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5 Resumo O exame dos problemas de compreensão e de interpretação dos textos literários, da escola ao liceu, 2 pode ser um bom indicador das diferenças culturais entre e primeiro e o segundo graus. As variações no modo de abordagem dos problemas cognitivos nos textos oficiais, nas representações dos professores, nas práticas das salas de aula re- fletem um desconhecimento frequente de continuidades que, entre- tanto, existem; elas se baseiam em concepções diferentes dos ensinos da leitura e da literatura e correm o risco, afinal, de acentuar suas rupturas. Pesquisas, experiências, inovações permitem, contudo, ex- plorar, nesse contexto, novas vias para assegurar uma continuidade, apesar da necessidade de certas rupturas. Palavras-chave Continuidade, ruptura, aprendizagem, pedagogia da compreen- são, da interpretação. No quadro das discussões atuais sobre a mastérisation, 3 o debate em torno da importância de uma prova de admissão sobre o conhe- cimento do sistema educacional é sem dúvida revelador do caminho que ainda é necessário percorrer para que, no futuro, os diversos ato- res, da escola ao liceu, dividam um conhecimento real dos objetivos e das problemáticas maiores de cada grau, levando em conta as práticas cotidianas, assim como os sucessos e as dificuldades respectivas de cada nível. Compreensão e interpretação literárias: duplo risco, da escola ao liceu Max Buttlen 1 (Traduzido por Joaquim Brasil Fontes) ARTIGO INTERNACIONAL 1 Université de Cergy-Pontoise. IUFM da Academia de Versalhes. Centre de Recherche Textes et Francophonies (CRTF). 2 O sistema educacional francês está atualmente organizado como se segue: em primeiro lugar, vêm as chamadas escolas: a maternal e a elementar. A escola maternal acolhe os alunos antes da escolaridade obrigatória, que começa aos 6 anos de idade. Trata-se de uma originalidade do sistema francês. É geralmente organizada em três seções, em função da idade das crianças. O programa da maternal divide-se em cinco domínios de atividades: apropriar -se da língua e des- cobrir o escrito; tornar -se aluno; agir e expressar -se corporalmente; descobrir o mundo; perceber, sentir, imaginar, criar. As seções pequena e média da maternal constituem o ciclo 1, ou ciclo das primeiras aprendizagens. A grande seção da maternal faz parte do ciclo 2, ou ciclo das aprendizagens fundamentais, com o CP e o CE1. Segue-se a escola elementar, que recebe as crianças dos 6 aos 11 anos de idade, e é obrigatória. Quando pública, é mista e gratuita. Comporta cinco níveis: CP, CE1, CE2, CM1, CM2. A literatura começa a ser estudada nos três últimos níveis. As escolas maternal e elementar constituem a escola primária. Com o co- légio, começa o ensino de nível secundário, que recebe os alunos à saída da escola elementar. Comporta quatro anos de escolarização obrigatória: sexta, quinta, quarta e terceira séries, nessa ordem. O liceu acolhe os alunos que, ao saírem do colégio, desejam prosseguir sua escolaridade. Pode ser de ensino geral ou técnico e comporta três anos: segunda e primeira séries, e terminale, também nessa ordem. A classe de terminale leva ao bac (baccalauréat), que dá acesso à universidade. Para não desfigurar o contexto do original, o tradutor manteve as denominações tradicionais do sistema francês, esperando que o leitor faça as necessárias cor- respondências com as do brasileiro, lembrando, por exemplo, que ao falar em “école”, o autor está se referindo à “escola maternal” e/ou à “elementar” (guardadas as devidas proporções, a nossa “educação infantil” e/ou “pré-escola”), e que no “liceu” francês corresponde, mais ou menos, ao nosso antigo curso colegial. (N.T.) 3 Mastérisation é um neologismo sem correspondente em português. O termo foi criado recentemente no quadro de uma proposta governamental de exigên- cia do título de master para a contratação de professores nas escolas públicas francesas. O grau de master é obtido em quatro semestres, após a licenciatura, e corresponde, guardadas as devidas proporções, ao mestrado das universidades brasileiras. (N.T.)

Compreensão e Interpretação Literárias

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  • 5ResumoO exame dos problemas de compreenso e de interpretao dos

    textos literrios, da escola ao liceu,2 pode ser um bom indicador das diferenas culturais entre e primeiro e o segundo graus. As variaes no modo de abordagem dos problemas cognitivos nos textos ociais, nas representaes dos professores, nas prticas das salas de aula re-etem um desconhecimento frequente de continuidades que, entre-tanto, existem; elas se baseiam em concepes diferentes dos ensinos da leitura e da literatura e correm o risco, anal, de acentuar suas rupturas. Pesquisas, experincias, inovaes permitem, contudo, ex-plorar, nesse contexto, novas vias para assegurar uma continuidade, apesar da necessidade de certas rupturas.

    Palavras -chaveContinuidade, ruptura, aprendizagem, pedagogia da compreen-

    so, da interpretao.

    No quadro das discusses atuais sobre a mastrisation,3 o debate em torno da importncia de uma prova de admisso sobre o conhe-cimento do sistema educacional sem dvida revelador do caminho que ainda necessrio percorrer para que, no futuro, os diversos ato-res, da escola ao liceu, dividam um conhecimento real dos objetivos e das problemticas maiores de cada grau, levando em conta as prticas cotidianas, assim como os sucessos e as diculdades respectivas de cada nvel.

