Construção da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    1/20

    XV Congresso Brasileiro de Sociologia

    26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR)

    GT 18: Pensamento Social no Brasil

    Autoritarismo e democracia: a formao da moderna cincia poltica

    brasileira vista a partir das obras de Fbio Wanderley Reis e Wanderley

    Guilherme dos Santos.

    Marcelo Sevaybricker Moreira

    Universidade Federal de Minas Gerais

    1

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    2/20

    Data do final dos anos 60 a formao inaugural, no Brasil, de ncleos

    especializados de ensino e pesquisa em cincia poltica. Em 1966 funda-se o

    Departamento de Cincia Poltica (DCP) e dois anos depois, cria-se o Instituto

    Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). No primeiro caso,

    destaca-se o nome de Fbio Wanderley Reis, intelectual que exerceu notvel

    influncia nesse departamento e no segundo se sobressai o de Wanderley

    Guilherme dos Santos, formador de outro centro e gerao de cientistas

    polticos brasileiros. Mais justo pensar que ambos fizeram parte, como

    protagonistas, de uma gerao de cientistas que procurou fundar no pas uma

    comunidade acadmica que se dedicasse integralmente ao estudo da poltica e

    que estivesse adequadamente treinada para tal tarefa.

    O presente artigo procurar acompanhar a trajetria intelectual desses

    dois pensadores brasileiros, levando em considerao no apenas o contexto

    histrico e lingstico em que se formaram, como tambm parte de sua extensa

    produo intelectual.1 O propsito fundamental que anima este trabalho

    tentar argumentar que emergncia da democracia como tema de estudo e

    valor central no pensamento poltico-social brasileiro esteve associada

    consolidao institucional e cultural da cincia poltica brasileira, ainda que no

    houvesse uma concordncia irrestrita entre os cientistas polticos do que

    deveria ser essa democracia. Antes de passar anlise desse contexto e da

    obra dos autores supracitados, necessrio ter uma noo mnima de quais

    eram os antecedentes da reflexo sobre poltica no pas.

    Em Os intelectuais e a poltica no Brasil, Daniel Pcaut diferencia duas

    grandes geraes de pensadores polticos brasileiros. A primeira gerao, dos

    anos 1920-40, , segundo ele, composta de um conjunto de intelectuais

    preocupados com o problema da nao e do povo que, na concepo deles,permaneciam apenas latentes, informes e, alm disso, com as instituies da

    Primeira Repblica que no se adaptavam realidade nacional. Para

    solucionar essas deficincias, eles propunham o fortalecimento do Estado a fim

    de organizar de cima para baixo a nao, e, conseqentemente, rejeitavam

    ou suspeitavam da eficcia da democracia representativa. Parafraseando o

    1 Nesse sentido, seguimos algumas proposies propostas por Skinner (2002) e por Pocock(2003) de investigao da histria das idias, segundo o qual o entendimento do significado daobra de um autor demanda a compreenso de seu universo histrico e lingstico.

    2

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    3/20

    autor, o tema da democracia, at ento, no apenas estava subordinado aos

    temas da nao e do povo brasileiro, como era, em geral, desvalorizado. J a

    segunda gerao (de 1954 a 1964), no entendia que a identidade nacional

    fosse um problema, mas sim a influncia externa que obstrua o

    desenvolvimento econmico nacional e a emancipao das classes populares.

    Para concluir o que se disse at agora preciso destacar que, ainda que

    existam diferenas significativas entre os autores dessas duas primeiras

    geraes (e ainda que se possa mesmo discordar da adequao desse

    panorama geral feito por Pcaut em relao a pensadores especficos), deve-

    se destacar, a partir da sua anlise duas semelhanas entre essas geraes

    que contrastam com a dos novos cientistas sociais e polticos que comea a

    despontar no pas na segunda metade do sculo XX. Em primeiro lugar, o fato

    de que a reflexo sobre a poltica, academicamente falando, no partia de um

    campo especfico. Boa parte, seno a totalidade dos pensadores polticos

    brasileiros at ento, no tinham sequer uma formao em cincias sociais.

    Essa situao comea a ser revertida, em 1947, com a fundao do

    Departamento de Sociologia e Antropologia na Faculdade de Filosofia,

    Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (USP). Ao se destacar esse

    ponto no se presume que a informalidade desses escritos signifique menor

    qualidade terico-metodolgica; o que se intenta destacar que com a

    institucionalizao das cincias sociais, a investigao cientfica sobre a

    poltica ganha um espao novo, cada vez mais consolidado, com um ethos de

    pesquisa distinto daquele adotado pelas geraes anteriores, pois novas

    metodologias e conceitos so empregados, diferenciando essa reflexo das

    abordagens at ento existentes. Ainda que economistas, juristas, socilogos,

    etc., viessem a produzir interpretaes da poltica brasileira, gradualmente, acincia poltica vai sendo percebida como o discurso mais adequado

    investigao da poltica, obviamente segundo uma lgica da especializao do

    saber cientfico. Em segundo lugar, importa salientar que h claramente uma

    inflexo temtica: se antes a nao ou o povo brasileiro (na primeira gerao) e

    o imperialismo e o desenvolvimento do pas (na segunda gerao) eram os

    temas dominantes do pensamento brasileiro, a democracia e assuntos

    correlatos (como sociedade civil, partidos polticos, eleies, etc.), antes

    3

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    4/20

    negligenciados, tomam gradativamente conta da agenda dessa rea de

    estudos. a partir dos novos cientistas polticos que as instituies polticas,

    como as eleies, comeam a ser sistematicamente investigadas, uma vez que

    se assume a premissa de que elas mesmas tm alto poder explicativo. Nesse

    sentido, Reis e Santos so pensadores de transio entre dois momentos da

    inteligncia brasileira no sculo XX. Dessarte, ao mesmo tempo em que os

    paradigmas tradicionais de compreenso da realidade brasileira so

    contestados ao longo das dcadas de 60 e 70, como o marxismo e o nacional-

    desenvolvimentismo, a prpria figura do intelectual comea a ser

    reconfigurada.

