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 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DA ESCOLA POSITIVA* Revis ta dos Tribunais | vol. 777 | p. 757 | Jul / 2000 DTR\2011\2558 João Bernardino Gonzaga Professor Livre-Docente de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Área do Direito: Geral Sumário: Artigo publicado nas páginas 369-395 da obra  Ciência Penal  3, Comissão Diretora: Andrés Augusto Balest ra, Miguel Reale Júnior , Octávi o Leitão da Silveira, Ricardo Antunes Andreucc i e Sérgio M. de Moraes Pitombo, São Paulo : José Bushatsky, 1974. RESUMO INDICATIVO:  Apareciment o da Es cola Positiva. Ambi ente histór ico que a gerou. Movimento iluminista do século XVIII e a orientação da Escola Clássica. Reforma preconizada pela Escola Positiv a. Sua fase jurídica. Método. Tendência conciliado ra. A Crimin ologia e dificu ldades com que se defronta. Investigação dos fatores criminógenos. Individualização da pena. Tratamento ressocializador do Condenado. Conclusão. A Escola Positiva irrompeu no mundo jurídico exatamente no momento em que os clássicos, com Carrara à frente, haviam atingido a plena maturidade. Quando o Direito Penal, já concatenado nos seus prin cíp ios lóg icos, par ecia ter fin almente encontrado o rumo def initivo. Sur giu com uma bandeira de luta, querendo revolver tudo pela base, para tudo recomeçar em moldes totalmente distintos. Para compreendermos essa revolução, cumpre situá-la no ambiente histórico que a gerou. Até o século XVIII, a civilização humana esteve dominada pela cultura do espírito. Reverenciavam-se as artes, dis cut ia-se religião, embrenh ava -se o mundo erudito em preocupações espe cul ati vas. Regia o raciocínio abstrato. O ensino, até nas universidades, se voltava para o conhecimento dos autores antigos, estudavam-se o latim, o grego. Particular importância merecia o aprendizado da Lógica, da Metafísica, da Moral, da Retórica. As ciências físicas e naturais, em vez, ocupavam posto extremamen te modesto. Encantavam, sem dúvida, suas descoberta s, a des per tar sempre viv a curiosidade. Mas os resultados que produziam pareciam ter, em regra, escassa importância para a vida das pessoas. Por uma série de circunstâncias que não importa aqui analisar, certo é que o progresso científico se apresentava lento e fragmentário. Napoleão tangido de Vilna para Paris, gastou na viagem o mesmo tempo de 1.000 anos antes. A Medicina, sem um método experimental sério, se perdia em preconceitos e superstições, raciocinando sobre as enfermidades como se fossem entes irreais. Nos meados da seguinte centuária, porém, começa a ocorrer súbita e sempre mais acelerada transformação, que se alastra pelos vários domínios científicos. As ciências deixam as especulações, a pri mazia da experiência se ime, aperf ei çoam-se as técnicas. Firma- se a li gaç ão entr e o laboratório e a fábrica, para alimentar imensa expansão industrial. Desenvolvem-se os transportes, a comunicação material e espiritual entre os povos favorecendo as trocas e levando a crer num futuro de maior compreensão e, conseguintemente, de paz. O conforto, as mercadorias, que eram pri vil égi os de pouc os, promete m che gar ao povo . A tera pêu tica sof re rep entino esvaziamento, porque não mais se acredita no empirismo do passado; mas logo a adoção do método científico suscit a otimistas perspecti vas, e verifi ca-se que o médico começa a ajudar poderos amente a reduzir o sofrimento e aumentar a esperança de vida. Pontificam Darwin, Spencer. Investigam-se os cordéis que orientam os organismos humano e social. A psicologia, antes imersa nas elucubrações filosóficas, passa a adotar uma visão biológica dos nossos problemas íntimos, concebidos então como meros produtos de um sistema nervoso que pode ser manipulado. Chega-se a dizer que o  cérebro segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis . CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DA ESCOLA POSITIVA* Página 1

Considerações Sobre o Pensamento Da Escola Positiva

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  • CONSIDERAES SOBRE O PENSAMENTO DA ESCOLA POSITIVA*Revista dos Tribunais | vol. 777 | p. 757 | Jul / 2000

    DTR\2011\2558

    Joo Bernardino GonzagaProfessor Livre-Docente de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo.

    rea do Direito: GeralSumrio:

    Artigo publicado nas pginas 369-395 da obra Cincia Penal 3, Comisso Diretora: Andrs AugustoBalestra, Miguel Reale Jnior, Octvio Leito da Silveira, Ricardo Antunes Andreucci e Srgio M. deMoraes Pitombo, So Paulo : Jos Bushatsky, 1974.

    RESUMO INDICATIVO: Aparecimento da Escola Positiva. Ambiente histrico que a gerou.Movimento iluminista do sculo XVIII e a orientao da Escola Clssica. Reforma preconizada pelaEscola Positiva. Sua fase jurdica. Mtodo. Tendncia conciliadora. A Criminologia e dificuldadescom que se defronta. Investigao dos fatores crimingenos. Individualizao da pena. Tratamentoressocializador do Condenado. Concluso.

    A Escola Positiva irrompeu no mundo jurdico exatamente no momento em que os clssicos, comCarrara frente, haviam atingido a plena maturidade. Quando o Direito Penal, j concatenado nosseus princpios lgicos, parecia ter finalmente encontrado o rumo definitivo. Surgiu com umabandeira de luta, querendo revolver tudo pela base, para tudo recomear em moldes totalmentedistintos.

    Para compreendermos essa revoluo, cumpre situ-la no ambiente histrico que a gerou.

