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www.issuu.com/postaldoalgarve 8.697 EXEMPLARES Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO SETEMBRO 2015 n.º 84 D.R. Noção de património: da Antiguidade à actualidade p. 10 ‘A Filha do Papa’: Dario Fo na versão romancista p. 4 D.R. História e património militar em Tavira p. 3 D.R. Missão Cultura: Atlas do Património Classificado p. 2 Panorâmica: Comunicar o património D.R. p. 5 RICARDO CLARO Grande ecrã: A Devota e a Devassa, uma novela de Fernando Pessanha p. 11 D.R. Da minha biblioteca:

CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 11/09) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > JUVENTUDE, ARTES E IDEAS: Noites de Levante, por Jady Batista > ESPAÇO AGECAL: História e património militar em Tavira, por Jorge Queiroz > LETRAS E LEITURAS: ‘A Filha do Papa’: Dario Fo na versão romancista, por Paulo Serra > PANORÂMICA: A arte de bem comunicar o património, por Ricardo Claro > ARTES VISUAIS: Qual a importância da cor nas artes visuais? (1), por Saul Neves de Jesus > MOMENTOS: American cars, por Ana Omelete > SALA DE LEITURA: O passaporte de Hatherly, por Paulo Pires > O(S) SENTIDO(S) A 37º N: Setembro, por Pedro Jubilot > UM OLHAR SOBRE O PATRIMÓNIO: Acerca da noção de património, por Ana Xavier > DA MINHA BIBLIOTECA: A Devota e a Devassa, uma novela de Fernando Pessanha, por Adriana Nogueira

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Page 1: CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

www.issuu.com/postaldoalgarve8.697 EXEMPLARES

Mensalmente com o POSTAL

em conjuntocom o PÚBLICO

SETEMBRO2015n.º 84

d.r

.

Noção de património: da Antiguidade

à actualidade p. 10

‘A Filha do Papa’:Dario Fo

na versão romancista

p. 4

d.r.

História e património militar em Tavira

p. 3

d.r.

Missão Cultura:

Atlas do Património Classificado

p. 2

Panorâmica:

Comunicar o património

d.r.

p. 5

ricardo claro

Grande ecrã:

A Devota e a Devassa, uma novela de Fernando Pessanha

p. 11

d.r.

Da minha biblioteca:

Page 2: CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

11.09.2015 2 Cultura.Sul

AGENDAR

Atlas do Património Classificado: importante instrumento de gestão cultural para o Algarve

O património cultural consti-tui um valioso elemento na di-ferenciação dos territórios. Por isso, um dos eixos estratégicos da DRCAlgarve passa pela proteção da riquíssima herança cultural que marca a trajetória temporal do território algarvio. O conjun-to dos bens culturais imóveis da região constitui um importante ativo de desenvolvimento, que a administração pública tem obrigação de salvaguardar e cuja proteção jurídica é a medida de maior importância para a sua preservação física.

Conforme a Lei 107/2001 – a lei de bases do património cul-tural português, que é uma das mais avançadas do mundo nes-ta matéria – a proteção dos bens culturais assenta na inventaria-ção e na classificação. Se bem que o Algarve conte com uma notável densidade de bens cultu-rais imóveis inventariados – mais de dois milhares de sítios arque-ológicos e edifícios históricos ofi-cialmente referenciados –, desses, encontram-se somente classifica-

dos 173 e em vias de classificação outros 29, situação a que não são estranhos os procedimentos bu-rocráticos de classificação que se arrastam, em alguns casos, du-rante mais de uma década.

Num esforço concertado com a Direção-Geral do Património Cultural, a Direção Regional de Cultura do Algarve tem vindo a contribuir para atualizar o Atlas do Património Classificado e em vias de Classificação, cuja ta-

refa de georreferenciação conta também com a colaboração das Câmaras Municipais (celebração de protocolos). A atualização do Atlas é constante e decorre da evolução jurídica da situação de classificação dos bens imóveis. Encontra-se assim concluída a revisão da cartografia georrefe-renciada de 180 do total de 202 bens culturais imóveis algarvios que dispõem de proteção legal, com identificação e verificação

dos limites dos imóveis classifi-cados e respetivas zonas de pro-teção de 14 dos 16 municípios algarvios (as exceções são os municípios de Loulé e Alcou-tim). Essa verificação foi pontu-almente acompanhada pela re-visão dos conteúdos descritivos de cada imóvel na respetiva ficha de identificação.

Não podendo os imóveis classificados ser alterados sem o parecer (aliás vinculativo) da

entidade de tutela, e ficando os licenciamentos de obras e co-municações prévias sujeitos a restrições nas respetivas zonas de proteção, compreende-se o grande interesse em democrati-zar o acesso dos cidadãos a esta informação, naquilo que con-sideramos ser uma boa prática de gestão do património e de divulgação dos bens culturais da região.

O Atlas pode ser facilmente acedido, através do sítio da inter-net da Direção-Geral do Patrimó-nio Cultural, em http://geo.pa-trimoniocultural.pt/flexviewers/Atlas_Patrimonio/default.htm, onde se pode visualizar e pes-quisar o património e zonas de proteção diretamente sobre o mapa ou através da localidade ou endereço, ou selecionando alguns temas de referência.

No horizonte mais próximo da Direção Regional de Cultura do Algarve está, agora, a conclu-são da cartografia georreferen-ciada dos dois concelhos ainda em falta, tornando o Algarve a primeira região portuguesa a disponibilizar em linha infor-mação georreferenciada sobre a totalidade dos seus bens cultu-rais classificados ou em vias de classificação.

Noites de Levante

Ao longo de oito dias, a Camara Municipal de Olhão e a Fesnima ofereceram aos olhanenses e a quem nos vi-sita oito Noites de Levante com espetáculos de grande qualidade. Um cartaz va-

riado de música, dança e teatro muito elogiado pelo público.

O evento começou no dia 18 com uma invasão pirata, na Avenida 5 de Outubro, se-guida de um espetáculo de pirotecnia O Guardião do Te-souro, protagonizados pela Viv’arte.

As Noites de Levante pros-seguiram, no Jardim Patrão Joaquim Lopes, no dia 19 com os algarvios Azinhaga.

No dia 20 deu-se lugar ao jazz, ao reggae e à soul, com Jazzafari. Uma “mistura” tão

bem sucedida quanto impro-vável.

Os Farra Fanfarra tomaram conta da Zona Ribeirinha no dia 21. Especialistas em eu-foria coletiva e transmissão de ritmos contagiantes.

Artesanato, música, teatro e dança foram os ingredien-tes para o Mercado do Levan-te, que teve lugar no dia 22.

Alexandre Lopes que nos dias anteriores tinha prota-gonizados dois grandes mo-mentos teatrais de interação com o público, ao longo da Zona Ribeirinha, mostrou-se

também o seu talento vocal no dia 23, numa noite em que se recordaram alguns clássicos da língua france-sa, inglesa e espanhola dos anos 60.

No dia 24 foi a vez do gru-po Tripé, um projeto de mú-sica eletrónica, progressiva e ambiental associada à mul-timédia.

A fechar as Noites de Le-vante, no dia 25, a compa-nhia Teatro do Mar, apre-sentou A Balada do Velho Marinheiro.

Olhão não pára!

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

“PONTO ZERO”24 SET | 19.00 | Teatro das Figuras - FaroCarolina e Margarida Cantinho estreiam no Teatro das Figuras a sua mais recente criação, centrada no ponto onde tudo começa. O grande vazio que dá ori-gem a todos os pontos de partida

“ESCOLA INTERN. ARTES DE LOULÉ 1993-1997”Até 30 SET | 21.30 | Convento de Stº António - LouléExposição apresenta trabalhos recentes de professo-res da Escola das Artes, em particular de Bruce Dor-fman, Minerva Durham, Enrico Gonçalves, Cécile Massart e Pascaline Wollast

foto: drcalg

Imagem da ferramenta web Atlas do Património Cultural

A memória é muitas vezes cur-ta, na neblina do tempo que pas-sa caem no esquecimento uma parte de leão dos momentos que marcam a História da humani-dade, os bons e os maus.

Nestes tempos conturbados de migrações massivas em direc-ção à Europa, devemos todos pa-rar para pensar e reflectir sobre que posições tomar relativamen-te a um fenómeno que assume proporções históricas.