    Outro aspecto interessante de se observar que a institucionalizao da

    cincia poltica no Brasil coincidiu, em primeiro lugar, com o perodo de

    ditadura militar do pas (1964-85) e, em segundo lugar, com um momento de

    expanso da estrutura universitria, entre outros fatores, resultante da Reforma

    Universitria de 1968 e da criao de agncias de fomento pesquisa. Falar

    no surgimento da cincia poltica no Brasil, inevitavelmente, falar da relao

    incmoda e conflituosa entre intelectuais e os detentores do poder autocrtico.

    Destarte, verifica-se um aumento significativo no nmero de estudantes, a

    criao de novas universidades e de centros ou sociedades de pesquisa

    cientfica, um incremento no financiamento das pesquisas nessa rea; tudo

    isso possibilitando em pleno regime militar, um maior debate pblico, inclusive

    sobre as opes de abertura poltica. O mesmo regime poltico que era capaz

    de censurar, perseguir e cassar professores e pesquisadores consentia e

    financiava, por outro lado, seminrios e pesquisas, em especial na rea de

    cincias sociais, uma das que mais cresceu no perodo. De um modo geral,

    possvel afirmar que Santos e Reis fazem parte de uma gerao na qual ainteligncia acadmica brasileira vai ganhando espao e influncia na opinio

    pblica no pas.

    Se a expanso das cincias sociais e, em particular da cincia poltica,

    se explica pelo prprio incremento das universidades e associaes

    acadmicas, ela tambm deve ser entendida como resultado do fato de que

    nesse contexto a poltica torna-se o assunto por excelncia a ser discutido. A

    poltica, enquanto dimenso do real, ganha mais notoriedade, no apenas

    4

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    5/20

    como prtica, mas como campo de conhecimento. Contra o discurso at ento

    existente sobre a poltica brasileira, novos padres cientficos (de base mais

    emprica e com formalizaes lgico-matemticos) so invocados, apoiados na

    cincia poltica norte-americana.

    Indica-se aqui outro aspecto que no pode ser negligenciado na anlise

    do processo de institucionalizao da cincia poltica no pas: a forte influncia

    cultural estrangeira, especialmente norte-americana. Cumpre destacar que,

    naturalmente, nem sempre essa influncia significa ou possa ser identificada

    com subservincia intelectual, como se os intelectuais brasileiros simplesmente

    replicassem acriticamente modelos tericos e mtodos de pesquisa criados no

    exterior, dependendo esse julgamento de uma anlise concreta de cada autor

    em especfico. Ela se deu mediante a convivncia com tcnicas e mtodos

    provenientes de sistemas universitrios mais especializados e o j referido

    financiamento de instituies de pesquisa brasileiras por rgos como a

    agncia Rockfeller e, principalmente, a Fundao Ford. O apoio dado por

    esses rgos tido como decisivo na autonomizao da cincia poltica em

    relao s demais cincias sociais, formando um grupo de cientistas polticos

    altamente profissionalizados.

    Importa agora discutir um ltimo aspecto destacado por Pcaut que tem

    particular importncia para o presente estudo, tese de que a maioria dos

    intelectuais no Brasil demonstrou sentir pouca ou nenhuma atrao pela

    democracia. Para o autor, a intelectualidade brasileira, at a dcada de setenta

    do sculo XX, teria dado clara evidncia de que rechaava, ou pelo menos

    desconfiava da democracia, alm de ter dado pouqussima ateno ao tema

    em seus escritos. Somente a partir de 1975 que se pode notar uma clara

    inverso no discurso dos intelectuais brasileiros. Enquanto palavra-chavecontra o regime autoritrio, a democracia comea a ser valorizada na suas

    dimenses partidrio-eleitoral e da sociedade civil, simbolizando a ruptura com

    a crena tradicional dos intelectuais no Estado, enquanto principal agente

    centralizador e formador da sociedade brasileira. Tratar-se-ia de um processo

    gradual, que se deu na medida em que as esperanas na curta durao do

    regime militar caram por terra e que os antigos sistemas de compreenso da

    realidade brasileira tornaram-se inadequados, uma vez que garantiam pouco

    5

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    6/20

    espao ao poltica, to em destaque nos anos de chumbo. Quanto ao

    apoio dos intelectuais brasileiros democracia, embora ele se torne expressivo

    a partir da segunda metade do sculo XX, a forma como essa democracia

    deveria ser restabelecida no Brasil estava longe de ser consensual. So vrias

    as clivagens que permeiam a discusso: haviam os que depositavam suas

    esperanas nos movimentos de base, outros que viam os partidos como atores

    centrais na redemocratizao e na democracia a ser criada; os que defendiam

    uma soluo pela via revolucionria (como o caso, de Florestan Fernandes a

    partir dos anos 60) e outros que defendiam uma soluo de descompresso

    poltica incrementalista (como Santos). Assim, ainda que a democracia tenha

    se tornado lugar comum no discurso dos intelectuais brasileiros, dois desafios

    centrais permaneceram: estabelecer qual democracia se fazia necessria e

    delinear as estratgias para sua consecuo (para alguns, diante da decepo

    em relao aos instrumentos institucionais democrticos). Em nossa avaliao,

    se verdade, como observa Pcaut, que antes de 1975, em geral, a

    democracia no debatida metodicamente, incorreto, todavia, assumir que

    nesse perodo ela seja, necessariamente, objeto de repdio de todos

    intelectuais brasileiros. A anlise da obra de Santos, por exemplo, revela que

    esse autor somente na primeira fase de sua trajetria intelectual (1962-63) no

    discute pormenorizadamente a democracia, mas, de qualquer modo, longe

    esteve de desconfiar ou menosprezar as instituies democrticas (Moreira,

    2008). Sobre a obra de outros autores o mesmo pode ser dito , como Reis e

    mesmo de geraes anteriores, como Srgio Buarque de Holanda e Raymundo

    Faoro. De qualquer modo, possvel afirmar que, como quadro amplo do

    pensamento poltico brasileiro, a idia de Pcaut vlida e indica

    transformaes profundas ocorridas nesse campo no sculo passado. Emborano possa ser identificada como fator determinante nesse processo ( preciso

    considerar a "converso" democracia no socialismo brasileiro, alm de outras

    matrizes do pensamento brasileiro), a moderna cincia poltica brasileira

    certamente ajudou a retirar a democracia do ostracismo de nosso imaginrio

    social e poltico na medida em que constitui uma nova linguagem poltica.