    At o sculo XVIII, a civilizao humana esteve dominada pela cultura do esprito. Reverenciavam-seas artes, discutia-se religio, embrenhava-se o mundo erudito em preocupaes especulativas.Regia o raciocnio abstrato. O ensino, at nas universidades, se voltava para o conhecimento dosautores antigos, estudavam-se o latim, o grego. Particular importncia merecia o aprendizado daLgica, da Metafsica, da Moral, da Retrica. As cincias fsicas e naturais, em vez, ocupavam postoextremamente modesto. Encantavam, sem dvida, suas descobertas, a despertar sempre vivacuriosidade. Mas os resultados que produziam pareciam ter, em regra, escassa importncia para avida das pessoas. Por uma srie de circunstncias que no importa aqui analisar, certo que oprogresso cientfico se apresentava lento e fragmentrio. Napoleo tangido de Vilna para Paris,gastou na viagem o mesmo tempo de 1.000 anos antes. A Medicina, sem um mtodo experimentalsrio, se perdia em preconceitos e supersties, raciocinando sobre as enfermidades como sefossem entes irreais.

    Nos meados da seguinte centuria, porm, comea a ocorrer sbita e sempre mais aceleradatransformao, que se alastra pelos vrios domnios cientficos. As cincias deixam as especulaes,a primazia da experincia se impe, aperfeioam-se as tcnicas. Firma-se a ligao entre olaboratrio e a fbrica, para alimentar imensa expanso industrial. Desenvolvem-se os transportes, acomunicao material e espiritual entre os povos favorecendo as trocas e levando a crer num futurode maior compreenso e, conseguintemente, de paz. O conforto, as mercadorias, que eramprivilgios de poucos, prometem chegar ao povo. A teraputica sofre repentino esvaziamento,porque no mais se acredita no empirismo do passado; mas logo a adoo do mtodo cientficosuscita otimistas perspectivas, e verifica-se que o mdico comea a ajudar poderosamente a reduziro sofrimento e aumentar a esperana de vida.

    Pontificam Darwin, Spencer. Investigam-se os cordis que orientam os organismos humano e social.A psicologia, antes imersa nas elucubraes filosficas, passa a adotar uma viso biolgica dosnossos problemas ntimos, concebidos ento como meros produtos de um sistema nervoso que podeser manipulado. Chega-se a dizer que o crebro segrega o pensamento, como o fgado segrega ablis.

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  • E tudo coroando, paira o positivismo comteano.

    To avassalador progresso naturalmente empolgou os espritos. O homem acreditou, afinal, queestava nas suas mos desvendar o mistrio do homem e, com isso, resolver-lhe o destino.

    Compreensvel pois que, com efeitos to vistosos e promissores, os estudos naturais acarretassemo desprezo pelas cincias abstratas. A religio, com seus insondveis mistrios, entrou em crise.

    Foi preciso depois, como sabemos, a grande guerra de 1914 para fazer desmoronar todo essecastelo de iluses, substituindo ento pela filosofia, pelas artes, pela literatura da negao, daperplexidade, do desencanto.

    Mas retornemos ao ponto de partida, recuando at o iluminismo do sculo XVIII. O movimentoreformador a surgido se exerceu, como no podia deixar de ser, dentro das necessidades histricase da formao cultural da poca. Atravs de uma filosofia poltico-social, examinaram-se os limitesdo Poder Pblico, investigaram-se os privilgios das classes dominantes, agitou-se o problema dasgarantias individuais. Eliminando tudo quanto era mau do passado, esse movimento levou de roldoo Direito repressivo, merc dos seus profundos vcios, e assim, de um momento para outro, se viunossa disciplina vazia de contedo.

    Cumpria pois refaz-la, adequada ao novo pensamento. Essa a grande tarefa que coube aosjuristas, depois chamados clssicos. O que construiram, em poucas dcadas, nunca ser demasiadoexaltar. Formaram o Direito Penal como verdadeira cincia jurdica, sistematicamente organizado,lgico e justo, impregnado de liberalismo. Escreveram os primeiros cdigos. Assentaram osprincpios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade entre crime e pena. Com equilbrio,aboliram o antigo rigor, sem olvidar a segurana social. Preocuparam-se com as garantias da defesa,asseguraram a publicidade dos processos e da condenao.

    Escusa prosseguir arrolando inegveis mritos. Em vez, lembremos que, infiltrados nesse esquemade trabalho, estavam porm aspectos negativos que no tardaram a vir luz.

    Encarando o Direito Penal como instrumento de tutela da ordem jurdica a ser elaborado com mtodofilosfico-jurdico, os clssicos ficaram perdidos em excessiva preocupao racionalista, que acaboupor se tornar um fim em si prpria. E, ento, Direito Penal foi submergindo em complexa trama deraciocnios lgicos, abstratos, distanciados da subjacente realidade humana.Forjam-se padres ideais e por eles so medidos os infratores. A pena ser um mal, que se inflige aoindivduo por ter violado, com conscincia e vontade, as regras que todo cidado honesto deverespeitar. Portanto, somente os dotados de livre arbtrio podem ser alcanados pelas normasrepressivas, de tal sorte que a responsabilidade moral por um fato determinado, se torna ofundamento e a medida da retribuio. Quanto aos incapazes, os inimputveis, nada tem com eles aver a Justia clssica.

