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  • 9

    FABRICIO PEDROSO BAUAB

    Da Geografia Medieval s origens da Geografia

    Moderna: contrastes entre diferentes noes de

    Natureza, Espao e Tempo

    Presidente Prudente

  • 8

    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    FACULDADE DE CINCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    NVEL DOUTORADO

    Da Geografia Medieval s origens da Geografia Moderna:

    contrastes entre diferentes noes de natureza, espao e tempo

    Tese de doutoramento apresentada junto ao programa

    de Ps-Graduao em Geografia (rea de

    Concentrao: Desenvolvimento Regional e

    Planejamento Ambiental) da Universidade Estadual

    Paulista, campus de Presidente Prudente, visando a

    obteno do ttulo de doutor em Geografia.

    Orientador: Prof. Dr. Eliseu Savrio Sposito

    Presidente Prudente

    2005

  • 12

    Agradecimentos

    Aos amigos do curso de ps-graduao da Unesp, em especial s figuras no sentido

    amplo do termo Marcelino e Jos Augusto.

    Ao pessoal da AGB- Presidente Prudente (2003-2004).

    Aos professores do curso e, em especial, ao Prof. Dr. Eliseu Savrio Sposito pela

    agradvel convivncia enquanto orientador.

    Aos professores Douglas Santos e Joo Lima pelas contribuies dadas no Exame de

    Qualificao.

    A Stela, por ter me acompanhado e estimulado durante uma parte significativa deste

    trajeto.

    Aos amigos de sempre, Carlos, Srgio, Viola e Palmieri, pela convivncia de quase vinte

    anos.

    Aos colegas professores do curso de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do

    Paran: Cristiano, Marga, Valmir, Jlio, Fernando, Marlon, Broietti, Marcos Saquet, Roseli,

    Luciano, Beatriz, Luis, Alexandre, Mafalda, Gilnei, Salete, Cristiane, Gilberto, Ricardo,

    Rosane e Adriana..

    Aos demais professores e funcionrios da Unioeste.

    Aos alunos do curso de Geografia da Unioeste.

    Ao Adilson e Ana Luiza pela amizade e pelo auxlio no aprendizado frente ao

    computador.

    Aos amigos Alexandre e Marcelo e Pedro.

    Ao Jlio, ao Ricardo, a Slvia, ao Cludio, a Flaviana, a Renata e ao Rodolfo; a Flvia,

    a Fernanda ao Marcelo e a Teresinha, amigos de Prudente.

    Ao Claw.

    Ao grande Pitoco, companheiro canino de horas e horas frente ao computador.

  • 13

    A Karise, fonte de inspirao recente em minha vida, indispensvel ajudante na

    confeco da verso final da tese.

    Ao Tavinho.

    Finalmente, ao Andr, a Regina e a Juliana, por, mesmo distantes, figurarem enquanto

    pessoas importantes em minha vida.

    Aos meus demais familiares e amigos.

  • 14

    Dedicado a Alexandre Bauab Netto

    e Suely Teresinha Rodrigues Pedroso

  • 15

    PALAVRAS-CHAVE: natureza, espao tempo, Deus, mensurao, cincia, religio e geografia.

    RESUMO

    Da Idade Mdia at a ecloso da Revoluo Cientfica do sculo XVII, que tratamos enquanto marco

    estruturante/estruturado da/pela modernidade, referenciamos as discusses concernentes s noes de

    Natureza, Espao e Tempo, sempre tendo como culminncia a incidncia de tais categorias em discusses

    geogrficas. Sendo a Religio a base do conhecimento medieval, temos que a Natureza tratada enquanto

    sujeito, figura vinculada ao drama cristo da salvao, ora sendo vista enquanto mudaneidade a ser

    rompida via re-ligao com a Divindade, ora marca Desta, signo, significante de Seu significado. Espao e

    Tempo, por seu turno, so, ambos, medidos pelos contedos religiosos, sendo vistos enquanto emanao

    de um sentido somente presente no texto bblico ou na luminosidade das Autoridades. A Geografia do

    perodo era tambm simblica, tantas vezes transcrita, desatualizada de informaes empricas. Um amplo

    quadro de revolues constri os termos da ruptura efetuada com relao Idade Mdia. Destacamos, no

    quadro revolucionrio citado, os Descobrimentos e o chamado perodo renascentista. Foram muitos os

    impasses intelectuais trazidos pelos Descobrimentos, pela gradual descoberta do mundo enquanto orbe.

    No plano interno europeu, foram muitas as transformaes surgidas no mesmo contexto histrico. Nicolau

    de Cusa problematiza a questo da posio do sujeito frente interpretao do real. Coprnico defende a

    centralidade do astro Sol. Giordano Bruno ope-se finitude do Universo advinda do legado aristotlico.

    Kepler instaura a noo de causalidade matemtica dos fenmenos. Por outro lado, eclodem todas as

    formas de misticismo, da magia astrologia. Por fim, tratamos das transformaes trazidas pela

    Revoluo Cientfica, que redimensionaram o olhar humano sobre a Natureza, sobre a noo de Espao,

    de Tempo, culminando na reinveno do discurso geogrfico. Em Galileu Galilei Tempo e Espao

    aparecem enquanto externalidades, absolutos numricos que exatamente mediriam a passagem dos

    fenmenos sem para eles transferir nenhum contedo religioso. Aqui, o nico a priori aceito o da

    geometria euclidiana, da abstrao matemtica. Alada para dentro do mundo da vida, da natureza, tal

    interpretao conduziria ao mecanicismo, presente em Galileu, escancarado em Descartes. No mesmo

    sculo da Revoluo Cientfica surgir uma obra fundamental para a Geografia Moderna. A Geografia

    Geral (1650) de Varenius surge cheia de aluses a Coprnico, Galileu, sendo editada na Inglaterra tempos

    depois por Isaac Newton. Nela, maneira galileana, cartesiana, a matemtica tomada enquanto a priori

    fundamental, instrumento de ordenao dos fenmenos no espao, base para a descrio precisa da

    realidade que poria em alteridade todos os acidentes geogrficos, constituindo-os enquanto unidades

    indivisveis. Em Varenius eclode, portanto, o fluxo das transformaes narradas na tese, que

    redimensionaram, portanto, o discurso geogrfico. Como pano de fundo de todas estas discusses,

    trouxemos o tema da Queda, do Gnesis at a interpretao inovadora de Francis Bacon, defensor assduo

    da posse humana da natureza enquanto redeno religiosa.

  • 16

    KEY-WORDS: nature, space, time, God, measuring, science, religion, geography.

    ABSTRACT

    From the Middle Age to the Scientific Revolution emergence, in the century XVIII, that we have as structure/structured mark of/for modernity, we report the concerning debatings to the concepts of

    Nature, Space and Time, always having as culmination the incidence of such categories in geographic

    debatings. Being the Religion the basis of the Medieval Knowledge, the Nature is treated like individual,

    shape linked to the Christian salvation drama, but being seen while mundane ness, to be broken by re-tied

    with the Divinity, but mark of This, sign, significant of Its meaning. Space and Time, by their turn are,

    both, measured, by the religion contents, being seen as emanation of a meaning only present in the biblical

    text or in the Authoritys brightness. The Geography of the period was also symbolic, many times

    transcribed, in out of date empiric information. A wide list of revolutions build the time limit occurred

    with regard to the Middle Age. We emphasize in the revolutionary list mentioned, the Discoveries and the

    called Renaissancist Period. There were many intellectual impasses brought by the Discoveries, for the

    gradual discovery of the world as a globe. Inside the European plan, there were many transformations

    arised in the same historical context. Nicola of Cusa argues the matter of the individual position facing to

    the real interpretation. Copernicus defends the Sun as center of Universe. Giordano Bruno opposes to the

    end of Universe ad coming from Aristotelians legate. Kepler institutes the notion of mathematics causality

    in the phenomena. On the other hand, every mysticism form emerges, from the magic to the astrology. At

    last, we discuss about the transformations brought by the Scientific Revolution, which re-calculate the

    human look on the Nature, on the notion of Space, of Time, ending in the reinvention of the geographic

    speech. In Galileo Galilei Time and Space, appears as externalities, numerical absolutes that would

    exactly measure the course of the phenomena without transferring any religious contents. Here, the only, a

    priori accepted is the Euclidian geometry of the mathematics abstraction. Competence inside the world of

    the life, of the nature, such interpretation would take to the mechanism, present in Galileo, public in

    Descartes. In the same century of the Scientific Revolution will appear a fundamental work for the

    Modern Geography. General Geography (1650) of Varenius appears full of allusions to Copernicus,

    Galileo, being published in England by Isaac Newton. In it, the Galilean and the Copernicus way,

    mathematic is taken the fundamental priori, methodical tool of the space phenomena, base for the exact

    description of the reality that would put in change every geographical accident, constituting them as

    indivisible units. In Varenius arises, therefore, the main point of the transformations told in the thesis that

    re-calculated, therefore, the geographic speech. As backdrop of all these debates, we brought the theme of

    the Drop, from Genesis to the innovative interpretation of Francis Bacon, constant defender of the human

    possession of the nature as religious redemption.

