo ao tema Renascimento: as duas ordens de significados..................................... p.126
CAP.1 - ANIMISMO E ASTROLOGIA NO RENASCIMENTO......................................
p.128
1.1- Declnio do aristotelismo e ontologia mgica................................................................. p.128
1.2- Retorno natureza; corpo do homem/corpo do mundo............................................... p.130
1.3- Paracelso............................................................................................................................ p.132
1.4- Crticas astrologia.......................................................................................................... p.135
CAP. 2- A CONSTRUO DE RUPTURAS: PERSONAGENS E TEMAS QUE
ANTECEDERAM A REVOLUO CIENTFICA............................................................
p.139
2.1- Nicolau de Cusa e Palingenius......................................................................................... p.140
2.2- Nicolau Coprnico............................................................................................................ p.143
2.3- Giordano Bruno................................................................................................................ p.152
2.3.1. Os limites dos sentidos.......................................................................................... p.152
2.3.2. Finitudes e infinitude; movimento e imutabilidade........................................... p.154
2.3.3. A incompatibilidade com o a Escolstica a questo do organicismo................ p.156
2.3.4. Crticas ao aristotelismo....................................................................................... p.158
2.3.5. A Homogeneizao do espao.............................................................................. p.159
2.3.6. Um universo movido por mesmos princpios; apelo final................................. p.162
2.4- Johannes Kepler................................................................................................................ p.163
CAP. 3- A REVOLUO CIENTFICA: GALILEU E DESCARTES
MATEMATIZANDO O TEMPO, O ESPAO, A NATUREZA........................................
p.170
Introduo: a sombria atitude de alerta de Pascal............................................................... p.170
3.1- Ocidente e Mensurao: o novo espao da pintura, o novo tempo da msica............ p.174
3.1.1. O novo mundo burgus........................................................................................ p.174
19
3.1.2. Nova pintura, novo espao................................................................................... p.180
3.1.3. Nova msica, novo tempo..................................................................................... p.183
3.2- Galileu Galilei: espao, tempo e natureza na cincia moderna.................................... p.186
3.2.1. Oposies a Aristteles: o novo espao, o novo tempo....................................... p.188
3.2.2. A matemtica da natureza................................................................................... p.192
3.2.3. O intocvel terreno da f e a filosofia natural emergente................................. p.202
3.3- A natureza em Descartes.................................................................................................. p.208
3.3.1. Deus......................................................................................................................... p.209
3.3.2. O sujeito.................................................................................................................. p.213
3.3.3. A res extensa e a concepo mecanicista de natureza......................................... p.219
3.3.4. A mathesis, cincia universal da ordem e da medida.......................................... p.224
3.3.5. Mathesis e avanos na taxonomia......................................................................... p.228
PARTE IV: A IRRUPO DO NOVO NA GEOGRAFIA: VARENIUS E A CINCIA
MODERNA................................................................................................................................
p.232
CAP. 1. VARENIUS E O NOVO CONTEDO DA GEOGRAFIA....................................
p.233
4.1-Varenius e a Cincia Moderna.......................................................................................... p.236
4.2- O a priori da Matemtica e o saber geogrfico............................................................... p.237
4.3-A estrutura da Geografia Geral: epistme clssica e a dimenso geogrfica da
descoberta da alteridade...........................................................................................................
p.240
4.4-Posteriores debates acerca da relao Geografia Sistemtica-Geografia Regional. p.247
4.5-O contedo da Parte Absoluta: a nova geografia da natureza....................................... p.249
EPLOGO- A queda bblica e a unio entre cincia e religio em Francis Bacon.............
p.254
Utopia e vida..............................................................................................................................
p.257
F. Bacon, o cristianismo e a cincia......................................................................................... p.262
A Casa de Salomo e a posse da Natureza na Nova Atlntida............................................. p.272
Consideraes finais.................................................................................................................. p.280
Referncias Bibliogrficas........................................................................................................ p.291
20
Referncias de Documentos Eletrnicos................................................................................. p.298
Lista de Ilustraes
Ilustrao 1. Pintura de William
Blake, The marriege of heaven and hell.
..................................................................p.27
Ilustrao 2. Tapearia A dama e o unicrnio (Final do sculo XV).
..................................................................p.50
Ilustrao 3. Pintura Medieval: Castigo de Ado e Eva, do Mestre Bertram de Minden- Altar de Grabow, Kunsthalle de Hamburgo de 1367 a 1415.
..................................................................p.55
Ilustrao 4. Mapa Mundi tripartido (TO-1472) inspirado em Isidoro de Sevilha.
..................................................................p.69
Ilustrao 5. Plano da viagem de Toscanelli ao Oriente rumando via Ocidente.
..................................................................p.87
Ilustrao 6. Portulano de Toscanelli (1457).
..................................................................p.88
Ilustrao 7. Esboo de Cristvo Colombo sobre as terras visitadas (1492-1493).
..................................................................p.91
Ilustrao 8. Mapa das descobertas de Colombo (Cristvo Colombo; Carolus Verardus, 1493).
..................................................................p.92
Ilustrao 9. Mapa de Martin Waldseemller (1507).
................................................................p.119
Ilustrao 10. Frontispcio da obra Novum Organum (1620), de Francis Bacon.
................................................................p.118
Ilustrao 11. Figura presente na obra O sbio (1509), de Bovelles.
................................................................p.131
21
Ilustrao 12. Sistema heliocntrico
de Nicolau Coprnico. p.149
................................................................p.150
Ilustrao 13. Pintura A anunciao (1472), de Leonardo da Vinci.
.................................................................p.182
22
Encobre o teu cu, Zeus,
Com vapores de nuvens, E, qual menino que decepa A flor dos cardos, Exercita-te em robles e cristas de montes; Mas a minha Terra Hs-de-ma deixar, E a minha cabana, que no construste, E o meu lar Cujo braseiro Me invejas
(...)
Pensavas tu talvez Que eu havia de odiar a Vida E fugir para os desertos, L porque nem todos Os sonhos em flor frutificaram? Pois aqui estou! Formo Homens minha imagem, Uma estirpe que a mim se assemelhe: Para sofrer, para chorar, Para gozar e se alegrar, E para no te respeitar, Como eu! (Goethe, Prometheus, 1785)
23
Introduo
So muitos admitimos desde j os caminhos, os temas, os conflitos de idias presentes
em nosso texto. No linear, no didtico, no metodologicamente intocvel o traado do
nosso pensamento nas no poucas pginas que se seguem. Enfim, temos, de antemo, a clareza de
um certo estranhamento que pode pairar sobre as pginas que aqui apresentamos enquanto nossa
tese de doutoramento.
No sem certa arbitrariedade, recortamos tempos, espaos, autores...enfim, por intermdio
de tais recortes, tentamos expressar, acima de tudo, contextualidades. Nisso tudo, tornou-se, a
realidade, circunscrita aos nossos propsitos de pesquisa, s nossas possibilidades de leitura, ao
nosso tempo no to abundante s vezes para a realizao do doutoramento e, nestas
limitaes, oprimimos, um pouco, nossas intenes de pesquisa, nosso, quem sabe, didatismo.
neste cenrio, portanto, que introduzimos, com certa resignao, o nosso texto.
Basicamente, o que se segue uma curiosa interpretao pessoal acerca de alguns
eventos, de alguns conflitos seguidos de outras tantas reafirmaes que conduziram a transio
do perodo medieval para a modernidade. Nisso tudo, procuramos trabalhar alguns temas que,
direta ou indiretamente, se circunscrevem edificao da Geografia Moderna.
Afirma-se, ao longo de todas as pginas do texto, uma diferena fundamental de
apreenso da realidade se compararmos a Idade Mdia com a Modernidade. Oficialmente, o
conhecimento medieval fez-se orientado com base no que fora escrito pelas autoridades do
passado, desfiando o presente em linhas de tempo que se referem, todas, aos contedos bblicos,
desarticulando, neste movimento, o espao presente da tambm presente temporalidade
construda pelas vigentes relaes sociais. Olhava-se para o mundo e suas marcas, suas grafias
24
eram todas tomadas enquanto significante de um significado que se esparramava para alm da
matria. No se parava na criao, no se deslumbravam, os homens medievais, com a natureza.
Participando de uma certa vida mstica, a matria era, quando no negada de forma asctica,
ferramenta que re-ligaria no sentido religioso mesmo o homem a uma realidade
transcendente, superiora, fim ltimo da vida humana no mundo. Neste sentido, objetivo e
subjetivo, realidade e pensamento no conheciam o trao da alteridade que, modernamente, os
separaria, propiciando, via rigor de um novo mtodo, um conhecimento que, talvez supostamente,
espelhasse, de forma cristalina, a verdadeira essncia de uma realidade que deveria independer da
medida do sujeito.
Era religioso o pensamento medieval, oficialmente religioso. Seus critrios de verdade
aparentemente absurdos para ns eram critrios qualitativos, simblicos, subjetivistas.