    Funo primordial da pena ser restabelecer a ordem jurdica perturbada. Mais que a proteo sociale muito mais do que o bem do condenado, ela visa realizar a idia de justia. Por isso, sempreigual para todos os autores de um mesmo tipo de infrao. E no momento em que se quer introduziralgum realismo no sistema, adotando a individualizao das sanes, no ainda a pessoa do ruque se procura, mas as circunstncias particulares de cada fato punvel. Todos os seus pormenoresdevem agora interessar ao julgador, porque tambm por eles se ter de pautar uma condenaojusta. Da o apego priso e multa, que podem ser minuciosamente dosadas, impondo-as ostribunais como um professor que atribui notas a trabalhos escolares. A conseqncia a penadesimtrica, fixada atravs de complexos clculos aritmticos. Enquanto isso, no entanto, ocrescente aumento da reincidncia evidencia o fracasso prtico da orientao seguida.

    Com Carrara, dizamos, certo que a cincia jurdico-penal chega ao apogeu. Mas agora estamos jna terceira parte do sculo XIX, e o mundo se apresenta atrado por novas preocupaes. Em campovizinho ao nosso, a Medicina, a Psiquiatria, j no mais cuidam das molstias como abstraes,ocupando-se em vez com a realidade concreta e viva de cada enfermo. Ento, como no podiadeixar de ser, o naturalismo envolve o Direito Penal. E Lombroso, Ferri e Garofalo, com seusseguidores, transportam para dentro dos nossos domnios o mtodo cientfico, indutivo, daobservao e da experimentao. Querem saber porque o homem pratica delitos, cumpre pinar ogerme que se esconde na sua personalidade e, identificando-o, num segundo passo extirpar a

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  • tendncia malfazeja, com remdios que tambm a pesquisa ir proporcionar.De comeo, com Lombroso, reputa-se o criminoso um ser biolgico distinto dos demais homens,produto de taras atvicas ou impulsionado por fatores patolgicos. A seguir, por mrito de Ferri,delimita-se a importncia da explicao antropolgica para acentuar as influncias ambientais, queseriam preponderantes na moldagem da personalidade individual. E se chega por fim simbiose,encarada a criminalidade como um fenmeno natural, para o qual confluem, em propores variveisforas endgenas e exgenas.

    Conseguintemente, no mais se trata de julgar um episdio isolado, o crime, com seus contornosjurdicos, e sim examinar as condies daquele que o praticou. No s, visto que o homem tangidopor foras cegas, dilui-se o dogma do livre arbtrio, desaparece a distino entre imputveis einimputveis, deslocam-se para a idia de periculosidade o fundamento e a medida da atuaopenal. A Justia, orientada pela cincia, deve ocupar-se de todos aqueles que, por defeitos deformao, no se ajustem s regras da convivncia humana. Desde que certo indivduo representeum risco para a coletividade em que vive, cria-se para esta a necessidade de defesa. Do mesmomodo, compara-se como o organismo humano luta e destri os micrbios que o atacam, sem que seapresente, tambm aqui, qualquer problema de responsabilizao moral.

    Ao ser julgado, o acusado dir que, por tais ou quais razes inelutveis, biolgicas ou ambientais, eleno poderia ter deixado de fazer o que fez. Mas o juiz, em resposta, lhe observar que, por issomesmo que um homem destinado ao crime, no h como evitar a sua condenao, pararesguardar os interesses da segurana coletiva.

    Diante do exposto, v-se que podemos distinguir no positivismo duas atitudes contrastantes, que elelidou por conciliar: num primeiro momento, considerando a sociedade como um organismo vivo eportanto sujeita lei da luta pela existncia, reconhece-lhe o direito de inocuizar seus inimigos, osmalfeitores, ainda que custa dos ideais do liberalismo. Ao mesmo tempo, se apercebe de que osdelinqentes representam uma parcela da sociedade e muitas vezes so vtimas dela, merecendopor isso ser compreendidos e amparados.

    De um lado, pois, entende competir ao Direito Penal a tutela coletiva contra o perigo encarnado noscriminosos; e, de outro, proclama que tambm a estes cumpre ajudar, livrando-os de suas taras.O trabalho, conclui a nova Escola, dever ser principalmente preventivo, atravs de um conjunto demedidas saneadoras do ambiente social, receitadas pela Sociologia. A seguir, ocorrido um crime,seu autor ser apreciado enquanto ser bio-psicolgico, para que se lhe possa prescrever oconveniente tratamento.

    Nega-se a eficcia pena tradicional. Intil ser pensar, dizem os positivistas, que a simplespromessa de sofrimento que ela encerra tenha eficcia dissuasria, porque insuficiente para conteros impulsos da generalidade dos indivduos propensos ao crime. E, quando imposta a algum, serevela incapaz de levar regenerao.

    Transformam-na assim em ltimo recurso no combate delinqncia, deixando quase todo otrabalho de preveno geral a cargo dos chamados substitutivos penais, integrados cientificamentenum vasto programa de poltica sanitria e social. A preveno especial, a seu turno, somente servlida na forma de tratamento adotado pessoa do paciente, a fim de reintegr-lo na coletividade;ou, se isso se mostrar impossvel, elimin-lo em benefcio da ordem pblica.

    Em suma, atribui-se s cincias sociolgicas e antropolgicas a tarefa de resolver o problema dacriminalidade. E curioso ver, hoje, a f que nisso depositaram os inovadores. Engolfados emimensa e sria obra de pesquisa, pasmavam-se irritados ante a ranosa reao que lhes opunhamainda os juristas. Garantiam que o futuro lhes daria inteira razo, de sorte que estava fadado atmesmo a desaparecer o Direito Penal. Em todo mundo repercutiu intensamente essa confiana,inclusive no Brasil. Bom exemplo do crdulo entusiasta aqui surgido o livro de Moniz Sodr,editado em 1907: As trs Escolas Penais.