    A seguir discutiremos mais propriamente as obras de Santos e Reis.

    Para organizar os argumentos concentraremos nossa ateno em trs pontos:

    6

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    7/20

    o diagnstico sobre o autoritarismo brasileiro iniciado em 1964, as estratgias

    para redemocratizao do Brasil e a concepo de democracia. Cabe adiantar

    que no h um acordo pleno entre esses dois autores em relao a esses

    pontos. Entretanto, apesar de existirem diversas divergncias, acreditamos que

    Santos e Reis coadunam, em linhas gerais, de uma mesma concepo de

    democracia a qual chamaremos de democrtico-liberal, entendendo por essa

    rubrica o sistema em que os direitos civis, polticos e sociais so assegurados

    ao maior nmero da populao, em que a competio pelo poder, via partidos

    e eleies, est institucionalizada em uma sociedade de mercado no qual o

    valor fundamental o indivduo. Nossa linha de interpretao que, apesar de

    diferenas pontuais e significantes, eles pensam a democracia dentro de um

    mesmo marco terico, qual seja, o do liberalismo democrtico. Nesse sentido,

    a instaurao pela via revolucionria de uma sociedade igualitria, nos moldes

    em que se expressa na tradio marxista, bem como a defesa de um regime

    poltico caracterizado por intensa participao poltica de cidados virtuosos em

    busca do bem comum, tal como figura hoje no debate da democracia

    participativa ou na tradio republicana, esto longe do horizonte normativo

    desses intelectuais.

    Fbio Wanderley Reis

    Partindo da noo de desenvolvimento poltico, o regime militar

    brasileiro, na tica de Reis, deve ser entendido como resultado da poltica

    ideolgica em que se encontrava o pas em meados dos anos 60. Em

    Mercado e utopia, Reis procura defender a noo de desenvolvimento poltico

    que teria sido abandonada pela literatura especializada. e, para ele, essa

    noo pode auxiliar na compreenso dos dilemas envolvidos no processo de

    construo democrtica (como no processo de redemocratizao do pas). Oprocesso de desenvolvimento poltico de um Estado-nao pode ser entendido

    como um processo de constituio de um mercado poltico, quer dizer, uma

    situao de equilbrio de poder, na qual uma dada comunidade de base

    territorial tem de enfrentar e equacionar o problema da cooperao social no

    violenta, da existncia de uma comunidade de atores que interagem numa

    situao de competio mtua sem excluses a priori alheias lgica de

    interesses (Reis, 2000, p. 132). A concepo de democracia de Reis

    7

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    8/20

    identifica-se, descritiva e normativamente, com o modelo de mercado poltico.

    Uma sociedade democrtica seria, assim, anloga ao funcionamento do

    mercado convencional: indivduos auto-interessados estabeleceriam relaes

    de aliana, disputa e negociao a fim de satisfazer os interesses individuais

    ou coletivos dentro dos limites previamente estabelecidos, que o autor chama

    de relaes de solidariedade. Sendo a poltica, na concepo do autor,

    inevitavelmente uma atividade de barganha entre atores com interesses

    distintos, a soluo-ideal de equacionamento dessa situao seria a que, a

    partir de um substrato comum, o mbito da solidariedade, os contendores

    pudessem disputar em p de igualdade. Destarte, se sociedade democrticas

    funcionam como mercados polticos ampliados (marcados pela orientao

    pragmtica dos atores em ao estratgica, pela permanente disposio

    negociao por parte desses atores) qualquer tipo de desigualdade que impea

    a livre disputa de interesses deve ser eliminada.

    So essas barreiras constituio do mercado poltico que so,

    gradualmente, superadas por meio do desenvolvimento poltico de uma

    sociedade. Ele distingue trs estdios desse desenvolvimento. O primeiro

    estgio chamado pelo autor de pr-ideolgico: marcado por ncleos de

    solidariedade territorial limitada e fortemente particularsticos (como as relaes

    clientelsticas), esse estgio corresponde ao momento de state-building, isto ,

    a construo do Estado-nao, situao esta em que o poder ainda algo a

    ser institucionalizado, em que o aparato estatal efetivo no foi plenamente

    construdo. Tal seria a situao da Colnia at o incio do sculo XX, quando

    pela prpria precariedade da administrao pblica, dos transportes e da

    comunicao, em nvel nacional, o poder estatal ainda era algo a ser

    plenamente institucionalizado. O segundo estdio de desenvolvimento polticoseria o ideolgico: numa fase de relativa institucionalizao do poder do

    Estado, verificar-se-ia avanadas integrao territorial e mobilizao social.

    Nesse caso, os laos de natureza universalista se sobrepem aos laos

    particularistas, tpicos da fase anterior. Ao invs da institucionalizao do

    poder, nessa fase a sociedade teria que lidar mais com os problemas relativos

    institucionalizao da autoridade (maior ou menor aceitao consensual da

    populao em relao ao governo), o que implica ter de dar uma soluo aos

    8

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    9/20

    problemas da igualdade poltica e da legitimidade do sistema. Evidencia-se,

    aqui a disputa entre democracia e autoritarismo.