  • 17

    Sumrio

    Introduo................................................................................................................................ p.8

    PRLOGO - A Queda bblica e a Queda em

    Blake...........................................................................................................................................

    p.22

    PARTE I - A NATUREZA NA IDADE MDIA E OS CONTEDOS DO ESPAO E

    DO TEMPO..............................................................................................................................

    p.29

    CAP. 1 - A NATUREZA..........................................................................................................

    p.30

    1.1- O papel do trabalho nos primeiros sculos do cristianismo......................................... p.30

    1.2- O privilgio da condio humana.................................................................................... p.40

    1.3- Apologias da tcnica nos fins da Idade Mdia............................................................... p.44

    CAP. 2- OS CONTEDOS DO ESPAO E DO TEMPO...................................................

    p.48

    2.1- Os contedos do mundo................................................................................................... p.48

    2.2- Os contedos do espao.................................................................................................... p.59

    2.3- Os contedos do tempo..................................................................................................... p.75

    PARTE II- AS ABERTURAS DO MUNDO: CRISTVO COLOMBO E OS

    DESCOBRIMENTOS.............................................................................................................

    p.82

    CAP.1- CRISTVO COLOMBO E O NOVO MUNDO: EXEGESE E RUPTURAS..

    p.83

    Introduo: Colombo e os descobrimentos............................................................................ p.83

    1.1- Alguns antecedentes: Toscanelli...................................................................................... p.86

    1.2- A viso das ndias............................................................................................................. p.89

    1.3- Exegese e rupturas............................................................................................................ p.95

    1.4- A grande abstrao: o recorte do aprazvel e mercantilizao da natureza............... p.101

    1.5- As profecias....................................................................................................................... p.103

  • 18

    CAP.2- UM ENSAIO SOBRE O AMPLO SENTIDO DOS DESCOBRIMENTOS......... p.109

    PARTE III: A NATUREZA NA RUPTURA FEUDAL E OS NOVOS CONTEDOS

    DO ESPAO E DO TEMPO..................................................................................................

    p.125

    Introduo ao tema Renascimento: as duas ordens de significados..................................... p.126

    CAP.1 - ANIMISMO E ASTROLOGIA NO RENASCIMENTO......................................

    p.128

    1.1- Declnio do aristotelismo e ontologia mgica................................................................. p.128

    1.2- Retorno natureza; corpo do homem/corpo do mundo............................................... p.130

    1.3- Paracelso............................................................................................................................ p.132

    1.4- Crticas astrologia.......................................................................................................... p.135

    CAP. 2- A CONSTRUO DE RUPTURAS: PERSONAGENS E TEMAS QUE

    ANTECEDERAM A REVOLUO CIENTFICA............................................................

    p.139

    2.1- Nicolau de Cusa e Palingenius......................................................................................... p.140

    2.2- Nicolau Coprnico............................................................................................................ p.143

    2.3- Giordano Bruno................................................................................................................ p.152

    2.3.1. Os limites dos sentidos.......................................................................................... p.152

    2.3.2. Finitudes e infinitude; movimento e imutabilidade........................................... p.154

    2.3.3. A incompatibilidade com o a Escolstica a questo do organicismo................ p.156

    2.3.4. Crticas ao aristotelismo....................................................................................... p.158

    2.3.5. A Homogeneizao do espao.............................................................................. p.159

    2.3.6. Um universo movido por mesmos princpios; apelo final................................. p.162

    2.4- Johannes Kepler................................................................................................................ p.163

    CAP. 3- A REVOLUO CIENTFICA: GALILEU E DESCARTES

    MATEMATIZANDO O TEMPO, O ESPAO, A NATUREZA........................................

    p.170

    Introduo: a sombria atitude de alerta de Pascal............................................................... p.170

    3.1- Ocidente e Mensurao: o novo espao da pintura, o novo tempo da msica............ p.174

    3.1.1. O novo mundo burgus........................................................................................ p.174

  • 19

    3.1.2. Nova pintura, novo espao................................................................................... p.180

    3.1.3. Nova msica, novo tempo..................................................................................... p.183

    3.2- Galileu Galilei: espao, tempo e natureza na cincia moderna.................................... p.186

    3.2.1. Oposies a Aristteles: o novo espao, o novo tempo....................................... p.188

    3.2.2. A matemtica da natureza................................................................................... p.192

    3.2.3. O intocvel terreno da f e a filosofia natural emergente................................. p.202

    3.3- A natureza em Descartes.................................................................................................. p.208

    3.3.1. Deus......................................................................................................................... p.209

    3.3.2. O sujeito.................................................................................................................. p.213

    3.3.3. A res extensa e a concepo mecanicista de natureza......................................... p.219

    3.3.4. A mathesis, cincia universal da ordem e da medida.......................................... p.224

    3.3.5. Mathesis e avanos na taxonomia......................................................................... p.228

    PARTE IV: A IRRUPO DO NOVO NA GEOGRAFIA: VARENIUS E A CINCIA

    MODERNA................................................................................................................................

    p.232

    CAP. 1. VARENIUS E O NOVO CONTEDO DA GEOGRAFIA....................................

    p.233

    4.1-Varenius e a Cincia Moderna.......................................................................................... p.236

    4.2- O a priori da Matemtica e o saber geogrfico............................................................... p.237

    4.3-A estrutura da Geografia Geral: epistme clssica e a dimenso geogrfica da

    descoberta da alteridade...........................................................................................................

    p.240

    4.4-Posteriores debates acerca da relao Geografia Sistemtica-Geografia Regional. p.247

    4.5-O contedo da Parte Absoluta: a nova geografia da natureza....................................... p.249

    EPLOGO- A queda bblica e a unio entre cincia e religio em Francis Bacon.............

    p.254

    Utopia e vida..............................................................................................................................

    p.257

    F. Bacon, o cristianismo e a cincia......................................................................................... p.262

    A Casa de Salomo e a posse da Natureza na Nova Atlntida............................................. p.272

    Consideraes finais.................................................................................................................. p.280

    Referncias Bibliogrficas........................................................................................................ p.291

  • 20

    Referncias de Documentos Eletrnicos................................................................................. p.298

    Lista de Ilustraes

    Ilustrao 1. Pintura de William

    Blake, The marriege of heaven and hell.

    ..................................................................p.27

    Ilustrao 2. Tapearia A dama e o unicrnio (Final do sculo XV).

    ..................................................................p.50

    Ilustrao 3. Pintura Medieval: Castigo de Ado e Eva, do Mestre Bertram de Minden- Altar de Grabow, Kunsthalle de Hamburgo de 1367 a 1415.

    ..................................................................p.55

    Ilustrao 4. Mapa Mundi tripartido (TO-1472) inspirado em Isidoro de Sevilha.

    ..................................................................p.69

    Ilustrao 5. Plano da viagem de Toscanelli ao Oriente rumando via Ocidente.

    ..................................................................p.87

    Ilustrao 6. Portulano de Toscanelli (1457).

    ..................................................................p.88

    Ilustrao 7. Esboo de Cristvo Colombo sobre as terras visitadas (1492-1493).

    ..................................................................p.91

    Ilustrao 8. Mapa das descobertas de Colombo (Cristvo Colombo; Carolus Verardus, 1493).

    ..................................................................p.92

    Ilustrao 9. Mapa de Martin Waldseemller (1507).

    ................................................................p.119

    Ilustrao 10. Frontispcio da obra Novum Organum (1620), de Francis Bacon.

    ................................................................p.118

    Ilustrao 11. Figura presente na obra O sbio (1509), de Bovelles.

    ................................................................p.131

  • 21

    Ilustrao 12. Sistema heliocntrico

    de Nicolau Coprnico. p.149

    ................................................................p.150

    Ilustrao 13. Pintura A anunciao (1472), de Leonardo da Vinci.

    .................................................................p.182

  • 22

    Encobre o teu cu, Zeus,

    Com vapores de nuvens, E, qual menino que decepa A flor dos cardos, Exercita-te em robles e cristas de montes; Mas a minha Terra Hs-de-ma deixar, E a minha cabana, que no construste, E o meu lar Cujo braseiro Me invejas

    (...)

    Pensavas tu talvez Que eu havia de odiar a Vida E fugir para os desertos, L porque nem todos Os sonhos em flor frutificaram? Pois aqui estou! Formo Homens minha imagem, Uma estirpe que a mim se assemelhe: Para sofrer, para chorar, Para gozar e se alegrar, E para no te respeitar, Como eu! (Goethe, Prometheus, 1785)

  • 23

    Introduo

    So muitos admitimos desde j os caminhos, os temas, os conflitos de idias presentes

    em nosso texto. No linear, no didtico, no metodologicamente intocvel o traado do

    nosso pensamento nas no poucas pginas que se seguem. Enfim, temos, de antemo, a clareza de

    um certo estranhamento que pode pairar sobre as pginas que aqui apresentamos enquanto nossa

    tese de doutoramento.

    No sem certa arbitrariedade, recortamos tempos, espaos, autores...enfim, por intermdio

    de tais recortes, tentamos expressar, acima de tudo, contextualidades. Nisso tudo, tornou-se, a

    realidade, circunscrita aos nossos propsitos de pesquisa, s nossas possibilidades de leitura, ao

    nosso tempo no to abundante s vezes para a realizao do doutoramento e, nestas

    limitaes, oprimimos, um pouco, nossas intenes de pesquisa, nosso, quem sabe, didatismo.

    neste cenrio, portanto, que introduzimos, com certa resignao, o nosso texto.

    Basicamente, o que se segue uma curiosa interpretao pessoal acerca de alguns

    eventos, de alguns conflitos seguidos de outras tantas reafirmaes que conduziram a transio

    do perodo medieval para a modernidade. Nisso tudo, procuramos trabalhar alguns temas que,

    direta ou indiretamente, se circunscrevem edificao da Geografia Moderna.

    Afirma-se, ao longo de todas as pginas do texto, uma diferena fundamental de

    apreenso da realidade se compararmos a Idade Mdia com a Modernidade. Oficialmente, o

    conhecimento medieval fez-se orientado com base no que fora escrito pelas autoridades do

    passado, desfiando o presente em linhas de tempo que se referem, todas, aos contedos bblicos,

    desarticulando, neste movimento, o espao presente da tambm presente temporalidade

    construda pelas vigentes relaes sociais. Olhava-se para o mundo e suas marcas, suas grafias

  • 24

    eram todas tomadas enquanto significante de um significado que se esparramava para alm da

    matria. No se parava na criao, no se deslumbravam, os homens medievais, com a natureza.

    Participando de uma certa vida mstica, a matria era, quando no negada de forma asctica,

    ferramenta que re-ligaria no sentido religioso mesmo o homem a uma realidade

    transcendente, superiora, fim ltimo da vida humana no mundo. Neste sentido, objetivo e

    subjetivo, realidade e pensamento no conheciam o trao da alteridade que, modernamente, os

    separaria, propiciando, via rigor de um novo mtodo, um conhecimento que, talvez supostamente,

    espelhasse, de forma cristalina, a verdadeira essncia de uma realidade que deveria independer da

    medida do sujeito.

    Era religioso o pensamento medieval, oficialmente religioso. Seus critrios de verdade

    aparentemente absurdos para ns eram critrios qualitativos, simblicos, subjetivistas.

    Simbolicamente, tomava-se toda marca do mundo enquanto repositrio de significados maiores,

    transcendentes, teleolgicos em suma. Percebia, pensava, intua de forma diferente da nossa este

    homem medieval.

    Foi isso que procuramos demonstrar na primeira parte de nossa tese, intitulada A Natureza

    na Idade Mdia e os contedos do espao e do tempo. Olhava-se para a natureza com uma srie

    de contedos de antemo j estabelecidos. Um deles o do episdio da Queda, que traria para a

    natureza uma certa ausncia de Deus, uma certa dessacralizao, uma vez que esta se tornaria

    rugosa, hostil por ocasio do castigo imposto a Ado e Eva por terem cometido o pecado original.

