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Darcel Andrade Alves

A Educação n´O Museu do Marajó: ver - tocar - contextualizar

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará - UEPA. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Área de concentração: Educação, Saberes e Diversidade Cultural na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Josebel Akel Fares. Co-orientadora: Profª. Drª. Denise S. Simões Rodrigues.

Belém-Pa 2009

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Dados internacionais de catalogação e publicação (CIP). Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação, UEPA,

Belém - PA.

ALVES, Darcel Andrade. A Educação n’O Museu do Marajó: ver - tocar – contextualizar / Orientadora: Dra. Josebel Akel Fares; Co-orientadora: Dra. Denise Simões Rodrigues. Belém/PA, 2009.

225 f. Dissertação [Mestrado] – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.

1. Educação. 2. Museu do Marajó. 3. Saberes Marajoaras. I. ALVES, Darcel Andrade. ll. Título.

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Darcel Andrade Alves

A Educação n´O Museu do Marajó:

ver - tocar - contextualizar

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará - UEPA. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Área de concentração: Educação, Saberes e Diversidade Cultural na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Josebel Akel Fares. Co-orientadora: Profª. Drª. Denise S. Simões Rodrigues.

Data da Defesa: 08/01/2009 Banca Examinadora:

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Ao meu Deus que me consagra esta bênção, dando-me vida e saúde para realizar meus sonhos. “Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho.” Ao meu pai Raimundo Vieira Alves, Hilda Andrade Alves e Raimunda Alves Ribeiro, em memória, meus guardiões na terra enquanto viveram, e num lugar especial onde agora habitam, aguardam por mim. Saudades. Muitas! À minha família, em especial às minhas irmãs Deusimar Andrade e Maria Franco pela blindagem construída ao meu redor. Amigas de todas as horas! Ao meu coração apaixonado pela vida: “Tenho em mim todos os sonhos do mundo!”

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Profª. Drª. Josebel Akel Fares, pela luz em minha caminhada. É e será sempre uma honra tê-la em meus escritos e em minha vida acadêmica. Obrigado por mostrar-me o caminho das águas, pelas palavras sérias e certeiras, pela leveza e acessibilidade, pelas reuniões gostosas regradas a livros e conversas. Quando eu escrevo, ecoam, aos meus ouvidos, o Marajó em sua voz, e eu vejo o sorriso nos olhos pequeninos, cheios de ternura.

À minha co-orientadora, Profª. Drª. Denise Simões Rodrigues, com seu olhar de águia, soube mirar meus devaneios e transformá-los em realidade concreta. Obrigado pelo silêncio atento nas horas mais difíceis. Tantas vezes desejei abraçá-la e arrancar as “flores” para sustentar o fardo, e eu o fiz [o abraço] em rara oportunidade. Obrigado por mostrar-me os caminhos das pedras, sempre terá uma no percurso, contorná-la ou quebrá-la, é parte da nossa missão.

À Profª. Drª. Elizabeth Teixeira pela atenção nas trilhas de idas e vindas. Obrigado pela credibilidade, pelo ouvir, e pelas produções compartilhadas. Cores nas asas da borboleta sobre campos e flores.

À Profª. Drª. Ivanilde Apoluceno, por tudo que representa para o curso de Mestrado e à Universidade. Tenho imagens fortes de sua presença. Obrigado pela minha participação nos grupos da pesquisa. Aprendizagem e amadurecimento.

A todos os professores do curso de Mestrado, especificamente aos professores: Cristina Carvalho, Maria de Jesus, Maria Betânia, Maria das Graças, Tânia Lobato, Socorro França e Emmanuel Cunha; aos demais professores da linha de Formação de Professores; aos professores da Universidade Federal do Pará, José Guillerme Fernandes, Ernani Chaves, Denise Schaan, Socorro Simões, Lígia Simonian, Julio Fernandes, por terem, todos, ajudado, de perto, na construção de minha vida acadêmica.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela viabilidade dos recursos em forma de bolsa de estudo, ao compensar as dispendiosas despesas de hospedagem, alimentação, transportes e, principalmente, livros.

Aos amigos Prof. Dr. Edson Farias e Prof. Dr. Alfonso Medeiros, pelo exemplo durante a caminhada desde a graduação.

Ao secretário do curso Nícolas, pela habilidade e socialização das informações pertinentes. Aos funcionários Diego e Gladson, pela assistência nos recursos auxiliares. Aos Editores Nilson Bezerra, Hudson Maik e Bruna Toscano, pelo comprometimento às horas cansadas e de solicitude.

A Giovanni Gallo, pelo exemplo e determinismo de plantar sonhos, regrá-los e compartilhá-los. “O Museu é um grande brinquedo [...] um dia você pode escrever sobre tudo isso aqui para não se perder a nossa história”. Obrigado, padre!

Aos personagens envolvidos no processo de produção dos dados, às crianças de Grupo GAFMA, ao professor e mestre Miquéias; aos diretores e aos funcionários d’O Museu do Marajó, especialmente à Rosália, ao Nazareno Silva, Rafael, Wagner, Paulo Almeida, João e

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Paulo Câmera, Smith, Prof. Tadeu e esposa Maria José, Dona Hermita, Dona Sebastiana, Albertino Leão; às autoridades e aos moradores da cidade da Cachoeira do Arari, que são muitos, pela acolhida sem resistência.

À cachoeirense Vera Portal, pela credibilidade e concessão do material ilustrativo que muito contribuiu para diferentes leituras desta pesquisa.

Ao amigo Fernando Farias. Você é dez, cara! E à Maria [de Jesus], pela sutileza de conquistar amizades. Vocês sabem do que eu estou falando.

Aos demais colegas do curso: Andréia, Fátima, Iracildo, João, Kátia, Leopoldo, Miranda, Nonato, Rosa, Socorro e Willian, pelas compartilhadas produções acadêmicas. Extensivo à Giza Bandeira.

A meus amigos imprescindíveis, que souberam compreender minha ausência ao escrever estas páginas: Ângela Cunha, Ruth Capistrano, Roseli Souza, Zanete Gusmão, Fernanda Prestes, Ilton e Cleide, Paulo e Marta, Juvenal e Isabel, Vitor e Zoraide, Zé Maria e Rosa, Karime, Bilu, Aline, Rita, Célia Ataliba, Chica, Ricardo, Suelene, Edson Martins, Marcos Mascarenhas, Sávio Palheta, pelo cuidado de manter as portas abertas para a minha produção, ajudaram-me a romper barreiras i-materiais e profissionais. Extensivo aos meus alunos, que são muitos, indistintamente.

À Cleonice Veloso, pela ternura e poesia. Amiga de luta, nas minhas loucuras no cinema pernambucano, tempo de “A Vida Leva e Traz”, “A Partida”, “O Velho, O Mar e O Lago”, “Oi, d’eu sodade!”, “O Recife que aprendi a amar depois”, nossa turminha de set, Sandra Ribeiro, Camilo Cavalcanti, Fábio Barreto [SP], Miguel Rodrigues [RJ], Nelson Simas [saudade], e muitos outros trabalhos.

À Heddy Edna Seawright, companheira de viagem e estudos na PUC-Minas, sempre

divertida nos momentos mais inusitados, mas sempre séria nas salas de aula. Obrigado por aceitar os desafios nas loucuras pedagógicas. Ânimo, volte logo, estamos te esperando!

À Thaís Colaiácovo, Eliana Soares e Ruth, inesquecíveis. E meus estimados e queridos filhos Luth e Clícya.

Aos seres importantes de minha existência: Dienne, Dianna, Denise, Ila, João, Marcelo, Silvinha, Patrícia, Lene, Jairo, Nathália, Nayara, Delpy, Francisca, Hildinha, Ney, Disney, Luiza, Ulisses, Carolina, Jane, Dollanno, Carmem Edmar, Vanda, Vander, Vilma, Valdson, Mhirna, Lucas, Arthur, Delma e turma, Deyse, Alexandre, Talita, e ao anjinho Evelyn.

Ao meu Anjo da Guarda, pela companhia invisível e silenciosa.

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Eles não sabem que o sonho

É uma constante na vida Tão concreta e definida

Como uma coisa qualquer Eles não sabem e nem sonham

Que o sonho comanda a vida Que, quando o home sonha,

O mundo pula e avança Como uma bola colorida

Entre as mãos de uma criança.

Antônio Gideão

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SINOPSE

ALVES, Darcel Andrade. A Educação n’O Museu do Marajó: ver - tocar - contextualizar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGed/UEPA. Belém, 2009.

Esta dissertação apresenta estudo sobre a aprendizagem n’O Museu do Marajó, situado na maior ilha fluvial do mundo, na foz do rio Amazonas, no extremo norte do Brasil. Considerado o maior guardião da cultura marajoara, a história d’O Museu se confunde com a história de seu mentor, Givanni Gallo [1927 - 2003], enquanto viveu naqueles tesos, ao desenvolver práticas educativas lá existentes e revelar os saberes marajoaras por meio das engenhocas chamadas de “computadores caipiras”. O processo de aprendizagem é lúdico e traz para discussão alguns autores, como: Feire, Wajskop, Brougère, Sanny Rosa, Fares, Gallo, Carvalho, Fernandes, Rodrigues, Charlot, Zumthor, Benjamim, Geertz, Flick, Teixeira, Backtin, entre outros, como Barbosa e sua adaptada Abordagem Triangular dos verbos: Ver, Tocar e Contextualizar. Nesta abordagem, os saberes marajoaras são investigados, gapuiados e apartados durante as cirandas e rodas de conversas. A estratégia para a produção de dados é dividida em três momentos: primeiro, roda de conversa antes da visitação; segundo, é a gapuiagem entre os saberes durante a visitação; terceiro, é a culminância das ações desenvolvidas após a gapuiagem. As narrativas dos intérpretes envolvidos fazem parte da produção de dados, videogravação, e revelam imagens, sons, textos, performances, gestos e vozes dos intérpretes ao tocarem e manipularem os computadores. O contato com O Museu produz saberes sobre o homem e a cultura marajoara e promove as relações desses saberes com os visitantes ou intérpretes, o que constitui o objeto desta pesquisa. Os resultados esperados emergem dos gestos e vozes dos intérpretes durante a gapuiagem e apartação dos saberes apresentados nas seqüências [capítulos] deste estudo. Palavras-chave: Saberes Culturais . Giovanni Gallo . Museu do Marajó .

Área de concentração: Educação, Arte-educação e Cultura.

Linha de pesquisa: Saberes Culturais e Educacionais da Amazônia.

Darcel Andrade Alves, graduado em Educação Artística pela Universidade Federal do Pará - UFPA; Especialista em: Semiótica e Cultura Visual [UFPA]; Docência no Ensino Superior [PUC-MG]; e Recursos Humanos em Educação [UFPE]. Aluno Especial no Doutoramento do Núcleo de Altos estudos Amazônicos – NAEA/UFPA. Professor da rede de Ensino Superior da Grande Belém - Pará. Contato: [email protected]

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ABSTRACT

ALVES, Darcel Andrade. A Educação n’O Museu do Marajó: ver - tocar - contextualizar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGed/UEPA. Belém, 2009.

This dissertation presents a study on the schooling in the Museum of Marajó, located at the largest fluvial island in the world, on the outfall of the Amazon River, in the extreme north of Brazil. Considered the greatest guardian of marajoara culture, the history of the Museum merges with the history of its mentor, Giovanni Gallo [1927-2003], while he lived on those steeps, developing the educational customs existing thereof and revealing the marajoara knowledge by the means of gadgets called “hillbilly computers”. The process of schooling is playful and brings into discussion a variety of authors, such as: Feire, Wajskop, Brougère, Sanny Rosa, Fares, Gallo, Carvalho, Fernandes, Rodrigues, Charlot, Zumthor, Benjamim, Geertz, Flick, Teixeira, Backtin, among others, Barbosa and his adaptation Abordagem Triangular dos verbos: Ver, Tocar e Contextualizar. In this approach, the marajoara knowledge is investigated, goes through the process of gapuiagem and is set apart during the cirandas and talking circles. The strategy for the production of data is divided into three moments: firstly, the talking circle before the visit; secondly, the gapuiagem of knowledge during the visit; thirdly, the culmination of the activities developed after the gapuiagem. The narratives of the interpreters involved are part of the production of data, videorecording, and reveal images, sounds, texts, performances, gestures and voices of such interpreters while they touch and manipulate the computers. The contact with the Museum produces knowledge about the marajoara man and culture, and promotes the relations between this knowledge and the visitors or interpreters, which constitutes the objective of this research. The expected results emerge from the gestures and voices of the interpreters during the gapuiagem and setting apart of the knowledge presented during the sequences [chapters] of this study.

Keywords: Museum of Marajó; marajoara knowledge; Giovanni Gallo. Focus area: Education, Art-education and culture. Line of research: Cultural and educational knowledge of Amazônia.

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ROTEIRO DE FOTOGRAMAS E FIGURAS

Fotograma 1 Vista aérea da Amazônia ........................................................ 20

Fotograma 2 Vista aérea do Marajó............................................................. 20

Fotograma 3 Trajeto hidro-rodoviário......................................................... 21

Fotograma 4 Barco no rio Ararí, a caminho de Cachoeira........................... 21

Fotograma 5 Arco ornado com motivos marajoaras.................................... 23

Fotograma 6 Dedicatória de Giovanni Gallo............................................... 25

Fotograma 7 Vista aérea da cidade de Cachoeira do Arari, Marajó............. 26

Fotograma 8 Pronunciamento de Gallo na abertura d’O Museu.................. 35

Fotograma 9 Jenipapo.................................................................................. 42

Fotograma 10 Piranha................................................................................... 45

Fotograma 11 Mulher de Jenipapo injeta formol no peixe........................... 46

Fotograma 12

Cacos arqueológicos achados nos tesos marajoaras.............. 47

Fotograma 13 Bezerro-de-duas-cabeças....................................................... 48

Fotograma 14 O Nosso Museu em Santa Cruz do Arari.............................. 49

Fotograma 15 Antiga fábrica Oléica............................................................. 50

Fotograma 16 Comunidade envolvida no projeto Museu........................... 52

Fotograma 17 Visita ao Museu pela comunidade escolar............................ 53

Fotograma 18 Ciranda de conversa.............................................................. 63

Fotograma 19 O Ver..................................................................................... 66

Fotograma 20 O Tocar.................................................................................. 68

Fotograma 21 O Contextualizar.................................................................... 71

Fotograma 22 Ciranda de Conversa 2........................................................... 75

Fotograma 23 Recursos materiais.................................................................. 75

Fotograma 24 Cada um descobre o seu Museu ............................................. 76

Fotograma 25 Expressão de Maria 1.............................................................. 77

Fotograma 26 Expressão de Jonilson............................................................. 78

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Fotograma 27 Expressão de Évila 1............................................................... 79

Fotograma 28 Expressão de Évila 2............................................................... 80

Fotograma 29 Preocupação ambiental............................................................ 81

Fotograma 30 Expressão de Rafale 1............................................................. 82

Fotograma 31 Expressão de Maria 2.............................................................. 83

Fotograma 32 Expressão de Ciléia................................................................. 84

Fotograma 33 Performance de Ciléia............................................................. 84