    Muito no tardou, entretanto, para que se evidenciasse um primeiro erro. Com sua viso cientfica, aEscola Positiva pretendeu arrebatar a criminalidade do campo jurdico. Mas, expulso pela porta, oDireito Penal logo teve de voltar pela janela. que, por mais que se queira equiparar o tratamento dodelinqente aos tratamentos mdicos comuns, existe entre ambos a diferena essencial de que

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  • estes ltimos so voluntrios, enquanto o primeiro no pode deixar de ser compulsrio. Ora, desde omomento em que o Estado tem de impor coletividade seu plano de providncias preventivas e dereao contra o crime, s o poder fazer atravs de um conjunto de normas imperativas, a lei penal.Lei inevitavelmente complexa, porque infinitas so as hipteses de que deve cogitar, e que precisaser estruturada e estudada com o mtodo jurdico: interpretao dos textos, fixao dos princpiosque os regem, sistematizao dos vrios institutos. Da porque, rendendo-se evidncia, ingressoua Escola na sua fase jurdica, com o prprio Ferri, com Florian, Grispigni, etc. Tem essa ntida feioo derradeiro livro de Enrico Ferri, Principi di Diritto Penale, publicado em 1928.

    Percebeu-se que inevitavelmente era conservar o Direito Penal, com a cincia jurdica que oacompanha, nos seus domnios prprios. Outra coisa seria a orientao, ditada pelo conhecimentoda realidade (e no por meros raciocnios abstratos), que ele poderia acolher para enfrentar acriminalidade. Como em dois planos superpostos, s cincias naturais caberia indicar as melhoresprovidncias; as quais, sendo a seguir oficializadas pelo legislador, atuariam pela via jurdica. Da asubseqente separao entre o Direito Penal e a Criminologia, uma de cujas principais tarefas seriade informar aquele. Para usarmos a terminologia de Maritain, ela assim funcionaria como cinciapreparatria do saber moral.

    O que muito contribuiu para embaraar a aceitao do pensamento positivista foram a suahostilidade para com o trabalho jurdico e, sobretudo, a estreita e rgida orientao filosfica em quede comeo se situou, como se esta fosse inapartvel dos fins pragmticos visados. Da a apaixonadareao ocorrida, no tanto contra as medidas prticas que propunham os inovadores, mas visando asua orientao ideolgica. Em verdade, os clssicos no tinham dificuldade real para aceitar boaparte daquelas medidas, porque, em si prprias, no conflitavam com os princpios que elesdefendiam. O programa clssico buscava honestamente o ideal da justia, eficaz tanto para ocriminoso quanto para a sociedade. Se se afirmava agora que as cincias podiam nisso colaborar,inexistia razo para repelir a oferta. Nada impedia acolher providncias que levassem melhoria dascondies de vida, recuperao dos transviados, inclusive os inimputveis, e a uma pena maisjusta, atenta a todas as circunstncias agravadoras e atenuadoras da responsabilidade individual.Sensvel a isso, o positivismo procurou desvencilhar-se dos seus vcios ideolgicos, em favor demaior nfase do mtodo que preconizava. Assim Ferri, j s vsperas do seu falecimento: O queantes de tudo importa destacar isto: A Escola Criminal Positiva no acolhe nem plasma nenhumsistema filosfico ou social, nem a filosofia positiva (Comte, Spencer, Ardig, etc.), nem doutrinaalguma biolgica (Darwin, Lamarck, Moleschott, etc.). Decisivo apenas, acrescenta, que ela secaracteriza especialmente pelo mtodo cientfico, procura fazer a histria natural do homemdelinqente, utilizando dados mais certos como base da justia punitiva, tanto nas leis como na suaaplicao. Admite a seguir a possibilidade dos grupos antagnicos concordarem em inmerasconcluses particulares. E insiste em que a diferena profunda e decisiva entre as duas escolas seacha, sobretudo, no mtodo: dedutivo, de lgica abstrata, para a Escola Clssica; indutivo e deobservao dos fatos para a Escola Positiva; aquela tendo por objeto o delito como entidade jurdica;esta, em vez, o delinqente, como pessoa que se revela mais ou menos socialmente perigosa nodelito cometido. 1

    Dessa maneira, se foram melhor delimitando as posies. E definharam certos pontos que, na faseinicial do positivismo, lhe pareciam essenciais. Arredou-se o insolvel e estril debate filosfico sobrea questo do livre arbtrio ou determinismo. Passou-se a descrer do fatalismo biolgico de Lombroso,tanto quanto da rgida necessidade social de Ferri. Aceita-se hoje a liberdade humana no, estclaro, como algo absoluto, mas como certo saldo de arbtrio de que dispe o homem dentro das suascircunstncias. Ademais, verifica-se que o malfeitor no costuma ser uma pessoa distinta da restantehumanidade. O que os positivistas fizeram foi dar demasiada importncia aos casos em que aetiologia do crime deita razes em srios desequilbrios da personalidade. Perderam de vista,entretanto, a verdadeira alma do homem. que, a par daqueles casos, h a legio de infratores queno se situam fora da ampla faixa da normalidade humana.

    Tambm se repele atualmente esta conseqncia a que arriscava levar pensamento positivista:transferir o conceito de crime para a idia de estado pessoal, em vez do fenmeno fato. Ou seja,sancionar-se o indivduo pelo que ele supostamente , no por algo que fez. Porque, pondera-se, apar de geralmente impalpvel a personalidade anti-social, h ainda a considerar os perigos liberdade que a concepo encerra. Boa lio disso foram os abusos que comeou a gerar ochamado Direito Penal do autor, dentro do nacional-socialismo germnico, ao sustentar a tese de

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  • que algum deveria ser punido no por ter furtado, matado, falsificado, etc.; mas por ser ladro,homicida ou falsrio.