    Por seu turno, o problema do autoritarismo ou democraciacoloca-se no momento em que o desenrolar do processo de

    desenvolvimento propicia as condies para emergncia dapoltica ideolgica (Reis, 2000, p. 240).Assim sendo, temos aqui um esclarecimento geral acerca do regime

    militar brasileiro inaugurado em 1964, feito a partir do marco terico do

    desenvolvimento poltico:

    Os eventos de 1964, nessa perspectiva, surgem no como amera reafirmao de uma tradio poltica secular ou areiterao de um certo padro de relacionamento entreEstado e sociedade, mas antes como vicissitude do gradualdesdobramento, no pas, da poltica ideolgica, envolvendo a

    reao de determinados focos de interesses aos riscos que, adespeito de corporativismo e populismo atravs dele, acontinuidade do processo de mobilizao sociopoltica passacrescentemente a representar (Reis, 2000, p. 255-256).

    Um ltimo estgio, denominado de ps-ideolgico caracterizado pelo

    autor como dotado de solidariedade territorial plena (total cumprimento dos

    processos de integrao territorial e de mobilizao social) e pela inexistncia

    de focos internos de solidariedade que pudessem competir com a solidariedade

    referente sociedade como um todo. Trata-se, em suma, da consolidao do

    modelo de mercado poltico.

    Vistos conjuntamente esses trs estdios revelam um certo padro,

    segundo o qual num primeiro momento h um esforo de centralizao do

    poder e de integrao territorial que, inevitavelmente, geram obstculos

    igualdade e intensificam os princpios de diferenciao e estratificao, mas

    que num segundo momento permitem que surja um impulso igualitrio e anti-

    adscritcio como condio para o florescimento de organizaes em larga

    escala, nas quais, num terceiro momento, constatar-se-ia a irrelevncia dequalquer princpio adscritcio. Nesse sentido, a construo do mercado poltico

    pressupe, paradoxalmente, a existncia, em fases iniciais, de foras

    antimercado (como as prprias foras que deram origem ao regime militar de

    1964), quer dizer, de relaes adscritcias que impedem o livre e igualitrio jogo

    de interesses.

    Interessante ao menos mencionar que Reis procura distinguir-se de

    parte da tradio de pensamento poltico brasileiro, representada por

    9

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    10/20

    Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e Nestor Duarte, entre outros, segundo

    os quais haveria uma espcie de essncia patrimonialista, no caso dos dois

    autores mencionados, e privatista, na opinio de Duarte, que teria se

    estabelecido desde o perodo colonial e seria capaz de sobreviver, no

    transcorrer dos sculos, de um modo misterioso. A cultura poltica ou o

    carter nacional brasileiro seriam, nessa perspectiva, responsveis pelas

    dificuldades de consolidao de uma ordem democrtica no pas. Ora, o que o

    autor prope ver as dificuldades pelas quais passou e passa a sociedade

    brasileira atravs de uma perspectiva que considere as diversas etapas do

    desenvolvimento poltico. Nesse sentido, problemas tais como patrimonialismo

    e do privatismo seriam tpicos apenas de uma fase de desenvolvimento da

    sociedade brasileira, no um padro perene.

    A consolidao desse mercado poltico ideal democrtico poltico-

    normativo do autor tem, entretanto, que conviver com duas dificuldades

    permanentes que dizem respeito existncia de grupos multifuncionais

    vigorosos. Grupos multifuncionais, ao contrrio dos grupos funcionais

    (marcados pela dedicao a objetivos especficos e pela participao voluntria

    e fragmentada de seus membros) so caracterizados por criar focos de

    solidariedade que podem se apresentar como alternativa solidariedade

    territorial que os abrange. So eles: etnias e classes sociais. A primeira

    dificuldade, portanto, diz respeito existncia de clivagens tnicas que podem,

    evidentemente, opor-se consolidao de uma solidariedade ampla,

    necessria ao jogo democrtico. No entanto, esse no parece ser um problema

    muito grave na concepo do autor, pois no implica forosamente a existncia

    de desigualdades objetivas:

    Do ponto de vista da solidariedade territorial, portanto, oproblema posto pela existncia de vnculos tnicos pode serconsiderado como consistindo, em grande medida, numproblema de identidade ou de assimilao, no sentidousualmente atribudo ao termo pela literatura dedicada ao temada integrao nacional, ou seja, um problema para o qual cabeesperar soluo em grande parte por meio da simplesintensificao do processo de comunicao social (Reis, 2000,p. 143).

    A segunda dificuldade, de acordo com o autor, mais sria do que a

    primeira, refere-se existncia de classes sociais, quer dizer, ao fato de que as

    democracias existirem na atualidade em sociedades capitalistas. Trata-se, em

    10

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    11/20

    suma, da polmica bastante revisitada sobre a incompatibilidade entre

    democracia e capitalismo.

    J com as classes sociais, porm, trata-se, por definio, deagrupamentos que no s representam focos potenciais ou

    reais de solidariedade, mas com respeito aos quais o processopsicolgico de separao e identificao que a solidariedadenecessariamente envolve tem inevitvel contrapartida emtermos de desigualdades objetivas nas chances vitais dosindivduos, correspondendo sempre a efetivas relaes dedomnio e subordinao (Reis, 2000, p. 143).