Fotograma 34 Expressão de Ozil.................................................................... 85

Fotograma 35 Expressão de Cleberson.......................................................... 86

Fotograma 36 Fachada d’O Museu................................................................ 87

Fotograma 37 Expressão de Rafale 2............................................................. 87

Fotograma 38 Roda de Conversa antes da visitação...................................... 91

Fotograma 39 Estratégia para registrar a gapuiagem..................................... 102

Fotograma 40 Gapuiagem 1.......................................................................... 104

Fotograma 41 Gapuiagem 2........................................................................... 105

Fotogramas 42, 43 Corpo e toque.......................................................................... 106

Fotogramas 44, 45, 46 Movência do olho e do gesto.................................................. 107

Fotograma 47 A curiosidade convoca a imaginação...................................... 108

Fotograma 48 Toque de saber........................................................................ 109

Fotograma 49 Menino gira a manivela........................................................... 110

Fotograma 50 Instalação sobre os saberes míticos do Boto Tucuxi............... 113

Fotograma 51 Pinduricalhos dos saberes lingüísticos.................................... 127

Fotograma 52 Família pereira na roda de conversa....................................... 131

Fotograma 53 As fases arqueológicas............................................................ 158

Fotograma 54 O restauro................................................................................ 162

Fotograma 55 Abstração de saberes............................................................... 163

Fotograma 56 Saberes tradicionais................................................................. 169

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Fotograma 57 Boto tucuxi gapuiado e apartado............................................. 182

Fotograma 58 Capa do livro de Giovanni Gallo............................................ 184

Fotograma 59 N’O Museu tudo é história ..................................................... 188

Fotograma 60 Sentimento de religiosidade.................................................... 206

Fotograma 61 Sentimento de pertencimento.................................................. 207

Fotograma 62 Sentimento de preservação..................................................... 207

Fotograma 63 Sentimento relacional afetivo. Saberes gapuiados 1 .............. 208

Fotograma 64 Amaciamento. Saberes gapuiados 2 ....................................... 209

Fotograma 65 Percepções compartilhadas. Saberes gapuiados 3 .................. 210

Fotograma 66 Cuidar para não descuidar....................................................... 211

Fig. 1 Gráfico de saberes gapuiados................................................. 190

Fig. 2 Gráficos de saberes cuidativos............................................... 191

Fig. 3 Gráfico de saberes arqueológicos........................................... 191

Fig. 4 Gráfico de saberes identitários............................................... 192

Fig. 5 Gráfico de saberes ambientais................................................ 192

Fig. 6 Gráfico de saberes mítico-lendários........................................ 193

Fig. 7 Gráfico de saberes históricos.................................................. 193

Fig. 8 a 15 Apêndice C Mesanino........................................................... 219

Fig. 16 a 39 Apêndice D / O Museu é uma grande Escola......................... 220

Fig. 40 a 52 Apêndice E / Retorno da pesquisa à comunidade................. 221

Fig. 53 a 54 A Casa do Gallo...................................................................... 222

Fig. 55 Panorâmica para o rio Arari.................................................... 223

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LISTA DE TERMOS TÉCNICOS E SIGLAS

CAM.............. Câmera

DET ou PD.... Plano de detalhe

EXT………… Cena externa

FADE IN…... Efeito de clareamento gradativo na tela de projeção

FADE OUT... Efeito de escurecimento gradativo na tela de projeção

FUSÃO……. Efeito poético de sobrepor uma imagem à outra

INSERT…… Inserção de imagem ou som

PAN……….. Plano panorâmico

PM………… Plano médio

PD………… Plano de detalhe

PS………… Plano seqüência

ADA…….... Agência de Desenvolvimento da Amazônia

MdM…….. . OMuseu do Marajó

MPEG.......... Museu Paraense Emílio Goeldi

SUDAM....... Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia

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ROTEIRO DE CENAS

PRÉ-PRODUÇÃO ......................................................................................................... 18

SEQUÊNCIA 1 O HOMEM QUE IMPLODIU.................................................... 33

1.1 – PANORÂMICA 1. Giovani Gallo: Da Itália ao Brasil......... 36

1.1.1 – CENA 1: O mundo em preto e branco .............................. 36

1.1.2 – CENA 2: “Eu era sozinho”................................................ 37

1.1.2.1 – PLANO 1: O Noviciado.................................................. 38

1.1.2.2 – PLANO 2: Chegada ao Brasil.......................................... 40

1.1.2.3 – PLANO 3: Ao Marajó de Dalcídio.................................. 41

1.2 – PANORÂMICA 2: O Museu na Informalidade: uma idéia fora do lugar ................................................................................... 43

1.2.1 – CENA 1: Jenipapo é cenário............................................... 43

1.2.1.1 – PLANO 1: A cooperativa de pesca.................................. 43

1.2.1.2 – PLANO 2: O projeto piranha........................................... 44

1.2.1.3 – PLANO 3: Os presentes.................................................. 47

1.2.1.3.1 – Detalhe 1: Os cacos arqueológicos............................... 47

1.2.1.3.2 – Detalhe 2: O bezerro de duas cabeças........................... 47

1.2.1.3.3 – Detalhe 3: O tear andino............................................... 48

1.2.2 – CENA 2: Associação O nosso Museu e Santa Cruz do Arari... 49

1.2.3 – CENA 3: Transferência para Cachoeira.............................. 50

1.2.4 – CENA 4: Jardim e casa do Padre........................................

INSERÇÃO POÉTICA. O Roteiro.................................................

55

56

SEQUÊNCIA 2 O BRINCAR N´O MUSEU: VER, TOCAR E

CONTEXTUALIZAR................................................................... 60

2.1 – CENA 1: Percepção triádica .................................................. 61

2.2 – CENA 2: O Museu é um grande brinquedo........................... 66

2.2.1 – PLANO 1: O ver................................................................. 66

2.2.2 – PLANO 2: O tocar ............................................................. 68

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2.2.3 – PLANO 3: O Contextualizar ............................................. 71

2.3 – CENA 3: Expressão dos sentidos: O brincar e a capacidade criativa............................................................................................ 74

2.3.1 – Saber 1: O lugar................................................................... 77

2.3.2 – Saber 2: O lugar do homem e da cultura marajoara............ 78

2.3.3 – Saber 3: A presença da religiosidade................................... 79

2.3.4 – Saber 4: Afetividade............................................................ 80

2.3.5 – Saber 5: Preocupação ambiental.......................................... 81

2.3.6 – Saber 6: Identitário mítico-lendário..................................... 83

2.3.7 – Saber 7: Os motivos marajoaras.......................................... 85

SEQUÊNCIA 3 GAPUIAGEM DE SABERES..................................................... 90

3.1 – PANORÂMICA 1: Roda de conversa [antes da visita] ....... 91

3.2 – CENA 1: O intérprete............................................................. 93

3.2.1 – PLANO 1: Família Pereira.................................................. 95

3.2.2 – PLANO 2: Músicos............................................................ 96

3.2.3 – PLANO 3: Acadêmicos...................................................... 96

3.2.4 – PLANO 4: Moradores do Marajó...................................... 97

3.2.5 – PLANO 5: Visita individual de Rafael.............................. 97

3.3 – Lente 1: Homem e Cultura marajoara.................................... 98

3.4 – Lente 2: Sobre a curiosidade.................................................. 98

3.5 – CENA 2: Gapuiagem entre saberes........................................ 102

3.6 – PANORÂMICA 2: Fotogramas: os computadores caipiras e seus intérpretes................................................................................ 104

3.7 – CENA 3: Mergulho no rio de saberes................................... 110

3.7.1 – PLANO 1: Família Pereira.................................................. 110

3.7.2 – PLANO 2: Músicos ............................................................ 114

3.7.3 – PLANO 3: Moradores do Marajó........................................ 122

3.7.4 – PLANO 4: Gapuiagem de Rafael....................................... 124

SEQUÊNCIA 4 APARTAÇÃO DE SABERES...................................................... 129

4.1 – PANORÂMICA 1: O homem e a cultura marajoara.............. 131

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4.2 – CENA 1: O sagrado do mito e o profano do homem............. 136

4.3 – CENA 2: Vaqueiro pescador ou pescador vaqueiro............... 137

4.3.1 – Detalhe 1: A Escola............................................................. 140

4.3.2 – Detalhe 2: Alfredo pescador quer estudar.......................... 140

4.4 – CENA 3: O lugar do homem e da cultura marajoara............ 142

4.5 – CENA4: As vozes da cultura como saber.............................. 143

4.6 – PANORÂMICA 2: Saberes emergentes................................ 149

4.6.1 – PLANO 1. Saberes cuidativos............................................ 149

4.6.1.1 – Detalhe 1. Patrimônio histórico e cultural........................ 149

4.6.1.2 – Detalhe 2. Memória ......................................................... 151

4.6.1.3 – Detalhe 3. Medicina Cabocla........................................... 152

4.6.1.4 – Detalhe 4. A saúde e as questões políticas....................... 154

4.6.1.5 – Detalhe 5. Ausência do apoio institucional...................... 155

4.6.2 – PLANO 2. Saberes arqueológicos....................................... 156

4.6.2.1 – Detalhe 1. O fóssil 190 milhões de anos.......................... 157

4.6.2.2 – Detalhe 2. As fases arqueológicas.................................... 158

4.6.2.3 – Detalhe 3. O restauro, os desenhos, as réplicas ............... 162

4.6.2.4 – Detalhe 4. Relação entre saberes..................................... 163

4.6.3 – PLANO 4. Saberes Identitários ......................................... 164

4.6.3.1 – Detalhe 1. O Negro.......................................................... 165

4.6.3.2 – Detalhe 2. Os povos tradicionais...................................... 166

4.6.4 – PLANO 5. Saberes ambientais............................................

4.6.5 - PLANO 6. Saberes mítico-lendários...................................

170

177

4.6.6 - PLANO 7. Saberes históricos............................................. 183

4.6.7 – PLANODE SEGURANÇA. Pilares de Saberes.................. 190

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PÓS-PRODUÇÃO............................................................................................................. 199

CRÉDITOS....................................................................................................................... 212

APÊNDICES..................................................................................................................... 217

ANEXOS........................................................................................................................... 224

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PRÉ-PRODUÇÃO

Nesta introdução, apresento minha aproximação com o objeto de pesquisa ao

contar recorrências do cotidiano, dirigidas aos olhos de quem valoriza as acepções dos seres

humanos, da natureza, os sentidos da vida. Trago uma história única, in-comum, a tantos

sujeitos que buscam sentimentos e valores ímpares, singulares, estocados em campos alagados

em dias de chuva; terra tórrida nos dias de sol e calor. E como pesquisador, narro o atravessar

baías e rios, chego à Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, Brasil, e conto uma experiência

vivida,

ao olho de um narratário1

Para aclarar, acolho os preceitos e normas instituídas pela Academia, ao mesmo

tempo, abro espaço à criação como aura poética na moldura das formas e vozes ecoadas, as

quais foram traduzidas do texto oral para o texto imagético, e deste, feita a trans-criação para a

linguagem dissertativa. Antes, anuncio a elaboração de um passado de infância, quando visitei

a terra dos nuaruaques pela primeira vez, para construir o futuro, uma identidade que se revela

em sentidos de menino contemplador. Se Alfredo

imaginado, que carece ter a marca da emoção do olho do narrador, que foi o mesmo olho do pesquisador que o moveu e por ele foi movido. Assim imaginado, o narratário poderá identificar o olho do narrador como aquele de uma personagem da narração da história feita com as histórias que vão se inscrever no relato. Nesse sentido, permito-me agora assumir um eu que narra, para que possa dizer que vi [GOMES, 2000, p. 15].

A história converte-se em uma dissertação e constrói-se com o olhar de um

educador cineasta, e como tal, essa experiência não pode ser ocultada aos olhares dos

narratários, e contempladores mais atentos às novas linguagens que se apresentam ao cenário

acadêmico. Portanto, o texto que ora proporciono, ousa inserir, termos compositivos da

linguagem cinematográfica, por considerar, prioritariamente, os moldes da produção de dados

no decorrer da pesquisa, que foi a vídeogravação.

2

1 Entidade da narrativa a quem o narrador dirige o seu discurso. O narratário não deve ser confundido com o leitor, quer este seja o leitor virtual, isto é, o tipo ideal de leitor que o narrador tem em mente enquanto produtor do discurso, nem com o leitor ideal, isto é, o leitor que compreende tudo o que o autor pretende dizer. “O narratário é uma entidade fictícia, um ‘ser de papel’ com existência puramente textual, dependendo diretamente de outro ‘ser de papel’ Barthes [1966]. Fonte:

tinha um caroço de tucumã para

transportar-se de sua realidade, eu tinha o meu portal do tempo navegador que me levava ao

vento, brisa, cores, formas e linhas, território desejado, um caminho, rio-mar, para chegar lá na

minha ilha encantada, o Marajó, a maior ilha fluvial do mundo – nome grande do tamanho do

http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/N/narratario.htm, [Acesso: 28 set. 2008]. 2 Personagem encontrado nas páginas de Dalcídio Jurandir. O escritor nortista nasceu e viveu sua infância no Marajó, retratou a realidade marajoara-amazônica em um conjunto de dez romances, o qual intitulou “Ciclo Extremo-Norte”.

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meu sonho, presente nas páginas de Dalcídio Jurandir3

A materialidade de minha visita ao Marajó, naquele tempo dos anos de 1971, me

permitiu o primeiro contato com búfalos e vaqueiros da região de Soure e aldeias próximas

como Salvaterra, Joanes, Condeixa; cidadezinhas do outro lado do rio, famosas pela produção

de abacaxi e por abrigarem numerosas colônias de pescadores. Cachoeira do Ararí, para mim,

era apenas um nome nos Alô, Alô, Interior!

[10/01/1909 a 16/06/1979], agora nas

métricas que meus dedos plantam.

4

3 Referente ao escritor paraense Dalcídio Jurandir. 4 Programa de rádio que transmitia recados entre os ribeirinhos no interior da região amazônica; uma espécie de correio comunitário.

, programa de rádio da época com uma importante

função social na transmissão de recados entre nativos, parentes e amigos.

Entre livros, textos e personagens, no decorrer do tempo, delineio minha trajetória

profissional, conquisto outros espaços pelo Brasil a fora, sem perder de vista as referências de

infância e adolescência que ficaram na memória a espera de novas oportunidades de voltar

àquela ilha, visitada a cada ano, sempre que possível, até eu sair a desbravar moinhos no sul do

país, qual Dalcídio, sem nenhuma pretensão de valor e comparação.

A oportunidade apareceu ao ser convidado para fazer a direção de arte de um filme

longa-metragem que seria rodado na Amazônia, especificamente no arquipélago do Marajó,

incluindo a Ilha Mexiana. Uma das cidades escolhidas pelo diretor geral do filme foi Cachoeira

do Arari, situada aproximadamente a 70 km em linha reta da capital paraense. Oportunidade

imperdível para quem desejava conhecer mais sobre a cultura marajoara.