    O homem s pode responder por certo comportamento seu, que viole a norma penal. Conserva-se,assim, a noo moral de falta, que o positivismo quis eliminar. Tambm, de conseguinte, jamais podeser abandonada a pena, com sua tradicional fisionomia. Em primeiro lugar, por uma questo dejustia. E, utilitariamente, porque a sociedade dela necessita para se sentir segura, com as pautas domrito e do demrito bem demarcadas. O homem da rua intuitivamente exige que a certa malfeitoriase siga equilibrada reprovao, traduzida na pena. Quer sentir a presena de uma lei justa,conciliando a ordem pblica com a ordem moral. Jamais lhe seria compreensvel a soluopuramente cientfica, com toda a reao penal se exaurindo em mero tratamento, como se ocondenado no passasse de um paciente diante do seu mdico. A isso (pelo menos por ora) nopode fugir o Direito, se quiser manter sua funo educativa e ser fiel s exigncias da prevenogeral.

    A soluo prtica, nesse aspecto, consistiu em os cdigos adotarem um sistema conciliador; aocrime cometido por um imputvel, se ope a merecida pena; e, em acrscimo, o juiz lhe poderatribuir a medida de segurana acaso exigida pela sua m formao pessoal.

    Igual conciliao operou-se com a aceitao de vrias sugestes positivistas, que ao mundo jurdicopareceram vlidas. Todos compreenderam a necessidade de estudar a inegvel correlao entre osdados sociais e bio-psicolgicos, como causa, e a criminalidade como conseqncia. Convincente,outrossim, a proposta de que o Estado deve enfrentar os fatores crimingenos com metdicotrabalho preventivo. Contribuiu ainda a Escola Positiva para que muito se desenvolvessem aschamadas cincias penais. Lembrou que o delinqente um homem que pode carecer deassistncia mdica, psicolgica, pedaggica. Delineou o conceito de periculosidade. Concorreu paraque ingressassem nas legislaes penais institutos como o das medidas de segurana, o sursis, olivramento condicional, a sentena indeterminada. Preparou terreno para o moderno tratamentotutelar dos menores infratores. Deu nova dimenso s penas acessrias. Levou as leis a cuidaremmelhor do ressarcimento devido s vtimas de crimes. Estabeleceu bases mais racionais para aindividualizao das penas, nas trs fases porque se desdobra: legal, judicial, executiva. Desvendoucom maior nitidez as figuras dos criminosos reincidentes, habituais e por tendncia. mrito seu,igualmente, a criao de centros de pesquisa e profilaxia do crime, dos manicmios judiciais,colnias agrcolas, etc. Sua intensa pregao muito ajudou, enfim, a compreendermos que no s oindivduo tem deveres para com a sociedade, mas tambm esta os possui para com aquele, mesmoquando criminoso.

    A espinha dorsal da orientao positivista, entretanto, podemos dizer que est na Criminologia.Visando, em termos amplos, o estudo bio-social do crime, ela se prope iluminar a AdministraoPblica e o Direito Penal, com a indicao de caminhos mais humanos, justos e eficazes na lutapreventiva e repressiva contra a delinqncia.

    Ningum lhe nega altssima importncia. Mesmo porque em inmeros setores jurdicos h maislucidez e coerncia graas sua contribuio. Basta lembrar, exemplificativamente, os temasrelacionados com a culpabilidade, a co-delinqncia, o alcoolismo, a prostituio, etc. etc. Sertambm justo dizer que as pesquisas criminolgicas, nos vrios campos por que se reparte, muitotm concorrido para melhor conhecermos o homem e os problemas sociais.

    Mas aqui pretendemos focalizar determinados aspectos da sua atuao prtica. A idia era fazercom que ficasse cada vez mais a cargo da Criminologia a tarefa de enfrentar a delinqncia,chegando at mesmo a tornar algum dia dispensvel a Justia repressiva. Dessa forma serealizariam os ideais primeiros do positivismo. Sucede, todavia, que as coisas no parecem caminharbem nesse rumo.

    que, com muita freqncia, no momento de passar prtica, o legislador, a Administrao Pblica,os tribunais mostram ignorar que existe aquela cincia. Da porque ela sofre de verdadeiro complexode abandono, de tal sorte que a sua maior preocupao parece consistir, antes de tudo, em clamarpara que a tomem a srio. Estaremos qui diante de uma crise do mtodo cientfico, de que jamaissuspeitaram os arroubos positivistas.

    Porque isso?

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  • Em sntese, encontramos na constelao de cincias criminolgicas trs funes matrizes: a. estudodo ambiente social e do indivduo nele integrado, investigando os fatores que concorrem para acriminalidade, e indicao de providncias profilticas; b. orientao a ser dada Justia, para estamelhor conhecer o homem que ir julgar; c. adoo de mtodos que levam mais seguraressocializao dos condenados.

    Quanto ao primeiro ponto, no tem havido maior dificuldade na identificao de inmeros fenmenosgeradores de desequilbrios pessoais e sociais. O que sucede com grande freqncia, entretanto, que a seguir a Criminologia se revela impotente para solucion-los. Remontando na sua linha causal,verifica que esta se perde muito alm dos limites em que o cientista tem de parar. Isto , averdadeira origem dos problemas que ao criminlogo interessam est diluda na filosofia, noscostumes que se formaram dentro de certo povo; na organizao poltica, social, econmica, todauma engrenagem, enfim, que as cincias penais no podem alterar.