    No era, a natureza, plenamente objeto. Era um sujeito que desempenhava uma atitude de

    oposio ao homem, de estmulo de seu saber visando impor a ela o seu ministrio perdido. Tal

    tema o da Queda se estender, como veremos, at a Revoluo Cientfica, sendo mais

    presente em Francis Bacon. Contudo, tal saber redundava em limitaes. Homo Sapiens que era,

    estaria o homem medieval erudito separado do inferior homo faber, daquele sujeito que

    desenvolvia um saber operativo frente ao mundo natural. Nisso tudo, defendia-se, maneira

    platnica, a superioridade da mente sobre a mo, da teoria sobre a prtica.

    Era, como j destacamos, crdulo este homem medieval. Os efeitos presentes na natureza

    eram quase todos vinculados a causas transcendentes, divinas. natureza eram retirados os seus

  • 25

    mecanismos de auto-desenvolvimento. Para tanto, deveramos todos nos remeter mais uma vez s

    causas ocultas, ao sobrenatural que, de acordo com os princpios agostinianos, s seria

    reconhecido por predestinados olhos, por predestinados coraes. Nisso tudo, no parava, o

    homem medieval, na criao, na matria mesma. Tudo era instrumento de re-ligao, tudo era

    sinnimo de uma intensa atividade religiosa. O homem comum poderia ser cego diante deste

    cenrio, mas deveria se deixar levar pelos predestinados que para ele escolheriam o caminho para

    o desenrolar da verdadeira realidade que transcendia o significante da matria. Logicamente, h

    claras implicaes sociais, polticas e econmicas nisso tudo.

    No parava, o erudito medieval, no espao. Visava-se atingir Deus, deveria transcend-lo,

    transp-lo.

    Vs, porm, que viveis to alto e to perto de ns, to escondido e to presente, que no possus uns membros maiores e outros menores, mas estais todo em toda parte, no sois espao nem sois certamente esta forma corprea. Vs criastes o homem vossa imagem e contudo ele, desde a cabea aos ps, est contido no espao (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.149).

    O homem est contido no espao, no Deus. Como o fim ltimo do saber medieval era

    esta re-ligao, dogmtica tantas vezes, com Deus, no deveria o homem reafirmamos isso

    parar nos contedos do espao material. Deus transcendia-o e devemos, ns tambm, transcend-

    lo e, para tanto, voltarmo-nos para o mundo inferior, para o foro de cada um. Nisso, subjetividade

    e objetividade amalgamavam-se aos contedos religiosos previstos e o que hoje chamamos

    mundo objetivo fazia-se, pleno, repleto desta ausncia tipicamente moderna de demarcao entre

    o que do sujeito e aquilo que pertence ao objeto. neste cenrio que produzida a Geografia

    do perodo, que interpretado o espao.

    Seriam, os chamados mapas TOs expresso disso. Como escrevemos no primeiro captulo

    da tese, no h neles nenhum tipo de preocupao toponmica ou de preciso geomtrica. Os trs

    continentes por eles representados seriam trs justamente por encontrarem uma justificativa no

    discurso religioso: Santssima Trindade, eram trs os reis magos, eram trs os filhos de No

    Sem, Cam, Jaf para quem realizou a diviso bblica. O que colocava em risco a f crist era

    afastado radicalmente por alguns, haja vista a negao, por parte de Annimo de Ravena (sculo

    VII d.C), do conhecimento dos limites orientais do mundo, uma vez que as Escrituras no

  • 26

    falavam da possibilidade de algum mortal entrar no Paraso, este sim confinado nos limites do

    Oriente e velado ao homem.

    Deus no se dilua na natureza, no estava contido nela. Potncia ativa e potncia passiva

    se distinguiam no Renascimento o pantesmo de Giordano Bruno atuar, como demonstrado

    na tese, na equiparao destas potncias. Deus tambm no se dilua no espao. Transcendia-o. E

    era a religio que desligava o homem desta matria, religando-o ao distante Deus cristo.

    Os contedos religiosos mediam o espao, explicavam a natureza, fazendo deles

    instrumentos, portanto, de retomada de contato com a divindade. Nisso tudo, podemos falar que a

    interpretao de tempo o fazia, tambm medido, mediado por contedos religiosos. Autoridade

    iluminada, predestinada, Santo Agostinho ((354430) previra o fim do tempo da cidade dos

    homens no transcorrer de 7000 anos. Assim, como bem destaca Chau (1998) Deus possuiria os

    fios com que tece a histria, fabricando estruturas e padres internos que so invisveis para

    aqueles que vem apenas a conexo causal externa. O tempo era, assim, to cheio de contedos

    quanto o espao, quanto a natureza. Deveria, o tempo, explodir, afastar-se da mundaneidade da

    mudana para, finalmente, dar lugar eternidade, re-ligando o homem divindade atemporal:

    Vs, porm, sois sempre o mesmo, e todas as coisas de amanh e do futuro, de ontem e do

    passado, hoje, as fareis, hoje as fizestes (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.44).

    Cada acontecimento histrico, como a prpria vida de Cristo, s teria sentido no

    enquanto acontecimento em si mesmo, mas, fundamentalmente, pela revelao que comporta,

    precedendo e transcendendo o evento histrico (ELIADE, 1991). Assim como o espao serve

    para amplificar causas distantes, revelaes transcendentes, e a natureza, neste sentido, tambm,

    serviria o evento histrico, medido pelo tempo bblico, religioso, para manifestar intenes que o

    transpem, que o superam em significado. , neste sentido, tambm smbolo, significante de um

    significado mais profundo, oculto.

    Em suma, esta a interpretao de natureza, espao e tempo medievais. Nos captulos que

    seguem, aprofundamos tal discusso, trouxemos novos elementos e amplificamos a anlise com

    uma gama maior de exemplos, de autores trabalhados. O essencial, acreditamos, este tipo de

  • 27

    percepo prenhe na reconstruo do que hoje chamamos de realidade atravs do crivo, do filtro

    de preceitos religiosos codificados no cristianismo.

    Discutida, sob um prisma bem pessoal, admitimos, a Idade Mdia, procuramos trabalhar

    com uma personalidade que ilustra, simultaneamente, estas perspectivas de espao, natureza e

    tempo medievais e, tambm, alguns elementos que romperiam com tal perspectiva.

    Cristvo Colombo (1451-1506), em verdade, no era tipicamente um homem, um erudito

    medieval. Vivera em outro tempo, em outro contexto. Mais do que isso: trazendo para o

    conhecimento do europeu a existncia de um quarto continente, trouxe, tambm, grandes

    impasses para o saber produzido, desenrolado da Idade Mdia para o incipiente perodo

    renascentista que vivera.

    Contudo, apresenta, o navegador genovs, vrios traos medievais. Cabe, aqui nesta

    introduo, citar alguns. Quanto ao espao, faz-se presente, em Colombo, a crena, citada por ele

    usando um j distante Isidoro de Sevilha (600-636), na existncia do paraso nos confins do

    Oriente, onde o navegador se achava encontrar. V sereias, como a Geografia Medieval tambm

    as viu, incorporando elementos gregos em seu maravilhoso.

    Mede o tempo vinculado s profecias de Isaas com a interpretao agostiniana da Bblia

    que preconizava a exploso do tempo mundano em sete mil anos. Sobre Isaas, Colombo

    escreveu a seguinte preciosidade:

    [...] a verdade que tudo passa, menos a Palavra de Deus, e se cumprir exatamente o que disse; e Ele falou to claro pela boca de Isaas em tantos trechos das Escrituras, afirmando que da Espanha lhes seria elevado o seu santo nome. E parti em nome da Santssima Trindade, e voltei com maior rapidez, trazendo em mos a prova de tudo o que tinha afirmado (COLOMBO, 1991, p. 134).

    Colombo, homem da f que era, coloca-se enquanto unificador do que fora profetizado

    por Isaas com a realidade do seu tempo (GIUCCI, 1991). E pela boca de Isaas, Deus profetizou

    a converso da humanidade para o cristianismo, a absoluta redeno de todos os povos.

  • 28

    Seria, Colombo como ele mesmo pensava instrumento da providncia divina na

    realizao desta nova cruzada. A proximidade com tal redeno, com, portanto, o final do tempo

    mundano, era evidente. Como demonstramos no princpio do Captulo II da Primeira Parte,

    intitulado Os contedos do espao e do tempo, Santo Agostinho previra o final dos tempos

    passados sete mil anos. Do Gnesis at Cristo passaram-se 5343 anos, e de Cristo at o presente

    em que Colombo escreve mais 1501 anos. A conta simples: restariam, assim, apenas 155 anos

    para que o mundo fosse sublevado, unificado sob a gide do cristianismo. Colombo trataria,

    portanto, de dar curso para a histria com base nos contedos bblicos previstos, com base no

    conjunto de tramas que Deus desfiou para o mundo.

    A natureza , basicamente, tratada sob o ponto de vista da utilidade. dessacralizada,

    curiosamente tocada, mudada, inserida, porque no, no novo cenrio de necessidades que ia se

    edificando em solo europeu. Como destaca Giucci (1991), a natureza intervm no intercmbio

    entre nativos e comerciantes como simples pano de fundo, como galpo de matrias-primas e

    reservatrios de mercadorias (GIUCCI, 1991). Tal perspectiva elucidada nas palavras de

    Colombo:

    Olhou para a serra e viu tantos, imensos e maravilhosos, que no seria capaz de calcular-lhes a altura e a retido, feito fusos grossos e finos, que logo percebeu que daria para fazer navios e uma infinidade de tbuas e mastros para as maiores naus espanholas (p. 65).

    Avanam, pouco a pouco, os percalos da empresa. H o cenrio paradisaco que encanta,

    que tragado pelo navegador genovs com o filtro de sua erudio literria que explode em

    descries poticas, quase ensandecidas. H a escassez de provises, as doenas que se

    proliferam, a adversidade dos ndios. Assim como no episdio da Queda, parece, pouco a pouco,

    desfilar quele cenrio numa mirade de adversidades, de perigos iminentes. Colombo defende,

    para tanto, o trabalho da terra, o labor humano para se opor s vicissitudes do meio. Instaura-se o

    perodo ps-paradisaco.

    Colombo, na verdade, sem se aperceber abrira o mundo para a diversidade, para a

    diferena. Operou, sem conseguir compreender a magnitude do que estimulara, um golpe fatal

  • 29

    em vrias das crenas, dos valores medievais. Em 1507, um planisfrio atribudo a Martin

    Waldsemller, apresenta pela primeira vez, na cartografia mundial, o continente americano,

    pondo por terra a estrutura tri-partida do mundo medieval.