Independentemente das ra-zões de vária ordem que estão por detrás da debandada em direcção à Europa de milhares de migrantes de várias naciona-lidades da Ásia e da África, im-porta ter em conta o que a Eu-ropa - toda a Europa - tem por obrigação saber no que respeita a guerras e seus efeitos ao nível de refugiados.

É neste contexto que ao ler "Hi-tler", de Ian Kershaw, uma obra (biografia) incontornável sobre o ditador e sobre a história da Segunda Guerra Mundial e dos profundos efeitos que teve em várias populações até então en-quadradas na amálgama civiliza-cional europeia, me surge a ideia de quanto deve a Europa saber ser sapiente para poder gerir a 'crise' migratória que atravessamos.

As diferenças étnicas, cultu-rais e civilizacionais que nos 'separam' de muitos dos actuais migrantes não podem, de per si, ser razão bastante para fundar medos e receios, nem podem permitir-se arremessos de fantas-mas populistas sobre os perigos do acolhimento dos migrantes assentes em generalizações que mais não são do que mera deso-nestidade intelectual.

Os migrantes são todos eles nossos irmãos na humanidade e, como entre nós, entre eles estão bons e maus, apenas isso, seres humanos.

A bem da memória

Ricardo [email protected]

Jady Batista Coordenação Jornal J

d.r.

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11.09.2015  3Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Grande ecrã

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

SESSÕES REGULARES CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO 21.30 HORAS

12 SET | FATATSUME NO MADO – STILL THE WATER (A QUIETUDE DA ÁGUA), Na-omi Kawase – Japão/Espanha/França 2014 (110’) M/14

17 SET | TAXI (TÁXI DE JAFAR PANAHI), Jafar Panahi – Irão 2015 (82’) M/12

Cineclube de Tavira regressa ao Cine-Teatro depois de Verão recheado de cinema

Depois das Mostras de Ci-nema ao Ar Livre, que foram um sucesso sem preceden-tes a todos os níveis, já vol-támos ao Cine-Teatro An-tónio Pinheiro. Aliás, este António Pinheiro (Tavira 1867 – Lisboa 1943) foi actor de teatro e cinema, realiza-dor, argumentista, escritor e professor da Arte de Repre-sentar português. Fundou a Associação de Actores Dra-máticos e publicou diversas obras. Estreou-se no cinema em 1910, como actor no fil-me brasileiro Os Milagres de Nossa Senhora da Penha. Em Portugal integrou o elenco de filmes de Georges Pallu. Como realizador, estreou-se com o filme mudo Tinoco em Bolandas, tendo também rea-lizado e interpretado Tragédia

de Amor, ambos em 1924.Neste mês de Setembro

iremos exibir filmes todas as quintas e todos os sábados.

Com a qualidade a que esta-mos habituados... Até lá!

Cineclube de Tavira

Cineclube exibe filmes à quinta-feira e ao sábado

fotos: d.r.

No momento em que se anuncia a transferência para Beja da histórica unidade militar sediada em Tavira, a única actualmente existente na re-gião algarvia, importa reflectir o sig-nificado desta estrutura para o País, a cidade e também para o Algarve.

A defesa do território e das suas po-pulações é uma das funções centrais da soberania nacional, mais acen-tuada em momento de crescente e perigosa instabilidade internacional.

O Algarve encontra-se muito pró-ximo de uma das zonas com maior tráfego marítimo do planeta por onde circula cerca de 50% do comér-cio mundial, 33% do gás e petróleo e 80% das mercadorias que a União Europeia consome. Torna-se evidente a necessidade de meios permanentes que colaborem em missões de protec-ção e vigilância.

Mas para além destas questões estratégicas importa salientar as-

pectos de ordem histórico-cultural e económica.

Tavira esteve desde sempre ligada à história militar portuguesa e pou-cas cidades poderão apresentar uma continuidade tão expressiva.

Na 1ª dinastia e com D. Dinis, Ta-vira ganha um lugar fundamental como cidade mais próxima do norte de África. No final do século XIII pos-suía um “Alcaide de Mar”, dispondo de um efectivo de intervenção nume-ricamente idêntico a Lisboa.

Em Setembro de 1415, no regresso da conquista de Ceuta, o Rei D. João I, os príncipes e parte da armada de-sembarcaram em Tavira onde dois dos Infantes foram armados cavaleiros.

No seculo XVI sediava em Tavira a importante “Esquadra do Estreito” (nessa época existiam no País duas outras sob a tutela real, a “Esquadra das Ilhas” e a “Esquadra do Conti-nente”) e por Tavira passavam enge-nheiros, mestres pedreiros, religiosos, mercadores e outros relacionados com a expansão.

A cidade transformou-se no rei-nado de D. Sebastião em “Praça de Guerra” com mais de um milhar de homens armados, sete companhias de ordenança e cavalaria, efectivo que terá aumentado no início do século XVII.

Após a Restauração foi criado o “Terço Pago”, um corpo militar pro-fissionalizado às ordens da hierar-quia militar. Como consequência do grande terramoto de 1755 o Quartel--general sediado em Lagos, cidade que ficou muito destruída, passou para Tavira.

Nas décadas seguintes surgiu o Regimento de Infantaria de Tavira e por decisão do Marquês de Pombal foi construído o imponente quartel da Atalaia concluído em 1795.

Figura incontornável no Algarve desta época é o engenheiro José San-

de de Vasconcelos, que trabalhou e faleceu em Tavira em 1808, legando à região uma valiosa obra que vai das construções militares, ao ensino da matemática e levantamento cartográ-fico do litoral algarvio.

O Regimento de Infantaria de Ta-vira defendeu em 1801 a fronteira do Guadiana do ataque de Castela e o Regimento de Infantaria nº 14 enfrentou os exércitos napoleónicos.

As guerras civis entre liberais e ab-solutistas trazem nova instabilidade e a derrota dos miguelistas levou à ex-tinção do RI de Tavira, que alinhara

pelo lado dos vencidos. Com a Con-venção de Evoramonte surgiu o Bata-lhão de Caçadores nº 5.

A unidade militar de Tavira par-ticipou nas campanhas do norte de Moçambique do final do século XIX e durante a 1ª Guerra Mundial na Ba-talha de La Lys em França registou 60 mortos. Na Praça da Republica está colocado um obelisco que homena-geia os mortos pela Pátria.

Durante as Guerras Coloniais (1961 - 1974) passou a Centro de Instrução de sargentos milicianos.

O período mais recente reflecte as alterações estratégicas do regime de-mocrático e a integração europeia do País, surgindo ciclicamente a desac-tivação e de reactivação da unidade militar tavirense.

A economia sempre beneficiou em múltiplos aspectos com a presença militar na cidade.

Com a recente decisão de abando-no do Quartel da Atalaia o Algarve perderá e por isso os seus represen-tantes na Assembleia da Republica devem lutar pela sua manutenção na função militar, devendo ainda acrescentar-lhe a função museológica que exponha, interprete e valorize a riquíssima História e património mi-litares da cidade ligados a oito sécu-los da nossa soberania.

História e património militar em Tavira

Jorge QueirozSociólogo – sócio da AGECAL

d.r.

19 SET | KAGUYAHIME NO MONOGATA-RI – THE TALE OF PRINCESS KAGUYA (O CONTO DA PRINCESA KAGUYAHIME), Isao Takahata – Japão 2014 (137’) M/6

24 SET | JIAO YOU – STRAY DOGS (CÃES ERRANTES), Tsai Ming-Lang – França/Taiwan 2013 (138’) M/12

26 SET | NATIONAL GALLERY, Frederick Wiseman – França/E.U.A./Reino Unido 2014 (180’) M/12

O Regimento de Infantaria 1 foi transferido de Tavira para Beja

Page 4: CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

11.09.2015 4 Cultura.Sul

Letras e Leituras

A Filha do Papa: O único romance de Dario Fo

A Filha do Papa é a obra mais recente e também o primeiro romance, do italiano Dario Fo. Dario Fo nasceu em 1926, na Lombardia. Foi escritor, diretor e ator. Em 1997 recebeu o Pré-mio Nobel de Literatura.