O meu estar em Cachoeira, em meado do ano de 2001, era uma possibilidade real

e um processo que se realizava na paisagem de menino-estudante, agora homem-profissional,

educador e diretor de arte, preocupado em cumprir a tarefa de construir uma vila cênica às

margens do rio Arari, que banha a cidade. O desafio era conseguir apoio da prefeitura local e

estabelecer parcerias com os pequenos produtores, comércios e, principalmente com a

comunidade. Esta última não poderia ficar de fora do processo, uma vez ciente da importância

da participação coletiva em projetos que envolvem ações culturais de grupos e que poderiam

contribuir e somar com os objetivos do filme à frente das câmeras ou atrás delas.

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Fotog. 1: Fonte: Googlearth. Acesso em: Set. 2008.

Fotog. 2: Cachoeira do Arari localiza-se à margem esquerda do rio Arari. Possui as seguintes coordenadas geográficas: 1°00’23” de latitude sul e 48°57’56” de longitude oeste. Sua altitude é de 20 metros. O município possui 2.407 km²” (CRUZ,1987,p.68). Fonte: Googlearth. Acesso em: Set.2008.

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Fotog. 3: O acesso pode ser feito de três maneiras: de avião; de barco [linha verde]; de carro [linha vermelha]. Esta última, ainda assim, precisa atravessar as baías do Guajará e Marajó, até o Porto Camará. Fonte: Googlemaps. Acesso em: Set. 2008.

Fotog 4. De Belém, são cinco ou seis horas de viagem, e depende da maré. Autor: Alves [2006].

Ao pensar na viagem, opto ir de barco pô-pô-pô5

5 Barco da região amazônica movido a motor, utilizado para transporte de passageiros e carga.

pelo rio Arari. Esse rio que me

leva a buscar sentidos, interpretações e proceder poético, já que a missão na equipe de

produção, de artista-realizador, era de verificar um caminho diferente dos que tomam essas

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dimensões de realidade, como objeto de estudo, na construção de cenários. Quem sabe Jasão6

Ansiedade. No caminho da casa dele, pude observar o movimento das pessoas do

lugar, os barcos no trapiche e “o vento bulindo no espelho das águas”, referindo-me a

Dalcídio. As águas douradas ao “pôr-do-sol ararí” [destaque meu], ao contemplar um cenário

de luz por sobre várzeas e rio nas poéticas que me cabem e que me confirmam a existência das

coisas e seres.

à procura de seu velo de ouro. Aquele mundão de água me fascinava, aliás, me fascina até

hoje.

O filme, nesse primeiro momento, manifestava-se como instrumental para buscar o

objeto de estudo, como diz Loureiro [2003], foi ele quem me levou aquele berço de mitos e

lendas, onde comecei a perceber a necessidade de uma perspectiva sócio-histórico-cultural

iminente e mais aprofundada para contextualizar o trabalho inicialmente proposto. Precisaria

conhecer mais sobre Cachoeira e, da mesma forma, sobre o rio Arari, que empresta seu nome à

cidade; mais ainda, um Museu ali debruçado até então desconhecido.

Tanto o rio, como a cidade de Cachoeira e o Museu formavam uma só paisagem, a

qual necessitava desvelar para revelar e compreender essa trilogia mítica. O gigantismo das

águas inundava os pântanos, mururés. Delineava um cenário frente à cidade que me era

estranho, tornando-me homem diminuto. Essa relação com o natural instigou-me a “conhecer o

que há de inexplicado ou descobrir o que de submerso se pode encontrar nas explicações

habituais, eis o sentido da navegação desse ser imaginante, dentro de si mesmo e em face às

coisas” [LOUREIRO, 1995, p. 61].

Não tive tempo de conhecer a cidade de Cachoeira como havia imaginado, visto

que a primeira iniciativa do diretor do filme foi apresentar-me a um homem que supostamente

elucidaria todas as minhas inquietações e curiosidades, bem como contribuiria para o projeto

em curso. Esse homem era Giovanni Gallo [27/04/1927 a 07/03/2003], o fundador d’O Museu

do Marajó. Estava prestes a conhecer um intelectual, o criador de um museu, antes mesmo de

conhecer o próprio Museu. Perguntei-me: Como seria ele? Como era conhecer uma

personalidade com arrojada e tamanha iniciativa?

6 Da mitologia grega, filho do rei Éson, aceita buscar o Velo de Ouro, como desafio, para reivindicar o trono de seu pai, tomado pelo tio Pélias, o desafiador. O Velo de Ouro era guardado por um dragão, que pertencia ao rei da Cólquida, Eetes.

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Fotog. 5 – Arco marajoara na entrada da cidade de Cachoeira. Autor: Fares [2003].

Interessante é ver o arco ornado com motivos marajoaras, que lembra o Arco do

Triunfo em Paris. Ao fundo pode-se avistar a curva que o rio Arari faz esticando-se até o lago

de mesmo nome, e às cidades de Santa Cruz do Ararí e Jenipapo, onde a idéia d’O Museu

nasceu.

Fim de tarde. Caminhamos sobre estivas no terreno encharcado. Búfalos, cavalos e

cabras pastavam junto às garças beliscando a vida, alimento farto nas várzeas. No Portão

entreaberto de uma casa, uma figura humana parecia estar à nossa espera. De pé, com uma das

mãos apoiada ao muro, sustentava o corpo pesado, com a outra uma bengala; no rosto, um

sorriso simpático antecipava em rouca e cansada voz o “Boa tarde, meus amigos. Sejam bem-

vindos!” – Era tudo que precisava para me sentir à vontade, e, a partir daí, conhecer aquele

ilustre italiano.

Entre um cafezinho e outro, falei do objetivo de estar ali e da curiosidade de visitar

O Museu que, surpresa, estava ao lado da casa, ou melhor, no quintal de sua casa. Museu e

casa era uma só coisa, dois espaços em um só terreno de 20.000 m², entre árvores, cercados

por um muro de alvenaria com pinturas e traços marajoaras. Vi ali a possibilidade de antevê o

criador e sua criação que, de pronto, convidou-me a visitar aquele lugar.

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Impossível, naquele momento, não lembrar de outros museus por mim visitados.

Imaginei as tradicionais maneiras de exposição e contemplação. Essa é a grande vantagem e a

grande diferença, talvez única, d’O Museu do Marajó -- a sua interatividade, mais que isso, sua

simplicidade, o que o torna mais grandioso. Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também

há outro museu interativo, mas não revela os seres humanos, como o do Marajó. É claro que

cada um tem suas peculiaridades, são valores diferentes. Mas, O Museu do Marajó é mesmo

único em sua proposta originalmente criadora e inusitada. Sobre isso, refere-se Fares [2003, p.

133]: “Nunca vi maneira mais inventiva de apresentação, nem Louvre, nem Prado, nem Museu

de Arte de São Paulo/MASP, nem Goeldi, nem Museu de Arte de Belém/MABE, nem, nem [...]”.

A cada passo, sentia-me cada vez mais envolvido e contagiado com as histórias do

meu anfitrião falando-me de seu sonho, como Aristóteles em suas aulas peripatéticas7

caminhando e falando ao ar livre, seguido pelo discípulo. Falou-me que no começo de seu

trabalho no Marajó, na década de 70, pretendia fundar uma cooperativa de pescadores para a

Vila de Jenipapo e o município de Santa Cruz do Arari, por perceber que o homem do lugar

não tinha outro meio de subsistência. Sabiamente, Gallo ensaiou uma parada estratégica sem

desistir de sua empreitada. Em outras palavras, a gêneses d’O Museu está na Cooperativa de

pescadores. Era a inserção de novos valores que mexiam com o monopólio político e

dominante do lugar. Nas palavras de seu criador, a Cooperativa carregava O Museu à tiracolo.

Esse relato está claro em seu livro “O homem que implodiu”8

7 Preleção de Aristóteles ao ar livre seguido por seus discípulos na Grécia Clássica. 8 GALLO, Giovanni. O homem que implodiu. Belém: Secult, 1996. 295p.

.

A propósito, fiz questão de comprar um exemplar do referido livro, disponível para

venda na entrada d’O Museu. Restavam apenas dois números. Minha intenção era presentear

alguém que goste do Marajó e das coisas de nossa gente. Tomado por um impulso egoísta,

pensei em adquiri-los, ao mesmo tempo, percebi que a vitrine ficaria vazia e, de certa forma, vi

um fecho de tristeza no rosto do padre ao se desfazer das obras em “extinção” [até hoje não foi

reeditada]. O que não sabia, era o efeito causado das histórias do livro na vida do pesquisador,

ou seja, na minha vida. Contudo, deixei o último volume para outro privilegiado visitante.

Aliviado com minha decisão, aproveitei a oportunidade para solicitar ao autor a sua

dedicatória, que aqui apresento.

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Fotog. 6 – Dedicatória de Giovanni Gallo. Alves [2008].

Já era quase noite. A luz natural caiu e pouco se via no interior daquele espaço. A

iluminação artificial era fraca. Por prudência e solicitude, resolvemos em comum acordo

deixar a esperada visita para o dia seguinte, com a promessa de que teria toda a atenção para

conhecer o que tanto desejara. Nesse momento aparece Lino Ramos, um professor da cidade

que dividia com Gallo a responsabilidade de fazer funcionar o Museu, uma espécie de vice-

diretor ou vice-presidente, hoje sócio efetivo. Sim, O Museu do Marajó é uma Associação que

dá ênfase à ação comunitária do município, e sobrevive de doações dos moradores e dos

poucos incentivos de instituições públicas que repassam, eventualmente, algum mínimo

recurso para a sua manutenção e sobrevivência. Por enquanto era o que podiam me adiantar

aqueles dois “cavaleiros” já no grilar da noite. Pareciam “Dom Quixote” e seu “Escudeiro”,

relatando conquistas ao desbravar moinhos em meio ao pântano marajoara.

A noite estava apenas começando. Ao retornar à casa alugada para a equipe do

filme, pude compartilhar com colegas a emoção daquele encontro inusitado e anunciar que, no

dia seguinte, eu visitaria O Museu do Marajó, tão falado ao aportarmos na cidade. Euforia

total. Todos manifestaram interesse em acompanhar-me nessa empreitada. E começamos a

tentar adivinhar o que poderíamos encontrar por lá. Imagens vinham à mente como projeção de

um filme de ficção que se desmancha no pensamento absorto. Um mosaico como se criasse um

roteiro, e, em seguida, um story board 9

9 Sequência de imagens em quadros, desenhos, após decupagem de um roteiro. O que antecede ao filme. Ilustração da palavra escrita no roteiro literário.

antes de rodar uma sequência documental. Não podia

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ser diferente, éramos todos do cinema, e nossa construção imagética nos levava a esse tipo de

configuração. É como escrever um roteiro no início do filme, começando pela vista aérea

panorâmica da cidade para o espectador/leitor situar-se no lugar da trama/história.

Fotog. 7 – Vista aérea da cidade de Cachoeira do Arari, Marajó. Fonte: MPEG.

Dia seguinte. Depois de um café marajoara acompanhado de pão-canoa10

Como o pesquisador, busco conhecer e me adaptar ao lugar, me fazer entender e

ser aceito pelos nativos, que me atravessavam com seus olhares disfarçados. Na minha

, nos

dirigimos ao Museu para encontrar com Givanni Gallo. O sol já estava quente de “doer os

olhos aos muros caiados”, como diz o poeta Fernando Pessoa, embora cedo, caminhávamos

pelas ruas da cidadezinha. Éramos os estranhos que chegaram para fazer “o filme”. Todos nos

olhavam como se consentissem nossa presença no lugar. Cumprimentavam-nos com olhares

desconfiados e gestos mínimos, sempre em grupos, coisas do interior. Isso me lembrou Geertz

[1978, p. 278] durante sua visita a uma aldeia balinesa:

Nós éramos invasores, profissionais é verdade, mas os aldeões nos trataram como parece que só os balineses tratam as pessoas que não fazem parte de suas vidas e que, no entanto, os assediam: como se nós não estivéssemos lá. Para eles, e até certo ponto para nós mesmos, éramos não-pessoas, espectros, criaturas invisíveis.

10 Nome atribuído pelo pesquisador; pão caseiro assado em forno à lenha; formato de canoa.

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observação empírica, pude notar, em panorâmica, que as bicicletas eram o meio de transporte

mais comum, vez em quando uma motocicleta barulhenta rompia o silêncio. Carro? Apenas

um ônibus velho e uma caminhoneta da Companhia de luz enlameada pela estrada sem asfalto

de 55 km até a próxima asfaltada [ver fotograma 3], que leva ao porto de Camará.11

Outra questão é a altitude do município a ser considerada, ao saber que as várzeas

e os campos alagados em maré alta denunciam um número menor de que os 20 metros de

altitude anunciados pelo autor supracitado. É preciso um mapa topográfico com fontes seguras

para termos a certeza do que estamos falando. Apenas detalhes a serem percebidos. De

qualquer modo, é um lugar perfeito para gapuiar

Luta tribal

de anos entre povo e o poder público.

Quando chove, as viagens ficam mais longas e mais difíceis diante do lamaceiro. É

preciso ser “ômi”, como diz o caboclo, para vencer a estrada. Pra mim, é preferível chegar de

barco e enfrentar a precipitação das águas nas baías e adentrar pelo rio. Para aclarar, Cachoeira

“localiza-se à margem esquerda do rio Arari” [Cruz,1987,p.68]. A margem esquerda, referida

pelo o autor, é para quem navega no sentido Santa Cruz do Arari a Belém. Considera-se que o

curso natural das águas vai do lago Arari até a desembocadura na baía do Marajó, daí a cidade

de Cachoeira estar à esquerda do rio, mas, para quem parte da Capital e entra na ilha pelo

mesmo rio, a cidade situa-se à margem direita.

12

Avenida do Museu, nº 1983. Chegamos ao Museu do Marajó, cuja fachada está

voltada para o rio. À frente um campo de várzea. É preciso passar por trás do prédio, uma

antiga fábrica de óleo desativada na década de setenta, uma espécie de galpão com um pé-

direito alto, coberto por telhas de barro envelhecidas pelo tempo. A parede frontal é de

tesouros. E são esses tesouros [saberes] que

me seduziram e me levaram de volta a Cachoeira, guardiã do maior acervo cultural do povo

marajoara, O Museu do Marajó. Essa foi minha primeira impressão sobre a cidade. Impressões

reveladas com mais detalhes nas páginas de Dalcídio e nas Cartografias de Fares [2003].

11 Porto fluvial para quem chega de carro à ilha do Marajó, onde atracam os barcos e balsas após a travessia da baia do Marajó. Do porto até Cachoeira, são 80 km, aproximadamente, sendo 55 km não asfaltados. 12 Expressão própria do Marajó utilizada nos livros de Dalcídio Jurandir; gapuiar, pescar. Na pesquisa, pescar tesouros. “Ler Dalcídio é comer as frutas e peixes paraenses, remar e nadar por seus rios, andar por suas paisagens catando, caçando, pescando, sentindo a região”, diz a professora Rosa Assis, estudiosa e comentadora da obra do romancista nascido em Ponta de Pedras e criado em Cachoeira do Arari, Marajó. “Dalcídio é um escritor de vivências, vivências paraenses.” Rosa, que publicou com sua irmã Ana Cerqueira o livro “Evém chuva... Um glossário de Dalcídio Jurandir”, definiu-o como um ‘gapuiador da linguagem’ [no livro, gapuiar é definido como “pescar fora da canoa, batendo a água do rio para que o peixe se desloque para as cercas feitas às margens”. Fonte: Jornal O LIBERAL, Edição: Ano LXI - nº 31.847, 21/08/2007.