Simbolicamente, tomava-se toda marca do mundo enquanto repositrio de significados maiores,
transcendentes, teleolgicos em suma. Percebia, pensava, intua de forma diferente da nossa este
homem medieval.
Foi isso que procuramos demonstrar na primeira parte de nossa tese, intitulada A Natureza
na Idade Mdia e os contedos do espao e do tempo. Olhava-se para a natureza com uma srie
de contedos de antemo j estabelecidos. Um deles o do episdio da Queda, que traria para a
natureza uma certa ausncia de Deus, uma certa dessacralizao, uma vez que esta se tornaria
rugosa, hostil por ocasio do castigo imposto a Ado e Eva por terem cometido o pecado original.
No era, a natureza, plenamente objeto. Era um sujeito que desempenhava uma atitude de
oposio ao homem, de estmulo de seu saber visando impor a ela o seu ministrio perdido. Tal
tema o da Queda se estender, como veremos, at a Revoluo Cientfica, sendo mais
presente em Francis Bacon. Contudo, tal saber redundava em limitaes. Homo Sapiens que era,
estaria o homem medieval erudito separado do inferior homo faber, daquele sujeito que
desenvolvia um saber operativo frente ao mundo natural. Nisso tudo, defendia-se, maneira
platnica, a superioridade da mente sobre a mo, da teoria sobre a prtica.
Era, como j destacamos, crdulo este homem medieval. Os efeitos presentes na natureza
eram quase todos vinculados a causas transcendentes, divinas. natureza eram retirados os seus
25
mecanismos de auto-desenvolvimento. Para tanto, deveramos todos nos remeter mais uma vez s
causas ocultas, ao sobrenatural que, de acordo com os princpios agostinianos, s seria
reconhecido por predestinados olhos, por predestinados coraes. Nisso tudo, no parava, o
homem medieval, na criao, na matria mesma. Tudo era instrumento de re-ligao, tudo era
sinnimo de uma intensa atividade religiosa. O homem comum poderia ser cego diante deste
cenrio, mas deveria se deixar levar pelos predestinados que para ele escolheriam o caminho para
o desenrolar da verdadeira realidade que transcendia o significante da matria. Logicamente, h
claras implicaes sociais, polticas e econmicas nisso tudo.
No parava, o erudito medieval, no espao. Visava-se atingir Deus, deveria transcend-lo,
transp-lo.
Vs, porm, que viveis to alto e to perto de ns, to escondido e to presente, que no possus uns membros maiores e outros menores, mas estais todo em toda parte, no sois espao nem sois certamente esta forma corprea. Vs criastes o homem vossa imagem e contudo ele, desde a cabea aos ps, est contido no espao (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.149).
O homem est contido no espao, no Deus. Como o fim ltimo do saber medieval era
esta re-ligao, dogmtica tantas vezes, com Deus, no deveria o homem reafirmamos isso
parar nos contedos do espao material. Deus transcendia-o e devemos, ns tambm, transcend-
lo e, para tanto, voltarmo-nos para o mundo inferior, para o foro de cada um. Nisso, subjetividade
e objetividade amalgamavam-se aos contedos religiosos previstos e o que hoje chamamos
mundo objetivo fazia-se, pleno, repleto desta ausncia tipicamente moderna de demarcao entre
o que do sujeito e aquilo que pertence ao objeto. neste cenrio que produzida a Geografia
do perodo, que interpretado o espao.
Seriam, os chamados mapas TOs expresso disso. Como escrevemos no primeiro captulo
da tese, no h neles nenhum tipo de preocupao toponmica ou de preciso geomtrica. Os trs
continentes por eles representados seriam trs justamente por encontrarem uma justificativa no
discurso religioso: Santssima Trindade, eram trs os reis magos, eram trs os filhos de No
Sem, Cam, Jaf para quem realizou a diviso bblica. O que colocava em risco a f crist era
afastado radicalmente por alguns, haja vista a negao, por parte de Annimo de Ravena (sculo
VII d.C), do conhecimento dos limites orientais do mundo, uma vez que as Escrituras no
26
falavam da possibilidade de algum mortal entrar no Paraso, este sim confinado nos limites do
Oriente e velado ao homem.
Deus no se dilua na natureza, no estava contido nela. Potncia ativa e potncia passiva
se distinguiam no Renascimento o pantesmo de Giordano Bruno atuar, como demonstrado
na tese, na equiparao destas potncias. Deus tambm no se dilua no espao. Transcendia-o. E
era a religio que desligava o homem desta matria, religando-o ao distante Deus cristo.
Os contedos religiosos mediam o espao, explicavam a natureza, fazendo deles
instrumentos, portanto, de retomada de contato com a divindade. Nisso tudo, podemos falar que a
interpretao de tempo o fazia, tambm medido, mediado por contedos religiosos. Autoridade
iluminada, predestinada, Santo Agostinho ((354430) previra o fim do tempo da cidade dos
homens no transcorrer de 7000 anos. Assim, como bem destaca Chau (1998) Deus possuiria os
fios com que tece a histria, fabricando estruturas e padres internos que so invisveis para
aqueles que vem apenas a conexo causal externa. O tempo era, assim, to cheio de contedos
quanto o espao, quanto a natureza. Deveria, o tempo, explodir, afastar-se da mundaneidade da
mudana para, finalmente, dar lugar eternidade, re-ligando o homem divindade atemporal:
Vs, porm, sois sempre o mesmo, e todas as coisas de amanh e do futuro, de ontem e do
passado, hoje, as fareis, hoje as fizestes (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.44).
Cada acontecimento histrico, como a prpria vida de Cristo, s teria sentido no
enquanto acontecimento em si mesmo, mas, fundamentalmente, pela revelao que comporta,
precedendo e transcendendo o evento histrico (ELIADE, 1991). Assim como o espao serve
para amplificar causas distantes, revelaes transcendentes, e a natureza, neste sentido, tambm,
serviria o evento histrico, medido pelo tempo bblico, religioso, para manifestar intenes que o
transpem, que o superam em significado. , neste sentido, tambm smbolo, significante de um
significado mais profundo, oculto.
Em suma, esta a interpretao de natureza, espao e tempo medievais. Nos captulos que
seguem, aprofundamos tal discusso, trouxemos novos elementos e amplificamos a anlise com
uma gama maior de exemplos, de autores trabalhados. O essencial, acreditamos, este tipo de
27
percepo prenhe na reconstruo do que hoje chamamos de realidade atravs do crivo, do filtro
de preceitos religiosos codificados no cristianismo.
Discutida, sob um prisma bem pessoal, admitimos, a Idade Mdia, procuramos trabalhar
com uma personalidade que ilustra, simultaneamente, estas perspectivas de espao, natureza e
tempo medievais e, tambm, alguns elementos que romperiam com tal perspectiva.
Cristvo Colombo (1451-1506), em verdade, no era tipicamente um homem, um erudito
medieval. Vivera em outro tempo, em outro contexto. Mais do que isso: trazendo para o
conhecimento do europeu a existncia de um quarto continente, trouxe, tambm, grandes
impasses para o saber produzido, desenrolado da Idade Mdia para o incipiente perodo
renascentista que vivera.
Contudo, apresenta, o navegador genovs, vrios traos medievais. Cabe, aqui nesta
introduo, citar alguns. Quanto ao espao, faz-se presente, em Colombo, a crena, citada por ele
usando um j distante Isidoro de Sevilha (600-636), na existncia do paraso nos confins do
Oriente, onde o navegador se achava encontrar. V sereias, como a Geografia Medieval tambm
as viu, incorporando elementos gregos em seu maravilhoso.
Mede o tempo vinculado s profecias de Isaas com a interpretao agostiniana da Bblia
que preconizava a exploso do tempo mundano em sete mil anos. Sobre Isaas, Colombo
escreveu a seguinte preciosidade:
[...] a verdade que tudo passa, menos a Palavra de Deus, e se cumprir exatamente o que disse; e Ele falou to claro pela boca de Isaas em tantos trechos das Escrituras, afirmando que da Espanha lhes seria elevado o seu santo nome. E parti em nome da Santssima Trindade, e voltei com maior rapidez, trazendo em mos a prova de tudo o que tinha afirmado (COLOMBO, 1991, p. 134).
Colombo, homem da f que era, coloca-se enquanto unificador do que fora profetizado
por Isaas com a realidade do seu tempo (GIUCCI, 1991). E pela boca de Isaas, Deus profetizou
a converso da humanidade para o cristianismo, a absoluta redeno de todos os povos.
28
Seria, Colombo como ele mesmo pensava instrumento da providncia divina na
realizao desta nova cruzada. A proximidade com tal redeno, com, portanto, o final do tempo
mundano, era evidente. Como demonstramos no princpio do Captulo II da Primeira Parte,
intitulado Os contedos do espao e do tempo, Santo Agostinho previra o final dos tempos
passados sete mil anos. Do Gnesis at Cristo passaram-se 5343 anos, e de Cristo at o presente
em que Colombo escreve mais 1501 anos. A conta simples: restariam, assim, apenas 155 anos
para que o mundo fosse sublevado, unificado sob a gide do cristianismo. Colombo trataria,
portanto, de dar curso para a histria com base nos contedos bblicos previstos, com base no
conjunto de tramas que Deus desfiou para o mundo.