As suas obras destacam-se por representarem sátiras que atacam os poderes instituídos. O político, o capitalismo, a má-fia e até mesmo o Vaticano. Talvez seja pertinente salva-guardar que o autor estava em plena adolescência quando de-flagrou a Segunda Guerra Mun-dial. Tinha ingressado na Escola Brera de Belas-Artes quando se viu forçado a interromper os estudos, ao ser recrutado para o exército. Acabou depois por desertar e refugiou-se num só-tão onde os seus pais escondiam judeus, ajudando-os a atravessar a fronteira para poderem che-gar à Suíça. Terminada a guer-ra, Dario Fo retomou os estudos, voltando à Escola Brera, e ma-triculou-se no curso de Arqui-tetura do Instituto Politécnico de Milão. Mais tarde trabalhou como cenarista. Escreveu a pri-meira peça de teatro em 1944 e desde então não parou de escre-ver. Em 1951 conheceu Franca Rame, atriz descendente de uma longa linhagem de atores, com quem casou em 1954. Em 1959 fundou com a sua esposa uma companhia de teatro de nome Fo-Rame. Atualmente é um au-tor reconhecido internacional-mente, com cerca de setenta obras, muitas delas escritas em colaboração com a mulher.

A Filha do Papa foi publicado em Outubro do ano passado, pelas Publicações Dom Quixo-te e neste seu romance históri-co, Dario Fo dá-nos a conhecer a sua versão de quem terá sido afinal Lucrécia Borgia. Como a própria Sinopse da obra refere, Lucrécia é sobejamente conhe-cida na História e na literatura, se bem que nem sempre pelas me-lhores razões: «Filha de um papa, três casamentos, um marido as-sassinado, um filho ilegítimo… tudo em apenas trinta e nove anos, em pleno Renascimento. (...) afastando-se das reconstitui-

ções escandalosas ou puramen-te históricas, revela-nos num ro-mance magistral, o único escrito pelo autor, toda a humanidade de Lucrécia, libertando-a dos cli-chés de mulher dissoluta e inces-tuosa e inserindo-a no contexto histórico e na vida quotidiana da sua época. Assim, ante os nossos olhos desfila o fascínio das cortes renascentistas, com o papa Ale-xandre VI – o mais corrupto dos pontífices –, o diabólico irmão Cesare, os maridos de Lucrécia – perseguidos, mortos, humilha-dos – e os seus amantes, acima de todos Pietro Bembo, com o qual partilhava o amor pela arte e, em especial, pela poesia e pelo tea-tro. Todos peões dos impiedosos jogos de poder. Uma verdadeira academia do nepotismo e do obsceno, entre festas e orgias.».

Dario Fo tenta nesta obra não só retratar o lado mais humano de Lucrécia como joga ainda com o facto de produzir um romance quase cénico, muito próximo de uma peça dramáti-

ca, naquela que é também uma narrativa histórica, apoiada em diversa bibliografia (apresenta-da no final do livro). Procurando ater-se a um espírito documen-talista e de honestidade, Dario Fo começa logo por apresentar no preâmbulo da sua obra de que o tema que nos traz não é propriamente novo:

«Sobre a vida, sobre os triun-fos e sobre as infâmias mais ou menos documentadas dos Bor-gia foram escritas e levadas à cena óperas e peças teatrais, re-alizados filmes de notável qua-lidade com atores de fama e, ultimamente, até mesmo duas séries televisivas de extraordiná-rio sucesso./Qual é o motivo de tanto interesse sobre o compor-tamento destes personagens? Antes do mais, a despudorada falta de qualidade moral que lhes é atribuída em todos os momentos da vida. Uma exis-tência libertina desde a sexua-lidade até ao comportamento social e político.» (pág. 33).

Encontraremos, aliás, diver-sas citações de obras de autores como Savonarola e Alexandre Dumas a corroborar o retrato que nos é apresentado da filha do papa.

É bem patente, desde as pri-meiras linhas, a crítica ácida e o tom cáustico de que a escrita do autor se reveste. A Filha do Papa inclui ainda diversas ilus-trações realizadas pelo próprio autor que procuram ilustrar a história com retratos não só de Lucrécia – sendo que a capa do livro é uma dessas ilustrações do próprio autor – como também das outras figuras que gravitam

em seu redor ou, melhor dizen-do, nas mãos das quais Lucrécia foi muitas vezes um fantoche ou um peão. Dario Fo consegue as-sim, quase cinco séculos depois, recuperar a figura de Lucrécia, apresentando-a como vítima e cordeiro sacrificial, representan-do a jovem Bórgia, quase sempre vista como incestuosa e mestre na arte da sedução e do vene-no, como uma figura inocente no meio dos esquemas levados a cabo pelo pai e pelos irmãos, bastante angelical aliás dado o clima de traição e ambição que reinava na época. Como o au-tor indica a dada altura no seu

Preâmbulo: «De todas as vezes, a vítima a imolar desde a infância não é outra senão Lucrécia. É ela que é lançada em todas as oca-siões, tanto pelo pai como pelo irmão, no vórtice dos interesses financeiros e políticos, sem a mínima piedade. O que pensa-va daquilo a doce menina não os preocupava nada. Aliás era uma mulher, um juízo que valia tanto para um pai futuro papa como para um irmão próximo cardeal. Portanto, em certos momentos, Lucrécia é uma coisa com rotun-dos seios e esplêndidos glúteos. Ah, já nos esquecíamos, também os seus olhos são cheios de en-canto.» (pág. 34).

O humor, assim como a iro-nia, reveste-se também de par-ticular importância, no retrato apresentado da época e das personagens que gravitam em redor de Lucrécia e dos Bórgia. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem a propósito do papa Inocêncio, citando Savonarola: «em cuja existência a única coisa inocente foi o nome. (...) ele era chamado «pai do povo» porque graças às suas atividades amató-rias tinha aumentado o número dos seus súbditos em oito filhos machos e oito fêmeas – numa vida que decorreu em grande voluptuosidade – naturalmen-te com amantes diversas.» (pág. 36). Ou noutra passagem digna de nota quando se refere a um massacre ocorrido em julho de 1492: «a cada morte de um papa, em Roma, ocorria uma grande quantidade de homicí-dios porque, por tradição secu-lar, no final de cada conclave em que é eleito o novo pontífice se concede a graça a quem tiver co-metido um crime nos dias de in-terregno./Portanto, todos aque-les que sonham com um ato de vendetta aproveitam as tradicio-nais férias para tirar a desforra, matar hoje para se tornar livre amanhã, e tudo graças a uma segura indulgência plenária. Que belos tempos!» (pág. 38).

Para quem gosta de ler o li-vro e depois ver na tela ou no pequeno ecrã uma adaptação mais fiel, pode recorrer à série Os Bórgia que é certamente a mais mediática, em termos de projeção internacional, exibida entre nós no canal AXN. Realiza-da por Neil Jordan (Jogo de Lá-grimas), conta com Jeremy Irons a representar o papel do papa Alexandre VI (outrora o cardeal Rodrigo Borgia) e a jovem atriz inglesa Holliday Granger que desempenha com inocência e candura o papel de Lucrécia Bórgia.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

fotos: d.r.

No seu único romance, Dario Fo revela o lado mais humano de Lucrécia Bórgia

Dario Fo recebeu em 1997 o Prémio Nobel de Literatura

Page 5: CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

11.09.2015  5Cultura.Sul

Panorâmica

A arte de bem comunicar o património

Comunicar é uma necessidade e comunicar bem um cruzamento entre objectivos, técnicas e ferra-mentas e, em muitos casos, arte no sentido lato.

A comunicação aplicada às áreas da cultura e, em particular, do patri-mónio exige na era tecnológica que vivemos capacidades técnicas e ferra-mentas tecnológicas que permitam fazer chegar os conteúdos aos públi-cos-alvo com eficiência e eficácia.

A comunicação na área da cultu-ra no Algarve apresenta, ainda hoje e não obstante os investimentos e os esforços das entidades públicas, uma dispersão, uma falta de coesão e uma ausência de estratégia que prejudica sobremaneira a forma como, quer os algarvios, quer o imenso mercado do turismo, percepciona a região e a sua cultura, bem como, as manifestações culturais e o património regional.

Na área do património e, muito em particular, na área do património re-gional a cargo da Direcção Regional de Cultura do Algarve, a comunicação foi durante muito tempo - demasiado tempo - rudimentar e desajustada da realidade. Sobre este facto indesmen-tível o Cultura.Sul publicou por diver-sas vezes peças que alertavam para a situação e confrontou os titulares da Direcção Regional de Cultura com a incapacidade comunicacional da di-recção regional.

Dos responsáveis destaque-se a hombridade de reconhecerem as deficiências da estratégia e em particular dos meios com que a di-recção regional se debatia para dar resposta a uma necessidade comu-nicacional que não se compadece actualmente com ferramentas e dis-cursos desactualizados.