    Compreenso e interpretao literrias: duplo risco, da escola ao liceuMax Buttlen1

    (Traduzido por Joaquim Brasil Fontes)

    ARTIGO INTERNACIONAL

    1 Universit de Cergy -Pontoise. IUFM da Academia de Versalhes. Centre de Recherche Textes et Francophonies (CRTF).2 O sistema educacional francs est atualmente organizado como se segue: em primeiro lugar, vm as chamadas escolas: a maternal e a elementar. A escola

    maternal acolhe os alunos antes da escolaridade obrigatria, que comea aos 6 anos de idade. Trata -se de uma originalidade do sistema francs. geralmente organizada em trs sees, em funo da idade das crianas. O programa da maternal divide -se em cinco domnios de atividades: apropriar -se da lngua e des-cobrir o escrito; tornar -se aluno; agir e expressar -se corporalmente; descobrir o mundo; perceber, sentir, imaginar, criar. As sees pequena e mdia da maternal constituem o ciclo 1, ou ciclo das primeiras aprendizagens. A grande seo da maternal faz parte do ciclo 2, ou ciclo das aprendizagens fundamentais, com o CP e o CE1. Segue -se a escola elementar, que recebe as crianas dos 6 aos 11 anos de idade, e obrigatria. Quando pblica, mista e gratuita. Comporta cinco nveis: CP, CE1, CE2, CM1, CM2. A literatura comea a ser estudada nos trs ltimos nveis. As escolas maternal e elementar constituem a escola primria. Com o co-lgio, comea o ensino de nvel secundrio, que recebe os alunos sada da escola elementar. Comporta quatro anos de escolarizao obrigatria: sexta, quinta, quarta e terceira sries, nessa ordem. O liceu acolhe os alunos que, ao sarem do colgio, desejam prosseguir sua escolaridade. Pode ser de ensino geral ou tcnico e comporta trs anos: segunda e primeira sries, e terminale, tambm nessa ordem. A classe de terminale leva ao bac (baccalaurat), que d acesso universidade. Para no desgurar o contexto do original, o tradutor manteve as denominaes tradicionais do sistema francs, esperando que o leitor faa as necessrias cor-respondncias com as do brasileiro, lembrando, por exemplo, que ao falar em cole, o autor est se referindo escola maternal e/ou elementar (guardadas as devidas propores, a nossa educao infantil e/ou pr -escola), e que no liceu francs corresponde, mais ou menos, ao nosso antigo curso colegial. (N.T.)

    3 Mastrisation um neologismo sem correspondente em portugus. O termo foi criado recentemente no quadro de uma proposta governamental de exign-cia do ttulo de master para a contratao de professores nas escolas pblicas francesas. O grau de master obtido em quatro semestres, aps a licenciatura, e corresponde, guardadas as devidas propores, ao mestrado das universidades brasileiras. (N.T.)

  • 6Artigo Internacional

    As ressalvas e at a hostilidade ideia dessa prova de conheci-mento do sistema educativo, antes mesmo de ela ter sido denida, podem contribuir para esclarecer uma situao escolar francesa na qual, apesar de algumas inovaes militantes e de algumas prescri-es ociais, as passagens da escola maternal elementar, do colgio ao liceu e, enm, do liceu universidade4 so vividas como situa-es dolorosas regidas por rupturas, escandidas pelas mudanas de paradigmas e de mtodos e, s vezes, at mesmo pela negao das conquistas precedentes.

    Um marcador das diferenas culturais

    Desse ponto de vista, o exame dos problemas da compreenso e da interpretao dos textos literrios, da escola ao liceu, aparece como um dos marcadores das diferenas culturais entre o primeiro e o se-gundo graus. Tentaremos mostrar que as variaes nas representaes e na abordagem desses problemas cognitivos reetem um desconheci-mento das continuidades que, entretanto, existem, articulam -se com concepes diferentes dos ensinos da leitura e da literatura e correm o risco, enm, de acentuar suas rupturas.

    Em 1995, os programas ociais para o colgio armavam que:

    a nalidade da sexta srie5 levar o aluno a dominar o conhecimento

    lgico (percepo das relaes que estruturam o texto) e reconhecimento

    da presena do implcito.6

    O enunciado desse objetivo e a permanncia dessa prescrio at o incio do ano escolar de 20097 revelam um incrvel desconhecimen-to das atividades pedaggicas realizadas antes do colgio. Naquele

    mesmo ano de 1995, novas instrues para as escolas8 convidavam os professores do ciclo 3 a reforar

    suas exigncias em matria de compreenso, para permitir que os alunos

    entrem no colgio sabendo no somente captar o essencial de um texto e

    antecipar informaes pontuais, mas tambm ter acesso a uma compreen-

    so mais sutil do texto.9

    E o redator precisava que se tratava de chegar a um bom conhe-cimento dos encadeamentos do escrito (encadeamentos cronolgicos, analgicos, lgicos), de saber demarcar o jogo dos pronomes no texto, de descobrir o implcito.

    Levar em conta os objetivos da escola e as aquisies dos alunos

    Um conjunto de mudanas detectadas no ensino primrio deveria, portanto, levar a formulaes que incitassem os professores do colgio a se inscreverem na continuidade dos aprendizados, levando mais em conta as aquisies feitas pelos alunos. Bem antes de 1995, a orien-tao rumo a uma pedagogia da compreenso aparece, com efeito, como um dado maior nas pesquisas a respeito do primeiro grau, e percebe -se regularmente seu impacto nos textos ociais. Como teria sido possvel, em 1995, no levar em considerao a enorme difuso, feita pela direo das escolas, de um documento intitulado La matrise de la langue lcole [O domnio da lngua na escola] (1992)?