    Na realidade, as classes sugerem a potencial consolidao de ideologias

    antagnicas que oporiam resistncia vigncia de uma cultura cvica ampla,

    isto , um contexto no qual os indivduos a despeito de suas discordncias

    no abrem mo da solidariedade territorial. Assim, para Reis, se a

    maximizao do mbito da solidariedade condio para a maximizao do

    puro confronto de interesses preciso que o Estado aja a fim de garantir que

    impedir a predeterminao das chances vitais dos indivduos em funo do

    pertencimento a uma classe. Destarte:

    Desenvolver-se politicamente, nesta perspectiva significar,para uma sociedade dada, avanar no processo de eliminaoda relevncia social de qualquer condio exceo darepresentada pela prpria sociedade de que o indivduoparticipe revelia de sua prpria vontade e deliberao e

    possa apresentar-se aos seus olhos como objeto dado enatural de lealdade ou solidariedade. Para diz-lorotundamente: a plena vigncia da solidariedade territorial, e domercado poltico tal como o contemplamos, requeria asociedade sem classes (Reis, 2000, p. 144).

    A expanso da solidariedade territorial, condio para a constituio de

    um mercado poltico ampliado, no pode ser, como pondera o autor, resultado

    da mera manipulao ideolgica, isto , preciso que o consenso gerador de

    solidariedade se d por um efetivo aumento da igualdade nas chances de se

    fazerem valer os diversos interesses em jogo (Reis, 2000, p. 146).O tema das desigualdades sociais e o papel do Estado frente a elas

    remete a um aspecto importante na concepo democrtica de Fbio

    Wanderley Reis, que contrasta com o pensamento de Santos. O autor afirma

    que quando se fala em democracia comum abordar a polmica entre aqueles

    que defendem uma concepo meramente poltica de democracia (concepo

    minimalista) daqueles que acreditam em uma democracia social ou substantiva

    (concepo maximalista). A concepo minimalista defende que por

    11

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    12/20

    democracia se deve entender a vigncia de um Estado de direito, que garanta

    a todos os cidados os direitos civis. A democracia social, segundo a definio

    maximalista, supe a erradicao de qualquer forma de desigualdade que

    comprometa o exerccio da liberdade poltica. Sobre essa polmica, o autor

    esclarece que

    difcil pretender que a democracia poltica, em que segarantam plenamente os direitos civis e polticos de todos,possa se afirmar e consolidar em condies de grandedesigualdade social, nas quais os diversos recursos de poderestaro por definio distribudos de maneira desigual (Reis,2004, p. 393).

    O autor critica, ento, as proposies de autores como Przeworski,

    segundo as quais a esfera da poltica, autnoma em relao esfera social,

    corresponderia dimenso do Estado, das instituies; logo, democracia selimitaria a exigir instituies democrticas. Para ele, inaceitvel separar a

    dimenso institucional (Estado) da dimenso social, o que significa dizer que

    democracia tem tanto um aspecto poltico, quanto social. Assim, em relao

    sociedade brasileira, Reis enftico ao afirmar que a superao das

    aberrantes desigualdades sociais (que fazem com que ela se assemelhe a uma

    estrutura de castas, de submundos mais ou menos estanques) condio

    necessria para o estabelecimento da democracia no pas. Como o autorcomenta, a existncia e permanncia dessas desigualdades remete ao

    passado escravagista do pas que, alm de ter produzido uma degradao do

    trabalho manual e uma atitude conformista e passiva em relao ao Estado

    (que, numa sociedade maada pela utilizao do trabalho compulsrio,

    representava, por meio da aparelhagem estatal, a nica forma de emprego

    digno), explica a tardia emergncia do tema da igualdade no pas.

    Ora, se essas desigualdades persistem, impedindo a criao de umamplo mercado poltico, preciso, conclui o autor, que o Estado atue no

    sentido de atenu-las ou elimin-las definitivamente. Nesse sentido, Reis

    defende abertamente a idia de que preciso um paternalismo do Estado

    como, por exemplo, no caso da eliminao das desigualdades existentes entre

    negros e brancos no Brasil no sentido de agirpedagogicamente contra o

    preconceito (2000, p. 412), atuando sobre as instituies formativas e

    socializadoras, como a escola e os meios de comunicao, pois:

    12

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    13/20

    Uma sociedade no ser democrtica na medida em que asoportunidades dos indivduos estejam condicionadas por suainsero nesta ou naquela categoria social: sejam quais foremos critrios com base nos quais tais categorias se constituam(raa, classe, etnia, religio, gnero...), a sociedade assimcaracterizada ser fatalmente hierrquica e autoritria, e asoportunidades diferenciais por categorias de expressaro, aocabo, o desequilbrio nas relaes de poder entre elas e asubordinao umas s outras (Reis, 2000, p. 405).

    Para o autor, no que tange a relao entre Estado e sociedade

    possvel discernir trs posies: a primeira, liberal, entende o Estado como um

    sujeito que deve ter seu poder limitado a fim de no ameaar a sociedade; a

    segunda, marxista, encara o Estado como instrumento de dominao a partir

    de relaes extra-estatais; uma terceira e ltima posio a esse respeito (mais

    prxima da viso pessoal do autor) entender o Estado como um instrumentode conteno das relaes de poder advindas de outras esferas da vida, ou

    como instrumento potencial de todos indivduos envolvidos. Nesse sentido,

    seria necessrio que esse Estado contivesse em si um princpio igualitrio.

    Para garantir que o Estado fosse instrumento de todos (e no de poucos, como

    acusam os marxistas), seria preciso garantir mais do que simplesmente a

    igualdade perante a lei, isto , seria preciso assegurar um substrato social

    democracia. Assim, o autor prope uma viso da poltica em que esta sejacompreendida como uma dimenso indissocivel estrutura social e

    caracterizada pela necessidade de acomodao dos interesses conflitantes.

    III Wanderley Guilherme dos Santos

    Ao contrrio do primeiro autor avaliado, no caso de Santos existem

    muitos dados sobre os trs aspectos aqui estudados: autoritarismo,

    redemocratizao e modelo de democracia.

    A transio democracia-autoritarismo pensada por ele a partir das

    variveis polticas (tratadas como variveis explicativas), bem como uma

    resultante da relao entre atores que calculam os custos e os benefcios de

    obedecer o jogo de competio partidria, ou de deflagrar a violncia poltica.

