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GEOGRAFIA: Teoria e crítica O saber posto em questão Ruy Moreira (org.) O espaço geográfico intervém de modo crescente no esquema da reprodução estrutural do capitalismo, ao mesmo tempo que o saber geográfico permanece ao nível público como uma "práxis" de espaços "apolíticos": a Escola, os Departamentos Universitários e os organismos estatais de pesquisas e planejamento espaço-territorial. Mas a Escola e o Estado encontram-se tão incorporados à reprodução do capitalismo quanto a renovação contínua do aparato técnico- científico, de vez que Escola e Estado têm a mesma raiz da Fábrica: a divisão capitalista do trabalho. Ao despojar o operariado do conjunto dos meios de produção o capital logra separar o trabalho intelectual do trabalho manual e o trabalho de direção do trabalho de execução, se apropria igualmente do sabere do poder. Constitui-se o capital por esta via o senhor moderno dos homens, da natureza, do espaço, da sociedade. O que é então o espaço geográfico e que lugar ocupa na reprodução dos homens e do capital? Que forma de poder é este saber chamado Geografia? Que geografia é a "geografia que se ensina"? Sendo a aula de Geografia a passagem de uma dada "visão de mundo" aos alunos, por gerações sucessivas, uma dada "configuração de sociedade", que concepção de mundo e de sociedade se estará passando nas escolas brasileiras? Que papel ideológico tem cumprido a Geografia?Se não é o planejamento que planeja o capital, antes o capital que planeja o planejamento, como adverte Paul Baran, qual tem sido a função social do geógrafo e do planejamento espaço-territorial? Conferir à Geografia o necessário rigor teórico-epistemológico que se requer a toda ciência, sem contudo esconder o caráter político de todo o saber em uma sociedade estruturada em classes, eis do que trata profusamente este livro. 1

Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

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GEOGRAFIA:Teoria e crítica

O saber posto em questão

Ruy Moreira (org.)

O espaço geográfico intervém de modo crescente no esquema da reprodução estrutural do

capitalismo, ao mesmo tempo que o saber geográfico permanece ao nível público como uma

"práxis" de espaços "apolíticos": a Escola, os Departamentos Universitários e os organismos

estatais de pesquisas e planejamento espaço-territorial. Mas a Escola e o Estado encontram-se tão

incorporados à reprodução do capitalismo quanto a renovação contínua do aparato técnico-

científico, de vez que Escola e Estado têm a mesma raiz da Fábrica: a divisão capitalista do

trabalho. Ao despojar o operariado do conjunto dos meios de produção o capital logra separar o

trabalho intelectual do trabalho manual e o trabalho de direção do trabalho de execução, se

apropria igualmente do sabere do poder. Constitui-se o capital por esta via o senhor moderno dos

homens, da natureza, do espaço, da sociedade. O que é então o espaço geográfico e que lugar ocupa

na reprodução dos homens e do capital?

Que forma de poder é este saber chamado Geografia? Que geografia é a "geografia que se

ensina"? Sendo a aula de Geografia a passagem de uma dada "visão de mundo" aos

alunos, por gerações sucessivas, uma dada "configuração de sociedade", que concepção de mundo e

de sociedade se estará passando nas escolas brasileiras? Que papel ideológico tem cumprido a

Geografia?Se não é o planejamento que planeja o capital, antes o capital que planeja o

planejamento, como adverte Paul Baran, qual tem sido a função social do geógrafo e do

planejamento espaço-territorial?

Conferir à Geografia o necessário rigor teórico-epistemológico que se requer a toda

ciência, sem contudo esconder o caráter político de todo o saber em uma sociedade estruturada em

classes, eis do que trata profusamente este livro.

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INTRODUÇÃO

O SABER GEOGRÁFICO: PARA QUE/QUEM SERVE?

Ruy Moreira

Reúne esta coletânea alguns dos textos de geógrafos brasileiros vindos à luz no

período 1978-1981. Refletindo o plano geral dos anseios de liberdade democrática e

justiça social que conduzem ao extraordinário ascenso político das organizações de massas

operárias e populares — 1978 é o ano das greves no ABC — atravessa-os um certo

propósito de crítica e superação daquela geografia da imagem popular que Yves Lacoste

denomina "geografia do professor" e "geografia dos estados maiores do Estado e do

empresariado".

Não se precisa advertir um tal propósito de conferir ao saber geográfico uma outra

"práxis" — identificada esta com a construção de uma sociedade estruturalmente capaz de

abrir soluções reais à problemática popular, dos homens, para a qual a vigente mostrou-se

historicamente incapaz — cada autor aqui presente formula e situa suas ideias em campos

político-ideológicos nem sempre concordantes, nisto precisamente residindo uma das

riquezas da coletânea.

Não se verá — desnecessário seria dizer, não fora o episódio recente da "nova

geografia" gestada nos anos 1968-1978 — qualquer pretensão de uma "revolução na

geografia". Simplesmente porque só é real a transformação que se opere na estrutura

objetiva da sociedade e com esta esteja incorporada, quando é o tema, as ideias. Antes, é

esta realidade objetiva e seu movimento histórico que se deseja pôr à mesn, submeter à

dissecação, ver revelada sem as máscaras que dissimulam suas raízes de classe.

Neste conjunto de textos se evidencia uma interinfluência, sugerindo um subjacente

debate no fluxo do qual cada autor se põe e repõe, convergindo e se separando, avançando

em conjunto. Mais que isto, sugerindo um plano de indagação ansiosa da história con creta

dos homens, no interior da qual, porque só então expressivo e transparente, se indaga

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acerca do saber geográfico: "a geografia, o que é, para que serve e a quem serve?" Ainda

mais, sugerindo a eleição do caráter histórico-concreto da sociedade de nossos dias e dos

caminhos de sua superação histórica, o contexto da luta de classes, por conseguinte, como

eixo do carroussel em que se movimentam e se refazem o instrumental discursivo da

geografia, seu valor específico, função, envolvimentos. Se porém todos os textos e autores

da coletânea movem-se nesse solo comum, não estão contudo presentes todos os que o

vêm produzindo, advirta-se. São inevitáveis, então, as omissões involuntárias.

Com esta coletânea se divulga, assim, parcela da rica massa já acumulada de

subsídios ao pensamento geográfico gestada por um segmento do saber geográfico em

desenvolvimento recente no Brasil e no exterior.

A sociedade como "práxis", o objeto e seu caráter concreto como condição de

cientificidade, a estrutura interna do discurso (dicotomia ou projeto unitário?), a relação

teoria-epistemologia, as articulações ideologia-política-ciência, tais entre tantas questões as

que atravessam os textos reunidos.

As intenções revelam-se na estrutura do livro. O que aqui se tem é a ampliação de

um propósito inicial de reunir-se em coletânea textos publicados esparsamente em

periódicos os mais variados, e não só geográficos — tornou-se hoje fato corrente revistas

de cultura e política abrirem seus espaços para textos de geografia, a exemplo das revistas

Vozes, Encontros com a Civilização, Contexto, Temas de Ciências Humanas — no biénio

1978-1979, período marcante para o processo de reformulação do pensamento geográfico

em curso. A dificuldade de acesso a tais textos, crescente no tempo, sua dispersão e as

frequentes referências bibliográficas, por si sós justificariam a reedição em livro único.

Porém, a rápida evolução intelectual e político-ideológica que acompanha e promove o

avanço das lutas democráticas no Brasil, com inevitáveis e imediatos reflexos nas ciências,

aconselhou incluirmos alguns de seus próprios desdobramentos posteriores, agora na forma de

estudos concretos da realidade nacional e internacional.

Daí, uma primeira parte reunindo aqueles textos do projeto inicial, seguida de uma

segunda parte reunindo textos de tratamento do real, na verdade um trabalho de releitura

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radical da sociedade.

Todo um largo passo está dado. Que esta coletânea sirva para encurtá-lo e tirar-se o

saber geográfico do casulo dos círculos oficiais e academias. Um instrumento de ação

popular poderoso como o saber geográfico não pode mais continuar usurpado.

GEOGRAFIA, MARXISMO E SUBDESENVOLVIMENTO

Milton Santos

As categorias do pensamento marxista não são inovações em geografia. As razões

pelas quais são raramente discutidas pertencem a dois tipos: 1) o relativo isolamento das

chamadas "escolas nacionais" que ignoram frequentemente os avanços em outras línguas;

e 2) as ideias marxistas nunca alcançaram a marca de uma aprovação

oficial. Os geógrafos marxistas, membros ou não do partido, foram

mais que modestos em citar suas maiores fontes: Marx, Engels, Lenin

ou Rosa Luxemburgo. Provavelmente, esta foi uma forma de evitar serem denominados

"tipos políticos", durante o período em que tal denominação era evitada pêlos académicos.

Esta atitude prevaleceu na França após a Segunda Guerra Mundial. Jean Dresch e

Jean Tricart, antes de serem geomorfólogos, estiveram interessados em tópicos marxistas.

O primeiro estudou o papel dos fluxos de capital na organização do espaço africano e o

segundo estudou a estrutura interna das cidades (ecologia urbana) no contexto do conflito

de classes, a propriedade da terra e o mercado especulativo da terra urbana, isto foi o

resultado da inflação, essencial a esta fase do capitalismo e a exploração das exter-

nalidades (não reconhecidas explicitamente nestes termos, mas financiadas pela coletividade)

através da criação da mais-valia.

Pierre George, leal à tradição da geografia humana francesa, agrupou um certo

número de geógrafos ativistas. Merece o crédito de haver estabelecido a importância das

estruturas sócio-econômicas na explicação geográfica. Suas primeiras publicações sobre

população (1951-1959), geografia social (1946) e seu tratado sobre as cidades (1952)

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demonstram seu esforço em abarcar a dinâmica dos sistemas sócio-econômicos com as

estruturas de produção. A Guerra Fria, sem dúvida, e a invasão da Hungria marcaram um

ponto importante de mudança. Alguns seguiram as linhas marxistas muito discretamente,

enquanto outros a abandonaram. Todavia, esta ideologia sobreviveu. A geografia necessitava,

nesse momento, de uma ideologia coerente.

Os geógrafos "não envolvidos na política" buscavam alguns fundamentos teóricos.

Começavam a adotar, inconscientemente, termos do vocabulário marxista": por exemplo,

acumulação da renda urbana; ou melhor, teses que explicavam a cidade como uma criação

da mais-valia rural. Sem conhecer sua origem, não tiveram dúvidas em usar uma

interpretação marxista da evolução urbana durante o período de transição do feudalismo ao

capitalismo e, inclusive, no contexto do pós-guerra. A noção de "ruralização urbana" que

se aprende na literatura sobre "pequenas cidades'' é também emprestada a Marx (1964, p.

78). Uma reflexão similar pode ser feita em relação à noção de "região urbana" definida

como uma área na qual cidade e campo se complementam através de intercâmbios

bilaterais. Uma frase-chave na geografia francesa e americana é: "Não há cidade sem uma

região, nem há região sem uma cidade." Efetivamente, este foi um cliché desprovido de

significado sólido.

GEOGRAFIA (ESPAÇO) E CATEGORIAS MARXISTAS

As contradições existentes nas extremas concentrações de poder do gigantes

Estados-corporações renovaram o interesse por Marx e seus discípulos (ortodoxos ou não),

como fontes de explicação geográfica (sobre as dimensões geográficas deste problema, ver

Santos 1974, 1975). As desigualdades económicas e sociais, a decrescente participação do

povo na tomada de decisões geram uma alienação social e económica, com importantes

efeitos na organização do espaço. Isto é uma realidade em todas as escalas de observação

geográficas.

Duas importantes questões metodológicas, pelo menos, surgem deste problema:

primeiro, como se pode entender — em termos de variáveis — a totalidade; segundo, como

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se pode interpretar o presente significado de espaço em termos de tempo acumulado. A

noção de totalidade somente pode ser relacionada com o mundo como um todo. Por outro

lado, o espaço nacional é contínuo, como o é o espaço de suas partes, e assim a noção de

escala é fundamental. Os elementos definidores do espaço, conseqüentemente, deveriam ser

considerados como variáveis cuja natureza e significação variam segundo o nível (de espaço)

considerado. O problema da delimitação espacial assume outra dimensão, já que cada uma

das partes é supostamente uma réplica da totalidade. Este objetivo torna-se particularmente

difícil já que a geografia, com seus esforços de especialização, fragmentou-se e tem

fragmentado também a realidade que ela estuda. Ao selecionar várias ideias de diferentes

fontes, a geografia burguesa foi incapaz de interpretar o todo. Em muitos casos, poder-se-ia

dizer que esta foi uma ignorância deliberada.

Por outro lado, quando se têm explicado os aspectos dinâmicos da geografia, a

noção de sistemas "espácio-temporais" tem sido utilizada, mas geralmente espaço e tempo

têm sido considerados como categorias independentes, infelizmente, a significação do tempo

não foi bem fundamentada, e a perspectiva transtemporal foi escassamente desenvolvida,

até um ponto em que, não obstante, os modelos de difusão permaneceram medíocres.

O que se pode dizer sobre o presente? Isso é muito difícil hoje, quando, segundo M.

Dobb (1963, p. 12), o tempo de mudança é "normalmente acelerado". Tais fases

revolucionárias representam transições entre períodos históricos. Contudo, é muito mais

conveniente lidar com ritmos temporais (sistemas), que são relativamente definíveis em

termos de períodos de rupturas. A velocidade da mudança aumenta a amplitude do

desconhecido e pode encobrir a hierarquia real de variáveis em um mundo caracterizado

pela instabilidade.

Estas dificuldades significam um desafio. Não se pode aplicar a análise marxista à

interpretação do espaço enquanto aquelas categorias marxistas relacionadas com a

geografia não forem opera-cionalizantes. Isto significa que não se pode usar categorias

convencionais, já que não serão obtidas em textos oficiais.

Noções marxistas, como a de mais-valia, podem ser aplicadas, como o fez Harvey

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(1976), a situações sociais empíricas. É neste sentido que Harvey assinalou certas

debilidades fundamentais da teoria da renda da terra (Alonso 1964). Outras ideias

poderiam ser similarmente aplicadas: por exemplo, a acumulação e circulação do capital; o

impacto da inovação no capital monetário, capital fixo e capital circulante; valor de uso e

valor de troca; medo e estrutura da produção; estrutura de classes; . . . são todas categorias

que podem ser levadas à linguagem espacial ou geográfica.

Os êxitos alcançados por autores com Harvey, Bunge, Eichen-baum e outros, na

investigação da estrutura interna de classes, deveriam ser seguidos por estudos similares

sobre externalidades, ou a natureza integral do espaço. Isto pressupõe algumas questões

metodológicas. A unidade fundamental para o estudo geográfico deveria ser a Nação-Estado,

Não se pode dissociar a noção de sistema da noção de um sistema de estruturas (Santos

1974). Nesta perspectiva, poder-se-ia utilizar todo o poder explicativo das múltiplas forças

dialéticas no espaço. Se o espaço é concebido como um todo, "enïão a distinção artificial

entre "espaço económico" e "espaço geográfico" poderia ser abolida (Santos 1971, 1974a).

Dever-se-ia conceber o espaço como um todo e não como um espaço aristocrático onde os

fluxos estudados são unicamente aqueles das grandes empresas e população burguesa. Isto

produziria uma verdadeira geografia da pobreza, uma geografia onde riqueza e pobreza não

fossem tratadas como entidades separadas, mas como partes complementares de uma só

realidade.

UM ESPAÇO SUBDESENVOLVIDO?

A geografia dos países desenvolvidos coloca a questão de como definir o espaço. É

possível chegar a uma definição universal de espaço, como um tipo de chave-mestra? A

geografia burguesa tentou fazê-lo: o subdesenvolvimento foi simplesmente um apêndice ou

um capítulo suplementar nos manuais "gerais".

(Sem dúvida, aquelas variáveis formadoras do espaço e suas combinações, as quais

originam as diferenças entre lugares, são universalmente as mesmas. O problema é

descobrir se estas combinações se manifestam espacialmente e se sua manifestação é a

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mesma no centro e na periferia do sistema mundial. Neste sentido, pelo menos três

aspectos são essenciais: 1) aquelas forças que promovem a modernização e operam no

centro do sistema não alcançam a periferia ao mesmo tempo; existe um efeito decrescente

definido da distância. Isto poderia explicar historicamente a acumulação do capital no

sistema capitalista, as variações entre países e as desigualdades regionais dentro dos

países; 2) alguns pontos no espaço são alcançados por novas forças, enquanto outros não

recebem tais impactos. Sem dúvida, esses impactos não se dão ao acaso, sendo dirigidos

do centro do sistema em termos de máxima produtividade. A história do espaço é assim de

tipo seletivo; 3) as forças emitidas dos centros (pólos) mudam à medida que alcançam a

periferia. Ainda que se possa encontrar isomorfismo, o valor do fenómeno é diferente. Por

exemplo, a noção de "cidade privada" na França, ou de "metrópole incompleta" nos

Estados Unidos e Alemanha, não pode ser interpretada da mesma forma nos países sub­

desenvolvidos.

O "espaço subdesenvolvido" tem um caráter específico: as prioridades de

importância variam, mesmo quando operam as mesmas forças, já que suas combinações e

resultados são diferentes. É algo que os geógrafos ocidentais têm tido grande dificuldade

em entender. Por que nós não podemos, então, reunir a experiência surgida nos países

subdesenvolvidos: desenvolver teorias que tenham sentido tanto para os geógrafos como

para os cidadãos? A malmente, a geografia "oficial" funciona como se o Ocidente tivesse o

monopólio das ideias. Além disso, há muitos geógrafos do Terceiro Mundo que preferem

permanecer silenciosos: sem dúvida, existem geógrafos ocidentais que estão começando a

repensar muitos problemas do Terceiro Mundo. Isto é muito importante, já que nós não te­

mos uma ideologia global que possa ser aplicada aos países subdesenvolvidos. Há um

risco, então, de superpor categorias marxistas sobre uma superfície débil.

É urgente que uma teoria seja formulada: e o método dialético é adequado para um

contexto onde múltiplas forças externas e internas, passadas e presentes, políticas,

económicas e sociais, se enfrentam constantemente.

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AS FRENTES DO AVANÇO

Participar de uma renovação radical da geografia é um desafio tentador. Isto

provavelmente explica o entusiasmo com que este tó pico é considerado nos Estados

Unidos, Grã-Bretanha e Françaa. Alguns, sem dúvida, não apreciaram a seriedade desse

trabalho. Algumas observações sobre este assunto são aqui sugeridas em formas de

conclusão.

Este movimento é bem-vindo por diversas razões: permite-nos reconhecer a

hegemonia que a chamada "revolução quantitativa" tem mantido no recente

desenvolvimento da geografia. Pode-se, assim, denunciar este tipo de dogmatismo científico

que está mais interessado na verificação de hipóteses que na fonte e natureza destas

hipóteses (J. Doherty 1974, p. 10). Este tipo de arrogância ("o mais destrutivo de todos os

vícios académicos" — Freeman 1961, p. 38) não conduz a nenhum tipo de progresso.

Pode-se denunciar também o uso de linguagens obscuras (o leitor fica com a impressão de

que está dirigida somente a pessoas realmente científicas). Liberados de tais vícios, pode

ser mais fácil impedir a formação de clichés, os quais se sustém através de recíprocos

rituais de citações bibliográficas e proceder sob a forma de discussões abertas. O marxismo

permanecerá empobrecido até que tal situação seja alcançada. Tem-se que afastar, é claro,

exercícios puramente académicos. As citações bibliográficas são úteis para dar embasamento

a uma ideia ou explicá-la melhor, mas não têm valor intrínseco em si mesmas. É bastante

ridículo ver como alguns autores citam cegamente Marx, Engels, Lenin e Rosa

Luxemburgo, geralmente fora de contexto.

Uma boa coleção de enunciados não tem necessariamente maior significação:

"Elegância não significa relevância"; uma sofisticada demonstração de um problema não é

necessariamente melhor que uma explicação simples. A sociologia latino-americana tem

sido vítima de uma "diarreia retórica" — tal como Aníbal Quijano (1973,

p. 46) a tem criticado: "Se somos incapazes de abandonar esta

atitude persistente de discutir nossos problemas em termos ideológicos. . . Eu creio, tu crês,

nós cremos, Lenin pensou, Trotsky creu, Stalin afirmou, Mão disse. . . será impossível fazer

algum progresso."

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Finalmente, não é suficiente seguir uma corrente que possa resultar simplesmente

em outra moda passageira. Tem-se que sele-cionar os aspectos mais apropriados e úteis aos

estudos geográficos: aspectos apropriados à realidade do presente e ao caráter espacial dos

lugares. Por outro lado, não se deve vacilar em usar todas as evidências — históricas,

filosóficas ou empíricas — porque o perigo de ser dogmático estará sempre presente. O

valor de tais instrumentos de análise será julgado dentro de um contexto de ação social e a

partir de uma perspectiva dialética. O risco de converter-mo-nos em inúteis é também

herdado do marxismo clássico. A crítica que Engels fez a Buchner, Vogt e Moleschott não

se baseava (de acordo com Lenin 1967, p. 227) no fato de que estivessem em desacordo

com Marx, mas no fato de que eles foram "materialistas vulgares": não desenvolveram

uma teoria maior que a de seus mestres.

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A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR MÁSCARAS SOCIAIS

Ruy Moreira

distinguir a essência nas aparências..." (Marx)

Nelson Werneck Sodré chamou atenção, em livro recente', para o uso ideológico

da geografia pelo capitalismo no decorrer do colonialismo e do imperialismo. Mas o que

nele expõe, acerca do determinismo geográfico e da geopolítica, nem de longe se

compara com a manipulação, de que é hoje objeto o espaço geográfico, denunciada por

Yves Lacoste.

Usando a paisagem com fins turísticos; projetando "obras de impacto" em áreas

estratégicas; confinando ideias cívicas à unidade espacial Estado-Nação; planejando a

exploração e consumo de recursos naturais; redistribuindo populações faveladas (viveiros de

mão-de-obra) para áreas destinadas à implantação de distritos industriais; fabricando

imagens de lazer e conforto com áreas verdes, sol, sal e mar para forjar venda de imóveis

de fachadas e nomes pomposos, ou marcas de cigarros; manobrando as articulações do

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complicado tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial; espraiando os tentáculos desses

polvos gulosos e insaciáveis eufemisticamente chamados multinacionais; tais são alguns

exemplos dessa interminável lista de maneiras que o capital encontrou de usar o espaço

geográfico como instrumento de acumulação e poder.

O capital descobriu o espaço geográfico. Resta saber quando o descobrirão os que

se opõem à sua ditadura.

Ora, como afirma Lacoste: "Toda a gente julga que a geografia mais não é que uma

disciplina escolar e universitária cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do

mundo, dentro de uma certa concepção 'desinteressada' da cultura dita geral. . . Pois qual

poderia ser a utilidade daquelas frases soltas das lições que era necessário aprender na

escola? ( . . . ) A função ideológica essencial do palavreado da geografia escolar e

universitária foi sobretudo de mascarar, através de processos que não são evidentes, a

utilidade prática da análise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, assim como

para a organização do Estado e a prática do poder. É, sobretudo, a partir do momento em

que surge como 'inútil', que o palavreado da geografia exerce sua função mistificadora mais

eficaz, pois a crítica de seus fins 'neutros' e 'inocentes' parece supérflua. ( . . . ) É por isso

que é particularmente importante ( . . . ) desmascarar uma das funções estratégicas

essenciais e demonstrar os subterfúgios que a fazem passar por simples e inútil"3.

Mas se é uma necessidade cada vez mais premente tomar a tarefa do estudo do

espaço geográfico, para uma maior compreensão dos processos sociais gerais das formações

econômico-sociais contemporâneas, porquanto o espaço geográfico torna-se mais e mais um

elemento importante nesse processo, esta necessidade lança por outro lado um desafio aos

cientistas e estudiosos de geografia.

Definida como a ciência da organização do espaço, a geografia até agora

negligenciou seu próprio fundamento de cientificidade. Desprestigiados por todos quantos

preocupam-se com as questões da teoria e da prática da transformação social, os geógrafos

não alcançaram o quanto o desprestígio reflete uma incómoda realidade. Os geógrafos não

perceberam que o que lhes falta é pôr os pés no seu próprio chão, e, então, propor uma

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Page 14: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

teoria do espaço, que seja uma teoria social.

Este texto propõe-se a sugerir alguns pontos de reflexão para uma teoria do espaço,

considerando o autor ser este um projeto prioritá rio no campo da teoria da transformação

social para todos aqueles que pretendam conduzir a geografia ao encontro das

necessidades mais prementes de nossa época.

1. OS TERMOS DA QUESTÃO

Yves Lacoste intitulou seu livro recente: A geografia Serve Antes de Mais Nada para

Fazer a guerra. Diríamos, alargando o significado desse enunciado, que a geografia, através

da análise dialética do arranjo do espaço, serve para desvendar máscaras sociais, vale dizer,

para desvendar as relações de classes que produzem esse arranjo. É nossa opinião que por

detrás de todo arranjo espacial estão relações sociais, que nas condições históricas do

presente são relações de classes.

Com isso, afirmamos que espaço é história, estatuto epistemoló-gico sobre o qual a

geografia deve erigir-se como ciência, se pretende prestar-se a alguma utilidade na

prática da transformação social. JE tal noção reside não na mera constatação de que a

história desenrola-se no espaço geográfico, mas, antes que tudo, de que .p espaço

geográfico é parte fundamental do processo de produção social e do mecanismo de

controle da sociedade.

Conseqüentemente, afirmamos também que o espaço geográfico tem uma natureza

social, do que deriva que a geografia é uma ciência social.

Compreendido como parte fundamental em uma formação econômico-social de

dois processos articulados que lhe são vitais, o de produção social e o de controle de suas

instituições e relações de classes, o espaço é uma entidade de rico tratamento científico.

Tal compreensão parte do pressuposto de que ao incorporar-se o "espaço físico",

que doravante chamaremos de "primeira natureza", ao processo de gênese e

14

Page 15: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

desenvolvimento de uma dada formação econômico-social, inicia-se a formação de um

espaço geográfico, uma "segunda natureza", dizia Marx tomando a expressão a Feuerbach,

que nada mais é que a própria formação econômico-social.

Ora, a origem, em última análise, das sociedades, é o processo social de

transformação da natureza em meios de subsistência e de produção. [Ocorrendo numa

sociedade de classes, tanto o processo de produção quanto o de distribuição dos bens

produzidos estão sujeitos aos condicionamentos das formas como se travam as relações

entre as classes sociais. Motivo pelo qual Marx propôs a fórmula segundo a qual "o motor

da história são as lutas de classes".

O que afirmamos, então, é que o arranjo espacial brota tanto do processo de

produção-distribuição, quanto do controle que se exerce sobre as relações existentes entre

as classes. Como o processo de produção-distribuição se faz sob o condicionamento das

formas como se travam as relações entre as classes, pode-se afirmar que o arranjo

espacial, na verdade, numa sociedade de classes, reproduz em síntese as relações de

classes da formação econômico-social.

Vimos que o processo formador do espaço geográfico é o mesmo da formação

econômico-social. Por isso, tem por estrutura e leis de movimentos a própria estrutura e leis

de movimentos da formação econômico-social. Podemos, com isso, doravante designar o

que até agora chamamos de organização do espaço por formação espacial, ou for-jtnação

sócio-espacial, como propôs Milton Santos".

Confundindo-se com a formação econômico-social, a formação espacial contém

sua estrutura e nela está contida, numa relação dialé-tica que nos permite, através do

conhecimento da estrutura e movimentos da formação espacial, conhecer a estrutura e

movimentos da formação econômico-social, e vice-versa. Fato de fundamental importância

ao estudo da formação espacial e da destinação desse estudo ao conhecimento da

formação cconômicc-social. Chave da inserção da geografia e dos geógrafos no campo da

teoria e prática da transformação social no sentido da resolução dos problemas mais

candentes de nossa época, ao lado dos demais estudiosos sociais.

15

Page 16: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

É fácil perceber-se, por exemplo, através de elementos do arranjo espacial (objetos

espaciais), a fusão do espaço com as instâncias que compõem a estrutura da formação

eeonômíco-social, como a fábríca (instância econômica), o tribunal (instância jurídico-

política) e a Igreja (instância ideológica). Fica evidente, portanto, que tais elementos

dcTãiranjo espacial não se encontram "soltos" no espaço, pois -inserem-se numa lógica de

arranjo espacial que reproduz a própria lógica do modo de produção a que pertencem.

A fábrica moderna, por exemplo, jamais seria um objeto espacial encontrado na

paisagem de uma formação econômico-social feudal. Mas, se pode ser encontrado na

paisagem tanto de uma formação econômico-social capitalista, quanto na de uma formação

econômico-social socialista, em cada qual tem um significado próprio, significado que só

pode ser apreendido quando visto no interior da totalidade social de que faz parte. Desligado

da sua totalidade social, um objeto espacial, e, por extensão, um arranjo espacial, perde

completamente sua expressão e seu valor analítico de uma formação espacial ou uma

formação econômico-social.

Observe-se, contudo, que o significado dado a um objeto espacial ou um arranjo espacial

por uma totalidade social, é dado, em última e primeira análise, pelo caráter das relações

sociais de classes dessa totalidade social. Nunca pela cultura, como tornou-se voga pelas

mãos da antropologia funcionalista-culturalista ou da filosofia da escola neo-hegeliana de

Frankfurt. O contexto em que qualquer dado ganha sua expressão não é o contexto cultural,

mas o contexto das relações sociais de classes, do qual deriva o próprio contexto cultural.

Se por um lado a presença da fábrica na paisagem sugere revelações sobre o grau de

relacionamento do homem com o seu meio físico, daí sua ausência na paisagem de uma

formação espacial feudal, por refletir determinado estágio de desenvolvimento das forças

produtivas, o mesmo para as formações espaciais capitalista e socialista por exemplo, por

outro lado seu significado e papel na dinâmica do espaço só podem ser apreendidos na

medida em que se distingam as relações sociais que a originaram e comandam: capitalistas

numa formação espacial, socialistas, noutra.

Assim, desde que conceituado nos quadros de uma teoria do espaço geográfico

16

Page 17: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

submetida ao rigor epistemológico necessário e da compreensão de que a geografia é, por

origem, uma ciência social, por construir-se sobre um objeto de natureza historicamente

determinada (o espaço), e, que, portanto, seus objetos (os objetos espaciais), como a

fábrica do nosso exemplo acima, tiram seu significado da natureza da totalidade social de

que fazem parte, perdendo totalmente sua expressão quando isolado dessa totalidade, o

arranjo espacial pode e deve ser transformado numa categoria de análise, de fundamental

valor para a análise do espaço. Por extensão, de cada formação econômico-social, como deve

ser o objetivo da Geografia e do geógrafo.

Ora, como vimos que o arranjo espacial é a própria estrutura da totalidade social, e

como na base dessa estrutura está a natureza do processo de reprodução social, é no

conhecimento das leis que regem este processo de reprodução que deve se apoiar a análise

do espaço.