    Ilustrativa esta observao feita por Gerhard Mueller, que prossegue vlida: todos consideramextraordinrias as conquistas da Criminologia norte-americana, porque seus estudos e anlises dadelinqncia tornaram bastante seguro o conhecimento das causas que a produzem. Masacrescenta o autor, ao mesmo tempo que nossos progressos criminolgicos so mundialmentereconhecidos e admirados, igualmente conhecida nossa surpreendente incompetncia para deter ocontnuo aumento na incidncia do delito, que prossegue a um ritmo de pouco mais de 9% ao ano.Neste terreno, tambm estamos testa do mundo, embora nos hajam recentemente alcanadopases altamente industrializados, como a Sucia, os Pases Baixos e a Inglaterra, cada um dosquais tambm registra 9% anuais de aumento da delinqncia. 2

    A experincia mostra ser baldado supor que a melhoria das condies materiais de vida, o aumentoda assistncia pblica, a adoo de inmeras medidas realizveis, que as cincias penaisrecomendam, possam realmente deter ou em geral sequer diminuir a onda de criminalidade que sealastra em todo mundo atual. Paradoxalmente, nos pases mais civilizados que a questo assumepropores mais alarmantes. Hoje, o que preocupa no j a criminalidade como problema a serdebelado em termos individuais, mas que deve ser apreciada como crescente fenmeno socialentranhado na vida comunitria. 3

    Diante disso, lamentavelmente, pouco ou nada pode fazer o criminlogo, seno vislumbrar, muitolonge do seu domnio, a verdadeira gnese do mal. Em todos os povos vemos evoluindo sempre oalcoolismo, a delinqncia juvenil, o terrorismo, a vadiagem, a prostituio, a agressividade quealimenta os acidentes do trfego etc., etc.. As grandes metrpoles constrangem cada vez mais prtica de violncia. A presso econmica sobre o indivduo, a luta pela vida incentivam as fraudes,os atentados patrimoniais, a criminalidade de ocasio. Cresce o nmero dos crimes de real ousuposta motivao ideolgica. Verifica-se que os jovens, sobretudo das camadas sociais superiores,tendem para gestos de brutalidade gratuita, aparentemente imotivados. O desenvolvimento datcnica, as exigncias da vida moderna, o ambiente cada vez mais competitivo, sufocam as pessoas,lhes geram a insegurana e tornam a neurose o maior flagelo do nosso tempo. Aumenta no homemmoderno o sentimento de solido, de incapacidade para agir eficazmente em relao prpria vida eao mundo que o envolve. Acentuam-se a apatia, o egosmo, h uma eroso do respeito s normasmorais. Da, muitas vezes, certos atos de revolta e violncia, em que o indivduo se procura libertardas malhas que o comprimem, ou que surgem como o meio dele afirmar a prpria identidade, demostrar que existe e pode fazer algo. Ionesco traa elucidativa caricatura do isolamento pessoal aque tende nessa poca: o casal que, se encontrando por acaso, inicia polida conversa. Aos poucos,os interlocutores se vo surpreendendo com uma srie de coincidncias: chegaram cidade pelomesmo trem, vindos do mesmo lugar, dirigem-se a igual endereo, ambos tm uma filha de seteanos. Finalmente descobrem, espantados, que so marido e mulher

    Entre os temas que mais preocupam hoje se acham o da infncia marginalizada e do alastramentodos txicos, sobretudo entre a juventude. O primeiro, manifesto que em grande parte estestreitamente ligado ao fenmeno da desagregao familiar, que, a seu turno, decorre de toda umatrama de condies sociais e de psicologia individual. Quanto ao segundo problema, um dos vriosmotivos que muito concorre para a desenfreada busca de drogas pelos moos ser a atual liberdadesexual: antes, recalcada pelos costumes sociais, a sexualidade se transformava em objetivo contra oqual o jovem se podia lanar, para ela canalizando suas energias e assim afirmando a prpriapersonalidade. Com o progressivo afrouxamento das vedaes nesse terreno, todavia, se transferemcada vez mais para os txicos os sentimentos de revolta prprios das personalidades ainda imaturas;

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  • revolta contra os pais, as autoridades, a ordem constituda. E no veneno proibido que se buscam aauto-afirmao, a emoo da aventura.

    Eis a: apurado embora o encadeamento das coisas, pouco ou nada o criminlogo resolver, se nopode alterar as fontes primeiras dos desajustamentos. Donde se v que a tarefa saneadora de quese incumbiram as cincias se revela muito mais complexa do que de comeo pareceu.

    Tambm grandes so os embaraos com que se defronta a individualizao penal norteada pelasqualidades pessoais do criminoso.

    Devassar a personalidade de algum trabalho extremamente complexo. Costuma-se falar, comoideal a perseguir, em adquirirem os julgadores uma cultura criminolgica, para com base nelaorientarem suas decises. Pensamos que h nisto perigoso erro. generalidade dos juzes faltaraptido, gosto e tempo para se colocarem altura de cumprir esse papel, com um mnimo devalidade. Tomemos por base nossa realidade, que em linhas gerais equivale neste particular dosdemais pases. O que o panorama judicirio apresenta uma magistratura sufocada pelo volume decasos a cuidar. Juzes que se ocupam no apenas de questes criminais, mas tambm de outras, devariada natureza, e que s vo adquirir competncia mais restrita nos graus superiores da carreira.Ainda ento, porm, numa comarca como So Paulo, vemos verdadeiro carrossel de titulares esubstitutos, nas duas instncias, girando por vrios postos sob a premncia das necessidades doservio. Em nosso Tribunal de Alada Criminal v.g., cada juiz deve proferir, hoje mdia superior a700 votos por ano. Ingnuo, est claro, seria acreditar em exeqvel possibilidade de modificarmosradicalmente essa situao.