A natureza , basicamente, tratada sob o ponto de vista da utilidade. dessacralizada,
curiosamente tocada, mudada, inserida, porque no, no novo cenrio de necessidades que ia se
edificando em solo europeu. Como destaca Giucci (1991), a natureza intervm no intercmbio
entre nativos e comerciantes como simples pano de fundo, como galpo de matrias-primas e
reservatrios de mercadorias (GIUCCI, 1991). Tal perspectiva elucidada nas palavras de
Colombo:
Olhou para a serra e viu tantos, imensos e maravilhosos, que no seria capaz de calcular-lhes a altura e a retido, feito fusos grossos e finos, que logo percebeu que daria para fazer navios e uma infinidade de tbuas e mastros para as maiores naus espanholas (p. 65).
Avanam, pouco a pouco, os percalos da empresa. H o cenrio paradisaco que encanta,
que tragado pelo navegador genovs com o filtro de sua erudio literria que explode em
descries poticas, quase ensandecidas. H a escassez de provises, as doenas que se
proliferam, a adversidade dos ndios. Assim como no episdio da Queda, parece, pouco a pouco,
desfilar quele cenrio numa mirade de adversidades, de perigos iminentes. Colombo defende,
para tanto, o trabalho da terra, o labor humano para se opor s vicissitudes do meio. Instaura-se o
perodo ps-paradisaco.
Colombo, na verdade, sem se aperceber abrira o mundo para a diversidade, para a
diferena. Operou, sem conseguir compreender a magnitude do que estimulara, um golpe fatal
29
em vrias das crenas, dos valores medievais. Em 1507, um planisfrio atribudo a Martin
Waldsemller, apresenta pela primeira vez, na cartografia mundial, o continente americano,
pondo por terra a estrutura tri-partida do mundo medieval.
Abre-se o mundo para a diversidade. Pouco a pouco, instaura-se o mundo enquanto orbe
com contedos no previstos pelas autoridades medievais. Desenvolve-se, gradativamente, o
capitalismo na Europa. Desenvolvem-se l rupturas e, tambm, certas continuidades frente ao
saber cristo.
aqui que iniciamos a Terceira Parte de nossa tese, denominada A Natureza na ruptura
feudal e os novos contedos do espao e do tempo. Nele, discutimos, primeiramente, o
Renascimento, considerando-o, em concordncia com Koyr (1991) e Lenoble (s.d.), enquanto
um perodo de transio caracterizado pela destruio da ontologia aristotlica base de boa
parte do saber medieval, principalmente daquele derivado da Escolstica e pela gradual
construo de uma nova, que iria culminar na emergncia da cincia moderna. Enquanto
transio, h espao, no Renascimento, para uma infinidade de coisas tidas, antes, enquanto
impossveis pelo pensamento aristotlico. H no Renascimento a ecloso de vrias perspectivas
de entendimento da realidade, algumas absolutamente permeadas por tangentes toques de
misticismo, de experimentaes alqumicas, de previses astrolgicas e outras que, mesmo
apresentando traos do animismo, do misticismo do perodo, se aproximariam mais das
discusses de uma cincia j considerada moderna. No primeiro grupo, discutimos, basicamente,
Charles de Bovelles (1474-1553) e Paracelso (1493-1541). No segundo, inserimos nomes
diversos, com perspectivas diferentemente permeadas, tambm, por temas, olhares, explicaes
que os aproximariam dos contedos gerados na ecloso da cincia moderna. Assim, discutimos
nomes como Nicolau de Cusa (1401-1464), Palingenius, Nicolau Coprnico (1473-1543),
Giordano Bruno (1548-1600) uma das leituras mais agradveis que fizemos e, por fim,
Johannes Kepler (1571-1630).
De Paracelso, por exemplo, identificamos, inspirados pela interpretao de Foucault
(1999), as relaes de simpatia e analogia que, no perodo renascentista, vinculavam macro e
microcosmo, fazendo do mundo um perptuo desdobramento de contedos semelhantes,
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anlogos, que encadeiam, em similitude, em semelhana, toda a existncia. Aqui, faltaria, em
muito, o teste da negatividade sugerido por F. Bacon anos mais tarde, o rigor do estudo emprico,
indutivo, capaz de apreender, singularizando, cada componente, cada fragmento do mundo
natural, sem recorrer a simpatias, analogias de uma mente no colocada em relao de alteridade
com o mundo.
J os pensadores do segundo grupo operaram, no sem certa dose de misticismo, de
fantasia, certas rupturas, importantes novidades. Nicolau de Cusa desferiu um importante golpe
na defesa da centralidade da Terra e circunscreveu o olhar do sujeito posio ocupada por ele.
Palingenius, no seu popular Zodacos Vitae, publicado em 1534 incita ainda os debates acerca da
infinitude ou no do universo ao afirmar/defender a sua plenitude.
Nicolau Coprnico um caso parte. Procurou provar, ora com argumentos matemticos
opostos aos de Ptolomeu, ora por referncias mesmo divindade do Sol, a centralidade deste no
nosso sistema de mundo. A posio do homem em um girante planeta traria ao sujeito confuso
na percepo da realidade. Assim
[...] de uma maneira geral, toda mudana de posio que se v devida ao movimento da coisa observada, ou do observador, ou ento, seguramente, de um e de outro. [...] Ora, a Terra o lugar donde aquela rotao celeste observada e se apresenta nossa vista. Portanto, se algum movimento for atribudo Terra, o mesmo movimento aparecer em tudo que exterior Terra, mas na direo oposta. o caso em primeiro lugar da rotao diurna. Esta parece envolver todo o mundo exceto a Terra e as coisas que esto sua volta. Contudo, se admitirmos que o cu no tem nenhum destes movimentos e que ao contrrio, a Terra gira de Ocidente para Oriente, refletindo atentamente, concluiremos que isto se passa assim mesmo em relao nascer e ao pr do Sol, da lua e das estrelas (COPRNICO, 1984, p.29-30).
Foram vrios os centros que mudaram na poca de Coprnico: a centralidade do poder
definhava nas mos do clero, escorregando, passo a passo, para as mos da burguesia; a ruptura
protestante instalara uma ciso na centralidade religiosa catlica, bipolarizando as perspectivas
religiosas. No movimento de gestao de uma nova ordem social na Europa, assim,
historicamente ia se convulsionando, tambm, uma nova concepo de homem, de espao, de
tempo, de natureza, de conhecimento e o copernicanismo fez-se expresso do princpio destas
novidades.
31
Giordano Bruno, por seu turno, em tom agressivo, tantas vezes, clamou a infinitude do
universo, a existncia de vrios sis, de inmeros mundos. Homogeneizou os espaos, se
antecipando, em certa medida, ao espao geomtrico de Galileu, defendendo, contra a fsica
peripattica, a inexistncia de lugares privilegiados, a igualdade de leis entre mundos lunar e
sublunar. Pantesta que era, defendeu a igualizao entre a potncia ativa de Deus e potncia
passiva do mundo, ambas infinitas. Assim o seu Deus no transcendia como o Deus cristo o
mundo da natureza. Confundia-se, inebriava-se com ele, sendo alma ativa, transformista das
vrias geraes e corrupes que haveria de existir no universo. Opondo-se, assim a vrios dos
valores, dos dogmas da Igreja, fora, Giordano Bruno, queimado pela Inquisio em 1600.
Haveria um horror secreto nas idias que carregavam consigo o princpio da infinitude do
universo. Era este o raciocnio de Kepler. A astronomia deve se limitar ao domnio dos sentidos,
como bem ensinou seu mestre Tycho Brahe (1546-1601). O instrumento olho seria fundamental
na apreenso dos contedos do mundo...e tais contedos, em sua essncia, haveriam de ser todos
matemticos. Nestes termos, Kepler teria concebido uma harmonia matemtica que seria
subjacente aos fatos observados, atuando enquanto causa, em verdade, de tais fatos. A ordem
matemtica mais abrangente, desta forma, descoberta nos prprios fatos, causando-os. Assim,
empirismo e imanncia matemtica dos contedos do mundo vincular-se-iam na perspectiva de
Kepler. Na verdade, estimularia, o raciocnio matemtico, um novo tipo de percepo por parte
do sujeito, agora embebido na sociedade do nmero, nas operaes quantitativas que, maneira
burguesa, fariam do mundo um imenso clculo de vantagens. Tal sociedade estaria sendo gerada
j h algum tempo.
Mudanas na concepo de universo, de sujeito, de natureza, de homem, de espao, de
tempo. A individualidade dos autores aqui citados expressaria, desta forma, a contextualidade por
eles vivida que, gradativamente, emprestaria contedos diferentes para o conhecimento,
implementando rupturas, saltos com relao ao j passado perodo medieval.