Alexandra Gonçalves, actual res-ponsável pela pasta da Cultura no Algarve, identificada a dificuldade, fez um caminho no sentido de ul-trapassar o problema da escassez e ineficiência da comunicação na área do património sob alçada da direcção regional.

A Alexandra Gonçalves coube dar resposta ao problema naquilo que concerne à página da Direcção Regio-nal de Cultura do Algarve e à forma como este serviço público se relacio-na com os seus públicos-alvo, nome-adamente através das redes sociais.

Nova página da DRCAlgarve surgiu na internet

em Dezembro de 2014

Em Dezembro do ano passado surgia na internet a nova página da Direcção Regional de Cultura do Al-garve que, modernizada, se apresen-tava aos internautas com um visual moderno e arrumado de acordo com o actual estado da arte na comunica-ção em plataforma web.

Ao invés do que anteriormente su-cedia, digitar na barra de endereços de qualquer motor de busca www.cultalg.pt deixou de ser sinónimo de um anacronismo visual e comunica-cional e de uma forma e substância de apresentação de conteúdos em tudo disfuncional e não amigável.

Hoje, o sítio on-line da direcção regional de cultura contém bastan-te informação útil, destaques rela-tivamente àquilo que mais importa em cada momento, funcionalidade na abordagem de conteúdos e um acesso privilegiado - de novo o patri-mónio - a uma subpágina dedicada aos sete monumentos cuja gestão cabe à Direcção Regional de Cultu-

ra do Algarve.Assim, é hoje possível de forma rá-

pida e eficaz conhecer mais em por-menor e à distância de um simples clique a Fortaleza de Sagres, os cas-telos de Paderne e Aljezur, as ruínas romanas da Villa da Abdicada e de Milreu, os Monumentos Megalíticos de Alcalar e a Ermida de Nossa Se-nhora de Guadalupe.

Conteúdos simplese de qualidade

Nem só de imagem e amigabilida-de sobrevive a comunicação através

da internet, as páginas on-line só vingam quando os conteúdos no seu todo, intercomunicabilidade e sus-tentabilidade, são capazes de garan-tir ao público-alvo uma resposta ade-quada às respectivas necessidades.

Nas várias subpáginas dedicadas aos vários monumentos, o sítio da Di-recção Regional de Cultura do Algarve disponibiliza informação suficiente e atractiva para o utilizador, asseguran-do ao internauta links para informa-ção mais detalhada, imagens, locali-zação com mapas de fácil percepção, bem como dados históricos, plantas e em alguns casos áudio-guias e jogos didácticos cuja descarga permite aos utilizadores prepararem ou efectua-rem visitas aos locais patrimoniais com acesso a informação qualificada e acessível.

Assim se transforma de forma notá-vel a acessibilidade digital ao patrimó-nio cultural e desta forma se garante mais e melhor qualidade na apresen-tação da herança patrimonial algarvia, projectando para o futuro a oferta cul-tural e patrimonial da região.

Número de visitantes a subir

Ao Cultura.Sul a actual directora regional de Cultura destacou “a su-bida substancial do número de vi-sitantes da página institucional da direcção regional e em particular das áreas dedicadas ao património sob sua responsabilidade”.

“Desenvolvemos uma nova estra-tégia de comunicação com o público exterior através de uma página on--line que apesar de institucional dis-ponibiliza informação a pensar em quem quer conhecer o património do Algarve que gerimos”, refere Alexan-dra Gonçalves, que destaca que “fa-zemos hoje uma comunicação mais alargada em que o sítio da direcção regional se articula com as redes so-ciais e este posicionamento tem dado resultados positivos nas várias ver-tentes em que desejamos comunicar com quem acede às ferramentas que utilizamos”.

Balanço positivo

“Para nós o balanço é extrema-mente positivo, mas há sempre coisas a melhorar e para as quais estamos a criar condições de im-plementação”, diz a responsável, que não esperou por um consenso nacional sobre a modernização dos sítios on-line das direcções regio-nais de cultura e avançou com o trabalho no Algarve, dando provas de que a região pode ser pioneira sem pôr em causa a coesão da lin-guagem comunicacional dos servi-ços centrais.

Entre as questões a melhorar está a disponibilização em línguas estrageiras da informação actual-mente apresentada pela página da direcção regional. “Foi uma ques-tão que desde o início estava iden-tificada, mas cuja implementação exige mais recursos do que aqueles que no momento eram possíveis alocar”, refere Alexandra Gonçal-ves, que deixa assim clara a visão estratégica de evolução da plata-forma on-line no futuro.

Um exemplo que podia e devia ser seguido de perto relativamente ao resto da património regional, no-meadamente aquele que está debai-xo da alçada das autarquias e que teima em ser tratado com pouco mais do que meras referências nos respectivos portais autárquicos.

Há ainda muito por fazer no Al-garve em termos de comunicação relativamente à vasta herança pa-trimonial regional e urge fazê-lo de forma articulada que permita senão de raiz - como seria obviamente preferível - pelo menos a médio prazo a criação de uma plataforma integradas sobre o património do Algarve.

Ricardo ClaroJornalista / [email protected]

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“14º FESTIVAL FLAMENCO DE LAGOS”11 e 12 SET | 21.30 | Centro Cultural de LagosFestival aposta numa programação equilibrada que junta artistas já consolidados com jovens referências do flamenco em espectáculos de enorme beleza vi-sual e sonora

“RITMOS E MELODIAS”Até 7 NOV | 21.30 | Galeria de Arte da Praçado Mar - QuarteiraPedra, bronze e fibra de vidro são alguns dos mate-riais usados por Teresa Paulino na criação das suas esculturas, que pretende reflectir os sons, cores e pa-drões de algumas partes do mundo

Imagem da página on-line da Direcção Regional de Cultura do Algarve - Fortaleza de Sagres

fotos: ricardo claro

Alexandra Gonçalves

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11.09.2015 6 Cultura.Sul

Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg;Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

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“V MOSTRA DE ARTISTAS DE LAGOS”Até 10 OUT | Centro Cultural de LagosA MALA é um evento que apresenta a vasta activida-de dos artistas de Lagos e que acompanha o balanço da diversidade do trabalho dos artistas do concelho

“LA VOZ DE NUNCA”19 SET | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroEspectáculo onde se tenta encenar a ‘dança do ab-surdo’ numa obra total em que confluem movimen-to, palavra e música interpretada ao vivo

Qual a importância da cor nas artes visuais? (1)

Proposta de Newton no seu livro “Uma nova teoria de luz e cores” (1672)

d.r.

Um dos domínios em que a investigação científica tem tido mais impacto nas artes visuais diz respeito ao estudo da cor. Desde aspetos mais físicos e químicos que tinham sobretudo a ver com a forma de produzir certas cores, até aspetos mais psicológicos que dizem sobretudo respeito à per-ceção das cores pelo observador, a cor tem sido desde sempre uma dimensão importante na produ-ção em artes plásticas, procuran-do aproveitar os conhecimentos científicos neste domínio.

Como exemplos explícitos do reconhecimento da importância da cor e do interesse em ter mais conhecimento neste âmbito por parte dos artistas, destacamos os seguintes posicionamentos de Van Gogh e de Paul Klee. Em 1885, Van Gogh escreveu numa carta ao seu irmão Théo o se-guinte: “Eu ouvi falar de uma ex-periência feita com uma folha de papel de cor neutra que se torna esverdeada sobre um fundo ver-melho, avermelhada sobre um fundo verde, azulada sobre o alaranjado, alaranjada sobre o azul, amarelada sobre o violeta e violetada sobre o amarelo (…) Se encontrares algum livro sobre essas questões da cor, um livro que seja bom, envia-o antes de qualquer outra coisa, pois é ne-cessário que eu saiba tudo sobre isso. Não se passa um dia sem que eu me procure instruir”. Por seu turno, em 1914, Klee escreveu no seu “Diário de viagem à Tunísia”: “A cor apoderou-se de mim. Sei que ela me tomou para sempre. Tal é o significado deste momen-to abençoado. A cor e eu somos um. Sou pintor”.