Como, face à sua natureza, pode-se partir do arranjo espacial para o conhecimento

das leis da reprodução social, ou vice-versa, há aí uma flexibilidade de alta importância

para o geógrafo. O importante é que sempre se tenha em vista a necessária relação entre

arranjo espacial e o processo de produção social.

2. OBJETO E OBJETIVO DA GEOGRAFIA

O espaço é o objeto da geografia, o conhecimento da natureza e leis dos

movimentos da formação econômico-social é o seu objetivo. O espaço geográfico é o

espaço interdisciplinar da geografia. É a categoria por intermédio da qual se busca

apreender os movimentos do todo: a formação econômico-social.

A noção de espaço como "chão" da geografia é, certamente, um tema que perpassa

todos os discursos geográficos em todos os tempos, tal como se pode aferir duma simples

17

Page 18: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

confrontação da maneira como a vêm definindo os geógrafos.

Os gregos definiam a geografia em seu sentido etimológico, como "descrição da

terra", em termos de um enciclopedismo que era fruto de sua visão sistémica dos

fenómenos. O objeto da geografia seriam os fenômenos passados na superfície terrestre,

mas como estes tinham sua génese numa escala fenomenológica que transcendia a epiderme

do Planeta, suas dimensões eram cósmicas.

Esta foi a herança que arrastou-se até o século XVIII e desenvolvida por Estrabão,

Ibn Khaldun, Cuverius, Avenarius, cada qual alargando apenas o campo de conhecimento e

esboçando uma primeira sistematização da ciência.

O ^período científico" que toma lugar no século XVIII ao "período de coleta e

classificação", inicia-se com J. R. e J. G. Forster, alemães11, ganhando crescente expressão a

noção de "estudo da relação homem-meio". A partir de então, as concepções teóricas da

geografia deixam-se prender pela armadilha de falsas questões, como a querela determinismo

ratzeliano e possibilismo lablacheano. É nesse período que são lançados os alicerces da

"geografia científica", como o primeiro grande esforço de enquadramento epistemológico

das ciências em geral, e da geografia em particular, por Kant que a lecionou por 40 anos

(de 1756 a 1796) na Universidade de Kõnigsberg, e o arrolamento de seus "princípios" com

Humboldt e Ritter.

Ganham corpo nesta época as "armadilhas epistemológicas" que ainda hoje lançam

a geografia em contradições e impasses, diligentemente cultivados pêlos geógrafos. Com

Kant nascem as noções de "ciência de descrição" e "ciência de síntese", e com os "pre­

cursores" as encruzilhadas dicotômicas 'homem-meio" e "geral-regional", noções dualistas

que têm prestado enormes desserviços à geografia como ciência social.

Durante toda a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, por quase

um século, o pensamento geográfico girou em torno de suas matrizes: a escola francesa e a

escola alemã, multiplicando-se as definições, em todas as quais o espaço está implícito. La

Blache define-a como "o estudo dos lugares", e não dos homens, e Hettner define-a como

"estudo das diferenciações de áreas". Delas, Carl Sauer, nos Estados Unidos, extrai a

18

Page 19: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

definição"" de "estudo das paisagens", nascendo o que veio a chamar-se "geografia cultural",

talvez pretendendo fugir à dicotomia homem-meio.

Continuador conspícuo da tradição francesa, Pierre George, marxista até seu

rompimento em 1956, define a geografia como "estudo da organização do espaço pelo

homem", refletindo a influência de F. Perreux e de seus trabalhos sobre a economia espacial,

particularmente de sua teoria de pólos de crescimento. Este geógrafo repre senta, em nossa

opinião, o estágio de maior destrinçamento das "armadilhas epistemológicas" aludidas atrás,

até o surgimento recente das novas tendências, ainda fragmentárias e nascidas sob marcada

influência do marxismo pós-estalinista, que encontramos representadas em trabalhos

publicados nas revistas Espace et Soclété, Hé-rodote (dirigida por Lacoste) e Antipode

(americana).

Não é nosso intuito traçar um retrospecto da evolução do pensamento geográfico,

embora seja nossa opinião de que é hoje uma necessidade das mais prementes o

desenvolvimento de trabalhos histórico-críticos sobre o saber geográfico.

Mas se o espaço foi sempre o "chão" desse saber, como se explica não ter sido

notado, dotado do mínimo rigor teórico e epistemológico, e usado como instrumento de

conhecimento e transformação das sociedades? Questões que, para os geógrafos, são ainda

mais desafiantes, quando se observa que o espaço é hoje tema comum nos trabalhos das

demais ciências sociais, como a economia, a sociologia e a antropologia. Quando se

observa que o espaço foi descoberto pelo capital como instrumento de acumulação e poder.

3. A GEOGRAFIA É UMA CIÊNCIA SOCIAL

Tendo por objeto uma categoria de natureza social, a natureza científica da

geografia fica determinada pela natureza do seu objeto. Ora, o espaço é essencialmente um

espaço social.

19

Page 20: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Pelo que já se deu a entender, o espaço não é "suporte", "substrato" ou

"receptáculo" das ações humanas, não se confunde com o "espaço físico". O espaço

geográfico é um "espaço produzido", uma formação espacial.

Mas a "primeira natureza" não é mera parte integrante da formação espacial. É uma

condição concreta de sua existência social e isto por ser uma condição concreta da

existência social dos homens. Conquanto a "primeira natureza" não seja o espaço geográ­

fico, não há no entanto espaço geográfico sem ela.

Sobre este assunto, que merece de uma teoria do espaço viva

atenção, vale lembrar que de todos os objetos existentes num ar- ranjo espacial os de

ordem natural são os únicos que não derivam do trabalho social.

Ora, a "primeira natureza" somente é incorporada ao espaço geográfico quando

absorvida pelo processo da história. Daí decorre que sua importância geográfica resulta

sobretudo do fato de situar-se no próprio âmago da natureza social do espaço, sendo este

âmago o trabalho social. A "primeira natureza" integra a base material da sociedade.

4. O ESPAÇO COMO ESPAÇO SOCIAL

A natureza social do espaço geográfico decorre do fato simples de que os homens

têm fome, sede e frio, necessidades de ordem física decorrentes de pertencer o homem ao

reino animal, ponte de sua dimensão cósmica. No entanto, à diferença do animal, o homem

consegue os bens de que necessita intervindo na "primeira natureza", transformando-a.

Transformando o meio natural, o homem transforma-se a si mesmo. Ora, como a obra de

transformação do meio é uma realização necessariamente dependente do trabalho social

(a ação organizada da coletividade dos homens), é o trabalho social o agente de mutação

do homem, de um "ser animal" para um "ser social", combinando estes dois momentos

em todo o decorrer da história humana.

Decorre, então, que a formação espacial, na verdade a formação econômico-

social, deriva de um duplo conjunto de interações, necessariamente articuladas: a) o

20

Page 21: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

conjunto das interações homem-meio, erroneamente denominadas "relações geográficas"; e,

b) o conjunto das interações homem-homem, as relações sociais.

Tais interações ocorrem simultânea e articuladamente, sendo, na verdade, duas

faces de um mesmo processo. Aqui são vistas como "duplo conjunto" apenas para

encaminharmos a crítica a um dos postulados básicos da geografia clássica: o de que a

geografia é o "estudo da relação homem-meio". Expressão que originou formas correlatas

do tipo "base geográfica da história", com que o senso comum manifesta a imagem que

tem da geografia. A decomposição dessas interações em "interação homem-meio" e

"interação ho-mem-homem" é um dualismo perigoso, embora estejamos aqui correndo este

risco ao buscarmos forma mais simples (simplista?) de crítica ao clássico "dualismo físico-

humano".

O caráter simultâneo e articulado dessas interações pode ser expresso nos seguintes

termos: os homens entram em relação com o meio natural, através das relações sociais

travadas por eles no processo de produção dos bens materiais necessários à existência. En-

gels já observava que os homens entram em relações uns com os outros através de

"coisas". No caso, não haveria relações sociais, se não houvesse a necessidade de os

homens transformarem por via do trabalho social o meio natural em meio de subsistência

ou de a este chegarem.

Decorre do exposto que é o processo de produção dos bens necessários à existência

humana, no bojo do qual se dão tais interações, que lhes confere unidade.

Eis por que achamos que toda análise do que chamamos formação espacial

confunde-se com a análise do processo de produção. Vejamos isto em termos breves.

A consecução dos bens de subsistência humana implica numa intervenção do homem

em seu meio natural, inicialmente sob a forma de extração e a seguir sob a forma de uma

transformação crescentemente complexa, do ponto de vista da história. Eis a origem da

"primeira" forma de interações: a relação homem-meio.

Ocorre que esta consecução dos bens, seja pela forma mais primitiva ou seja pelo

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Page 22: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

ato mais complexo de transformação do meio natural em produtos, é uma tarefa que

transcende ao trabalho individual do homem, sobretudo face à crescente complexidade que

adquire mais e mais no tempo o processo de produção por realizar-se sob a dependência de

emprego de forças produtivas crescentemente mais evoluídas. Implica, pois, numa divisão

de trabalho. Em trabalho social.

Ora, trabalho social significa o travamento de relações entre os homens que se

reúnem para o ato de produzir. Por exemplo, implica uma divisão de trabalho definir-se o

que produzir e o volume do que se vai produzir e ainda um modo de repartição da riqueza

coletivamente produzida. Implica, pois, em determinadas relações sociais. Eis a origem da

"segunda" forma de interações: as relações homem-homem.

São todas estas interações que estão na base da origem e evolução das formações

espaciais que se sucederam no tempo.

O discurso geográfico clássico, não só lablacheano, só viu a "primeira" forma de

interações, não percebendo ou evitando perceber, que a relação homem-meio é, antes de

tudo, uma relação social. Não é de estranhar que esta concepção de geografia só tenda à

dicotomia entre os "lados" da relação. Afinal, o que exprime o termo "homem" senão

aquilo que Pierre George frequentemente chama de "co-letividade humana" do lugar,

reproduzindo o discurso clássico, expressão que os geógrafos reduziram ao significado

demográfico mais simples: o de quantidade de homens. Expressão que esconde a natureza

dos fenómenos espaciais de totalidade estruturada das relações sociais estabelecidas pêlos

homens no decurso do trabalho social.

Daí, concepções nada geográficas, em verdade, como "estudo das relações homem-

meio" ou "charneira entre o físico e o social", e toda uma série de distorções de cunho

epistemológico. Verdadeiras "armadilhas epistemológicas" em que os geógrafos vêm

incorrendo insistentemente, sem perceberem ou fazendo vistas grossas ao fato de que elas

desviam a epistemologia geográfica do seu real terreno. De que a falsa dicotomia "físico-

humana" só serve para esconder a natureza social da geografia e do seu objeto; de que a

falsa querela "determinismo x possibilismo" só serve para desviar os geógrafos do emprego

22

Page 23: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

da categoria "determinações"; de que a falsa dicotomia "geografia geral-geografia

regional" só serve para afastar a geografia da lógica dialética, atrelando-a à lógica formal e ao

kantismo.

"Armadilhas epistemológicas" que tiveram o papel de manterem a geografia como o

último reduto do positivismo nas ciências sociais e de, por consequência, torná-la a única

ciência social refratária ao marxismo, ao emprego do materialismo dialético e histórico como

bússola.

Daí, a ausência de qualquer postura crítica e atuante, científica e consequente,

perante a "sociedade global" por parte dos geógrafos e da geografia, demonstrando uma

ridícula indiferença ou arrogância para com os fenómenos sociais, "coisas carentes de rigor

científico".

Parece-nos pertinente, por estas razões, propormos tomarí a geografia como sendo

a ciência de análise das formações espaciais que adquirem as relações sociais de dada

jormacão econômico-social

5. ESPAÇO SOCIAL E ESPAÇO TEMPO

Todo objeto tem uma dupla dimensão: a espacial e a temporal. E se os geógrafos,

por força da natureza mesma de sua disciplina, não puderem abstrair-se por completo do

espaço, substituindo-o pela ambígua noção de "relação homem-meio", o fizeram com o

tempo. Daí o espaço geográfico ter-se tornado, no dizer de Foucault, um espaço

"congelado"20. Durante todo o tempo os geógrafos trabalharam seu objeto escamoteando-o

e tendo uma noção do tempo, quando tinham, mecanicista, evolucionista. Ao separarem o

espaço do tempo, pagaram seu tributo ao kantismo; ao desprezarem a histo-ricização do

espaço geográfico, pagaram seu tributo ao positivismo (geografia clássica) e ao

neopositivismo (new geography).

Ora, o tempo não é só movimento, mas movimento dialético. Movimento que

combina continuidade e descontinuidade, estabelecendo uma periodização na qual cada

23

Page 24: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

período caracteriza-se por formas historicamente específicas de relações de produção. Daí

a importância de se utilizar a categoria dos modos de produção nos estudos espaciais.

A introdução da dialética espaco-tempo nos estudos de geografia é fundamental

para compreender-se as leis de movimentos das formações espaciais e seu conteúdo

histórico. Sem ela, a noção de arranjo espacial torna-se uma noção estática, meramente de

"estrutura" da formação espacial.

Somente através da dialética espaço-tempo podemos acompanhar os processos e os

estágios de desenvolvimento das formações espaciais, no interior dos quais encontraremos

diferentes estágios de relação homem-meio. Dar aos objetos do arranjo espacial e ao

arranjo como um todo o significado social e temporal necessário.

6. ESPAÇO E REPRODUÇÃO

Vimos que a formação espacial é um "espaço produzido". Que a produção do

espaço confunde-se com a produção dos bens mate riais necessários à sobrevivência dos

homens. E que isto decorre do fato de que os homens suprem suas necessidades

convertendo a a terra, que Marx denominou "sua despensa primitiva", nos bens ne­

cessários, pela via do trabalho social.

Vimos também que a formação espacial é a própria formação econômico-social,

espacializada, contendo sua estrutura e leis de movimento, e nela estando contida.

Retomemos estas duas afirmações, a fim de, estabelecendo a unidade necessária

entre base económica (infra-estrutura) e formação econômico-social, precisarmos mais a

noção de formação espacial e compreendermos o significado de modo de produção.

Em primeiro lugar, o espaço não seria formação espacial se o processo de produção

não fosse, em verdade, um processo de reprodução". A formação espacial teria existência

efémera, restrita ao momento (período) de conversão da "primeira natureza" em bens pelo

trabalho social, não chegando a adquirir uma estrutura duradoura e mais definitiva.

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Page 25: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Terminado o processo de produção, se extinguiria a "ordem espacial" gerada pelo trabalho

social, como resultado e ao mesmo tempo condição de realização da produção.

É devido ao fato de que o processo de produção é em verdade um processo de

reprodução que esta "ordem espacial" ganha existência permanente. Fica mais uma vez

patente o vínculo existencial entre a formação espacial e o processo de produção: como a

reprodução é a produção em caráter permanente (contínuo), a formação espacial ganha um

caráter permanente.

Em segundo lugar, decorre dessa relação com o processo da produção social a

relação de correspondência básica entre a formação espacial e a formação econômico-

social. Produzida pelo mesmo processo gerador, em última instância, da formação

econômico-social, e em simultaneidade, a formação espacial exerce dialeticamen-te papel

fundamental nesse processo, já que é resultado e condição da reprodução.

Mas a relação de correspondência básica é o fundamento da correspondência

necessária entre a formação espacial em seu todo e a formação econômico-social em seu

todo. Se a formação econômico-social organiza a formação espacial em se organizando,

estrutura a formação espacial em se estruturando, origina a formação espacial em se

originando, transfere-lhe suas leis de organização e movimentos, isto tudo ocorre também

no sentido inverso, o da formação espacial para a formação econômico-social.

Acompanhemos mais de perto o processo de reciprocidade de influências que se

verifica como decorrência da relação de correspondência necessária entre a formação

espacial e a formação econômico-social.

A produção de bens é feita em razão das necessidades de consumo, realizando-se

tanto a produção quanto o consumo segundo as leis historicamente determinadas, que são

próprias a cada modo de produção. Como o montante dos bens oriundos do processo de

produção desaparece sob o consumo, o processo de produção se repete continuamente, isto

é, se reproduz.

Como para realizar a produção os homens travam relações sociais, denominadas

25

Page 26: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

relações de produção em razão de sua natureza, a realização da reprodução implica em

reprodução das relações de produção.

Coloca-se, aqui, a questão das articulações das instâncias de uma formação

econômico-social e desta com a formação espacial em termos de totalidade.

Dependendo da posição em que os homens se coloquem face aos meios de

produção, as relações de produção serão relações sociais entre iguais ou entre proprietários

e não-proprietários, surgindo, neste segundo caso, uma estrutura social de classes sociais

que comandará o processo global da formação econômico-social. Assim, numa formação

econômico-social desse tipo, toda vez que no processo de reprodução se reproduzirem as

relações de produção, estará na verdade com a reprodução destas se reproduzindo a

estrutura de classes. Ora, para que tal encadeamento da reprodução realizada ao nível da

infra-estrutura se faça sem rupturas ou prejuízo à própria continuidade da reprodução

provocados pelo entrechoque dos interesses contrários das classes, surgem as relações

sociais superestruturais, jurídico-políticas e ideológicas. Estas relações sociais

superestruturais, por surgirem em decorrência de o processo de reprodução ser comandado

pelas relações de classes (relações de classes estas engendradas pela reprodução das

relações de produção), entram também em processo de reprodução a cada vez que se

reproduzem as relações infra-estruturais.

O fenômeno da reprodução é, assim, como observa Henri Lefebvre, uma

reprodução da formação econômico-social como um todo, numa dialética em que as

relações sociais de todos os níveis perpassam umas às outras.

No dizer de.Engels: "A situação económica é a base, porém as diversas

partes da superestrutura — as formas políticas da luta de classes e suas consequências,

as constituições estabelecidas pela classe vitoriosa, uma vez ganha a batalha, etc. — as

formas jurídicas — e em consequência inclusive os reflexos de todas essas lutas reais

nos cérebros dos combatentes: teorias políticas, jurídicas, filosóficas, ideias religiosas e

seu desenvolvimento posterior até converter-se em sistemas de dogmas — também

exercem influência sobre o curso das lutas históricas e em muitos casos preponderam

26

Page 27: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

na determinação de sua forma".

Ora, sendo a formação espacial a própria formação econômico-social, ao nível

do espaço, e sendo seus movimentos os mesmos, fica mais que evidente que, toda vez

que a formação econômico-social se reproduz como um todo, a formação espacial se

reproduz como um todo.

O que afirmamos é que na formação espacial se realiza todo o processo de

reprodução realizado na formação econômico-social. E o que pomos em realce é que

todo movimento resultante do per-passamento da instância económica no todo e todo

movimento resultante do perpassamento das instâncias superestruturais no todo en:.

contram correspondência integral na formação espacial. Por isso'o espaço geográfico

intervém em dois processos articulados na formação econômico-social: o de produção

social (instância económica) e o de controle de suas instituições e de relações de

classes (instâncias jurídico-política e ideológica).

Alargamos, assim, a noção inicial de correspondência entre o "espaço produzido" e o

processo de produção dos bens materiais necessários à sobrevivência dos homens, que

denominamos de relação de correspondência básica entre a formação espacial e a

formação econômico-social, noção que é o equivalente espacial da noção de determinação

em última instância da instância económica, e estabelecemos a noção de correspondência

entre o todo da formação espacial com o todo da formação econômico-social, noção que

denominamos de relação de correspondência necessária entre a formação espacial e a

formação econômico-social.

7. ESPAÇO E ACUMULAÇÃO

A formação espacial, como a formação ecunômico-social com que se confunde, é

resultado e agente impulsor, ao mesmo tempo, do processo de desenvolvimento da história dos

homens. Ora, processo de desenvolvimento é processo de acumulação.

O processo de evolução, de desenvolvimento, das sociedades humanas é o

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armazenamento contínuo de um arsenal de "coisas" produzidas pêlos homens, como instrumentos

de trabalho e conhecimentos (know-how?), de que os homens se valem para reproduzirem sua

existência social e impulsionarem o progresso mais para a frente. Os objetos do arranjo espacial e

o próprio arranjo em seu todo são exemplos de formas dessas "coisas" produzidas e acumuladas

no decurso infinitamente contínuo do processo de reprodução.

Para que a produção seja um processo contínuo, necessário se torna que no ato de produzir

se gere simultaneamente os bens de consumo, bens que garantam a continuidade. Como exemplo,

que parte das sementes cultivadas seja separada para a reprodução; que a força de trabalho

despendida pelo trabalhador encontre, ao lado do consumo, descanso e lazer, indispensáveis à sua

reprodução; que as ferramentas de trabalho surgidas no processo de trabalho sejam reincorporadas

à reprodução.

Quando o processo de produção se repete cada ano nas mesmas proporções, como ocorre

com as comunidades agrícolas primitivas e o pequeno artesanato, diz-se que há reprodução

simples. Quando o processo de produção se repete sob uma forma mais vasta, diz-se que há

reprodução ampliada. Vê-se, pelo exposto, quesó existe acumulação quando a reprodução é do

tipo ampliado. O espaço geográfico tem uma participação relevante no processo de reprodução,

seja na reprodução simples ou na reprodução ampliada. Os objetos do arranjo da "segunda

natureza" (espaço produzido), tais como prédios, caminhos e lugares de trabalho, ou da "primeira

natureza", como a água, solos e jazidas minerais, bem como o próprio arranjo como um todo, são

aspectos daquilo de que se valem os homens para uma produção contínua e que Marx denominou

de "condições de reprodução".

Seja como "espaço produzido" ou mesmo como "primeira natureza'', o espaço

geográfico atua no processo de reprodução como "condição de reprodução", através do

qual, em seu seio, o devir histórico foi acumulando.

Ocorre, contudo, que tais "condições de reprodução" são meios de produção e, por

conseguinte, objetos de apropriação pelas classes de uma formação econômico-social.

Conforme seja o modo de produção, diferente uns dos outros justamente pela forma

de relações de produção e de classes que encerram, as "condições de reprodução" e os

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Page 29: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

demais meios de produção ganharão uma conformação própria. Como também o processo

ide acumulação.

Nas condições do modo de produção capitalista, os meios de produção são capital,

ou seja, veículos por meio dos quais a forca de trabalho operária, produzindo a mercadoria,

produz mais-valia. Dessa maneira, os meios de produção têm sua apropriação por uma

classe social que os considera um meio de geração de sobretrabalho (excedentes), que ela

utilizará com fins de acumulação de capital.

Sendo assim, uma formação espacial capitalista encerra em seu cerne a luta que

travam o capital e o trabalho.

Primeiramente, porque através dos elementos extraídos à "primeira natureza" o que se

garante não é a conversão da "dispensa primitiva" em meios de sobrevivência dos homens,

mas a produção, sob a forma de matérias-primas brutas, de capital circulante. Em segundo

lugar, porque através da geração de "condições de reprodução" o que se gera não são

aquelas condições de continuidade sem as quais os homens não repetem com regularidade

a produção dos meios de sua sobrevivência, mas capital fixo. Em terceiro lugar, porque

através do uso desses meios de produção o que se está gerando não são meios de

sobrevivência dos homens, mas mercadorias, veículos de transformação da mais-valia

extraída daqueles que a produziram, em lucros. Em quarto lugar, por fim, porque através

da reinversão da mais-valia expropriada em nova fase do processo de reprodução o que se

produzirá não será o desenvolvimento econômico-social, mas a acumulação do capital.

Eis por que, em belíssimo e inspirado texto, afirma Francisco de Oliveira: "Não

pode o Estado solucionar o chamado problema de transporte urbano? Pelo tamanho do

excedente que maneja, pode; mas, se esse excedente provém em parte da produção

automobilística, então não pode. Pode o Estado solucionar o chamado problema da

poluição? Tendo tanto chão neste país, parece que se poderia descentralizar a indústria,

principal poluidora; mas o chão da pátria não é chão, é capital"24.

29

Page 30: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

8. ESPAÇO E INSTÂNCIAS

Vimos que a formação espacial tem a própria estrutura e leis da formação

econômico-social. Uma analogia simples nos permitirá ilustrar o que afirmamos.

Se observarmos uma quadra de futebol de salão, notamos que o arranjo do terreno

reproduz as regras desse esporte. Basta aproveitarmos a mesma quadra e nela superpormos

o arranjo espacial de outros esportes, como o vôlei, o basquete ou o handball, cada qual

com "leis" próprias, para notarmos que o arranjo espacial de cada qual diferirá no terreno.

Diferirá porque o arranjo espacial confundindo-se com as regras do jogo, estas regras

diferem em cada um dos esportes citados. Se fossem as mesmas as "leis" para todos eles, o

arranjo seria um só.

Naturalmente que a transposição do exemplo da quadra de esportes para o que

ocorre com a formação espacial implica em alguns cuidados, como de resto deve acontecer

com as analogias. Não se trata de uma diferença de escalas, apenas, mas de natureza qua­

litativamente distinta entre a quadra e a formação espacial, embora possamos falar da

quadra como de uma formação espacial. Mas as regras do esporte são regras simples quase

mecânicas, com intuitos de repetições de jogadas de reduzida margem de variações. As leis

de uma formação econômico-social são da ordem de grande complexidade de movimentos

determinadas historicamente. Confundindo-se com estruturas complexas e enquadradas no

tempo histórico, e não no tempo sideral como o da quadra, a formação espacial tem uma

estrutura complexa e submetida ao tempo histórico.

Ora, sabemos que uma formação econômico-social tem uma estrutura formada pelo

perpassamento de três estruturas (instâncias ou níveis): uma infra-estrutura (a instância

econômica) e duas superestruturas (a instância jurídico-política e a instância ideológica).

Estas "três" instâncias permeiam-se, formando uma única totalidade social. Embora

no interior dessa totalidade guardem certa autonomia, não se pode na verdade falar de três,

30

Page 31: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

exceto em benefício (ou deformação?) da análise científica. Projetando-se umas sobre as

outras, cada uma contém as demais, de modo que um fenómeno social qualquer é, ao

mesmo tempo, "económico", "jurídico-políti-co" e "ideológico". Tal concepção de unidade

das instâncias decorre da própria concepção de totalidade social, que não deve ser

entendida como "uma combinação de partes" ou "um todo articulado de partes". Uma

totalidade social não é um sistema, é um todo confundido com as "partes", sendo cada

"parte" a forma específica como se manifesta o todo. Assim, o Estado, por exemplo, não é

uma parte da formação econômico-social, mas uma forma específica como o todo se

manifesta, sintetizando esta "parte", o Estado, tudo o que constitui o todo. O raciocínio é o

mesmo para a formação espacial que vimos usando neste trabalho, como já se deu a

perceber. Não se pode dizer que a instância jurídico-política, materializada no exemplo do

Estado, seja uma parte da formação econômico-social, o mesmo sucedendo quanto às

demais.

Projetando-se umas sobre as outras, somente sobre o espaço "projetam-se" as três

simultaneamente. Contendo as três instâncias a um só tempo, o espaço está contido em cada

uma delas, através de um jogo dialético em que, ao confundir-se com cada uma, passa a

interferir nos movimentos de cada uma. Como as instâncias estão perpassadas, passa a

interferir no movimento da formação econômico-social em seu todo.

Vejamos, somente para efeito de maior visualização do que foi exposto, a articulação entre

o espaço e cada instância.

ESPAÇO E INSTÂNCIA ECONÓMICA

A articulação do espaço geográfico com a instância económica dá origem ao que

chamaremos "arranjo espacial económico". Tal arranjo é, em essência, o resultado de

como se exprimem no âmago da instância económica as forças produtivas como relações

de produção. As formas de expressão das forças produtivas como relações de produção

diferem, qualitativamente, de uma formação econômico-social para outra, vale dizer, de

uma formação espacial para Outra, e são, por sinal, os elementos qualificadores de cada

31

Page 32: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

formação.

As forças produtivas, por sua vez, articulam, no processo de trabalho, a força de

trabalho, os objetos do trabalho e os meios de trabalho. Os meios de trabalho e os objetos

de trabalho constituem os meios de produção. Somente quando a força de trabalho põe os

meios de produção em movimento é que as forças produtivas ganham vida e se põem em

movimento como um todo.

Sabemos já que o espaço confunde-se com a instância económica como meio de

produção e, então, de dupla forma: primeiramente, como objeto do trabalho, temos a

"primeira natureza"; em segundo lugar, como meio de trabalho (o arranjo produzido no

espaço pela acumulação), temos a "segunda natureza" ou "espaço produzido”.

Como objeto do trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus

componentes de ordem natural, sob a forma de matérias-primas brutas ou semi-

elaboradas. Como meio de trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus

componentes "históricos", isto é, dos objetos nele gerados, organizados e acumulados pelo

incessante processo de reprodução ampliada. Ou em termos já ditos: como "condição de

reprodução".

Ora, sabemos que o arranjo espacial económico resulta da forma como se

exprimem historicamente as forças produtivas como relações de produção, ou dito em

outros termos: do grau de desenvolvimento das forças produtivas e do caráter das relações

de produção.

Nas condições do modo de produção capitalista, para tomarmos um exemplo, as

forças produtivas se encontram em alto grau de desenvolvimento, implicando numa

relação do homem com o meio físico caracterizada pela forte superioridade daquele,

significando uma ampla divisão social de trabalho que confere ao arranjo espacial intensa

complexidade de formas. As relações de produção expressam-se nas forças produtivas de

uma forma típica: a força de trabalho, e somente ela, pertence ao proletariado, o qual tem

que vendê-la para adquirir os meios de subsistência; os meios de produção (objeto e meios

de trabalho) pertencem à burguesia, que compra a força de trabalho do proletário, para,

32

Page 33: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

fundindo-a aos meios de produção, produzir mais-valia.

Assim, o "chão" é capital e a formação espacial tem sua estrutura e movimentos

determinados pelo entrechoque entre aquelas classes, básicas desse modo de produção.

Podemos, então, imaginar um arranjo espacial económico numa formação

econômico-social capitalista central, composto ipor porções do espaço de traços definidos:

aqui uma área industrial, articulada a uma área mineira localizada mais além, e a uma área

urbana, que pode confundir-se com o próprio espaço industrial; derredor, em círculos

concêntricos, áreas agrícolas encerradas por pastagens. Podemos imaginá-lo como uma

porção, por sua vez, de um espaço mais amplo, onde inúmeras porções de espaço de

arranjos igualmente simples ou mais complexos se articulam numa sucessão de escalas de

concentricidade, numa hierarquia de dominância de umas porções de espaço por outras,

hierarquia esta definida em termos de "equipamentos terciários" existentes em cada cidade

maior de cada porção de espaço, até atingir-se o espaço global, que é o espaço de domínio

hierárquico de uma metrópole.

Enfeixando todo o espaço, articulando a totalidade, uma densa e ramificada rede

viária, que cobre todas as porções de espaço e atinge todos os objetos dos seus arranjos.