    Abre-se o mundo para a diversidade. Pouco a pouco, instaura-se o mundo enquanto orbe

    com contedos no previstos pelas autoridades medievais. Desenvolve-se, gradativamente, o

    capitalismo na Europa. Desenvolvem-se l rupturas e, tambm, certas continuidades frente ao

    saber cristo.

    aqui que iniciamos a Terceira Parte de nossa tese, denominada A Natureza na ruptura

    feudal e os novos contedos do espao e do tempo. Nele, discutimos, primeiramente, o

    Renascimento, considerando-o, em concordncia com Koyr (1991) e Lenoble (s.d.), enquanto

    um perodo de transio caracterizado pela destruio da ontologia aristotlica base de boa

    parte do saber medieval, principalmente daquele derivado da Escolstica e pela gradual

    construo de uma nova, que iria culminar na emergncia da cincia moderna. Enquanto

    transio, h espao, no Renascimento, para uma infinidade de coisas tidas, antes, enquanto

    impossveis pelo pensamento aristotlico. H no Renascimento a ecloso de vrias perspectivas

    de entendimento da realidade, algumas absolutamente permeadas por tangentes toques de

    misticismo, de experimentaes alqumicas, de previses astrolgicas e outras que, mesmo

    apresentando traos do animismo, do misticismo do perodo, se aproximariam mais das

    discusses de uma cincia j considerada moderna. No primeiro grupo, discutimos, basicamente,

    Charles de Bovelles (1474-1553) e Paracelso (1493-1541). No segundo, inserimos nomes

    diversos, com perspectivas diferentemente permeadas, tambm, por temas, olhares, explicaes

    que os aproximariam dos contedos gerados na ecloso da cincia moderna. Assim, discutimos

    nomes como Nicolau de Cusa (1401-1464), Palingenius, Nicolau Coprnico (1473-1543),

    Giordano Bruno (1548-1600) uma das leituras mais agradveis que fizemos e, por fim,

    Johannes Kepler (1571-1630).

    De Paracelso, por exemplo, identificamos, inspirados pela interpretao de Foucault

    (1999), as relaes de simpatia e analogia que, no perodo renascentista, vinculavam macro e

    microcosmo, fazendo do mundo um perptuo desdobramento de contedos semelhantes,

  • 30

    anlogos, que encadeiam, em similitude, em semelhana, toda a existncia. Aqui, faltaria, em

    muito, o teste da negatividade sugerido por F. Bacon anos mais tarde, o rigor do estudo emprico,

    indutivo, capaz de apreender, singularizando, cada componente, cada fragmento do mundo

    natural, sem recorrer a simpatias, analogias de uma mente no colocada em relao de alteridade

    com o mundo.

    J os pensadores do segundo grupo operaram, no sem certa dose de misticismo, de

    fantasia, certas rupturas, importantes novidades. Nicolau de Cusa desferiu um importante golpe

    na defesa da centralidade da Terra e circunscreveu o olhar do sujeito posio ocupada por ele.

    Palingenius, no seu popular Zodacos Vitae, publicado em 1534 incita ainda os debates acerca da

    infinitude ou no do universo ao afirmar/defender a sua plenitude.

    Nicolau Coprnico um caso parte. Procurou provar, ora com argumentos matemticos

    opostos aos de Ptolomeu, ora por referncias mesmo divindade do Sol, a centralidade deste no

    nosso sistema de mundo. A posio do homem em um girante planeta traria ao sujeito confuso

    na percepo da realidade. Assim

    [...] de uma maneira geral, toda mudana de posio que se v devida ao movimento da coisa observada, ou do observador, ou ento, seguramente, de um e de outro. [...] Ora, a Terra o lugar donde aquela rotao celeste observada e se apresenta nossa vista. Portanto, se algum movimento for atribudo Terra, o mesmo movimento aparecer em tudo que exterior Terra, mas na direo oposta. o caso em primeiro lugar da rotao diurna. Esta parece envolver todo o mundo exceto a Terra e as coisas que esto sua volta. Contudo, se admitirmos que o cu no tem nenhum destes movimentos e que ao contrrio, a Terra gira de Ocidente para Oriente, refletindo atentamente, concluiremos que isto se passa assim mesmo em relao nascer e ao pr do Sol, da lua e das estrelas (COPRNICO, 1984, p.29-30).

    Foram vrios os centros que mudaram na poca de Coprnico: a centralidade do poder

    definhava nas mos do clero, escorregando, passo a passo, para as mos da burguesia; a ruptura

    protestante instalara uma ciso na centralidade religiosa catlica, bipolarizando as perspectivas

    religiosas. No movimento de gestao de uma nova ordem social na Europa, assim,

    historicamente ia se convulsionando, tambm, uma nova concepo de homem, de espao, de

    tempo, de natureza, de conhecimento e o copernicanismo fez-se expresso do princpio destas

    novidades.

  • 31

    Giordano Bruno, por seu turno, em tom agressivo, tantas vezes, clamou a infinitude do

    universo, a existncia de vrios sis, de inmeros mundos. Homogeneizou os espaos, se

    antecipando, em certa medida, ao espao geomtrico de Galileu, defendendo, contra a fsica

    peripattica, a inexistncia de lugares privilegiados, a igualdade de leis entre mundos lunar e

    sublunar. Pantesta que era, defendeu a igualizao entre a potncia ativa de Deus e potncia

    passiva do mundo, ambas infinitas. Assim o seu Deus no transcendia como o Deus cristo o

    mundo da natureza. Confundia-se, inebriava-se com ele, sendo alma ativa, transformista das

    vrias geraes e corrupes que haveria de existir no universo. Opondo-se, assim a vrios dos

    valores, dos dogmas da Igreja, fora, Giordano Bruno, queimado pela Inquisio em 1600.

    Haveria um horror secreto nas idias que carregavam consigo o princpio da infinitude do

    universo. Era este o raciocnio de Kepler. A astronomia deve se limitar ao domnio dos sentidos,

    como bem ensinou seu mestre Tycho Brahe (1546-1601). O instrumento olho seria fundamental

    na apreenso dos contedos do mundo...e tais contedos, em sua essncia, haveriam de ser todos

    matemticos. Nestes termos, Kepler teria concebido uma harmonia matemtica que seria

    subjacente aos fatos observados, atuando enquanto causa, em verdade, de tais fatos. A ordem

    matemtica mais abrangente, desta forma, descoberta nos prprios fatos, causando-os. Assim,

    empirismo e imanncia matemtica dos contedos do mundo vincular-se-iam na perspectiva de

    Kepler. Na verdade, estimularia, o raciocnio matemtico, um novo tipo de percepo por parte

    do sujeito, agora embebido na sociedade do nmero, nas operaes quantitativas que, maneira

    burguesa, fariam do mundo um imenso clculo de vantagens. Tal sociedade estaria sendo gerada

    j h algum tempo.

    Mudanas na concepo de universo, de sujeito, de natureza, de homem, de espao, de

    tempo. A individualidade dos autores aqui citados expressaria, desta forma, a contextualidade por

    eles vivida que, gradativamente, emprestaria contedos diferentes para o conhecimento,

    implementando rupturas, saltos com relao ao j passado perodo medieval.

    Neste cenrio, espao, tempo e natureza ganhariam, gradativamente, uma nova roupagem,

    uma nova significao. Seculariza-se a conscincia, torna-se, pouco a pouco, laico o saber. E a

  • 32

    religio, que emprestava contedos, uma teleologia para ambos, afasta-se, em parte, da cincia, se

    funcionalizando enquanto pedagogia da alma, enquanto ditadora, ainda, de princpios morais.

    O espao no mais precisaria re-ligar o homem ao no mundo, no realidade da sobre-

    natureza. No era mais smbolo, mais significante que conduziria a um distante significado.

    Seria o espao considerado enquanto pano de fundo, absoluto numrico que mediria, sem

    qualquer contedo subjetivista, sem qualquer perfil telolgico, o movimento dos seres, dos

    corpos. esta a perspectiva que emerge da pintura Renascentista e esta a perspectiva que se

    densifica no pensamento de Galileu Galilei (1564-1642). Para tanto, este se ops,

    diametralmente, a Aristteles.

    Para este, o nico estado natural existente seria o repouso. Para se mover, um corpo

    necessitava que fosse desempenhada uma ao sobre ele. Galileu, por seu turno, considerar o

    movimento uniforme, em linha reta, to natural quanto o repouso. Assim, naturalmente um corpo

    se moveria se no fosse parado por algo. Este seria o princpio da lei da inrcia que detinha,

    como necessidade, a existncia de um espao absoluto, referencial. Contnuo numrico seria, este

    espao absoluto desenvolvido mais tarde por Newton o medidor da passagem dos corpos,

    precisando, numericamente, o seu deslocamento. Este o espao da fsica que se constri, que se

    amplifica em consonncia com a emergncia de uma nova matriz de pensamento, de uma razo

    que se instrumentaliza para ordenar e medir, de fora, distante, os fenmenos.

    Na tese, discutimos a emergncia desta nova concepo de espao na pintura em

    perspectiva do Renascimento.

    Os contedos religiosos no mediriam mais o tempo tambm. Na verdade, assim como

    ocorre com espao, no haveria mais contedos medindo o tempo. Ambos se tornariam os

    medidores externos aos fenmenos, ordenando-os, tornando-se assim, tambm, instrumentos de

    anlise. Szamosi (1988) destaca que em Galileu a passagem do tempo seria um processo da

    natureza soberano que no seria condicionado por qualquer outra coisa no ambiente. Era o

    movimento descrito em termos de tempo, no o contrrio. Assim, poderia ser o tempo

  • 33

    matematicamente regulado. Este novo tempo mtrico, digamos, originou-se, antes, na msica

    polifnica.

    Muda-se neste contexto, tambm, a imagem de natureza. Ren Descartes (1596-1650),

    figura tambm clebre na irrupo do pensamento cientfico moderno, projetar para a natureza

    uma imagem mecnica. Deus, em Descartes, tambm figura distante do mundo material,

    natural. maneira escolstica, deduz Deus dos diferentes graus de perfeio existentes no

    mundo. Somente por intermdio do nosso pensamento que poderamos atingi-lo. Existe Deus,

    portanto, com base na necessidade de ser ou de existir que est entendida na noo que

    possumos Dele. Relegando Deus ao pensamento, se dessacraliza, radicalmente, a natureza, a res

    extensa. A dessacralizao do meio proveniente, no cristianismo, do afastamento de Deus do

    mundo material, , em Descartes, radicalizado: para ele, Deus teria dado o primeiro sopro, o

    primeiro impulso para a natureza que, desde ento, funcionaria de forma regular, mecnica.

    Atingir os contedos desse Deus s seria possvel mediante o pensamento. J no , a natureza, o

    espao, smbolo de nada, significante de nada. Torna-se, neste sentido, o pensamento nico

    smbolo, nico meio de re-ligao com a divindade.