    Mas abstraiamos tais dados prticos. Exigir do magistrado condies de perquirir os dadoscriminolgicos do caso em pauta? Neste passo, cumpre sejamos honestos. Se o que se visa deslocar o acento tnico da reao penal, de modo a alcanar no mais certo episdio humano, esim a alma do acusado; se portanto, se deve conhecer a sua verdadeira conformao, localizando asforas endgenas e ambientais que nelas se amalgamam; se com base nisso que se irestabelecer o conveniente tratamento, torna-se imperioso que dessa pessoa consigamos retrato fiel.No uma imagem postia.

    Ora, a Criminologia alarga-se por campo extremamente vasto, e dominar com um mnimo desegurana qualquer dos seus departamentos programa para toda uma vida. Estudando-a nadamais em regra, poder obter o juiz do que superficial e enganadora massa de conhecimentos. Se oconvencerem de que, com essa bagagem, ele deve compreender o ru e lhe resolver o destino, oserros, as deturpaes sero inevitveis. A prudncia aconselha aqui grande modstia. O que sedeve esperar da Magistratura criminal unicamente uma viso cientfica que a habilite a entender esaber avaliar as informaes dos tcnicos.

    As cincias que manipulam o esprito humano enfrentam tremendas dificuldades para chegar aconcluses firmes em seus diagnsticos e prognsticos. Estamos pensando no criminoso comum, nohomem normal que veio a delinquir, cuja situao de vida, cuja insondvel personalidade se quercaptar. Os exames, as pesquisas tero de ser da mais variada natureza e carecem de tempo paraobterem resultado. Veja-se, por exemplo, como elucidativo, a respeito, o meticuloso roteiro parauma efetiva individualizao penal que aconselha Benigno Di Tullio em sua recente obra Principi diCrimonologia Clinica e Psichiatria Forense.

    Estabelecido pois que a soluo penal depender de uma anlise criminolgica, deveremos disporde farto nmero de cientistas que assessorem o Poder Judicirio, a fim de lhe ministrar estudocompleto de cada caso. Tcnicos competentes, dedicados. Onde encontr-los, na quantidaderequerida? Qual o custo de um aparelhamento desse porte, para operar junto a todos os Juzoscriminais? Lembre-se que, no Estado de So Paulo, estamos longe de conseguir o mnimonecessrio de mdicos-legistas.

    A seguir vencidas essas prosaicas dificuldades, como se passariam as coisas? Surge a dvidaprimeira: em todos os processos, antes de sabermos se o veredicto final ser absolutrio oucondenatrio, devero ser efetuados tais exames? Ou os restringiremos unicamente aos casos emque o Juiz j se haja preliminarmente pronunciado pelo cabimento da sano penal? Nesta segundahiptese, o julgamento teria de repartir-se em fases, isto , suspender-se-ia no meio, para seremconvocados os peritos; e s depois, no se sabe aps quanto tempo, retornariam os autos Justia,

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  • agora para um estudo completo. Escusa enumerar os problemas prticos que qualquer dos doissistemas suscitaria.

    Levanta-se tambm aqui outra questo, que costuma passar despercebida. A pretexto de umainvestigao criminal, por infrao que pode ser at de pequena monta, ter acaso o Estado o direitode esquadrinhar a vida e a alma de uma pessoa? Quantos problemas psicolgicos, familiares,sociais, etc., da no podero decorrer?

    Voltemos ao ponto central da tese. Fundamento e medida da reao penal ser, na tradicionallinguagem positivista, a periculosidade do imputado. O delito por esta cometido fica pois na sombra,reduzindo-se a mero indcio de uma personalidade defeituosa. E a sano a seguir imposta ter opuro sentido de tratamento dessocializador, supervisionado pelas cincias.

    Novas dvidas ento se apresentam. A idia de tratamento postula a de durao indeterminada.Quer dizer, sem embargo da alta gravidade do crime que cometeu, certo condenado poder ficarlivre em pouco tempo, se pronto o seu restabelecimento. Pior ainda: mdica embora a importnciado seu ato ilcito, possvel que ele tenha de perder a liberdade por muitos anos, indefinidamente,at conseguir alta. Abandonada a exigncia de proporo entre o crime e a pena, ficaria o Estadocom o direito de impor um tratamento compulsrio profundamente ameaador liberdade individual.

    A par disso, legies de criminosos, no revelando palpvel periculosidade, dispensam qualquermedicina ou pedagogia corretivas, de sorte que, dentro do esquema proposto, a soluo seriadeix-los livres. Freqentes vezes, o malefcio cometido produto de ocasional momento defraqueza (sobretudo nos crimes culposos) e o seu autor possui dentro de si foras reabilitadorassuficientes para compreender e purgar espontaneamente a falta, com um sofrimento moral que lheserve de advertncia para o futuro. Ou ento: v.g., o homem que mata sua mulher, num arroubo decimes, provavelmente nunca mais ter o ensejo de repetir equivalente faanha. No apresenta,pois, periculosidade. Indaga-se: nenhuma reprimenda jurdica em casos assim se irrogaria, com totalabandono da idia de preveno geral?