Um arranjo assim poderia estar confundindo-se a uma instância económica

altamente desenvolvida e composta por: a) uma intensa divisão de trabalho representada

pelas diferentes fases de circulação do capital (capital industrial, capital agrário, capital

mercantil, capital financeiro), isto é, por setores e suas ramificações; e b) diferentes níveis

de articulação interna das forças produtivas, significando diferentes níveis de taxa orgânica

de capital.

Como o espaço capitalista é um "espaço de relações", por exemplo, um espaço de

relações intra e intercapitais e entre capital e trabalho, comandadas pela lei do

desenvolvimento desigual e combinado, vale dizer, pela lei da acumulação capitalista,

evidentemente que num arranjo espacial económico desse tipo teremos inevitáveis

desigualdades. As porções de espaço que atuarem como locus da acumulação,

principalmente a metrópole da totalidade espacial, serão aquelas onde a riqueza mais se

33

Page 34: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

centralizará; aquelas porções de espaço que atuarem como locus de produção e

expropriação de excedentes serão as que empobrecerão. Locus da riqueza e locus da po­

breza", cada um desses espaços, reproduz internamente por seu turno em seus arranjos

espaciais específicos a desigualdade, porque riqueza e pobreza são os nomes eufêmicos de

burguesia e proletariado, as classes sociais básicas das formações espaciais capitalistas

centrais.

Basta olharmos o arranjo espacial do espaço metropolitano de Nova Iorque, ou de

qualquer metrópole das formações econômi co-sociais capitalistas centrais, para vermos

estampada na paisagem a estrutura de classes desses lugares.

É nesse sentido que talvez possamos falar da formação espacial como sendo uma

formação de múltiplos espaços desiguais. Sendo a estrutura da formação espacial a própria

estrutura da formação eco-nômico-social, tais espaços desiguais não são nada mais que as

desigualdades sociais existentes entre as classes sociais da formação econômico-social.

Mais importante que a imagem é o que ela revela: que a causa das desigualdades espaciais

é a mesma das desigualdades sociais, ou seja, a exploração do trabalho pelo capital.

ESPAÇO E INSTÂNCIAS SUPERESTRUTURAS

A forte integração das instâncias jurídico-política e ideológica, sobretudo em face da

onipresença cada vez maior do Estado nas formações econômico-sociais, desaconselha

separá-las.

Talvez se possa falar de um "arranjo espacial jurídico-político" e de um "arranjo

espacial ideológico", se tomarmos noções como as propostas por Althusser de "aparelhos

repressivos de Estado" e "aparelhos ideológicos de Estado". Os objetos de arranjo de cada

um desses "aparelhos de Estado" são mais que visíveis. Parece-nos ter razão, no entanto,

Foucault ao observar que "se quisermos perceber os mecanismos de poder na sua

complexidade e nos seus detalhes, não poderemos nos ater unicamente à análise dos

aparelhos de Estado".

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Page 35: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

A separação do jurídico-político e do ideológico fica ainda mais desaconselhável

quando novamente nos remetemos a Foucault e nos introduzimos em um seu objeto de

reflexão, o das "relações que podem existir entre poder e saber", relações que têm sua

inscrição espacial, como: saber psiquiátrico e asilo; saber disciplinar e prisão; saber

"médico" e hospital; economia política e fábrica; que se complementam com o saber

geográfico e país, chão da ideologia do nacionalismo.

Surgidas sobretudo para regência da instância económica, as instâncias

superestruturais mobilizam cada vez mais o espaço como via de superação de eventuais

obstruções dos processos económicos pelas contradições do sistema, e com isto

preservarem aquela instância na essência de sua organização.

Exemplo recente disto temos na história brasileira, em que estas duas instâncias se

integram completamente. Quando a crise do "modelo económico" foi explicada como tendo

sido gerada pela "crise do petróleo", interveio o Estado com o planejamento do espaço

como medida de solução: tomando em conta o arranjo espacial de consumo do combustível

existente (distribuição dos postos de gasolina), permaneceriam abertos nos fins de semana

somente os pos-los que guardassem determinada distância dos centros urbanos.

Vejamos, entretanto, como poderíamos pensar espacialmente estas instâncias, segundo

arranjos espaciais "próprios".

O "ARRANJO ESPACIAL JURÍDICO-POLÍÏICO"

Dizia-se na formação econômico-social persa antiga, dos tempos de Dario I, uma

formação econômico-social tributária, que "os sátrapas são os olhos e os ouvidos do rei".

Nada mais revelador do arranjo espacial jurídico-político, um arranjo sobretudo moldado

pelo Estado.

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Page 36: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Ocorre que os propósitos desse arranjo revelam bem a articulação que existe numa

formação econômico-social entre esta instância e a instância económica. A conquista de um

território extenso, formado pela anexação militar de territórios de outros povos, tinha por

finalidade a cobrança de tributos. A par de garantir a cobrança regular dos tributos, o

arranjo em satrapias visava garantir o exercício da dominação e da integridade do império.

A fórmula encontrada foi a criação de uma malha político-administrativa da qual não

escapasse qualquer parte do espaço sob domínio persa, dividida em satrapias. Com base

nessa malha, os "aparelhos de Estado" jurídico-políticos (e ideológicos) puderam ser

estrategicamente distribuídos: os sátrapas (governadores), os organismos de tributação, os

contingentes militares de ocupação, as estradas e o correio a cavalo.

Exemplos como este multiplicam-se na história. O que hoje haveria de novo seria o

suprimento e a multiplicação dos "aparelhos jurídico-políticos" voltados para as

necessidades específicas de um outro modo de produção, o modo de produção capitalista,

um modo mercantil por excelência.

Já vimos como Lacoste refere-se à intervenção do que denomina de "estados

maiores militares e financeiros", orientada cada vez menos pelo espontaneísmo e com

objetivos os mais variados: regulação das relações entre classes e segmentos de classes

sociais, instituições e nações; conquista militar, política, cultural ou económica; alocação

de capitais interessados em rápida circulação; provimento de maior "racionalidade

económica" aos investimentos. Fenómenos que ocorrem no interior de espaços mais vastos

que sonhou jamais Dario I.

Em que medida, no entanto, o planejamento de espaço deixa de ser, também, uma

ideologia?

O "ARRANJO ESPACIAL IDEOLÓGICO"

Objeto secular de uso ideológico, por meio do qual "a maioria das pessoas formam

sua "visão do mundo", se não sua "visão global", o espaço geográfico tem seu arranjo

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Page 37: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

fortemente confundido com a instância ideológica.

Como exemplo, o arranjo espacial ideológico contém as instituições pelas quais os

valores circulam e são assimilados, como a família, a escola, os centros culturais, a Igreja,

os asilos, os cárceres. É no interior desses "espaços sociais" que os valores se tornam

concretos. Espaços específicos, cada qual é uma síntese do todo, prescrevendo, segundo a

ideologia dominante, as noções de mundo e hierarquia. Tais noções seguem uma escala de

espaço que vai do "espaço social" específico ao mais geral, como: o espaço familiar, seguido do

espaço estado-nação e encimado pelo espaço cósmico; ou, em outro caso paralelo: o espaço

empresarial, o espaço estatal e o espaço mundial. Curiosamente, o primeiro exemplo é

apresentado na disciplina escolar chamada moral e civismo nas pessoas, sucessivamente, do

pai, do presidente e de Deus.

É interessante a maneira como o arranjo espacial ideológico se organiza em função

da noção de pátria, que numa hierarquia igualmente escalar vai do bairrismo ao

nacionalismo.

Mas a fusão do espaço com a ideologia é mais dinâmica sob os interesses mais

rapinantes do capital.

Anderson observa que há crescente interesse pela "qualidade do meio ambiente",

salientando o caráter ideológico daquilo que veio a chamar-se "crise ambiental". Se nos

lembrarmos do que ficou dito atrás, que "os homens relacionam-se com o meio físico atra­

vés de suas relações sociais", veremos que Anderson tem toda razão. E a "crise ambiental"

entra em cadeia com a "crise urbana" e com a "crise demográfica", esta provocada por uma

"explosão" populacional. Em todas estas "crises" o espaço é tomado como um dos pivôs,

já que está em causa o "acelerado consumo e esgotamento dos recursos naturais em face

do progresso e das necessidades humanas crescentes com o aumento acelerado da

população mundial". Verdadeiro "fetichismo do espaço" que toma como relações entre

coisas o que em verdade são relações sociais.

Citando Goodman, lembra ainda Anderson que "na arquitetura há "ideologias

estéticas", com ele concordando Castells quando afirma que não há espaço mais

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Page 38: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

ideologicamente construído que o espaço urbano. Explorando paisagens por elas cada vez

mais elaboradas, as grandes empresas imobiliárias promovem a fusão do espaço com a

produção de ideologia, seja sob a forma da estética arquitetônica dos "Barramares" ou sob

a forma ecológica de "sol, sal, montanhas e verdes".

E o que dizer das segregações espaciais do tipo ghettos, apar-theids e favelas,

sejam estas "Borel" ou "Vila Kennedy"?

9. A FORMAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL COMO SÍNTESE (TOTALIDADE)

A formação econômico-social é a totalidade que os geógrafos buscam,

quixotescamente e há séculos, sob a ambígua expressão "síntese". Manifestada como

formação espacial.

Entendida como "ciência de síntese" cercada por uma "constelação de ciências de

análise", a geografia ainda não se libertou da epistemologia kantiana do século XVIII,

padecendo de um mal "patológico".

É assim que encontramos em Pierre George afirmações como: "Ciência que mobiliza

o conhecimento dos métodos e dos resultados de um bom número de ciências associadas" e

"uma ciência de síntese na encruzilhada dos métodos de diversas ciências". Megalomania

patológica pura e simples? Os geógrafos pareceram sempre acometidos dessa "doença",

que não é mais que a expressão do uso ideológico de que a geografia tem sido sempre

objeto. Eis como a doença se manifesta em Albert Faure, citado por Milton Santos: "A

geografia reúne todas as ciências, abre os horizontes, comporta todos os conhecimentos

humanos". Afirmação muito próxima desta outra, do geopolítico Mackinder, citado por

Sodré: "Quem dominar a Europa Oriental dominará o coração continental; quem dominar o

coração continental controlará a ilha-mundo; quem dominar a ilha-mundo controlará o

mundo".

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Page 39: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Paga a geografia, por consequência, pesado ónus por não terem os geógrafos

percebido, ou feito vistas grossas, ao fato de que é a formação econômico-social uma

totalidade social cuja concretude é dada pelo espaço, a verdadeira síntese de que se devem

ocupar.

Repensar a geografia, a partir da categoria formação espacial articulada às categorias

de formação econômico-social e de modo de produção, condição necessária para entender-

se o espaço como es-paço-social e espaço-tempo, eis uma perspectiva que nos parece capaz

de abrir-lhe caminhos no cipoal de ambiguidades em que está secularmente mergulhada.

Significa repensá-la em outros termos de interdisciplinaridade, para podermos colocá-

la, sem patologia, no lugar que lhe cabe entre as ciências sociais.

10. PARA REPENSAR A GEOGRAFIA

Nota Marx na epígrafe que serviu de guia para este trabalho que devemos buscar

apreender ".. .a essência nas aparências. . .". Entendemos com isso que se deve apreender

as leis internas (a essência) que governam as formas, as estruturas.

Ora, se as formas são as aparências, parece-nos que se encaixa aí a noção de arranjo

espacial que vimos usando neste trabalho. Entendemos por arranjo espacial uma estrutura

de objetos espaciais, uma localização organizada de formas espaciais, uma forma ou uma

totalidade estruturada de formas espaciais. O papel da análise espacial estaria em apreender

as leis que regem a formação espacial, seu todo e suas "partes", a partir do arranjo espacial,

e vice-versa.

Marta Harnecker propõe que ". . .para se chegar a .definir um objeto é necessário

ser capaz de descobrir a unidade ou a forma de organização dos elementos que servem

num primeiro momento para descrevê-la. Pode-se descrever uma sociedade; podemos, por

exemplo, dizer que em toda sociedade existem indústrias, campos cultivados, correios,

escolas, exército, polícia, leis, correntes ideológicas, etc. Porém, a organização destes

elementos em diferentes estruturas (económica, jurídico-política e ideológica) e a determi­

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Page 40: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

nação do papel que cada uma dessas estruturas desempenha na sociedade permite-nos passar

da descrição ao conhecimento de uma realidade social, estabelecer as leis de seu

desenvolvimento e, portanto, a possibilidade de dirigi-lo conscientemente".

Lembra Lefebvre: "A análise que distingue os fatos, as formas, os aspectos e os

momentos de um desenvolvimento, deve também preparar a síntese determinando as

ligações internas que existem entre esses elementos""1. E é o próprio Lefebvre que,

observando que a investigação somente ultrapassa o nível do empírico quando norteada

por uma teoria calcada na noção do lodo, diz: "Esta noção do todo desempenha papel

primordial, tanto metodologicamente como teoricamente. Já sabemos por quê. A realidade

que temos de compreender, na natureza tanto como na vida social, apresenta-se como um

todo". Só depois da análise das partes, "só então vem a exposição do todo, do conjunto".

O que propomos é a construção de uma teoria do espaço que se fundamente em três

categorias de totalidade, que são três facetas de uma mesma realidade: a formação espacial,

a formação econômico-social e o modo de produção. O conceito de formação espacial

passa pêlos conceitos de formação econômico-social e de modo de produção e, mais ainda,

pela forma como se articulam estes dois.

Entendemos uma formação espacial como uma "tópica marxista", para tomarmos,

talvez apressadamente mas não de todo sem validade em um texto que se propõe socializar

reflexões do autor, a expressão cunhada por Althusser, qual seja, " . . . u m dispositivo es

pecial que assinala em determinadas realidades seus lugares no espaço", ou, "...um sistema

articulado de posições (lugares) comandados pela determinação em última instância". Sabemos

que esta "determinação em última instância" são as relações de produção. Vimos, ao longo

do texto, que a formação espacial é a própria formação econômico-social, espacializada.

A formação econômico-social define-se como "uma totalidade social concreta", ao

passo que o modo de produção define-se como "uma totalidade social abstrata", não se

podendo separar os dois conceitos, e tomada a expressão "abstrata" não na sua acepção

idealista. A primeira é um "conceito complexo e impuro", ao passo que o segundo é um

"conceito puro, ideal, que permite pensar uma totalidade". Tanto um quanto outro são

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Page 41: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

conceitos que se constróem sobre relações de produção (relações económicas, para empregar­

mos o conceito em sua acepção ampla), historicamente determinadas. Assim, se o modo de

produção funda-se em relações de produção homogéneas, a formação econômico-social

funda-se (ou não) em tipos de relações de produção heterogéneas, articuladas sob o

domínio do tipo mais avançado. Desse modo, o certo seria dizer-se "formação econômico-

social com dominante. . .".

Por isso, se afigura ser-nos válido em nosso estudo o conceito que Samir Amin

propõe de formação econômico-social, como sendo "um complexo organizado de modos

de produção", isto é, como sendo "uma estrutura concreta, organizada, caracterizada por um

modo de produção dominante e pela articulação à volta deste de um conjunto complexo de

modos de produção que a ele estão sub-metidos". Formulação que nos sugere a forma

adequada de articulação dos dois conceitos.

Parece-nos, abreviando um tema controverso e trazendo-o para o terreno da reflexão do

espaço, que a articulação dos três conceitos aqui propostos como as categorias mais gerais

de análise do espaço, envolve a observância de alguns pares dialéticos fundamentais, como:

concreto-abstrato, espaço-tempo, continuidade-desconti-nuidade, forma-conteúdo, assim

expressos:

Concreto-abstrato: A análise de uma formação econômico-social envolve o

conhecimento do mecanismo geral de funcionamento dos modos de produção que a

compõem. Assim, por exemplo, a análise de uma formação econômico-social com

dominante capitalista implica o conhecimento dos mecanismos gerais desse modo de produ­

ção e de cada um dos dominados. Só assim se pode captar as articulações e a

complexidade do todo.

Espaço-tempo: O que dá concretude à formação econômico-social é o espaço.

Contudo, vimos que o espaço sem a dimensão tempo é um "espaço congelado". Do mesmo

modo, pensar um modo de produção apenas pelo prisma do tempo, a-espacialmente, é

produzir uma história de generalidades, que esconde as diferenças das formações econômico-

sociais. A não-espacialização da história produz erros, como aquele observado por Samir

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Page 42: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Amin de que, não se vendo que o modo de produção feudal foi um fenómeno restrito

espacialmente a uma porção do continente europeu, foi-lhe dado uma universalidade que

não teve. Daí as discussões hoje de modo de produção asiático (tributário).

Continuidade-descontinuidade: O modo de produção é uma des-continuidade no

tempo, razão por que permite-nos uma correia periodização do tempo histórico. Quer nos

parecer que a formação econômico-social é uma integração de tempos históricos desiguais,

estratificados no interior de uma mesma temporalidade e articulados sob o modo de

produção mais desenvolvido. Daí sua formação espacial exprimir-se como uma unidade

articulada de espaços regionais diferenciados, formando uma "regionalização" baseada em

modos de produção, diferenciação espacial esta que se torna "desenvolvimento desigual e

combinado" se o modo de produção dominante for o capitalista.

Duas propostas nos parecem pertinentes à passagem do nível de abrangência mais

geral dessas três categorias para o conhecimento do real, pela via da intermediação do

arranjo espacial.

Marta Harnecker propõe que, sendo as relações de produção o "núcleo estruturador"

que "explica o tipo característico de articulação das distintas instâncias (estruturas regionais)

e determina qual delas terá o papel dominante" das totalidades sociais, "devemos começar

diagnosticando que tipo de relações de produção existem, como se combinam, qual é a

relação de produção dominante, como exerce sua influência sobre as relações de produção

subordinadas. A partir daí, explicar o conjunto, sem negar a autonomia relativa das

estruturas regionais e sem deixar de ver a estrutura económica como determinante em

última instância".

Samir Amin propõe que, já que uma totalidade social se organiza em função da

produção e expropriação de excedentes, a análise da totalidade "deve organizar-se em

torno da forma pela qual é gerado o excedente característico dessa formação, das

transferências e da distribuição interna desse excedente entre as diferentes classes ou

grupos que dele se apropriam. Como uma formação social é um complexo organizado de

vários modos de produção, o excedente gerado nessa formação não é homogéneo. Existe

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Page 43: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

uma adição de excedentes com origens diferentes. Uma questão essencial é a de saber em

determinada formação concreta qual modo de produção é predominante, e, portanto, qual

é a forma predominante de excedente. Uma segunda questão é saber em que proporção a

sociedade vive do excedente gerado por ela própria e do excedente transferido com

origem em outra sociedade, ou, dito em outra forma, qual a importância relativa que nela

ocupa o comércio a longa distância". Convém lembrarmos que Samir Amin debruça-se

sobre o que denomina "formações sociais periféricas", que é o caso da formação social

brasileira, uma formação com dominante capitalista.

Parece clara a combinação das duas propostas: para a compreensão do processo de

produção e expropriação dos excedentes, é preciso conhecermos as relações de produção

existentes na formação. E vice-versa.

O estudo mais e mais preciso do conceito e articulação de formação econômico-

social e de modo de produção, a par do estudo minucioso da economia política, das

instituições e da ideologia, sem o qual não se pode mergulhar fundo na compreensão de

uma formação econômico-social, e a convergência de tudo isto ao estudo do conceito, forma

e processos da formação espacial, eis o que nos parece que é necessário para um bom

trabalho de construção teórica do espaço.

Resta lembrar que o processo de teorização só ganha concretude e vigor se

realizado no interior da práxis.

EM BUSCA DA ONTOLOGIA DO ESPAÇO

António Carlos Robert Morais

Tentaremos neste pequeno artigo introduzir na problemática geográfica um

encaminhamento teórico baseado em autores que acreditamos encontram-se até agora

ausentes de tal discussão. O obje-tivo é fornecer ao leitor indicações de uma posição

43

Page 44: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

possível no tratamento de questões referentes ao espaço. Esta posição, resposta a questões de

caráter geral, apresenta-se como um momento de um esforço de reflexão, tentando dar conta

de um primeiro nível de problemas que se colocam aos geógrafos que buscam

compreender o espaço numa perspectiva materialista e dialética. Assim é a bagagem com que

partimos para um projeto de pesquisa. Esta posição foi se constituindo em leituras e

discussões, e deste modo se vier a servir de auxílio ou alimento à discussão, seu mérito

deve ser creditado, aos colegas que conosco discutiram-na; por outro lado, as lacunas e a

brevidade no tratamento de certos pontos ligam-se ao fato de não se tratar de uma proposta

acabada, porém de um posicionamento ainda em formação. Em suma, se conseguir suscitar

o interesse pêlos autores que serão apresentados, a validade do presente artigo estará dada.

Como realizar um estudo do espaço dentro do matelialismo histórico, em que ele

não seja apenas o receptáculo de fenómenos determinados por outras instâncias do real?

Como efetivar a apropriação total do espaço, apreendendo-lhe a essência? Como apreen

der este ser específico, sem autonomizá-lo e sem empobrecer-lhe a singularidade? Como

realizar um corte no real sem cair num procedimento positivista? Estas são dúvidas que

constantemente atormentam todo geógrafo que assume um posicionamento marxista. Al­

gumas são ainda mais amplas, aparecendo como questões basilares de toda a reflexão

geográfica, pois dizem respeito à particularidade da análise, à possibilidade mesmo de

existência da geografia, à definição do objeto.

Por muito tempo a geografia apresentou-se como a única disciplina que se

debruçava cientificamente sobre o espaço, talvez isso explique a raridade de reflexões mais

aprofundadas a respeito desse ser e de sua apreensão no âmbito deste corpo de

conhecimentos. O rigor conceituai e o esforço metodológico precoce por exemplo na

sociologia não frutificou na geografia, que assim entorpeceu-se nas soluções semânticas ou

analógicas. O questionamento sobre os atributos e a dinâmica própria do espaço restou

como campo da especulação filosófica. Nas décadas recentes, por imposições colocadas pelo

trabalho técnico, outras disciplinas começaram a revelar em seus estudos o que poderíamos

chamar de componente espacial da manifestação dos fenómenos. Não cabe aqui construir

uma redoma lógica para justificar a propriedade exclusiva sobre este objeto, nem defender

um rótulo antigo em nome de uma tradição académica, em sua quase totalidade de

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Page 45: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

orientação positivista. Deixemos a estes o árido debate sobre a classificação e a delimitação

das ciências humanas. Entretanto, devemos observar que a reflexão filosófica sobre o

espaço se fez desvinculada de uma análise histórica concreta, aparecendo como um esforço

puramente lógico (por exemplo em Kant ou em Leibnitz). Por outro lado, as ciências

específicas, ao meditarem sobre o tema, já possuem um interesse particularizado (como

por exemplo a cidade para o urbanismo) que as desvincula da preocupação com o espaço

em sua universalidade. Resta a geografia, com uma bagagem empírica considerável, e com

um restrito porém não desinteressante escopo teórico. A elaboração de uma história crítica

deste material poderá fornecer pontos relevantes à discussão. Tal empreitada obviamente foge

ao alcance deste pequeno artigo. Pretende-se aqui avançar na problematização do tema,

tentando elucidar uma proposta de encaminhamento da compreensão do espaço.

As tentativas de fazer geografia utilizando o arsenal teórico do materialismo

histórico têm-se revelado problemáticas. P. Bertoquy um dos primeiros autores da

geografia a citar Marx, partindo de um posicionamento eclético, aceita as formulações do

autor de O Capital, porém realizando uma redução economicista em sua leitura. Negando a

determinação do económico, não compreende o método de Marx, utilizando-se apenas de

algumas explicações retiradas de seu contexto. De resto, realiza um estudo nitidamente posi­

tivista. Citei este autor, pois o seu procedimento demonstra um tipo de conciliação entre o

marxismo e a geografia: a daqueles que utilizam as colocações marxistas em

procedimentos analíticos que lhes são antagónicos. Assim, P. George toma os termos mar­

xistas tendo-os por conceitos e os insere em propostas tipológicas. Por outro lado, alguns

geógrafos claramente posicionados encastelam-se na famosa afirmação de Marx: "Só

reconhecemos a existência de uma ciência: a ciência da história", para deslegitimarem as

questões geográficas. Estes, a partir da crítica de solucionamentos propostos, negam a

validade dos temas em si, tomando a crítica, tarefa importante, por tarefa única do

geógrafo marxista; como se a luta ideológica resolvesse todos os problemas postos para a

ciência. A partir dessa negação m totum da geografia, e tomando o materialismo histórico

por método de análise, chegam ao que poderia ser definido como uma sociologia espacial

(uma projeção das relações sociais no espaço concreto, atentando para as contradições

gerais do capitalismo), reduzindo o objeto ao seu aspecto fenomê-nico, assim una espaço

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Page 46: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

dado, determinado diretamente pelas leis gerais da acumulação capitalista. De um lado, os

lugares (locais de ocorrência) com seus arranjos únicos de mediações incognoscíveis, de outro,

as leis abstraías do modo de produção. O espaço como receptáculo. Definindo o objeto

positivamente como fato, fenómeno, epi derme de uma essência (na verdade transformada

em princípio normativo), condena-se sua apreensão à metodologia positivista. Este quadro

lembra que as maiores contribuições em direção à dialética do espaço vieram de autores

pouco ortodoxos com D. Harvey e M. Santos.

As dificuldades de uma proposta geográfica no materialismo histórico vinculam-se a

uma má compreensão da especificidade do objeto e conseqüentemente da forma de sua

apreensão, e também de um não aprofundamento na metodologia e na teoria do conhecimen­

to marxista. Não há nos clássicos uma teoria sobre o espaço, porém é no procedimento

analítico e explicativo que devemos nos reter, assim às questões de princípios e de

posicionamento frente à realidade. Se em Marx, Engels e Lenin encontramos preciosos

indicadores para o estudo e a compreensão do espaço, é sem dúvida na obra de Lukács que

estão contidas as mais importantes considerações metodológicas para o encaminhamento

de nosso estudo. Não que este autor trate do espaço diretamente, mas pelo fato do filósofo

húngaro refletir sobre as questões gerais (de método e concepção) às quais já aludimos,

explicitamente a possibilidade de se estudar os seres individualizados, de existência e

formas de manifestação específicas. Lukács chega a esta problemática ao tentar apreender

a especificidade do fato estético; embrenhando-se no tecido da reflexão marxista elucida

pontos fundamentais da dialética sujeito-objeto.

A proposta lukacsiana desde logo referenda (e elucida) o primado gnoseológico da

existência, reforçando o fundamento materialista da anterioridade do ser em relação à

consciência. Assim, as coisas têm uma existência anterior e exterior às representações que

os homens delas fazem. Esta prioridade e exterioridade do real frente ao conhecimento é um

dos pontos basilares da proposta lukacsiana. O pensamento é posto como apropriação

humana do real, engendrado pelas atividades cotidianas, pelo trabalho. Sendo a realidade e

o conhecimento movimento, qualquer saber é sempre aproximativo: sendo absoluto e

relativo, pois é a apropriação possível naquele momento concreto, porém é ultrapassado

(como momento imóvel) pelo próprio movimento da realidade. Deste modo, inda gado

46

Page 47: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

sobre o problema das ciências particulares, respondeu Lukács: "Hoje entre nós, tornou-se

hábito representar qualquer disciplina que encontrou cidadania académica como uma esfera

autónoma do ser... Ora, sou do parecer de que todas estas coisas são historicamente mutáveis

e que, deste ponto de vista, o ser e suas transformações são o fundamental". Porém, desta

formulação não se depreende que Lukács não reconheça a existência de seres diferenciados

no real, pois coloca ele que muitos complexos não podem ser simplesmente deduzidos de

outros, por serem mediatizados por sua causalidade inerente e pela dose de acaso aí contida:

critica, isto sim, p caráter fragmentário e normativo das ciências particulares. Diz Lukács:

"todo o existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e

movida) de um complexo concreto". Assim, o critério de validade de uma dada reflexão

embasa-se no critério da verdade, a existência (não autonomizada) de seu objeto na

realidade. Porém, como apreendê-lo (delimitá-lo)? Para Lukács, numa perspectiva genética:

"devemos pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que

condições estas formas fenomê-nicas podem tornar-se cada vez mais complexas e

mediatizadas. Porém, não partindo do elemento isolado, que só existe em conexão no

processo e só assim tem sua razão de ser, e sim do complexo unitário em sua existência

primária. Temos então um ser, parte movente da totalidade histórica, cuja singularidade

articulada de elementos lhe denota um movimento próprio; devemos apreendê-lo em sua

manifestação simples e ir problematizando-o. Diz Lukács: "Interessam de fato as conexões

do ser e fazemos abstração do fato de que uma determinada conexão seja tratada pela

ciência atual como algo de psicológico, sociológico, de pertinente à teoria do conhecimento

ou à lógica. . . A conexão vem tratada como conexão existente, enquanto é considerado

secundário perguntar-se qual a ciência que dela se ocupa". A ciência para Lukács é

engendrada no processo de trabalho, ao estabelecer-se no homem a consciên cia da

causalidade do mundo exterior. O trabalho define a materialidade social pois apenas nele

há uma perspectiva finalista, uma teleologia. No ato do trabalho, diferenciam-se a ação e o

pensamento; este, uma interioridade do sujeito, deve-se sujeitar à causalidade do mundo

exterior se quiser concretizar seus fins. "A teleologia é um modo de posição sempre

realizada por uma consciência, que, embora guiando-as em determinada direção, pode

movimentar apenas séries causais". Assim, sem considerar a causalidade, a consciência é

impotente diante da natureza. À pré-ideação (construção mental antecipada) do produto

47

Page 48: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

deve-se seguir a avaliação da possibilidade de realizá-lo. Lukács elogia Hartmann, que separa

dois momentos no ato do pensamento: a colocação da finalidade e a investigação sobre os

meios. No segundo momento funda-se a ciência, como a busca do conhecimento adequado.

Ao realizar-se o trabalho, agora materializado num produto (uma natureza transformada), a

consciência objetiva-se. "Tão-somente no trabalho, na colocação da finalidade e dos meios

de sua realização, a consciência, mediante um ato que ela mesma dirige (ou seja, emidante a

colocação da finalidade), ultrapassa a simples adaptação do ambiente — condição essa que

é comum, mesmo àquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza

de modo involuntário e põe-se a executar na própria natureza modificações que para os

animais são impossíveis até mesmo inconcebíveis. Ora, na medida em que a realização de

uma finalidade se torna um princípio transformador e informador da natureza, a

consciência que impulsionou e orientou um tal processo não pode ser mais, do ponto de

vista ontológico, um epifenômeno". Porém, a utilização não implica em conhecimento da

totalidade, apenas na avaliação adequada do ob-jeto e dos meios empregados. O remeter à

totalidade diferencia a práxis apropriadora da práxis utilitária. A ciência fragmentária da era da

decadência ideológica da burguesia tenta perpetuar a práxis utilitária e manipulatória13.

Lukács, ao propor uma base ontológica para o conhecimento científico, possibilita o estudo dos

objetos em sua individualidade sem cair na autonomização positivista. Diz ele: "O objeto é o

que existe realmente, a tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de compreender o

seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões no seu interior", e ainda "... a

questão ontológica não simplifica artificialmente o problema; oferece, ao contrário, uma base

científico-filosófica para compreender o processo na sua complexidade e ra-cionalidade. . .