Neste cenrio, espao, tempo e natureza ganhariam, gradativamente, uma nova roupagem,
uma nova significao. Seculariza-se a conscincia, torna-se, pouco a pouco, laico o saber. E a
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religio, que emprestava contedos, uma teleologia para ambos, afasta-se, em parte, da cincia, se
funcionalizando enquanto pedagogia da alma, enquanto ditadora, ainda, de princpios morais.
O espao no mais precisaria re-ligar o homem ao no mundo, no realidade da sobre-
natureza. No era mais smbolo, mais significante que conduziria a um distante significado.
Seria o espao considerado enquanto pano de fundo, absoluto numrico que mediria, sem
qualquer contedo subjetivista, sem qualquer perfil telolgico, o movimento dos seres, dos
corpos. esta a perspectiva que emerge da pintura Renascentista e esta a perspectiva que se
densifica no pensamento de Galileu Galilei (1564-1642). Para tanto, este se ops,
diametralmente, a Aristteles.
Para este, o nico estado natural existente seria o repouso. Para se mover, um corpo
necessitava que fosse desempenhada uma ao sobre ele. Galileu, por seu turno, considerar o
movimento uniforme, em linha reta, to natural quanto o repouso. Assim, naturalmente um corpo
se moveria se no fosse parado por algo. Este seria o princpio da lei da inrcia que detinha,
como necessidade, a existncia de um espao absoluto, referencial. Contnuo numrico seria, este
espao absoluto desenvolvido mais tarde por Newton o medidor da passagem dos corpos,
precisando, numericamente, o seu deslocamento. Este o espao da fsica que se constri, que se
amplifica em consonncia com a emergncia de uma nova matriz de pensamento, de uma razo
que se instrumentaliza para ordenar e medir, de fora, distante, os fenmenos.
Na tese, discutimos a emergncia desta nova concepo de espao na pintura em
perspectiva do Renascimento.
Os contedos religiosos no mediriam mais o tempo tambm. Na verdade, assim como
ocorre com espao, no haveria mais contedos medindo o tempo. Ambos se tornariam os
medidores externos aos fenmenos, ordenando-os, tornando-se assim, tambm, instrumentos de
anlise. Szamosi (1988) destaca que em Galileu a passagem do tempo seria um processo da
natureza soberano que no seria condicionado por qualquer outra coisa no ambiente. Era o
movimento descrito em termos de tempo, no o contrrio. Assim, poderia ser o tempo
33
matematicamente regulado. Este novo tempo mtrico, digamos, originou-se, antes, na msica
polifnica.
Muda-se neste contexto, tambm, a imagem de natureza. Ren Descartes (1596-1650),
figura tambm clebre na irrupo do pensamento cientfico moderno, projetar para a natureza
uma imagem mecnica. Deus, em Descartes, tambm figura distante do mundo material,
natural. maneira escolstica, deduz Deus dos diferentes graus de perfeio existentes no
mundo. Somente por intermdio do nosso pensamento que poderamos atingi-lo. Existe Deus,
portanto, com base na necessidade de ser ou de existir que est entendida na noo que
possumos Dele. Relegando Deus ao pensamento, se dessacraliza, radicalmente, a natureza, a res
extensa. A dessacralizao do meio proveniente, no cristianismo, do afastamento de Deus do
mundo material, , em Descartes, radicalizado: para ele, Deus teria dado o primeiro sopro, o
primeiro impulso para a natureza que, desde ento, funcionaria de forma regular, mecnica.
Atingir os contedos desse Deus s seria possvel mediante o pensamento. J no , a natureza, o
espao, smbolo de nada, significante de nada. Torna-se, neste sentido, o pensamento nico
smbolo, nico meio de re-ligao com a divindade.
Como destaca Henry (1998), a quantidade de movimento do mundo permaneceria sempre
constante, regular. Eterno seria, portanto, o impulso de Deus. Quando se inicia um movimento
em um dado lugar, em algum outro lugar do mundo-mquina uma quantidade correspondente de
movimento teria que ser absorvida. De contato fsico em contato fsico, todo o sistema se
moveria. Encaixado. Espaos vazios no haveria. Somente nexos mecnicos de causa e efeito
encadeando diferentes peas de uma nica mquina.
Se Descartes no v, claramente na natureza, um repositrio de figuras geomtricas, de
smbolos matemticos, como o fez Galileu, defende, no bem conduzir da razo, a coerncia
lgica da lgebra, a nitidez, precisa. Da matemtica.
Gradativamente, os contedos religiosos desligam-se, explicitamente, das discusses da
cincia. Tempo, espao e natureza perdem suas antigas conotaes teleolgicas, deixando de ter a
previsibilidade que lhes era imanente pela correspondncia de seus fins com os ditames da
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religio crist. Contudo, os contedos religiosos, predominantes no pensamento medieval, no se
fazem plenamente ausentes. So transformados, ora adicionados, ora removidos, tantas vezes
escondidos. Mas permanecem, ainda, fortes em certa medida. O Deus cartesiano , no nosso ver,
expresso disso. O discurso de posse da natureza de Descartes e, mais ainda, o de F. Bacon, tem
muito dos contedos da Queda bblica, de uma certa obrigatoriedade moral com relao ao
domnio humano sobre a natureza. Voltaremos, nesta introduo, a tratar disso.
Atravs de alguns autores, de alguns contextos, tentamos, portanto, traar uma
comparao entre as possveis interpretaes medievais de natureza, espao e tempo e algumas
das modernas. No sem arbitrariedades. No sem recortes. No transcorrer da tese, portanto,
procuramos dimensionar algumas das transformaes por ns aqui narradas em uma obra
extremamente importante da Geografia que, no nosso ver, figura uma srie de rupturas com
relao ao saber medieval, com relao sua Geografia.
A Geografia Geral de Varenius (1631-1650), publicada em 1650, uma obra repleta de
novidades recentes. Como discutimos na ltima parte da tese, chamada - A irrupo do novo na
Geografia: Varenius e a Cincia Moderna h nela aluses a Nicolau Coprnico, a Galileu
Galilei. Isaac Newton cuidou de uma edio inglesa de tal obra que, entre tantas outras
novidades, trabalhou, como nenhuma obra anterior o fez, os fenmenos geogrficos dentro de um
mundo recentemente descoberto enquanto orbe pela ocasio dos descobrimentos.
Diferentemente do material geogrfico medieval, que era instrumento de reflexo, de re-
ligao e, tambm, de afirmao de dogmas, a Geografia de Varenius clama por uma
aplicabilidade, pela produo de um saber til ao comrcio, ao Estado. Exalta o recuo das reas
de sonho, de mitos, em nome do contedo emprico que apareceria radiante caso o vu da
ignorncia fosse retirado das reas do mundo, do globo terrestre.
A Geografia seria, para Varenius, um ramo da matemtica que colocaria, em ordem, os
elementos do planeta por isso a preocupao com uma geografia geral. Ramo da matemtica
que era, portanto, a Geografia mediria, exatamente, a posio dos fenmenos; ilustraria, nos seus
critrios de exatido, os contedos dos elementos geogrficos. Se o tempo, se o espao mediriam,
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matematicamente, os fenmenos da natureza, seria a mestra fundamentao matemtica, o
mesmo pano de fundo numrico que entrecortaria todos os fenmenos tidos enquanto
geogrficos, arranjando-os, precisamente, no numrico espao das cartas cartogrficas,
ilustrando-os precisamente tambm, uma vez dadas suas posies reais. Nisso tudo, h muito, na
obra de Varenius, daquilo que Foucault (1999) chama de mathesis universal que estaria por
detrs do nascente pensamento moderno.
Afastam-se, em Varenius, as significaes simblicas. O pensamento torna-se o nico
smbolo, nica possibilidade de contato com uma divindade que no mais esparrama, pelo
mundo, suas marcas, sinais de sua existncia. Qualidades primrias e secundrias da matria so
separadas. Isso est presente em Descartes, em Galileu, em F. Bacon, em Hobbes e um pouco
antes em Kepler. Nisso tudo, realmente apareceria o mundo.
Varenius se preocupa com as definies precisas, infalveis da matemtica. Afastando
toda e qualquer dubiedade, define o que seria um monte, uma jazida, um lago, uma laguna, um
pntano...colocando os fenmenos naturais descritos em sua dimenso espacial pela Geografia
em relao de alteridade. Neste sentido seria, a dimenso regional de sua Geografia a geografia
especial uma clara defesa dos procedimentos indutivos to teis, posteriormente, a Humboldt
(1869-1859), Ratzel (1844-1904), e Vidal de La Blache (1845-1918). O procedimento geral da
ordem e da medida se vincularia, assim, aos reais traos fsicos verificados particularmente. De
regio em regio.
Terminamos a tese inventamos um eplogo em seu final , enfim, com algo
aparentemente incoerente: um tema bblico. No sculo XVII o tema da Queda seria, como j
citamos, em profuso, retomado. No cerne da cincia moderna, o maior expoente da rediscusso
de tal tema teria sido Francis Bacon (1561-1626).
