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DA ESPACIDADE AO ESPAÇO REAL: O PROBLEMA DA TEORIA GERAL A PROPÓSITO DO SIMPLES E DO COMPLEXO EM GEOGRAFIA * Ruy Moreira ** A complexidade é um tema explicitamente presente na Geografia desde Sorre. Mas a referência na paisagem, um complexo de singularidades aparentes, firmou-a no consenso público como um saber da simplicidade. Corre-se o risco de repetir-se com a abordagem do complexo – a grande teoria – o erro do simples – a espacidade cartesiana – que ainda é a dominante em Geografia. Permanece o problema da relação entre a grande teoria e a pequena teoria que tem sido o grande complicador. Um estudo comparado de Tricart e Brunhes ajuda a esclarecê-lo. Resumindo o modo como vê a dinâmica do fenômeno geográfico, diz Tricart que deixada entregue a si mesma a morfogênese revela-se a inimiga da pedogênese, há que apelar- se para a fitoestasia, termo que prefere a bioestasia por explicitar ser da vegetação, não de um vago bio, o papel de regulador das contradições que se passam na “infraestrutura” da natureza (Tricart, 1977). Brunhes já há tempo viera na mesma linha, teorizando sobre os efeitos epistêmicos desiguais de o geógrafo optar pela localização ou pela * Texto apresentado na mesa redonda “Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico” do VIII Encontro Nacional da ANPEGE em setembro de 2009. ** Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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DA ESPACIDADE AO ESPAÇO REAL: O PROBLEMA DA TEORIA GERAL A PROPÓSITO DO SIMPLES E DO COMPLEXO EM

GEOGRAFIA*

Ruy Moreira**

A complexidade é um tema explicitamente presente na Geografia desde Sorre. Mas

a referência na paisagem, um complexo de singularidades aparentes, firmou-a no consenso

público como um saber da simplicidade. Corre-se o risco de repetir-se com a abordagem do

complexo – a grande teoria – o erro do simples – a espacidade cartesiana – que ainda é a

dominante em Geografia. Permanece o problema da relação entre a grande teoria e a

pequena teoria que tem sido o grande complicador. Um estudo comparado de Tricart e

Brunhes ajuda a esclarecê-lo.

Resumindo o modo como vê a dinâmica do fenômeno geográfico, diz Tricart que

deixada entregue a si mesma a morfogênese revela-se a inimiga da pedogênese, há que

apelar-se para a fitoestasia, termo que prefere a bioestasia por explicitar ser da vegetação,

não de um vago bio, o papel de regulador das contradições que se passam na

“infraestrutura” da natureza (Tricart, 1977). Brunhes já há tempo viera na mesma linha,

teorizando sobre os efeitos epistêmicos desiguais de o geógrafo optar pela localização ou

pela distribuição no primado do enfoque do fenômeno geográfico, ao observar que o olhar

orientado na localização prioriza a imobilidade e a permanência, ao passo que o olhar

orientado na distribuição prioriza o movimento e a transformação (Brunhes, 1962).

Ligados numa relação de ontem e hoje Tricart e Brunhes são duas formas clássicas

de conceber a Geografia e o fenômeno geográfico – cuja existência para ambos é ponto

pacífico – como dialética e complexidade. Mesmo que para se apreendê-las às vezes em

Geografia, uma ciência indutivo-dedutiva, se tenha que ser cartesiano-newtoniano

(Moreira, 2006 e 2009).

Todavia, no geral da literatura geográfica existente, só aqui e ali a Geografia

aparece como uma forma de abordagem do mundo como complexidade e o espaço como

modo de referência do complexo. O que tem a ver com o conceito de espaço – o simples-

* Texto apresentado na mesa redonda “Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico” do VIII Encontro Nacional da ANPEGE em setembro de 2009.** Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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claro cartesiano – e o hábito de ver e sentir em Geografia que daí emana com que esta

literatura trabalha.

A espacialidade

Significa isto dizer que freqüentemente destoamos da proposta da geografia

clássica. Às vezes até por desconhecê-la. E Brunhes é quem melhor a ilustra. A leitura

geográfica começa para Brunhes pela localização. Sem localização, nota, não existe

fenômeno geográfico e Geografia. Isto embora o ato de localizar por si mesmo não garanta

a natureza geográfica do fenômeno e do saber. Para que seja geográfico e Geografia, há que

combinar-se a localização à distribuição e ver-se aquela por meio desta.

A distribuição é para Brunhes a rigor distribuição de localizações. Mas o intuito de

enfatizá-la como categoria diante e ao lado da localização é o de lembrar que a localização

enquanto localização e caso único de constatação não tem em si qualquer valor de

significação. A localização só o é por referência a uma outra localização, o que só se faz

dentro do quadro da distribuição. Note-se que embora Brunhes compartilhe da noção de

que o fato único e/ou isolado não seja passível de explicação científica, concordando com

Vidal de que o homem só age em grupo, não é disso que ele está falando, mas da

impossibilidade ontológica de uma localização só e única.