    Como destaca Henry (1998), a quantidade de movimento do mundo permaneceria sempre

    constante, regular. Eterno seria, portanto, o impulso de Deus. Quando se inicia um movimento

    em um dado lugar, em algum outro lugar do mundo-mquina uma quantidade correspondente de

    movimento teria que ser absorvida. De contato fsico em contato fsico, todo o sistema se

    moveria. Encaixado. Espaos vazios no haveria. Somente nexos mecnicos de causa e efeito

    encadeando diferentes peas de uma nica mquina.

    Se Descartes no v, claramente na natureza, um repositrio de figuras geomtricas, de

    smbolos matemticos, como o fez Galileu, defende, no bem conduzir da razo, a coerncia

    lgica da lgebra, a nitidez, precisa. Da matemtica.

    Gradativamente, os contedos religiosos desligam-se, explicitamente, das discusses da

    cincia. Tempo, espao e natureza perdem suas antigas conotaes teleolgicas, deixando de ter a

    previsibilidade que lhes era imanente pela correspondncia de seus fins com os ditames da

  • 34

    religio crist. Contudo, os contedos religiosos, predominantes no pensamento medieval, no se

    fazem plenamente ausentes. So transformados, ora adicionados, ora removidos, tantas vezes

    escondidos. Mas permanecem, ainda, fortes em certa medida. O Deus cartesiano , no nosso ver,

    expresso disso. O discurso de posse da natureza de Descartes e, mais ainda, o de F. Bacon, tem

    muito dos contedos da Queda bblica, de uma certa obrigatoriedade moral com relao ao

    domnio humano sobre a natureza. Voltaremos, nesta introduo, a tratar disso.

    Atravs de alguns autores, de alguns contextos, tentamos, portanto, traar uma

    comparao entre as possveis interpretaes medievais de natureza, espao e tempo e algumas

    das modernas. No sem arbitrariedades. No sem recortes. No transcorrer da tese, portanto,

    procuramos dimensionar algumas das transformaes por ns aqui narradas em uma obra

    extremamente importante da Geografia que, no nosso ver, figura uma srie de rupturas com

    relao ao saber medieval, com relao sua Geografia.

    A Geografia Geral de Varenius (1631-1650), publicada em 1650, uma obra repleta de

    novidades recentes. Como discutimos na ltima parte da tese, chamada - A irrupo do novo na

    Geografia: Varenius e a Cincia Moderna h nela aluses a Nicolau Coprnico, a Galileu

    Galilei. Isaac Newton cuidou de uma edio inglesa de tal obra que, entre tantas outras

    novidades, trabalhou, como nenhuma obra anterior o fez, os fenmenos geogrficos dentro de um

    mundo recentemente descoberto enquanto orbe pela ocasio dos descobrimentos.

    Diferentemente do material geogrfico medieval, que era instrumento de reflexo, de re-

    ligao e, tambm, de afirmao de dogmas, a Geografia de Varenius clama por uma

    aplicabilidade, pela produo de um saber til ao comrcio, ao Estado. Exalta o recuo das reas

    de sonho, de mitos, em nome do contedo emprico que apareceria radiante caso o vu da

    ignorncia fosse retirado das reas do mundo, do globo terrestre.

    A Geografia seria, para Varenius, um ramo da matemtica que colocaria, em ordem, os

    elementos do planeta por isso a preocupao com uma geografia geral. Ramo da matemtica

    que era, portanto, a Geografia mediria, exatamente, a posio dos fenmenos; ilustraria, nos seus

    critrios de exatido, os contedos dos elementos geogrficos. Se o tempo, se o espao mediriam,

  • 35

    matematicamente, os fenmenos da natureza, seria a mestra fundamentao matemtica, o

    mesmo pano de fundo numrico que entrecortaria todos os fenmenos tidos enquanto

    geogrficos, arranjando-os, precisamente, no numrico espao das cartas cartogrficas,

    ilustrando-os precisamente tambm, uma vez dadas suas posies reais. Nisso tudo, h muito, na

    obra de Varenius, daquilo que Foucault (1999) chama de mathesis universal que estaria por

    detrs do nascente pensamento moderno.

    Afastam-se, em Varenius, as significaes simblicas. O pensamento torna-se o nico

    smbolo, nica possibilidade de contato com uma divindade que no mais esparrama, pelo

    mundo, suas marcas, sinais de sua existncia. Qualidades primrias e secundrias da matria so

    separadas. Isso est presente em Descartes, em Galileu, em F. Bacon, em Hobbes e um pouco

    antes em Kepler. Nisso tudo, realmente apareceria o mundo.

    Varenius se preocupa com as definies precisas, infalveis da matemtica. Afastando

    toda e qualquer dubiedade, define o que seria um monte, uma jazida, um lago, uma laguna, um

    pntano...colocando os fenmenos naturais descritos em sua dimenso espacial pela Geografia

    em relao de alteridade. Neste sentido seria, a dimenso regional de sua Geografia a geografia

    especial uma clara defesa dos procedimentos indutivos to teis, posteriormente, a Humboldt

    (1869-1859), Ratzel (1844-1904), e Vidal de La Blache (1845-1918). O procedimento geral da

    ordem e da medida se vincularia, assim, aos reais traos fsicos verificados particularmente. De

    regio em regio.

    Terminamos a tese inventamos um eplogo em seu final , enfim, com algo

    aparentemente incoerente: um tema bblico. No sculo XVII o tema da Queda seria, como j

    citamos, em profuso, retomado. No cerne da cincia moderna, o maior expoente da rediscusso

    de tal tema teria sido Francis Bacon (1561-1626).

    Sucintamente, podemos dizer que em F. Bacon, o tema da Queda ganharia o seguinte

    contorno: ocorrida a queda, o solo tornara-se amaldioado, hostil. Seria, neste sentido, a natureza

    um sujeito de oposio ao homem. Vimos isso com relao Idade Mdia. F. Bacon, ciente dessa

    situao, vai afirmar, em tom bastante severo, toda a inoperncia do saber produzido at ento,

  • 36

    inclusive do medieval. At ento, para F. Bacon, o homem no teria conseguido se redimir do

    castigo da queda. No teria se tornado o ministro e o intrprete da natureza, situao esta que

    espontaneamente possua antes do flagelo da queda.

    Isto se deu, primordialmente pelo esquecimento da leitura direta do texto bblico. Isto se

    deu, tambm, pelo equvoco histrico de separao entre mo e mente, entre teoria e prtica.

    Moralmente, o texto bblico claramente incute sobre o sujeito a necessidade deste tornar-se dono

    da natureza, posta sua situao superiora na hierarquia dos seres. Neste sentido, verdade e

    utilidade coincidiriam, uma vez que verdadeiro tornar-se-ia todo o conhecimento que

    aproximasse o homem de tal fim. E seria este o fim ltimo da cincia.

    Desta feita, terminamos a tese retomando o tema natureza. Interpretamos F. Bacon no

    sentido de demonstrar, tambm, as novidades interpretativas com relao natureza que surgem

    com o advento da modernidade. Contudo, o chanceler ingls demonstra, tambm, as fortes

    reminiscncias do discurso religioso que, de certa forma, inserem continuidades em meio a

    novidades, permanncias num cenrio de rupturas.

    A natureza ganha, na cincia moderna, uma imagem mecnica, numrica. E isso encerra

    em si uma mirade de novidades, de novos olhares possveis. Contudo, o discurso de posse,

    estimulado pelo eterno conflito entre homem e meio, faz-se retomado, revigorado na manuteno

    de uma leitura crist de mundo. Isso est explcito em Descartes. Mais ainda em F. Bacon. E na

    acentuao de uma viso de natureza enquanto externalidade, enquanto objeto que se construiro

    os vrios discursos acerca da natureza, inclusive o especificamente geogrfico, vinculado at os

    dias de hoje.

  • 37

    Prlogo:

    A Queda bblica e a Queda em Blake

    Todas as Bblias ou cdigos sagrados tm sido as causas dos seguintes erros:

    1.Que o homem possui dois princpios reais de existncia: um Corpo & uma Alma. 2. Que a energia, denominada Mal, provm apenas do Corpo; & que a Razo,

    denominada Bem, provm apenas da Alma.

    3. Que Deus atormentar o Homem pela eternidade por seguir suas energias. Mas os seguintes Contrrios so Verdadeiros:

    1.O Homem no tem um Corpo distinto de sua Alma, pois o que se denomina Corpo uma parcela da Alma discernida pelos cinco Sentidos, os principais acessos da Alma

    nesta etapa. 2. Energia a nica vida, e provm do Corpo; e a Razo, o limite ou circunferncia

    externa da Energia.

    3. Energia Deleite Eterno (William Blake em A Voz do Demnio- O Matrimnio do Cu e do Inferno).

    Ele disse ao homem: Escutaste a voz de tua mulher, e comeste da rvore que te ordenei

    no comer jamais o solo por tua causa ser maldito. Durante todos os dias de tua vida,

    ser fora de trabalho que conseguirs comida. O trabalho trar, para ti, embaraos e

    dificuldades, e tu comers a erva dos campos. Ser pelo suor do teu rosto que comers o

    po, at que retornes terra da qual fosse tomado, porque tu s p e tu retornars ao

    p.

    (Gnesis).

    Primeiramente, faz-se necessrio apontar os caminhos pelos quais trilharemos no sentido de construir uma interpretao acerca de como a Idade Mdia teria concebido a natureza.

    Reconhecemos, desde j, o perfil pretensioso da empresa, bem como as limitaes a ela

  • 38

    circunscrita, uma vez que temos clareza quanto impossibilidade de se universalizar uma

    explicao absoluta, inconteste, acerca da compreenso medieval e moderna de natureza, bem

    como do espao e do tempo. Isso sem falar nas mudanas ocorridas no plano da cincia

    geogrfica que paralelamente estaremos tambm discutindo.

    Um importante tema percorrer boa parte da tese. Em verdade, fechar seu contedo. Tal

    tema referente Queda bblica. Dela da Queda adviriam significativos discursos,

    valorativos olhares quanto ao papel do homem frente ao geral cenrio da Criao1. Da

    interpretao medieval da Queda adviria, fundamentalmente, a compreenso da natureza

    enquanto exterioridade e do homem enquanto ser apartado da estrutura geral da Criao,

    sobrepondo-se a ela. Gostaramos de tratar por agora, mesmo que provisoriamente, deste tema.

    O tema da Queda de extrema relevncia na cultura ocidental. Atravs de sua

    interpretao, os homens moderno e medieval discursaram acerca da necessidade moral de

    domnio da natureza, de reestabelecimento de uma situao paradisaca perdida pela ocorrncia

    do pecado original.