    A respeito da questo da compreenso, o texto sublinhava a exis-tncia de uma verdadeira mutao de objetivos e, portanto, de mto-dos (ibidem, p. 116). Fazia tambm o cotejo dos resultados das pes-

    4 Ver nota 2. (N.T.)5 A sexta srie do colgio, que recebe os alunos sada da escola elementar, considerada, na Frana, um ciclo de transio. Seu objetivo consolidar as

    aquisies feitas na escola primria pelos alunos e inici -los nos mtodos de trabalho do colgio. nessa srie que os jovens escolhem sua primeira lngua viva estrangeira. (N.T.)

    6 Programmes de l'cole primaire, 1995.7 No original, jusqu la rentre 2009. Como se sabe, o ano escolar francs tem incio no ms de outubro. (N.T.)8 Ver nota. (N.T.)9 Programmes de lcole primaire, 1995.

  • 7Artigo Internacional

    quisas em matria de domnio da lngua, de aprendizagem da leitura e da escrita, e concedia uma grande importncia ao problema da com-preenso, apresentando sobretudo os resultados de pesquisas de lin-guistas e cognitivistas. Procedimentos precisos eram expostos para en-sinar a compreender e desenvolver tanto a compreenso literal quanto a por inferncia. Eram assim sublinhados: o interesse na reformulao; a importncia do trabalho sobre as anforas; e os conectores... A partir da demarcao dos obstculos cognitivos, alguns procedimentos eram explicitados a m de tornar visvel, para os leitores com diculdades, o trabalho mental invisvel dos leitores com experincia de leitura. Recomendava -se dar um lugar central literatura juvenil. A con-sulta assdua e compartilhada desses textos era vista como o penhor de uma compreenso melhor dos outros tipos de textos com os quais a escola confronta os alunos (ibidem, p. 69). Paralelamente, de 1989 a 2004, as diculdades concretas de compreenso e o desempenho dos alunos eram colocados em evidncia pelas avaliaes nacionais no segundo ano do curso elementar e na sexta srie. Sobre essas bases, nu-merosos instrumentos remediadores foram propostos aos professores das escolas, como testemunha, anualmente, o Banque doutils daide lvaluation diagnostique [Banco dos instrumentos de ajuda e avaliao diagnstica], elaborado pela Direo da Avaliao e da Prospectiva.10

    A investida terica dos programas de 2002

    As instrues ociais de 2002 e os documentos que as acompa-nham enriqueceram mais esse conjunto de propostas num mbito de continuidade do ciclo 1 ao ciclo 3.11 Volta -se a encontrar, alis, praticamente palavra por palavra, nas I.O. de 2002 para a escola, o objetivo proposto em 1995 para o colgio, com uma diferena apre-civel e reveladora: na grande seo da escola maternal, ao longo do ciclo 2, que o trabalho sobre o implcito recomendado. A prescrio insiste na ideia de que no se deveria contentar, no caso da leitura de textos literrios,

    com exigir dos alunos uma compreenso das informaes literais do tex-

    to. Deve haver um empenho na busca das informaes implcitas que

    estiverem sua altura... Isso implica, da parte do professor, num questio-

    namento preciso a respeito do implcito. (BOEN, fvr. 2002)

    Alm disso, recomendaes semelhantes eram formuladas para a abordagem de documentos, na medida em que as respostas s ques-tes colocadas pela leitura

    reenviam muitas vezes a outras informaes que se encontram em outros

    lugares do texto. A inferncia desempenha, nesse tipo de leitura, um papel

    certamente mais importante do que na narrativa. (Ibidem, p. 46)

    Essas poucas inferncias permitem sublinhar a que ponto a fa-mosa elipse promovida pelas I.O. de 1985 Ler compreender deu lugar a aprofundamentos sucessivos que visavam a promover uma pe-dagogia da compreenso nos diferentes domnios da leitura na escola.

    As prescries ociais no conseguiriam, certamente, modicar automaticamente as prticas usuais. A escola primria ainda tem mui-to a fazer para ensinar a compreenso. O trabalho no sistemtico ou generalizado em todos os estabelecimentos; o implcito ainda muito pouco levado em conta como objeto de aprendizagem e de debate. As tradies continuam a pesar sobre as prticas usuais que durante muito tempo caram acantonadas num trabalho sobre o c-digo e sobre a compreenso literal. verdade que as representaes coletivas dominantes consignam escola a tarefa de ensinar a ler, ou antes, de ensinar o b - -b, levando, tanto quanto possvel, os alu-nos na direo de uma leitura expressiva. As atividades cognitivas mais complexas so eventualmente delegadas ao ciclo 3,12 embora uma tendncia comum os reenvie a uma escolaridade secundria.

    A distino entre aprendizagem da compreenso e aprendizagem da leitura s foi feita recentemente. Foi preciso fazer balanar a crena

    10 Cf. Banque doutils daide lvaluation diagnostique proposta pelo DEP, disponvel em: .11 Ver nota 2. (N.T.)12 Ver nota 2. (N.T.)