Sucintamente, podemos dizer que em F. Bacon, o tema da Queda ganharia o seguinte
contorno: ocorrida a queda, o solo tornara-se amaldioado, hostil. Seria, neste sentido, a natureza
um sujeito de oposio ao homem. Vimos isso com relao Idade Mdia. F. Bacon, ciente dessa
situao, vai afirmar, em tom bastante severo, toda a inoperncia do saber produzido at ento,
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inclusive do medieval. At ento, para F. Bacon, o homem no teria conseguido se redimir do
castigo da queda. No teria se tornado o ministro e o intrprete da natureza, situao esta que
espontaneamente possua antes do flagelo da queda.
Isto se deu, primordialmente pelo esquecimento da leitura direta do texto bblico. Isto se
deu, tambm, pelo equvoco histrico de separao entre mo e mente, entre teoria e prtica.
Moralmente, o texto bblico claramente incute sobre o sujeito a necessidade deste tornar-se dono
da natureza, posta sua situao superiora na hierarquia dos seres. Neste sentido, verdade e
utilidade coincidiriam, uma vez que verdadeiro tornar-se-ia todo o conhecimento que
aproximasse o homem de tal fim. E seria este o fim ltimo da cincia.
Desta feita, terminamos a tese retomando o tema natureza. Interpretamos F. Bacon no
sentido de demonstrar, tambm, as novidades interpretativas com relao natureza que surgem
com o advento da modernidade. Contudo, o chanceler ingls demonstra, tambm, as fortes
reminiscncias do discurso religioso que, de certa forma, inserem continuidades em meio a
novidades, permanncias num cenrio de rupturas.
A natureza ganha, na cincia moderna, uma imagem mecnica, numrica. E isso encerra
em si uma mirade de novidades, de novos olhares possveis. Contudo, o discurso de posse,
estimulado pelo eterno conflito entre homem e meio, faz-se retomado, revigorado na manuteno
de uma leitura crist de mundo. Isso est explcito em Descartes. Mais ainda em F. Bacon. E na
acentuao de uma viso de natureza enquanto externalidade, enquanto objeto que se construiro
os vrios discursos acerca da natureza, inclusive o especificamente geogrfico, vinculado at os
dias de hoje.
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Prlogo:
A Queda bblica e a Queda em Blake
Todas as Bblias ou cdigos sagrados tm sido as causas dos seguintes erros:
1.Que o homem possui dois princpios reais de existncia: um Corpo & uma Alma. 2. Que a energia, denominada Mal, provm apenas do Corpo; & que a Razo,
denominada Bem, provm apenas da Alma.
3. Que Deus atormentar o Homem pela eternidade por seguir suas energias. Mas os seguintes Contrrios so Verdadeiros:
1.O Homem no tem um Corpo distinto de sua Alma, pois o que se denomina Corpo uma parcela da Alma discernida pelos cinco Sentidos, os principais acessos da Alma
nesta etapa. 2. Energia a nica vida, e provm do Corpo; e a Razo, o limite ou circunferncia
externa da Energia.
3. Energia Deleite Eterno (William Blake em A Voz do Demnio- O Matrimnio do Cu e do Inferno).
Ele disse ao homem: Escutaste a voz de tua mulher, e comeste da rvore que te ordenei
no comer jamais o solo por tua causa ser maldito. Durante todos os dias de tua vida,
ser fora de trabalho que conseguirs comida. O trabalho trar, para ti, embaraos e
dificuldades, e tu comers a erva dos campos. Ser pelo suor do teu rosto que comers o
po, at que retornes terra da qual fosse tomado, porque tu s p e tu retornars ao
p.
(Gnesis).
Primeiramente, faz-se necessrio apontar os caminhos pelos quais trilharemos no sentido de construir uma interpretao acerca de como a Idade Mdia teria concebido a natureza.
Reconhecemos, desde j, o perfil pretensioso da empresa, bem como as limitaes a ela
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circunscrita, uma vez que temos clareza quanto impossibilidade de se universalizar uma
explicao absoluta, inconteste, acerca da compreenso medieval e moderna de natureza, bem
como do espao e do tempo. Isso sem falar nas mudanas ocorridas no plano da cincia
geogrfica que paralelamente estaremos tambm discutindo.
Um importante tema percorrer boa parte da tese. Em verdade, fechar seu contedo. Tal
tema referente Queda bblica. Dela da Queda adviriam significativos discursos,
valorativos olhares quanto ao papel do homem frente ao geral cenrio da Criao1. Da
interpretao medieval da Queda adviria, fundamentalmente, a compreenso da natureza
enquanto exterioridade e do homem enquanto ser apartado da estrutura geral da Criao,
sobrepondo-se a ela. Gostaramos de tratar por agora, mesmo que provisoriamente, deste tema.
O tema da Queda de extrema relevncia na cultura ocidental. Atravs de sua
interpretao, os homens moderno e medieval discursaram acerca da necessidade moral de
domnio da natureza, de reestabelecimento de uma situao paradisaca perdida pela ocorrncia
do pecado original.
Basicamente, tal tema cristo tem sido interpretado nos termos de um suposto retorno,
para o homem, de um controle sobre a criao. Antes da Queda, toda a natureza se prostrava
diante da mais perfeita criao de Deus que era o homem. Depois, perdendo um significativo
escopo de suas potencialidades, viu-se o homem obrigado a desenvolver o trabalho, a impor sua
razo, sua vontade, oposio desempenhada pela natureza aps o castigo da Queda.
Confrontam-se ambos. Homem de um lado. natureza, do outro.
Se, como o prprio relato bblico deixa transparecer, antes de o homem comer do fruto
proibido presente na rvore do conhecimento do bem e do mal, podia ele comer, se aproveitar e
fazer posse de toda a benevolente natureza presente no Jardim do den, aps a induo de Ado
por Eva, a aspereza e a maldio se espalharam pelo mundo, tornando o antes receptivo cenrio
em obstculo a ser vencido pelo trabalho humano, pela fora de sua inteligncia agora
1 Como veremos no final deste trabalho, tais discursos se estenderiam, de forma bastante significativa, incluindo uma clebre personagem do pensamento cientfico moderno: Francis Bacon.
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parcialmente presente. A eternidade foi retirada da condio humana e Ado faleceu com
novecentos e trinta anos, tempo este diminudo na vida dos Homens posteriores pelo afastamento
da Idade do Ouro que foi dando curso para a histria mundana da humanidade.
A unidade de homem com Deus que caminhava visvel no Paraso foi perdida e o Jardim,
aps a expulso do casal primognito, foi cercado por querubins que agitavam uma espada
flamejante, visando proteger o caminho que levava rvore da vida, eternidade.
Antes da interveno divina que extirpou do paraso a presena do casal, Ado e Eva, logo
aps comerem do fruto proibido, se entreolharam. Perceberam, ento, que estavam nus e se
cobriram com folhas de figueiras. Foi neste momento que ouviram a voz de Deus que, como de
costume, passeava pelo jardim: Quem te ensinou que ests nu?
Em suma, uma vez fechado para todo o sempre o paraso terreal, perde-se a eternidade,
conflagra-se o tempo mundano, avulta uma natureza hostil, que deve ser submetida. Da Queda
resultaria, portanto, a oposio homem-natureza, o escancarar de suas diferenas, de seus fins.
Torna-se, o domnio do meio, externo, condio moral de resgate da natural situao que foi
corrompida pelo erro do casal primognito.
H, contudo, dentro da tradio ocidental, interpretaes diferentes acerca deste evento
bblico. A ttulo de ilustrao, de enriquecimento do debate, gostaramos de discutir, mesmo que
brevemente, a interpretao construda pelo poeta ingls William Blake, que aqui nos servir
enquanto possibilidade de confronto frente ao iderio geral que domina o tema que, como
dissemos, se far presente em vrios momentos da tese, inclusive a encerrando.
William Blake vivenciou o conturbado ambiente ingls de transio do sculo XVIII para
o XIX (viveu de 1757 a 1827). Como ressalta Vizioli (1984), ao lado de escritores como Thomas
Chatterton (1752-1770) e James Macpherson (Ossian), viu na exaltao da razo e esta uma
caracterstica de todo movimento pr-romntico as chagas da sociedade de seu tempo,
empolgada, em parte, pelos ventos trazidos pela Revoluo Francesa, e socialmente mazelada
pelo princpio da Revoluo Industrial. Chega a comparar, como ressalta Chawn (1994) a razo
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de seu tempo, oficialmente cientfica, repleta de valores advindos das inovaes tecnolgicas
ancoradas no par cincia/tcnica, a rodas munidas de dentes tirnicos movidos por presso
recproca.
A mquina, smbolo dos novos tempos, modelo do universo, regula, na retido de seu
movimento2, a vida em uma sociedade desfigurada em seu passado medieval e, em analogia com
o seu tempo, aprisiona, acorrenta, mi em dentes metlicos toda a srie de energias aprisionadas
desde o momento em que os pares dialticos Atrao-Repulso, Razo-Energia, Amor-dio
foram continuamente apartados pelo sacerdcio3, uma vez que no h condio humana plena
sem tais pares, nem progressos sem eles.