De tal modo, a ontologia pode superar problemas que a divisão do trabalho nas várias

disciplinas tornou insolúvel".

Tentemos remeter à problemática do espaço a proposta lukacsiana. Assim, iniciar a

busca da ontologia do espaço. Desde logo, devemos admitir "o espaço enquanto natureza

em si", como existência objetiva anterior ao homem, manifestação de formas da ma­

terialidade inorgânica e orgânica, engendrado numa história natural onde as transformações

ocorrem sem a impulsão finalística. Este espaço é uma realidade fáctica, o reino absoluto da

causalidade. Em termos lógicos e históricos, admitimos que é nesta realidade que se forma

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Page 49: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

o ser social, forma mais elevada da materialidade. Este transforma teleologicamente (com

finalidade) o mundo externo através do seu trabalho. Apropria e transforma este espaço

natural, imprimindo-lhe sua marca; faz dos objetos naturais formas úteis à vida humana. O

apropriar-se do espaço concreto implica na elaboração de categorias lógicas sobre o espaço.

Num momento de parco desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, esta refle­

xão se faz por uma via empírica, utilitária. A elevação deste pensamento, com a construção

de categorias mais específicas, e a apreensão de conexões mais mediatizadas remetem ao

desenvolvimento da apropriação real, do grau de transformação do meio, ao afastamento

do limite natural. Noções como distância, extensão, fronteira, assim como a consciência do

espaço grupai e a demarcação do domínio territorial são engendradas no trabalho social,

são ilações da prática. Esta breve apreciação já nos permite diluir um nó górdio da reflexão

geográfica: a oposição entre a definição lógica e a definição empírica do objeto da

geografia. Para a primeira o objeto, o espaço, seria uma categoria lógica (na linha kantiana

de uma categoria do entendimento); para a segunda o objeto seria a superfície terrestre,

uma categoria empírica (por exemplo, na definição da geografia clássica francesa). Como

foi colocada a questão, supera-se a dicotomia racionalismo x empirismo, realçando o

caráter formal das duas soluções. Mediatizada pelo processo histórico de instalação da

humanidade sobre o globo, a apreensão do espaço se faz calcada na apropriação; este é

posto como categoria his-tórico-concreta, remetendo a um ser em movimento. O ser já não

é uma "natureza em si" mas uma "natureza para o homem" e cada vez mais um trabalho do

homem imbuído do movimento e da dinâmica própria da materialidade social.

Posto nestes termos, o natural vai ser visto como potencialidade substantivada na

apropriação humana. O ser social, forma mais elevada da materialidade, direciona as

manifestações da realidade orgânica e inorgânica com sua ação transformadora. A

materialidade orgânica e inorgânica apresenta-se no homem como necessidades (o

reproduzir sua vida animal), uma natureza interna. A natureza externa é dada como

material para a ação, sobre o qual o homem se debruça, conhece e impulsiona uma

proposta finalística. Na obra transformada (o produto do intercâmbio material), temos a uni­

dade do natural e do social, mantendo sua diferenciação enquanto causalidade e teleologia;

no próprio homem, a dialética necessidade-liberdade, mediatizada pelas condições naturais

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Page 50: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

e históricas. Desde logo, homem e natureza já estão colocados em relação na perspectiva da

ontologia do espaço. A apropriação, trabalho social, se faz sobre uma base concreta de

condições diferenciadas que não podem ser anuladas em sua determinação, pois vimos que

o homem apenas impulsiona séries causais. Substantiva as potencialidades naturais, que

como coisas em si fogem ao objetivo de nosso estudo. É como natureza para o homem que

devemos retê-la, parte ativa de um processo determinado pela história da sociedade. A

unidade do objeto é obtida fora dos esquemas deterministas, ambientalistas ou

possibilistas.

O ser é apreendido como o processo histórico-concreto de valorização do espaço,

parte movente movida da totalidade social. A especificidade do ser pode ser facilmente

estabelecida na existência de "marcos territoriais" na evolução da história humana. Por

marcos territoriais entendemos formas históricas de valorização do espaço que atuam como

forças produtivas da sociedade. Marx, em Formações Económicas Pré-Capitalistas, alerta

para o papel da sedenta-rização (fixação a um espaço) e da concentração espacial (agru­

pamento de uma população) no desenvolvimento da humanidade: certas relações sociais

são limitadas pela organização espacial (por exemplo: uma divisão do trabalho evoluída

presisupõe a cidade assim como o aparecimento do Estado pressupõe um território de­

marcado). Porém, são também relações sociais que engendraram a organização espacial.

Há uma dialética da apropriação do espaço, passível de ser explicitada no exame das

formas de trabalho e propriedade. Bem distante assim de qualquer fatalismo (causalidade

absoluta) dos marcos territoriais, pois estes são criações humanas; diz Marx: "O que faz

com que uma região da terra seja um território de caça é o fato das tribos caçarem nela; o

que transforma o solo num prolongamento do corpo do indivíduo é a agricultura. Tendo

sido construída a cidade de Roma e suas terras circunvizinhas cultivadas por seus cidadãos,

as condições da comunidade diferiram das que haviam vigorado anteriormente". Temos deste

modo o movimento como objeto, do qual a forma manifesta na paisagem é apenas um

momento em transformação; a epiderme fenomênica do processo.

Concebendo o ser como a valorização do espaço, cabe estabelecer através de quais

mediações o modo de produção lhe determina o movimento. Partir para o móvel e o

produto desta valorização em exemplos histórico-concretos. Em recente artigo18, procura­

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Page 51: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

mos, num nível introdutório, elucidar um instrumental teórico de análise para tal

empreitada. Estudamos e refletimos sobre os pontos da obra de Marx, significantes para o

tema, e tentamos uma aproximação ao diferenciar o "valor do espaço" e o "valor no

espaço". O primeiro é um valor contido, a potencialidade natural a que nos referimos

anteriormente. O valor no espaço é um valor criado, um produto do trabalho. As duas

formas ocorrem em unidade, pois a substantivação de um dado potencial implica no

dispêndio de uma quantidade de trabalho que se materializa no espaço. Porém, se o móvel

que condiciona a apropriação de uma dada porção do globo estiver numa ou noutra forma de

valor, o resultado e a dinâmica do processo de apropriação serão diferentes. No artigo

citado, relacionamos as formas de valor espacial às formas de renda da terra. Atualmente,

estamos trabalhando no sentido de exemplificar tais afirmações em estudos de caso.

Finalizando, queremos dizer que tentamos apresentar uma perspectiva de trabalho

no estudo do espaço. As ideias expostas são fruto de um processo de abstração; partimos de

alguns pontos e procuramos tecer o encaminhamento teórico que nos permitisse ascender

ao concreto, debruçar sobre a realidade sem reproduzir a tónica empirista da geografia.

Cabe agora iniciarmos o processo de concreção tentando dar conta de formações

territoriais concretas. Tal problemática pode para muitos ser associada a uma discussão pu­

ramente académica, porém acreditamos que solucionando-a poderemos avançar muito na

compreensão da particularidade. Esta questão é de importância vital, pois cada vez mais a

realidade demonstra que não se pode reduzir as singularidades concretas às formulações

genéricas. A singularidade deve ser bem apreendida para uma avaliação correta. O

conhecimento das formações territoriais coloca-se como imperativo de qualquer análise

política consequente.

O ESPAÇO COMO SER: UMA AUTO-AVALIACÃO CRÍTICA

Armando Corrêa da Silva

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Page 52: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Neste trabalho considero a legalidade de uma disciplina que denomino geografia

teórica, destinada à discussão do problema do espaço como ser, por uma via que define a

possibilidade da solução teórica, que implica em uma prática específica. Como são muitos

os problemas a levar em conta, e como se trata de um pensamento em elaboração, a forma

que assume o discurso é a de uma auto-avaliação crítica. Esses problemas são: o

movimento, que se repete, da posição racionalista à empirista, e vice-versa; a tentativa de

responder à questão de se a estrutura é um componente ideológico do real ou se é um

atributo do objeto; a categoria da subto-talidade, com a qual trabalho; o problema da

natureza das relações; a busca de resposta para a indagação: o que é o espaço?; a solução

pluralista em sua forma atual; uma teoria do lugar e seus fundamentos; o antigo tema da

dialética da natureza; a materialidade do espaço; a relação positivismo-dialética na

geografia francesa; o que denomino de ontologia de Reclus; a categoria da particularidade;

a natureza dos estudos sobre o Brasil; e singularidade estrutural; o movimento da estrutura;

o movimento do pensamento em nossa época; as soluções ontológicas possíveis, como a

geoeconomia, a geoeconomia política, a espacialização da economia política. Termino o texto

sugerindo a pesquisa como requisito para dar substância ao projeto de uma teoria em

elaboração, capaz de dar a referida legalidade ao trabalho intelectual, capaz de produzir

essa geografia teórica.

Os assuntos estão agrupados em três tópicos: O espaço ontológico; Espaço e

movimento; O espaço da particularidade, correspondendo, respectivamente, a uma discussão

sobre objeto, uma discussão sobre método; e uma consideração conjunta de objeto e

método, que, como determinação, põe o problema da práxis intelectual e da legalidade do

trabalho teórico. O resultado, como produto socialmente necessário, justifica-se como

atividade cultural que põe em evidência o saber como componente académica ou utilitária

em nossa sociedade, no presente. Por isso, este texto tem um valor em si e um valor para

consumo cultural. É que as ideias, ao nível da técnica, da ciência ou da filosofia, em nosso

mundo moderno, apresentam-se como elementos necessários à elucidação das contradições

do real, num nível que questiona a própria produção intelectual, como trabalho individual

ou coletivo.

Esse nível pode ser referido ao mundo urbano, que representa hoje o lugar em que

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Page 53: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

se condensam as contradições do campo e da indústria, das quais tomamos consciência

intensamente, por meio das comunicações. O discurso tem, então, uma referência lógica

específica, que representa a particularidade do presente, presente esse que contém o

passado e o futuro, espacialmente dados.

Nesta modalidade, as ideias não propõem nem a ação política, nem o debate crítico, a

não ser na própria instância de poder, a universidade. Elas encontram, por isso, seu ser, na

própria ontologia do trabalho intelectual. Todavia, essa ontologia é indicativa da ação

política e do debate crítico, sem pretender substituí-los e necessariamente comprometer-se

com outras soluções que não as do próprio autor, que se coloca aqui como um intelectual,

que não propõe senão sua própria teleologia.

O ESPAÇO ONTOLÓGICO

Muitos geógrafos, hoje, estão tentando encontrar a via de solução teórica para o

trabalho que a geografia deve fazer agora. A geografia realizada até o presente ganhou o

estatuto, que deve e necessita ser reconhecido como amplamente alcançado, de uma dis­

ciplina científica, que deveria autodeterminar-se geografia descritiva ou geografia empírica.

O movimento contraditório do pensamento, ao relacioná-las, a primeira e a segunda,

defronta-se com um grande número de questões, sem que consiga resolvê-las. É que essa

geografia descritiva é um produto acabado, ao passo que a geografia teórica está apenas

surgindo.

Uma contribuição importante da primeira é a ampla pesquisa que realizou no

âmbito dos trabalhos sobre espaço absoluto. Os textos recentes tratam do espaço relativo.

Mas esses trabalhos geralmente não contêm discussões teóricas. Além disso, põe-se o

problema do espaço relacional.

Diz D. Harvey: "Há outro sentido, em relação ao qual o espaço pode ser pensado

como relativo, e opto por chamá-lo espaço relacional — o espaço, tomado à maneira de

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Page 54: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Leibniz, como estando contido “os objetos, no sentido de que um objeto existe, apenas e

somente, se contém e representa dentro de si relações com outros objetos” (p. 13).

A proposição de D. Harvey é importante naquilo que representa a possibilidade de

superação da dicotomia espaço absoluto versus espaço relativo. É importante também

porque ultrapassa a consideração do espaço absoluto como solução filosoficamente de

caráter idealista. Isto é, o espaço absoluto de Harvey tem existência real, objetiva e

material.

No entanto, essa solução apresenta um. problema, ou seja, o espaço não se põe

como ser. A solução no que diz respeito ao mo-'vimento do espaço é remetida à prática

humana, que valida a questão da ação política e do debate crítico, mas não resolve o

problema teórico.

A solução é racionalista, naquilo em que provoca o aparecimen-_to de sua

contrapartida, o empirismo. A busca de um caminho à solução deve passar pela tentativa

de resolver a superação da contradição que se põe. Harvey não o faz. Diz ele: "Até aqui

lidamos com totalidades e estruturas como se fossem sinónimos e falhamos em considerar

como as totalidades e estruturas devam ser definidas." Contudo, reconhece que "..

.estruturas distintas existem na totalidade e (...) essas estruturas podem ser diferenciadas

umas das outras" (p. 290).

Relacionando Marx e Piaget, Harvey caracteriza o primeiro como um "estruturalista

operacional". Não sei se essa não é a posição do próprio Harvey afinal. Porque não fica

claro se a estrutura é um componente ideológico ou um atributo do objeto.

Lacoste diz o seguinte: "Apreender a espacialidade diferencial e procurar

"estruturá-la é substituir uma representação do mundo feita de dados e de demarcações

evidentes por uma representação de mundo 'construída' pela combinação de conjuntos

espaciais que se formam intelectualmente e que constituem instrumentos diferenciais de

apreensão progressiva das múltiplas formas da 'realidade'" (p. 121).

Enquanto Harvey lida com total idades e estruturas e não resolve o impasse,

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Page 55: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Lacoste assume a estrutura como objeto. Em relação à questão de se estrutura é um

componente ideológico ou um atributo do objeto, apresenta, em primeiro lugar, a questão

do observador, ou, como diz, se trata de apreender o real. Esse real é espaciali-dade

diferencial que deve ser estruturada; a partir dessa postura, Lacoste chega à conclusão de

que fazer isso é substituir o empirismo ("uma representação do mundo feita de dados e de

demarcações evidentes") pelo racionalismo ("uma representação do mundo 'construída' ");

essa construção se dá por "combinação" de "conjuntos espaciais"; os "conjuntos espaciais" se

forniam intelectualmente; esses "conjuntos espaciais" constituem "instrumentos diferenciais";

a "apreensão progressiva" do objeto mune-se, então, de instrumentos — os "conjuntos

espaciais" teóricos; o objeto são as "múltiplas formas da 'realidade' — o objeto é múltiplo e

apresenta-se como forma, que é manifestação da 'realidade'.

Ë clara a crítica ao empirismo e a defesa da posição racionalista. Mas por um

caminho diferente do de Harvey. Note-se que Harvey assume a dialética e o método de

Marx; Lacoste trabalha com uma modalidade de estruturalismo que se qualifica como

"estrutura da espacialidade diferencial". O que ambos têm em comum é a preocupação

com a especificidade do objeto: Harvey fala em "estruturas distintas", que podem ser

"diferenciadas umas das outras"; Lacoste fala em "conjuntos espaciais", mentais, que são

o meio para a apreensão progressiva do objeto, que é múltiplo e apresenta-se ao ob­

servador como forma, e esta como maneira de ser da 'realidade'.

A contribuição de Lacoste, que julgo importante, é a desmistifi-cação do

reducionismo geográfico: o todo é, desde logo, complexo. Essa complexidade é, então,

desdobrada analiticamente, no discurso, através de uma solução estrutural que se apoia nos

termos espacialidade diferencial, representação do mundo, combinação, conjuntos

espaciais, instrumentos diferenciais e formas.

No entanto, o espaço se põe como ser, mas por uma via epistemo-lógica; a questão,

de simples passa a ser complexa, mas o todo é preservado por um recurso tradicional da

geografia francesa: a noção de combinação. O todo não o é como tal, mas resulta de um

agrupamento.

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Page 56: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

A solução é, por isso, uma proposição metodológica que remete ao fazer e,

portanto, ao empirismo: cabe à prática intelectual resolver a questão. Daí que, a pergunta: a

estrutura é um componente ideológico ou um atributo do objeto? fica sem resposta, ou

seja, só a prática humana a resolve em Harvey, e só a prática intelectual a resolve, em

Lacoste.

Uma objeção importante às caracterizações de Harvey e Lacoste a propósito do

espaço é a de que elas dizem respeito a uma posição, que pode ser considerada como

resultado de um ponto de vista relativo ao lugar de observação: os Estados Unidos e a

Europa. Qual poderia ser o ponto de vista do Terceiro Mundo?

Para Milton Santos, que estudou a questão, o espaço se põe como "totalidade e

estrutura interna". Como diz: "A natureza dessa nova forma de totalização correspondente

à era da tecnologia e das multinacionais exige que o quadro nacional seja tomado como a

escala viável dessa totalidade e dá um lugar particular ao valor da estrutura interna,

concreta, de cada país. É através dessa estrutura interna concreta que os chamados valores

mundiais se exprimem ao nível de cada classe social, de cada lugar, de cada cidadão, que é

o que conta" (p. 171).

Aqui, a estrutura não é nem um componente ideológico, nem um atributo do

objeto. Desde logo, a questão se põe de modo diverso. É que Milton trabalha com uma

teoria do valor normativa: é quando diz que "a natureza dessa nova forma de totalização"

(tecnologia e multinacionais) exige uma escala ("o quadro nacional"). Por isso, põe-se a

questão da especificidade da escala, especificidade essa que recebe um atributo de valor. Ou

seja, "a natureza dessa nova forma de totalização", "dá um lugar particular ao valor da

estrutura interna, concreta, de cada país". Então, o espaço age valorativa-mente sobre o

espaço e o sobredetermina fenomenologicamente, vale dizer, pelo ângulo da percepção. A

essa teoria do valor psicológico acrescenta-se uma dimensão diferente: não é que o lugar

tenha um "valor em si" (absoluto); mas "é através dessa estrutura interna concreta que os

chamados valores mundiais se exprimem". Há, então, uma teoria do valor, psicológica,

que se exprime através de uma estrutura interna ("concreta, de cada país") objetiva; esta

objetivi-dade é representada pela classe social, pelo lugar e pelo cidadão; o concreto se

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Page 57: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

exprime como instâncias (níveis), que são esses: a classe, o lugar, o cidadão; um dado

social, um dado geográfico e um dado político. A unidade do argumento é sistémica e

pode ser representada na sequência: valores mundiais (input), estrutura interna concreta

(quadro nacional) (processamento), e classe, lugar, cidadão (output). O feedback,

representado pêlos níveis classe, lugar, cidadão, influindo sobre os valores mundiais,

realimenta o sistema.

A solução de Milton Santos implica em uma abordagem que com-bjna economia

política, geografia, fenomenologia, e análise sistémica. Há, aqui, uma estrutura dinâmica de

sentido diverso do das soluções de Harvey e Lacoste. Santos lida com "totalidade e

estrutura interna". O todo aparece como sistema dinâmico, ou em funcionamento, ou em

movimento. Seu ser é a determinação interna do económico, do político, do geográfico e

do psicológico. Objetiva-mente, o todo, o sistema, é envolvente, e o observador sabe que

sua objetividade é produzida e reproduzida pela "era da tecnologia e das multinacionais",

que engloba todo o universo capitalista e se estende aos espaços socialista e Terceiro

Mundo (países subdesenvolvidos). A realidade mundial apresenta, como dado, a nação, o

"quadro nacional", como estrutura interna, que é o meio de expressão dos níveis classe,

lugar, cidadão. O conhecimento resultante é uma modalidade específica de estruturalismo,

que apresenta a possibilidade de tratamento de muitas variáveis a um só tempo. No caso, a

análise sistémica é uma análise geoeconômico-político-feno-menológica. A posição de

Milton, aqui, amplia a discussão de Harvey e Lacoste, quando sugere a noção de

"estruturalismo sistémico. O "estruturalismo sistémico" torna irrelevante a questão de se a

estrutura é uma ideologia ou se é um atributo do objeto.

Minha posição em relação às questões apresentadas não implica em negação das

soluções encontradas. Nesta auto-avaliação crítica preocupa-me a afirmação de Harvey de

que o método de Marx propõe que as soluções sejam tomadas como problemas e estes

como soluções. Examinando as proposições anteriores, encontro lugar para a afirmação de

minha problemática. Digo: "Isto quer dizer que cada geógrafo mantém a tradição da

ciência de síntese, mas termina por abordar apenas uma parte do todo. O possível é, então,

a construção da subtotalidade" (p. 6).

57

Page 58: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

A ideia de subtotalidade é uma transposição, para a dialética, do problema do todo

e partes do estruturalismo. É fácil compreender que, tratando do conhecimento em seu

conjunto, a ideia de subtotalidade pode justificar a existência de qualquer conhecimento es­

pecífico: em meu caso, da geografia.

Meu ponto de partida é o espaço relacional de Harvey, mas tendo corno ponto de

referência a teoria das mônadas de Leibniz. Por que a tomo? Porque vejo a geografia como

uma ciência que tem no espaço-superfície da terra seu objeto. O espaço é o fundamento de

meu racionalismo, quando o afirmo como categoria que contém o lugar, e este é expressão

da área, da região, do território. A superfície da terra é o fundamento de meu empirismo,

quando a tomo como manifestação concreta sensível do lugar, enquanto céus, rios,

montanhas, planícies, cidades, portos, populações etc. A teoria das mô-nadas identifica as

categorias e conceitos geográficos e os mostra à percepção na superfície da terra, como

lugar em si e lugar de ocorrência e manifestação.

A dualidade "razão pura" — "razão prática", de Kant, permite que se coloque o

problema da explicação, superando a tipologia implícita na proposição de Leibniz.

A dialética de Hegel me dá condições para entender que o território (tese) é a

afirmação, que leva à sua negação como região (antítese), contradição essa que é

superada enquanto área (síntese). Então, uma dialética do lugar e, por isso, uma dialética

do espaço, do qual tomamos consciência e que, no movimento do real, permite resolver os

problemas que nos coloca.

De Marx tomo a dialética materialista e o materialismo histórico, que me dão a

dimensão da materialidade do espaço e da presença" nele da história e, por isso, de

categorias como o tempo geográfico e o tempo histórico.

De Windelband retenho a noção de ciências idiográficas e nomo-téticas, que deve

encontrar solução no âmbito da geografia.

De Wittgenstein retenho os recursos metodológicos da filosofia analítica, como

instrumental importante para entender a epistemologia.

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Page 59: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Da fenomenologia tomo ajíeoria da percepção e a teoria do fenómeno em geral.

Do existencialiízma baseio-me, principalmente, na questão do sujeito e objeto

existenciais.

Finalmente, encontro em Althusser as noções de estrutura e sobre determinação, mas

separando o positivista do filósofo dialético.

Não há elitismo, na posição. Essa teoria do conhecimento está se tornando

necessária.

Não há, também, ecletismo, porque não há mistura nem arbitrariedade no tomar

dessas posições elementos para a análise, articulando-os numa ontologia especial. Por isso,

a análise de que lanço mão é, basicamente, a análise ontológica. É por isso que, aos

problemas aqui apresentados, em Harvey, Lacoste e Santos, gosta ria de acrescentar o

seguinte: de que natureza são as relações possíveis, ao nível do objeto e do método? É o que

pesquiso atualmente.

Não há, na minha posição, a tentativa de lutar contra o raciona-lismo, ou contra o

empirismo, embora na minha práxis intelectual tenha que considerar essa problemática, na

medida em que o movimento geográfico pende, ora para uma posição, ora para outra. Mi­

nha preocupação é, lançando mão dos fundamentos enunciados e, talvez, de outros —

tendo como referência o objeto geográfico — encontrar uma solução não sistémica para a

contradição. Por isso, trabalho com ontologia. Mas subtotalidade não é sinónimo de sub­

sistema. Esclareça-se que nada tenho a opor à teoria geral dos sistemas, enquanto ao que é,

ou seja, uma teoria, entre outras.

A questão crítica, que se coloca em relação à proposição de subtotalidade para a

geografia, é o problema das relações e de sua natureza. Não me refiro às relações homem-

meio ou homem-natureza, mas ao conjunto das relações espaciais, naturais e sociais. Por

isso, a questão que se põe, como pré-requisito, e que ainda não está respondida é: o que é o

espaço?

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Page 60: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Se o espaço é tomado como dicotômico, muitas soluções são possíveis: há tantos

espaços quantas são as abordagens. Se o espaço é tomado como contendo em si a

contradição, apenas duas soluções são possíveis: a monista e a pluralista. A solução

monista implica na consideração do espaço como uma única substância, irredutível a

qualquer outro aspecto do real. A solução pluralista o toma como sendo inteiramente

articulado por seus elementos componentes. Discuto, aqui, apenas esta segunda posição.

Não se trata de apresentar uma solução de "laboratório". O que faço é lançar mão

do fundamento de uma proposição. Parto da crítica da ideia — tomada unilateralmente —

de que “os corpos ocupam lugar no espaço”. Por isso, proponho (desenvolvendo as~cõrïiéqüên-

cias da posição de Harvey), que tanto os corpos como o lugar vazio constituem

rnanifestações da materialidade do espaço. Na medida em que a demonstração não se propõe, a

questão se põe como posição de princípio. Por isso, o tema substantivo passa a ser: teoria do

espaço? ou, teoria do lugar?

Não há necessidade de defender a existência de teorias do espaço. O que tem sido

contraditado é a possibilidade da existência de uma teoria do lugar, porque lugar não seria

uma categoria do entendimento. Excluo, desde logo, a ideia de que a proposição de "gê­

neros de vida", de La Blache, por exemplo, seja uma teoria do lugar. Como diz

Hartshorne: "Se as variações entre as diversas cate gorias de fenómenos, referidas pêlos

exploradores e pêlos viajantes acerca de muitas áreas do globo (. . .), não mostrassem

possuir qualquer relação mútua além da que oferece a localização comum, a geografia

seria pouco mais do que um catálogo organizado ou uma enciclopédia de fatos sobre

diversos países" (p. 18).

Uma teoria do lugar, significativa para o homem, deveria ser uma teoria do valor

em geografia. Por isso, defendo, também, como quës^ tão de princípio, a ser demonstrada,

a existência de um modo de produção natural e a existência do trabalho natural; em outras

palavras, uma dialética da natureza, além de uma dialética do social — que é admitida sem

muita dificuldade — que seja o fundamento da ideia de Marx do que deixa implícito com

a noção de primeira natureza. É um pressuposto necessário para mudar a ênfase da ideia

de ocupação do espaço para o conceito de relações no e do espaço. Não que a primeira

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Page 61: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

não ocorra, mas sua consideração extrapola o objeto da geografia. Por isso, é necessário

tomar o espaço em si como ocorrência material, como espaço absoluto, relativo e

relacional. Por este caminho a geografia deixa de ser ape-nas uma ciência auxiliar e

externa a outras ciências.

Penso que as ideias de subtotalidade e de materialidade do espaço, como foram

expostas, representam questões a serem debatidas. E elas levam à questão, na solução

pluralista, da existência de um espaço interno e de um espaço externo. Do ponto de vista

hege-liano, o monismo se põe como tese, o pluralismo como antítese. Não sei qual a

síntese. Talvez não seja possível discuti-la, sem a consideração da questão espaço e

movimento.

ESPAÇO E MOVIMENTO

Esta é uma questão bastante atual e, no plano do conhecimento,1 vem sendo

discutida como dicotomia, ou contradição, como positk; vismo ou dialética.

Tomo, aqui, o exemplo da geografia social francesa.

O que entendo por positivismo, no caso, tem como ponto de apoio a ideia de que,

nos autores que vou mencionar, aparência e essência da realidade apresentam-se

separadas, apesar da discussão constante sobre forma: a paisagem. Além disso, suas

posições variam no tempo e em teoria do conhecimento: em linhas bastante gerais, os

clássicos preocuparam-se com o objeto; os modernos privilegiam o sujeito. Há, então, uma

separação também neste aspecto.

Comento, brevemente, essa separação em Vidal de La Blache, em Max. Sorre, em

Pierre George e em Paul Claval.

A separação em La Blache manifesta-se na dicotomia espaço e progresso, que tem

como referência o princípio da unidade terrestre.

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Page 62: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

A separação em Sorre parece como uma tentativa de relacionar espaço e equilíbrio

(ecologia). O equilíbrio é referido como equilíbrio instável. A unidade terrestre de La

Blache transforma-se na análise que fragmenta o espaço em geodésico, natural, humano,

político, económico e social.

Em Pierre George a separação assume a relação espaço e ação. A ação desenvolve-

se sobre uma base, a superfície da terra, que é u meio, no qual existe a comunidade

humana. As relações se dão em planos horizontais e verticais e são diversificadas na

tipologia.

Paul Claval estabelece uma separação entre espaço e percepção. A dicotomia

apresenta mais dó que a consciência subjetiva da fragmentação, ela se torna uma aguda

relação sujeito-paisagem, no conceito mais recente de entorno.

Apesar do predomínio, na geografia social francesa, dessa abordagem, essa mesma

geografia apresenta uma ruptura em sua unidade, quando se considera o caso de Elisée

Reclus.

Reclus, em sua obra Uhomme et Ia terre, afirma o seguinte: "Cada período na vida

de um povo corresponde a uma mudança em seu meio ambiente. São as desigualdades na

superfície do planeta que criam a diversidade na história humana. A vida reflete o meio

ambiente. A terra, o clima, a maneira de trabalhar, o tipo de alimentação, a raça, as relações

de parentesco e os sistemas de agrupamento social são dados fundamentais, que

desempenham seu papel e influem sobre a história de todo indivíduo" (p. 42).

Nessa proposição de Reclus são importantes as indicações de que: 1) há uma

correlação entre a existência de um povo no tempo e a modificação do meio ambiente; 2)

essa correlação é explicada como sendo o resultado da determinação das desigualdades do

globo, que geram a diversidade da história humana; 3) o solo, o clima, a forma de trabalho,

a alimentação, a raça, o parentesco, os sistemas de agrupamento social influenciam a

história dos indivíduos.

Essa proposta não teve continuidade. São muito recentes as discussões sobre

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Page 63: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

geografia e dialética. Modo de produção é uma categoria ausente do raciocínio geográfico.

Começam a surgir em alguns trabalhos uma resposta a essas questões. É o caso, por

exemplo, de James Anderson, quando debate ideologia e geografia. Não obstante, a questão

é colocada em termos gerais e não se chega à particularidade.

Considere-se que, na proposição de Reclus, o espaço determina ontologicamente o

real. Mas, nas contribuições recentes, com exceção talvez apenas de Harvey, já citado, não

há uma formulação nesse sentido. O problema é remetido à prática, entendida como ação

política, ou ao discurso de denúncia. Em outras palavras, as questões teóricas têm também

que ter respostas teóricas para que a imanência do real se ponha sem separação de

pensamento e ação. Por isso a questão da particularidade é importante.

O ESPAÇO DA PARTICULARIDADE

Põe-se, por isso, o espaço particular.

A situação apresentã~uma complexidade talvez específica: substitui-se a discussão

das disparidades regionais pela discussão sobre as estruturas, apenas transpondo a

problemática, sem solucioná-la.