  • 8de que a compreenso dos textos s se coloca quando o cdigo j foi dominado, para chegar ideia de que esse aprendizado oportuno bem antes do aprendizado do cdigo, ao longo desse aprendizado e, evidentemente, depois dele. A, mais uma vez, a obra La matrise de la langue lcole abriu o caminho:

    Pode -se, hoje, estar certo de que o trabalho relativo compreenso dos

    textos ecaz antes mesmo que os obstculos decifrao estejam resol-

    vidos. Quanto antes os alunos forem confrontados com textos escritos

    lidos pelo professor, tanto mais cedo podero constituir para si um capital

    de conhecimentos relativos ao escrito e sua cultura. (1992, p. 143)

    Experincias e pesquisas para uma pedagogia da compreenso

    Importantes esforos no sentido da informao e da formao fo-ram e devem ainda ser desenvolvidos. Para isso, recursos importantes esto desde j disponveis em funo da difuso de pesquisas de expe-rincias feitas, sobretudo, pelo Institut National de Recherche Pdago-gique (INRP). Entre essas, pode -se conceder uma ateno especial aos trabalhos de uma equipe dirigida por Martine Rmond, que se inter-rogou sobre os dispositivos utilizados pelos mestres para trabalhar a compreenso na escola e sobre as tarefas que os alunos deviam realizar. A obra coletiva Lectures pour le cycle 3 [Leituras para o ciclo 3] (BEL-TRAMI et al., 2004) representativa de uma etapa dessas pesquisas. Ela demarca um percurso de eccia a partir de trs ideias -chave. A pri-meira a de que um ensino explcito da compreenso que visa a cons-truir saberes sobre o texto e saberes sobre a leitura, enquanto atividade cognitiva especca (ibidem, p. 17). A segunda ideia traduzida pela proposio de sesses de leitura com carter problemtico, a partir de textos intelectualmente motivadores e surpreendentes, que permitam programar indicadores no sistema de enunciao (trata -se da questo, muitas vezes escamoteada pelo autor, de saber quem conta o qu? com que inteno, com que grau de conabilidade?), mas tambm de indi-

    cadores no sistema de personagens (por exemplo, qual o seu nmero? quais so as suas relaes, suas motivaes, seus objetivos, suas ast-cias, seus estados mentais?), e, ainda, indicadores, muitas vezes difceis para jovens alunos, no enquadramento espao -temporal tanto quanto na cadeia referencial, os encadeamentos lgicos, os esquemas de ao.

    A terceira ideia baseia -se na noo de ensino compartilhado entre pares, pois:

    na troca e graas troca, so construdas no somente respostas, mas

    estratgias e sobretudo representaes mais adaptadas ao texto, da leitura

    e do estatuto do leitor. (Ibidem, p. 20)

    Tornar recprocas as prticas e confront -las

    Nessa perspectiva, outra pesquisa do INRP, realizada entre 2003 e 2006, no quadro da equipe Literatura e Ensino, sob a direo de Da-nielle Dubois -Marcoin, demonstrou que a aposta nas trocas recprocas e a confrontao dos saberes podem efetuar -se num ensino contnuo da literatura, da escola maternal ao liceu, garantindo a apropriao dos textos graas ao fato de levar mais em considerao o desenvolvi-mento do sujeito leitor, suas referncias culturais, suas modalidades de entrada nos escritos e, nalmente, seus processos pessoais de re-cepo, de compreenso e de interpretao.13 O trabalho comparativo realizado em torno da leitura dA Pequena Sereia de Andersen, e a seguir de um corpus de textos poticos, em cerca de sessenta classes de escolas elementares, de colgios, de liceus testemunha disso. O estabelecimento de um dilogo entre professores novatos e experien-tes levou a interrogar, da escola ao liceu, as prticas de ensino da literatura e a faz -las evoluir por meio da comparao das abordagens de obras vistas como resistentes aos cnones genricos e estticos. A reexo coletiva em torno das variedades dessas abordagens permitiu organizar novas modalidades de trabalho e adapt -las a cada grau de

    13 Ler La Petite Sirne dAndersen: interroger la littrature autrement (direo de Dubois -Marcoin, 2008). Ver tambm o artigo De quelques points de rsistance dans la mise en place dun enseignement de la littrature lcole primaire, de BUTLEN et al., In: DUBOIS -MARCOIN; TAUVERON. Repres, n. 37, 2008. Esse artigo reenvia a uma pesquisa impulsionada por Max Butlen nas academias de Crteil, Versailles e Nantes.

    Artigo Internacional

  • 9Artigo Internacional

    ensino, aprofundando as prticas de intertextualidade e de criao de redes, questionando o modo de conduzir os debates, fazendo alternar os tipos de realizao e de escritos (escritos ccionais e de trabalho, sob a forma de um caderno de leitura, por exemplo) ou recorrendo s artes plsticas, ilustrao, passagem para o oral, ao teatro. A anlise da evoluo das propostas didticas de uma classe para a outra e de um nvel de ensino para o outro revela que, na realidade, rupturas e continuidades podem se conciliar em lugar de se oporem. As cesuras aparecem, certamente, do lado dos professores como do lado dos alu-nos, mas no so necessariamente fatais. Explicam -se pelas diferenas na formao e na construo da identidade prossional dos mestres, pela evoluo dos conhecimentos, dos saberes, pelas transformaes ligadas construo identitria dos alunos e, em primeiro lugar, pela modicao dos objetivos nos graus de complexidade dos exerccios de compreenso e de interpretao propostos. Em resumo, a expe-rincia mostrou como uma continuidade no ensino da compreenso dos textos literrios revela -se necessria e possvel. O colgio e o liceu tm muito a ganhar baseando -se no trabalho assim realizado, a par-tir da escola, para aprofundar as capacidades cognitivas dos alunos, para desenvolver seus conhecimentos metacognitivos, seus saberes de leitores, a m de melhor inscrever cada novo texto numa enciclo-pdia pessoal estruturada por intermdio do encontro de situaes--problemas de leitura, encaradas individual e coletivamente.

    Ligaes a reforar nos programas

    Essas novas possibilidades de articulao com o primeiro grau no costumam ser levadas em considerao nos textos ociais. As modi-caes fazem -se lentamente e com muita prudncia. Convergncias, contudo, aparecem. Algumas publicaes ociais so testemunha dis-so. Assim, as teorias da recepo, que so referncias centrais para os programas do primeiro grau em 2002, eram tambm referncias nos documentos de acompanhamento dos programas de francs de 1995, para o segundo grau.