    Segundo ele, uma vez que a dinmica social no corresponde forosamente

    dinmica poltica, e que quanto mais autoritrio for o regime, mais distante ele

    estar da dinmica societria, o sistema autoritrio acaba por se colocar em

    um dilema, chamado por ele de lei de ferro do autoritarismo: "Tornar-se cada

    vez mais autoritrio, se pode, ou cedo ou tarde ter de abrir mo de partes do

    13

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    14/20

    poder e at desaparecer por completo, eventualmente" (Santos, 1982, p. 159).

    Assim, os regimes autoritrios so intrinsecamente instveis, o que pode

    verificar-se pela anlise dos regimes autoritrios em geral. De acordo com ele,

    existem trs padres de derrubadas de regimes autoritrios: por meio de um

    golpe palaciano executado por uma frao dos militares que, posteriormente,

    transferem o poder aos civis; por meio de uma revoluo generalizada; ou, o

    que para ele era mais provvel de ocorrer no Brasil, por meio da adoo de

    uma estratgia de liberalizao negociada, isto , uma situao na qual uma

    parte importante das Foras Armadas persuade o setor mais resistente a

    estender a liberalizao. Santos defendeu abertamente o que ele chama de

    processo de descompresso poltica de tipo incremental. Essa estratgia

    consistiria em liberalizar gradualmente o sistema autoritrio brasileiro por meio

    de polticas pontuais (como o restabelecimento do habeas corpus) enquanto o

    resto do sistema fosse mantido intacto a fim de preservar a estabilidade e evitar

    uma nova compresso poltica que poderia ser causada se todo o sistema

    fosse abruptamente liberalizado.

    Em relao s conseqncias do regime autoritrio, Santos procura

    demonstrar que as polticas sociais do regime vigente no apenas aumentaram

    as desigualdades sociais existentes, como tambm reforaram a tradio

    brasileira em combinar esforos de uma distribuio mais equitativa da riqueza

    disponvel com restrio participao poltica. Santos afirma que no sculo

    XIX reinava a total ausncia de leis sobre proteo social, combinada, em

    compensao, a um princpio laissez-fairiano de no-regulamentao das

    profisses. O Estado brasileiro mantinha-se reticente no tocante interveno

    do poder pblico nos processos acumulativos at o sculo XX. Isso

    importante porque, para o autor, a partir da Revoluo de 1930 inaugura-seuma nova ordem na poltica brasileira que permaneceria vigorante at a

    dcada de oitenta: a cidadania regulada. Doravante, o Estado brasileiro

    comea a interferir diretamente na esfera da produo e na questo social. Se

    isso significou um avano em comparao com a ausncia institucional

    anterior, com a criao de vrios direitos para os trabalhadores que coibiam os

    excessos do processo de produo, representou, por outro lado tambm, a

    possibilidade para o Estado em conter as presses do operariado e, assim,

    14

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    15/20

    domesticar os atores envolvidos. Aliada represso dos trabalhadores, o

    governo de Vargas, segundo Santos, cria uma legislao trabalhista que pune

    aqueles que no esto regularizados, como o caso de vrios sindicatos, e

    premia aqueles que se inserem na ordem regulada por meio dos benefcios

    sociais. O impacto mais significativo da cidadania regulada consistiu na

    produo de barreiras entrada na arena poltica, assim como repercutiria a

    longo prazo na cultura cvica nacional, estimulando um comportamento de

    submisso poltica frente ao Estado.

    Santos avalia, ento, negativamente as polticas sociais ps-64 e o faz

    contrastando-as ao que ele chama de quadro diferencial de carncias

    existentes no contexto nacional. O autor constata que, a despeito do montante

    brasileiro despendido sob a rubrica bem-estar social ser maior do que pases

    como os Estados Unidos, as polticas sociais durante o regime militar esto

    muito aqum das necessidades do pas. Ele demonstra empiricamente que as

    desigualdades sociais entre regies e reas do pas no apenas aumentaram

    substantivamente no perodo posterior a 1964, mas revelaram ser tambm

    muitas vezes cumulativas, haja vista que uma regio carente de um recurso

    normalmente carente dos demais. Apesar de alguns avanos em polticas

    sociais , o autor categrico em afirmar que a poltica social desenvolvida pelo

    regime autoritrio no consegue alterar a ordem da cidadania regulada, sendo

    a cidadania sempre tratada como destituda de qualquer carter pblico e

    universal. Como estratgia poltica, o regime militar de 64 repetia a poltica

    varguista de conceder direitos sociais como compensao pela restrio dos

    direitos polticos e como meio de aquiescncia das massas insatisfeitas.

    Avaliando os vinte e um anos de militarismo no Brasil, o autor afirma que

    os chefes de governo do perodo foram responsveis por um processo demodernizao conservadora, sendo que vrias conseqncias desse processo

    no eram esperadas. O autor afirma que prprio da poltica que a expectativa

    dos reformadores no corresponda aos efeitos obtidos, podendo gerar, como

    foi o caso, mudanas contrrias s desejadas. Embora no possa ser atribudo

    apenas aos militares, o fato que, at 1984, o pas havia passado por um

    processo de urbanizao, industrializao e crescimento econmico tornando-

    se, em suma, mais complexo, diversificado. Ele avalia o autoritarismo brasileiro

    15

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    16/20

    a partir de uma perspectiva no-ideolgica, ou seja, no atribuindo a ele todos

    os bnus da modernizao, nem todos os nus, ao contrrio do que o autor

    julga comum na literatura a respeito da poltica autoritria.

    Deixando de lado as questes do autoritarismo e da redemocratizao,

    passemos agora exposio do que acreditamos ser o modelo de democracia

    adotado por esse autor. Pode-se dizer que o tema da democracia o tema por

    excelncia do pensamento poltico de Santos, como o tambm de Reis.