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alvenaria com pintura caiada e desbotada pelas chuvas, mas enriquecidas pelos traços e

motivos marajoaras pintados nas extremidades, anunciam a identidade do homem marajoara.

Na frente, três mastros para hastear bandeiras, modelo positivista e patriótico de uma educação

cívica aplicada em escolas públicas durante a ditadura militar no Brasil – Gallo viveu o

rescaldo desse tempo. Para os padrões da arquitetura da cidade, o prédio d’O Museu compara-

se apenas ao prédio da Prefeitura, que até hoje é chamado de “Palácio Municipal”. Uma

pequena calçada de um metro de cimento serve para bater a lama dos sapatos em dias de

chuva. No prolongamento do chão, um gramado que, aos poucos, se confunde com o mato e

este com a várzea, pasto com cavalos ao longo do encharco, até chegar ao rio, um cenário

pitoresco. A paisagem faz parte do contexto do Museu. “Quanta coisa Deus nos deu para

contemplar. O arco-iris aqui é rotina: pega lá, da Terra vermelha, até a boca do lago. Os anús

estão mariscando, o quiriu solta aquele gritinho insosso, abanando o rabo demasiado comprido,

o bem-te-vi canta o seu refrão” [GALLO, 1997, p. 26].

Toda essa trajetória culminou em duas consequências: uma foi a não realização do

filme, por falta de recursos financeiros [ficamos apenas na pré-produção]; a outra, é que ficou

em mim a vontade de voltar à Cachoeira para melhor me apropriar daquele projeto, o que veio

a ocorrer nos anos 2005/2006. Nesse período realizei o Curso de Especialização em Docência

do Ensino Superior, na Universidade Católica de Minas Gerais, PUC-Minas. Nessa

oportunidade, apresentei como Trabalho de Conclusão de Curso o Projeto de Pesquisa

intitulado “Os saberes amazônicos no Museu do Marajó e sua influência Sócio-cultural na

Comunidade de Cachoeira do Arari, Ilha do Marajó”. Em 2006, apresentei uma proposta de

pesquisa para a seleção do Curso de Mestrado em Educação da Universidade do Estado do

Pará – UEPA, sendo O Museu do Marajó o lócus da referida pesquisa. Ao perceber o

silenciamento dos assuntos referentes ao Museu, icei a seguinte problemática como:

uma situação contextualizada que causa interesse por um assunto silenciado, “uma ausência, uma falta/carência, dificuldades sentidas, observadas, uma mudança, uma descontinuidade, uma crise, uma contradição, afastamentos, desinteresses, despreparo, desconhecimento, dúvidas, etc. O que você detectou como problemático e deseja estudar para desvendar / compreender / transformar” [TEIXEIRA, 2005, p. 144].

Se prestarmos atenção a todos os substantivos apresentados na conceituação da

autora sobre o que vem a ser problemática, todos serviriam para colocar O Museu do Marajó

em evidência. Contudo, vamos por parte: ausência de políticas públicas mais eficientes,

voltadas para a valorização d’O Museu como espaço de educação incentivador da cultura e da

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emancipação do homem marajoara; carência de recursos humanos, materiais e financeiros

para a viabilização dos projetos pertinentes; dificuldades sentidas pela demanda social e

política de melhor reconhecer esse território como patrimônio cultural e de acessibilidade; uma

mudança de paradigma por parte dos educadores e gestores educacionais em reconhecer a real

necessidade de inserir nos currículos escolares os saberes d’O Museu do Marajó; a

descontinuidade e a interrupção de projetos voltados para aquele território; uma crise de

consciência àqueles que, de forma isolada, se sentem impotentes para promover a valorização,

mudanças e melhorias daquele patrimônio; as contradições daquilo que é dito com aquilo que

é feito pelo poder público; o afastamento e o desinteresse dos desencantados das promessas de

melhorias por parte dos políticos e instituições; o desconhecimento dos que ainda não sabem

da importância que tem O Museu para os seres humanos marajoaras e amazônidas; por fim, a

dúvida de decidir lutar por dias melhores, buscando valores, significados, saberes para o

crescimento pessoal de cada um de nós.

Com base nessa problemática que aqui destaco, e entendendo que esta é elaborada

de forma interrogativa, apresento a questão problema para ser respondida no desenvolvimento

da pesquisa: Que saberes marajoaras se manifesta em uma gapuiagem desenvolvida pelos

intérpretes n’O Museu do Marajó? Para responder esta pergunta, apresento as seguintes

questões norteadoras: Como esses visitantes interagem com os múltiplos dispositivos

existentes n’O Museu, como reagem, e o que inferem durante a visita? Que saberes emergem

após a gapuiagem n’O Museu? A busca de respostas a estas perguntas desenha práticas

educativas diferenciadas, as quais constituem uma pedagogia autônoma e divertida.

Para tornar claro o recorte da pesquisa, tenho como objeto de estudo as relações

dos intérpretes [visitantes] com os saberes marajoaras n’O Museu do Marajó. E para alicerçar

essa relação, cito Charlot [2000] que propõe construir uma sociologia de relação com o saber.

Para o autor, construir uma sociologia de relação com o saber implica a transgressão de um tabu: tal sociologia deve ser, de maneira deliberada e sem envergonhar-se, uma sociologia do sujeito. Ao construir-se como tal, ela encontrará outras disciplinas que também trabalham sobre a questão do sujeito ou a do sentido [2000, p. 87-9].

É através desses sentidos que os intérpretes buscam essas relações em uma

dinâmica que eu chamo de percepção triádica na utilização dos verbos: ver, tocar e

contextualizar, a qual será aclarada na sequência 2 deste estudo. A relevância da pesquisa está

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em investigar a relação d’O Museu do Marajó e seus saberes com o homem, para que ele

mesmo possa compreender e refletir sobre sua identidade, diversidade cultural, sua história,

sua existência. A ação dos verbos supracitados imprime uma ação epistemológica quanto à

valorização dos sentidos no processo de ensino e aprendizagem via brincadeira; é um caminho

para o “conhecimento-emancipação” sobre o “conhecimento-regulação”, onde a solidariedade

e compartilhamento também é forma de conhecimento, para aproximar do paradigma

emergente de Santos [1987], onde a relação com o saber pode ser a ordem contestada e o

acaso acatado, a desordem, aproxima-se do senso comum sem perder de vista o discurso

científico e global.

Na construção da relação com o saber, anuncio a estratégia metodológica para a

produção de dados, que é feita em três momentos: primeiro, roda de conversa antes da

visitação, onde são feitas as perguntas do Apêndice “A”; segundo, é a gapuiagem entre os

saberes durante a visitação; terceiro, é a culminância das ações desenvolvidas após a

gapuiagem, momento das perguntas do Apêndice “B”. Os dois primeiros momentos citados,

fazem parte da sequência 3. Gapuiagem de Saberes; Na sequência 4. Apartação de Saberes,

roda de conversa após a visita, é a oportunidade dos visitantes externarem o que viram e

sentiram durante a visita, ou seja, durante a gapuiagem de saberes.

No decorrer deste estudo, diante das performances dos intérpretes captadas por

uma câmera digital, percebi que seria possível visualizar quadros, fotogramas, que se

configuravam na paisagem da pesquisa, ao escolher Cachoeira como set de filmagem e O

Museu do Marajó como cenário. Nesse sentido, a linguagem audiovisual é incorporada ao

contexto do estudo, na oportunidade em que são apresentados os inserts13

O planejamento das estratégias de ação imaginadas neste roteiro [dissertação]

foram, inicialmente, formatadas em dois capítulos, que, no aprofundamento da investigação,

se ampliaram para o terceiro e, conseqüentemente para o quarto, que eu chamo de

“SEQUÊNCIAS 1, 2, 3 e 4”, com os títulos, respectivamente; os sub-títulos são CENAS; o

que deriva são PLANOS e, em seguida, PLANOS DE DETALHE ou simplesmente

DETALHE. As PANORÂMICAS são planos de contextualização e podem aparecer em

qualquer parte da Sequência, ou seja, do Capítulo; da mesma forma os Planos de Detalhe. O

de termos técnicos

de um roteiro para revelar as ações dos intérpretes.

13 Inserções de palavras, textos, imagens para esclarecer ou ilustrar informações já existentes.

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Resumo do texto, eu chamo de SINOPSE; a Introdução, de PRÉ-PRODUÇÃO; as

Considerações Finais de PÓS-PRODUÇÃO, e o que seriam Referências eu chamo de

CRÉDITOS, alusivos aos autores que fundamentam a pesquisa.

As inserções dos termos técnicos audiovisuais são aclaradas da seguinte forma:

Planos de câmera: PAN – Panorâmica; PS – Plano Sequência, plano narrativo que vai do

“ação” ao “corta”, sem corte; DET – Detalhe para revelar objetos, gestos ou rostos das

personagens; EXT – Cena externa; PM – Plano médio, revela a personagem até a cintura;

Efeito: FUSÃO - Sobreposição da cena anterior com a posterior, poético, suaviza a transição

das imagens sem quebra de sentido e significação; Suporte técnico: CAM - Câmera.

A concepção estética das imagens, fotogramas, inicia-se no colorido e, a partir do

momento em que aparece a figura de Giovanni Gallo, passa a ser, intencionalmente, em preto

e branco [PB], por considerar a ausência das cores no mundo daltônico do padre. Ressalvo o

colorido nas expressões das crianças na sequência dois, ao entender a necessidade de análise

deste estudo.

Os dados serão analisados com base na técnica de “análise de conversa’ no

interesse não somente para “as interpretações do conteúdo de texto que tenham sido

claramente produzidos para fins de pesquisa, como é o caso das respostas das entrevistas,

como também a performance e narrativas dos sujeitos” [FLICK, 2004, p. 208]. A análise de conversa é a denominação de uma abordagem de intervenção que tem o seguinte objetivo: através de uma análise rigorosamente empírica de textos naturais [dando prioridade para transcrições feitas a partir de gravações de áudio e de vídeo de uma interação “natural”), procura especificar os princípios e os mecanismos formais com os quais os atores realizam a estruturação e a ordem significativas daquilo que ocorre à sua volta e do que expressam e fazem a si mesmo na interação social com os outros [Ibid. p. 209].

Na análise de dados estão envolvidos: O Museu e seus computadores; as relações

entre os intérpretes visitantes, crianças e adultos, e os saberes marajoaras; bem como a minha

observação participativa durante toda a pesquisa. A quantificação desses intérpretes é

observada na decorrência deste estudo. Será uma construção imagética de palavras e sons,

texto e contexto, do imaginário real apropriado, que só o tempo dirá no caminho que escolhi.

Os dados se configuram no decorrer do processo, nos capítulos, ou seja, nas sequências

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anunciadas. Só sei que o caminho é mar, é mata, é floresta, é campo, é várzea, é lama, é sol, é

chuva, é porantim, é Dalcídio [1997], Gallo [1996], Fares [2003], Fernandes [1999]; Rodrigues

[1987], Geertz [1998], Barbosa [2006], Teixeira [2007], Oliveira [2004], Charlot [2000],

Carvalho [2006], Zumthor [1997] é fardo, é Loureiro [1979], as âncoras no rio, é gapuiagem, é

sfumato,14

14 O que faz parte do imaginário amazônico, o modo de criação e recriação singular da vida cultural desta região foi se emoldurando por uma espécie de sfumato; efeito visual nas artes plásticas para suavizar ou poetizar uma imagem, dar leveza e poesia à realidade registrada pela câmera fotográfica.

é paisagem.

Ao perceber a quantidade e a qualidade dos conteúdos produzidos, penso, portanto,

na possibilidade de se ampliar a narrativa textual da dissertação em narrativa fílmica – um

trabalho que soma e ilustra os formatos atuais, disposto como Anexo II.

Quanto às questões éticas, parto do princípio de que o pesquisador é um narrador,

ou roteirista, na sua experiência com a verdade. Assim, assumo o compromisso de garantir a

exeqüibilidade deste estudo, ao manifestar, primeiramente, o interesse de estabelecer uma boa

relação com o objeto, na constituição dos sujeitos envolvidos, seus espaços e territórios, bem

como ao que estiver no caminho que ora percorro. Princípios e normas serão obedecidos em

todos os movimentos construídos, onde o sujeito é prioridade, e nada será feito sem o seu

consentimento.

Os capítulos, digo, as sequências que estruturam este texto, estão assim

configuradas: SEQUÊNCIA 1. O HOMEM QUE IMPLODIU: REMINISCÊNCIAS DE UM

PADRE E A GÊNESE DO MUSEU DO MARAJÓ; SEQUÊNCIA 2. O BRICAR N’O

MUSEU: VER, TOCAR E CONTEXTUALIZAR; SEQUÊNCIA 3. GAPUIAGEM DE

SABERES; e SEQUÊNCIA 4. APARTAÇÃO DOS SABERES GAPUIADOS.

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SEQUÊNCIA 1. O HOMEM QUE IMPLODIU: REMINISCÊNCIAS DE UM PADRE E A GÊNESE DO MUSEU DO MARAJÓ

Nesta cena narro duas histórias imbricadas entre si. Uma parece fazer a moldura da

outra, contudo, a dificuldade de dividir as narrativas impossibilita o reconhecimento do

encaixe e da parte principal. Assim, a separação das histórias segue uma tentativa didática,

uma vez que elas amadurecem entre tesos e rios marajoaras.

Começo por contar as reminiscências de Giovanni Gallo, da infância da Itália a

chegada aos alagados da Vila de Jenipapo, e depois apresento a gênese d’O Museu do Marajó.

O que se configura na cena é a memória de Gallo e a memória dos narradores. A primeira é

atribuída ao padre e sua peregrinação como jesuíta; a segunda, aos fatos decorrentes da

primeira, reminiscências que surgem ao lado da memória do criador e da criação.

A construção textual apóia-se na observação do cotidiano do espaço, nas fotos e

vozes dos narradores de Cachoeira do Arari, visitantes e guias d’O Museu, e, principalmente,

da própria voz de Giovanni Gallo expressa nas reminiscências em “O homem que implodiu”:

a reminiscência aparece em forma de narrativa, funda a cadeia de tradições e transmite conhecimento de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra [BENJAMIM, 1993, p. 211].

Tal como argumentação de um filme, encarno o narrador e transito na

temporalidade das duas histórias em reminiscências, iniciadas pelo prólogo, conforme segue:

PRÓLOGO: “Não chore, nem que seja de outro jeito, o Galo ainda volta aqui pra vocês”.

Giovanni Gallo morre em Belém, a 07 de março de 2003.