    Em 1997, o documento La matrise de la langue au collge [O domnio da lngua no colgio] procurou inscrever -se no prolongamento do texto La matrise de la langue lcole (op. cit., 1992), consagrando um captulo inteiro aos problemas de compreenso e incitando todos os professores

    a se inclinarem concretamente sobre os mecanismos de aprendizagem

    utilizados no cotidiano da sala de aula em todas as disciplinas e a tenta-

    rem ver, para cada uma delas, por que e como a lngua e o conhecimento

    interagem necessariamente e que consequncias tirar disso para tornar

    essa interao mais ecaz. (1997, p. 9)

    O convite era seguido por anlises e propostas que, dezessete anos depois, davam contedos frmula lanada sem muitas explicaes para as intrues ociais de 1980: Todo professor um professor de lngua. La matrise de la langue au collge chamava a ateno do corpo de professores para as consequncias da inegvel ruptura que constitui a passagem de um mestre polivalente a um ensino mantido por seis adultos diferentes com linguagens e metodologias especcas.

    Finalmente, em 2008, os programas do ensino de francs no co-lgio, aplicveis no incio do ano escolar de 2009, concluram que:

    aprofundando o que pde ser adquirido durante o ensino primrio,

    desenvolve -se a aptido dos alunos para se interrogarem a respeito dos

    efeitos produzidos pelos textos, sobre seu sentido, sua construo e sua

    escrita. (BOEN, aut 2008)

    Esse reconhecimento do trabalho feito na escola merece ser su-blinhado mesmo se, sem os cadernos de acompanhamento, os novos programas para o colgio quase no propem pistas para a sua apli-cao na prtica.

    No total, impressionante constatar a raridade dessas articulaes e convergncias. Ser interessante vericar se a instalao da base co-mum de conhecimentos e competncias modicar essa tendncia? No momento, e nesse contexto, o duplo risco pode resultar de des-conhecimentos e de incompreenses antigas e recprocas; um parece menor; o outro, maior.

    Correndo o risco da repetio

    Quando os professores especialistas em suas disciplinas no levam sucientemente em conta as aquisies anteriores, ignoram -nas ou no voltam a mobiliz -las por intermdio das aprendizagens em cur-

  • 10

    so, pode acontecer que, ali onde pretendiam instalar uma mudana e at mesmo uma ruptura, inscrevam -se, na realidade, num processo de repetio. Esse primeiro caso signica, certamente, um risco relativo, se considerarmos que as retomadas so em geral teis e necessrias na construo das aprendizagens. preciso, contudo, levar essa l-gica ao extremo, considerando que, se os alunos no sabem ler ao chegar ao colgio, conviria que os professores que esto certos disso preocupem -se, com urgncia, com ensin -los a ler.

    Ora, os discursos de lamentao, to frequentes na sala dos pro-fessores, baseiam -se numa concepo do saber ler que merece ser discutida. Assim, quando se investigam as representaes comuns, no que diz respeito repartio das tarefas e diviso do trabalho entre professores de primeiro e segundo graus, nota -se que um dos objetivos tidos como maiores na escola primria o de conduzir a to-talidade dos alunos aptido para decifrar os diversos tipos de textos comuns. Entretanto, na medida em que a capacidade para decifrar no garante, de modo algum, a apropriao intelectual do sentido do texto decodicado, a passagem da decodicao compreenso literal concebida como outro objetivo essencial da escola primria. Muitos professores do colgio consideram que so numerosos os alu-nos que no conseguem chegar l. verdade que faz vinte anos que se constatou, efetivamente, que uma parte signicativa (15 a 20%) dos alunos encontra enormes diculdades na decifrao, como em todos os domnios da compreenso. Para a grande massa das crian-as escolarizadas, os resultados repetidos das avaliaes CE2/6a,14 e a seguir CE1/CM2,15 mostram que, maciamente, os alunos esto, ao trmino da escolaridade primria, em condies de extrair uma infor-mao explicitamente formulada num texto. As avaliaes (Progress in International Reading Literacy Study PIRLS) conrmam esse dado. Em 2006, por exemplo, os desempenhos dos jovens franceses escola-rizados em CM116 so signicativamente superiores mdia europeia nesse domnio de avaliao.

    Entre os 30 itens nos quais os jovens alunos franceses tm desempenho

    signicativamente superior aos outros, os itens provenientes de textos de

    tipo informativo tm uma representao signicativa (57% contra 49%

    no conjunto da prova), da mesma forma que os relativos competn-

    cia prever (47% contra 24%), assim como os que tm o formato QCM

    (73% contra 50%).17

    Em compensao, a aptido para realizar inferncias corresponde a um nvel de competncias mais complexas que, logicamente, esto sendo adquiridas na escola, como j assinalava La matrise de la langue lcole:

    Se os resultados em compreenso global so muitas vezes satisfatrios,

    as pontuaes tornam -se mais baixas quando se exige que a criana, no

    incio do ciclo 3, como no incio do colgio, alcance uma compreenso

    mais sosticada. (1992, p. 67)

    E o sero tanto mais, na medida em que a nfase na compreenso , como j lembramos, relativamente recente.