É assim que localização e distribuição formam um par e uma reciprocidade. E

Brunhes proponha irmos no sentido do primado da distribuição sobre a localização na

leitura geográfica dos fenômenos. Isto porque se a localização enfatiza o fixo, a distribuição

enfatiza o fluxo do fixo, como Smith dirá adiante (Smith, 1988). Por isso, uma vez

composto o quadro da distribuição, diz Brunhes, é preciso voltar o olhar para a

pontualidade das localizações, para vermos cada localização agora por suas posições

correlativas, a categoria da localização mudando de qualidade para se transfigurar na de

posição. Eis aqui um ponto essencial da teoria e do método de Brunhes. A transfiguração da

localização em posição (ora vista na tradição clássica como posição geográfica e ora como

posição astronômica) esclarece o porque da impossibilidade da localização única e em si e

introduz na leitura geográfica a dimensão metodológica de se ver o conceito, pelo seu

caráter mutante, dentro do andamento do movimento processual das categorias, a categoria

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vindo a ser o que é dentro do seu movimento na leitura: a localização era uma coisa quando

do ponto do começo, o de ida da localização para a distribuição, e passa a ser outra no

ponto seguinte, quando indo de retorno de volta da distribuição para a localização. Um

movimento transfigurativo do conceito que irá se repetindo no movimento de

complexificação da leitura do fenômeno geográfico.

A posição indica o caráter relacional das localizações e ver o todo a partir dela

transforma a distribuição numa grelha de posições. Cada localização é o que é por conta e

na medida do seu lugar no contexto interrelacional na grelha de posições da distribuição, na

perspectiva da qual a localização deixa de ser um ponto estático no tabuleiro das

pontualidades para vir a ser um fato de significação definida (política, sígnica,

astronômica).

Impossível aqui não nos remetermos ao sentido do conceito do espaço relacional de

Harvey, no propósito de introduzir, num acréscimo de dimensão ao conceito do absoluto e

do relativo que Newton estabelece como base do pensamento da Física mecânica, um novo

olhar geográfico sobre o espaço, com o claro intuito de referendar no caráter posicional das

localizações o espaço como um ente em movimento.

É quando a grelha das posições faz da distribuição um arranjo espacial. Isto é, um

todo de arrumação dinâmica onde o fenômeno ganha forma geográfica e troca posições

funcionais. E, assim, uma estrutura dinâmica, não uma geometria de pontos fixos, de onde

Brunhes extrai a idéia da organização espacial dos fenômenos como um troca-troca de

cheios e vazios, num ordenamento de arrumação locacional que se refaz continuamente,

uma vez que o que hoje é cheio, amanhã se torna um vazio, e o que é vazio se torna cheio.

É quando o domínio territorial dos fenômenos se redefine e a distribuição vem a se

clarear como uma re-distribuição permanente. E o arranjo, por sua vez, se faz configuração,

um arranjo visto como domínio e ordenamento, a distribuição de localizações olhada pelos

olhares dos sujeitos espaciais.

Aqui se dá o ponto de encontro dos esquemas discursivos de Tricart e Brunhes.

A espacidade

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O olhar da espacidade bloqueou-nos, todavia, a percepção dessa riqueza de

pensamento (Moreira, 2007). Sorre chama insistentemente a atenção para o complexo

(Sorre, 1961). George o sistematiza no conceito da situação (George, 1973). E em Smith

agonicamente explode (Smith, 1988). Mas impediu-nos essa evidência esse reducionismo

do claro e do simples de Descartes dominante na ciência (Prigogine e Stengers, 1984).

A visão moderna do espaço (e do tempo) é uma invenção cartesiana. Sustenta-a uma

certa abstratividade da espacialidade corpórea do fenômeno destinada ao fim de viabilizar a

criação paradigmática da ciência moderna. Caracteriza essa ciência um duplo parâmetro: de

um lado a sua fundação nos dados empíricos da experiência sensível e de um outro no trato

matemático desses dados. Para tanto, era preciso conferir ao mundo do dado empírico a

imanência de um conteúdo intrinsecamente quantitativo, que à investigação científica

bastaria evidenciar num enunciado de clara formulação matemática. O espaço cartesiano é

esse mundo.

É Francis Bacon (1561-1626) o teórico que estabelece a experiência sensível e a

ordenação matemática como pressupostos. Mas é René Descartes (1596-1650) o que

introduz o fundamento geral sem o qual a efetividade do projeto de Bacon não viria a

conhecer a luz da modernidade. Para Bacon é o que diz nossa sensibilidade do corpo a

facticidade empírica a se explicar e compreender. Mas trata-se para ele de um

conhecimento sensível, não ainda o conhecimento. Para tanto, haveria que se corrigir os

equívocos e imprecisões da percepção sensível, traduzindo-os na linguagem precisa e exata

do rigor matemático. Como, todavia, traduzir sentimentos de natureza qualitativa em

números, transformando qualidade em quantidade? Através o uso dos instrumentos de

medição, diz. E como traduzir tudo isso em lei? Através a generalização matemática a que

se chega pelo caminho da indução. Entretanto, foi a Galileu Galilei (1564-1642) que coube

a tarefa de demonstrar a exeqüibilidade do método experimental preconizado por Bacon. E

a Isaac Newton (1642-1727) a de sistematizar no geral o conhecimento adquirido por esse

meio, consolidando-o através a enunciação da lei da gravidade como o paradigma de lei

universal e da Física mecânica como o seu corpus teórico mais acabado.