    Basicamente, tal tema cristo tem sido interpretado nos termos de um suposto retorno,

    para o homem, de um controle sobre a criao. Antes da Queda, toda a natureza se prostrava

    diante da mais perfeita criao de Deus que era o homem. Depois, perdendo um significativo

    escopo de suas potencialidades, viu-se o homem obrigado a desenvolver o trabalho, a impor sua

    razo, sua vontade, oposio desempenhada pela natureza aps o castigo da Queda.

    Confrontam-se ambos. Homem de um lado. natureza, do outro.

    Se, como o prprio relato bblico deixa transparecer, antes de o homem comer do fruto

    proibido presente na rvore do conhecimento do bem e do mal, podia ele comer, se aproveitar e

    fazer posse de toda a benevolente natureza presente no Jardim do den, aps a induo de Ado

    por Eva, a aspereza e a maldio se espalharam pelo mundo, tornando o antes receptivo cenrio

    em obstculo a ser vencido pelo trabalho humano, pela fora de sua inteligncia agora

    1 Como veremos no final deste trabalho, tais discursos se estenderiam, de forma bastante significativa, incluindo uma clebre personagem do pensamento cientfico moderno: Francis Bacon.

  • 39

    parcialmente presente. A eternidade foi retirada da condio humana e Ado faleceu com

    novecentos e trinta anos, tempo este diminudo na vida dos Homens posteriores pelo afastamento

    da Idade do Ouro que foi dando curso para a histria mundana da humanidade.

    A unidade de homem com Deus que caminhava visvel no Paraso foi perdida e o Jardim,

    aps a expulso do casal primognito, foi cercado por querubins que agitavam uma espada

    flamejante, visando proteger o caminho que levava rvore da vida, eternidade.

    Antes da interveno divina que extirpou do paraso a presena do casal, Ado e Eva, logo

    aps comerem do fruto proibido, se entreolharam. Perceberam, ento, que estavam nus e se

    cobriram com folhas de figueiras. Foi neste momento que ouviram a voz de Deus que, como de

    costume, passeava pelo jardim: Quem te ensinou que ests nu?

    Em suma, uma vez fechado para todo o sempre o paraso terreal, perde-se a eternidade,

    conflagra-se o tempo mundano, avulta uma natureza hostil, que deve ser submetida. Da Queda

    resultaria, portanto, a oposio homem-natureza, o escancarar de suas diferenas, de seus fins.

    Torna-se, o domnio do meio, externo, condio moral de resgate da natural situao que foi

    corrompida pelo erro do casal primognito.

    H, contudo, dentro da tradio ocidental, interpretaes diferentes acerca deste evento

    bblico. A ttulo de ilustrao, de enriquecimento do debate, gostaramos de discutir, mesmo que

    brevemente, a interpretao construda pelo poeta ingls William Blake, que aqui nos servir

    enquanto possibilidade de confronto frente ao iderio geral que domina o tema que, como

    dissemos, se far presente em vrios momentos da tese, inclusive a encerrando.

    William Blake vivenciou o conturbado ambiente ingls de transio do sculo XVIII para

    o XIX (viveu de 1757 a 1827). Como ressalta Vizioli (1984), ao lado de escritores como Thomas

    Chatterton (1752-1770) e James Macpherson (Ossian), viu na exaltao da razo e esta uma

    caracterstica de todo movimento pr-romntico as chagas da sociedade de seu tempo,

    empolgada, em parte, pelos ventos trazidos pela Revoluo Francesa, e socialmente mazelada

    pelo princpio da Revoluo Industrial. Chega a comparar, como ressalta Chawn (1994) a razo

  • 40

    de seu tempo, oficialmente cientfica, repleta de valores advindos das inovaes tecnolgicas

    ancoradas no par cincia/tcnica, a rodas munidas de dentes tirnicos movidos por presso

    recproca.

    A mquina, smbolo dos novos tempos, modelo do universo, regula, na retido de seu

    movimento2, a vida em uma sociedade desfigurada em seu passado medieval e, em analogia com

    o seu tempo, aprisiona, acorrenta, mi em dentes metlicos toda a srie de energias aprisionadas

    desde o momento em que os pares dialticos Atrao-Repulso, Razo-Energia, Amor-dio

    foram continuamente apartados pelo sacerdcio3, uma vez que no h condio humana plena

    sem tais pares, nem progressos sem eles.

    A Queda seria, segundo Blake, o primado da razo, da alma, sobre as energias do corpo,

    trazendo ao homem a perda de um outro tipo de caracterstica imanente, primordial que deveria

    ser reconquistada. A Energia, Deleite Eterno, viria a restabelecer tal unidade perdida e para tanto,

    o smbolo do Demnio seria de fundamental importncia nesta nova juno entre corpo e alma e

    a chave para a compreenso do obscuro pensamento do poeta ingls. ele quem diz A Voz do

    Demnio que quem refreia o desejo assim o faz porque o seu fraco o suficiente para ser

    refreado; o refreador, ou a razo, usurpa-lhe o lugar & governa o inapetente (p.19).

    Interagindo com o mundo, sem o recorte do racional, com o afresco da imaginao, o

    homem percebe a plenitude da criao que, portanto, somente se mostra na restituio da unidade

    perdida, no conjunto das polaridades, na inocncia da criana ainda no corrompida nas regras

    que formalizam a relao do homem com o mundo e com o seu semelhante. A diviso entre bem

    2 Nos Provrbios do Inferno, Blake (2001) assim diria: O Progresso constri caminhos retos; mas os caminhos tortuosos sem Progresso so caminhos do Gnio (p.29). 3 Mais uma vez, nos Provrbios do Inferno, que compem o livro O Matrimnio do Cu e do Inferno,William Blake (2001) nos oferece com muita nitidez a sua crtica ao saber religioso institucionalizado na figura do sacerdcio: Os Poetas Antigos animaram todos os objetos sensveis com Deuses e Gnios, nomeando-os e adornando-os com atributos de bosques, rios, montanhas, lagos, cidades, naes e tudo quanto seus amplos e numerosos sentidos permitiam perceber. E estudaram, em particular, o carter de cada cidade e pas, identificando-os segundo sua deidade mental; At que se estabeleceu um sistema, do qual alguns se favoreceram & escravizaram o vulgo com o intento de concretizar ou abstrair as deidades mentais a partir de seus objetos: assim comeou o Sacerdcio; Pela escolha de formas de culto das narrativas poticas. E proclamaram, por fim, que os Deuses haviam ordenado tais coisas. Desse modo, os homens esqueceram que todas as deidades residem no corao humano (p.31).

  • 41

    e mal, a moral que sacrifica os impulsos fruto da Queda. humanidade, resta a luta pela

    restituio do imanente perdido.

    Onde Blake v unidade, o pensamento ocidental cristo v luta a ser conflagrada aps a

    Queda. E eis que se inicia, segundo o poeta, o imprio da razo e a perda das deidades que

    habitam o corao humano. Cristo Razo. Lcifer a Energia. H, portanto, a necessidade do

    Matrimnio, como a Ilustrao 1, de um de seus principais livros, bem demonstra.. Contudo, o

    que se observa justamente a construo de um grande sistema de interpretao do mundo,

    codificado pela Bblia, que v no tema da Queda, como j ressaltamos, uma justificativa moral

    para o retorno unidade perdida. Exterioridade, a Natureza elemento fundamental nesta busca

    de redeno do esprito humano. corpo, matria sem alma. , o homem, ambos, tendo, contudo,

    na alma, o primado, a superioridade sobre o material, inclusive sobre o seu prprio corpo.

    atestada, em certo sentido, a inferioridade dos corpos do homem, do corpo do mundo. A alma,

    que Blake concebe enquanto sinnimo de razo, deveria se sobrepor ao corpo do homem, ao

    corpo do mundo, energia do poeta. Para o cristo, a volta da unidade se daria, portanto, pela

    ao da alma sobre o mundo, sobre a natureza externa. Para Blake, tal unidade s se daria pela

    ruptura frente a esta viso de externalidade, unindo em matrimnio alma e corpo, razo e energia.

  • 42

    Ilustrao 1. Pintura de William Blake para o seu livro O casamento do cu e do inferno (pintura: The marriege of heaven and hell, 1793). Fonte: www.gailgasfield.com/blake.html - No h progresso sem Contrrios. Atrao e Repulso, Razo e Energia, Amor e dio so necessrios existncia Humana. Desses contrrios emana o que o religioso denomina Bem & Mal. Bem o passivo que obedece razo. Mal, o ativo emanado da Energia. Bem Cu. Mal Inferno (p.17).

  • 43

    Blake, desta maneira, explicitaria, como parte de todo o movimento romntico tambm o

    explicitou, oposio ferrenha, rdua, frente instrumentalizao da razo, transformao do

    homem em um feixe de qualidades secundrias que o distinguiriam, absolutamente, do mundo

    material, natural. Blake teve a sensibilidade genial, diga-se de vincular tal instrumentalizao

    s matrizes do pensamento cristo, criticando, em tom de simultaneidade, cincia moderna e

    teologia crist. Ora apartando-se, ora ferreamente se articulando, ambas cincia moderna e

    teologia crist sero tratadas aqui tendo como pano de fundo uma discusso relativa ao conceito

    de natureza, tanto na Idade Mdia como no princpio da Modernidade, discusso esta que cuidar

    tambm de tratar das categorias espao e tempo.

    O curioso desta discusso que, como o leitor poder perceber, h rupturas significativas

    de percepo da realidade que distanciam, abruptamente, o homem letrado medieval do homem

    letrado moderno. As concepes de tempo e espao, e o prprio tipo de saber geogrfico

    produzido, atestam tal distncia. Contudo, o papel do homem perante Criao, o discurso de

    posse, a Natureza vista enquanto externalidade, pouco sacra devido existncia de um Deus que

    a transcende, que nela no se dilui, permanecem enquanto fio condutor, referencial no

    pensamento ocidental. Ousamos dizer que tal perspectiva permanece at hoje, apesar de gritos de

    crtica como os de William Blake. a demonstrao disso que constituir o caminho que

    trilharemos na tese. Comecemos, ento, o seu traado...