Atropelado por uma bicicleta em Cachoeira do Arari, o Gallo começa a definhar

em dores e caminhar com dificuldade, apoiado por uma bengala. Sofria também de úlcera no

estômago. Segundo relato de uma enfermeira da comunidade, que o visitava todos os dias, as

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dores abdominais eram freqüentes até o agravo de uma hemorragia. O depoimento de Dona

Hermita, 76 anos, amiga, enfermeira e acompanhante da última fase do jesuíta, é feito com

emoção, lágrimas, e esclarecimentos sobre os estertores da vida do Padre:

Eu era bem dizer a enfermeira dele, ajudava, ele se sentia ruim, ligava pra mim: “O Gallo tá passando ruim, o Galo tá fraco!”. Aí eu ia pra lá, verificava a pressão dele [...] “O Gallo tem um negócio aqui que não sabe o que é!”[dizia]. Foi quando ele vomitou sangue, ele não conhecia sangue, ele não conhecia, né? Aí eu peguei [disse]: “Galo, o que foi isso que você botou?[...] Foi a úlcera que estourou, aí a pressão dele que caiu. Verifiquei a pressão dele. Tava seis por quatro. Aí liga pro hospital, chama as enfermeiras de lá do hospital, porque eu já tô aposentada, né? Chama as enfermeiras aí. Vieram buscá-lo. Aí começamos a chorar, eu e a Graça, quando deixei ele lá, ele disse: “Não chore, nem que seja de outro jeito, o Galo ainda volta aqui pra vocês”. Voltou morto já.

Gallo está sepultado em um teso que ele mesmo construiu para mostrar aos

visitantes d’O Museu como os índios sepultavam seus mortos, uma espécie de “campo

sagrado” com direito a urna funerária e toda uma descrição arqueológica/antropológica que

não chegou a terminar. Agora o criador faz parte do acervo do Museu.

Fotog. 8. - Pronunciamento de Gallo durante um evento n’O Museu. Foto: Site MPEG.

FADE IN

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PANORÂMICA 1. Giovanni Gallo: da Itália ao Brasil

Turim, Itália. Período da era Mussoline. Nasce Giovanni Gallo em 27 de abril de

1927. Vida modesta, mãe doméstica e o pai funcionário de uma Escola Técnica. Cresce com

três irmãos, Maria de cinco e Beppe de dois anos, e o irmão mais velho Piero, que trabalha em

uma oficina e estuda à noite. Em seu relato de infância conta que teve menigite. Por milagre,

sua família afirma sua fala sem memória, disse ter visto Jesus após um coma e ter sido

desenganado pelo médico.

Aos seis anos, na impertinência de aprender os deveres de casa ainda na primeira

série, foi chamado de burro por sua mãe por não acertar as cores. “Giôanin, meu filho, você é

burro mesmo! Todos os meninos aprendem as cores, mas com você não tem jeito”. Isso o

deixa magoado por logos anos e muito deseja provar o contrário, esforça-se para que o

conceito criado por ela sobre ele seja mudado. “Fazia tempo que tinha descoberto que alguma

coisa não funcionava nos meus olhos” [GALLO, 1996, p. 21].

CENA 1: O mundo em preto e branco

Giovanni Gallo, daltônico. O desejo de transformar a realidade em pontos positivos

lhe confere um determinismo sem tamanho, o que chama de hiper-compensação. Sobrevive a

guerra pessoal na busca de equilíbrio e de auto-afirmação. Quando em vez foge para a estação

do trem e ajuda as pessoas “perdidas” a atravessar a rua para testar sua [in]capacidade visual.

Faz relação das cores do semáforo com o movimento de braço do guarda de trânsito. Braço

baixo, luz verde; braço na horizontal, luz vermelha.

À minha mãe contei uma mentirinha para justificar o atraso, mas dentro de mim tinha uma grande alegria: não era tão burro como ela pensava. Todo semáforo, toda a pessoa perdida era pão para os meus dentes, nunca perdia uma chance. Para os outros podia ser uma boa ação, para mim era treinamento para estar em forma [GALLO, 1996, p. 26].

Outra situação criada para não se enganar com as cores do semáforo é associá-las

às formas geométricas diferenciadas circular, triangular e quadrada, correspondentes às cores

verde, amarelo e vermelho.

Aos sete anos cria mais uma estratégia para realizar as atividades de desenho na

sala de aula. É uma atividade normal de classe e exige habilidades espaciais de traços e

preenchimento dos planos em cores, de pastelli a colori.15

15 Do Italiano, referente aos lápis de cor em pastel.

A identificação dos lápis é feita, a

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princípio, com a ajuda do colega de carteira, doente de epilepsia. Giovanni o protege das

quedas durante as crises. “Eu o ajudava na doença e ele ajudava a mim nas cores” [1996, p.

25], até um dia que se sente traído por pintar seu desenho com cores trocadas. A professora lhe

pergunta: “Gallo, por que pintou a folha de marrom e o tronco de verde?”

Decepcionado com o amigo, recorre à experiência pessoal e autônoma de criar

codificações diferenciadas para cada lápis, ao gravar o nome da cor, observar a posição e

ordem seqüenciada na caixa. “Dei um jeito de individualizá-las, depois raspei o verniz na base

do lápis para escrever nela a cor respectiva [Ibid., p. 25].”

CENA 2: “Eu era sozinho”

Menino como todos os outros, brinca com irmãos e amigos nas horas permitidas,

contudo esconde o segredo de sua deficiência visual sem confiar em ninguém. Sentia-se

inquieto, perdido e terrivelmente só.

Era uma luta muito brava, porque eu era sozinho, não me abria com ninguém por medo de que gozassem de mim [...] o problema não era limitado às aulas de desenho [...] Quantas vezes, já no Ginásio, procurava a minha irmãzinha que estudava no Jardim, para fazer o teste das cores: tinha o jeito de professor, mas de fato era aluno daquela criança que nem pronunciava os nomes direito. Com esse treinamento obstinado, consegui passar pelo mar tempestuoso do Ginásio, sem que ninguém descobrisse a minha burrice [GALLO, 1996, p. 26].

Aos dez anos cuida dos irmãos menores e os leva ao jardim de infância; faz as

compras, prepara almoço, lava e passa roupas e ainda estuda, enquanto a mãe fica no hospital

para “comprar” outro bebê, o quarto irmão. Na escola, a guerra é uma alegre brincadeira. No

caminho, o balilla16 Gallo atravessa as calçadas e confere o fiocco17 que o partito18

16 Empregado como sinônimo de moleque. O termo ballilla tem uma significação honrosa, de resistência, referente a um menino, de nome desconhecido, que foi visto atirando pedra nos soldados inimigos ao invadirem a Itália. 17 Fitilho ou fita de cetim aonde era escrito os nomes das crianças recém-nascidas. 18 Partido Político.

coloca nas

portas das casas de crianças recém-nascidas com seus nomes escritos. Se rosa, menina; se azul,

menino.

Na ditadura fascista, as mulheres eram orientadas a ter numerosos filhos para

compensar as perdas da guerra. Ele, curioso, toca nos fitilhos, lê os nomes e, para saber o sexo,

confere de perto para ter certeza da cor na escala de cinzas. Ao mesmo tempo ser um desafio,

essa atitude passa a ser compreendida como uma brincadeira solitária e bem divertida.

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Tenho mais facilidade em distinguir as cores em corpos opacos do que as luzes coloridas. [...] Quando apareceu o Tecnicolor nos filmes, no começo da projeção, se, por acaso houvesse a visão de um interior, nunca podia decidir se o filme era em cores ou não: tinha que esperar uma cena externa com mar e céu! [GALLO, 1996, p. 29].

Os cenários dos filmes assistidos por Gallo eram indícios de cores registradas em

memória, os cenário imutáveis da natureza nas cenas externas, por exemplo; para ele,

ninguém poderá alterar, diferente dos cenários das cenas internas criados e ajustados pelo

homem. No ambiente externo, ele sabe que a mata é verde e o céu é azul. Ainda assim, mesmo

sendo um filme, a situação de daltônico não lhe dá a certeza de nenhuma cor, e isso lhe

provoca uma recusa em aceitar uma visão só em preto e branco.

No último ano do ginásio, Giovanni ganha de seu Reitor um livro com escritos na

capa: “Si vis perfectus esse: Se você quiser ser perfeito... entre na Companhia de Jesus”

[GALLO, 1996, p. 39]. Deixa para trás o “Piccolo Seminario di Giaveno.19

Honestamente não sinto muita saudade dele, apesar de um certo carinho: no fundo eu era um menino feliz. Eu queria ser padre, então estava disposta a aceitar qualquer coisa, porque achava que valia a pena [...] Na realidade, apesar da nossa educação fascista, ninguém se importava de perto de ver a cara dele [Benito Mussolini], fazendo a saudação de cima de um banquinho [...] Na nossa escola, em todo o canto estava escrito: “Libro e moschetto studente perfetto” – Livro e mosquetão estudante perfeito [...] Junto com a caneta e o caderno nós recebíamos na escola o mosquetão uma vez só impresso no boletim das notas, outra vez sob a forma de um moschetto em miniatura, um brinquedo igualzinho à arma dos soldados [...] O que mais importava era o espírito de guerra que entrava, como ingrediente universal, em todas as matérias de ensino [Ibid., p. 41].

PLANO 1. O Noviciado

8 de setembro de 1943. Mussolini é derrubado e preso. As tropas alemãs invadem

as cidades do país. Givanni Gallo entra, nesta data, no noviciado. O colégio San Tamaso é

ocupado por soldados comandados pelo General Otto Von Peiper. Todos os noviços estão no

pátio, enfileirados e quietos. Os militares observam e lhes poupam a vida. Giovanni não tem

explicação para esse fato.

Se aparecia algum movimento estranho, a gente já sabia que alguma desgraça estava no ar [...] Para cada alemão morto na luta contra os partigiani, 33 cidadãos eram presos, nas ruas, nas igrejas [...] Se não eram executados na hora, eram embarcados no comboio da morte e destinados aos campos de concentração [GALLO, 1996, p. 49].

19 Colégio tradicional de 400 anos, inaugurado em 1º de setembro de 1571, um mês antes da famosa batalha de Lepanto, quando a Sagrada Liga esmagava a frota dos perversos turcos [GALLO, 1996, p. 39].

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A entrada no Seminário é condicionada a um Rendimento di Consciência, onde o

noviço é levado a contar tudo sobre sua vida, os pecados, as virtudes, os defeitos, as

inquietações, e nada pode esconder no caminho da perfeição. Gallo perguntou-se: “E agora,

Giôanin, vou contar a história das cores, revelando a minha burrice? [...] não valia a pena

contar esta insignificância: até provar o contrário, padre não é pintor” [1996, p. 27].

Como Jesuíta, depara-se com as cores dos calendários litúrgicos de veludo, e

afirma “que só podia ser vermelha; aos meus olhos, porém, era preta mesmo, ao ponto de criar

um conflito entre a experiência sensorial e o raciocínio” [Ibid., p. 27]. Em hipótese, esta

afirmação soma com as reminiscências das cores dos lápis e dos semáforos. Da mesma forma

as cores dos paramentos das Missas, e ao separar as frutas maduras das frutas verdes como

ajudante de cozinha.

Na periferia de Turim, na Villa San Paolo, Gallo estuda dois anos de Filosofia e

divide atividades de camponês com quatro colegas padres. Escalado para ordenhar vacas,

aceitou sem objeção a incumbência da tarefa por saber que não teria problema de cores. Outras

experiências contribuem para a formação do jesuíta, uma delas é o tratamento dado a um

bezerro doente, quando Gallo aprende a dar injeção em pacientes que não sabem reclamar.

Ajuda também no parto das vacas, mesmo sabendo que essa não era uma tarefa

especificamente eclesiástica, “largava São Tomás, Heiddeger ou Espinosa para exercer a

maièutica aristotélica no sentido primário e original [GALLO, 1996, p. 67-8]”.

O terceiro ano na Ordem dos Jesuítas é destinado às especializações. Giovanni é

designado a aprender línguas, mas os planos são mudados para estudar no colégio de Lecce,

Itália,20

Durante a visita de um superior no Colégio Argento, Gallo recebe proposta para

voltar a Turim para ajudar na criação de um centro de estudos sociais e estudar Teologia.

Segue depois para a Gandia, Espanha, perto de Valência; é matriculado no Institut Catholique,

em Paris, para cursar sociologia. Mais uma vez os planos mudam e segue para a Ilha de

em agosto de 1950. O colégio chama-se Collegio Argento, recebe filhos de ricos

latifundiários. Gallo convive entre noviços e herdeiros de ricas fazendas. “Era um colégio de

ricos. Os jesuítas sempre procuravam as elites para movimentar as massas” [1996, p. 71].

20 Importante cidade da Puglia, no extremo sul da Itália. Por sua beleza arquitetônica, a cidade é conhecida também como a "Florença do Sul".

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Sardenha aos 32 anos. Nesse período, os problemas estomacais se manifestam no cotidiano do

padre, que atribui à comida ruim da cozinheira chamada Bardiledda. No povoado de Nuoro, na

Sardenha,21

Viaja pelo Brasil, até receber a proposta de Padre Tarcísio, a quem dedica profunda

admiração, para trabalhar no Marajó. Mas por motivos diversos e problemas com o Bispo de

Belém, padre Tarcísio o encaminha para ser vigário no bairro da Floresta, em São Luiz do

Maranhão. Localidade pobre e sem iluminação, uma preparação para quem já estava se

Gallo aprende a língua sarda e ouve dos antigos as histórias de gigantes e bruxas.

Ensaia escrever um livro que nunca veio à luz, sobre essa experiência. Em suas andanças

aprende os segredos da terra forte,

onde ainda estava em vigor o Codice Barbaricino, um código não escrito, anterior ao Código Napoleônico e ao Direito Romano, que resistiu aos vândalos, depois da queda do Império Romano, sobreviveu à ocupação dos árabes, dos pisanos, dos genuenses, dos argonenses e espanhóis, da casa de Savóia, Código que considerava o roubo de gado como uma forma de resgate social, de emancipação da miséria [Ibid., p. 86].

Da Sardenha o padre segue para Suíça com a missão de “salvar” os patrícios do

comunismo e protestantismo que se alastrava na região. Na década de 60, este novo lugar é

considerado um oásis para os italianos “selvagens” na busca de emprego. Gallo sente-se à

vontade entre os patriotas e os novos amigos suíços.

PLANO 2. Chegada ao Brasil

Depois de oito anos na Suíça servindo a igreja, ofereceram o Brasil para o jesuíta,

que embarca no navio cargueiro “Henrique Lage”; desembarca em Salvador, Bahia, em plena

ditadura militar. Entusiasmado com a paisagem brasileira, o padre, inocentemente, tira várias

fotos dos lugarejos e é confundido como espião na ignorância dos militares à paisanas

“disfarçados ao redor”, sendo preso e depois liberado por sua ilibada conduta.

21 A Sardenha constitui um caso a parte na história das regiões da Itália. Em função da distância do continente esta grande ilha desenvolveu, de fato, uma civilização completamente autônoma. Os seus habitantes parecem haver escolhido historicamente este isolamento: ao invés de caracterizar-se como um povo de navegadores, como poderia acontecer a um povo que habita uma ilha, os Sardos sempre foram um povo de agricultores e pastores. Do mar chegaram os navegadores e conquistadores estrangeiros: Fenícios, Romanos, Vândalos, Árabes, Genoveses Pisanos e Espanhóis. Os Sardos retirando-se da costa para fugirem aos estrangeiros, se refugiavam no interior da ilha: um território irregular e montanhoso difícil de percorrer e penetrar. Os Sardos desenvolveram assim uma forte cultura autônoma e mais facilmente puderam conservá-la. A forte ligação aos costumes e as tradições populares é ainda hoje, vivo, como em nenhuma outra região. Estão ainda em uso os antigos dialetos e é sempre ativa a produção artesanal tradicional de tapetes, cestos, cerâmicas, tecidos e bordados: atividades típicas de um povo de pastores e agricultores. www.colegiosaofrancisco.com.br/sardegna. Acesso em: 16 de set. 2008.