A Queda seria, segundo Blake, o primado da razo, da alma, sobre as energias do corpo,
trazendo ao homem a perda de um outro tipo de caracterstica imanente, primordial que deveria
ser reconquistada. A Energia, Deleite Eterno, viria a restabelecer tal unidade perdida e para tanto,
o smbolo do Demnio seria de fundamental importncia nesta nova juno entre corpo e alma e
a chave para a compreenso do obscuro pensamento do poeta ingls. ele quem diz A Voz do
Demnio que quem refreia o desejo assim o faz porque o seu fraco o suficiente para ser
refreado; o refreador, ou a razo, usurpa-lhe o lugar & governa o inapetente (p.19).
Interagindo com o mundo, sem o recorte do racional, com o afresco da imaginao, o
homem percebe a plenitude da criao que, portanto, somente se mostra na restituio da unidade
perdida, no conjunto das polaridades, na inocncia da criana ainda no corrompida nas regras
que formalizam a relao do homem com o mundo e com o seu semelhante. A diviso entre bem
2 Nos Provrbios do Inferno, Blake (2001) assim diria: O Progresso constri caminhos retos; mas os caminhos tortuosos sem Progresso so caminhos do Gnio (p.29). 3 Mais uma vez, nos Provrbios do Inferno, que compem o livro O Matrimnio do Cu e do Inferno,William Blake (2001) nos oferece com muita nitidez a sua crtica ao saber religioso institucionalizado na figura do sacerdcio: Os Poetas Antigos animaram todos os objetos sensveis com Deuses e Gnios, nomeando-os e adornando-os com atributos de bosques, rios, montanhas, lagos, cidades, naes e tudo quanto seus amplos e numerosos sentidos permitiam perceber. E estudaram, em particular, o carter de cada cidade e pas, identificando-os segundo sua deidade mental; At que se estabeleceu um sistema, do qual alguns se favoreceram & escravizaram o vulgo com o intento de concretizar ou abstrair as deidades mentais a partir de seus objetos: assim comeou o Sacerdcio; Pela escolha de formas de culto das narrativas poticas. E proclamaram, por fim, que os Deuses haviam ordenado tais coisas. Desse modo, os homens esqueceram que todas as deidades residem no corao humano (p.31).
41
e mal, a moral que sacrifica os impulsos fruto da Queda. humanidade, resta a luta pela
restituio do imanente perdido.
Onde Blake v unidade, o pensamento ocidental cristo v luta a ser conflagrada aps a
Queda. E eis que se inicia, segundo o poeta, o imprio da razo e a perda das deidades que
habitam o corao humano. Cristo Razo. Lcifer a Energia. H, portanto, a necessidade do
Matrimnio, como a Ilustrao 1, de um de seus principais livros, bem demonstra.. Contudo, o
que se observa justamente a construo de um grande sistema de interpretao do mundo,
codificado pela Bblia, que v no tema da Queda, como j ressaltamos, uma justificativa moral
para o retorno unidade perdida. Exterioridade, a Natureza elemento fundamental nesta busca
de redeno do esprito humano. corpo, matria sem alma. , o homem, ambos, tendo, contudo,
na alma, o primado, a superioridade sobre o material, inclusive sobre o seu prprio corpo.
atestada, em certo sentido, a inferioridade dos corpos do homem, do corpo do mundo. A alma,
que Blake concebe enquanto sinnimo de razo, deveria se sobrepor ao corpo do homem, ao
corpo do mundo, energia do poeta. Para o cristo, a volta da unidade se daria, portanto, pela
ao da alma sobre o mundo, sobre a natureza externa. Para Blake, tal unidade s se daria pela
ruptura frente a esta viso de externalidade, unindo em matrimnio alma e corpo, razo e energia.
42
Ilustrao 1. Pintura de William Blake para o seu livro O casamento do cu e do inferno (pintura: The marriege of heaven and hell, 1793). Fonte: www.gailgasfield.com/blake.html - No h progresso sem Contrrios. Atrao e Repulso, Razo e Energia, Amor e dio so necessrios existncia Humana. Desses contrrios emana o que o religioso denomina Bem & Mal. Bem o passivo que obedece razo. Mal, o ativo emanado da Energia. Bem Cu. Mal Inferno (p.17).
43
Blake, desta maneira, explicitaria, como parte de todo o movimento romntico tambm o
explicitou, oposio ferrenha, rdua, frente instrumentalizao da razo, transformao do
homem em um feixe de qualidades secundrias que o distinguiriam, absolutamente, do mundo
material, natural. Blake teve a sensibilidade genial, diga-se de vincular tal instrumentalizao
s matrizes do pensamento cristo, criticando, em tom de simultaneidade, cincia moderna e
teologia crist. Ora apartando-se, ora ferreamente se articulando, ambas cincia moderna e
teologia crist sero tratadas aqui tendo como pano de fundo uma discusso relativa ao conceito
de natureza, tanto na Idade Mdia como no princpio da Modernidade, discusso esta que cuidar
tambm de tratar das categorias espao e tempo.
O curioso desta discusso que, como o leitor poder perceber, h rupturas significativas
de percepo da realidade que distanciam, abruptamente, o homem letrado medieval do homem
letrado moderno. As concepes de tempo e espao, e o prprio tipo de saber geogrfico
produzido, atestam tal distncia. Contudo, o papel do homem perante Criao, o discurso de
posse, a Natureza vista enquanto externalidade, pouco sacra devido existncia de um Deus que
a transcende, que nela no se dilui, permanecem enquanto fio condutor, referencial no
pensamento ocidental. Ousamos dizer que tal perspectiva permanece at hoje, apesar de gritos de
crtica como os de William Blake. a demonstrao disso que constituir o caminho que
trilharemos na tese. Comecemos, ento, o seu traado...
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Parte I
A Natureza na Idade Mdia e os contedos
do Espao e do Tempo
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CAPTULO I
A NATUREZA
1.1- O papel do trabalho nos primeiros sculos do cristianismo
No livro do Gnesis, antes da Queda, Deus j havia ofertado ao homem a posse sobre os bens externos, materiais, no momento em que a maldio ainda no havia sido deflagrada sobre a
Criao:
Deus criou o homem sua imagem, imagem de Deus, criou o homem e a mulher. Deus abenoou-os e disse a eles: Sede frteis, multiplicai-vos, enchei a terra e a subjugai. Dominai sobre os peixes do mar, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. E Deus disse: Aqui est, dou a vs todas as plantas que esto sobre a terra e as sementes que elas carregam, e todas as rvores frutferas isso ser o vosso alimento. E a todos os animais da terra, a todos os pssaros do cu, a tudo o que se move sobre a terra, tendo em si um sopro de vida, dou o verde como alimento. E assim ocorreu. Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que tudo era muito bom. E foi a tarde e foi a manh: o sexto dia (GNESIS, 2001, p.13).
Dentro da escala dos seres, o homem, de imanncia racional e divina, detinha, portanto, o
domnio espontneo sobre tudo que fora criado. O Eterno fez, findada a criao, todos os animais
dos campos e as aves do cu virem at o homem para que este lhes oferecesse um nome. Depois
disso, o fez cair em sono profundo, criando, finalmente de sua costela, a mulher4.
4 Lenoble (s.d.), em poucas palavras, consegue demonstrar o tipo de relao de poder inerente a esta incumbncia de Ado em denominar a natureza e, tambm, em oferecer parte de si para a criao de sua companheira: H que recordar finalmente que, tal como os metais e os corpos fabricados, tambm as palavras permaneceram durante muito tempo, poderes sobre a natureza e sobre as conscincias. De tal maneira que na Bblia, se Deus traz a Ado, para que lhes ponha nomes, os animais e a companheira formada da sua costela, para que tenha poderes sobre eles e sobre ela; s Deus d nome ao Cu, Terra, s guas, ao dia, noite, porque s ele tem poder sobre eles (p.197).
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Veio ento, como j vimos, a Queda. Bem e mal se demonstraram em plenitude, fazendo
da natureza um sujeito ativo, que nos seus espinhos, em seus cardos, provoca o homem a ser ele
tambm um sujeito da ao que deve submeter o mundo exterior s suas necessidades. No
prprio livro do Gnesis, naes nasciam na ramificao da rvore genealgica de Ado e Eva.
Multiplicar-se, seguindo, muitas vezes sem compreender o desgnio do Criador, do nico Deus -
como bem demonstra o episdio em que Abrao deveria sacrificar o seu filho Isaque a pedido de
Deus parecia envolver uma trama em que a criatura, recm existente, deveria conduzir o
processo de retorno unidade da Criao, ao antigo estado paradisaco. Le Goff (1990), explicita
este tipo de situao ao destacar o papel do deserto no Antigo Testamento: o caos originrio, o
anti-jardim, lugar de provas individuais para os patriarcas.