    E insistamos nesta observao: nem a coletividade aceita, e tudo aos poucos se desmoraliza,quando v que a pena, em vez de orientar-se com justia pelos dados objetivos e subjetivos do crimeque a justifica, se converte em algo que, aos olhos do homem da rua, parece extremamentealeatrio. A soluo puramente cientfica lhe incompreensvel. O povo necessita de normas que,com um mnimo de firmeza, separem as idias do justo, do meritrio, e do injusto e do reprovvel.Prosseguindo: a proposta de unicamente sancionar os efetivamente carentes de reeducao. Acoisa, ressalve-se, parece mais realizvel se nos cingirmos cmoda imagem do delinqentehumilde, intelectualmente pobre. Pessoas que se situem em nvel marcantemente inferior, perante asquais nos sentimos seguros para impor certos valores, em pura linha descendente.

    Cada vez mais, entretanto, se torna consciente a necessidade do Direito Penal alcanar as camadassociais superiores. Muito se fala agora, por exemplo, na chamada criminalidade de colarinho branco.Ao mesmo tempo, a lei repressiva alarga enormemente seu campo de atuao, para garantirdisposies da restante ordem jurdica, para assegurar o programa do Estado nos vrios domniosem que este se imiscui. Tipificam-se comportamentos nos quais no se vislumbra qualquercriminalidade natural; que se quer escandalizam o ambiente social; em que no se exige, de parte dosujeito, a compreenso de que est causando um mal srio, mas em que basta, somente, adesobedincia a prescries administrativas. Casos em que certas atitudes so juridicamentecondenadas apenas porque o legislador as classifica como contrrias a vagas, abstratasconvenincias da coletividade, do mesmo modo que o podem ser tambm outros inmeroscomportamentos socialmente tolerados e penalmente indiferentes. s vezes se trata deprocedimentos que quase se confundem com a esperteza comum no mundo dos negcios.

    Paralelamente, alastra-se o fenmeno atual dos delinqentes ideolgicos: o jovem que lida comtxicos, que realiza ofensas aos costumes ou que ostenta vrias outras atitudes ilcitas,freqentemente o faz animado por toda uma filosofia de vida; idem inmeros contestadores,reinvidicadores, que efetuam atos da mais variada violncia. Outro tanto se diga dos que recorrem aagresses para lutas sociais, trabalhistas, estudantis.

    Percebemos ento como se complica o programa alardeado pelo cientifismo positivista. A pena s

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  • pode ser um meio de cura. Mas curar o que, e como faz-lo o Estado, no restrito campo do DireitoPenal? Para enfrentar situaes como as enumeradas, teria nossa Justia de contar com toda umagrama de educadores refinadssimos, cultos, habilidosos, devotados, capazes de dispensarpedagogia de altssimo nvel. Tarefa dessa monta, mesmo que praticamente realizvel, bem se vque ultrapassaria de muito as atribuies do Direito Penal.

    Em concluso, apesar de toda a campanha positivista, verificamos que remanescem bsicospostulados clssicos. Baldado ser supor que a pena se deva desvincular do crime, a que, em vez,no pode deixar de estar ligada. No possvel o Direito Penal abandonar as noes de culpa,reprovao e justia, nem esquecer a importncia da preveno geral.A essncia da pena s pode estar na retribuio, de sorte que seu limite bsico h de ser aculpabilidade por um fato determinado. Outra coisa o fim que lhe devemos atribuir na faseexecutria, concebendo-a agora como providncia dinmica, voltada para o futuro, tendendo a obteralgo justo e til. Absurdo, alis, seria o Estado, tendo o criminoso sua merc, no se preocupasseem prestar-lhe a melhor assistncia.

    Dessa forma, a pena no dever jamais ser maior do que a culpabilidade. Aqui est o freio aqualquer discricionria interveno do Poder Pblico. Mas tambm no se confunde com a meravingana. Poder, assim, tornar-se mais branda do que a inicialmente merecida, pelo delitopraticado, se, durante a execuo, o condenado mostrar que merecia maior benevolncia, ou quepassou a merec-la.

    E s cincias criminolgicas, nesse programa, compete um papel acessrio, mas de relevanteimportncia, porque ser sempre com a sua orientao e ajuda que a sano penal melhor procurarrealizar o ideal de justia, ao ser imposta, e ter maior possibilidade de atingir o seu escoporeabilitador durante a execuo.

    1 Op. cit., trad. esp., Madrid, 1933, p. 46-48.

    2 MUELLER, Gerhard El Derecho Penal, sus Conceptos en la Vida Real. Trad. esp., Buenos Aires,1963, p. 30.

    3 Alis, curioso ver como se deslocaram as esperanas de felicidade individual. Enquanto asegunda metade do sculo XIX se caracterizou pela iluso com as cincias naturais, a presentepoca ser talvez identificada pela sua f em milagrosas frmulas polticas e econmicas. Exemploextremo o dos Estados socialistas, que convictamente prosseguem repetindo o cndidopensamento de LENINE, para que, instaurada a ordem comunista, o crime desaparecer porcompleto. A evoluo, concede-se hoje, ser lenta e complicada. Sem embargo, proclama com todasas letras o manual oficial de Direito Penal para estudantes da Unio Sovitica, no h dvida de queesse processo conduzir, no final de contas, a plena e real liquidao da delinqncia em nossoPas (ZDRAVOMISLOV, SCHNEIDER, KELINA E RASHKOVSKAIA, Derecho Penal Sovitico, trad.esp., Bogot, 1970, p. 88-55-71 e segs.). Quer dizer, iro desaparecer, arrastando atrs de si ocrime, os condimentos inerentes condio humana: a ambio, a preguia, a inveja, a ira, o medo,paixo, cime, etc. Todos os sete pecados capitais. Os homens se tornaro superiormente frios eincolores. No mais haver brios nem desequilibrados. Nenhum desatento provocar acidentes

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