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acostumando com a realidade brasileira dos anos 70, época em que se pregava o refrão do

“país do futuro”, de uma transamazônica integradora, de um Marajó paradisíaco. Na nova

estada, Gallo vai morar na rua Tomé de Souza, próximo à igreja de Santo Expedito. Lugar

violento e de pouca opção de lazer e escola, o padre aparta intermináveis brigas de vizinhos e,

eventualmente, leva as mulheres às maternidades para parir.

PLANO 3. O Marajó de Dalcídio

Início da década de 70. A Igreja determina a viajem de Gallo ao Marajó, terra

assumida por ele como herança e destino. É neste cenário que ele traça seu caminho como o

“começo do fim”. Contraditoriamente, é no Marajó que ele encontra a liberdade depois da

opressão sofrida na ordem eurocêntrica, sem Argento, sem Gandia e Nuoro. Talvez o fim de

uma carreira de sacerdote, talvez o fim de sua própria vida comprometida nesse confim de

mundo, como se refere no livro “O homem que implodiu” [1996].

Para quem presenciou uma guerra, este Jesuíta não se surpreende com as injustiças

sociais encontradas no Brasil e percebe, no Marajó, que a situação se agrava no extremo norte

do país. Sua experiência com leitura de bons textos rende-lhe amizades influentes na imprensa

da capital; escreve suas inquietações nas melhores páginas nos jornais ao anunciar um Marajó

pouco conhecido pelos paraenses e brasileiros. Somente Dalcídio Jurandir conseguira tal

façanha com maior propriedade em seus romances. Este, seu grande incentivador, pede que

reúna e publique seus artigos de jornal, crônicas, aventuras, experiências vividas e sofridas em

um só livro.

Na reciprocidade, a admiração do padre por Dalcídio é tamanha que não tem

dúvidas quanto ao pedido desse escritor paraense; logo acata a sugestão do confrade. Sobre

isso, escreve Jurandir a Gallo [1996, p.156]: “Tire uma coleção de reportagens e faça um livro

que será o retrato da terra e da gente de Jenipapo. Lendo-o, fico com as minhas raízes

marajoaras estremecendo.” Surge então o Marajó a ditadura das águas.22

Infelizmente, o romancista não viu o livro publicado, todavia, deixa a força

literária nas palavras proferidas ao padre, como um bastão a passar às mãos de um missionário.

Gallo se sente angustiado ao escrever histórias que, muitas vezes, falam de uma realidade não

muito favorável ao que planeja. O fato de ele desejar melhorias para a nova terra, não quer

22 Obra publicada em 1980 pela Neo-gráfica Editora, em Belém-PA.

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dizer que o transformemos em herói, uma vez que a missão jesuítica e os votos de padre,

historicamente, impõem a pobreza e a castração dos nativos brasileiros, contraditoriamente ao

que está sendo por ele realizado. Poderia escolher a Escandinávia e as mordomias que lhe

ofereceram antes do Brasil, mas preferiu chegar e conhecer essas terras sem água potável e

energia. Não havia saneamento básico em Jenipapo, cidadezinha pitoresca de palafitas qual

ficção num dilúvio futurista.

São casas construídas de madeira tipo palafita, para proteger-se dos alagados nos

períodos de chuva e o transbordar do lago Arari, localizado no centro norte da ilha do Marajó.

As estivas, de tábuas velhas, fazem parte da paisagem. A vila está situada entre fazendas sem

opção de viabilizar outras ações produtivas. A pesca é a única fonte de renda. O pescado é

perseguido o ano inteiro, sem ter tempo de crescer e reproduzir pelas normas de sustentação.

Suspensa sobre o lago, a Vila de Jenipapo vive o dilema do meio de transporte

quando o rio Arari desce as águas e tudo vira lama. Improvisar uma estrada até é possível,

porém as dificuldades no deslocamento é uma constante aventura não somente para os

moradores, mas, principalmente, para os desavisados. O perigo no rio é constante. As histórias

do peixe piranha23

Fotog. 9 – Aqui se configura o cenário de um projeto que agora anuncio na próxima tomada. Fonte: MPEG.

são testemunhas dessa cartografia adversa a tantas outras épicas e que

renderam bons frutos.

23 Peixe carnívoro abundante nos rios do Marajó, principalmente ao norte da ilha. Nas vilas de Jenipapo e Santa Cruz do Arari, Gallo criou uma cooperativa de pescadores, uma das idéias que deu origem ao Museu. Nessa cooperativa, as piranhas eram embalsamadas e exportadas para a Suiça, gerando emprego e renda.

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PANORÂMICA 2. O Museu na informalidade: uma idéia fora do lugar

Na busca das primeiras manifestações, quanto à formação de um reduto de

valorização da cultura marajoara, desde 1972, na Villa de Jenipapo e município de Santa Cruz

do Arari, encontramos a gêneses d’O Museu do Marajó. Aos poucos, se solidifica a idéia de

criar um espaço que configure mostrar as coisas do lugar, os costumes e cultura.

CENA 1: Jenipapo é cenário

O que Gallo propunha ao desejar criar uma cooperativa de pescadores, até então, é

imprimir a auto-estima na população de se ver como cidadãos conscientes de suas reais

necessidades, capazes de produzir meios de subsistência, o que Gadotti [1996, p. 123-5] chama

de “ação cultural para libertação como práxis revolucionária [...] O importante é que sejamos

jamais ingênuos, pensando que podemos conscientizar os opressores enquanto classe social

opressora”.

Preocupado com as prioridades do lugarejo, Gallo consulta a prefeita de Santa

Cruz do Arari, município sede e próximo, sobre a real necessidade do povo daquelas duas

aldeias de pescadores. Ela sugere a idéia de construir um posto médico. Ele solicita apoio do

arcebispado da capital do Estado, em Belém, sem sucesso. O jeito é criar recursos próprios.

PLANO 1. A Cooperativa de Pesca

No começo do meu trabalho no Marajó tive um sonho [...] Um sonho bonito, pelo qual, o povo de Jenipapo e Santa Cruz poderia enfrentar o futuro com certa serenidade: era a cooperativa de pesca que garantiria trabalho o ano todo. A cooperativa nem nasceu, abortou [GALLO, 1996, p. 255].

Criar uma cooperativa de pesca no Marajó é criar um conceito de sustentabilidade

e de sobrevivência. É uma visão catalisadora de uma série de ações para o desenvolvimento do

homem marajoara; um compromisso de honra de consistência realista e concreta da

comunidade. Aos poucos o povo vai se acostumando com as pequenas mudanças, e percebe

que é possível ganhar dinheiro trabalhando em outras atividades. Gallo sabe que a mola do

desenvolvimento não é o dinheiro, é o homem. Para ele, o dinheiro é a linguagem

compreendida dos homens simples no interesse da luta. A auto-estima dos nativos melhora e a

atitude do trabalho em equipe é amadurecida, e isso mexe com o brio das lideranças que se

sentem incomodadas em seus pleitos. O padre é ameaçado, mas continua o seu trabalho.

Deseja mesmo fundar uma Cooperativa de Pescadores.

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A idéia da cooperativa movimenta a consciência oprimida do povo de Jenipapo e

Santa Cruz do Arari. Como tudo que provoca mudanças, o “novo” provoca reações adversas,

uma mudança de paradigmas, de sentidos em transformação, comportamento nativo do

cotidiano marajoara, da cultura em que tudo cai do céu, sem necessidade de se produzir nada

porque tudo é abundante, vem da natureza. E o que vem transformar esse pensamento encontra

resistência. A iniciativa se amplia quando um grupo de pescadores e mais o padre, vão de

barco até o município de Vigia, Pará, para observar as técnicas de pescar dos vigienses,

considerados os melhores na atividade. O grupo volta a Santa Cruz e Jenipapo, se dispersa e

nada acontece.

PLANO 2. O Projeto Piranha

As sobras dos peixes que chegam às geleiras dos dominantes24

A experiência de aplicar injeção nos bezerros, no tempo em que estudou filosofia,

agora serve para abraçar a idéia de produzir recursos a favor da comunidade no Marajó. As

são entregues a

marreteiros que exploram o povo local. É preciso redimensionar essa atitude miserável e fazer

valer a capacidade de se criar alternativas para melhorar a situação. Paralela a idéia fixa da

Cooperativa, cresce a idéia de embalsamar piranhas.

Gallo chega a Belém e compra alguns exemplares dos peixes embalsamados numa

loja de artesanatos. Estuda a possibilidade dele mesmo fazer a “operação piranha”, de observar

as peças e ver como se processa o embalsamento. Queria descobrir se era necessário limpá-las das entranhas ou simplesmente fazer o tratamento com formol [...] Uma noite, na minha palafita perdida na lagoa de Jenipapo, tirei a camisa e me concentrei para criar a minha obra de arte: só eu e Deus. Com calma e todo cuidado estava injetando o líquido na bichinha, que eu mesmo tinha pescado da janela de casa, quando senti uma certa resistência, porque a agulha era muito fina. Carreguei a mão, na marra. Foi nesse momento que aconteceu o desastre. Nem sei o que foi: quiçá, a seringa estourou ou a agulha escapuliu. Só lembro que o meu rosto, de repente, pegou fogo, estava lavado de formol! O que é pior, naquela experiência estava usando uma solução muito concentrada. De repente fiquei cego, com a cabeça que parecia explodir. Tive vontade de pedir socorro, mas compreendi que não adiantaria nada. Isolado como estava, não podia ser ajudado por ninguém [...] Só uma idéia, bem clara na minha cabeça: água, devo chegar à água! [...] Devagarinho, cheguei ao banheiro e mergulhei a cabeça no tambor cheio de água [GALLO, 1996, p. 171-2].

24 Autoridades e empresários da área pesqueira em Jenipapo e Santa Cruz do Arari, que na visão do Padre, manipulavam os moradores com a cultura de subsistência. Após seleção do melhor pescado para venda e exportação, distribuíam o restante, quando sobrava, para a população, acostumada com a subserviência, não faziam esforço para produzir e criar uma renda própria, chegando até a passar fome em tempo de escassez. No comércio da vila, tornavam-se escravos dos comerciantes que lhes repassavam caro os mantimentos como feijão, arroz, açúcar, café e outros que chegavam de barco da capital.

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piranhas é uma das opções pela abundância e histórias amedrontadoras. Casos de pescadores e

vaqueiros, ao atravessar rios do Marajó, são ilustrados pelas águas avermelhadas na perca de

uma ou duas cabeças de gado. Em “Marajó A ditadura da água”, expressa Gallo [1980, p. 91]: Aqui no Arari as piranhas são os moradores mais numerosos, só cedendo o passo às lombrigas, com a concorrência das pragas. No fichário da Faculdade de Zoologia, a piranha tem um nome meio esquisito: Serrasalmus rhombeus: serrasalmus, porque as escamas ventrais formam uma rerrilha com as pontas voltadas para trás; rhombeus, já que tem a forma de um rombo [...] Os índios, que a conheciam intimamente, a batizaram “Pirâi”, isto é, “corta-pele” [...] Goeldi a considerava um animal de rapina, o mais perigoso da América Equatorial e, até mesmo, dos peixes, dizia também que se Dante a tivesse conhecido, ter-lhe-ia dado um lugar de honra no inferno, entre os instrumentos de suplício.

Fotog. 10 – “Peixe diabo” ou “tigres do rio”. Fonte: MPEG

Das histórias de terror, surge uma luz. Poderia ser um excelente negócio se

vendidas como artesanato, se embalsamadas. Essa experiência dá certo com a ajuda de

algumas remuneradas senhoras. São 12.000 exemplares exportados para a Suíça. Para isso, é

criado um laboratório para realizar essa experiência. Com o dinheiro, constroem-se novas

pontes e estivas para a comunidade, utilizando madeira de lei. São aproximadamente trezentos

e cinqüenta metros de pontes estruturadas com esteios de acapu e frechais de maçaranduba,

para resistirem a força e a umidade das águas.

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Fotog. 11 – Mulher de Jenipapo injeta formol no peixe.

Geração de emprego e renda. Fonte: Gallo [1980, p. 89].

O fato incomoda o bispo por desejar saber como foi conseguida tamanha façanha

sem o dinheiro da diocese. Não contente com o sucesso independente do padre “desobediente”,

começa a persegui-lo em articulosas armadilhas políticas. Indiferente à opinião da igreja, o

padre continua a trabalhar.

O centro comunitário também é construído. Este espaço serve para realizar

reuniões, e Giovanni cria cursos de artesanatos ao embalsamar piranhas e pequenos animais,

bem como outros de culinária, confecções de flores, produção de sacolas de napa e outros

pequenos projetos.

Constrói-se também o posto médico, com a participação de voluntários e de

profissionais na área da saúde, para ministrar palestras de prevenção sobre assuntos de

interesse geral. A comunidade fica empolgada e as iniciativas do padre começam a ganhar a

simpatia do povo: centro comunitário e posto médico, ligados por novas estivas sobre os

alagados. O primeiro serve de escola, jardim de infância; o segundo também é um espaço

educativo, onde se ministra palestra sobre saúde e prevenção de doenças causadas pela falta de

saneamento básico.

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PLANO 3. Os presentes

Sem imaginar as consequências de suas ações, a idéia d’O Museu aparece nas

implicações dos presentes recebidos da comunidade. São eles:

Detalhe 1: Os cacos arqueológicos

Seu Vadico entrega a Gallo um pacote embrulhado em papelão e o deposita na

mesa: “Aqui estão uns negócios que não prestam como o senhor gosta” [GALLO, 1996, p.

179]. Intrigado, o padre apalpa com cautela o embrulho, abre e descobre “cacos” de cerâmica.

A senhora da limpeza aparece curiosa e pergunta se presta. O padre fica extasiado

contemplando as amostras, que, parecem fruto da coleta de um abençoado arqueólogo. As

peças apresentam desenhos simétricos de peixe, pássaro e “caretas” aprimoradas. Em outras

palavras, “naquele momento nasceu a idéia de criar um museu, que recuperasse a cultura de

nossa terra, a fim de preservá-la e divulgá-la” [1996, p. 180].

Fotog. 12 – Cacos arqueológicos achados nos tesos marajoaras. Foto: site MPEG.

Detalhe 2. O Bezerro-de-duas-cabeças

Anomalia. Nasce o bezerro-de-duas-cabeças na fazenda de seu Domingos.

Sobrevive três horas e morre. O animal é levado para o padre “veterinário” e é embalsamado.