O episdio de No, que antecede a histria de Abrao, bem demonstra a necessidade de
reinicio da comunho do homem com a Criao, uma vez que Deus percebeu que a maldade do
homem era grande sobre a terra, arrependendo-se de t-lo feito, dizendo: Exterminarei da face da
terra o homem que criei, e tambm os animais domsticos, os rpteis, os pssaros do cu, porque
me arrependo de os haver feito (p.23)5.
A terra, aps a Queda, aps o Dilvio, fez-se, de acordo com toda a tradio crist, em
morada disposta para o homem, como ressalta Glacken (1996). Isso ser verdadeiro tambm com
relao Idade Mdia. Contudo, no referido perodo, dentro desta disposio da terra para o
desenrolar dos desgnios divinos inerentes ao homem, h disposies que ou atestam a
mundaneidade do mundo, negando o ofcio corporal, o trabalho direto de supresso das
vicissitudes do meio enquanto meio de dignificao da alma, de restituio do bem ou que
afirmam a positividade de uma interveno direta sobre a natureza e a dignidade encontrada na
sujeio do mundo para o melhor viver daquele feito imagem e semelhana de Deus.
Santo Ambrsio (340-397), mestre de Santo Agostinho (353-430), expressando a
mundaneidade do mundo, chegou a dizer, segundo Lenoble (s.d.) que o homem colocado na terra,
revestido pela carne, no pode ser sem pecado, pois a terra como um lugar de tentaes e a
5 O episdio do dilvio expressa o simbolismo que a gua adquire nas mais diversas tradies religiosas, desintegrando, abolindo as formas, lavando os pecados na criao ou recriao do mundo (ELIADE, s.d.).
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carne um apelo corrupo (p.219). Este tipo de postura, presente principalmente nos primeiros
anos do cristianismo, se incrustar em perspectivas que atestam a necessidade de domnio, do
trabalho e, paulatinamente, sucumbir diante da estabilizao do catolicismo pelo continente
europeu. Muitas questes estimularo a este amansamento dos que relegam, como Santo
Ambrsio, ao mundo um carter exclusivamente bestial.
No mbito da vida prtica, das atividades desenvolvidas pelos camponeses, o perodo
medieval caracterizou-se por um incremento da relao do homem com o meio bastante mpar se
comparado s maiores inovaes da Antigidade. Como ressalta Gandillac (1995), quase sem o
conhecimento dos estudantes parisienses que, principalmente a partir do sculo XIII comearam a
estudar Aristteles e se delongavam na anlise do Texto Sagrado, o homem medieval desbravou
florestas, drenou pntanos, no apenas colonizou no norte e no leste da Europa, imensas regies
quase desertas, mas mesmo no interior das antigas regies romanizadas, duplicou, quando no
triplicou, em mdia o rendimento das terras, alcanando um nvel de transformao que somente
foi superada a partir do salto tcnico datado de meados do sculo XIX. H, segundo o autor,
testemunhos evidentes de uma verdadeira revoluo tcnica ao longo de todo perodo, espelhados
nas seguintes inovaes:
Afolhamento trienal, esterroamento regular, multiplicao das fundies [...], arados de ferro com rodas e cuivera (desconhecidas pela Antigidade e que quase no sofrero alteraes na forma at a brabante do sculo XIX), inveno da ferradura, da braadeira de atrelagem, do jugo frontal, substituio dos pavimentos romanos rgidos por um sistema elstico de calamento das estradas, implantao de moinhos de vento e de moinhos dgua [...] (GANDILLAC, 1995, p.29).
A prpria teologia crist, desde os primeiros tempos da patrstica (sc. I a sc. VII),
interpretou o Gnesis defendendo a idia de que o homem vivia como colaborador de Deus um
Deus que, segundo Santo Agostinho, mantm o seu ato divino sobre o mundo, pois sem ele tudo
retornaria ao nada (GANDILLAC, 1995) , devendo acabar a criao em um mundo finito,
criado e destrutvel (GLACKEN, 1996). A defesa de um saber til, operativo, que reconhece no
mundano um estmulo no para o afastamento de seu contedo, mas para a reafirmao da
necessidade de submet-lo ao controle, ao labor humano tornado penoso, cansativo aps a Queda,
configurou-se, como enfatiza Clarence Glacken, em um imperativo fundamental para a
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legitimao do tipo de saber cristo frente s crticas pags de que este renunciava o mundo,
negava-o na busca platnica pela verdade restrita alma, apartada do corpo6.
Santo Agostinho (354-430) explicitou a resposta para tais crticas. Para ele, o corpo e a
mente nos oferecem tipos de conhecimento diferentes, o primeiro proporcionado pela ao dos
sentidos e o segundo pela ao da mente. Assim,
Quando, pois, se trata das coisas que percebemos pela mente, isto , atravs do intelecto e da razo, estamos falando ainda em coisas que vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual iluminado e de que frui o homem interior (SANTO AGOSTINHO, 1956, P.117).
Nestes termos, verdade divina cabe somente um tipo bastante especfico de reflexo
interior, que independe dos sentidos (MOROZ & RUBANO, 2000) e atua enquanto efeito de
iluminao do foro interior de cada um penetra em tua alma, em teu foro interior, diria o
telogo (KOYR, 1991).
A luz divina que ilumina todo homem, sol inteligvel do mundo das idias, imprime, na
alma, todo o reflexo das idias eternas, das idias de Deus, de todos os arqutipos e no
estudando o fugidio mundo dos sentidos, reflexo imperfeito da Cidade de Deus, que a alma
conhecer a verdade (KOYR, 1991), pois esta se encontra muito alm, imprimindo na matria
apenas uma breve e corruptvel marca de toda a sua plenitude. Como ressalta Gandillac (1995),
em Agostinho a criatura humana vista como que submersa em uma penosa riqueza do sensvel,
sendo reduzida a forjar dolos para si, testemunhos de uma busca intemporal ocorrida no interior
de um universo feito apenas de sombras.
Contudo, dentro desta viso que, caracterizando o saber metafsico, toma a finitude
somente a partir daquilo que o transcende, descartando, como ressalta Bornheim (1977), a physis
para que, o logos mostre-se pleno, para que a realidade mostre-se em um grau excelente, Santo
6 Neste sentido, os primeiros pensadores cristos no podiam deixar de reconhecer a indstria, a atividade e os logros do homem. Glacken (1996) ressalta a urgncia dessa posio crist em Tertuliano (155-220), que disse: [...] somos con vosotros marineros y soldados, com vosotros cultivamos la tierra, e igualmente participamos en vuestros trficos y servimos con nuestros trabajos en vuestro beneficio (1996).
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Agostinho no desprezou, de forma alguma, a capacidade intelectual e operativa do homem para
transformar o meio, adequando-o aos seus anseios.
Glacken (1996), destaca que, apesar de sua conhecida negao asctica do mundo, Santo
Agostinho fala com generosidade da inteligncia, da capacidade e da criatividade do homem que,
contudo, as deve ao criador, que, aps a Queda, no lhe fez desprovido de todas as suas potncias
gensicas. A mente capaz de instruo, de compreenso da verdade e de dispor amor pelo bem,
estrutura imanente da realidade. Somente a alma pode fazer uma guerra contra o erro e isso
significa em impor a marca humana sobre a natureza.
So Baslio e Santo Agostinho inclusive defenderam, no que tange s tarefas a serem
desempenhadas pelos monges (GLACKEN, 1996), o valor do trabalho manual, distinguindo-se,
de certa forma, do tipo de distino depreciativa entre mo e mente que se fez presente tanto em
Plato quanto em Aristteles7.
Os monges dedicavam-se com disciplina s meditaes e preces dirias, mas deveriam
tambm saber usar o machado, a tocha, a enxada, o cachorro, o boi. Tal situao relacionava-se,
segundo Glacken (1996), s fortes demandas prticas que as condies religiosas, sociais,
econmicas e climticas impuseram ao Ocidente Latino em meados do princpio da Idade Mdia,
somadas, tambm, s invases brbaras.
O processo de construo de mosteiros exemplificaria esta predisposio ao sobre o
meio enquanto medida de consagrao do mundo:
En el desarrollo del monacato en el occidente latino los monjes fueram muchas veces apartados de la exagerada aficin a la soledad, en beneficio de nuevos valores que eran exigidos por las condiciones que haban de afrontar: la necesidad de ampliar el alcance de la actividad de conversin y el cuidado espiritual, la limpieza del terreno y las construcciones necesarias el efecto, el adecuado amplaziamento de los monasterios em funcin del abastecimiento de
7 A ttulo de exemplo, temos que Aristteles exclua dos operrios mecnicos o qualitativo de cidado, pois a nica diferena entre estes e os escravos que os ltimos tm um nico dono, ao passo que os mecnicos atendem a interesses e solicitaes de muitas pessoas. Plato, por seu turno, em sua obra Gergias, afirma o desprezo pelos construtores de mquinas, uma vez que ningum desejaria que a sua filha se casasse com um deles (ROSSI, 2001).
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aguas y la acessibilidad, y muchas veces la apreciacin de la belleza y la decoracin (1996, p.293).