Coube, porém, a Descartes fundar essa matemática do fundamento e declarar o

espaço como sua forma geral de existência. Descartes, no entanto, mais não está que

contextualizando para o presente a velha metafísica rabínica do espaço – instituída como

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fundamento da constituição do monoteísmo –, trocando seu conteúdo e mantendo seus

atributos gerais para assim refundá-la em forma nova (Moreira, 2007). Na metafísica

rabínica a divindade é o conteúdo do espaço. Deus é um ser universal e único, o mesmo

para toda a humanidade, por seu atributo de ubiqüidade, isto é, pela propriedade de estar em

todos os lugares ao mesmo tempo. E o espaço a sua condição de universalidade. É o

espaço, transformado no corpo de Deus, por sua natureza de uma extensão infinita,

ilimitada e contínua, isto é, uma totalidade isotrópica, sem começo nem fim, e por isso

mesmo absolutamente universal, o ente que vai permitir a Deus a ubiqüidade da

onipresença, onipotência e onisciência em termos cósmicos. Descartes converte essa

metafísica teológica numa metafísica matemática. E Newton vai partir de Descartes para

fundar no discurso do absoluto e do relativo a Física mecânica e com ela instituir o padrão

do que virá a ser o perfil paradigmático da ciência moderna.

Contestam, entretanto, esse conceito Gottfried Leibniz (1646-1716) e Baruch

Spinoza (1632-1677), seus contemporâneos, Spinoza concordando com o fundamento

universal do conceito de Descartes, Leibniz discordando dele completamente. Para

fundamentar seu conceito discordante, Leibniz empreende o retorno ao duplo aristotélico,

enunciando-o na forma da mônada.

A rigor, não há um conceito de espaço na filosofia clássica. Tanto Platão quanto

Aristóteles recolhem o que vem da tradição rabina, a eles chegada por intermédio dos

eleatas, Zenão à frente, Platão no Timeu e Aristóteles na Física. Todavia, é o conceito de

lugar que de fato vemos em Aristóteles. Seu ponto de partida é o espaço como uma

propriedade do corpo, um espaço definido como uma extensão limitada, descontínua e

finita, conformemente com o corpo de que é atributo. Dessa evidência empírica, diz

Aristóteles, é que caminharíamos, mas no plano da lógica, para entender um conceito de

cunho geral: do limitado pode-se inferir o ilimitado, do finito o infinito e do descontínuo o

contínuo, deduzindo do espaço do corpo um espaço que vai de encontro ao conceito

absoluto e isotrópico do antigo rabinato hebreu. É o duplo aristotélico. Leibniz parte do

espaço-corpo de Aristóteles, descartando o espaço-extensão universal. Não há, diz ele, o

espaço isotrópico e universal, de Descartes ou de Aristóteles, uma vez que a matéria se

organiza na forma individual e delimitada das mônadas. Estas são unidades mínimas de

organização da matéria, estruturadas como um campo de forças e dotadas dos atributos da

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potência e ato aristotélicos e assim realizáveis na forma das coisas finitas, limitadas e

descontínuas. Múltiplas ao extremo em suas formas de existência e em permanente

movimento, é o movimento das mônadas que cria o continuum que designamos de espaço-

extensão universal.

É o pensamento cartesiano que vinga, entretanto, mantendo-se como base geral da

ciência moderna até quando recentemente entra em crise como paradigma, o espaço-

geometria de Descartes entrando em crise junto ao pressuposto da matemática como ciência

exata, o conceito de Leibniz vindo por fim a aparecer, junto à emergência da matemática do

caos, da catástrofe e dos fractais (Casanova, 2006).

A geograficidade: a fonte originária do fenômeno geográfico

Tanto Tricart quanto Brunhes ao terem por implícito o espaço como o

entrecruzamento relacional dos fenômenos em sua territorialidade correlativa estão, na

prática, retomando e pondo em tela o problema do paradigma e o paradigma como

problema.

Neles o conceito do espaço é casado com os de natureza e de homem, dos quais

pretende ser um fundamento ontológico, com passagem para a epistemologia. Em suas

leituras visa-se dizer que a natureza e o homem estão a se organizar no espaço (assim como

no tempo). Que o espaço contém, na ordenação territorial da natureza e do homem, as

componentes formacionais e determinantes do modo de existência destes. E isto porque são

eles entes espaciais. Tal qual na metafísica monadológica de Leibniz. Mas a forma tornada

hegemônica tem incompatibilizado o espaço com esse sentido êntico do real-corpóreo.