    E correndo o risco de uma oferta pedaggica dissonante

    Alm do risco da repetio ligado negao de uma verdadeira aprendizagem cognitiva anterior, o segundo risco que desejaramos colocar em evidncia parece mais preocupante. Resulta de uma di-viso tradicional das tarefas ao longo da escolaridade. Nas repre-sentaes mais comuns, compete escola o ensino fundamental da leitura, ao colgio a compreenso e as primeiras competncias de anlise e interpretao, ao liceu a leitura literria, analtica, e cada vez mais erudita. Ora, as pesquisas sobre a recepo e a didtica da literatura levam a questionar essa representao das progresses,

    14 Ver nota 2. (N.T.)15 Idem.16 Idem.17 Nota informativa, 08 14, DEP, maro de 2007.

    Artigo Internacional

  • 11

    inaugurando novas pistas. As primeiras convidam a no subestimar as capacidades dos alunos da escola primria, o que vem revolucio-nar a ordem das aprendizagens: a aprendizagem da compreenso em leitura literria no poderia, como j observamos, comear antes da aprendizagem do cdigo? A interpretao estaria realmente fora do alcance dos alunos da escola maternal? De uma forma complemen-tar, outras pistas de reexo incitam a no superestimar suas pos-sibilidades literrias e a reforar a continuidade e a progresso nas aprendizagens. A esse respeito, a diviso tradicional do trabalho18 vista como portadora de riscos de rupturas sucessivas que podem ser acentuadas no colgio, tanto pela formao disciplinar dos pro-fessores de letras, quanto por suas eventuais expectativas quanto demonstrao, pelos alunos, de altas competncias em leitura liter-ria. A conjugao desses fatores levaria a elevar bruscamente o nvel de exigncias e de desempenho em leitura literria, no colgio, e, mais ainda, no liceu. De onde os frequentes fracassos, explicveis pelo fato de que os alunos so intimados a efetuar um tamanho salto qualitativo no regime da leitura, da abordagem, da apropria-o e da discusso dos textos, que muitos no conseguem execut--lo, e veem -se em situao de dissonncia cognitiva ou discrepncia em relao s expectativas dos professores, ao corpus estudado e ao questionamento dos docentes.

    O exemplo da interpretao

    O tratamento da interpretao nos diferentes nveis de ensino reve-la igualmente desvios sensveis entre os textos ociais, as representa-es habituais, as prticas comuns, de um grau de ensino para o outro.

    No liceu, o ensino da interpretao colocado como a tarefa mais importante da classe de francs.

    A leitura analtica tem por nalidade a construo pormenorizada da

    signicao de um texto e constitui -se, portanto, num trabalho de in-

    terpretao.19

    Contudo, a investigao realizada por Christian Baudelot, Marie Cartier e Christine Detrez demonstrou claramente que uma minoria (de alunos de liceus) adere com naturalidade e sem choques deni-o erudita de leitura dignicada pelo curso de francs. (BAUDELOT et al., 1999, p. 195) A equipe de socilogos observou que predomina, mais frequentemente, uma prtica da leitura sem convices. Em muitos casos, a interpretao, esse estgio supremo da leitura, en-carada como uma prtica reservada ao professor (p. 203), que emite, ele prprio, dvidas sobre as capacidades de seus alunos para adotar uma postura interpretativa, embora lhe seja consignada a misso de dar a todos acesso a essa postura.

    Percebem -se, sob essas avaliaes, concepes e denies da in-terpretao que interessante confrontar com as pesquisas conjugadas de tericos da recepo (Barthes, Eco, Charles, Iser, Picard, Genette, Jouve, Gervais), dos cognitivistas (Fayol, Raymond) e dos pedagogos da literatura (Reuter, Dufays, Tauveron).

    O colquio Interpretar e transmitir a literatura hoje, organizado pelo Centre de Recherche Textes et Francophonies (CRTF) da Univer-sidade de Cegy -Pontoise, deu -se recentemente com o objetivo de de-terminar o lugar dessa questo (BUTLEN; MEROT -HOUDART, 2009), o que permitiu mostrar que, se a interpretao dos textos ocupa um lugar cada vez mais importante no corao dos estudos literrios, da escola maternal universidade, ela ainda , no incio deste sculo XXI, objeto de concepes mltiplas e at contraditrias. O estudo faz assim emergir constantes e variaes, alvos polticos e tericos, obstculos e limites da interpretao.

    A instituio escolar que se ocupa do primeiro grau logo levou em conta esse conjunto de pesquisas, que inuenciaram muito, em 2002, a redao dos Programas para a escola. Os textos ociais reforaram no somente as bases cientcas da aprendizagem da leitura, como tambm armaram energicamente que a familiarizao com a litera-tura e tambm a construo de uma cultura literria fazem parte dos objetivos prioritrios de toda escola primria. Ao faz -lo, os textos -zeram balanar as representaes clssicas, armando audaciosamen-

    Artigo Internacional

    18 Leitura na escola, leitura explicada no colgio, comentrio e dissertao no liceu.19 Texto de referncia: decreto de 3 de outubro de 2002. BOEN, n. 41, 7 de novmbre 2002.

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    te que, para alm de um trabalho mais sistemtico e de maior destreza sobre a compreenso,

    igualmente importante levar os alunos a uma atitude interpretativa.

    (BOEN, fvr. 2002, p. 46)

    Como j observamos, enquanto continuam persistindo, inclusive no ensino superior, indagaes e dvidas sobre a possibilidade da emergncia de uma postura interpretativa em alunos de liceus e at em universitrios, os redatores das prescries ociais para a escola ousaram armar que:

    A partir dos cinco anos, debates sobre a interpretao dos tex-tos podem acompanhar o trabalho rigoroso de compreenso. (MI-NISTRE DE L'DUCATION NATIONALE, 2011, p. 81)

    Aprofundar o estudo das interaes compreenso/interpretao

    A investida terica e pedaggica audaciosa. Prolonga a reexo de alguns pioneiros que, como Yves Reuter (2001, p. 70), perceberam que compreenso e interpretao esto em ao na leitura de todo texto.