A cor não tem uma existência material, sendo uma sensação provocada pela ação da luz so-bre o órgão da visão. Já Epicuro, há mais de 2.300 anos, referia

que “os corpos não têm cor em si mesmos” e que “a cor guarda íntima relação com a luz, uma vez que quando não há luz, não há cor” (cit. em Pedrosa, 2009). Em termos de evolução das espécies, supõe-se que a capacidade para identificar as cores terá surgido nos primatas há 400 milhões de anos, no sentido de permi-tir identificar os frutos no meio das árvores (Bramão, 2011). Na atualidade, face aos avanços da ciência, sabe-se que a cor é como o olho do homem (e de outros animais) interpreta a reemissão da luz vinda de um objeto e que corresponde à parte do espetro eletromagnético que é visível, isto é, entre aproximadamente 380 a 750 nanômetros ou frequên-cias. Apenas podemos conhecer aquela parte do Universo a que fisicamente temos acesso e ape-nas podemos formar sobre ele as imagens inteligíveis que sejam compatíveis com a estrutura neuronal do nosso cérebro.

O olho humano é um meca-nismo complexo desenvolvido para a percepção de luz e cor. No centro do olho, a fóvea é rica em cones, um dos dois tipos de células fotorecetoras, sendo res-ponsáveis pela captação da in-formação luminosa dos objetos observados. As cores percebidas pelo olho humano dividem--se em três tipos e respondem preferencialmente a compri-mentos de ondas diferentes de luz. Temos cones sensíveis aos vermelhos e laranjas, outros aos verdes e amarelos e ainda outros sensíveis aos azuis e violetas.

Em termos de teorias da cor, embora já Hipócrates e Platão se tivessem pronunciado sobre as cores dos objetos, considera--se que a mais antiga teoria terá sido apresentada por Aristóte-les, no séc. IV aC., ao considerar as cores como propriedade dos objetos, tal como o são o peso, o material ou a textura. Distin-guiu entre seis cores principais: vermelho, verde, azul, amarelo, branco e preto.

No entanto, foi na Renascença que o estudo da cor começou a ser objeto de pesquisa sistemá-tica pelos próprios artistas, os quais muitas vezes eram tam-bém cientistas. Nesse contexto

compreende-se que nesse perí-odo tenha surgido a expressão “ciência da pintura”, da autoria de Leonardo da Vinci ao afirmar: “A ciência da pintura reside no espírito que a concebe” (cit. em Pedrosa, 2009).

Aliás, já no início do séc. XV, no seu “Livro da Arte”, Cennino Cennini evidenciava que o ateliê do pintor era o mais desenvol-vido laboratório de química da época.

Nesta época do Renascimen-to, destacam-se os tratados de Leon Alberti sobre a arquitetu-ra, a pintura e a escultura, em que definiu o vermelho, o verde e o azul como sendo as cores fundamentais que dão origem

a todas as outras. Essa tríade veio a ser consagrada entretanto pela Física Moderna. Procurando uma correspondência aos quatro ele-mentos, fogo, água, ar e terra, Alberti incluiu também o cinza (mistura do preto e do branco). Assim, o vermelho seria a cor do fogo, o verde da água, o azul do ar e o cinza da terra.

No final do séc. XV, Leonar-do da Vinci escreveu o “Tratado da pintura e da paisagem”, sen-do o primeiro a salientar que a sombra pode ser colorida, pro-pondo que a relação entre luz e sombra pode ser mensurada e representada proporcional-mente. Concordou que todas as outras cores poderiam formar-se

a partir do vermelho, verde, azul e amarelo e demonstrou experi-mentalmente a composição da luz branca, pois observou que o branco surge quando um raio de luz diurna (cinza-azulada) pene-tra por um respiro no interior de uma câmara escura e entra em contato com a luz de uma vela (amarelo-alaranjada) que lá se encontra. No seu tratado sobre pintura escreveu: “A primeira de todas as cores simples é o branco, embora os filósofos não aceitem tanto o branco como o preto como cores, porque bran-co é a causa ou o receptor de to-das as cores e o preto é a privação total delas. Mas como os pintores não podem ficar sem ambas, as colocaremos dentre as demais. (...) Podemos colocar o branco como representante da luz sem a qual nenhuma cor pode ser vista, amarelo para a terra, verde para a água, azul para o ar, vermelho para o fogo e preto para a escu-ridão” (cit. em Araújo, 2005). Ao afirmar que todos os corpos se refletem de luzes e sombras, po-dendo as luzes ser originais ou derivadas (refletidas), Leonardo abre caminho para a concepção do espaço renascentista, pleno de cores e imagens refletidas pelos corpos sob a ação da luz incidente (Pedrosa, 2009).

No final do século XVII, desta-cam-se as experiências sistemáti-cas para o estudo da cor realiza-das pelo físico Isaac Newton, as quais se encontram descritas em “Uma nova teoria de luz e cores”, publicado em 1672. Newton veio revolucionar os conhecimentos sobre a luz, pois demonstrou que as cores eram propriedades da luz e não dos corpos refleto-

res, como se acreditava anterior-mente. Observou que um raio de sol se decompunha em várias cores ao atravessar um prisma de vidro, voltando estas cores a dar origem à luz branca ao atraves-sarem um segundo prisma inver-tido. As cores do espetro seriam vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Newton relacionava as sete cores com os sete planetas e as sete notas mu-sicais da escala diatónica. A partir destas cores criou um disco que rodando a uma certa velocidade provocava a percepção de bran-co. Este dispositivo de sete cores ficou conhecido como Disco de Newton. No seu livro afirmava o seguinte: «As cores não são qua-lificações da luz derivadas de re-fração ou reflexões dos corpos naturais (como é geralmente acreditado), mas propriedades originais e inatas que são dife-rentes nos diversos raios. Alguns raios são dispositivos a exibir uma cor vermelha e nenhuma outra; alguns uma amarela e nenhuma outra, alguns uma verde e nenhu-ma outra e assim por diante” (cit. em Rocha, 2002). Newton foi um dos nomes que mais se destacou no seu tempo, tendo tido outros importantes contributos para o desenvolvimento da ciência, destacando-se a descoberta Lei da Gravidade.

Cerca de meio século depois de Newton, em 1725, o fran-cês Le Blon utilizou os três pig-mentos básicos para impres-são, o vermelho, o verde e o azul. As cores primárias seriam um número mínimo de pig-mentos a partir dos quais se poderiam obter as demais co-res. Estas cores-luz primárias, por síntese aditiva produzem o branco. Por seu turno, as cores--pigmento opacas primárias, vermelho, amarelo e azul, por síntese subtrativa produzem o preto. Esta teoria da formação de cores complementares por mistura ótica tornou-se a base para qualquer trabalho envol-vendo pigmentos coloridos.

Estes foram alguns dos prin-cipais desenvolvimentos para a utilização das cores em artes visu-ais. No próximo número iremos analisar os desenvolvimentos mais recentes, desde o século XIX.

Obra “A descoberta da Lei da Gravidade. Homenagem a Newton”, de Saul de Jesus (2011)

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11.09.2015  7Cultura.Sul

Momento

American carsFoto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Tirar fotografias pode ter di-versos significados. Há mil e uma razões para se fotografar. Há o já conhecido casamento, o grupo de amigos, a família, aquela paisagem, o carro novo ou para vender e outros tantos temas para fotografar.

Há, no entanto, uma outra coisa muito importante em tirar fotografias. Há o fotografar para mais tarde recordar. A fotografia é um momento único mas o seu conteúdo, a imagem, ficará gra-vada para sempre.

Temos como exemplo prático as fotografias antigas que expres-sam e nos mostram determina-dos momentos de grande impor-

tância na nossa história. Foram fotografados monumentos. Fo-ram fotografados momentos. Foram fotografadas pessoas. Em tempos passados as pessoas que eram fotografas tinham de ter alguma importância, por vezes, apenas monetária ou política.

Atualmente já não é assim. A fotografia está sempre a mudar nalguns aspetos mas noutros continua sempre igual. Fotogra-far é sempre captar o momento. E há sempre o recordar. Todas as pessoas se lembram daque-la fotografia que foi tirada na-quele dia. A recordação dá vida à imagem.

São muitos momentos que a ALFA – Associação Livre Fotó-grafos do Algarve tem guardado nos seus passeios fotográficos que irão continuar. Basta con-sultar as informações em www.alfa.pt para saber quando fo-tografar nos nossos passeios e mais tarde a nossa memória consultar para lembrar aquele momento.

Fotografar para recordar

Raúl Grade CoelhoMembro da ALFA

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11.09.2015 8 Cultura.Sul

Alexandre FerreiraLicenciado em PatrimónioCultural pela UAlg

Património Humano - Bem a preservar?Um olhar sobre o património

A poesia visual de Ana Hatherly

d.r.

Há olhares que não perden-do o seu foco, não podem dei-xar de olhar mais além.