Mais uma vez a experiência vivenciada na Itália lhe rende frutos. Desta vez é diferente e a

situação é inusitada. O bezerro tem duas cabeças. A narrativa de Rosália ilustra o fato:

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Um dia também teve outro na história do bezerro de duas cabeças. O seu Domingos chegou lá, né? E, o bezerro nasceu, né? De duas cabeças, lá na fazenda dele e três horas depois ele morreu. Aí o seu Domingos levou lá, e mostrou. Então, ele [Gallo] fez uma exposição do bezerro lá que ele embalsamou, e tal... e fez uma exposição. E as pessoas começaram a entrar pra visitar, visitar, visitar, de repente, aí foi surgindo, a cada dia, a cada situação que ele vivia lá, ele [referindo-se a Gallo] ia registrando e ia escrevendo, entendeu? Aí, foi... quando surgiu a idéia dele fazer a montagem do Museu.

Fotog. 13 – Fonte: Portal. [2005].

Detalhe 3. O tear andino

Para somar aos presentes recebidos por Gallo, um tear andino rudimentar de tecer

rede é encontrado na casa de uma senhora, cujo nome é desconhecido. A peça é recuperada por

mestre Cassiano, morador do lugar. As concepções que conduzem a idéia de criar O Museu do

Marajó não se restringiram aos presentes recebidos pelo Jesuíta, porém, estão ampliadas nas

implicações dos gestos de quem os produziu. Seu Vadico lhe presenteou os “cacos”, Seu

Domingos o bezerro-de-duas-cabeças, Mestre Cassiano restaurou o tear andino, como tantos

outros gestos não documentados e que merecem destaque. São gestos sociais que trazem para

reflexão o comportamento ético do indivíduo diante do descaso e esquecimento, da situação do

homem diante da repressão em um mundo dividido em classes, no caso, os peões de fazenda

proibidos de procriar e de terem famílias numerosas, para não dar despesa para os patrões

latifundiários.

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A procura de outras feições de compreensão e o desempenho na realidade por uma

razão mais humanista e abrangente, socialmente justa, é o ânimo motriz dos ideários

sediciosos. O reconhecimento dos gestus25

Fotog. 14 – O Nosso Museu. Fonte: MPEG

do sacerdote está na voz de Rosália.

Então, quando ele [Gallo] chegou lá no Jenipapo, é como se ele tivesse voltado no túnel do tempo[...] Ele veio da Suíça, da Itália, passou por todos esses países de primeiro mundo e chegou diretamente no Jenipapo, onde só tinha... era palafita, onde ele só via [faz gestos, talvez querendo dizer água], né? Aí ele viu, aí ele percebeu também que a cultura, aquela cultura tava se perdendo, que nunca ele viu, que nunca ninguém ia falar, nem registrar aquilo tudo que ele ouvia e percebia lá, entendeu? Aí, surgiu a idéia [d’O Museu].

CENA 2: Associação “O Nosso Museu” em Santa Cruz do Arari

Como dizia o padre: “O Museu veio a tira-colo.” Em 16 de dezembro de 1981 é

criada a Associação com o nome de “O Nosso Museu”26

25 Referente ao gesto social; gestus utilizado nos textos épicos do teatrólogo Bertolt Brecht. 26 Construído em madeira, o espaço escolhido é uma casa de dois andares, cuidadosamente pintada de azul nas paredes externas, com portais pintados de branco. Na fachada, acima da porta, uma maquete de barco é destaque para chamar a atenção dos transeuntes; uma cabeça de búfalo com chifres soma ao apelo visual para mostrar, a todos ,que ali existe um museu.

, ainda em Santa Cruz do Arari. A

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Associação é constituída por cidadãos voluntários que se manifestavam a favor das propostas

de mudanças que nasciam com o advento do projeto. Reuniões são realizadas aos fins de tarde

em grandes rodas de conversas, regradas às idéias compartilhadas e que surgiam dos próprios

moradores do povoado. As crianças acompanham os adultos e, de certa forma, aprendem as

novas informações sobre assuntos de interesse geral.

A educação é tema privilegiado quando se fala em alfabetização e freqüência à

escola. A consciência crítica do povo se acentua. A rotina muda e muda também a

hospitalidade dos que se mantinham no poder às custas dos “desinformados”. Em meio às

perseguições políticas e ter sido ameaçado de morte, Gallo transfere-se de vez para Cachoeira

do Arari em 1983, e leva, consigo, todo o acervo antes coletado em Jenipapo e Santa cruz. No

transporte, via barco, algumas peças se extraviam.

CENA 3: Transferência para Cachoeira do Arari

Cachoeira é cenário. O Museu é fincado numa antiga fábrica de óleo abandonada,

que pertencia à família Pessoa. A propósito, essa antiga fábrica de óleo fazia parte de um

projeto com o aval da antiga Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia -

SUDAM, hoje ADA, financiado pelo Banco da Amazônia - BASA. O motivo da falência é

silenciado pelos mais antigos, com a possibilidade de ser mais um dos tantos projetos “de

fachada” que a SUDAM viabilizou na Amazônia.

Fotog. 15 – Projeto financiado pela SUDAM. Falido. Fonte: MPEG

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A ausência de pagamento de impostos faz com que a Prefeitura de Cachoeira se

aproprie do prédio. O prefeito local, na época o Senhor Edir de Sousa Neves, ao ver a

possibilidade de promover seu município e entendendo as intenções do padre, cede o espaço

para a implantação do grande projeto. Todavia, é necessário que se faça uma reforma adequada

diante do estado em que se encontra o galpão que se localiza à margem do rio Arari, de frente

para o sol-poente. Para honrar a dívida da nova instalação, Gallo vende a antiga sede d’O

Museu em Santa Cruz do Arari e quita os débitos da oleica em Cachoeira. O projeto é

audacioso, tanto que, junto com o galpão, é concedido pela prefeitura um terreno ao redor d’O

Museu com 20.000 m², arborizado, que hoje faz parte do espaço físico que compreende O

Museu do Marajó, onde também é construída a residência do padre.

No decorrer do tempo, outras instalações são edificadas como conquistas da

comunidade local: a casa do artesão; a fazendola, uma palafita de forma arredondada

construída em madeira de lei, onde são promovidos encontros, oficinas, palestras, e serve até

de hotel para os viajantes desavisados; casa da cultura; escola oficina; e um terreno arenoso

para a prática de futebol. Hoje, é um complexo cultural que dá orgulho ao povo de Cachoeira,

bem diferente de tempos atrás.

Nesse mosaico de temporalidade histórica, volto à chegada do sacerdote em

Cachoeira, em 1983. E como toda novidade em uma cidade do interior causa estranheza, a

presença do Padre é o assunto do ano, ao considerar não somente o fato de ser um sacerdote,

contudo, a situação em que ele se encontra diante das circunstâncias políticas das cidades de

onde vinha. Muitos moradores viajavam para Santa Cruz do Arari e já conheciam as histórias

de perseguição sofrida pelo sacerdote.

Mais estranho é o que o padre traz para a comunidade cachoeirense, um presente

que mudaria os valores e a vivência dos nativos, os quais ofereceram resistência inicialmente,

mas que, aos poucos, foi-se internalizando em auto-estima a consciência e luz de uma nova

situação, um sonho plantado, crescente e compartilhado. “Ter um Museu na cidade pode trazer

muitos curiosos, turistas e estudantes” – diz Paulo Almeida, que acompanhou o padre desde

Jenipapo. Hoje ele é funcionário da prefeitura de Cachoeira. Como Paulo, muitos reconhecem

a importância desse empreendimento, que passa a ter o aval da comunidade. O Museu é

reconhecido pela Assembléia Geral dos sócios a 14 de julho de 1983, oportunidade em que

recebe o nome de O Museu do Marajó.

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A seguir, mostro a comunidade de Cachoeira se envolvendo no projeto. Todos

sabem das possíveis mudanças e das oportunidades para a viabilização de várias ações, onde o

homem é o foco de estudo dos saberes marajoaras. Sobre isso, complementa Gallo [1996, p.

260]: “A idéia básica é apresentar não o objeto e sim o homem que está atrás do objeto: daqui

se explica que a declaração de que o homem é a nossa peça mais importante.”

Fotog. 16 – A idéia d’O Museu em Cachoeira mobiliza os moradores, que acreditam em dias melhores. Fonte: MPEG

O Museu é uma estratégia de uma atividade pastoral do padre, para viabilizar

conhecimento da realidade local, e aproximar-se das ações do homem do lugar, da mesma

forma que usavam os sacerdotes, durante a catequese, que a história ao longo dos anos nos

reportou. Talvez os artefatos utilizados em seu interior, os computadores caipiras,

assemelham-se às estratégias adotadas pelos jesuítas, que apresentaram a cultura européia aos

índios e negros analfabetos no período colonizador.

Ao abrir um parêntese sobre a questão, a igreja católica sempre adotou essa

estratégia para repassar os dogmas e paradigmas hegemônicos de uma religiosidade

“dominante”, utilizou o artifício da imagem nos quadros, pinturas e vitrais coloridos e

esculturas de santos. Não é à toa que a via-sacra é contada em uma sequência visual nas

laterais das igrejas até hoje, não porque é bonito de se ver, mas porque é, historicamente,

necessário informar o que sustenta a corrente cultural religiosa cristã a todas as criaturas

alfabetas e não letradas.

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Fotog. 17 – O Museu é novidade na década de 80, e atrai curiosos dos municípios vizinhos. Fonte: MPGE.

Em 9 de dezembro de 1984, O Museu do Marajó é aberto ao público. Estudantes,

autoridades e comunidades próximas, desfrutam e compartilham do sonho galliano. A

Comunidade científica também se aproxima para conhecer de perto o projeto. Assim como

Portal27 e Schaan,28

Tanto Fares

outros pesquisadores também já anunciam esse patrimônio em

monografias e teses de doutorado, respectivamente. Vale destacar outra importante tese de

grande envergadura conteudista, o desempenho de Fares [2003, p. 133], que em suas

Cartografias Marajoaras reforça:

O Museu constitui o maior acervo sobre o Marajó, existente no Brasil, quiçá no mundo [...] é cobiçado por Soure. Hoje ocupa uma extensa área de bosque e pântanos da Prefeitura Municipal de Cachoeira, que também contrata os funcionários do Museu. O município se orgulha deste patrimônio, mas seu idealizador não acredita, pois garante que o maior reconhecimento vem das pessoas de outros lugares do Pará, da Amazônia, do Brasil e do mundo.

29

27 Nasceu em Cachoeira do Arari – Marajó, graduada em Ciências Sociais pela UFPA com ênfase em antropologia. Imagem concedida para ilustrar esta pesquisa, proveniente de seu Trabalho de Conclusão de Curso intitulado Tempo e Tradição em Cachoeira do Arari: O Museu do Marajó na Percepção Popular-Ano 2006. 28 Arqueóloga e pesquisadora da Universidade Federal do Pará e Museu Paraense Emílio Goeldi; coordena pesquisa n’O Museu do Marajó com Vera Portal. 29 Pesquisadora com tese de doutoramento intitulada: “Cartografias Marajoaras: cultura, oralidade e comunicação”, defendida em 2003 pela PUC-SP. Atualmente é coordenadora do CUMA, Grupo de Estudo “Cultura e Memórias Amazônicas, na UEPA; é também docente do Curso de Mestrado em Educação desta Instituição, na linha de Saberes Culturais e Educacionais da Amazônia.

como eu, tivemos a oportunidade de conhecer Givanni Gallo. Muitos

relatos foram registrados, embora em tempos diferentes, porém bem próximos, visitamos O

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Museu na presença de seu criador. De certo que esta pesquisadora possui grande acervo

particular sobre o Marajó e outros pertinentes à sua formação, na área de literatura e semiótica.

História oral também é seu forte. Tudo favorável para a viabilização deste estudo, eu que

desejo ouvir as vozes dos intérpretes, os aprendizes que visitam esse lócus apaixonante. A

prova que O Museu é querido por todos, está registrada nos livros de assinatura dos visitantes

aventureiros e educadores mais atentos. Vejamos alguns dos depoimentos retirados de “O

Homem...” [GALLO, 1996, p. 258-9]:

“Museu ímpar. Museu singular.”

“Adorei! Adorei! Adorei!”

“De todos os museus que eu conheci, este foi o que achei mais

criativo e adaptado aos valores do caboclo marajoara. Uma leitura

simples e gostosa.”

“Obrigado, por fazer com que eu conheça as minhas raízes.”

“Interessante e cheio de criatividade. As mais sofisticadas partes do

mundo podem aprender aqui não somente sobre a história, mas

também como aprender e tornar interessante o nosso passado.”

“Eu, sinceramente gostei muitíssimo do Museu do Marajó, porque eu

sou marajoara, mas simplesmente não conhecia nada do Marajó.”

“Quem diria, um computador de madeira em plena ilha do Marajó?

Caixas curiosas fazem contar o visitante até 3 antes de abri-las: será

que tem piranha aí dentro?”

“Uma obra fantástica, humana, despreconceituosa e corajosa!”

“As idéias são criativas e transmitem o conteúdo. Eu não me cansei

de ler e aprender.”

“Todos los museus deveriam ser fascinantes y divertidos como el

Museu del Marajó. Me lleno de alegria. Es um lugar onde uno puede

volver y volver y volver!”

“Great Museum. Great Job! Thanks _ I’ll be back soon”.

“A dimensão da história etnológica e vivenciada exposta neste Museu

é impossível ser conhecida em algum museu.”

“Foi como se estivesse participando de uma interessantíssima

aventura. É uma verdadeira obra de arte.”

“Achei a exposição pai d’égua!”

“Que maravilha! Vou levar recordações inesquecíveis e educativas.”

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Muitas são as assinaturas de visitantes, gente do mundo inteiro e do Brasil, alunos,

professores, pesquisadores, empresários, agentes culturais, trabalhadores rurais, funcionários

públicos, e, várias outras categorias. Os sentimentos são diversos. O que foi transcrito acima

dá para se ter uma noção da demanda que procura O Museu. São grupos pequenos e de

numerosas pessoas, às vezes de famílias inteiras em tempo de fins-de-semana prolongados.

Destaco também a questão da forma divertida que O Museu possui de educar, anunciada pelos

visitantes: “Uma interessantíssima aventura”; “fascinante e divertido”; “interessante e cheio

de criatividade”; “uma leitura simples e gostosa”; “singular”.

CENA 4: Jardim e casa do Padre

O Jardim é uma área lateral d’O Museu com árvores frutíferas e plantas

medicinais, e compreende a Casa onde residia o Jesuíta. A comunidade de Cachoeira está se

organizando para transformar a residência em um espaço de visitação, situado dentro dos

20.000 m², que compõem o complexo museológico do Marajó. Neste terreno, outras

construções podem ser encontradas como: a casa do caboclo, feita de palha e bambu; e uma

reserva técnica de alvenaria, esta muito utilizada pelos pesquisadores do Museu Paraense

Emílio Goeldi no trato de restauração das peças arqueológicas.

Durante os dois anos em que desenvolvi esta pesquisa de campo, vi uma única

vez, uma família de oito pessoas passarem uma manhã e uma tarde inteira dentro do Museu

do Marajó. Foi um momento inusitado registrar todos, ou quase todos, os movimentos do

grupo, que chamo de Família Pereira. A diferença para os demais grupos, na produção de

dados, é que este soube aproveitar todo o momento da visitação, que deixo para descrever no

capítulo segundo deste estudo.