    Esse estmulo a um trabalho precoce sobre a interpretao deu lu-gar explorao e generalizao de novas metodologias de forma-o de leitores de literatura, a partir da escola maternal. Continuam a se desenvolver em torno dos catlogos de referncias que o Ministrio publicou, na medida em que a inovao no foi, fundamentalmente, posta em causa pelos ltimos textos ociais publicados em 2008. Em

    seu ensino da literatura, os professores do primeiro grau podem, com efeito, continuar incitando os alunos a formular interpretaes variadas, contanto que tenham o cuidado de referi -las aos elementos do texto que as autoriza ou, ao contrrio, as tornam impossveis. (BOEN, juin 2008)20 Percebe -se, desse ponto de vista, que se fez uma ligao com as prescries para o colgio, que propunham uma mesma abordagem no acompanhamento dos programas do ciclo central, desde 1995.21

    Lamenta -se, porm, que as novas instrues no tragam qualquer elemento novo, nenhuma indicao exata que permita ultrapassar as resistncias observveis, desde 2002, na atuao de um professor de literatura na escola primria.22 Assim, nos programas anteriores, as noes de compreenso e de interpretao eram s vezes utilizadas quase indiferentemente, em todo caso sem distino heurstica su-ciente. O contexto de construo e de desenvolvimento das posturas interpretativas deveria, contudo, ter sido determinado com exatido, pois muitos desvios apareceram nas prticas observadas.

    O primeiro consiste em acreditar que o texto teria um sentido, e um so-

    mente, xado uma vez por todas pela vontade do autor, que o professor

    o conheceria e explicitaria, e que o aluno, por sua vez, deveria apenas

    memorizar e repetir, valha o que valha.23

    Essa citao foi extrada dos documentos de acompanhamento para o liceu, mas interessante constatar que ela se aplica perfeita-mente a certas prticas de ensino observadas, doravante, no ciclo 3.24 Os resultados repetidos das avaliaes PISA (Programme for Interna-tional Student Assessmet), a colocao em evidncia de uma falta de

    20 Programa de CE2, do CM1 e do CM2.21 Trata -se de transformar impresses em hipteses, e hipteses em pistas para o trabalho. Essa abordagem implica em que o professor arrrisque -se a aceitar

    propostas dos alunos para construir com eles a anlise. [...] Assim concebida, a leitura analtica liga constantemente observao e interpretao. Ela coloca o aluno em situao de investigao e o leva a explorar o texto de acordo com um objetivo preciso: encontrar respostas para as questes que ele se tinha colocado, aprender a justic -las, confrontar suas observaes e suas interpretaes com as de seus colegas e, anal de contas, inrmar ou conrmar as hipteses que ele tinha formado inicialmente.

    22 Cf. artigo da revista Repres, op. cit.23 O francs na classe de segunda e de primeira (sries gerais e tcnicas), no documento do CNDP: Accompagnement des programmes ofciels.24 Ver nota 2. (N.T.)

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    conana dos alunos franceses, sua hesitao frente aos riscos inter-pretativos, levam, alis, a questionamentos sobre a relao pedaggica induzida por essa postura magistral.

    O erro inverso pode tambm ser cometido; ele consiste em no desconar das interpretaes abusivas, e em crer que, havendo em cada texto muitas interpretaes possveis, todas se equivalem.25 Esse segundo desvio pode ser observado, por exemplo, na escola ma-ternal, na qual acontece s vezes que os investimentos fantasmticos das crianas podem ser encorajados sem que o professor se preocupe realmente em propor um encontro ou um dilogo com a realidade dos textos.

    Compreender, interpretar, transmitir a literatura hoje

    A partir de um confronto de pesquisas e prticas, a obra coletiva publicada pelo (CRTF) prope complementos esperados para um ensi-no da compreenso e da interpretao. (BUTLEN; MEROT -HOUDART, op. cit.) primeira vista, a compreenso reenviaria aptido para cap-tar o que o texto diz, explcita ou implicitamente, ao leitor. A com-preenso literal assim diferenciada da compreenso por inferncia, que se baseia, tradicionalmente, na construo de informaes novas, a partir da colocao em relao de dados textuais (ou na mobilizao de conhecimentos exteriores ao texto), no tratamento dos brancos e silncios textuais, para extrair, sem contrassenso, o que dito ou su-bentendido pelo autor... A interpretao, por sua vez, consistiria em questionar os escritos para alm do que eles anunciam primeira leitu-ra, para elucidar o que tentam nos dizer por outra via e por acrscimo. A postura interpretativa, herdeira da hermenutica, faria vir tona um ou vrios sentidos ocultos. Essa primeira abordagem ganharia, ao ser aprofundada, com a distino entre problemas de compreenso fecha-dos resposta unvoca e os que, abertos, admitem vrias solues. O estudo dos ltimos pede uma interpretao, isto , uma explorao das possibilidades oferecidas por zonas abertas do texto, uma escolha do sentido na polissemia, para retomar a frmula de Picard lembrada por

    Catherine Tauveron. (Ibidem, p. 63) , contudo, necessrio precisar que a prpria compreenso pode chocar -se com uma polissemia cons-titutiva, sem dvida, de todo texto. Em resumo, em lugar de pretender colocar compreenso e interpretao numa ordem hierrquica ou cro-nolgica, tudo convida a explorar as pistas de reexo propostas para considerar esse par em suas interaes, convidando os leitores a entrar, desde o incio da escolarizao, em crculos de leitores interessados em confrontar as recepes dos textos, suas riquezas tanto quanto seus limites.