    Como se verificar, essa temtica emerge no pensamento desse autor: 1)

    como opo poltica mais desejvel, ainda que imperfeita; 2) como um

    processo poltico associado s transformaes da estrutura social do pas a

    partir dos anos 80; 3) como uma forma de organizao caracterizada pelas

    amplas participao e competio pelo poder poltico e que, exatamente por

    isso, afronta e compromete o poder das oligarquias. Alguns elementos que

    constituem, doravante, uma marca de seu pensamento: a defesa da

    democracia representativa como regime que mais expressa as clivagens de

    opinio da sociedade; do sistema eleitoral proporcional como uma forma de

    representao poltica mais justa do que o sistema majoritrio; da ampliao da

    participao poltica, por meio do direito do voto e da elegibilidade no sentido

    forte, como condio para realizao dos outros direitos; do sistema partidrio,

    como forma de condensao da soberania civil, bem como a defesa da

    alternncia partidria no poder. Em Regresso, por exemplo,ele argumenta a

    favor da consolidao da democracia no Brasil e contra as ameaas de re-

    oligarquizao do pas. Partindo de um contexto de relativa institucionalizao

    democrtica do pas, conforme explica a longa, mas esclarecedora passagem,

    o autor conclui:

    Sustento que ser mais democrtico o sistema que oferecermaior competio eleitoral e maior competio partidria; demaneira oposta, so oligrquicas as propostas que redundemem subtrair graus de liberdade ao eleitor, em sua escolha departidos e candidatos. (...) o Brasil encontra-se em crucialmomento de sua histria como nao. Finalmente, apsprolongado e tortuoso percurso, a sociedade brasileira comeaa desarmar os caixilhos do sistema oligrquico, e conhecer aefetiva dinmica de uma vida poltica democrtica, comoresultado de alterao nos nveis de competio partidria eeleitoral e da decisiva incorporao das regies Norte e Centro-Oeste aos determinantes da poltica nacional (Santos, 1994a,p. 41-42).

    16

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    17/20

    Assim, o autor considera que o intervalo entre 1985-94 representava a

    superao do sistema oligrquico brasileiro, inclusive enquanto um processo

    de integrao nacional. Contrastando o perodo de 1945-64 com aquele

    momento, ele afirma que as mscaras da oligarquia haviam, finalmente, sido

    destrudas. Diante da discusso pblica que se instalava naquele momento,

    Santos encara as propostas de reforma (como adoo do sistema puramente

    majoritrio, limitao no nmero de partidos, etc.) como mais uma reao das

    oligarquias resistentes em democratizar o poder no pas. Num embate entre as

    oligarquias, desejosas de manter o status quo, e as foras polticas que

    demandam a democratizao nacional, o autor indentifica mais uma ofensiva

    oligrquica. Embora no se assuma como um advogado da mumificao

    institucional, Wanderley Guilherme defende que no se sabe, de fato, como

    esses mecanismos funcionam: sendo a poltica o espao da incerteza,

    raramente o efeito produzido pelas instituies implantadas corresponde

    inteno dos reformadores, visto que tudo isso depende da interao entre os

    agentes, sempre reflexiva e mediada pelas diferentes subjetividades.

    No livro Razes da desordem, Santos apresenta tambm algumas idias

    que so esclarecedoras quanto sua concepo de democracia. No primeiro

    captulo, o autor procura analisar, em comparao com a experincia inglesa,

    como se formou a ordem brasileira, enfatizando duas questes comuns s

    sociedades modernas, a saber, o alargamento da participao e a

    institucionalizao da competio poltica e a questo da integrao

    institucional. Por volta de 1840, a Inglaterra teria terminado o seu primeiro surto

    de industrializao e se preparava para adoo do livre comrcio e do

    imperialismo, que auxiliariam o pas a passar de forma muito menos instvel

    que seus vizinhos europeus pelos sculos XIX e XX. Esse processo econmicofoi fundamental, pois teria permitido, de acordo com o autor, a integrao

    nacional. Alm dos ndices econmicos favorveis estabilidade inglesa, outro

    fator de estabilizao consistiu no fato de que o pas contou com um sistema

    poltico aceito por boa parte das lideranas operrias. Mesmo que restrito s

    oligarquias, o sistema de competio poltica pde, assim, se institucionalizar,

    constituindo o que Robert Dahl chama de sistema de segurana mtua. Uma

    vez consolidado esse eixo, esse sistema foi se ampliando mediante a extino

    17

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    18/20

    de barreiras ao jogo poltico (renda e sexo). Entretanto, Santos afirma que

    houve um terceiro momento desse processo de constituio da ordem,

    igualmente importante, e no avaliado por Dahl. Somente depois de

    liberalizado e com alta participao poltica, quer dizer, com as identidades

    polticas dos atores j consolidadas por meio dos partidos, que o sistema

    poltico ingls comea a solucionar a questo social, o processo de construo

    do Estado de bem-estar moderno, atravs de uma legislao provendo auxlio

    aos pobres, seguro-desemprego, seguro-sade, etc. A partir da contraposio

    da histria poltica inglesa com a histria brasileira, percebe-se que Santos

    quer ressaltar um aspecto omitido pela teoria de Dahl: seria possvel pensar em

    outras possibilidades do processo de democratizao no antevistas por Dahl,

    se o problema distributivo fosse levado em considerao. Em um contexto no

    qual as identidades polticas foram formadas sem a mediao dos partidos e

    antes da constituio da ordem poltica e da ideologia liberal, os atores

    envolvidos no conflito entre capital e trabalho procuraram vocalizar suas

    demandas no por meio da participao ou da competio partidria, mas sim

    atravs da influncia direta e privilegiada com parte da burocracia estatal que,

    numa situao favorvel, funcionava como rbitro dessa disputa social

    (corporativismo subdesenvolvido).