O espaço tal qual o entendemos é a extensão, o todo antes de mais isotrópico cujos

lugares são localizações e postos na forma de uma trama reticular de distribuição que impõe

aos fenômenos que os ocupam o constrangimento da distância. Esta rede de distâncias faz

então do espaço uma estrutura matemática que do espaço se transfere como estrutura e

organização para os fenômenos, servindo de base seja para o seu tratamento científico e

seja para atuar como o fundamento da lei científica que o rege. A localização pré-determina

os termos do arranjo e movimento espacial dos fenômenos e, como num modelo

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quantitativo natural, a lei como uma trama de constantes matemáticas que à ciência cabe

descobrir.

O sentido posicional que Brunhes empresta à localização põe, pois, esta leitura em

suspenso. A natureza escalar de sua compreensão é o fundamento: a escala mantém a

singularidade da localização, ao tempo que a eleva ao plano que aponta para a

universalidade. De modo que em Brunhes o entrecruzamento posicional é a alavanca dessa

emergência.

O fato é que no sentido posicional, o espaço se torna atributo do fenômeno, visto no

quadro correlativo das localizações. O caráter real da localização não é o ponto geométrico

que se refere a um lugar ocupado pelo fenômeno numa hipotética extensão isotrópica, mas

o que ocupa dentro da trama das interações formadas entre os fenômenos a partir de seus

lugares. Algo que se aproxima da ilação do conceito de Leibniz de que não é o corpo que

está no espaço, mas o espaço que está no corpo, de modo que o espaço extensivo é o que

vem do movimento.

Assentado no âmbito relacional da configuração do conceito lato de Brunhes do

arranjo da distribuição posicional das localizações, o fenômeno concreto passa assim a ter

por conteúdo o que emana do caráter relacional dessa configuração, o caráter das relações

do todo impregnando-o do seu conteúdo. Tricart pensa nestes termos o fenômeno que

analisa. O real-concreto que o fenômeno é, vem do caráter relacional do arranjo

configuracional de que faz parte, ajuda a formar e dentro do qual se move e desloca. É

assim que ele passa e pode para Tricart ser identificado como geomorfológico ou

pedológico, expressões de um ecótopo cujo conteúdo morfopedogenético é aquele que é

dado ao relevo e ao solo pelo jogo regulador da fitoestasia.

Chama-se a isto a geograficidade.

A extensão, a distância e a escala: o plano geográfico da complexidade

A abstratividade matemática do fenômeno, o simples cartesiano transformado em

corpo de ciência por Newton, é posta assim em xeque quando o fenômeno é visto em sua

integral geograficidade, dado o sentido de escala que lhe é próprio. É isto que Tricart

enuncia em seu dito da regulação fitoestásica sobre a tensão ecotópica. Há, porém, que se

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indagar porque se é assim, não foi essa a tradição que vingou na leitura geográfica. Entra

aqui a cultura da espacidade.

É uma característica do construto de Brunhes o caráter implícito da presença da

extensão, da distância e da escala junto às categorias discursivas da sua teoria de Geografia.

Implícito, todavia estruturante do movimento transfigurativo do conceito, que leva a

distribuição pura e simples a sucessivamente transformar-se no conceito mais completo e

complexo da configuração. Por ser um sistema de localizações, a distribuição implica um

âmbito e um marco-limite de abrangência, que é a extensão; por ser relacional e situacional,

uma referência-base do plano reticular das interações, que é a distância; e por ser uma

estrutura de entrecruzamentos, uma seqüência de níveis, que é a escala. É, pois, a escala, a

soma de todas as categorias coagulantes do todo, o elemento que faz do fenômeno um fato

geográfico e o põe de imediato na qualidade de uma estrutura complexa, contrarrestando a

leitura habitual da Geografia como uma descrição lisa, simplória e empirista. Chave da

geograficidade, é a inobservância, pode-se dizer assim, da escala como a categoria de

centro das leituras geográficas, ponto de amarração da metamorfose do fenômeno em fato

geográfico e conceito coagulante da totalidade em Geografia, precisamente essa

inobservância a resposta.