    As operaes de compreenso e de interpretao comportam, tan-to uma como a outra, graus diferentes de complexidade. As pesquisas desses ltimos trinta anos permitiram, certamente, investidas expres-sivas, embora as zonas de incerteza nos saberes sobre compreenso e interpretao continuem signicativas. A pesquisa nesse domnio ainda tem muito gro a moer. o que levam a pensar as investigaes PISA. Assim, a denio proposta no quadro do OCDE interessa -se por trs competncias de leitura consideradas caractersticas da socie-dade contempornea: informar, interpretar, reagir.

    Temos, a, uma das raras denies claras de interpretao:

    A competncia interpretar aciona um jogo de atividades cognitivas

    diferentes, pois diz respeito tanto elaborao de inferncias quanto

    construo da signicao global do texto; est ancorada na utilizao de

    informaes que proveem do texto. Pode apelar para a metalinguagem.26

    Essa denio tem o grande mrito de existir, mas deve -se reco-nhecer que continua vaga. Numerosos exemplos de tarefas que per-mitem apreciar essa competncia so apresentados em funo de dife-rentes nveis de diculdades reguladas de interpretao. Encontram -se como exemplos: fazer uma inferncia, identicar o tema principal de um texto a respeito de um domnio pressuposto conhecido ou desconhecido, compreender relaes inerentes ao texto (causa/con-sequncia, problema/soluo...), reconhecer um raciocnio analgico,

    25 O francs na classe de segunda e de primeira (sries gerais e tcnicas), loc. cit.26 Les comptences des lves franais lpreuve dune valuation internationale. Les dossiers DEP, n. 137, novmbre 2002.

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    reconhecer a construo de uma signicao baseada no uso espec-co da lngua, construir o sentido de um fragmento de texto levando em conta o seu todo, estabelecer uma ligao entre um texto em sua totalidade e uma de suas frases, compreender um texto em sua tota-lidade e em seus detalhes, em situaes nas quais contedo e forma no so familiares...

    Podem -se identicar, nesse leque de enunciados sobre a compe-tncia interpretar, grandes zonas que correspondem competncia compreender das antigas avaliaes CE2/6.27 Em compensao, na categoria reagir, tal como ela denida pelo protocolo PISA, encontram -se similitudes com nossa concepo francesa de interpre-tao, na medida em que se trata, por exemplo, de reetir sobre o contedo e a forma dos textos, mobilizando conhecimentos sobre os textos e sobre o mundo, ou ainda, de elaborar hipteses, um ponto de vista ou um julgamento crtico sobre um texto.

    A associao que concebeu o dispositivo PISA constata que a hie-rarquia pressuposta das competncias no conrmada pelos resulta-dos. A competncia apenas no , em si, um indicador convel da diculdade de uma questo.28 A diculdade de um item depende em grande parte do suporte (o texto ou o documento de base) e do formato das questes (questionrios de mltipla escolha, questes verdadeiro/falso, questes solicitando resposta breve/longa, questes abertas, fe-chadas...).

    Esses questionamentos a respeito das hierarquias nas diculdades convidam a aprofundar as observaes nas salas de aula, da escola maternal ao liceu, e a continuar as pesquisas para denir melhor os componentes das duas grandes competncias, suas inter -relaes, as especicidades, as variaes ou desvios em cada um dos processos cognitivos.

    A progresso baseada no antigo modelo consecutivo (decodica-o, compreenso, interpretao) poderia sem dvida ser substituda, no futuro, por um trabalho integrado de cooperao que, ao longo de

    todo o processo de ensino, apostar mais seguramente na inter -relao das operaes cognitivas, organizar progresses racionais nas dicul-dades, administrar etapas para permitir a realizao de mudanas de regime nos tipos de leitura, em funo dos corpus a serem descobertos e do desenvolvimento dos saberes.

    Em resumo, continuidades e rupturas assim concebidas no se opem necessariamente, se considerarmos que no h aprendizagem sem continuidade nem retomadas e, muito menos, desenvolvimento sem rupturas.

    Referncias bibliogrcas

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    BUTLEN, Max et al. De quelques points de rsistance dans la mise en place dun enseignement de la littrature lcole primaire. In: DUBOIS -MARCOIN, Danielle; TAUVERON, Catherine. Repres Pratiques effectives de la littrature lcole et au collge, n. 37, 2008.

    BUTLEN, Max; MEROT -HOUDART, Violaine (Dir.). Interprter et transmettre la littrature aujourdhui. Amiens: UCP; Encrage, 2009.

    BOEN. Horaires et programmes denseignement de lcole primaire. n. 1, hors srie, 14 fvrier 2002, p. 44.

    _____. Spcial, n. 6, 28 aut 2008._____. n. 41, 7 novmbre 2002._____. Hors srie. n. 2, 19 juin 2008.DUBOIS -MARCOIN, Danielle (Dir.). La Petite Sirne dAndersen:

    interroger la littrature autrement. Lyon: INRP, 2008. 331 p.LA MATRISE de la langue lcole. Paris: Savoir Lire; CNDP, 1992.

    27 Ver nota 2. (N.T.)28 Les comptences des lves lpreuve dune valuation internationale, op. cit.

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    Artigo Internacional

    LA MATRISE de la langue au collge. Paris: Ministre de lducation Nationale; DLC; CNDP, 1997.

    MINISTRE DE L'DUCATION NATIONALE. Qu'apprend -on l'cole maternelle?. Paris: XO, 2011.

    LES DOSSIERS DEP, n. 137, novmbre 2002.REUTER, Yves Reuter. Comprendre et interprter le littraire lcole.

    Paris: INRP, 2001.