    No terceiro captulo da obra mencionada, Santos avalia como funciona

    o que existe de poliarquia no Brasil contemporneo (1994b, p. 72). Tendo em

    vista a herana corporativa e a perversa seqncia de democratizao

    nacional, pode-se tomar o Brasil como uma poliarquia? Avaliando cada um dos

    requisitos da poliarquias (desenvolvimento econmico, modernizao,

    pluralismo societal) Santos conclui que o Brasil j , na dcada de noventa,

    uma poliarquia. Todavia,o autor questiona esse diagnstico.A sua anlise relaciona-se aos diagnsticos que anunciavam uma crise

    de governabilidade no incio dos anos noventa causada por uma suposta crise

    de excesso de demandas sociais. Santos, ao contrrio, defende que o dilema

    da ordem brasileira consiste no hbrido institucional aqui instaurado: por um

    lado, uma morfologia polirquica, excessivamente legisladora e regulatria e,

    por outro lado, um hobbesianismo social pr-participatrio e estatofbico. A

    dificuldade governativa brasileira no resulta de uma assimetria entre elevada

    18

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    19/20

    demanda social e ineficincia estatal, mas sim entre a esfera institucional, de

    natureza polirquica, e a esfera social, de natureza hobbesiana. O resultado

    ulterior desse estado de natureza da sociedade brasileira uma cultura cvica

    predatria, de soma zero quando bem sucedida, e de soma negativa, quando

    fracassa. Sem uma cultura cvica capaz de dar sustentao efetiva s

    instituies polirquicas j existentes, o autor v com descrena, como

    defendeu tambm no mencionado texto, qualquer reforma institucional. Para

    ele, era imprescindvel expandir o Estado Mnimo a fim de garantir eficcia

    ao estatal. Distante tambm dos diagnsticos que criticavam um suposto

    gigantismo do Estado brasileiro, Santos defende que o este um ano quando

    comparado a outros pases: excessivamente regulador, com uma estrutura

    deficiente para atender a magnitude das demandas, corporativo, e no

    assentado sobre um contrato social, mas sim convivendo com uma sociedade

    que vive temerosa.

    Para concluir, cumpre enfatizar que tanto Reis, quanto Santos tem a

    democracia como objeto central de anlise e como ideal poltico maior. Como

    se viu, ambos tambm desempenharam historicamente a funo de ajudar a

    consolidar uma comunidade acadmica pautada por critrios internacionais de

    excelncia e voltada para o estudo da poltica. Os dois atuaram, outrossim,

    como intelectuais pblicos no apenas nos estreitos crculos de convivncia e

    divulgao das universidades, mas tambm nos meios de comunicao de

    massa e em outros espao pblicos. Por outro lado, seria exagero

    desconsiderar as diferenas entre eles (nem todas, obviamente mencionadas e

    exploradas aqui). No caso de Reis fica patente uma maior abertura para

    inovaes institucionais e a nfase na dimenso social da democracia,

    pressupondo a eliminao de qualquer trao adscritcio, ao passo que no casode Santos salta aos olhos a defesa da ampla competio pelo poder (tpica das

    poliarquias) e certo otimismo em relao evoluo da sociedade e da

    democracia brasileira nos ltimos decnios. Entretanto, se as diferenas so

    inegveis, tambm o o fato de que, apesar delas, os autores partem de uma

    mesma matriz de pensamento, qual seja, a liberal-democrtica, na qual a

    sociedade ideal caracterizada em termos de valores e direitos (civis, polticos

    e sociais) dos indivduos, sendo esses portadores de interesses o esteio e o

    19

  • 8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker

    20/20

    telos da organizao social, assim como h uma postura comum dos dois de

    questionamento e ceticismo quanto aos recentes debates em torno da

    democracia participativa e do chamado republicanismo.

    V Referncias bibliogrficas

    MICELI, S. "A aposta numa comunidade cientfica emergente: a Fundao Ford

    e os cientistas sociais no Brasil 1962-1992". In:______. A Fundao Ford no

    Brasil. So Paulo: Ed. Sumar, p.33-97, 1993.

    MOREIRA, M. O dilogo crtico com a teoria polirquica no pensamento

    poltico de Wanderley Guilherme dos Santos. 247p. Dissertao (Mestrado em

    Cincia Poltica) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade

    Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

    PCAUT, D. Intelectuais e a poltica no Brasil: entre o povo e a nao. So

    Paulo: tica, 1990.

    POCOCK, J. Linguagens do iderio poltico. So Paulo: Ed. USP, 2003.

    REIS, F (org.). Mercado e utopia: teoria poltica e sociedade brasileira. So

    Paulo: Ed. da USP, 2000.

    ______. "Engenharia e decantao". In: BENEVIDES, M. (org.). Reforma

    poltica e cidadania.So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2003.

    ______. "Dilemas da democracia no Brasil". In: AVELAR, L. & CINTRA, A.

    (orgs.). Sistema poltico brasileiro: uma introduo. Rio de Janeiro: Fundao

    Konrad-Adenauer-Stiftung, p.391-409, 2004.

    SANTOS, W. Poder e Poltica (Crnica do Autoritarismo Brasileiro). Rio de

    Janeiro: Forense-Universitria, 1978.

    ______. Cidadania e justia: a poltica social na ordem brasileira. Rio de

    Janeiro, Campus, 1979.

    ______. Autoritarismo e aps: convergncias e divergncias entre Brasil eChile. Dados. Rio de Janeiro: IUPERJ,v.25, n. 2, p.151-163, 1982.

    ______. Regresso: mscaras institucionais do liberalismo oligrquico. Rio de

    Janeiro: Opera Nostra, 1994a.

    ______. Razes da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994b.

    SKINNER, Q. Visions of politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2002

    (Regarding method, v. 2).

    20