O fato é que embora vista a pele da função axial e de fonte geratriz do próprio modo

de olhar e da linguagem geográficos, a escala raramente é tomada nessa acepção, pelas

razões acima, talvez pelas leituras em geral muito rápidas dos clássicos como Brunhes, mas

por conta de cuja ausência é que vemos o discurso geográfico reduzir-se à condição de

reprodutor do nível do simples e do isócoro do geometrismo cartesiano,

Categoria do ver e do falar por excelência em Geografia, a escala se caracteriza nas

obras de Brunhes e Tricart por seus três significados: o embutimento, a sobreposição e o

entrecruzamento. A visualização da inserção dos pontos da localização no plano horizontal

da distribuição da teoria de Brunhes é um exemplo de embutimento. A relação de ação

regulatória da vegetação sobre as tensões de base da morfogênese e pedogênese que é

passada do plano vertical da biocenose para o ecótopo da teoria de fitoestasia de Tricart é

um exemplo de sobreposição. E a seqüência de interseções entre os planos respectivos das

situações, ainda da teoria de Brunhes, é um exemplo de entrecruzamento. Três dimensões

que de certo modo se hierarquizam: o embutimento está implícito na sobreposição, a

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sobreposição está implícita no entrecruzamento e o entrecruzamento enfeixa o todo,

expressando nesse encaixe toda a complexidade da escala do entrecruzamento posicional

como geograficidade.

Quando Tricart arruma numa superposição de três planos o ecótopo (o par

morfogênese e pedogênese), a cobertura vegetal (o plano da fitoestasia) e o restante da

biocenose (a relação flora-fauna-homem) e os apresenta em sua relação de reciprocidade de

interação, não faz mais que aplicar este conceito em regra. A presença da vegetação,

fixando com suas raízes o solo, prende aos limites do necessário o movimento do processo

morfogenético, agindo assim de cima para baixo. Ao extrair desse mesmo solo os sais

minerais que vai juntar ao carbono que extrai do ar, transformando substâncias inorgânicas

em orgânicas que irão por sua vez alimentar toda a cadeia trófica unindo num processo de

existência os elos que mantêm viva toda a parte restante da biocenose em que se inclui o

próprio homem ao redor da realização de sua vida e subsistência, age por sua vez de baixo

para cima. Posta estrategicamente nessa localização de plano de interseção do biótico e do

abiótico, que no fundo é a relação biótopo-biocenose, a vegetação age para baixo e para

cima e nesse ato embute, sobrepõe e entrecruza tudo e todos os pontos posicionais e elos de

articulação da escala geográfica, compartilhando com a ação do homem todo o governo da

imensa complexidade estrutural que isto significa.

Mas é a espacialidade diferencial de Lacoste o exemplo mais rico da escala do

entrecruzamento posicional como a categoria geográfica da complexidade. Lacoste recorta

o espaço segundo a natureza do fenômeno no que designa de conjunto espacial. Cada

recorte é depois visto no quadro geral dos recortamentos de interseção que cada qual faz

com os demais. O todo desse quadro global de múltiplos entrecruzamentos é o que Lacoste

designa de espacialidade diferencial. Por ser a espacialidade diferencial um plano de

multiplicas interseções, o embutimento e a sobreposição não se fazem aqui num plano

propriamente horizontal, mas como diagonais que se cortam, favorecendo a transformação

do entrelaçamento posicional em um jogo de olhares em que se pode ver cada recorte em

seu plano locacional face os demais, cada recorte servindo de plano de mirante do todo.

Deslocando-se entre esses planos, o olhar do observador obtém então um resultado

paisagístico diferente, cada plano vindo a ser um nível distinto de representação e de

conceitualização. E é isto a escala (Lacoste, 1988).

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Dessa característica que vincula escala e multiplicidade de paisagens, numa

derivação direta da conceitualização subjetiva e temporal do espaço da teoria da

relatividade de Einstein, Lacoste extrai o conceito da escala como um fenômeno

qualitativo, sugerindo um perfil mais qualitativo que quantitativo, sem abandonar o

conceito matemático da tradição propriamente. É assim que propõe uma classificação dos

espaços em sete níveis, que designa de ordens de grandeza, indo da primeira grandeza, o

plano dos conjuntos espaciais da ordem de dezenas de milhares de quilômetros, à sétima, o

plano dos conjuntos espaciais da ordem de metros. Ordens de grandeza que se assemelham

à taxonomia das ordens de meio ambiente de Tricart, incorporando a taxonomia de Georges

Bertrand, onde Tricart distingue, correlativamente às ordens de espaço de Lacoste, zona,

domínio natural, região natural, geossistema, geofácies e geótopo. São duas taxonomias que

parametram no olhar da escala dos entrecruzamentos posicionais o olhar do complexo

geográfico suprimido pelo olhar do mais claro e mais simples do método cartesiano-

newtoniano (sinônimo da abstratividade quantitativa) e pela fragmentação positivista.

Tudo isso vai ao encontro de Sorre, o teórico do complexo por excelência em

Geografia. Dedicado à constituição de uma geografia ecológica, Sorre vê o fenômeno

geográfico como um embutimento, sobreposição e entrecruzamento de complexos, cujo

resultado final é o ecúmeno. Centrado na relação homem-meio, Sorre parte do complexo

alimentar, ao qual entrecruza, como níveis de complexidade igualmente mais simples, o

complexo do vestuário e o complexo das habitações, e mesmo o complexo bélico. Do

complexo alimentar, em função do regime dietético que o dirige, vem, ou pode vir, o

complexo patógeno, num encadeamento alimentação-dietética que vai dar no complexo

nosológico e na fundação da geografia médica. Encima-os o complexo técnico, variável

segundo os gêneros de vida, um todo formado da combinação de hábitos-costumes-meio

que se desdobra em outros tantos complexos, como o complexo agropastoril, fortemente

casado aos primeiros, o complexo industrial-urbano e o complexo das circulações, este

último atravessando e articulando na abrangência todos os demais. São todos eles

complexos encaixados em rede, enfeixados pelas diferentes formas de sociabilidade (a

família, a nação e o Estado) e resultando num ecúmeno humano que é um complexo de

complexos hierarquizados e interligados em rede.