  • 44

    Parte I

    A Natureza na Idade Mdia e os contedos

    do Espao e do Tempo

  • 45

    CAPTULO I

    A NATUREZA

    1.1- O papel do trabalho nos primeiros sculos do cristianismo

    No livro do Gnesis, antes da Queda, Deus j havia ofertado ao homem a posse sobre os bens externos, materiais, no momento em que a maldio ainda no havia sido deflagrada sobre a

    Criao:

    Deus criou o homem sua imagem, imagem de Deus, criou o homem e a mulher. Deus abenoou-os e disse a eles: Sede frteis, multiplicai-vos, enchei a terra e a subjugai. Dominai sobre os peixes do mar, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. E Deus disse: Aqui est, dou a vs todas as plantas que esto sobre a terra e as sementes que elas carregam, e todas as rvores frutferas isso ser o vosso alimento. E a todos os animais da terra, a todos os pssaros do cu, a tudo o que se move sobre a terra, tendo em si um sopro de vida, dou o verde como alimento. E assim ocorreu. Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que tudo era muito bom. E foi a tarde e foi a manh: o sexto dia (GNESIS, 2001, p.13).

    Dentro da escala dos seres, o homem, de imanncia racional e divina, detinha, portanto, o

    domnio espontneo sobre tudo que fora criado. O Eterno fez, findada a criao, todos os animais

    dos campos e as aves do cu virem at o homem para que este lhes oferecesse um nome. Depois

    disso, o fez cair em sono profundo, criando, finalmente de sua costela, a mulher4.

    4 Lenoble (s.d.), em poucas palavras, consegue demonstrar o tipo de relao de poder inerente a esta incumbncia de Ado em denominar a natureza e, tambm, em oferecer parte de si para a criao de sua companheira: H que recordar finalmente que, tal como os metais e os corpos fabricados, tambm as palavras permaneceram durante muito tempo, poderes sobre a natureza e sobre as conscincias. De tal maneira que na Bblia, se Deus traz a Ado, para que lhes ponha nomes, os animais e a companheira formada da sua costela, para que tenha poderes sobre eles e sobre ela; s Deus d nome ao Cu, Terra, s guas, ao dia, noite, porque s ele tem poder sobre eles (p.197).

  • 46

    Veio ento, como j vimos, a Queda. Bem e mal se demonstraram em plenitude, fazendo

    da natureza um sujeito ativo, que nos seus espinhos, em seus cardos, provoca o homem a ser ele

    tambm um sujeito da ao que deve submeter o mundo exterior s suas necessidades. No

    prprio livro do Gnesis, naes nasciam na ramificao da rvore genealgica de Ado e Eva.

    Multiplicar-se, seguindo, muitas vezes sem compreender o desgnio do Criador, do nico Deus -

    como bem demonstra o episdio em que Abrao deveria sacrificar o seu filho Isaque a pedido de

    Deus parecia envolver uma trama em que a criatura, recm existente, deveria conduzir o

    processo de retorno unidade da Criao, ao antigo estado paradisaco. Le Goff (1990), explicita

    este tipo de situao ao destacar o papel do deserto no Antigo Testamento: o caos originrio, o

    anti-jardim, lugar de provas individuais para os patriarcas.

    O episdio de No, que antecede a histria de Abrao, bem demonstra a necessidade de

    reinicio da comunho do homem com a Criao, uma vez que Deus percebeu que a maldade do

    homem era grande sobre a terra, arrependendo-se de t-lo feito, dizendo: Exterminarei da face da

    terra o homem que criei, e tambm os animais domsticos, os rpteis, os pssaros do cu, porque

    me arrependo de os haver feito (p.23)5.

    A terra, aps a Queda, aps o Dilvio, fez-se, de acordo com toda a tradio crist, em

    morada disposta para o homem, como ressalta Glacken (1996). Isso ser verdadeiro tambm com

    relao Idade Mdia. Contudo, no referido perodo, dentro desta disposio da terra para o

    desenrolar dos desgnios divinos inerentes ao homem, h disposies que ou atestam a

    mundaneidade do mundo, negando o ofcio corporal, o trabalho direto de supresso das

    vicissitudes do meio enquanto meio de dignificao da alma, de restituio do bem ou que

    afirmam a positividade de uma interveno direta sobre a natureza e a dignidade encontrada na

    sujeio do mundo para o melhor viver daquele feito imagem e semelhana de Deus.

    Santo Ambrsio (340-397), mestre de Santo Agostinho (353-430), expressando a

    mundaneidade do mundo, chegou a dizer, segundo Lenoble (s.d.) que o homem colocado na terra,

    revestido pela carne, no pode ser sem pecado, pois a terra como um lugar de tentaes e a

    5 O episdio do dilvio expressa o simbolismo que a gua adquire nas mais diversas tradies religiosas, desintegrando, abolindo as formas, lavando os pecados na criao ou recriao do mundo (ELIADE, s.d.).

  • 47

    carne um apelo corrupo (p.219). Este tipo de postura, presente principalmente nos primeiros

    anos do cristianismo, se incrustar em perspectivas que atestam a necessidade de domnio, do

    trabalho e, paulatinamente, sucumbir diante da estabilizao do catolicismo pelo continente

    europeu. Muitas questes estimularo a este amansamento dos que relegam, como Santo

    Ambrsio, ao mundo um carter exclusivamente bestial.

    No mbito da vida prtica, das atividades desenvolvidas pelos camponeses, o perodo

    medieval caracterizou-se por um incremento da relao do homem com o meio bastante mpar se

    comparado s maiores inovaes da Antigidade. Como ressalta Gandillac (1995), quase sem o

    conhecimento dos estudantes parisienses que, principalmente a partir do sculo XIII comearam a

    estudar Aristteles e se delongavam na anlise do Texto Sagrado, o homem medieval desbravou

    florestas, drenou pntanos, no apenas colonizou no norte e no leste da Europa, imensas regies

    quase desertas, mas mesmo no interior das antigas regies romanizadas, duplicou, quando no

    triplicou, em mdia o rendimento das terras, alcanando um nvel de transformao que somente

    foi superada a partir do salto tcnico datado de meados do sculo XIX. H, segundo o autor,

    testemunhos evidentes de uma verdadeira revoluo tcnica ao longo de todo perodo, espelhados

    nas seguintes inovaes:

    Afolhamento trienal, esterroamento regular, multiplicao das fundies [...], arados de ferro com rodas e cuivera (desconhecidas pela Antigidade e que quase no sofrero alteraes na forma at a brabante do sculo XIX), inveno da ferradura, da braadeira de atrelagem, do jugo frontal, substituio dos pavimentos romanos rgidos por um sistema elstico de calamento das estradas, implantao de moinhos de vento e de moinhos dgua [...] (GANDILLAC, 1995, p.29).

    A prpria teologia crist, desde os primeiros tempos da patrstica (sc. I a sc. VII),

    interpretou o Gnesis defendendo a idia de que o homem vivia como colaborador de Deus um

    Deus que, segundo Santo Agostinho, mantm o seu ato divino sobre o mundo, pois sem ele tudo

    retornaria ao nada (GANDILLAC, 1995) , devendo acabar a criao em um mundo finito,

    criado e destrutvel (GLACKEN, 1996). A defesa de um saber til, operativo, que reconhece no

    mundano um estmulo no para o afastamento de seu contedo, mas para a reafirmao da

    necessidade de submet-lo ao controle, ao labor humano tornado penoso, cansativo aps a Queda,

    configurou-se, como enfatiza Clarence Glacken, em um imperativo fundamental para a

  • 48

    legitimao do tipo de saber cristo frente s crticas pags de que este renunciava o mundo,

    negava-o na busca platnica pela verdade restrita alma, apartada do corpo6.

    Santo Agostinho (354-430) explicitou a resposta para tais crticas. Para ele, o corpo e a

    mente nos oferecem tipos de conhecimento diferentes, o primeiro proporcionado pela ao dos

    sentidos e o segundo pela ao da mente. Assim,

    Quando, pois, se trata das coisas que percebemos pela mente, isto , atravs do intelecto e da razo, estamos falando ainda em coisas que vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual iluminado e de que frui o homem interior (SANTO AGOSTINHO, 1956, P.117).

    Nestes termos, verdade divina cabe somente um tipo bastante especfico de reflexo

    interior, que independe dos sentidos (MOROZ & RUBANO, 2000) e atua enquanto efeito de

    iluminao do foro interior de cada um penetra em tua alma, em teu foro interior, diria o

    telogo (KOYR, 1991).

    A luz divina que ilumina todo homem, sol inteligvel do mundo das idias, imprime, na

    alma, todo o reflexo das idias eternas, das idias de Deus, de todos os arqutipos e no

    estudando o fugidio mundo dos sentidos, reflexo imperfeito da Cidade de Deus, que a alma

    conhecer a verdade (KOYR, 1991), pois esta se encontra muito alm, imprimindo na matria

    apenas uma breve e corruptvel marca de toda a sua plenitude. Como ressalta Gandillac (1995),

    em Agostinho a criatura humana vista como que submersa em uma penosa riqueza do sensvel,

    sendo reduzida a forjar dolos para si, testemunhos de uma busca intemporal ocorrida no interior

    de um universo feito apenas de sombras.

    Contudo, dentro desta viso que, caracterizando o saber metafsico, toma a finitude

    somente a partir daquilo que o transcende, descartando, como ressalta Bornheim (1977), a physis

    para que, o logos mostre-se pleno, para que a realidade mostre-se em um grau excelente, Santo

    6 Neste sentido, os primeiros pensadores cristos no podiam deixar de reconhecer a indstria, a atividade e os logros do homem. Glacken (1996) ressalta a urgncia dessa posio crist em Tertuliano (155-220), que disse: [...] somos con vosotros marineros y soldados, com vosotros cultivamos la tierra, e igualmente participamos en vuestros trficos y servimos con nuestros trabajos en vuestro beneficio (1996).

  • 49

    Agostinho no desprezou, de forma alguma, a capacidade intelectual e operativa do homem para

    transformar o meio, adequando-o aos seus anseios.

    Glacken (1996), destaca que, apesar de sua conhecida negao asctica do mundo, Santo

    Agostinho fala com generosidade da inteligncia, da capacidade e da criatividade do homem que,

    contudo, as deve ao criador, que, aps a Queda, no lhe fez desprovido de todas as suas potncias

    gensicas. A mente capaz de instruo, de compreenso da verdade e de dispor amor pelo bem,

    estrutura imanente da realidade. Somente a alma pode fazer uma guerra contra o erro e isso

    significa em impor a marca humana sobre a natureza.

    So Baslio e Santo Agostinho inclusive defenderam, no que tange s tarefas a serem

    desempenhadas pelos monges (GLACKEN, 1996), o valor do trabalho manual, distinguindo-se,

    de certa forma, do tipo de distino depreciativa entre mo e mente que se fez presente tanto em

    Plato quanto em Aristteles7.