Tomo, aqui, os grandes estudos sobre a realidade brasileira geográfica que

apresentam pontos de apoio importantes, para discussão, em livros de franceses sobre o

Brasil, em estudos nossos de grandes regiões e estudos sistemáticos especializados.

Considero, como exemplo, alguns deles.

É importante verificar que todos tomam o Brasil como particularidade, mas o

discutem como singularidade: lógica, nos franceses, empírica, em nosso caso, nos exemplos

escolhidos.

É preciso, então, dizer alguma coisa sobre a particularidade.

Baseio-me nas afirmações teórico-metodológicas G. Lukács, que estudou o assunto.

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Page 64: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Diz ele, inicialmente: "A verdadeira ciência toma da própria realidade as condições

estruturais e suas transformações históricas, e quando formula leis, estas abrangem, sem

dúvida, a universalidade do processo, mas de modo que pode sempre baixar dessa

legalidade até os fatos singulares da vida, embora, certamente, isso ocorra frequentemente

através de muitas mediações. Esta é precisamente a dialética, concretamente realizada, do

universal, do particular e do singular" (p. 98).

Falando do procedimento de Marx, afirma: "Uma investigação concreta desse tipo

mostra sempre e em todos os casos a relativiza-ção dialética do universal e do particular;

sob determinadas situações concretas especifica-se o universal, que entra em uma deter­

minada relação com o particular; mas também pode ocorrer que o universal absorva, ou

destrua as particularidades, ou que apareça em interacão com particularidades novas, ou que

algo anteriormente particular se desenvolva até converter-se em uma generalidade, e vice-

versa" (p. 101).

Lukács cita considerações de Marx a respeito da divisão no processo produtivo:

"Tomando como referência o trabalho, pode caracterizar-se a divisão da produção social em

seus grandes géneros, a agricultura, a indústria etc., como divisão do trabalho em geral; a

especificação desses géneros da produção em tipos e subtipos, como divisão do trabalho em

particular; e a divisão do trabalho dentro de uma oficina como divisão do trabalho na

singularidade" (p. 105).

Essa relação dialética tem como referência o modo de produção, sem o que ela

seria apenas um exercício de lógica formal.

Para Lukács, "A singularidade tem uma grande riqueza de determinações, quando é

o elo final de uma cadeia de conhecimentos que conduz de legalidades descobertas, de

universalidades concretas, à singularidade como meta do processo de pensamento" (p. 107).

Mais adiante, afirma: "O singular, precisamente como singular, é conhecido de modo

seguro e verdadeiro, tanto quanto mais rica e profundamente se descobrem suas mediações

com o universal e o particular. Há, evidentemente, casos nos quais o conhecimento do

singular, mediante aspectos isolados e puramente abstratos, é possível e suficiente; mas,

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nesses casos, trata-se, geralmente, mais de um reconhecimento (no sentido de

identificação) do que de um conhecimento" (p. 116).

A questão se põe, então, como segue: "O singular não existe senão na conexão que

conduz ao universal. O universal não existe senão no singular, através do singular. Todo

singular é universal (de um modo ou de outro). Todo universal constitui uma partícula, ou

um aspecto, ou a essência do singular. Todo universal abrange os objetos singulares de um

modo meramente aproximado" (p. 118).

Por isso, "O movimento do singular ao universal, e vice-versa, está sempre

mediado pelo particular; é um fenómeno real de mediação, tanto na realidade objetiva,

como no pensamento, que reflete de modo aproximadamente adequado essa realidade. Mas

é um meio de mediação, de natureza muito peculiar" (p. 121).

Para Lukács, "a particularidade desempenha, ante o singular, uma relativa

universalidade, e uma relativa singularidade, com respeito ao universal" (p. 126). Mas "os

momentos particulares mediadores têm, frequentemente, na natureza como na sociedade

um ser de contornos relativamente firmes, uma figura própria" (p. 127).

Essas citações são suficientes para a compreensão de que a particularidade é um

momento de um processo, que chega, com frequência, a possuir "uma figura própria", um

contorno que se identifica no processo de movimento do real.

Lukács fala da história e da sociedade. Como ocorre o problema em geografia?

Lambert, em Os Dois Brasis, estuda uma particularidade, mas o resultado é a

consideração de uma singularidade abstraía. Cito esse autor que, embora não geógrafo,

desenvolveu um trabalho que poderia ser classificado como de sociogeografia. Além disso,

sua contribuição marcou a obra de outros autores, como a de Monbeig.

Diz Lambert que "Os brasileiros estão divididos em dois sistemas de organização

económica e social, diferentes nos níveis como nos métodos de vida. Essas duas sociedades

não evoluíram no mesmo ritmo e não atingiram a mesma fase; não estão separadas por uma

diferença de natureza, mas por diferenças de idade. . . Observa-se, assim, dentro do próprio

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Page 66: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Brasil, a mesma diferença, grandemente acentuada, entre país novo, próspero e em

constante transformação e sociedade velha, miserável e imóvel, que se nota no plano

internacional" (p. 101).

Mais além, caracteriza os "contrastes" (p. 101), entre a "cultura arcaica" e "uma

outra sociedade, muito mais móvel e evoluída" (p. 102); a diversidade observada abrange o

que chama de "Brasil arcaico" e "Brasil novo". (. . .) "Conquanto o país novo — continua

— e o país velho, colonial, tenham cada qual o seu domínio próprio — o primeiro no Sul e

o segundo no Nordeste — um e outro estão presentes por toda parte e indissoluvelmente

ligados." A isso, acrescenta, esclarecendo, a ideia de "diferenças de idade": "os dois Brasis

são igualmente brasileiros, mas estão separados por vários séculos" (p. 103).

Um dos Brasis apresenta "comunidades que não congregam senão um pequeno

número de indivíduos", unidos "pelas relações pessoais"; o outro "constitui uma vasta

sociedade, cujos membros estão ligados não por contactos pessoais, mas pelas

solidariedades in-diretas, e bem mais amplas, da divisão do trabalho e das instituições

políticas" (p. 120/1).

A natureza dos "contrastes" é que "o Brasil é ainda um país essencialmente

agrícola, um país, entretanto, que se industrializa dia a dia e que, em certas regiões, já

deixou de ser subdesenvolvido" (p. 189).

Essa produção do raciocínio singular abstraio reaparece em Mon-beig, no seu

trabalho O Brasil. Por isso, diz que "Procurar uma fórmula-chave para definição do Brasil

moderno seria uma ginástica intelectual. Mais vale reconhecer aquilo que lhe fez a

originalidade" (p. 7). Comparando o "moderno" com o "colonial", afirma: "Seria banal

recordar que este continente tropical é uma terra de contrastes. Tudo aqui se faz por meio

de bruscas mutações" (p. 8).

Enquanto Lambert examina uma realidade que lhe aparece como uma estrutura

simples, dualista, e estática, Monbeig preocupa-se com o desenvolvimento dessa estrutura:

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"Progressivamente, os homens completam a conquista pacífica da terra brasileira, fazendo

surgir regiões humanas singularmente mais complexas do que os grandes conjuntos

naturais" (p. 39). A ideia de unidade na diversidade, presente em Lambert, é retomada aqui

de outra maneira: "As regiões todas participam de igual estrutura económica de origem co­

lonial e as estruturas sociais, legado da sociedade do tempo dos plantadores, são, em toda

parte, da mesma essência. É aí que importa procurar os fundamentos da sociedade

brasileira. Aí, também, é que se acha a fonte de seus problemas" (p. 66). Por isso, os

problemas atuais da população "decorrem — diz ele — de uma distribuição muito desigual

dos habitantes pelo território e dos que são suscitados pela expansão demográfica e pelo

futuro da infância" (p. 83). A economia moderna apresenta dinamismo e crescimento

desiguais "em todas as regiões do país" (p. 84).

Retomando a ideia de Lambert, sobre a natureza do país, Monbeig afirma:

"Elemento motriz da economia nacional, a agricultura não conseguiu ainda adaptar-se às

necessidades do mundo moderno. Um velho Brasil agrícola se opõe a um novo Brasil

agrícola" ( . . . ) (p. 101).

Depois de discorrer sobre o "Surto e limites da indústria", Monbeig conclui: "Uma

enorme distância separa dois Brasis, caracterizados por duas civilizações diferentes: o

Brasil das metrópoles e o Brasil rural (. . .) Entre os dois Brasis, os liames são de

dependência e de dominação. O Brasil evoluído age menos como um pólo de de­

senvolvimento do que como um pólo de atração. A diferença se aprofunda entre regiões de

atividades diversificadas e lugares atrasados, entre as grandes cidades e seu arredores e o

sertão, do mesmo modo que se alarga o fosso entre os países altamente industrializados,

com elevado nível de vida, e o Terceiro Mundo" (p. 127).

Tanto Lambert, como Monbeig, podem ser incluídos entre os autores que discutem a

realidade em termos de disparidades regionais. Essas disparidades regionais, contudo, são

tomadas apenas em sua singularidade abstraía, ou seja, é feita a descrição da paisagem ob­

servada, em termos de sua aparência.

Lambert parte da ideia de dualismo, para fazer essa caracterização: Monbeig rejeita

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Page 68: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

qualquer ideia orientadora da análise e, como Lambert, preocupa-se com a originalidade. Essa

singularidade é um conhecimento verdadeiro naquilo que se trata de constatação fatual.

Contudo, conforme citação de Hartshone, feita anteriormente, essa geografia deve

ultrapassar o que o leigo pode constatar. Para que isso seja possível, é necessário

considerar a particularidade concreta, como mediação dos espaços relacional e absoluto

concretos, em sua expressão teórica.

Em Geografia do Brasil, do IBGE, as disparidades são tratadas como

"diferenciações regionais e seus problemas" (p. VII, vol. I), caracterizando-se a análise pela

descrição das variações das grandes regiões do país. Aqui, também, lida-se com a

singularidade, embora se chegue "ao nível do estabelecimento, ou quase, de sistemas e

configurações espaciais. Trata-se de aplicação de uma teoria.

O estudo sistemático mais abrangente, publicado sobre o país por geógrafos, é o

"Brasil a terra e o homem". Aqui, a singularidade apresenta-se como um conjunto que

mantém, dentro de si, as características simultâneas de metrópole e colónias (p. 27).

Em Lambert, uma caracterização estrutural simples; em Monbeig uma caracterização

estrutural complexa; na obra do IBGE a constatação estrutural sistémica em processo; em

Brasil, a terra e o homem a descrição da relação centro-periferia como componente de uma

estrutura analisada sistematicamente.

Repõe-se, então, a questão: a estrutura é um componente ideológico da análise, ou

um atributo do objeto? O problema se põe novamente porque são possíveis os particulares

e os universais abstra-tos. O que significa que análises de particulares e universais con­

cretos poderiam também deixar em aberto a questão.

Discuto, então, nesta auto-avaliação crítica, algumas questões relativas à

subtotalidade. O primeiro ponto a considerar é o problema do real como funcionamento e

como movimento.

O funcionamento do real é sua estrutura. A afirmação significa que a contradição é,

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Page 69: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

como diz Althusser, "complexamente-estruturalmente-desigualmente-determinada" (p. 185).

A sobredeterminação implica na consideração da ação, que se sabe determinada e que se

movimenta na autoconsciência da totalidade. Por isso, também da subtotalidade. A relação

é, então, subjetiva-objetiva, ao mesmo tempo, de tal modo que a separação tradicional entre

sujeito e objeto transforma-se em uma modalidade específica de autodeterminação

consciente e não consciente. O ser é sujeito e objeto ao mesmo tempo.

A "era das tecnologias e das multinacionais", a que se refere Milton Santos, está

presente nessa teoria do conhecimento, no âmbito do espaço produtor e do espaço

produzido.

Para Sartre, que examinou a questão em seu início de configuração, "compreender

é modificar-se, ir além de si mesmo" (p. 20).

Desenvolvendo uma teoria do sujeito, diz: "A práxis é uma passagem do objetivo

ao objetivo pela interiorização; o projeto, como superação subjetiva da objetividade em

direção à objetividade, tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas

do campo dos possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e

da objetividade, estas determinações cardeais da atividade. O subjetivo aparece, então, como um

momento necessário do processo objetivo" (p. 81).

Por isso, "o homem é, para si mesmo e para os outros, um ser significante, já que

nunca se pode compreender o menor de seus gestos, sem superar o presente puro e explicá-

lo pelo futuro" (p. 123). Então, "as significações vêm do homem e de seu projeto, mas se

inscrevem por toda parte nas coisas e na ordem das coisas. Tudo, a todo instante, é sempre

significante e as significações revelam-nos homens e relações entre os homens através das

estruturas de nossa sociedade. Mas estas significações não nos aparecem senão na medida

em que nós mesmos somos significantes" (p. 126). Daí que "o homem não é nem

significante nem significado, mas ao mesmo tempo (. . .) significado-significante e

significante-significado" (p. 133).

Qual a consequência?

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Page 70: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

É que, por isso, o movimento da estrutura se põe, ao mesmo tempo, como estrutura

em movimento. Isto quer dizer que o espaço é (empo do espaço c o tempo é espaço do

tempo. Mas esse es-paço-tempo é um espaço-tempo alheio — para si — ou um espaço-

tempo exterior — para outro. A ação consciente torna-se sobrecons-ciente e se põe como

referência.

O pensamento, como movimento da estrutura, ou estrutura em movimento, ou,

ainda, como movimento-estrutura, ganha concretude na materialidade da ideia. A ideia

espacializa-se. Daí que a ideia espacializada passa a sobrepor-se à consciência para-si e

para-outro.

Surge a possibilidade da teoria, na ontologia do espaço.

Uma primeira possibilidade é a geoeconomia. Trata-se de construir uma

explicação, ao mesmo tempo, geográfica e económica. O fundamento do conhecimento é,

então, aJeoria.do .valor,,.que contém o natural e o social como dados espaciais, em sua

expressão de uso e de troca.

Outra possibilidade é a geoeconomia política. Nesse caso, o natural e o social são

tomados como dados espaciais, em sua expressão de uso e de troca, enquanto fundamento

da decisão política.

Uma solução não geográfica, mas de uso atualmente frequente, é a relação

economia política e espaço, com duas variantes: uma que co*ncebe a espacialização da

teoria do valor de Marx; outra, que acrescenta o espaço como dimensão da teoria marxista.

Entendo por geografia teórica, na solução pluralista, a disciplina capax de

desenvolver o estudo dessas possibilidades, e de outras, que não são pensadas aqui, neste

texto.

A pesquisa nessa direcão deve, não obstante, basear-se, inicialmente, no estudo de

segmentos pequenos da realidade, de tal modo que a questão de ideologia e atributo se

ponha como teoria em elaboração, no âmbito do trabalho intelectual. Coloca-se, então, a

legalidade da geografia teórica.

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Page 71: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Não quero terminar a exposição desta auto-avaliacão crítica sem explicitar o

conteúdo deste escrito: o desenvolvimento sério do trabalho teórico tem sido obstaculizado

pelo veloz crescimento da transformação do mundo realizado em nossos dias, que afeta o

próprio resultado desse trabalho, quando é possível realizá-lo. A solução pluralista é uma

resposta a um mundo também pluralista pela incapacidade da teoria de dar conta de sua

unidade. Por isso, o empirismo tecnológico recupera sempre seu terreno, até antecipando-se

à capacidade de compreensão do real. Abre-se o caminho a novas modalidades de

irracionalismo. Daí que se põe como dado a própria necessidade da teoria, que orienta a

ação humana. As ideias aqui expostas têm como finalidade fundar a legalidade do trabalho

intelectual não alienado e cada vez mais socialmente necessário no presente. Como esse

trabalho se põe como produção da teoria, ele se coloca, ao mesmo tempo, como projeto, e

como consciência do existir, que autodetermina a significacão-significado. Por isso,

legaliza-se a teleologia da ideia que se produz como ideia, abrindo caminho para a práxis

específica da inteligência realizando o que o modo de produção coloca ante ela como

necessidade. Põe-se, então, a própria necessidade da liberdade do trabalho intelectual não

alienado, sem o que a fetichização do produto positiva a consciência, empobrecendo-a e, com

isso, produzindo e reproduzindo a ideia pobre e a realidade pobre que fundamenta essa

ideia.

Referências bibliográficas

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A GEOGRAFIA ESTÁ EM CRISE. VIVA A GEOGRAFIA!

Carlos Walter Porto Gonçalves

Muita tinta se tem gasto para discutir o que seria uma geografia científica. Esta

busca de cientificidade é, até certo ponto, um esforço de legitimação do intelectual perante a

sociedade como um todo. O ritual que envolve o trabalho intelectual tem, portanto, um ca-

ráter de busca de legitimidade que dá ao exercício do pensar o resal uma dinâmica

específica.

Todavia, a produção de conhecimento não se dá fora de um contexto histórico-

social, onde uma série de linhas de forças se entrechocam na realidade; relações de forças

essas das quais o trabalho intelectual tem que dar conta. Através dessas observações,

queremos deixar claro que a ambicionada cientificidade, que é o modo específico de

legitimação do trabalho intelectual, é relativa na própria medida em que o real é um

movimento que se faz através de contradições que, por sua vez, atravessam a própria

prática do intelectual.

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Qualquer esforço no sentido de desvendar a natureza da crise de um determinado

segmento do espaço do saber deve, portanto, partir da premissa de que o trabalho

intelectual, embora possuindo uma dinâmica específica, sofre influência do próprio

contexto histórico que constitui a materialidade do trabalho científico.

Neste ensaio, o que pretendemos fazer é exatamente lançar ao debate algumas

ideias acerca de natureza da crise da geografia, tomando por base a prática dos geógrafos

pensada historicamente.

A CRISE DA GEOGRAFIA E A GEOGRAFIA DA CRISE

Neste momento se discutem os impasses gerados pelo próprio pro-jeto da geografia

enquanto um segmento do saber científico capaz de dar conta, compreender e explicar,

enfim, os problemas concretos que se inscrevem no espaço geográfico em que vivemos:

poluição; "desequilíbrio" — desigualdades regionais e sociais; as guerras de independência-

conquista neocoloniais; redução do espaço geográfico sob o controle do capitalismo

imperialista-expansão do socialismo, etc. São essas algumas das evidências de uma crise

que se materializa em espaços definidos e para a qual os geógrafos teriam que dar a sua

resposta — Uma Geografia da Crise. Na medida em que hesitam, não reformulando uma

base teórica de há muito envelhecida e não assumem, portanto, uma posição crítica, os

geógrafos, em geral, deixam de lado a geografia da crise e são levados de roldão pela crise

da geografia. E isto porque os fatos são teimosos e estão aí a exigir de nós uma

compreensão que possa efetivamente nortear uma prática que leve à superação desses

problemas. Se as teorias dos geógrafos não explicam e não compreendem os fatos, pior

para as teorias!

Não pretendemos com essas afirmações demonstrar a inutilidade da geografia.

Apenas alertamos para o fato de que essa alienação da maioria dos geógrafos tem ocorrido

exatamente num momento em que cada vez mais se acentuam as referências ao espaço, em

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que este é discutido e divulgado, exigindo de nós um posicionamento. Está em questão a

cientificidade da geografia e algumas colocações têm de ser feitas para que seja legítima a

própria existência da geografia enquanto um segmento da divisão do trabalho científico. E

o problema que nos parece ser o crucial diz respeito à definição do solo teórico da

geografia, à determinação do seu objeto científico.

Embora não pretendamos esgotar o tema, devemos reconhecer que o que temos

apresentado à sociedade em que vivemos não tem sido capaz de levá-la à superação dos

seus problemas espaciais e que, de certa forma, temos sido os mistificadores dos reais

processos que governam a organização do espaço, fetichismo este que sob diversas

capas tem escondido o caráter histórico do espaço.

AS DIVERSAS "VISÕES" DA GEOGRAFIA OU A GEOGRAFIA DE ANTOLHOS

Os geógrafos elaboraram, desde o século passado, uma série de modos de abordar

a realidade, tanto do ponto de vista teórico como metodológico, que passaram a

denominar de "visões" ou "perspectivas" da geografia:

"... A visão espacial será expressa como um estudo de organizacão espacial,

proporcionando, desse modo, uma implicação de antropocentrismo; uma visão que

pode ser, por outro lado, levada ao ponto de pura geometria. A visão homem-terra ou

ecológica como que enfatizando as relações entre o homem e o seu meio ambiente natural

ou biológico. A terceira visão será expressa de várias maneiras: estudo de área, estudo

regional, inter-relações de área, corologia ou dljerenciação de área. Será I referida

também como sendo uma visão integrativa, uma vez que sua característica definitiva é a

sintetização de alcance relativamente amplo. Existe, obviamente, tanto superposição

quanto separação nestes três pontos de vista" (TAAFFE, 1975:6).

O que observamos nos diversos trabalhos que procuraram fazer uma história da

geografia é que essas "visões" sempre existiram, sendo que, em determinados momentos,

uma teria predominado sobre as demais. Neste eixo de abordagem são destacadas três fases:

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Page 75: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

1ª.) A "visão homem-terra" ou "ecológica" que teria sido predominante até a década

de 30, caracterizando bem esse período a ^abordagem determinista de Sumple e Huntington,

num primeiro momento, e a "visão ecológica" da Escola de Chicago e o estudo de "género

de vida" de La Blanche, num segundo momento.

2ª.) A "visão regional" ou "estudo de área" que firmaria posição a partir do clássico

trabalho de R. Hartshorne: The Nature of Geography (1939), estendendo-se até a primeira

metade da década de 50.

3ª.) A "visão espacial" que começa a se firmar a partir do libelo anti-hartshorneano

de Schaeffer (1953) e dos escritos de Ullman e que viria a se consolidar ria década de 60

com os escritos de Berry e de Harvey, para ficarmos somente com os exemplos dos norte-

americanos'e ingleses (TAAFFE, 1975).

Cremos não haver entre os geógrafos nenhuma polémica de fundo relativa a esta

periodização. O problema mais grave que vemos na historiografia da geografia é a tradição

historicista, evolucionista, que pouco ou nada nos esclarece sobre o problema do

desenvolvimento e da natureza das crises do pensamento geográfico. O fato é que ao se

limitar a dispor através do tempo a predominância de uma "visão" sobre as demais, num

determinado momento, pouco nos permite extrair acerca da natureza das mudanças que,

por exemplo, se deram nas décadas de 30 e de 50. Ou seja, a concepção comum entre

aqueles que se propõem a analisar a evolução do pensamento geográfico é a do caráter de

continuidade da história, o que, exatamente por isso, não abre espaço para pensar e analisar

as rupturas, as mudanças, as revoluções e contra-revoluções.

Ora, que tipo de problemas se apresentaram às "visões" hegemónicas nas décadas

de 30 e de 50, levando a essas mudanças de hegemonia? Eis aqui a pergunta fundamental

que se coloca se quisermos pensar a natureza das crises da geografia e para refletirmos

sobre novos horizontes teórico-metodológicos, pois se não percebermos a natureza da crise

que ora atravessamos, produziremos uma nova "visão" que correrá o risco de exercer

uma nova hegemonia não pêlos problemas que efetivamente coloca, mas porque

simplesmente será nova e produzirá novos modismos e novos papas muito bem instalados

75

Page 76: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

nos altares das academias e instituições oficiais.

Ao mergulharmos na natureza das crises através das quais a geografia tem

caminhado, não podemos, como tem acontecido com a maior parte dos nossos

historiógrafos, deter-nos no plano das ideias (teorias) para explicar a sua própria evolução.

O que temos visto entre esses autores é uma concepção teleológica da história do

pensamento geográfico. Para nós, não é centrando a atenção simplesmente na cronologia

que poderemos dar conta da natureza das crises, mas, ao contrário, ou seja, procurando

compreender esses momentos cinzentos em que se realiza a passagem de hegemonia de

uma "visão" a outra, como, por exemplo, as décadas de 30 e 50, através da interpretação

dos problemas que se apresentaram às "visões" até então predominantes.

Como afirmamos no início deste ensaio, a produção científica, em que pese a sua

especificidade, não pode ser pensada fora do contexto histórico em que foi elaborada. Por

mais que queiramos expressar ou colocar o discurso científico como uma "visão" neutra e

acima de qualquer outro discurso, ele se inscreve naquilo que Marx chamou de

superestrutura. O discurso científico é uma aproximação do real efetivada por indivíduos

inscritos em relações sociais, que, no caso da sociedade de classes, é de onde emanam os

antagonismos através dos quais a história se move.

Com o advento do capitalismo, a atividade científica adquire um significado muito

particular, dada a própria natureza deste modo de produção que é a de transformar tudo em

mercadoria. Neste sentido, a própria força de trabalho é transformada em mercadoria,

incluindo-se aí a força de trabalho do cientista desprovido de meios próprios de produção.

Uma série de limitações daí decorrem com relação à produção do saber, limitações essas

que apresentarão variações de grau, segundo a correlação de forças em presença numa

determinada formação social capitalista.

A partir da crescente concentração dos meios de produção do conhecimento nas

mãos de algumas poucas corporações e do Estado, a tendência que observamos se faz no

sentido da monopolit zação do saber. Não é fortuito que a tecnocracia se afirme cada vez

mais e uma nova ideologia se consolide: o cientificismp. Isto porque sendo a acumulação

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Page 77: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

de capital, baseada na extração de mais-valia, o motor propulsor do modo capitalista de

produção, tem este a necessidade de estar munido dos conhecimentos que lhe permitam

uma forma superior de extrair valor excedente, qual seja, a mais-valia relativa.

A ciência adquire com o capitalismo os foros que possuía a ideologia religiosa sob

o feudalismo, não sendo fortuito, aliás, o fato de chamarmos os grandes sábios da

matemática, da física, da história ou da geografia de "papas". São os "papas" de um novo

tempo, de um modo de produção que laicizou o saber, porém, para protegê-los construiu

novos "templos" que são as novas academias de ensino e pesquisa. Este "novo" intelectual

se constitui numa correia de transmissão entre a superestrutura e a infra-estrutura,

procurando compreendê-la melhor para reproduzir a própria estrutura que o produziu.

António Gramici nos fornece a exata medida dessa situação ao dizer que

"Qualquer Estado tem um conteúdo ético, na medida em que uma de suas funções consiste em elevar a grande massa da população a um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde à necessidade de desenvolver as forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. Neste campo, a escola ( . . . ) e os tribunais ( . . . ) são setores da atividade estatal essenciais: Mas, de fato, há uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades ditas privadas que tendem no mesmo sentido e que compõem o aparelho de hegemonia política e cultural das classes dominantes" (Macciocchi, 1977:150).

Deste modo, estamos procurando evidenciar o caráter histórico da produção

intelectual que se pretende científica e, obviamente, chamando a atenção para o fato de as

"corporações geográficas", tal e qual nos fala Armen Mamigoniam, constituírem-se em

aparelhos ideológicos, conforme procuraremos aprofundar mais adiante.

Jacques Rancière em Sobre a Teoria da Ideologia nos diz que "o saber só tem

existência institucional enquanto instrumento de dominação de uma classe". Isto nos permite

entender o porquê da "ausência" de certas "visões" na trajetória do pensamento geográfico

académico, um saber que, como nos diz Yves Lacoste, "serve antes de mais nada para fazer a

guerra" (Lacoste 1977).

Por outro lado, é preciso deixar claro que não se trata, como gostam de fazer os

mistificadores cientificistas, de propor uma distinção radical entre ciência e ideologia.

Também não se pretende operar com uma distinção muito cara aos stalinistas entre ciência

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Page 78: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

burguesa e ciência proletária. Trata-se, isto sim, de deixar bem evidente o caráter de

apropriação de classes do saber, do caráter de classe que atravessa a sua divulgação por

meio das instituições que, como vimos, "compõem o aparelho de hegemonia política e

cultural das classes dominantes". Esta colocação deve servir, ainda, de alerta face a um

certo tipo de marxismo "domesticado", despo-litizado, que começa a grassar nos meios

académicos da geografia. - Essas -observações, em suma, pretendem enfatizar que a pro­

dução do saber não pode ser compreendida sem pensarmos a totalidade social no qual está

inserida. E é tendo sempre em mente essas considerações que nos propomos a analisar as

crises de hege-jnonia através das quais se tem movido o pensamento geográfico.

Antecipando um pouco o eixo de nossa análise, avançamos a concepção de que tais crises

de hegemonia não constituem somente crises teóricas e metodológicas de uma determinada

"visão" da geografia, mas sim crises que estariam subjacentes a essas questões; para o que

uma abordagem epistemológica se faz necessária. Em outras palavras, sustentamos que as

crises de hegemonia são provenientes da não-resposta de uma dada "visão" a uma realidade

historicamente determinada e, portanto, não satisfatoriamente explicada, segundo as

necessidades daqueles que controlam as instituições. A ''nova visão" que substitui a anterior

somente será válida, igualmente, enquanto atender aos interesses dos que a tornaram

hegemónica, garantindo para ela um lugar académico e o status de "científica". Como

acentuaram Marx e Engels:

"Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material, dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes, concebidas sob a forma de idéias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu domínio" (Marx & Engels 1976).

A "VISÃO HOMEM-MEIO" OU "ECOLÓGICA"

A geografia surge como saber institucional, como cátedra universitária, quando

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Page 79: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

da consolidação da burguesia e, consequente mente, do capitalismo. Influenciada, de um

lado, pelo extraordinário avanço das ciências naturais no século XIX e, por outro lado, pelo

caráter expansionista do capital, ela se afirma cada vez mais à medida que o capital

conquista o mundo. Geografia colonial é uma expressão que define bem o contexto em que

surge a geografia "científica".

Uma concepção filosófica, ao mesmo tempo bela e ambiciosa, cunhada nesses

primórdios da geografia moderna é a da unidade existente entre o homem e a natureza. A

abordagem de tal unidade tornar-se-á um desafio constante em toda a história da geografia.

A totalidade homem-natureza será preocupação central da chamada "visão homem-meio"

que se afirma através do determinismo geográfico; uma abordagem que caracteriza bem o

final do século XIX.

Em tal abordagem, as diferentes formas de organização do espaço, suas

desigualdades, eram pensadas de modo a-histórico, como resultado de condições

ambientais, climáticas, sobretudo. Como sói acontecer com a ideologia dominante,

"naturalizava" os problemas, pondo-os para fora da história. As explicações para os

fenómenos eram sempre de ordem climática ou biológica (o racismo é filho direto desta

concepção).

Não é por acaso que, nesse quadro, duas "escolas nacionais" se destacassem: a

norte-americana e a alemã, nações que se afirmam enquanto potências capitalistas ao

apagar das luzes do século XIX, quando o caráter monopolista do capitalismo já se

manifestava.

F. Ratzel, E. Semple e Huntington são os grandes expoentes do determinismo

geográfico. É a época em que não faltam financiamentos das "associações geográficas"

para viagens de levantamento dos "recursos naturais e humanos" da geografia colonial.