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A complexidade e o todo da superfície terrestre como sentido unitário

Talvez por essa razão Lacoste tenha advogado o que designa projeto unitário: a

unidade fenomênica da superfície terrestre é uma condição necessária a qualquer olhar de

complexidade em Geografia. O alcance do todo pode vir de qualquer de suas partes, mas a

totalidade é a base do real e das explicações.

Todavia, há que pré-estabelecer-se que totalidade de referência ou de alcance está-se

tomando por base. Um estudo de relevo pode tomar o quadro geológico da Terra. Um

estudo de clima o quadro meteorológico. Um estudo de população a sociedade. Seja, como

for, em cada um desses todos é o todo que leva à complexidade como real e parâmetro.

Por tradição e perfil científico, é a relação homem-meio, hoje compreendida como

relação sociedade-natureza, a totalidade de referência dos fenômenos em Geografia. É o

que vemos em Tricart, Brunhes e Sorre, e à qual Lacoste se refere por âmbito do projeto

unitário. Todavia, relação sociedade-natureza vista nos parâmetros dos efeitos de sua

organização espacial. E portanto das determinações da relação sociedade-espaço.

Durante um tempo entendeu-se pensar sociedade-natureza e sociedade-espaço como

um duplo alternativo. Epistemologicamente podia-se centrar o olhar geográfico numa

relação como noutra. Uma leitura mais atenta ao próprio modo como a bibliografia clássica

lidou com estes parâmetros entretanto mostra não se tratar de um duplo, mas de um só

referencial de leitura, a que toma a relação sociedade-natureza (homem-meio ou homem-

natureza, como for preferível designar) como conteúdo – o metabolismo do trabalho e seu

desdobramento na hominização do homem sendo a essência – e a relação sociedade-espaço

como forma determinante. Assim equacionado, o tema da análise geográfica é a

complexidade da relação homem-meio, mas compreendida à luz de como esta relação se dá

e se determina em cada recorte de área da superfície terrestre a partir do modo de

configuração do seu arranjo do espaço (no sentido brunhiano). O ser do homem, um ser

histórico social-natural, eis o que se busca compreender por este viés de relação sociedade-

natureza-espaço (Silva, 1991).

Isto significa que a condição humana começa para as considerações da Geografia na

necessidade do homem transformar a natureza em vida, dar curso ao que é próprio do ser da

natureza que ele é, dependente de alimentar-se, vestir-se e habitar para sobreviver, mas para

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realizá-la na forma que resulta dessa própria ação de ele mesmo transformar a natureza em

meio de sua reprodução como ser vivo, ele como ser social, num movimento de salto do

reino da necessidade para o reino da liberdade. Tudo isso implicando num processo de ação

contínua, repetitiva, dependente agora das condições materiais da repetição permanente,

que, afinal, é a organização do arranjo do espaço, a relação de transformação sociedade-

natureza resolvendo a um só tempo a tarefa da produção dos meios de subsistência e da

produção dos meios de sua reprodução em caráter contínuo e ampliado, e assim se

transformando numa relação sociedade-espaço em que o espaço intervém como condição

de existência e reprodução.

A dialética da complexidade geográfica

O espaço como realização e condição de existência e reprodução, uma relação

travada seminalmente no âmbito metabólico da relação homem-meio, eis em que consiste a

síntese da complexidade em Geografia. A sua forma de dialética. Há uma dialética dos

contrários intrínseca à própria essência da relação homem-meio, a luta pela sobrevivência

do homem-ser-natural, que puxa para dentro de si a organização espacial e se transforma a

si mesma em relação homem-espaço. Uma dialética de dinâmica estrutural tensa. A

contradição homem-natureza se transfere e se elucida na contradição homem-espaço. E o

espaço, um “de dentro” que atua como um “de fora”, vira uma determinação interno-

externo histórica das formas e movimentos da relação sociedade-natureza. Liberdade que

resolve a necessidade, a equação espacial se torna, assim, por si mesma contradição. Seu

arranjo pode determinar a hominização ou bloqueá-la, a depender do seu caráter social.

O modo de produção da sociedade é o modo de produção do seu espaço. E vice-

versa, o modo de produção do espaço é o modo de produção da sociedade. Eis o que, desde

Milton Santos, a análise percuciente das obras e teorias dos clássicos revela (Santos, 1978).