Erguida nos pilares da li-berdade, da democracia, da igualdade, do respeito pelos direitos humanos e do respeito pela dignidade humana, a Eu-ropa e os seus fundadores pre-tendiam desde o seu primeiro momento criar uma sociedade

onde o pluralismo, a não discri-minação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre mulheres e homens pre-valeçam. Muito se tem visto, dito e escrito sobre os tempos conturbados que vivemos.

Nalguns casos, poucos, análises fundamentadas e realistas; na grande maioria réplicas de opiniões simplis-

“Um cego a quem foi dado ver numa pequena pausa fria” – era assim que a criadora de imagens Ana Hatherly (1929-2015) se gos-tava de definir. Um das dádivas (e privilégios) maiores da sua vida terá sido precisamente essa iluminação inquietadora, esse aclarar do mundo, esse despren-dimento de uma “visão” única/unívoca e redutora no que toca à linguagem artística.

Em 1992 ela assumia a sua vo-cação para a derivação: uma escri-tora que transita para as artes vi-suais através da experimentação com a palavra (e sua caligrafia); e uma pintora que se espraia pela literatura através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes. A sua obra representou singularmente esse passaporte, esse livre-trânsito entre poesia, desenho e pintura, abolindo limites e visões estan-ques, transpondo fronteiras e instaurando pontes e diálogos interdisciplinares, em muitos casos bem à frente do seu tem-po (anos 60 do século passado), numa cativante e inspiradora tendência para a “promiscuida-de” e experimentalismo estéticos. A motivação central desse ímpe-to (saudavelmente) contami-nante e transgressor foi sempre o mesmo para a poeta nascida no Porto: “uma investigação do idio-ma artístico, particularmente do ponto de vista da representação – mental e visual”.

Profunda conhecedora do legado barroco e maneirista, e dos labirintos (ou textos visuais) do século XVII, Hatherly fez uma releitura criativa dessa estética cultural, dialogando ao mesmo tempo com formas e tendên-cias da vanguarda internacional (sobretudo a poesia concreta). A sua “mão inteligente” reinventou a escrita poética, o que implicou também um outro tipo de recep-ção por parte do leitor: mais par-ticipante, criativo e livre.

O seu arrojo e versatilidade estenderam-se assim às artes plásticas, cinema e performance, e a poeta-pintora-investigadora--docente universitária acabou por colar indelevelmente essa másca-ra ao rosto como seu “mais vital artifício” (para usar um verso seu de 1998). Não por acaso, Valter Hugo Mãe confessava há pouco tempo, revisitando andanças li-terárias em que privou com a es-critora, que “era uma maravilha correr tanto perigo com ela”, pois ele, “ainda moço, nunca teria lata para uma rebeldia daquelas”, o que, no fundo, lhe instigava o seu lado livre e improvável, sobretu-

do quando Hatherly o estimu-lava reiterando-lhe: “Põe-te sem pés e sem cabeça”.

Em 2008, no Dia Mundial da Poesia, recordo-me de ouvi-la a ler a sua própria poesia no CCB,

ao lado de outros reconheci-dos poetas e actores. Retive de si uma imagem discreta, rigo-rosa e generosa na partilha da palavra. Ali, viajei também por uma preciosa retrospectiva de poesia visual (desenho e pintu-ra) sua com cerca de 150 dese-nhos pertencentes à exposição Anagramas (1969) e à obra Poe-sia Visual – Mapas da Imaginação e da Memória (1973), que era com-plementada, e bem, por oficinas de desenho, pintura e colagem inspiradas na sua obra e destina-das a escolas e grupos. No fundo, um mapa da imaginação no/do mundo que dava toda a liber-dade de leitura e interpretação, como ela tanto frisava: com a poesia visual “podemos ler, ver, ouvir ou fazer o que quisermos”, pois esta, pela constelação de significados que lhe é inerente, exige outro tipo de reacção que não se compara à “partitura” que um livro implica que sigamos (da

esquerda para a direita, de cima para baixo).

Ana Hatherly assumia a escri-ta como uma pintura de signos, como aventura física e mental que aspirava a uma forma de co-nhecimento, sendo o poeta um pintor do mundo invisível (como se lê numa das suas Tisanas). Daí que a sua obra navegasse muito por anagramas, acrósticos e ou-tros labirintos de sentido e ima-gem, em que ressaltava a “pura potencialidade do traço como desejo de ser e de inventar ser”, como certeiramente salientou o poeta e professor Manuel Portela.

As referidas Tisanas, iniciadas em 1969 como work in progress, reflectem bem essa concepção da escrita enquanto pintura e filtro da vida. São textos inclassificáveis do ponto de vista da genologia literária, cruzando poesia, mi-cronarrativa e ensaio, e apresen-tando múltiplas ressonâncias e influências aos níveis temático e

formal/estilístico: um aprofun-damento do imaginário/filoso-fia oriental e do budismo zen e sua tradição contista; a explora-ção das amplas potencialidades expressivas do poema em prosa; a inserção de elementos surrea-listas em formas narrativas mais clássicas; e uma vincada propen-são reflexiva e experimental, com forte carga simbólica, a qual se associa, não poucas vezes, a uma roupagem aforística/proverbial/epigramática e fragmentária em que o registo ensaístico e/ou po-ético se sobrepõe claramente ao modo narrativo.

Na visão de Hatherly, a poe-sia surge como uma espécie de emergência e a sangria que esta lhe provoca no corpo – à qual o mundo parece ser indiferente – como metáfora da criação (Tisa-na 336). O autor e o leitor, por seu lado, vivem no limiar do prazer, um de cada lado como tensos anfitriões. Vivenciam “a proble-mática do segredo – se for divul-gado deixa de existir; se não for torna-se um horrível tormento”. Talvez por isso alguns mestres di-gam “que o próprio do prazer é não poder ser dito” (Tisana 126). E os livros? Estão sempre sós, tal e qual nós, sofrendo o terrível impacto do presente e calando a sua fúria com a sua farsa, como escreveu na Tisana 433. E conti-nua: “[Os livros] estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós”.

A fechar, revisito, com reno-vado prazer, a curta e incisiva Tisana 336: “Durante o jantar vou contando coisas que me aconteceram mas de tal modo que todos me ouvem como se eu estivesse contando histórias. Apercebendo-me disso digo: sou uma efabuladora, percebem? Percebem e tranquilizam-se”.

O passaporte de Hatherly Sala de leitura

in memoriam Ana Hatherly

tas, demagógicas e toldadas por sen-timentos que criam antagonismos muito pouco saudáveis reveladoras de frieza, crueldade, insensibilidade e porque não desumanidade?

Património, legado transmitido às gerações actuais e futuras pelos seus antepassados, só o é enquanto as gera-ções presentes o entenderem como tal, e virem nele os alicerces para o seu futuro e para o futuro dos seus descendentes.

Eis então que surge a questão que nos devemos colocar constantemente: qual é o património humano que queremos deixar às gerações futuras?

A reinvenção da leitura (pormenor), de 1975, de Ana Hatherly

Paulo PiresProgramador culturalno Município de Loulé[email protected]

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11.09.2015  9Cultura.Sul

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

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“DO DIA-A-DIA”Até 31 OUT | Galeria do Convento do EspíritoSanto - LouléExposição de pintura e instalação de Alfredo Revuel-ta que integra a colecção de Marie e Volker Huber

“HENRIQUE O NAVEGADOR”25 SET | 18.00 | Fortaleza de SagresApresentação do filme artístico de Timo Dillner (25 min.) dedicado ao lado mais humano do Infante D. Henrique, integrado nas Jornadas Europeias do Património

Setembro

Pedro [email protected]

1895

Dá-se o início da construção do coreto de Faro, no jardim Manuel Bívar, então espaço nobre de lazer da cidade. Com materiais vin-dos da Companhia Aliança do Porto (cidade donde terá vindo também o coreto de Tavira) ali permanece este ‘monumento’ esquecido pe-las edilidades e seus munícipes. Mas é assim um pouco por todo o lado, são espaços desaprovei-tados sobretudo aqui onde num clima ameno pediria mais uso àquela que foi a sua função inicial. Poder-se-ia por exemplo criar em volta dos coretos uma esplanada-cafetaria de madei-ra elevada para aproximar os artistas do público em recitais de poesia ou música.