    Os monges dedicavam-se com disciplina s meditaes e preces dirias, mas deveriam

    tambm saber usar o machado, a tocha, a enxada, o cachorro, o boi. Tal situao relacionava-se,

    segundo Glacken (1996), s fortes demandas prticas que as condies religiosas, sociais,

    econmicas e climticas impuseram ao Ocidente Latino em meados do princpio da Idade Mdia,

    somadas, tambm, s invases brbaras.

    O processo de construo de mosteiros exemplificaria esta predisposio ao sobre o

    meio enquanto medida de consagrao do mundo:

    En el desarrollo del monacato en el occidente latino los monjes fueram muchas veces apartados de la exagerada aficin a la soledad, en beneficio de nuevos valores que eran exigidos por las condiciones que haban de afrontar: la necesidad de ampliar el alcance de la actividad de conversin y el cuidado espiritual, la limpieza del terreno y las construcciones necesarias el efecto, el adecuado amplaziamento de los monasterios em funcin del abastecimiento de

    7 A ttulo de exemplo, temos que Aristteles exclua dos operrios mecnicos o qualitativo de cidado, pois a nica diferena entre estes e os escravos que os ltimos tm um nico dono, ao passo que os mecnicos atendem a interesses e solicitaes de muitas pessoas. Plato, por seu turno, em sua obra Gergias, afirma o desprezo pelos construtores de mquinas, uma vez que ningum desejaria que a sua filha se casasse com um deles (ROSSI, 2001).

  • 50

    aguas y la acessibilidad, y muchas veces la apreciacin de la belleza y la decoracin (1996, p.293).

    Assim, as atividades monsticas eram obrigadas realizao de tarefas campesinas,

    clareando bosques e cultivando a terra (GLACKEN, 1996), reproduzindo nos arredores do

    mosteiro o tipo de interveno laboriosa, penosa em sua essncia, de reconfigurao de uma

    ordem das coisas do mundo mais condizente com o tipo de natureza que precedeu a Queda,

    amenizando a maldio do solo.

    Para So Bernardo, o prprio monastrio deveria espelhar, mesmo que dentro das sombras

    que habitam a corrupo do mundo dos sentidos, uma aproximao com a Jerusalm celeste,

    constituindo um lugar de espera, desejo e preparao para nela adentrar. Nas prprias palavras de

    So Bernardo, un lugar salvaje, no santificado por la oracin y el ascetismo y que no es

    escenario de ninguna vida espiritual, se encuentra, por as, decirlo, en el estado de pecado

    original. Pero una vez se h vuelto frtil y til adquiere una suma importancia (GLACKEN,

    1996, p.293).

    Esta negao do primeiro estado da natureza, selvagem, e portanto, mais prxima do

    pecado original como as prprias palavras de So Bernardo atestaram, coincide, em um plano

    prtico, com o tipo especfico de atividade do campesinato medieval. Se o fenmeno urbano

    comeou a ganhar vulto a partir principalmente do sculo XII, reconfigurando a relao

    sociedade-natureza e, conseqentemente, levando a cabo uma prpria transmutao do tipo de

    abstrao que o conceito representa em si8 uma coisa trabalh-la diariamente, atrelar o

    movimento da vida aos seus ciclos, e outra se debruar sobre a janela de uma construo urbana

    e ver o acelerado movimento da cidade, cercada, ao longe, por frondosos bosques calmos,

    estticos, percebendo o contraste dos tempos, o tipo diferente de fluxos - , antes disso, como j

    brevemente ressaltamos, o campons conduziu um processo que Barros (2000) veio a chamar de

    humanizao da natureza.

    8 Le Goff (1995) demonstra, a ttulo de exemplo acerca do tipo de transformao que o novo cenrio urbano ofereceu, no perodo de efervescncia universitria nos sculos XII e XIII, s vises acerca das relaes entre cidade e campo, que as cerimnias realizadas para calouros tentavam reproduzir o processo de conduo da bestialidade humanidade, da rusticidade urbanidade. Em tais cerimnias, ressalta o autor, o velho fundo primitivo aparece degradado e quase esvaziado de seu contedo original, lembrando que o intelectual foi arrancado da civilizao agrria, do clima rural, do selvagem mundo da terra.

  • 51

    Segundo o aludido autor, graas ao trabalho campons, os homens medievais

    transformaram a natureza hostil dos selvagens na natureza amiga dos civilizados. Atrelado

    subjetivamente a este trabalho, temos o valor do ofcio, no plenamente divulgado no ascetismo

    religioso cristo at Martin Lutero, mas que permeou a atividade campesina no sentido de

    cumprimento de um papel natural que atrelava, para ns filhos da modernidade, perspectivas

    bastante antagnicas: o culto antigo e supersticioso da natureza e o culto moderno e laico do

    progresso tecnolgico, tudo isto permeado pelo Absoluto que penetra nestas duas esferas,

    legitimando-as (BARROS, 2000).

    A natureza fora, de fato, derramada sobre o mundo para bem cumprir o desgnio de uma

    terra feita e refeita aps o Dilvio para servir de morada do homem, para propiciar o seu

    desenvolvimento espiritual que, nos primrdios da Idade Mdia, tomado, seguindo a tradio

    clssica da separao entre mo e mente, enquanto independente do labor sobre a matria.

    Portanto, domin-la no implica uma tarefa diretamente ligada elevao da alma, mas coloca-se

    enquanto condio indispensvel para o vir a ser plenamente bem que permeia de sentido, pelo

    menos em termos de teologia e pregao, o viver do cristo em um mundo que deve relegar ao

    passado os resqucios do pecado original. Ao homem cabe, portanto, o papel de desenvolver a sua

    inteligncia no sentido de terminar, governar e adornar a criao ou mesmo, como pensava So

    Baslio, de aperfeioar a sua inteligncia debruando-se acerca de alguns detalhes que Deus

    deixou em silncio, tais como o modo como vieram a ser a gua, o ar e o fogo (GLACKEN,

    1996).

    Mesmo conhecendo, como j ressaltamos, uma mudana de atitude perante o trabalho

    manual condicionada, em parte, pelo tipo de situao em que se encontrava boa parte do

    continente europeu aps o declnio do Imprio Romano, a Idade Mdia esteve distante de

    conceber para si o tipo de domnio sobre os quadros naturais que comeou a vigorar,

    principalmente, a partir do sculo XVII.

    Neste perodo, mesmo diante de uma mudana de atitude perante o trabalho manual, os

    instrumentos agrcolas, revolucionados, como j vimos, no foram capazes de substituir

    plenamente a energia muscular humana, servindo somente enquanto seu complemento

  • 52

    (BARROS, 2000). Gandillac (1995) destaca que nas relaes cotidianas, no nvel da prtica, a

    Idade Mdia assiste ao desenvolvimento de todas as espcies de tcnicas de conquista, porm

    sem falar delas e, acima de tudo, sem assimilar, em sua viso de mundo, o seu carter

    revolucionrio. Glacken (1996), tambm faz uma interpretao semelhante do perodo, ao

    ressaltar que nele muitos homens foram conscientes da realidade das modificaes na natureza

    operadas pelo trabalho, mas que tais cmbios, dados o seu carter local, no foram sintetizados

    em um corpo de pensamento.

    Aqui est um ponto de fundamental importncia para o texto que estamos construindo: na

    Idade Mdia, o discurso de posse, de controle e de uma conseqente consagrao da natureza,

    insuflados pelo tema da Queda, no incorporou no corpo terico de seu saber a legitimidade da

    tcnica, do trabalho de suplantao das vicissitudes do meio. Como veremos mais adiante, tal

    incorporao se dar no momento de ecloso da Revoluo Cientfica, em que saber terico e

    prtico finalmente estaro vinculados em seu corpo terico, amplificando os termos da posse e

    controle do homem sobre a natureza. Neste caso, Francis Bacon, como veremos, ser de

    fundamental importncia.

    Como ressalta Gandillac (1995), na Idade Mdia, mesmo na poca da escolstica (sc.

    XIX ao XVI), o instrumento tcnico no tem o seu prprio valor reconhecido, no estando,

    portanto, situado em seu verdadeiro lugar, escapando ao controle da racionalidade e perdendo a

    sua significao autntica.

    O homo faber corre o risco de ser sempre apenas aparentemente homo sapiens, luxo sem

    utilidade, puro epifenmeno em uma sociedade que no incorporou em seu corpo terico de

    interpretao e abstrao da realidade o papel da tcnica.

    Para o mestre parisiense Joo de Garlande (1190-1255), situado em um contexto de

    efervescncia do aristotelismo que, na base de sua concepo de cincia, no subvertia o objeto

    natural ao experiment-lo nas mais diversas situaes, como faz a cincia moderna

    (ABRANTES, 1998), os instrumentos necessrios para os eruditos so:

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    Livros, uma escrivaninha, uma lamparina com sebo e um castial, uma lanterna, um funil com tinta, uma pluma, um fio de prumo e uma rgua, uma meia e uma palmatria, uma escrivaninha, um quadro negro, uma pedra-pomes com raspador de giz. A escrivaninha (pulpitum) se chama em francs lutrin (letrum); preciso observar que a escrivaninha dispe de uma graduao que permite elev-la altura em que se l, pois o lutrin onde se coloca o livro. Chama-se raspadeira (plana) um instrumento de ferro com o qual os pergaminheiros preparam o pergaminho (LE GOFF, 1995, p.72).

    Quando Galileu inicia, como veremos nos captulos seguintes, o processo de

    diferenciao das palavras de Deus da linguagem inerente natureza, o faz, de forma

    significativa, amparado no uso da luneta, corrompendo as palavras legveis da escritura, vendo

    manchas no Sol, tornando possvel o vislumbre de algumas das intuies de Coprnico. O

    cientista tcnico, como o chama Rossi (1989), far uso de um objeto aperfeioado pela prtica,

    parcialmente acolhido nos meios militares, mas ignorado pela cincia oficial, tornando-o em um

    poderoso instrumento de investigao cientfica (p.43). Tal tipo de instrumento, que amplificou a

    potncia da razo, que permite uma ida para alm das aparncias, estava distante de se encontrar

    na lista do mestre Garlande.

    A Idade Mdia est, portanto, longe deste tipo de relao com o saber tcnico que,

    portanto, no se mescla ao saber sagrado das autoridades do passado e da Bblia. Sentem-se, os

    eruditos medievais, sombra dos gigantes do passado (GANDILLAC, 1995) e longe esto de

    conhecer aquele tipo de confiana, de exaltao da novidade, de que nos fala Lenoble (s.d.) com

    relao aos principais expoentes da Revoluo Cientfica do sculo XVII.

    As grandes calamidades naturais, incluindo o terremoto de Lisboa ocorrido no longnquo

    ano de 17559, no tinham a