De Brunhes já se infere que o modo do arranjo é o aspecto determinante.

Vimos alhures que a depender da forma como o dado posicional se defina, assim se

definirá a forma da determinação do espaço (Moreira, 2007a e 2007b). Se postas as

localizações numa relação referidas a um centro, passam o arranjo e todo o elenco das

relações a ser vistos por referência a este centro. Se postas numa relação de referência

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equivalente entre si mesmas, passam o arranjo e o todo a ser vistos por referência à

equivalência. Centralidade ou alteridade, hierarquia ou equipolaridade, eis a questão, em

suma. Na condição de centralidade a contradição ganha forma, se explicita e vem à tona.

Na de alteridade, fica latente, se dissolve e se soluciona na própria equirrelação.

É assim que a relação homem-espaço é uma contradição do segundo tipo nas

sociedades comunitárias. E do primeiro tipo na sociedade burguesa. Massimo Quaini e

David Harvey dão a dimensão dessa tensão na sociedade moderna.

Quaini focaliza no momento de instituição da acumulação primitiva a origem do

problema (Quaini, 1979). O processo da acumulação primitiva vai flagar a humanidade no

estágio ainda, in totum ou residualmente, como no caso do feudalismo, do modo

comunitário de vida. O homem está aí em relação de caráter comunitário com os outros

homens e por isso mesmo com a natureza enquanto metabolismo e condição geral de

trabalho e produção. A acumulação primitiva vai quebrar justamente este elo. Ao separar o

homem das condições gerais do trabalho e da produção, a começar do elo estrutural com a

terra, por intermédio da instituição da sua apropriação privada, a acumulação primitiva

dissolve o centro de referência do modo de vida existente e age como o preâmbulo de todo

processo de desapropriação e reapropriação privada dos meios de vida que vai lançar a

sociedade humana nas tensões modernas de classes.

Harvey defronta-se com esta sociedade já constituída e analisa o efeito social do seu

arranjo do espaço (Harvey, 1980). Mostra o modo de determinação desse arranjo desde o

geral da metamorfose do solo em espaço, via os beneficiamentos, no campo como na

cidade, até o específico das acessibilidades urbanas, analisando os efeitos da combinação da

renda monetária e da renda fundiária na cidade, com centro crítico-analítico no conceito da

justiça distributiva territorial.

Dando conta do simples e do complexo em Geografia: a grande e a pequena teoria

A Geografia notabilizou-se no senso público como a ciência da leitura da paisagem,

o saber que descreve e explica o mundo pela dialética do imediato e do mediato, a fusão

dessas vertentes sendo o real-concreto. Pouco se depreendeu, todavia, mesmo quando se lia

com atenção os clássicos, o sentido da complexidade implícito nesse modo de enfoque tão

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simples. Seja como for, mais que uma descrição dos elementos compósitos da paisagem de

um recorte de espaço, como, no geral, e metodologicamente veio a se conceber, seja a partir

da tradição regionalista vidaliana e seja da diferencial de áreas hettneriana, ler a paisagem

sempre significou para o senso público apreender-se em Geografia o fenômeno ali onde ele

se encontra em toda sua complexidade: a superfície terrestre.

Diferentemente do paradigma laboratorial haurido da Física, em Geografia não se

pode analisar o fenômeno por suas referências quantitativas essenciais, “mantidas

constantes as demais condições de ambiente”, isto é abstraindo-se da espessa camada de

relações espaciais em que e como ele existe. O ambiente integral, isto é, a coabitação

espacial – e a coabitação espacial, em toda sua dimensão escalar de entrecruzamento

posicional, é seja para Vidal e seja para Brunhes o si mesmo da análise geográfica –, eis o

foco e o enfoque e o que faz do fenômeno um fato complexo e geográfico.

Como, então, dar conta de uma ordem tão total de complexidade? Fazendo-se,

podemos dizer assim, a passagem necessária da grande teoria para a pequena teoria. O que

significa romper com a cultura da espacidade do simples-claro cartesiano, pondo o foco na

escala. E sobre essa base erigir uma teoria geral em Geografia.

Toda tradição geográfica, gerações a fio, prendeu-se ao paradigma da ciência de

síntese. Se de um lado isto era o ponto de reconhecimento do tema e do caráter de

complexidade do enfoque do real em Geografia, de outro lado era também a instituição do

generalismo como enfoque que lançou o trabalho geográfico num certo grau de

esterilidade. Sabemos que este foi um dos fundamentos da crítica de Schaefer e de todo o

teorético-quantitativismo que o seguiu (Schaefer, 1977; e Christofoletti, 1985). A equação,

no entanto, estava ali perto, nas mãos dos clássicos, criadores de matrizes teórico-

metodológicas, na forma das categorias centrais da Geografia. Quando Milton Santos

observa ter mais importância discutirmos a definição epistemológica do objeto, para ele o

espaço, que a definição ontológica da Geografia – esta viria na medida daquela –, no fundo

era isto que queria dizer.