1918

Nenhuma poetisa poderia querer viver numa terrinha como Quelfes, ainda que aconselhável pelos bons ares. Muito menos Florbela Espanca

que já pouco vivia por esses dias. “Estou cansa-da, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros”. Ali não consegue refazer-se do desgaste acumulado pela situação física e psicológica em que se en-contrava. Da sua fugaz passagem ficou na estra-da junto à casa, uma lápide colocada em Março de 1985, homenagem dos seus admiradores, a assinalar o edifício onde viveu um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos.

1923

Na margem direita do rio guadiana, locali-zado no areal ao sul de V.R. Stº António, o fa-rol da cidade do iluminismo está em latitude 37º11’ 07’’/longitude 7º24’54’’. Caracteres de luz-branca; relâmpagos de 0,1s –ocidente -7,4s; período de 7,5s. Edifício em forma de torre cir-cular de cimento armado, branca, com estreitas listas horizontais escuras com anexo de dois pa-vimentos, com 48 metros de altura e um alcance de 19 milhas. Tem elevador mas está desprovido de faroleiro devido à automatização em 1989.

1924Quem negoceia com peixe mais cedo ou mais

tarde vem parar a Olhão. Raul ‘Tamanqueiro’  Figueiredo (1903-1941) juntou o útil ao agra-dável e representou o S. C. Olhanense- campeão de Portugal na época de 1923/24. Na final (4-2 ao F.C.Porto) da 1ªcompetição organizada pela F.P.F, no Campo Grande, onde o presidente al-garvio Teixeira Gomes destacou a sua forma de jogar «juvenilmente obstinada, na sua ubi-quidade inverosímil (…) sem deixar nunca de sorrir». De seguida foi chamado a representar a selecção nacional, e logo aliciado a ingressar no Benfica.

1943

Numa noite de Novembro um PB4Y-1 (ver-são da Marinha do quadrimotor B-24 Libera-tor) desorientado, despenhou-se no mar a algu-mas milhas de Faro. Mas para Carlos Guerreiro a inspiração e motivação para escrever o livro ‘Aterrem em Portugal’ (pedra da lua,2008) co-meçou quando conheceu a história do pescador algarvio Jaime Nunes (já falecido), que salvou do mar para a sua embarcação, seis soldados americanos sobreviventes dessa queda. A partir daí o jornalista farense iniciou uma pesquisa de vários anos sobre os aviões que na segunda guerra aterravam de emergência em Portugal.

1968

Quando esteve de férias com Linda no Al-garve, Paul McCartney escreveu uma canção de nome “Penina” que ofereceu ao grupo musical Jotta Herre (do Porto), com quem tocou numa noite em que tomava uns copos no bar do Hotel Penina. O fanzine “Club Sandwich” do antigo clube de fãs de McCartney, conta que Paul terá composto ali de improviso a letra e música da mais obscura canção que aparece no cd pirata: ‘Unheard Melodies, The Songs The Beatles Gave Away’, juntamente com as versões dos Jotta Her-re (EP Philips 431923PE) e de Carlos Mendes.

1974Neste tempo impreciso em que vivemos, mes-

mo na poética Lagos - cidade de luz, se torna difícil esquecer os adjectivos que temos sempre a ecoar no dia-a-dia destes dias: confuso, disfor-me, ocultação, degradação - tal como para So-phia M.B.A , no dia 20 de Abril de 1974, quando escreveu naquela cidade atlântica estes versos para o poema ‘Lagos I’: (…)Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil /Aceitar o confuso o disforme a ocultação/Na nitidez de Lagos onde o visível /Tem o recorte simples e claro de um projecto/O meu amor da geometria e do concre-to/Rejeita o balofo oco da degradação.(…) – in ‘O Nome das Coisas’,1977

1974Em pleno ano da revolução dos cravos Bryan

Ferry instalava-se incógnito na costa do barla-vento, aliando o lazer à intenção de se inspirar para escrever temas para um novo disco. Per-tence a chão algarvio a relva da capa, naquela que seria a mais ousada da sua discografia em contraponto com o menos conseguido long--play dos Roxy Music, apesar de neste se incluir o sucesso ‘Bitter Sweet’. A canção que usa versos em língua alemã, foi inspirada na convivência com as duas raparigas alemãs (também na capa do lp).

1976

Influenciada pelo construtivismo e pela pop art, aquando da sua passagem de quatro anos por Paris, Maluda usa a linearidade nas paisa-gens urbanas. Recorrendo ao hiper-realismo e ao foto-realismo, começa a ser mais conhecida na década de 70, pelas paisagens tradicionais do país. Tanto os famosos quiosques como as janelas portuguesas, exploram os reflexos e os efeitos de luz. Já para não falar da intensidade da luz na arquitectura cubista que Olhão ainda tinha quando Maluda a pintou em «Olhão VII», óleo sobre tela (81/65cm).

1985

Para a gravação do clip de um single do seu lp de estreia ‘Psycocandy’, os The Jesus and Mary Chain escolheram um barato destino do Sul da Europa, no tempo em que Algarve ainda tinha ‘360 dias de sol por ano’, o slogan quase mais verdadeiro da história do turismo em Portugal. Quem os viu chegar ao aeroporto de Faro, diz que os irmãos Reid vinham já assim mesmo des-grenhados, nos blusões de cabedal de 2ªmão, dispensando cabeleireiro e guarda-roupa na equipa de produção. Daí para o ‘set’ localizado nas praias e ruas de Ferragudo e Alvor.

fotos: d.r.

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11.09.2015 10 Cultura.Sul

Acerca da noção de património

O modo como, em cada momento, uma sociedade sente, pensa e age sobre o seu património constitui um indi-cador do “pulsar” social, das suas angústias e motivações, do seu quadro de valores e de referências, dos seus momen-tos de ruptura e de mudança.

Entendida pelos romanos como uma relação particular entre um grupo e certo tipo de bens materiais a noção de património manteve-se durante séculos na esfera da propriedade privada, trans-missível por transacção ou herança.

A noção de património, no sentido que aqui nos interes-sa, teve a sua origem no séc. XVIII com a Revolução Fran-cesa. O confisco dos bens da nobreza e do clero, aliados às destruições radicais dos símbolos do poder perpe-trados por grupos de popu-lares, leva o Estado a definir critérios para o que deve ou não ser salvaguardado. Nas vicissitudes desse período conturbado ganha forma um sentimento novo que é a ideia de bem comum e de riqueza moral de uma Nação, a qual, porque inalienável, passa a es-tar legalmente protegida pelo Estado. Surge assim a noção actual de património, que se desloca definitivamente do domínio privado para o colec-tivo, que se liberta da matéria para ganhar uma existência imaterial.

Mas não é só o patrimó-nio cultural que é objecto de medidas de protecção. Desde finais do séc. XIX que a no-ção de património natural se impôs, tendo originado a criação de parques nacionais e reservas naturais um pouco por todo o mundo. O objec-tivo destas áreas classificadas não é já o de preservar a Cul-tura mas sim a Natureza ou, melhor dizendo, sistemas vi-vos e, portanto, sujeitos a um processo evolutivo. A noção de património desloca-se do passado para o presente, é aquilo que ainda existe que tem de ser preservado.

Esta deslocação temporal da noção de património veri-ficou-se também no domínio da cultura, principalmente através da etnologia que se começa a interessar não só pelo exótico mas também pela cultura europeia, datan-do da 2ª metade do séc. XIX a criação de museus nacio-nais de etnografia em vários países da Europa. É também deste período o interesse pela etnografia regional, que se manifestou inicialmente nas grandes exposições univer-sais, e que motivou a criação de vários museus regionais de etnografia, que testemu-nhavam a existência de um património local, se bem que ainda restrito ao “típico” e ao “decorativo”.

Com efeito, a noção de pa-trimónio conheceu notável desenvolvimento durante o séc. XIX, tendo progressiva-mente abrangido vários do-mínios disciplinares mercê da especialização das ciências e das transformações sociais ocorridas na Europa Ociden-tal e América e a industrializa-ção que conheceram durante este período.

Em contrapartida, a socie-dade da primeira metade do séc. XX, atravessada por duas guerras mundiais, centrou--se no esforço de guerra e no drama humano que lhe é ine-rente, remetendo para plano secundário as preocupações com o património. Não obs-tante, o impacto destrutivo de tais conflitos iria desen-cadear na sociedade do pós--guerra uma motivação sem precedentes pela preservação do património, alargando esta noção a campos inéditos até então.

A noção contemporânea de património é um conceito

amplo e integrador onde po-demos ainda isolar conceitos mais específicos (património arquitectónico, património paisagístico, património in-

dustrial, património cientí-fico, património geológico… entre outros), muitos dos quais se afirmaram na 2ª me-tade do séc. XX.