Poucos são os estudiosos que ousam nos dias atuais refutar a íntima ligação entre o

imperialismo e o determinismo geográfico que, embora historicamente mais antigo que o

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Page 80: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

imperialismo, se ajustou como uma luva aos fins expansionistas do capitalismo mo-

nopolista-financeiro.

Evidentemente nem todos os geógrafos do período se comprometeram com o

imperialismo, honrosas exceções podem ser ressaltadas, como no caso de E. Reclus, que

em suas obras apresentava uma visão radicalmente diversa, segundo nos informa Yves

Lacoste.

Talvez por isso suas ideias não tenham atravessado o Atlântico, "defendido" que

estava o Novo Mundo pela Estátua da Liberdade, dificultando a penetração em território

americano das ideias libertárias daquele anarquista francês. Reclus permaneceu um desco­

nhecido, ele que já sentia a importância de pensar as relações entre os centros urbano-

industriais e o campo, abrindo caminho à compreensão dos fluxos espaciais de

mercadorias, de onde e como a riqueza se acumulava e da consequente unidade na

diversidade do espaço. Não queremos dizer que essas questões estivessem claramente

explicitadas nas obras de Reclus, mas simplesmente afirmar que, segundo nos atesta

Lacoste, a sua preocupação com as relações cidade-campo permite perceber o movimento

da riqueza no espaço. O "esquecimento" de E. Reclus mais uma vez evidencia que as

instituições burguesas sabem selecionar dentre os cientistas aqueles que lhes permitam

desenvolver e reproduzir a sua forma de regime social.

A "REAÇÃO POSSIBILISTA"

A Escola Nacional Francesa reagirá às concepções da Escola Nacional Alemã

acusando-as de deterministas. Segundo a Escola Francesa, a geografia deveria ser o saber

que afirmasse o "caráter nacional". A ameaça do imperialismo alemão que, ao final do século

passado, já começava a mostrar a sua força, exigia uma formulação de ideias que

justificasse os países com tradição colonial. Eis, assim, que na França surge uma "nova

concepção" das relações homem-meio — o conhecimento dos “gêneros de vida”, começa a

ganhar expressão e Vidal de La Blache se torna o grande geógrafo francês: Cada

comunidade ou agrupamento humano teria forjado todo um "género de vida", toda uma

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Page 81: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

cultura a partir de uma experiência que teria travado com uma fração específica da crosta

terrestre sobre a qual, por diversas razões, ter-lhe-ia cabido habitar. Através dessa abordagem

abrir-se-ia espaço para pensar as possibilidades de superação das imposições do "meio geográ­

fico". Surgia, assim, um novo "paradigma" da geografia. Manuel Correia de Andrade nos

dá uma bela caracterização desta "Escola Francesa" de Vidal de La Blache ao dizer que ele

" . . . realizou uma série de estudos regionais, de análises que poderíamos chamar de microgeográficas, onde procurou demonstrar que o meio exercia influência sobre o homem, mas que o homem tinha possibilidades de modificar e de melhorar o meio, dando origem ao possibi­lismo. Possibilismo que seria útil ao governo francês, não só por melhor conhecer e orientar a política de utilização dos recursos naturais do espaço francês, como também tornar desnecessário o desenvolvimento de uma teoria radical como a da superioridade da raça branca sobre os nativos da Ásia e da África, de vez que o domínio colonial francês estava, nestes continentes, em fase de consolidação. A França deglutia, no início do século XX, o segundo império da superfície da terra, necessitando, naturalmente, de confundir a política colonial com os interesses humanitários de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista de povos ditos inferiores" (Andrade 1977).

O que o possibilismo não conseguiu demonstrar é por que certos lugares tiveram

"possibilidades" maiores que outros. Ou que fa-tores teriam possibilitado a alguns países,

ou regiões, ou lugares, superar as imposições do "meio". O que não conseguiam ou não

queriam ver é que as tais possibilidades também são determinadas. E os geógrafos, em

geral, parecem temer culposamente essa expressão, porque não conseguem ver

determinações a não ser naquilo que as suas sensações e percepções, historicamente

produzidas pela formação académica, observam no "concreto" da paisagem (o relevo, a

vegetação, o clima, etc.).

O possibilismo continua postulando que o papel do geógrafo é estudar as relações

homem-meio, contudo, em sua ótica, o homem é mantido como categoria genérica, não

diferenciado em classes e o meio como um dado a ser explorado, ignorando-se o caráter da

sua apropriação real e das relações sociais de produção.

As próprias possibilidades de superação dos problemas com que um dado

agrupamento humano se depara ao se relacionar na e com a natureza são, na verdade,

determinadas por circunstâncias que a cada dia e, já àquela época, mais fogem aos controles

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Page 82: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

"locais". O possibilismo realmente obstaculizou a compreensão desse caráter de

dominação que o imperialismo assume. Ao isolar cada comunidade para o estudo das

inter-relações homem-meio, cumpria bem o seu papel de dividir o espaço, segmentá-lo em

regiões estanqui-zadas, deslocando assim a análise do espaço do seu real movimento. Dessa

forma, foi eficiente em sua missão de preparar o terreno para a expansão do capital

monopolista financeiro, para a partilha do mundo segundo os interesses imperialistas.

Nos Estados Unidos as teorias do sistema ecológico surgiam como os correspondentes

das ideias desenvolvidas por La Blache na França. A escola de Carl Sauer — geografia

cultural — não deixava também de ter em La Blache as suas origens intelectuais.

Podemos ver claramente que o surgimento destas novas abordagens significou uma

verdadeira reação, no sentido mais amplo que este termo pode sugerir. Ao deslocar a

análise não fez uma crítica radical ao que até então havia sido produzido e nesta medida se

constituiu numa contra-revolução ao pôr no lugar daquilo que acreditavam ser uma falsa

interpretação uma interpretação falsa. De fato, o possibilismo não passou de um caso

particular de determinismo.

O DESLOCAMENTO PARA OS EUA DO PÓLO HEGEMÓNICODO CAPITALISMO E A NOVA RESPOSTA DA

GEOGRAFIA: "A REAÇÃO REGIONAL"

A Primeira Guerra Mundial põe a nu o real movimento da sociedade capitalista que

as "visões hegemónicas da geografia ironicamente não conseguiam ver. A década de 20

assistirá a uma Europa marcada por uma profunda crise e a hegemonia imperialista se

deslocando para os EUA. O fim desta década verá exposta com enorme evidência toda a

engrenagem da máquina imperialista, pois a crise que eclode no coração do sistema,

atingindo todas as suas peças, demonstra o caráter mundializado da sociedade criada pelo

capitalismo.

Na Europa, a crise do capitalismo receberá como resposta momentânea a solução

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Page 83: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

autoritária dos regimes nazi-fascistas. Nesse contexto geral de crise, surge uma obra que viria

marcar profundamente o pensamento geográfico. Trata-se de The Nature of Geo-graphy de

R. Hartshorne, publicada às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939). É interessante

notar que esta obra é produzida por um observador político-militar americano em missão na

Europa, para observar problemas de fronteiras na Europa Ocidental. Dada a situação

iminente de guerra, Hartshorne, impossibilitado de exercer a sua missão, dedica-se ao estudo

dos clássicos da geografia europeia, particularmente a alemã, redescobrindo Hettnner.

Recuperando as obras desse pensador alemão, Hartshorne, após um minucioso trabalho,

põe em relevo um novo paradigma, qual seja o estudo da região como caso único, dando

destaque ao que mais tarde seria chamado por Schaeffer de o "excepcionalismo na geo

grafia".

De acordo com a visão hartshorneana, se a geografia existe porque a superfície

da terra é diferenciada, caberia ao geógrafo estudar cada um desses pedaços singulares

de território — as regiões. Não se buscava analisar o movimento real que produz

diferenciações de área, o real processo que governa a organização do espaço. Ao

contrário, supunha-se que a simples observação direta da realidade nos "revelasse" todos

os segredos desse caráter diferenciado, cabendo ao geógrafo estudá-los.

O estudo regional assumia, às portas da Segunda Guerra Mundial, uma enorme

importância, assim como os estudos acerca de comunidades isoladas assumiram, com a

investigação dos "géneros de vida", enorme importância às vésperas da Primeira Guerra

Mundial. Exatamente quando os processos reais da vida do espaço demonstravam a

mundialização das suas relações é que os geógrafos procuraram segmentar, dividir o

espaço para "melhor estudá-lo".

De fato, cada lugar é único, pois o movimento que se dá no espaço é desigual e

combinado. Cada lugar é único, pois esta é a forma como se manifesta no espaço a

divisão internacional e interna do trabalho. Entretanto, este atributo de singularidade que

uma determinada porção do espaço apresenta é dado por um processo que não é determinado

por "fatores locais", mas sim por um modo de produção, cujas diretrizes emanam dos

centros hegemónicos do capitalismo, apoiando-se em heranças de um passado mais ou

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Page 84: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

menos longínquo, que produziu um espaço com determinados caracteres que a partir do

colonialismo e do imperialismo é submetido a outras "finalidades" que não são aquelas

derivadas das necessidades das "comunidades locais".

A "visão regional", neste sentido, não é um novo paradigma para a geografia, mas

sim uma capa nova para uma postura teórica e metodológica forjada no final do século

XIX e reelaborada para pensar uma realidade nova com conceitos antigos.

A EXPANSÃO SOCIALISTA, A GUERRA FRIA, O GRITOLIBERTADOR DOS POVOS E A REAÇÃO POSITIVISTA

DA "VISÃO ESPACIAL"

A Segunda Guerra Mundial marcou profundamente a organização geográfica da

sociedade contemporânea. A expansão do socialismo na Europa Oriental, reduzindo,

conseqüentemente, os espaços sob o domínio do capitalismo imperialista; a afirmação da

hegemonia norte-americana no bloco capitalista; a crise generalizada por que passava a

Europa; a socialização da China em 1949, colocavam frente a frente dois projetos

antagónicos de organização social e, mais do que nunca, o conhecimento do espaço

adquiria uma importância central.

Observamos um recuo geográfico do espaço sob o domínio do capitalismo, o que

impelia a repensar a sua organização, como forma de preservar as áreas ainda sob o seu

controle. Um dos aspectos mais evidentes deste fato diz respeito à formação de mercados

comuns regionais, que possam fazer com que o capital circule e se imponha mais

amplamente, sem as "rugosidades", como diria Milton Santos, representadas pelas barreiras

nacionais. O mesmo capitalismo que havia forjado, na sua fase de acumulação primitiva, os

Estados Nacionais — do século XV ao XVIII — vê-se agora impelido a destruir as

barreiras por ele mesmo criadas. A expressão "o capital não tem pátria" perde todo o seu

mistério e se revela com a clareza do sol tropical.

O clamor dos povos coloniais e semicoloniais da África e da Ásia pela

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Page 85: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

emancipação viria a colocar ainda mais em xeque a área de influência do sistema

capitalista internacional. A necessidade de manter o controle sobre as regiões que

integravam o chamado bloco capitalista, evitando a sua absorção no bloco socialista,

conduzirá o centro hegemónico do sistema a propor soluções do tipo criação da OTAN e

do Plano Marshall que, por vias de um esforço de recuperação dos países europeus

arrasados pela guerra, constitui, fundamentalmente, uma forma do capital financeiro norte-

ameri-cano marcar mais profundamente as suas posições na Europa Ocidental, assegurando

ali a sua hegemonia e afastando, assim, o fantasma da "ameaça comunista".

As ciências do espaço ganham dentro desse contexto, de disputa de áreas de

influência entre dois sistemas rivais, uma enorme importância. Em conexão com esse

quadro, a chamada "nova geografia" ou "revolução teorético-quantitativa" começa a se

impor já na década de 50. Entretanto, essa nova geografia, sem romper com os

fundamentos básicos da chamada geografia tradicional, levará ao paroxismo o positivismo

lógico, essência filosófica do que pretendia criticar, ü pretenso atributo de "nova"

conferido a esta geografia que começava a se tornar hegemónica não nos impede de

constatar que esta geografia, no essencial, se mostra tão velha ; quanto a própria geografia

institucional.

Dispondo de instrumentos técnicos de pesquisa até então dês- : conhecidos,

passaram os pseudonovos geógrafos a utilizar o computador, o que lhes abria amplas

possibilidades de quantificação e exigia que tudo fosse transformado em número. O

empiricismo atinge os seus estertores, o que referendava a postura tradicional da geografia.

Procedimentos matemático-estatísticos serviam de suporte à crença da superação das

dificuldades de análises multivariadas que constituem o complexo instrumental da

geografia. O cálculo das probabilidades começa a ser considerado a forma mais "efi­

ciente" de observar o devenir histórico e geográfico. O futuro é visto como uma projeção

linear do presente, sendo que as contradições sociais que se manifestam no espaço são

afastadas para se evitar a interferência de qualquer "subjetividade". Os dados falam por si

mesmos ou através de modelos a priori tomados de emprés- ( timo às ciências da natureza,

o que lhes garantia a "cientificidade". As análises dos processos sociais são,

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Page 86: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

conseqüentemente, preteridas e substituídas por indicadores cuja validade é atestada pela

sua quantidade e frequência, ignorando-se que a própria seleção de variáveis ou

indicadores revela ou pressupõe um arcabouço teórico explícito ou implícito. A

causalidade é, por conseguinte, jogada fora, para evitar-se a busca de determinantes,

sendo substituída pelas análises de correlação e analogia, um dos pilares da geografia

tradicional. A geografia atingia, assim, o clímax da "cientifi- i cidade", segundo os

cânones do positivismo lógico. . .

Sem romper com os fundamentos teóricos e filosóficos da geografia tradicional,

a chamada "nova geografia" não fez mais que precisar (matematicamente) as imprecisões

da geografia tradicional e, assim, viria a facilitar a identificação dos seus problemas. Esta

sim sua maior contribuição.

Todavia, apesar dessas implicações, ou até mesmo por elas, a "nova geografia"

exercerá um papel significativo no pensamento geográfico. Gozando de enormes facilidades

de autopromoção, através de revistas especializadas, realização de congressos e simpósios,

ainda terá à disposição os novos e poderosos meios de comunicação de massa que se

encarregarão de abrir espaço para sua chegada triunfante aos quatro cantos da terra. As

disparidades regionais passavam a ser anunciadas amplamente através de toda uma nume-

ralogia, sem que se desse conta do processo real — o movimento de circularidade do

capital — que está subjacente e que produz as desigualdades.

Muitos investimentos passaram a ser feitos para criação de "pólos de

desenvolvimento", para "difusão de inovações" atendendo aos interesses dos capitais

disponíveis nos centros hegemónicos do capitalismo. A hegemonia que a chamada "visão

espacial" começava a exercer, através das teorias de localidades centrais ou de outros

nomes como a teoria dos pólos de desenvolvimento ou a teoria de difusão de inovações,

não se deveu ao fato de ter apreendido o movimento real que governa a natureza do espaço,

mas porque atendia aos novos interesses de um modo de produção incapaz historicamente

de superar os problemas que criou.

Nesse sentido, pode-se dizer que a "nova geografia" não produziu um novo

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Page 87: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

conhecimento, mas sim um novo desconhecimento, capaz de fazer sobreviver por mais

tempo algo que a história já condenou. Portanto, trata-se de uma nova contra-revolução no

pensamento geográfico, tal e qual tivemos às vésperas das duas guerras mundiais. Ao

subordinar o espaço aos interesses do capital, produziu esse espaço-prisão, planejado pêlos

Estados que cada vez mais se tornam capitalistas.

Se, por um lado, a chamada "nova geografia" se desenvolvia amplamente nos países

anglo-saxões, não podemos deixar de colocar, também, os danos trazidos aos países

subordinados ao imperialismo pêlos geógrafos franceses. De acordo com a "visão espacial"

da geografia francesa, o estudo do subdesenvolvimento assumia um significado muito

importante, sendo absorvido nos países periféricos por grande parte dos estudiosos que se

pretendiam críticos. Não percebiam esses estudiosos, entre os quais muitos geógrafos, que

o tema subdesenvolvimento constituía um falso problema nos marcos etnocêntricos em

que era colocado e no qual o próprio problema já vinha com uma definição de modelo a

ser atingido, ou seja, do que era o desenvolvimento. Este se caracterizava por elevados

níveis de renda per capita; elevado nível de urbano-indus-trialização; elevado índice de

alfabetização; forte grau de integração nacional, etc. Era tudo uma questão de quantidade e

não de processo. Àqueles países que apresentavam tais indicadores em níveis reduzidos se

atribuía o prefixo Sub, não se questionando a raiz que vinha depois Desenvolvimento. A

ausência de integração nacional nos países chamados subdesenvolvidos não era vista

como um produto da divisão internacional do trabalho nos marcos do sistema capitalista

que se materializava em espaços nacionais e que agora, numa nova fase do capitalismo

caracterizada pelo predomínio dos conglomerados, e oligopólios, com níveis organizacionais

altamente sofisticados, necessitou ser rompida para que os grandes capitais "planejassem"

melhor o seu passeio pelo espaço.

Os trabalhos de Yves Lacoste: Os Países Subdesenvolvidos e Geografia do

Subdesenvolvimento, constituíram, durante muito tempo, o suporte teórico dos geógrafos

brasileiros que se pretendiam críticos. E a própria crise com que hoje se defronta a socie

dade brasileira não se teria construído com a contribuição da ideologia desenvolvimentista

que ajudamos a criar?

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Page 88: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

De fato, tanto de um lado como de outro do Atlântico Norte se forjaram "teorias"

que responderam às necessidades das classes: dominantes ao nível internacional e nacional,

se é que é possível fazer esta distinção tão marcada numa época em que os naciona-

lismos, ao nível das classes dominantes, foram de há muito secun-

darizados.

MARCOS HISTÓRICOS, EPISTEMOLÓGICOS E TEÓRICOS PARA SE PENSAR A

CRISE ATUAL DA GEOGRAFIA

Como vimos, as chamadas "visões" ecológica, regional e espacial se inscrevem em

momentos históricos precisos, sendo definidas por eles, e as suas crises de hegemonia só

assim podem ser percebidas. Não foi por mera coincidência que o determinismo

geográfico começou a ser criticado às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando as

disputas interimperialistas se exacerbaram, nem o fato de ter sido o possibilismo uma

reação da escola francesa contra a escola alemã. Também não foi pura coincidência o fato

da "visão" regional que substitui a ecológica se afirmar às vésperas da Segunda Guerra

Mundial. Ou, ainda, que a "visão espacial" se torne hegemónica quando a "ameaça

comunista ao mundo livre" (sic), representada pela socialização dos países do leste

europeu, exigia uma "teoria" da localização a fim de alocar os capitais que o Plano

Marshall dirigia ao velho continente. Se quisermos ir mais longe,

as teorias locacionais, de difusão de inovações e de pólos de desenvolvimento, deveriam

abrir espaço para a expansão das transacionais para a periferia do sistema capitalista,

notadamente a partir, da 2ª. metade da década de 50, quando o capital internacional,

preocupado com a luta de libertação dos povos subordinados, se propõe a "salvar o mundo

livre" do subdesenvolvimento, eliminando a miséria, "solo fértil para a inseminação de

ideologias espúrias".

Entre nós, geógrafos brasileiros, a chamada "visão espacial" norte-americana

começa a se tornar hegemónica a partir de 1968, descartando por "não científica" a "visão"

da organização do espaço da "Escola Francesa" de P. George e M. Rochefort. A "visão

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Page 89: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

espacial" de B. Berry representou o clímax da hegemonia do imperialismo norte-americano.

Este foi o movimento geral do capitalismo internacional que impôs essas "teorias"

aos geógrafos dos países da periferia, outorgando-lhes foros de cientificidade, deixando

poucas opções àqueles que não quisessem abraçar tais posturas. É uma técnica muito

aperfeiçoada do marketing impor uma determinada mercadoria, mas deixar ao ingénuo

consumidor a impressão de que foi por sua livre iniciativa que a adquiriu. Assim, diversos

geógrafos brasileiros, "espontaneamente", optaram por um tipo de postura teórica e

metodológica de evidentes males para o povo brasileiro.

A crise que ora atravessamos não é, portanto, somente da geografia ou de uma

determinada "visão" ou postura teórico-metodo-lógica, mas se inscreve em uma crise mais

geral, cujos sintomas começaram a vir à luz com a derrota norte-americana no Vietnam.

Este fato deve ser retido por todos aqueles geógrafos que se propõem a uma produção

científica comprometida com uma perspectiva ; transformadora, com um espaço que seja

o da liberdade dos homens ! e não um espaço do capital.

Todavia, nesta empresa, faz-se necessária uma postura ao mesmo tempo teórica e

epistemológica fora dos quadros ideológicos dominantes — o que não parece ter sido a

principal virtude dos teóricos da chamada "visão espacial teorético-quantitativa" — ingle­

ses e norte-americanos que, através das teorias locacionais, de clara inspiração neoclássica,

pensaram o espaço sob o modo de produção capitalista como se fosse o espaço. Assim,

comprometeram uma interpretação da organização do espaço com o modo capitalista de

produção. Pensaram o espaço como "coisa", como sói acontecer entre os positivistas, como

um receptáculo das ações do homem e não o espaço como relação social.

Ë necessário que superemos os limites impostos à geografia pelo positivismo

lógico. É mesmo constrangedor verificar como, sendo a geografia uma ciência que trabalha

com relações de elementos de natureza heterogénea e sendo a dialética, primeiramente,

uma lógica de relações, a maioria dos geógrafos tenha ignorado uma interpretação dialética

da organização do espaço. Sendo ciência do concreto — como os empiricistas não

cansaram de repetir — não tenham lançado mão do materialismo. Sendo ciência de

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Page 90: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

totalidades especialmente constituídas, a maioria dos geógrafos não se tenha valido de

materialismo dialético e de materialismo histórico.

Torna-se, portanto, mais que necessário pensar o objeto da geografia. O espaço

deve ocupar o centro dos debates entre os geógrafos, porém não com as definições vagas

das "visões" anteriormente expostas. Não mais com a dicotomia natureza e sociedade, pois

que nenhuma sociedade está fora do espaço e o espaço do geógrafo é o espaço da sociedade,

forjado, construído por ela e condição para a sua reprodução e produção do próprio espaço.

Estas as pistas que acreditamos possíveis para a elucidação do nosso objeto de ciência. Para tal

empreendimento de reflexão acerca do espaço alguns conceitos e categorias tornar-se-ão

úteis e entre essas categorias e conceitos se inscrevem os de modo de produção e de

formação social.

Isto se deve ao fato de que a relação do homem com a natureza, sua dialética de

produção do espaço e da sociedade, se faz através do trabalho e este trabalho só existe

socialmente, enquanto relações de produção que caracterizam um determinado modo de

produção. E entendemos aqui modo de produção naquele sentido que lhe deu Marx ao

dizer que

" . . . Na produção social de sua existência, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase do desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura económica da so ciedade, a base real sobre a qual.se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade den­tro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social."

Por outro lado, é preciso considerar que a realidade histórica não se apresenta

homogénea, mas ao contrário ela se faz de modo desigual e combinado. Daí ser também de

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Page 91: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

enorme importância para o geógrafo o conceito de formação social que diz respeito ao

modo como concretamente se fazem essas combinações de desigualdades, onde diversos

modos de produção se apresentam submetidos à hegemonia de um modo de produção

dominante. O espaço pensado através do conceito de formação social emerge como o lugar

onde a sociedade se constrói, forjando as características dos lugares.

O lugar único é assim a síntese de uma multiplicidade de determinações que não

podem ser entendidas pelo lugar em si mesmo. O único é uma forma específica de

materialização do universal e este, o universal, é mais do que a soma dos lugares únicos,

para ficarmos com a expressão geográfica.

Os estudos geográficos dão, dessa forma, um importante passo ao investigar a

organização do espaço sob a ótica do modo de produção a seu modo de realização concreto

que é a formação social. E trabalhar com esse instrumental não inviabiliza os estudos

regionais ou ecológicos. Assim, aqueles que desejassem continuar a fazer estudos

localizados, regionais, poderiam analisar especificamente como em um determinado

segmento do espaço se forja a sociedade global; que tipos de relações espaciais uma

determinada região manteria corn os outros segmentos sócio-espaciais; qual a situação desse

determinado segmento espaço nos quadros mais amplos de uma dada formação social

(situação de dominação ou de dependência); que tipo de relações homem-natureza aí se

produziriam num determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas que, por sua

vez, dependem das relações sociais de produção.

Da mesma forma, os conceitos do materialismo histórico poderiam ser de grande

valia à abordagem "ecológica" que nos últimos anos recrudesce com a crescente

conscientização do problema da depredação da natureza. Pressionados por esta situação, os

estudos dos ambientes e do inter-relacionamento homem-natureza começam a exigir dos

geógrafos respostas que possam dar conta desses fenómenos. Todavia, que respostas

poderá dar o geógrafo a essas questões enquanto:

1º.) Considerar, nesse relacionamento, o homem como categoria genérica e não sob

relações sociais determinadas que dão ao processo de produção um significado específico,

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Page 92: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

com finalidades que não são ditadas pelo relacionamento homem-natureza, mas pelo modo de

produção?

2°.) Considerar a natureza como "meio ambiente" genérico e não como o locus

produzido e condição de re-produção da sociedade? (Marx 1971:203-205).

Ora, a natureza não é um elemento a-histórico, mas, ao contrário, tem o seu

significado determinado historicamente pelo modo de produção e poderá ser vista como um

valor de uso, se olhada por um indígena xavante ou considerada um capital, sob a ótica de

um empresário paulista.

É fundamental ter em conta essa distinção se quisermos compreender a imbricação

das relações homem-natureza/homem-homem. Ê importante ressaltar também que, no caso

das formações sociais capitalistas, a relação homem-natureza não se efetua primordialmente

em função da produção social da existência do homem. Esta, embora uma condição

necessária, como em qualquer outro modo de produção, apresenta-se subordinada aos

interesses da acumulação do capital.

Esta é a questão básica que deve nortear os trabalhos daqueles geógrafos que

pretendem enveredar numa perspectiva "ecológica": observar criticamente a situação do

inter-relacionamento homem-natureza, indo às estruturas que determinam esse tipo de

relação. Logo, deverá procurar através dessa perspectiva dar conta da "paisagem" que é, na

verdade, a aparência que assume a organização do espaço.

Uma última questão deve ser ainda colocada: A partir do momento em que os

homens se organizam socialmente não é mais possível fazer-se uma rígida separação entre

história da natureza e a história da sociedade, pois estas se imbricam, dando origem a uma

só história. A própria natureza passa a ser produzida socialmente, constituindo uma

segunda natureza, tal como Marx desenvolve no livro I de O Capital. Cremos, portanto, ser

inteiramente correto dizer-se, como o faz Samir Amin, que "a História da humanidade é a

do modelamento da natureza pelo homem" (Amin 1976), ou seja, a constrição do seu espaço

social.

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Page 93: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Eis as pistas que acreditamos úteis à elucidação da crise da geografia, na medida

em que possibilitem a elaboração de uma geografia da crise, engajada com a sua superação

e comprometida com a afirmação de uma teoria do espaço que seja do e para o homem e

não com o espaço da sua opressão. Nessa perspectiva, a crise da geografia é, pois,

altamente instigante e salutar. . .

Se a geografia está em crise, viva a geografia!

Referências bibliográficas

AMIN, S. Os problemas do ambiente na África. Cadernos de Ecologia e Sociedade 2. Porto, Ed. Apontamento, 1976.

ANDRADE, M. C. O pensamento geográfico e a realidade brasileira. Boletim Paulista de Geografia 54, p. 5-28, 1977.

LACOSTE, Y. A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1977.

MACCIOCCHI, M. A. A Favor de Gramsci. Rio, Paz e Terra, 1977.

MARX, K. O Capital (Crítica da Economia Política). Vol. I. Rio, Civilização Brasileira, 1971.

MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Portugal-Brasil. Editorial Presença — Livraria Martins Fontes, 1976.

ORLANDI, L. B. L. Estratégia de produção dominante: esboço de uma questão. Classes Sociais e Trabalho Produtivo. Rio, Co-Edições CEDEC-Paz e Terra (especial), 1978.

TAAFFE, E. A visão espacial em conjunto. Boletim Geográfico 247 (outubro-dezembro), 1975.

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Page 94: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

CIDADE, MAIS-VALI A ABSOLUTA E RELATIVA, DESVALORIZAÇÃO DO CAPITAL E DO TRABALHO: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE O

CASO DO RIO DE JANEIRO

Milton Santos

Pode-se dizer que a cidade atual, sobretudo a grande cidade, é instrumental na

criação da mais-valia relativa.

Como se sabe, a mais-valia absoluta é obtida através do aumento do número de

horas trabalhadas pelo operário em relação ao valor social real do seu trabalho. Em outras

palavras, o patrão reclama de cada um dos seus empregados um número de horas de tra­

balho maior do que o necessário para compensar-se dos seus gastos, ressarcir o desgaste do

seu material permanente e obter em forma de lucro o capital necessário a continuar

produzindo.

Com o avanço das técnicas, tanto as aplicadas ao-domínio da produção

propriamente dita quanto as do mercadeio, as empresas podem obter lucros consideráveis

sem ter de recorrer a práticas que levem à extração da mais-valia absoluta. A

modernização das máquinas permite maior rendimento em menor espaço de tempo e desse

modo o mesmo número de horas de trabalho fornece resultados maiores àqueles que têm

as condições de modernizar mais as suas técnicas. Pode-se, nesse caso, falar de mais-valia

relativa. Esta é também obtível através do exercício do poder político por parte das

empresas e nessa rubrica se inclui a fixação de preços pêlos monopólios e oligopólios e as

convenções direta ou indire-tamente patrocinadas pelo poder público.

LUCRO DIFERENCIAL E INFRA-ESTRUTURAS

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Page 95: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Na medida em que há possibilidade de produzir e de fazer circular o produto a

melhor custo, o lucro passa a depender da existência de infra-estruturas localizadas, como é

o caso, hoje, das grandes cidades, onde cada vez mais se criam espaços cientificamente

pensados e tecnicamente realizados para facilitar certas produções. Estas obtêm do próprio

espaço urbano assim constituído as condições de uma maior eficiência e, geralmente, de

um maior lucro. É nesse sentido que se pode dizer que a cidade, e sobretudo a grande

cidade, constitui um instrumento para a formação da mais-valia relativa. Na medida em

que os equipamentos urbanos são crescentemente específicos, isso vai beneficiar mais a

uma firma que a outras, pois nem todas dispõem de espaços propositadamente adequados

às condições atuais de uma produção moderna altamente especializada. O fato, porém, é

que todas as firmas se beneficiam da presença de uma massa de consumidores que, por

estar concentrada, reduz os gastos em transporte e, por conseguinte, favorece duplamente

à firma, primeiro pelo fato de que há maior acessibilidade aos bens produzidos e segundo

porque o retorno do capital empregado se dá mais rapidamente.

Ainda aqui as diversas firmas não se beneficiam da mesma ma

neira dessa vantagem. Aquelas que são capazes de uma produção de massa ou têm a força de

induzir ao consumo ou o poder de fixar preços sem relação com os custos reúnem

naturalmente as condições para uma maior margem de lucro.