Assim, as atividades monsticas eram obrigadas realizao de tarefas campesinas,
clareando bosques e cultivando a terra (GLACKEN, 1996), reproduzindo nos arredores do
mosteiro o tipo de interveno laboriosa, penosa em sua essncia, de reconfigurao de uma
ordem das coisas do mundo mais condizente com o tipo de natureza que precedeu a Queda,
amenizando a maldio do solo.
Para So Bernardo, o prprio monastrio deveria espelhar, mesmo que dentro das sombras
que habitam a corrupo do mundo dos sentidos, uma aproximao com a Jerusalm celeste,
constituindo um lugar de espera, desejo e preparao para nela adentrar. Nas prprias palavras de
So Bernardo, un lugar salvaje, no santificado por la oracin y el ascetismo y que no es
escenario de ninguna vida espiritual, se encuentra, por as, decirlo, en el estado de pecado
original. Pero una vez se h vuelto frtil y til adquiere una suma importancia (GLACKEN,
1996, p.293).
Esta negao do primeiro estado da natureza, selvagem, e portanto, mais prxima do
pecado original como as prprias palavras de So Bernardo atestaram, coincide, em um plano
prtico, com o tipo especfico de atividade do campesinato medieval. Se o fenmeno urbano
comeou a ganhar vulto a partir principalmente do sculo XII, reconfigurando a relao
sociedade-natureza e, conseqentemente, levando a cabo uma prpria transmutao do tipo de
abstrao que o conceito representa em si8 uma coisa trabalh-la diariamente, atrelar o
movimento da vida aos seus ciclos, e outra se debruar sobre a janela de uma construo urbana
e ver o acelerado movimento da cidade, cercada, ao longe, por frondosos bosques calmos,
estticos, percebendo o contraste dos tempos, o tipo diferente de fluxos - , antes disso, como j
brevemente ressaltamos, o campons conduziu um processo que Barros (2000) veio a chamar de
humanizao da natureza.
8 Le Goff (1995) demonstra, a ttulo de exemplo acerca do tipo de transformao que o novo cenrio urbano ofereceu, no perodo de efervescncia universitria nos sculos XII e XIII, s vises acerca das relaes entre cidade e campo, que as cerimnias realizadas para calouros tentavam reproduzir o processo de conduo da bestialidade humanidade, da rusticidade urbanidade. Em tais cerimnias, ressalta o autor, o velho fundo primitivo aparece degradado e quase esvaziado de seu contedo original, lembrando que o intelectual foi arrancado da civilizao agrria, do clima rural, do selvagem mundo da terra.
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Segundo o aludido autor, graas ao trabalho campons, os homens medievais
transformaram a natureza hostil dos selvagens na natureza amiga dos civilizados. Atrelado
subjetivamente a este trabalho, temos o valor do ofcio, no plenamente divulgado no ascetismo
religioso cristo at Martin Lutero, mas que permeou a atividade campesina no sentido de
cumprimento de um papel natural que atrelava, para ns filhos da modernidade, perspectivas
bastante antagnicas: o culto antigo e supersticioso da natureza e o culto moderno e laico do
progresso tecnolgico, tudo isto permeado pelo Absoluto que penetra nestas duas esferas,
legitimando-as (BARROS, 2000).
A natureza fora, de fato, derramada sobre o mundo para bem cumprir o desgnio de uma
terra feita e refeita aps o Dilvio para servir de morada do homem, para propiciar o seu
desenvolvimento espiritual que, nos primrdios da Idade Mdia, tomado, seguindo a tradio
clssica da separao entre mo e mente, enquanto independente do labor sobre a matria.
Portanto, domin-la no implica uma tarefa diretamente ligada elevao da alma, mas coloca-se
enquanto condio indispensvel para o vir a ser plenamente bem que permeia de sentido, pelo
menos em termos de teologia e pregao, o viver do cristo em um mundo que deve relegar ao
passado os resqucios do pecado original. Ao homem cabe, portanto, o papel de desenvolver a sua
inteligncia no sentido de terminar, governar e adornar a criao ou mesmo, como pensava So
Baslio, de aperfeioar a sua inteligncia debruando-se acerca de alguns detalhes que Deus
deixou em silncio, tais como o modo como vieram a ser a gua, o ar e o fogo (GLACKEN,
1996).
Mesmo conhecendo, como j ressaltamos, uma mudana de atitude perante o trabalho
manual condicionada, em parte, pelo tipo de situao em que se encontrava boa parte do
continente europeu aps o declnio do Imprio Romano, a Idade Mdia esteve distante de
conceber para si o tipo de domnio sobre os quadros naturais que comeou a vigorar,
principalmente, a partir do sculo XVII.
Neste perodo, mesmo diante de uma mudana de atitude perante o trabalho manual, os
instrumentos agrcolas, revolucionados, como j vimos, no foram capazes de substituir
plenamente a energia muscular humana, servindo somente enquanto seu complemento
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(BARROS, 2000). Gandillac (1995) destaca que nas relaes cotidianas, no nvel da prtica, a
Idade Mdia assiste ao desenvolvimento de todas as espcies de tcnicas de conquista, porm
sem falar delas e, acima de tudo, sem assimilar, em sua viso de mundo, o seu carter
revolucionrio. Glacken (1996), tambm faz uma interpretao semelhante do perodo, ao
ressaltar que nele muitos homens foram conscientes da realidade das modificaes na natureza
operadas pelo trabalho, mas que tais cmbios, dados o seu carter local, no foram sintetizados
em um corpo de pensamento.
Aqui est um ponto de fundamental importncia para o texto que estamos construindo: na
Idade Mdia, o discurso de posse, de controle e de uma conseqente consagrao da natureza,
insuflados pelo tema da Queda, no incorporou no corpo terico de seu saber a legitimidade da
tcnica, do trabalho de suplantao das vicissitudes do meio. Como veremos mais adiante, tal
incorporao se dar no momento de ecloso da Revoluo Cientfica, em que saber terico e
prtico finalmente estaro vinculados em seu corpo terico, amplificando os termos da posse e
controle do homem sobre a natureza. Neste caso, Francis Bacon, como veremos, ser de
fundamental importncia.
Como ressalta Gandillac (1995), na Idade Mdia, mesmo na poca da escolstica (sc.
XIX ao XVI), o instrumento tcnico no tem o seu prprio valor reconhecido, no estando,
portanto, situado em seu verdadeiro lugar, escapando ao controle da racionalidade e perdendo a
sua significao autntica.
O homo faber corre o risco de ser sempre apenas aparentemente homo sapiens, luxo sem
utilidade, puro epifenmeno em uma sociedade que no incorporou em seu corpo terico de
interpretao e abstrao da realidade o papel da tcnica.
Para o mestre parisiense Joo de Garlande (1190-1255), situado em um contexto de
efervescncia do aristotelismo que, na base de sua concepo de cincia, no subvertia o objeto
natural ao experiment-lo nas mais diversas situaes, como faz a cincia moderna
(ABRANTES, 1998), os instrumentos necessrios para os eruditos so:
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Livros, uma escrivaninha, uma lamparina com sebo e um castial, uma lanterna, um funil com tinta, uma pluma, um fio de prumo e uma rgua, uma meia e uma palmatria, uma escrivaninha, um quadro negro, uma pedra-pomes com raspador de giz. A escrivaninha (pulpitum) se chama em francs lutrin (letrum); preciso observar que a escrivaninha dispe de uma graduao que permite elev-la altura em que se l, pois o lutrin onde se coloca o livro. Chama-se raspadeira (plana) um instrumento de ferro com o qual os pergaminheiros preparam o pergaminho (LE GOFF, 1995, p.72).
Quando Galileu inicia, como veremos nos captulos seguintes, o processo de
diferenciao das palavras de Deus da linguagem inerente natureza, o faz, de forma
significativa, amparado no uso da luneta, corrompendo as palavras legveis da escritura, vendo
manchas no Sol, tornando possvel o vislumbre de algumas das intuies de Coprnico. O
cientista tcnico, como o chama Rossi (1989), far uso de um objeto aperfeioado pela prtica,
parcialmente acolhido nos meios militares, mas ignorado pela cincia oficial, tornando-o em um
poderoso instrumento de investigao cientfica (p.43). Tal tipo de instrumento, que amplificou a
potncia da razo, que permite uma ida para alm das aparncias, estava distante de se encontrar
na lista do mestre Garlande.
A Idade Mdia est, portanto, longe deste tipo de relao com o saber tcnico que,
portanto, no se mescla ao saber sagrado das autoridades do passado e da Bblia. Sentem-se, os
eruditos medievais, sombra dos gigantes do passado (GANDILLAC, 1995) e longe esto de
conhecer aquele tipo de confiana, de exaltao da novidade, de que nos fala Lenoble (s.d.) com
relao aos principais expoentes da Revoluo Cientfica do sculo XVII.
As grandes calamidades naturais, incluindo o terremoto de Lisboa ocorrido no longnquo
ano de 17559, no tinham a