Uma concepção universal do

património ganhou forma ofi-cial em 1972, quando foi adop-tada pela Conferência Geral da Unesco, em Paris, a Convenção para a Protecção do Patrimó-

nio Mundial, Cultural e Natu-ral. Esta convenção assenta na ideia que determinados bens do património cultural e natu-ral se revestem de excepcional interesse para toda a humani-

dade, pelo que a sua preserva-ção não respeita apenas a uma nação mas a toda a comunida-de internacional.

Paralelamente, face à amea-ça de uma guerra nuclear e ao esgotamento dos recursos, o homem toma consciência de que não está fora da natureza mas que faz parte dela, para o que foi decisivo o contributo da ecologia. De ora avante, a conservação já não diz respei-to só às outras espécies, é da sobrevivência da própria es-pécie humana que se trata, a qual está ameaçada pela rup-tura dos equilíbrios naturais. A noção de património natu-ral alarga-se assim à de patri-mónio ambiental, abordagem que desencadeou numerosos movimentos de protecção do ambiente e a formação de par-tidos ecologistas.

Como vimos, a noção de pa-trimónio é bastante dinâmica e plástica. Se inicialmente se res-tringia à herança artística e mo-numental, hoje o património pode ser quase tudo; os traços materiais e imateriais de uma vida e gerações passadas, a me-mória de um mundo em vias de extinção. É assim uma noção vaga mas extremamente pre-sente, que traduz a inquietação da consciência colectiva peran-te as ameaças à sua integrida-de. Formulada num contexto de ruptura social, a noção de património não mais se desli-gou deste sentimento de perda, numa incessante procura de re-ferências que, por descodifi-carem o passado, dão senti-do ao presente e orientam a construção do futuro.

Ana XavierAntropóloga, Mestre em Museologia e Património

Arraial do Barril

foto: antónio coelho

Flamingos

Ficha Técnica:

Direcção:GORDAAssociação Sócio-Cultural

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Um olhar sobre o património

Narciso-das-areias

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Page 11: CULTURA.SUL 84 11 - SET 2015

11.09.2015  11Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Há um ano e meio escre-vi neste jornal sobre Hotel Anaidaug, narrativa fantás-tica de Fernando Pessanha, que brevemente (assim o espero) poderemos ver em filme. Hoje, este prolífero au-tor proporcionou-me a opor-tunidade de escrever sobre a sua mais recente novela, A Devota e a Devassa, da qual já tive o privilégio de redigir o prefácio.

O título

O título do livro equilibra--se na escolha dos adjetivos (aqui, podendo, até, ser en-carados como substantivos) que o compõem, «devota» e «devassa», que partilham, além do mesmo número de sílabas, as primeiras 3 letras (dev-). Há um certo humor associado a este balancear, a este hesitar entre duas ca-racterísticas tão diferentes (mesmo antagónicas, poder--se-ia dizer), como se emen-dasse, a meio da palavra, um lapsus calami (não resisti a usar esta expressão latina, que significa, literalmente, «erro da caneta», logo, «erro de escrita»), indiciando, as-sim, o tom jocoso da novela. O facto de ambos virem pre-cedidos pelo determinante artigo definido «a» («a devo-ta», «a devassa»), em vez de ligados apenas pela conjun-ção copulativa «e» («devota e devassa»), pode levar-nos a pensar que se referem a pes-soas diferentes. Além disso, a moralidade dos nossos tem-pos fez com que estes dois termos entrassem quase em

desuso, o que nos dá uma indicação sobre a época em que a história se passará: um tempo no qual estes qualifi-cativos teriam ainda usança.

A linguagem e a época

«D. António Correia de Vasconcelos, figura pompo-sa da sociedade lusa da cen-túria de setecentos, tinha-se mudado há três anos para o palacete da família, restau-rado após o terramoto de 1755 e situado nas proximi-dades do sofisticado centro da cidade. Para tal, em muito tinha contribuído o maras-mo cultural imposto pela entediante vida no campo. O distinto cavalheiro, mor-gado descendente de nobres linhagens, era possuidor de uma invejável herança, ali-cerçada por uma política de relações endogâmicas que se encarregou de transformá-lo no exclusivo proprietário de um abastado património.»

Assim começa a narrativa, apresentando a personagem à volta da qual se tece a teia de relações das restantes personagens e situando, de imediato, o leitor na época retratada: Lisboa, segunda metade do séc. XVIII (pós--terramoto).

Fernando Pessanha é his-toriador e o conhecimento que tem nesta área do sa-ber revela-se no cuidado com que o põe ao serviço da construção da narrativa, não só relativamente a momen-tos da nossa história, mas também à linguagem então usada. Só neste pequeno ex-certo, podemos ver a tonali-dade que pretendeu dar ao texto, através do vocabulário escolhido para descrever D. António. E começando pela primeira palavra: o uso do título «Dom» (abreviado, como é costume) remete, de imediato, para um contexto de nobreza. D. António é um morgado (um «vínculo dado

a c e r t o s bens que d e v e r i a m ser transmi-tidos ao primogénito sem que este os pudesse ven-der», como nos diz o dicio-nário Houaiss, que foi abo-lido na segunda metade do séc. XIX), um fidalgo rico («descendente de nobres linhagens» e de « invejável herança»).

Ao colocar o adjetivo antes do nome (e dando apenas exemplos do excerto citado: «sofisticado centro», «ente-diante vida», «distinto cava-lheiro», «nobres linhagens», «invejável herança», «exclu-sivo proprietário», «abastado património»), consegue dar ênfase e tornar a linguagem mais pomposa, fazendo, as-sim, par com a personagem descrita. Este modo de adje-tivar é o usado preferencial-mente ao longo da novela, exagerando o ridículo ou o trágico (que se torna, por isso, ridículo) das situações:

«E, então, lágrimas de ine-narrável tristeza brotavam dos seus olhos, escorrendo--lhe pelas delicadas faces piedosas. O fidalgo, ente-diado, via naquele pranto um recurso frequente nas mulheres frágeis, incapazes de aceitar as mais óbvias ver-dades. Ainda assim, pronto se apercebia das alturas em que transpunha os limites e não ousava levar mais longe as suas provocações.» (p.26).

A História

Cada personagem é um bom recurso para a crítica à sociedade daquela época e às suas instituições, nomea-damente a Igreja. A devoção de D. Amelinha, que se escu-sa a cumprir os seus deveres conjugais em nome de uma dedicação à oração, dentro e fora de portas, permite as mais duras críticas do seu marido ao comportamen-

to nada abonatório dos re-presentantes do clero: «Pois não há nada mais duvidoso do que o paleio dos malan-dros dos padres; é com ma-nhas e falinhas mansas que seduzem as mulheres e as jovenzinhas, e é sempre em nome do altíssimo que as ludibriam e as desonram. Já para não falar dos meninos do coro…» (p.25).

D. Nuno de Mascarenhas, amigo de D. António, é o aventureiro com quem per-corremos episódios (alguns bem caricatos) da nossa história e que, ao mesmo tempo, nos mostram a fal-ta de princípios de mui-tos dos nossos nobres: «Durante algum tem-po frequentou a alcova da célebre Ana Jacques Mondtegui, uma dama natural de Damão, tão famosa pela rara bele-za como pelos amantes que coleccionava. To-davia, a desconfiança do marido da senhora,

o sargento-mor do cor-po de sipais da infantaria de Bardez, fê-lo fugir para Macau, onde se dedicou ao contrabando de especiarias, sedas, porcelanas, sândalo e outros produtos. Ainda as-sim, foi o rentável tráfico de ópio, entre Bengala e a Chi-na, que acabou por denun-ciá-lo. Perseguido pelas au-toridades, foi interceptado em Díli, no decurso da desig-nada “Guerra dos Doidos”, a célebre revolta comandada por um feiticeiro que se pre-tendia invulnerável perante as armas portuguesas. Curio-samente foi apanhado in fla-grante delicto, no decurso de um assalto a uma igreja em que se fazia acompanhar pelos indígenas revoltosos, a fim de roubarem alfaias religiosas.» (p.32).

Tenho a certeza que esta leitura vai agradar ao leitor que gosta de aprender en-quanto passa por momentos de boa disposição.

O historiador e escritor Fernando Pessanha≠

d.r.

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A Devota e a Devassa,uma novela de Fernando Pessanha

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