O mecanismo que estamos enunciando se apresenta de maneira diversa nas grandes

cidades e nas cidades intermediárias e pequenas. A questão da escala desempenha aí um

papel importante, e embora a análise do problema não se possa cingir a esse aspecto, as

estruturas presentes em cada localidade têm uma influência marcante.

Entre as grandes cidades também os resultados são diferentes. A forma como a

atividade produtiva se estrutura, a distribuição da população, sua repartição em classes, as

facilidades maiores ou menores de intercâmbio, tudo isso faz com que a criação da mais-

valia relativa seja diferente de uma grande cidade para outra. Isso ajuda a explicar por que

na fase recente, e sobretudo na fase contemporânea, certas atividades preferem, dentro de

um mesmo país, tal ou qual grande cidade em vez de outra, e explica igualmente a

migração de antigas firmas para outras aglomerações onde as condições lhes parecem mais

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Page 96: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

adequadas a um melhor desempenho. Esse parece ser o caso de São Paulo, Belo Horizonte

e mesmo Manaus, em relação ao Rio de Janeiro, sem falar nos distritos industriais

recentemente criados em Salvador ou em Recife e que apresentam vantagens locacionais

para um certo número de indústrias.

CIDADE E VALORIZAÇÃO DO CAPITAL PRODUTIVO

As cidades se distinguem também entre elas em função da valorização do capital

produtivo.

Em cada época histórica algumas localidades têm condições para revalorizar o seu

capital produtivo em alguns ou em muitos ramos enquanto que outras aglomerações não o

conseguem. O ritmo de crescimento é, por consequência, diferente para cada caso.

No caso do Rio de Janeiro, como as estatísticas o mostram, verifica-se em muitos

ramos da indústria e dos serviços uma desvalorização do capital, isto é, uma não renovação

do capital investido.

Assim como a revalorização num ramo tem efeitos sobre outros ramos, além das

consequências internas ao próprio ramo, assim também a desvalorização gera nos demais

ramos um processo de desvalorização.

Segundo A. D. Magaline (Lutte de classes et dévalorisation du capital, Maspero,

1975, p. 65) há uma relação entre a desvalorização do trabalho e a desvalorização do

capital, sendo que é a primeira que acarreta a segunda. Esse autor também admite que no

mundo atual e como consequência das novas condições da economia internacional há uma

fragmentação dos capitais autónomos em unidades de produção independentes, ao mesmo

tempo em que se mantém sua unidade na exploração da força de trabalho. As unidades de

produção também estão em relação de dependência umas com as outras. Essa dependência

é de vários tipos. Ela pode ser direta se envolve o processo da produção, ou indireta se

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Page 97: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

apenas participa de aspectos produtivos não técnicos e não financeiros. Segundo a estrutura

local da produção, as relações de dependência são diferentes entre tipos nominais de

atividade.

Talvez se possa inferir disso que os espaços urbanos se diferenciam em função

de como se processa entre os fatores um "jogo" desse tipo. Do mesmo modo poder-se-á

chegar à conclusão de que, É evidente que isso tem consequência direta sobre o poder

aquisitivo da população, reduzido em virtude da necessidade de pagar aluguéis assim

tornados mais caros, ao mesmo tempo em que, sendo esses aluguéis na sua maior parte

inacessíveis, isso leva a que a maior parte da população de rendas inferiores, as

chamadas populações de baixa renda, tenha de ir buscar residência em áreas mais

distantes.

É possível que o mecanismo acima descrito evidencie melhor a relação entre

desvalorização do trabalho e valorização do capital. No caso particular da construção

civil, ela funciona à base de uma mão-de-obra cuja remuneração é baixa e cuja

rotatividade dentro da atividade e dentro da cidade, como assinalado por Ana Clara Torres

Ribeiro, sobre Aspectos Demográficos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (1979, p.

10) facilita a valorização do capital que os emprega. Do mesmo modo, a forma de venda

de produto acabado, atualmente seguida de todas as garantias dadas pelo poder público aos

empresários privados, constitui uma maneira tranquila de valorização do capital em

detrimento do comprador que ) adquire o imóvel com o resultado do seu trabalho passado,

presente e futuro, pagando taxas de juros que o empobrecem, isto é, aceitando a

desvalorização do seu próprio trabalho durante um período que pode representar mais da

metade da sua vida útil.

Ora, esse mecanismo, comum às diversas cidades brasileiras, toma aspectos

particulares em cada aglomeração. No caso do Rio de Janeiro ele parece ainda mais brutal

do que em outras cidades do País.

A criação da mais-valia relativa dá-se, também, com pelo menos duas

consequências. Uma delas é que ao lado de pedir a cada trabalhador uma parcela

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Page 98: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

maior de trabalho não necessário, de tra- ;j balho socialmente não necessário, há ao

mesmo tempo criação de trabalho excedente, isto é, liberação de mão-de-obra. Isso

significa desemprego cada vez que essa mão-de-obra não pode ser engajada s em outras

atividades seja porque simplesmente tais atividades não existem, seja porque essas outras

atividades exigem uma qualificação que não era exigida na atividade onde o trabalhador

estava anteriormente engajado.

Nas cidades onde o elenco de indústrias é incompleto as conse- s qüências são por

conseguinte maiores. Este é, por exemplo, o caso do Rio de Janeiro se comparado com São

Paulo, o que ajuda a explicar as diferenças na condição de emprego entre essas duas

aglomerações.

Em segundo lugar, a extração da mais-valia relativa significa uma queda no valor

real do salário atribuído a cada trabalhador. Essa redução no salário está relacionada com o

tipo de indústria presente na cidade. Certas indústrias mais exigentes de uma qualificação

específica por isso mesmo ensejam aos seus trabalhadores um poder de barganha maior, ao

contrário daquelas onde o nível de qualificação sendo baixo ou nulo, e a substituição da

mão-de-obra se tornando por isso mais fácil e a sua vulnerabilidade maior, o resultado é

um frágil poder reivindicatório.

Se o nosso raciocínio é correio, a estrutura da produção industrial de cada cidade

tem consequências indiretas sobre o nível de remuneração dos trabalhadores.

Ainda aqui o caso do Rio de Janeiro pode ser analisado sob esse prisma, para

explicar a estrutura de salários correspondente aos seus trabalhadores industriais. Se

comparados com os de outras cidades do País, os níveis salariais presentes na aglomeração

do Rio de Janeiro são menos compensatórios na maior parte dos ramos industriais aí

presentes, isso implica em uma massa salarial menor, com todas as consequências que isso

pode acarretar sobre as demais atividades, do ponto de vista do consumo individual.

O mesmo raciocínio, aliás, pode ser aplicado às atividades terciárias da Região

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Page 99: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Metropolitana do Rio de Janeiro cuja capacidade de criação da mais-valia relativa pode ser

analisada em termos paralelos ao que fizemos em relação à indústria. Fazendo a economia

de um raciocínio paralelo ao que já elaboramos em relação à atividade industrial, a

conclusão é semelhante, considerando, porém, as possibilidades de inter-relação entre

indústrias e serviços vemos que a atividade económica tomada num sentido mais amplo

padece de efeitos circulares negativos que contribuem, pela interacão da indústria presente na

cidade e dos serviços aí também presentes, a baixos níveis de emprego e de remuneração,

que contribuem a alargar ainda mais o fenómeno do subemprego e da pobreza.

GEOGRAFIA, ECOLOGIA, IDEOLOGIA:"TOTALIDADE HOMEM-MEIO" HOJE (ESPAÇO E PROCESSO DO

TRABALHO)

Ruy Moreira

O trabalho é a categoria fundamental da reflexão. Não o "trabalho em geral", mas o

trabalho como relação concreta.

A propensão atual em geografia de ver na totalidade uma categoria e uma

principalidade do método esbarra na tautologia de se ver o todo pela via do todo ou no pólo

oposto de se ver o todo pela via das suas "partes", revelando a tese como sua formulação

metodológica estarmos ainda atolados no funcionalismo' até o pescoço. Posta a questão

nestes termos, fica obscurecido o fato de que a compreensão do todo pressupõe a reflexão do

seu processo de produção-reprodução pela dialética do trabalho, do movimento que

determina o caráter real, concreto, da totalidade.

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Page 100: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Obscurece igualmente a reflexão fundamental sobre a natureza da totalidade com

que lida a geografia.

1. TOTALIDADE E MÉTODO: OS MEANDROS DO CONHECIMENTO

O esforço atual pela determinação das categorias que guiam o processo do

conhecimento do real traz em si a consciência de que o conhecimento não pode ficar por

conta do empirismo. Ora, as categorias mais não são que as relações reais existentes no

seio de cada modo de produção, expressas de fornia codificada na linguagem do método.

Tanto, que o "modo de produção" das categorias está determinado pelo modo de produção

real, sendo por isto sempre difusa a "fronteira" entre ciência e ideologia.

Mas se as categorias são as espressões mentais, metodológicas antes que lógicas,

das contradições concretas, reais, sua fonte é a prática dessas contradições. Por isto, todo

homem detém uma "teoria" do real. As "construções teóricas" nascem dessa prática e evo­

luem no perpétuo movimento da "práxis", isto é, da unidade entre a prática e a teoria, e

extraem seu poder de dar conta do real justamente desse compromisso. Uma vez

desligadas, prática e teoria perdem tal poder, dando lugar ao empirismo e ao teoricismo.

Eis por que a teoria, chame-se ela marxismo, funcionalismo, positivismo,

weberianismo, fenomenologia, jamais é algo capaz de, por si só, dar conta do real.

Somente a prática teoricamente orientada disso é capaz.

2. TOTALIDADE E SISTEMA: O EMPOBRECIMENTO DO REAL

O realce à totalidade tomado na forma que apontamos tem na sua origem

epistemológica um fundo ideológico conhecido. Situa-se no campo das ideias que

confundem totalidade com sistema, noção mecânica do movimento que neutraliza o papel

transformador do conhecimento, lineariza as ligações e toma o processo como o já feito e

não como devir.

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Page 101: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Ora, totalidade é movimento e contradição, movimento como contradição. Movimento

que se cristaliza em formas, isto é, contradições definidas. Formas que revertem sobre o

movimento, mediando sua continuidade e nele se incorporando para daí saírem renovadas.

Por isto, estão no âmago das "construções teóricas" os pares dialéticos como forma-conteúdo,

aparência-essência, abstrato-concre-to, finito-infinito, singular-universal, continuidade-

descontinuidade. Sem grande rigor, portanto, pode-se afirmar, que cada contradição, ou

série de contradições, tende a transformar-se no nível do conhecimento em categoria,

reproduzindo o próprio movimento real.

Processo global, o todo é unidade e diversidade, unidade na diversidade,

manifestando-se a unidade na diversidade. Por conseguinte, a unidade, o todo, não tem nas

diversidades partes suas, mas momentos definidos do processo global, do movimento. O

todo não é o composto agregado de diferentes partes, um sistema, embora um sistema seja

um todo. O todo é movimento de opostos, aspectos da unidade que se transformam uns nos

outros. Razão por que o todo é a parte e a parte é o todo. Não porque haja um tal grau de

interação entre as "partes", que estas se transfigurem com a inter-perpassagem umas nas

outras. E sim porque cada "parte" ê a expressão fenomênica do movimento do trabalho3, sua

expressão formal, sua materialidade. O universo de "partes" é o universo das formas que

exprimem a produção-reprodução do movimento.

Assim, quando entendida como mero "conjunto total de partes interatuantes" a

totalidade tende a uma estrutura de movimentos mecânicos. Despojada do seu caráter

dialético a totalidade fica reduzida a uma noção mecanicista demasiadamente pobre para

captar e influir na riqueza e direção do movimento.

3. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO": A TOTALIDADE DO SABER GEOGRÁFICO

Tal noção pobre de totalidade é a que encontramos subjacente ao discurso da

generalidade dos teóricos eminentes do saber geográfico. Considera-se a geografia como a

"ciência de síntese" do conhecimento parcelizado de todo, a partir de um eixo definido: a

relação que o homem trava com o seu meio natural em busca de sua subsistência e

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Page 102: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

progresso. Uma vez que o universo da relação homem-meio é um sistema envolvendo

elementos naturais, biológicos, humanos, sociais, económicos, históricos e culturais, cada

qual constituindo campo de uma "ciência de análise", o saber geográfico envolve o próprio

universo do saber humano.

Saber de abrangência tão completa, a geografia não evitará determinadas

consequências. Uma delas será a própria precisão de sua imagem. Pattison vê na história do

pensamento geográfico o desenvolvimento simultâneo de "quatro tradições", ou seja,

quatro diferentes direções do discurso: a "tradição de ciência da Terra", a "tradição de

estudos de área", a "tradição espacial" e a "tradição de estudos homem-terra"; que Taaffe

reduz a três: a "visão ecológica", a "visão regional" e a "visão espacial". Resultantes de

imprecisão de método ou superficialidade de reflexão epistemoló-gica, o fato é que estas

"diferentes" geografias prescrevem como plano mais geral dos discursos um "fundamento

ecológico": pleno na "visão ecológica", mascarado na "visão regional" ou desfigurado na

"visão espacial".

Já se observou em algum canto que o discurso geográfico jamais conseguiu (o

discurso académico) superar o determinismo naturalista inaugurado por Ratzel. O

possibilismo lablacheano não fez mais que preservá-lo sob a capa historicista da "Escola

Histórica Alemã".

Poucos se deram conta do processo real seguido pela história do pensamento

geográfico e o papel nele representado pelas instituições académicas. Mais restritos ainda

os que perceberam as deformações académicas ao pensamento geográfico clássico.

Reproduzindo o pensamento mais adiantado dos clássicos como Heráclito e De-mócrito,

para os quais todo saber é um saber global, o pensamento grego em geografia não se toma

por uma forma específica e superior de saber. Por esta mesma razão não toma o saber

global por saber sistémico. Para o pensamento geográfico antigo o homem e o meio

ambiente antes de comporem uma relação compõem uma identidade.

Que estudante de geografia já não se enfadou com os intermináveis e estéreis

questionamentos sobre a natureza do discurso geográfico: uma ideologia, uma filosofia,

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Page 103: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

uma ciência ou uma arte? Intermináveis porque o saber geográfico, como todo saber, é

tudo isto. Estéreis porque no anêmico terreno da polemica doméstica (na geografia não há

interlocutores, eis uma "tradição" não catalogada por Taaffe e Pattison), as reflexões

jamais ultrapassam limites tacitamente traçados.

Transformado em saber geograficamente académico o saber geográfico ficou

acrítico, eis mais outra "tradição", porque, ciosos de seus lugares (são famosas as

"panelinhas" das instituições universitárias e de pesquisas), os "mandarins" da geografia se

investiram da autoridade de determinar-lhe seu lugar, enfeudando-a nas instâncias

generosas do poder. Presos ao academicismo rançoso, muitos geógrafos jamais se

perguntaram a quem servem, certamente porque esta tem sido sua real e costumeira

tradição: servirem às classes dominantes. E, no entanto, desde os gregos a geografia é um

saber extremamente popular.

Ora, a popularidade da geografia advém, entre as muitas razões, à de ser um

discurso do cotidiano global. E isto porque é o discurso da identidade do homem com a

natureza, da "totalidade homem-meio". Esta é a sua essência mesma, que as tarefas de

libertação popular de todas as formas de exploração do homem pelo homem exigem seja

resgatada.

Pode ser um bom começo a precisa noção do que seja o obscuro conceito de relação

homem-meio vulgarizado pêlos meios académicos, do caráter e papel que ele desempenha.

4. TOTALIDADE E IDEOLOGIA: A DICOTOMIA GF x GH SERVE PARA

OBSCURECER

Entendida desde os antigos como um saber global, um discurso da identidade do

homem com a natureza, a geografia codifica-se entretanto entre os "precursores" de sua

cientificidade como um discurso sistémico e dicotômico.

Mantendo a relação homem-meio dos clássicos gregos como núcleo do discurso,

separam aristotelicamente o homem e o meio natural, para restabelecer mais adiante a

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Page 104: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

unidade em termos kantianos. A concepção holista do todo tirada por Humboldt a

Schelling costura a unidade dos "elementos", caminhando-a na direção do determinismo

ratzeliano (determinismo "geográfico") e na direção do pos-sibilismo lablacheano. Segue-se

a quebra kantiana do todo, para restabelecer-se sua unidade já agora despojada de seu

caráter dialético.

A quebra da natureza dialética do todo em um sistema de elementos não é um ato

isolado do pensamento geográfico. É o "espírito da época", o discurso do iluminismo,

exaltador da individualidade burguesa. Nada está solto no universo, pensa a burguesia.

Um elemento sempre está ligado aos outros elementos. Tudo é um todo. Mas o todo é uma

união sistémica de indivíduos. Diz Rousseau que o Estado é "um contrato social". Cedo o

discurso iluminista reduzirá a uns poucos indivíduos e povos (aqueles biológica ou fisiogra-

ficamente, dir-se-á geograíïcamente, superiores) a generosidade do seu discurso. Para isto

concorrerá fartamente a geografia académica.

Filho do ascenso do capitalismo, o discurso geográfico académico nem por isto

absorveu o sopro revolucionário que acompanha o ascenso da burguesia. Embora reelabore

o discurso clássico à luz dos parâmetros do saber nascido das lutas da burguesia contra o

Estado feudal, o faz como um saber que se põe mais à direita, sobretudo com relação à

economia política e às ciências da natureza, à física e à biologia em particular, porquanto se

serve ao desenvolvimento do capitalismo revolucionário, presta este serviço como cartografia e

catálogo de informações sobre povos e lugares, por conseguinte, oficializadamente. Saber

apropriado pelo Estado, a geografia só adquirirá feição de discurso do capitalismo na fase

imperialista deste.

A geografia "moderna" portanto já nasce velha. Relê o discurso geográfico acumulado

quebrando seu núcleo, visando atrelar-se mais completamente à máquina do Estado.

Quebrando-se em geografia física e geografia humana, espelha a destinação que lhe confere

o capital: dominantemente uma ideologia.

Ê fato que a unidade homem-meio só existe como dicotomia nas condições concretas

104

Page 105: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

do modo capitalista de produção. Inexiste na consciência dos homens nos modos de produção

anteriores por não fazer parte da sua existência real. Para estes homens o homem e a natureza

compõem perceptivelmente uma identidade. Enquanto "ente exterior" a natureza não passa de

uma abstração cuidadosamente cultivada pelo capital, com a preciosa ajuda da geografia. Só é

uma realidade concreta sob as determinações do modo capitalista de produção. Se não basta a

evidência de que o homem é um "animal social" ou de que é "o estágio superior da escala da

evolução natural", pode-se lembrar ainda que a força de trabalho com que o homem erige a

civilização e produz o capital é ela mesma natureza.

A dicotomização do discurso não é um atributo exclusivo da geografia: está na própria

lógica do discurso do capitalismo de que o discurso geográfico académico é um

desdobramento. Está na própria essência da filtragem ideológica do capital às manifestações

concretas do processo do trabalho no modo capitalista de produção, confundindo concreto com

visível. Afinal, é o próprio "sistema das ciências" que se divide em "ciências humanas" e

"ciências naturais".

Assim procede para justificar as desigualdades sociais, apresentadas como tais e não

como as vertentes sociais do trabalho sob o capital, aspectos do trabalho expropriado5.

5. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO E ARRANJO ESPACIAL: O LUGAR DA

APARÊNCIA

Sob o capital a totalidade se expressa sensorialmente sob formas que não se pode

tomar como o real. Este é um fato que em geografia sempre foi escamoteado. O arranjo

espacial é tomado como o real, o concreto, e não como o que realmente é: expressão feno-

mênica do real.

Mas a determinação do arranjo espacial como objeto do discurso geográfico

académico induz, se bem pensado, a uma constatação insólita: à de que o arranjo espacial

pode ser um excelente recurso de leitura do real. E de outra forma não poderia ser: não

houvesse qualquer relação entre o arranjo espacial e o real e a geografia não sobreviveria

105

Page 106: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

como discurso. Contudo, é preciso pensar bem: o cuidado não deve ser pouco. Um

primeiro cuidado deve ser com a episteme do arranjo espacial, ou seja, seu caráter de

aparência. Um segundo, decorrente do primeiro, deve ser com seu -lugar nas "instâncias"

do conhecimento: instrumento de leitura, o arranjo espacial situa-se no "campo" do

método. Delineia-se aqui, em nosso entendimento, toda a questão da teoria e da produção

teórica em geografia.

Expressão fenomênica do real, o arranjo espacial é a manifestação mais

materialmente visível dos termos da relação homem-meio. E isto a tal ponto, que a

"observação da paisagem" consagrou-se como um recurso do método dos mais clássicos em

geografia. A fotografia sempre desfrutou do mesmo prestígio conferido às cartas e mapas.

Ë preciso ainda não confundir-se arranjo espacial com paisagem, \ uma vez que a

noção de arranjo espacial é mais fecunda, envolvendo processos nem sempre visíveis. Este

passo, entretanto, exige a "vigilância epistêmica" que evite os enganos (enganos?) da new

geography: os processos existentes no arranjo espacial, revelados ou não pela observação

acurada da paisagem, não são e não se reduzem a relações matemáticas. Estas, quando

muito, servem para emprestar maior rigor aos resultados fornecidos pelas "máquinas sen-

soriais" com as quais a geografia clássica realiza suas pesquisas. A essência de que o

arranjo espacial é aparência jamais se exprime plenamente na e como linguagem

matemática. Esta não passa de uma codificação do real, tão aparência como o arranjo

espacial e mais pobre que ele.

O real é mais fecundo que o que dele mostra o arranjo espacial, portanto. Como

acontece com os livros, o alcance da compreensão está muito entregue ao leitor. Como

toda aparência do real, o arranjo espacial traz toda uma carga ideológica.

O que diz o arranjo espacial sobre a "totalidade homem-meio" hoje? O que é em

sua expressão real a geografia, enquanto discurso e realidade objetiva sob o capitalismo?

Partamos de um princípio: a "relação homem-meio" e suas formas espaciais são processo

de trabalho.

106

Page 107: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

6. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO" SOB O CAPITAL: O TRABALHO ALIENADO

Sob o capital as forças produtivas adquirem as formas concretas de capital variável

(os homens) e capital constante (a natureza-matérias-primas e a natureza-tecnologia). A

"totalidade homem-meio" exprime-se como formação econômico-social capitalista.

A dinâmica do processo de produção-reprodução da totalidade tem por motor as

contradições que antepõem as classes fundamentais que derivam das relações capitalistas

de propriedade: a burguesia (detentora dos meios de produção, aqui incluída a natureza) e

o proletariado (dono da sua força de trabalho). Estes termos das relações homem-homem

são os termos da relação homem-meio. A separação, no interior das forças produtivas, da

propriedade da força de trabalho e da natureza, separa os homens e a natureza. Nasce a

dicotomia que a ideologia burguesa se incumbirá de tornar natural na consciência dos

homens, escudada na geografia.

A raiz do discurso geográfico académico mostra-se mais profunda e comprometida

que aparenta: seu solo é a própria base do modo capitalista de produção. Sua quebra em

geografia humana e geografia física revela os próprios fundamentos reais, materiais do modo

capitalista de produção: as relações de propriedade das forças produtivas.

O processo do trabalho implicará na reunificação das forças produtivas (do homem

e da natureza, pois) separadas pelas relações de propriedade, mas sob o império destas. O

despojamento do trabalhador, reduzido à propriedade de sua força de trabalho, condiz com

a lógica do mercado capitalista. Despojado do conjunto dos meios de produção e, por

consequência, impedido de suprir-se de meios de subsistência, só lhe restará converter sua

forca de trabalho em mercadoria, vendendo-a. A relação de compra-venda de força de

trabalho restabelece a unidade do homem com a natureza, mas não restabelece a identidade

desfeita pela instauração das relações capitalistas de propriedade entre os homens. Mediada

por estas, a reunificação entre homem e natureza será um mero ritual que institucionaliza a

alienação do trabalho. Homem e meio natural tornam-se ambos cativos do capital.

Despersonalizados, chamam-se agora capital variável (homem) e capital constante (meio

natural).

107

Page 108: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Alienação no lugar de identidade, valor de troca no lugar de valor de uso, predação

no lugar de consumo humano, tais são as expressões de concretude da relação homem-

meio sob o capital.

Dominadores da natureza com seu trabalho, os "homens-vendedores-de-força-de-

trabalho" não são seus dominadores para si e para os homens. São transformadores da

natureza em mercadorias. Quando com ela se identificam no plano mais alto da

consciência, encontram nos termos concretos da propriedade capitalista o limite real da

identidade. Curto momento este, mas em que a pesada cortina que esconde a alienação do

trabalho mostra-se evanescente.

Sob a racionalidade capitalista da relação homem-meio se agitam as contradições

que ela mesma engendra, uma vez que a apropriação capitalista da natureza e do trabalho

subordina-os à lógica que converte os homens em predadores, a força de trabalho em

energia destrutiva, o trabalho em sugadouro humano, a produção de riqueza em

pauperização, a igualdade do mercado em subordinação, a dignidade em virtude, a luta

pela subsistência em cativeiro.

A "totalidade homem-meio" é a expressão desses processos, revelados, não raro com

espantosa clareza, na multiformidade da paisagem e do arranjo espacial. Não deixa de ser

eloquente discurso científico a figura consumida do trabalhador da Amazónia entre os tocos

calcinados a que fica transformada a hiléia. A identidade da imagem

revela a comunidade da causa: o capital, consumidor voraz de homens e da natureza.

Sob o capital a "totalidade homem-meio" — a "síntese" da geografia clássica — é a

totalidade da alienação capitalista. Quaini mostrou-o claramente: a separação histórica do

homem dos seus meios de produção operada pelo capital (período da acumulação primitiva),

separou-o historicamente da natureza, residindo na alienação do trabalho toda a alienação

do homem contemporâneo.

Por isto, o destino da geografia é o mesmo das demais ciências. O drama de

Einstein ao verificar o uso conferido pelo capital ao seu saber físico, colocou o drama

universal de todo saber sob o capital. O mito grego da esfinge se põe à modernidade sob a

108

Page 109: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

sua forma mais despida. Como pôde o conhecimento da natureza ter-se tornado uma arma

contra seu próprio perscrutador? O que pôde transformar o poder dos homens em arma

contra os próprios homens? O fato de a natureza sob o capital ser capital; de o processo de

socialização da natureza ser processo de acumulação de capital. O fato do trabalho

alienado. Termos reais da "relação homem-meio" hoje são os termos reais, concretos, do

saber geográfico hoje. Raiz mesma da reflexão geográfica, é por isto raiz de toda reflexão

da liberdade do homem e da "práxis" do saber geográfico.

7. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO"

SOB O CAPITAL MONOPOLISTA: A ALIENAÇÃO DO TRABALHO

INTERNACIONALIZADA

Sob a determinação capitalista de produção de mercadorias a natureza é matéria

que a força de trabalho alienada converterá em "trabalho necessário" (parcela do trabalho

destinada à reprodução da própria força de trabalho) e em "trabalho excedente" (a mais-

valia, parcela do trabalho não pago que constituirá o lucro do capital).

De início, na fase concorrencial, a relação homem-meio sob o comando direto do

capital é restrita a espaços reduzidos do espaço planetário. Nesta microescala de espaço

gesta-se entretanto a economia mundial futura, a dos monopólios imperialistas, porquanto,

embora local, a produção capitalista é a grande beneficiária da divisão colonial de trabalho

implantada pelo capital mercantil em todos os continentes.

Premido por suas próprias contradições internas, o modo capitalista de produção se

mundializará aceleradamente a partir dos finais do século XIX, uma vez que a acumulação

do capital supõe a permanente busca de solução de dupla contradição: burguesia x

proletariado e burguesia x burguesia. O disciplinado exército de operários que o capital vai

acumulando nas cidades industriais já nasce em luta contra suas condições inumanas de

trabalho e seus minguados salários, criando suas formas de organização. ,Os aplicados e

duros comandantes da produção de mercadorias" se entrechocam em luta pelo mercado.

109

Page 110: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Esta dupla frente de luta de classes empurrará o desenvolvimento do capitalismo para o

rumo da internacionalização.

Na raiz desta internacionalização está a atuação da lei fundamental do processo de

acumulação de capital: a "lei tendencial de declínio da taxa de lucro". A pressão dos

trabalhadores pela elevação dos salários concorrerá para a baixa da taxa de mais-valia

(mv/v), que tende a influir na taxa do lucro (mv/c+v). Nem sempre podendo transferir para

o mercado a compensação, em face dos preços dos concorrentes, o capitalista apela para a

elevação da produtividade do trabalho, investindo em capital constante. Como este passo

cedo se dará em todo o sistema produtivo, eleva-se o capital constante em geral,

realimentando-se o ci cio. Em consequência o capital constante tende a aumentar em ritmo

superior ao do capital variável para todo o conjunto da produção, elevando-se a taxa de

composição orgânica do capital média (c/v) progressivamente. A elevação da taxa orgânica

reati-vará a incidência da "lei tendencial" (combinação de mv/v, mv/ c + v e c/v). Como a

elevação da taxa orgânica se torna uma constante no desenvolvimento do capitalismo, a

incidência da "lei tendencial" ocupará permanentemente o tempo dos capitalistas e seus

intelectuais orgânicos.

Na luta contra a "lei tendencial" o capital se concentra e se centraliza técnica e

financeiramente, engendrando os monopólios, suportes da passagem do capitalismo à sua fase

imperialista.

Cedo o vulto da acumulação transforma-a em sobreacumulação, resultando no

surgimento de uma margem crescente de "capital ocioso" que agirá como indutor da

"desvalorização do capital". O Estado é chamado a intervir diretamente na instituição da

socialização de parte do capital fixo do sistema produtivo, assumindo o capitalismo

monopolista a feição do capitalismo monopolista de Estado. No capitalismo monopolista

de Estado o capital monopolista assume por completo o controle da totalidade.

Transferindo para o Estado a parcela principal do investimento em capital fixo

necessário à continuidade da acumulação monopolista, os monopólios reduzem sua própria

carga de investimentos. Como a média social da taxa de composição orgânica eleva-se

110

Page 111: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

pêlos investimentos estatais, ganham os monopólios na forma do barateamento do capital e

da atenuação dos efeitos da sobreacumulação. Socializando os investimentos em capital fixo,

o Estado revaloriza o capital sobreacumulado ao nível dos monopólios.

Este milagre realiza-o o Estado intervindo diretamente na economia, primeiro

investindo em "obras de infra-estrutura" (energia, fede de transportes e comunicações e

equipamentos), ou indireta-mente pela via dos incentivos fiscais. A seguir, amplia seu papel de

criar as condições requeridas pela acumulação do capital, agora como "Estado empresário".

Através do planejamento estatal os monopólios padronizam e en-trecruzam nacional e

internacionalmente sua estratégia de dominação do trabalho e da natureza. Ampliam notavelmente

os termos da conversão destes em mercadorias e acumulação de capital. A "totalidade homem-

meio" mundializa-se e se converte em uma "aldeia global". Vis-à-vis da acumulação monopolista

internacional, a pauperização relativa do trabalho e absoluta da natureza são agora fenómenos

mundiais, caminhando pari passu mundialmente.