Que categorias centrais são essas? Eis o cerne do debate. Já de um tempo optamos

por três: a paisagem, o território e o espaço (Moreira, 2007c). A paisagem remete ao

próprio âmbito da superfície terrestre enquanto campo objetual, ao tempo que é a categoria

do empírico-concreto a se dialetizar, isto é elevar-se à concretude, no sentido do concreto

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de Marx, em Geografia (Marx, 1999; e Kosik, 1969). Brunhes oferecera as alternativas de

operar-se essa leitura na direção do que para ele é o concreto em Geografia, a configuração

do espaço, para ele o real-concreto em que a paisagem se transforma enquanto forma

visível da relação sociedade-natureza sócio-naturalmente organizada, apontando para a

localização, a distribuição, a distância, a extensão, a posição, o arranjo, a configuração e a

escala em suas interações como as categorias da leitura. O território teórico-

metodologicamente vem a seguir. É a categoria em que, pelo prisma do domínio, que é

como concebemos território, a paisagem se metamorfoseia no transcurso da leitura, vindo a

converter-se, ao ser lida pelo elenco daquelas categorias (na verdade subcategorias do

espaço), numa configuração de domínios que a um só tempo a explicita e prepara para sua

culminância na estrutura do espaço. O espaço é a culminância, o real-concreto em que, por

intermédio da mediação da relação dominial-territorial, a paisagem, a forma que de início

se apresenta à percepção como modo de aparecimento do real, por fim se explicita e se

transforma no real-real.

É onde o problema do processo de gênese da teoria geral em Geografia – a grande

teoria transformada na teoria geral da particularidade – sobressai-se em toda sua plenitude.

Toda teoria em ciência significa por em relação de transposição a fronteira da

grande teoria e da pequena teoria. Chamo de grande teoria ao referencial mais geral no qual

a ciência vai buscar, enquanto forma particular de conhecimento (a pequena teoria), suas

referências de método e explicação. E de pequena teoria à meta-física particular que daí

resulta.

Mas transpor a grande teoria para o plano da pequena é fazer o pensamento geral

passar pelo filtro crítico da mediação das categorias específicas da pequena teoria, sob cuja

base e forma a teoria mais geral vai se assentar. No caso da Geografia, sujeitar a grande

teoria aos ditames do filtro de mediação da tríade paisagem-território-espaço, já se

considerando o filtro de pente-fino das subcategorias do espaço, que a converterá na forma

vocabular e conceitual da ciência geográfica. Tarefa que parece tão mais fácil quanto mais

haja coincidências do universo categorial da grande teoria e da teoria geográfica – como o

anarquismo para Reclus, o funcionalismo para Vidal, a intuição bergsoniana para Brunhes,

o marxismo para Tricart, a fenomenologia para Yi-Fu Tuan –, mas que se revela canto de

Page 16: Da Espacidade Ao ...[1] de Ruy Moreira

sereia porque sujeita à exigência de se ter os pés firmemente fincados em clara definição de

rol e conceito das categorias centrais da particularidade (Moreira, 2008 e 2009).

E tem sido essa a dificuldade. Como não raro acontece de não se fazer qualquer

distinção entre uma e outra, ocorre de normalmente se transportar a Geografia, a pequena

teoria, para o plano de grande teoria, numa enorme confusão de mediações e campo,

quando é o caminho do movimento inverso de levar a teoria geral, mediada pelas categorias

geográficas, a ganhar o conteúdo e expressão próprios do ver e pensar geográfico, e, assim,

transformar-se de grande teoria numa teoria geral da Geografia, a direção exata.

Ao invés de um mergulho na literatura geográfica de modo a emergir-se dela com

raízes fincadas em seu modo de ver e pensar e assim dominar-se com clareza o movimento

que faz de qualquer fenômeno um fenômeno geográfico, faz-se, ao contrário, todo um

mergulho em toda a literatura do campo da grande teoria geral que se quer de referência,

daí aplicando-se seus conceitos à leitura fenomênica, entendendo-se que se está fazendo

Geografia. A confusão, então se instala, tanto maior quanto mais o olhar formal identifica a

presença na grande teoria das “mesmas“ categorias – a exemplo hoje do espaço e do

território – da pequena teoria geográfica. Assim, se há claro liame do relevo com o

substrato e com as teorias geológicas do Planeta, no lugar de uma geografia do relevo

acabamos fazendo Geologia; do clima com os elementos físicos da atmosfera e a teoria da

termodinâmica, no lugar de uma geografia do clima acabamos fazendo Meteorologia; do

espaço com a ação temporal do homem e a teoria da evolução das sociedades no tempo, no

lugar de uma geografia da organização espaço-temporal das sociedades acabamos fazendo

História. O mesmo equívoco que a muitos tem levado a fazer marxismo no lugar de uma

geografia da ação, crítica literária no lugar de uma geografia da cultura, e assim por diante.

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