Os monopólios deitam seus tentáculos sobre toda a rede escalar do espaço planetário.

Implantam a lógica da acumulação capitalista do espaço local ao espaço mundial, estendendo-a

mesmo sobre as formações econômico-sociais socialistas, instalando-se onde as condições

assegurem a obtenção de superlucros.

Beneficiários de alto grau de centralização técnica e financeira em escala mundial, os

monopólios arrumam sua geografia da dominação combinando concentração e dispersão. Assim,

sob o controle de uma empresa holding cada grupo monopolista espraia amplamente filiais suas

pela rede escalar planetária: a Exxon perto de 200 filiais por quase todos os países, a General

Motors 200 filiais por 30 países, a Roche 60 filiais por 17 países, a Shell 280 filiais por 100 países,

a Nestlé 100 filiais por 40 países, a Colgate-Palmolive 50 filiais por 32 países, a Goodyear 137

filiais por 21 países11.

Com tal geografia internacional cada grupo monopolista concentra em suas mãos

fantástica massa de mais-valia capturada dos mais diferentes lugares, às expensas da pauperização

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Page 112: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

mundial do trabalho e da natureza. Para tanto, munem-se dos mais diversos recursos, tais como

operações triangulares, sobrefaturamento e sub-faturamento, especulação com taxas cambiais,

golpes militares e financiamento a governos ditatoriais, despersonalização nacional e co

lonialismo cultural. A propaganda da Coca-Cola condiciona o com portamento do

consumidor mesmo nos países socialistas. Os enlatados de TVs americanas reproduzem-se

em cadeia simultaneamente por dezenas de países.

Peça de uma engrenagem monstruosa, cada filial é membro de uma "eminente

família" monopolista que engloba complexos industriais, financeiros, comerciais, científicos,

tecnológicos, ideológicos, políticos e militares. Cada "família" é uma potência inter­

nacional, maior que a generalidade dos Estados modernos. Não raro, são Estados dentro dos

Estados em que se instalam, tal a força de seus aparatos e o volume de seus negócios

mundiais, tal a sua rede de relações internacionais. Só a Exxon, a Ford e a General Motors

atingiram em 1975 um faturamento conjunto de 118 bilhões de dólares, volume superior

aos orçamentos somados da Argentina e do Brasil no mesmo ano. Seus tentáculos

penetram em todos os ramos atuais da produção, demandando os mais dispersos recursos; a

Coca-Cola inclui uma lista de 250 produtos diferentes; a General Motors, 250.000; a Dow-

Chemical, 1.000; a Du Pont, 1.200. Em sua estrutura vertical de trabalho incluem-se

departamentos de pesquisas dotados dos mais sofisticados laboratórios de pesquisa de novas

técnicas de produção e novos produtos, onde se empregam centenas de técnicos e cientistas

de alto nível: a Bayer emprega um corpo de 2.000 pesquisadores; a Westing-house, 1.700!

No seu conjunto, as "famílias" compõem um complexo entre-cruzado que as

mantêm combinadas na repressão aos movimentos de caráter nacional e popular nos

Estados dominados e equaciona suas contradições de mercado. Exemplifica esta

articulação a "Comissão Trilateral", pequeno comité de gestão comum dos negócios mundiais

pêlos monopólios imperialistas, criado em 1973 por sugestão do grupo Exxon (Rockfeller)

e que inclui um número de quase 300 monopólios americanos, europeus e japoneses, entre

os quais os grupos Boeing, Ford, Texas Instruments, AFL-CIO, Fiat, Rothschild, Rio Tinto-

Zinc, Mitsubishi, Nissan Motor, Sumitomo.

112

Page 113: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Sob uma estratégia internacional comum, os monopólios combatem o movimento

operário e determinam os preços do trabalho e das matérias-primas.

O poder de repressão e barganha dos monopólios frente aos sindicatos dos

trabalhadores beneficia-se da larga superioridade do seu nível mundial de organização.

Organizados em nível nacional, os trabalhadores quando muito conseguem impor-lhes

magras dilatações em seus salários e algumas melhorias em suas condições de trabalho.

Basta aos monopólios, por exemplo, uma transação fictícia de produtos de uma filial para

outra do mesmo grupo monopolista, para garantirem a continuidade da produção e das

vendas afetadas por movimentos grevistas e minarem sua resistência e esgotá-los. Exemplo

recente encontramos no tratado comercial Brasil-Argentina, assinado em pleno auge da

greve dos metalúrgicos do ABC paulista, mediante o qual as multinacionais de automóveis

instaladas nestes países visam compensar mutuamente o ritmo da produção e das vendas

frente às greves metalúrgicas.

Do mesmo modo concertam o controle das fontes fundamentais e da

comercialização internacional de matérias-primas. É já hoje conhecida a manobra dos

monopólios petrolíferos em face da crise mundial de combustíveis. Despojados do controle

das fontes principais do combustível, nacionalizadas pêlos governos árabes, os monopólios

petrolíferos, em maioria norte-americanos, fomentam a crise. Visam com isto elevar os

preços baixos do petróleo árabe aos níveis mais elevados do petróleo americano, majorados

pelo esgotamento das reservas mais ricas e acessíveis, tornando em consequência

compensadora sua exploração e valorizadas as demais fontes de combustíveis, o carvão em

particular, já por eles antecipadamente adquiridas. Uma manobra desta envergadura não é

impossível aos monopólios. Entre outras razões porque os governos monopolistas árabes

não dispõem de igual estrutura industrial, financeira e comercial dos monopólios

imperialistas, e, principalmente, os decorrentes meios militares e políticos destes. Mesmo

despojados das principais fontes mundiais de petróleo, e ainda que defrontados na esfera da

comercialização com a OPEP, a conjuntura internacional pertence aos monopólios

imperialistas. Assim, se para os oligarcas árabes a crise significa maior massa de lucros

com a especulação do combustível, para os monopólios imperialistas significa uma chance de

ainda mais ampla hegemonização internacional. Podem, por exemplo, dar-se ao luxo de

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Page 114: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

estimular os árabes a investirem seus petrodólares nas empresas dos próprios monopólios

imperialistas. Quando muito os lucros dos árabes se ampliarão. Para o imperialismo

significa transferir para as oligarquias árabes parte do custeio da liquidez internacional.

Sabem os monopólios imperialistas que no cotejo final a massa da mais-valia confluirá

para onde maior for a taxa da composição orgânica do capital e melhor se tiver superado a

"lei tendencial".

9. "QUESTÃO ECOLÓGICA" E "QUESTÃO DEMOGRÁFICA": O QUE ESTÁ EM

QUESTÃO

A monopolização do trabalho e da natureza em escala mundial determina os termos

da relação homem-meio de nossos dias mesmo na microescala do espaço planetário. Por

traz do arranjo espacial que expressa esses termos, encontra-se o alto grau de concentração

e centralização técnica e financeira com o qual o capital busca superar a permanente

incidência da "lei tendencial" que rege a acumulação monopolista. Encontra-se igualmente

o aguçamento das contradições inerentes ao modo capitalista de produção: o gigantismo

atingido pelo capitalismo em sua fase monopolista de Estado acompanha-se do gigantismo

das suas contradições.

Crescem com o capitalismo monopolista a pauperização relativa do trabalho e

absoluta da natureza. Atuando como lei implacável, o crescimento do capitalismo conduz

ao agravamento da alienação do trabalho e da natureza. A internacionalização da

acumulação de capital internacionaliza as contradições que se agitam no seio da

racionalidade capitalista: o trabalho e a natureza se empobrecem agora na escala mundial.

E tão às escâncaras que o eufemismo do "desequilíbrio ecológico" e do "desequilíbrio

demográfico" à custa-consegue esconder.

A medicação somente serve ao agravamento do mal clínico. As chamadas "questão

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Page 115: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

ecológica" e "questão demográfica" nascem já sob pesada carga ideológica: servem para

esconder a questão real e sua causa.

A expansão territorial imperialista desloca as pressões operárias e concorrenciais

sobre a taxa de acumulação, géneses da "lei tendencial", a novas fontes de força de

trabalho e recursos naturais. Quando a expansão territorial atinge seus limites, os

monopólios imperialistas se lançam à redivisão da retaliação colonial. Submetida à

apropriação e competição monopolistas, a natureza torna-se "escassa". Os monopólios

fomentam a farsa da escassez e devastam as reservas naturais de mais baixo custo e

acesso: primeiramente as terras agrícolas e a seguir os minérios e fontes de energia. De

início barata relativamente ao trabalho e às máquinas, a natureza torna-se progressivamente

mais cara. Sendo capital constante (circulante), este fato só concorrerá para forçar mais

para o alto a taxa orgânica do capital e reativar a "lei tendencial".

Provocando duas guerras mundiais de efeitos catastróficos, a retaliação geopolítica do

mundo só se mostrará válida doravante localizadamente. A intensificação da circularidade

dos capitais e produtos apontará uma outra saída. São necessários, todavia, duas medidas:

l?) deteriorar-se a qualidade dos produtos, para forcar a renovação constante das compras;

2°) estender-se as relações de mercado capitalista ao nível mundial, quebrando-se a

autarcia das relações pré-capitalistas onde ainda exista. Produção em massa de

mercadorias de curta duração combinada a um movimento mundial similar da acumulação

primitiva de capital descrita por Marx para o capitalismo britânico. Em suma, inscrevendo os

termos gerais atuais do desenvolvimento capitalista desigual e combinado.

As cifras atingidas pelas trocas internacionais prefiguram os lucros dos

monopólios, mas a deterioração do produto industrial faz-se acompanhar da deterioração

do trabalho e do meio ambiente. Transferindo a tendência à baixa dos lucros para as

condições de vida da massa dos trabalhadores e do meio ambiente, peja inter-mediação do

Estado, pela monopolização crescente do capital, pela internacionalização do capital ou

pela maior velocidade de rotação dos capitais e produtos, o capitalismo monopolista mais

parece um velho feiticeiro: tudo que faz clama pelo seu contrário. A deterioração do meio

ambiente induz ao maior investimento de capital constante, destinado à "reprodução da

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natureza" (implementação de técnicas despoluentes; recuperação de solos, mananciais e re-

florestamento; descoberta de novos recursos). A socialização dos investimentos pelo Estado

em benefício dos monopólios acentua o conflito entre o caráter social da produção e o

caráter privado da apropriação da riqueza. A internacionalização do capital internacionaliza a

contradição burguesia e proletariado e aguça as contradições interimperialistas. Reativam-

se a "lei tendencial" e seu ciclo.

A metáfora do feiticeiro lembra porém a do Anteu, em antítese: o capital cresce na

crise.

10. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO" E SOCIALISMO

Mas o poder de crescer na crise transfigura-se em exaltação do poder do trabalho.

Cada crise abre a perspectiva dessa compreensão.

Separada dos meios de produção e, por conseguinte, do produto do seu trabalho, a

massa dos trabalhadores protesta contra o ar e a água poluídos, o absurdo dos descartáveis

amontoados nas lixeiras, o enguiço frequente dos eletrodomésticos comprados a prestação,

o aluguel e o preço especulativo da terra, o desperdício dos alimentos pelas classes

abastadas, as firulas do poder sobre as causas e soluções da crise. Inconscientemente ou

não, reage contra o uso do seu trabalho e da natureza que fazem os que deles se apropriam.

Manifestando desse modo sua crítica ao mundo da "crise ecológica", prepara-se

para perceber no processo do trabalho a origem da crise e a estabelecer sob suas próprias

mãos a unidade e o domínio das forças produtivas, do processo global do trabalho, da

totalidade social. A controlar sua própria história.

NOTAS PARA UMA INTERPRETAÇÃO NÃO-ECOLOGISTA DO PROBLEMA ECOLÓGICO

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Carlos Walter Porto Gonçalves

"...Do ponto de vista de uma formação económica superior da sociedade (o comunismo), a propriedade privada do globo terrestre, por parte de alguns indivíduos, parecerá tão absurda como a propriedade privada de um homem por parte de outro homem. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, e mesmo todas as sociedades de uma mesma época, tomadas em conjunto, não são proprietários da terra. São somente seus possessores, seus usufrutuários e têm o dever de deixá-la melhorada, como Boni Paires Famílias, às gerações futuras..." (K. Marx. O Capital. Livro III. tomo 3).

A questão ecológica vem a cada dia ocupando um espaço maior em nossas vidas.

Isto se manifesta não só pelo surgimento de movimentos em defesa do verde como também

pêlos anúncios, cada vez mais frequentes, que nos tentam vender "qualidade de vida",

mormente no mercado imobiliário. Estranho paradoxo este da "questão ecológica": todos,

independentemente da sua posição social, incorporam o discurso do verde, do combate à

degradação ambiental, constituindo um verdadeiro modismo. O próprio ex-pre-sidente R.

Nixon, que tinha por detrás uma série de grandes monopólios, dizia que a preservação

ambiental, a qualidade de vida, se constituía na grande meta da sociedade americana nas

próximas décadas. Pensamos que nunca um discurso tenha sido capaz de reunir tantas

opiniões convergentes como o da "questão ecológica". Aparentemente ninguém é contrário

à preservação da "qualidade de vida" e à utilização racional dos recursos naturais. Seria de

esperar que este verdadeiro consenso em torno da questão já deveria ter produzido frutos

concretos, além da publicidade e da criação de uma disciplina escolar como a ecologia.

Todavia, verificamos que se de um lado cresce uma consciência necessária em tomo do pro­

blema, de outro, observamos que esta tomada de consciência apenas não é suficiente para o

superar.

Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer bem claramente que este não é um

problema recente. Em 1844 F. Engels já abordava a questão em seu excelente livro A

Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Assim, enquanto o problema do ar

poluído, do barulho, da água infectada, das casas insalubres foi sentido exclusivamente

pela classe operária, poucos foram os que se levantaram para o apontar e combater. Hoje,

quando o capitalismo se aprofundou e a poluição já não atinge somente a classe operária,

mas também aos segmentos da pequena-burguesia — a chamada classe média — a

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degradação da natureza ganha espaço nos jornais, nas emissoras de rádio e televisão. Em

síntese, invade através do discurso todos os cantos. Eis aí a primeira razão para tanto estar­

dalhaço sobre o tema. Se tivéssemos visitado as favelas e os bairros periféricos de nossas

cidades há cerca de 20 ou 30 anos atrás, veríamos que o problema, de fato, não é novo,

nem é simplesmente um problema ecológico. . .

Coloca-se-nos, pois, uma primeira e fundamental preocupação: como abordar esta

questão nos quadros de uma relação social contraditória entre o capital e o trabalho? Tal

colocação, no entanto, talvez possa levar a que todo um setor significativo do movimento

ecológico nos lance na rubrica de "marxistas dogmáticos", que tudo reduzem à luta de

classes. Todavia, já foi observado que ninguém transforma o mundo por um ato de

vontade, embora também não se possa transformar o mundo sem um ato de vontade. . .

Algo, além da vontade, parece ser necessário à superação do tal "problema ecológico",

ainda mais quando se trata de um destino a ser dado à natureza, isto porque a natureza é

incapaz de lutar pela sua própria preservação. A pergunta que nos devemos fazer efeti-

vamente é, pois, a de que setores da nossa sociedade são capazes de assumir esta bandeira

e levá-la conseqüentemente à vitória.

Acreditamos, por outro lado, que certos elementos que se auto-proclamam

marxistas têm em muito sido responsáveis pela hegemonia ideológica burguesa e pequeno-

burguesa nos chamados movimentos ecológicos, pela maneira estreita (e diríamos não

marxista) com que abordam o problema, limitando-se displicentemente a constatar que o

problema ecológico é uma contradição secundária e ponto final. Ora, uma contradição

secundária não é um fenómeno completamente desvinculado da chamada contradição

principal (capital X trabalho). Na verdade, a contradição principal do capitalismo se

manifesta de diversas formas. Identificá-las e demonstrar suas articulações internas é uma

das exigências teórico-metodológi-cas do materialismo histórico e dialético.

A contradição estrutural do capitalismo se manifesta nos diversos momentos do seu

processo de produção/reprodução, constituindo suas formas concretas de existência. Seja

através da luta dos trabalhadores por melhores salários e estabilidade no emprego, na luta

dos trabalhadores do campo pela terra, nos movimentos de bairro para conseguir os

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Page 119: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

equipamentos coletivos necessários como hospital, escola, água, luz e esgoto, seja na luta

pela qualidade dos alimentos que consumimos ou contra a degradação ambiental, o que

temos, na verdade, é a contradição fundamental do capitalismo se expressando em cada

momento da produção/reprodução social, invadindo todos os campos da prática cotidiana

dos indivíduos, grupos e classes sociais, onde a história se faz no dia-a-dia.

É isto que precisamos recuperar ao nível da análise — já que as contradições sociais

se manifestam na aparência como fenómenos isolados — restabelecendo as suas

articulações ao nível da consciência.

O desenvolvimento do capitalismo, que desde os seus primórdios jogava todo o seu

peso sobre as costas dos trabalhadores, começa também a implicar, na sua fase superior, a

depredação a olhos vistos da natureza. Ironicamente, o desenvolvimento de forças

destrutivas torna-se condição de preservação e reprodução do sistema.

É preciso ir além daquela formulação tão em voga nos movimentos ecológicos de

que os homens estão destruindo a natureza. Se um trabalhador opera uma serra elétrica

que derruba milhares de árvores em algumas horas, não se pode responsabilizá-lo por

este ato sem que enfoquemos as relações sociais sob as quais vive. Todo o disfarce liberal

e democrático do capitalismo se esvai quando se transpõe o portão de uma fábrica ou de

qualquer empresa. Todos sabem que as diretrizes que se impõem ao processo de trabalho

são da inteira responsabilidade do proprietário ou de seu preposto, cabendo ao conjunto

dos que operam — os operários — cumprir tais determinações. Mas este é só um aspecto

do problema: os homens livres no capitalismo só o são formalmente, uma vez que a

existência neste tipo de sociedade só é possível na medida em que não se existe para si

mas para o capital. Se a responsa bilidade pelo desmatamento indiscriminado deve ser

atribuída a alguém, deve ser àqueles que detêm em caráter privado a propriedade da terra

(a qual, diga-se de passagem, não é produto do trabalho de ninguém) e da serra elétrica,

podendo, por isso, se apropriar do resultado do processo de trabalho. O que efetiva-mente

é explorado é o trabalho e não a natureza, posto que esta sem trabalho não produz

qualquer riqueza.

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Page 120: Ruy Moreira - Geografia teoria e crítca

Todavia, não podemos enveredar por um caminho extremamente perigoso que é o

da condenação moral do capitalismo, à sua maldade inerente, como se a burguesia fosse

composta de seres desprovidos de boa razão e bons sentimentos e, por isso, incapaz de

fazer o mundo caminhar no "bom sentido". Se o modo burguês de produção é incapaz de

resolver este problema da ecologia não é, evidentemente, por essas razões. Trata-se, na

verdade, de um problema estrutural que, em síntese, se assenta no caráter privado da

produção capitalista, onde cada empresário age por sua própria cabeça com vistas à

chamada "tuilização ótima" dos recursos de que dispõe, objetivando ganhar a concorrência2.

Esta verdadeira "anarquia" do modo capitalista de produção levou a que muitos,

ingenuamente ou não, acreditassem na solução mágica do planejamento. Só que o

planejamento se constitui numa forma superior de relacionamento entre as classes e, no

interior do capitalismo,, foram os monopólios os impulsionadores de um maior

comprometimento da máquina do Estado com a racionalização do uso dos recursos.

Como a racionalidade não é um princípio a-histórico, a racio-nalidade que se impôs

foi a do grande monopólio que cada vez mais captura os aparelhos de Estado como

articuladores de suas estratégias. Isto se manifesta na crescente participação do Estado na

criação das chamadas condições gerais de produção. O Estado de todos, o Estado Leviatã,

que paira acima dos interesses de classe, o Estado Neutro, responsável pelo bem comum, se

ainda existia para alguns (não para nós) perde completamente o sentido. Daí . decorre a

crescente politização de todas as questões face ao caráter de classe do Estado. Assim,

como diz P. Baran, não é o planejamento que planeja o capitalismo, mas o capitalismo que

planeja o planejamento. Todos devemos estar lembrados da interven cão do Estado no

Município de Contagem-MG durante o Governo Geisel; do comprometimento do Governo

com a política de ocupação da Amazónia através de seus projetos Jaris; da política de

incentivos fiscais para reflorestamento com pinus elliotis e eucaliptos para a produção de

celulose, isto para citar apenas alguns exemplos...

O FUNDAMENTO DA APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: O PROCESSO DE TRABALHO

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É sabido que o processo de trabalho, fonte criadora de riquezas, pressupõe, antes de

mais nada, o homem e a natureza. Neste processo, "o ser humano, com sua própria ação,

impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Põe em movimento

as forças naturais de seu próprio corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de se

apropriar dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando

assim sobre a natureza externa e modificando-a ao mesmo tempo, modifica sua própria

natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo

das forças naturais". A satisfação das necessidades humanas é, portanto, o fim último do

próprio processo de trabalho ou, em outras palavras, dar à natureza uma forma útil à vida

humana constitui a essência do processo de trabalho. "Como produz valores de uso e é útil,

o trabalho, independentemente de qualquer forma de sociedade, é a condição indispensável

da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a

natureza e o homem".

Numa esclarecedora passagem dos Grundrisse, Marx diz que "a natureza não constrói

máquinas, locomotivas, estradas de ferro, telégrafos elétricos, etc. Esses são os produtos da

indústria humana; matéria natural transformada em órgão de execução da vontade do

homem sobre a natureza ou de sua participação na natureza. São órgãos criados pela mão

do homem, pelo cérebro humano: ciência objetivada".

Como se vê, as forças produtivas são produzidas; são o produto e o instrumento da

atividade prático-teórica do homem nas suas relações com a natureza que é a substância de

todo o progresso da humanidade.

Quando se assinala que o trabalho, independentemente de qualquer forma de

sociedade, é a condição indispensável da existência do homem, chamamos a atenção apenas

para um lado da questão, que é o fato de ser o trabalho concreto a fonte de valor de uso

indispensável à existência do homem. A isso K. Marx chamou trabalho produtivo, tomando o

cuidado de salientar que esta concei-tuação de trabalho produtivo não cabia para a

sociedade capitalista. O fato de Marx ter enfatizado a articulação entre trabalho produtivo e

produção de valores de uso levou uma série de "marxistas" a entenderem as forças produtivas

simplesmente como coisas, isto é, como um conjunto de objetos, como máquinas, que

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podem ser medidos segundo critérios estatísticos objetivos, como a produtividade e outros

índices. Assim, o critério de avaliação do grau de desenvolvimento das forças produtivas

passou,'a ser a quantidade de riqueza produzida, proporção de megawatts, e daí por diante...

Tal postura encerra, evidentemente, uma perspectiva positivista do marxismo, pois

não vê os dois lados do "indivíduo social", qual sejam as forças produtivas e as relações

sociais de produção. Afinal de contas, no momento em que o processo produtivo se

desenvolve, o homem não se encontra diante de coisas como a natureza e as máquinas, mas

diante de outros homens. A natureza, numa sociedade de classes, não está à disposição dos

homens em geral, mas do proprietário.

A máquina, embora seja um valor de uso em qualquer forma de sociedade, é, no

caso do modo de produção capitalista, capital, isto é, uma relação social que concentra nas

mãos de alguns o que expropriaram de outros, estes, reduzidos assim a esta condição de

expropriados, têm de vender a sua força de trabalho. O uso da máquina e da força de

trabalho não é um uso qualquer, mas um uso capitalista, isto é, um uso determinado pela

lógica da valorização do capital e não pela lógica da satisfação das necessi dades humanas.

Chegamos aqui a um ponto importante da questão: No capitalismo a natureza do processo

de trabalho é transfigurada, passando a ser "trabalho produtivo" aquele que valoriza o

capital e não aquele que satisfaz necessidades humanas. A natureza como um dos

elementos das forças produtivas é deteriorada na própria medida em que a natureza do

processo de trabalho é subvertida pelo capital — de produtor de valores de uso em

produtor, fundamentalmente, de valores de troca.

O capital é uma relação social que pressupõe o trabalho assalariado e para que este

seja constituído torna-se necessária a expropriação do trabalhador dos seus meios de

produção. Esta separação entre trabalhador e meios de produção está na base do

capitalismo, pois o homem que dispõe de meios próprios de produção não se subordina ao

capital, não precisa, portanto, vender a sua força de trabalho. O primeiro modo de

manifestação desse fenómeno é a desterritorialização do trabalhador, quando ele é arrancado

da sua relação com a natureza, com a terra. Ora, na medida em que o homem não dispõe de

seus meios de produção, todas as suas necessidades terão de ser satisfeitas através do mer­

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cado, de uma relação mercantil.

E o que regula as trocas numa sociedade capitalista é a quantidade de trabalho

socialmente necessária à produção das mercadorias e não o seu valor de uso. Isto é, um

trabalho qualitativamente indiferenciado, posto que na sociedade capitalista é a quantidade

de trabalho socialmente necessário (trabalho abstrato) que determina se os trabalhos

concretos, que produzem valores de uso, são ou não necessários socialmente. . . Eis a

contradição valor de uso X valor de troca expressa em sua plenitude, significando, em

termos práticos, a contradição entre satisfação das necessidades humanas (trabalho concreto

= valor de uso) e necessidade do capital se valorizar (regulado pelo trabalho abstrato =

valor de troca). Contradição entre trabalho concreto — que forja um produto com

determinada substância físico-orgânica — e trabalho abstrato medido pelo tempo, em sua

quantidade socialmente necessária e indiferente à sua forma material. O que importa no

capitalismo é a realização da mais-valia contida na mercadoria. . .

Quanto mais o homem se encontra separado da natureza, mais e tem que suprir as

suas necessidades através de uma relação ercantil. O verde deixa de ser um bem que

exista à disposição ï todos os homens. É preciso destruir o verde para que ele se »rne

mercadoria. A verdadeira indústria de plantas ornamentais, .o presente nas nossas grandes

cidades, não pode sobreviver onde idos tenham acesso ao verde. Parece-nos agora claro

por que as npresas imobiliárias, exatamente aquelas que mais derrubam as mais, têm na

ideologia do verde e da "qualidade de vida" os seus rincipais apelos de publicidade. O

mesmo poderia ser dito das idústrias de máscaras de oxigénio que só sobreviverão

enquanto ar for poluído, pois no dia em que o ar for puro não mais ;rão razão de existir.

Portanto, ao separar o homem da natureza, o capitalismo se Toduz e reproduz, assim

como cria necessidades novas que fun-amentam a sua existência enquanto modo de

produção de mer-adorias. A separação entre homem e natureza, o fato da exis-ência só

poder ser garantida na medida em que se é para o apitai e não para si mesmo, a

determinação da produção pelo rabalho abstrato e não pelo trabalho concreto, são os

fundamentos listóricos, sócio-econômicos da alienação. Esta verdadeira subver-;ão da

natureza do processo de trabalho efetuada pelo capitalismo ;stá indissoluvelmente articulada

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ao processo de degradação ambiental.

A dinâmica da acumulação do capital implica alterações na com-Dosição orgânica

do capital, isto é, o aumento do "trabalho morto" (máquinas) em relação ao "trabalho vivo"

(força de trabalho) que, por sua vez, é o fundamento da lei tendencial da queda da taxa de

lucro, essa espécie de nêmesis do capitalismo. O paradoxo de uma sociedade que vive do

lucro apresentar uma tendência à queda da taxa de lucro — reconhecida por diversas

correntes do pensamento económico, não só pela marxista — impele o capitalismo a

desenvolver mecanismos contratendenciais a esta lei. Além da intervenção do Estado na

criação de condições gerais de produção,no arrocho salarial e da pressão sobre as

organizações de defesa dos interesses dos trabalhadores – sindicatos e partidos politicos – se

coloca como uma necessidade imperiosa do capital o seu desenvolvimento intensivo,

aprofundando a divisaõ do trabalho – e com isso acentuando a socializaçao capitalista das

forças produtivas – o lançamento de novos produtos no mercado, ao mesmo tempo, a

expansao geografica do capital para novas regioes e setores – a agricultura, por exemplo —

o desenvolvimento de um sofisticado sistema de crédito e publicidade, assim como a já

conhecida técnica do obsoletismo planejado. Daí os automóveis e eletrodomésticos que a

cada dia que passa duram menos, sendo exatamente para esses produtos que os sistemas de

crédito e publicidade mais se têm desenvolvido.

De onde saem as matérias-primas destinadas à produção de automóveis, televisores,

refrigeradores, aparelhos de som, etc., que cada vez mais rapidamente se deterioram? Qual

o sentido do trabalho efetuado por um operário para fabricar produtos que ao invés de nos

servir indefinidamente têm que ser frequentemente substituídos porque o capital requer que

se continuem sistematicamente a produzir, planejando o seu obsoletismo? Que ciência é

essa que se presta a fins de programar os indivíduos para comprarem produtos que uma

outra ciência ajudou a fazer com que se tornassem deterioráveis mais depressa, enquanto

um outro ramo do saber ajudou a facilitar o crédito para comprar, comprar e comprar?. . .

Fica evidente que o trabalho perdeu o sentido de produzir coisas úteis e a natureza, como

corpo inorgânico do homem, também vai sendo mutilado/a em virtude desse princípio de

produzir para o lucro, por esse consumismo desenfreado — maldosamente apresentado

pêlos meios de comunicação de massa como materialismo — enquanto milhões de seres

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humanos famélicos assistem à natureza servindo aos fins espúrios do capitalismo. Isto para

não falar do militarismo que a cada dia absorve proporções maiores dos orçamentos dos

governos, pressionados pêlos grandes grupos monopo-lísticos, não por razões de defesa,

como alegam, mas devido ao crescimento desigual entre os diversos setores da economia

capitalista, principalmente quando o departamento I — indústria de bens de produção —

precisa cada vez mais da garantia do Estado, das suas encomendas, para manter as suas

taxas de lucro. É claro que a "ameaça do comunismo" é sempre apresentada como justi­

ficativa para a elevação dos investimentos bélicos. Todavia, qualquer um que faça uma

investigação séria a respeito do desenvolvimento capitalista verá que a tendência à

militarização é inerente ao capitalismo, independentemente da existência dos movimentos

socialistas.

Nenhuma atividade económica é tão claramente destrutiva como a indústria bélica,

mas não é somente ela que apresenta tal característica, como já vimos anteriormente. O

desenvolvimento capitalista parece cada vez mais se apoiar em tudo aquilo que nega a vida,

não só exigindo dos homens que produzam coisas para a destruição, como também

produzindo coisas cuja única razão é manter o capitalismo de pé.

É neste sentido que podemos falar que a luta pela preservação ecológica é uma luta

pelo socialismo. E a luta pelo socialismo deixa de ser uma utopia e se torna uma

necessidade: a construção de um mundo dos homens para os homens.. .

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