O que ainda desejo apresentar na sequência, é a possibilidade de acompanhar o

grupo para mostrar seu interesse em visitar outras dependências do acervo, jardim e casa. A

narrativa escolhida para o momento é a narrativa fílmica, da qual me aproprio e que se

enquadra na perspectiva de revelar parte d’O Museu. O que favorece essa proposição é a

oportunidade do instrumento de trabalho utilizado pelo pesquisador, câmera filmadora, e a luz

natural externa do jardim.

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INSERÇÃO POÉTICA. “Jardim d’O Museu”: O Roteiro

Como um roteiro de filme, peço permissão para as poéticas e empresto um pouco

de minha experiência no cinema para narrar as vozes e gestos dos intérpretes, como

personagens em um documentário de poucos minutos nesta primeira sequência. A narrativa

fílmica é real e faz parte da visita da Família Pereira.

A história é dos próprios intérpretes ao descobrirem que o Museu se estende para

outros espaços. A paisagem é um bosque de árvores frutíferas com pequenas construções, que

serve de cenário: trilhas, bancos de madeira, jirau, um teso30

PAN. Em plano sequência a CAM mostra no ecrã

e a casa do padre. O desejo de

saber parte d’O Museu, a descoberta do túmulo e de como o padre está sepultado, são

revelados via narrativa do pesquisador, através das lentes e comportamento da câmera, as

ações dos intérpretes e as vozes. Para situar as personagens envolvidas, apresento: Fernanda,

filha de Jorge e Rosa, mora em Belém; Amanda, amiga de Fernanda, mora em Cachoeira.

Segue o roteiro na sequência única.

SEQUÊNCIA ÚNICA: JARDIM DO MUSEU / EXT - DIA

31

Olha pai!

galhos de árvores em contraste com a luz

do sol, desce vagarosamente. Ouve-se pássaros. A Família Pereira acaba de visitar o salão de

exposição e sai em direção ao jardim. A lente revela bancos entre árvores, a casa do caboclo,

a reserva técnica d’O Museu e se aproxima lentamente do grupo de intérpretes, que apreciam

o ambiente. Amanda comenta sobre as cuias que estão no chão.

AMANDA

Pinta ela e fica a cuia preta, pintada. Ela não é pintada. É daqui que se faz a cuia do tacacá.

[refere-se às frutas da cuieira caídas ao chão].

Uma cutia passa correndo por entre as pernas dos visitantes. Risos. Fernanda aponta para uma

casinha.

FERNANDA:

30 É como os cachoeirenses chamam o túmulo do Padre Gallo. Ref: Roda de conversa de Fares (2008) com os moradores do município. 31 Tela onde aparecem as imagens enquadradas em câmera filmadora ou de fotografia.

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JORGE:

O que é?

FERNANDA:

Vou lá naquela casinha ali, onde tá enterrado o cara...

JORGE:

O padre!

FERNANDA:

O quê?

JORGE:

O padre. O fundador do Museu, né?

FENANDA:

Padre?

JORGE:

É, o padre!

Rosa ouve Fernanda e se antecipa. Aproxima-se como se conduzisse todos para ver o túmulo

do padre Gallo. Fernanda arrisca o nome do padre referido pelo pai. Para ela ainda não está

claro o nome do criador do Museu.

FERNANDA:

É Galileu? Gallo?

Pergunta a menina a respeito do nome do padre. Logo, todos chegam ao local onde Gallo está

sepultado.

FUSÃO

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Na casinha são reveladas as homenagens escritas em plaquetas de madeira, agradecimentos

por graças alcançadas [alguns moradores acreditam que o Padre está fazendo milagres].

Fernanda assusta-se com morcegos que sobrevoam o lugar, e Daiane não pára de morder sua

fruta que pegara no pé de araçá. Rosa lê uma placa maior. DET no rosto de Rosa.

ROSA:

"Aqui é a sepultura do... padre... [silencia]

A CAM descreve o túmulo. Vasos de flores são revelados. Ouvem-se cantos de pássaros. Na

cruz está escrito: "Aqui Jaz Padre Giovanni Gallo, nascimento em 27/04/27, falecimento em

07/03/03”. Daiane aponta para uma casa. Ela é amiguinha de Fernanda e mora em Cachoeira,

conhece bem o lugar. DET no rosto de Daiane. Em subjetiva, a CAM passeia lentamente pelo

túmulo. Ela olha para a casa do padre.

DAIANA:

Nessa casa. Ele morava. Era uma casa aqui. Aí...

Em PM, Rosa faz o sinal da cruz e reza silenciosamente frente ao túmulo. Observa Fernanda

com o pai, Jorge, que se afastam na direção da casa apontada por Daiane, e os segue.

ROSA [saindo]:

"É uma... coisa muito boa!

Ouvem-se cânticos dos pássaros no som ambiente. No caminho da casa do Padre, Jorge pára,

tira uma foto de Fernanda e Daiane que estão sentadas no banco à sombra das árvores. Rosa

se aproxima e senta ao lado das meninas e chama Eliana, irmã de Jorge. Elas pousam para a

fotografia. A imagem congela.

SOBEM OS CRÉDITOS

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Intérpretes:

Família Pereira

Amanda

Daiane

Elaine

Fernanda

Jorge

Raimundo

Rosa

Direção:

Josebel Akel Fares

Denise Simões Rodrigues

Roteiro, Fotografia e Arte:

Darcel Andrade

Agradecimentos:

José Guilherme Fernandes

Nazaré Cristina Carvalho

O Museu do Marajó

Prefeitura de Cachoeira do Arari

FADE IN

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SEQUÊNCIA 2. O BRICAR N’O MUSEU: VER, TOCAR E CONTEXTUALIZAR

“O Museu é um grande brinquedo”. A frase é síntese do objetivo lúdico d’O

Museu do Marajó. Brincar e conhecer são qualidades do ato educativo quando caminham

juntas na relação “ser-fazer”. O ato de brincar é a capacidade criativa de construir

conhecimento dentro de um campo do fazer pedagógico, é a “des-ordem criativa à ordem

construtiva: repensando a tarefa da escola” [ROSA, 2001, p. 86].

Em “Brincar, Conhecer, Ensinar”, a autora apresenta ‘Alice no país das

maravilhas’ e ensina a entender o que há de tão interessante e convidativo em uma história ou

nas experiências cheias de nonsense. Nesse sentido, o visitante que entrar n’O Museu pode e

deve sentir-se criança. Rosa pergunta: “qual o adulto que não se diverte ao entrar numa ‘casa

maluca’ – dessas que existem em parques de diversão --, onde o que há de ser visto desafia

frontalmente as leis da lógica?” [2001, p. 18]. Assim, O Museu do Marajó é um lugar de

diversão e desafia a lógica de outros museus e de espaços educativos no processo de ensino e

aprendizagem. Como brinquedo, faz do adultos uma criança e da criança um adulto, ambos

intérpretes, aprendizes, dando asas à imaginação, e tudo se nivela.

A relação entre os intérpretes e os saberes do Museu é configurada como

categorias indissociáveis, por considerar a dinâmica de como acontece a visitação. É um

movimento híbrido em que as três ações do Ver, Tocar e Contextualizar se mesclam na

apreensão dos saberes, nas diferentes formas de percepção e interpretação. Ao fazer uso dos

sentidos, os visitantes buscam relações com o saber, identificam e ordenam dados empíricos

apresentados n’O Museu. São também pesquisadores que “estuda[m] a relação com lugares,

pessoas, objetos, conteúdos de pensamento, situações, normas relacionais, na medida em que

está em jogo a relação do aprender e do saber” [CHARLOT, 2000, p. 79]. Sendo assim,

proponho uma atividade primeira neste estudo, com o objetivo de ambientar-me ao cenário

d’O Museu, uma espécie de ensaio das performances apresentadas na sequência 3, que eu

chamo de Percepção Triádica.

CENA 1: Percepção Triádica

Esta dinâmica foi a primeira experiência do pesquisador n’O Museu. É

considerada uma espécie de ambientação com os instrumentais, sujeitos e lugar, e inicia uma

projeção das proposições planejadas no lócus de pesquisa. A pretensão é apenas experimentar

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as primeiras sensações nas atividades de campo, sem conhecimento das dimensões

conquistadas no resultado final. Consiste observar a performance de seis intérpretes, de oito a

doze anos de idade, que gapuiam saberes dentro d’O Museu. São crianças de comunidades do

Marajó envolvidas em atividades educativas, voltadas para a fomentação da cultura do

município. As crianças, todas estudantes, fazem parte do GAFMA32

A condução da visita ao interior d’O Museu com as crianças é bem diferente.

Optei pela técnica de grupo focal ou grupo de foco, que, segundo Flick [2004, p.125]: “tenta-

se contextualizar ainda mais os dados coletados e criar uma situação interativa mais próxima

da vida cotidiana do que permite o encontro [em geral, exclusivo] do entrevistador com o

entrevistado ou narrador.” O autor apresenta um conceito que define o grupo de foco, como

um pequeno grupo de pessoas sobre um tópico específico, via de regra, é formado por seis a

oito [intérpretes], que participam da entrevista de 30 minutos a duas horas. Portanto, para

produzir os dados e responder as questões que atendam aos objetivos propostos, realizou-se a

dinâmica: grupo focal, com observação participativa, e filmagem. A técnica utilizada é a

“Ciranda de Conversa”

. Minha aproximação com

elas deu-se por meio do professor Miquéias, ao entender as proposições da pesquisa e

autorizar a exposição de imagem e vozes dos componentes do grupo [Anexo I].

33

Ciranda de Conversa é uma maneira de estimular os intérpretes, principalmente os

de comportamento reservado, envolvem o processo de expressar opiniões, relatos, histórias e o

mais que ocorrer voluntariamente para revelar os fenômenos através dos sentidos. É eficiente

para a demanda infantil; fornece alguns controles de qualidade sobre a coleta ou produção de

dados, ao considerar que um participante pode compensar o outro; evita opiniões falsas ou

radicais. Por se tratar de crianças, e por saber do mito de que estas são portadoras da verdade, a

ciranda de conversa é a forma mais adequada para orientar as atividades em planejamento.

Mostra para elas que a brincadeira é “séria” com objetivos e critérios a serem acatados;

desperta nos intérpretes infantis o desejo de participar de uma aventura, como se quisessem

procurar o coelho branco de Alice.

[CARVALHO, 2006].

34

32 Grupo de Arte Folclórica Unidos do Mangas, registrado pelo CNPJ:10.333.311/0001-28 e presidido por Miquéias Caldas da Silva, mestre da cultura popular de Cachoeira do Arari. 33 Técnica utilizada para produção de dados na tese “Entre o rio e a floresta...” [CARVALHO, 2006]. 34 Alice no país das maravilhas. Na metáfora, o coelho branco de Alice representa os saberes ‘perseguidos’ n’O Museu.

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Fotog. 18 – Ciranda de conversa 1. Évila pergunta como vai acontecer a gapuiagem. Fonte: Alves [ 2007].

Deste modo, anuncio a gapuiagem de forma lúdica e poética, para dar leveza à

pesquisa e mostrar outras possibilidades de se construir saberes durante a visita; abro espaço

para apresentar um caminho simples que venha justificar o movimento dos intérpretes infantis

dentro d’O Museu. A preocupação não é criar uma nova abordagem metodológica nesse

labirinto de métodos e técnicas de pesquisa que, de certa forma, muito contribuem para o

amadurecimento deste estudo. Antes, porém, apresento alguns autores, nos quais ancoro minha

pretensão.

Ao estabelecer parâmetros e referenciais teóricos especificamente adequados,

aproprio-me da abordagem triangular de [BARBOSA, 2002], a qual utiliza os verbos Ver,

Fazer e Contextualizar, em experiências voltadas para a arte-educação, inspiradas em museus

na cidade de São Paulo, para desenvolver a gapuiagem anunciada da seguinte forma: troco o

verbo Fazer pelo verbo Tocar, e construo uma nova estrutura representada nas categorias

correspondentes aos verbos: Ver, Tocar e Contextualizar. Portanto, as ações dos verbos

imprimem os atos dos intérpretes na gapuiagem de saberes, especificamente n’O Museu do

Marajó.

Nesse sentido, os atos dos intérpretes compõem uma ação conjunta, cíclica e

sucessiva; ao mesmo tempo em que o intérprete Vê, ele Toca [ou não] e Contextualiza os

saberes apreendidos. Não cabem aqui os conceitos fisiológicos perceptivos, e sim a abordagem

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fenomenológica, ou seja, todas as informações que chegam aos sentidos dos intérpretes são,

pela ordem, percebidas e apreendidas fenomenologicamente. Com base no seu estudo, dialogo

com Barbosa [2006, p.16], a qual apresenta Arnheim:35

35 ARNHEIM, Rudolf (15 de julho de 1904 – 9 de junho de 2007), psicólogo alemão nascido na cidade de Berlim, tendo emigrado em 1940 para os Estados Unidos. Estudou a abordagem cognitiva da mente em seu enfoque e entendimento da realidade através da percepção visual. Bem sucedido na aplicação das leis da Gestalt. Fonte: wikipedia.org/wiki/Rudolf_Arnheim. Acesso em: 03 out. de 2007.

Rudolf Arnheim foi um dos expoentes da idéia de arte para o desenvolvimento da cognição. Sua concepção se baseia na equivalência configuracional entre percepção e cognição. Para ele, perceber é conhecer.[...] Estas regras são, para Arnheim, a gramática visual subjacente a todas as operações envolvidas na cognição como recepção, estocagem e processamento de informação, percepção sensorial, memória, pensamento, aprendizagem etc.

Traz a autora, também, para discussão, James Catterrall, da Universidade da

Califórnia em Los Angeles, o qual afirma que:

Habilidades espaciais têm impacto sobre muitas capacidades humanas básicas – entender a linguagem escrita e falada, por exemplo. [...] O raciocínio espacial está envolvido em muitas outras coisas que avaliamos – a habilidade de planejar quase tudo, a resolução de problemas matemáticos e os processos científicos criativos. Alberto Einstein percebeu o espaço vital da manipulação espacial de imagens mentais em suas revelações transformadoras sobre o mundo [CATTERRALL apud BARBOSA, 2006].

Lendo a autora, vejo que é possível desenvolver a gapuiagem como caminho

navegado pelos intérpretes [crianças]. Portanto, compreendo que O Museu do Marajó é um

território onde se desenvolve o raciocínio, as habilidades espaciais, cognitivas, partindo do

pressuposto de que os computadores que constituem aqueles saberes marajoaras viabilizam

práticas educativas com suportes tridimensionais, táteis, palpáveis, espaciais, “fortemente

implantada no imaginário popular ligada à expressão criadora difusa, interpretada como algo

emocional e não mental; como atividade concreta e não abstrata; como trabalho das mãos e

não da cabeça” [BARBOSA, 2006, p. 19].

Exemplo de que a imagem produzida por um artista pode adentrar em sala de aula,

amplia as possibilidades cognitivas dos alunos; por sua vez, o intérprete que visita O Museu,

também se oportuniza na ampliação de seus sentidos para perceber os fenômenos ali presentes,

como elementos de informação e, conseqüentemente, de aprendizagem. Giovanni Gallo, em O

Homem que Implodiu, justifica seu entusiasmo em criar uma metodologia que viesse fazer d’O

Nosso Museu, um museu interativo. Para ele:

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A técnica de comunicação parte da idéia de que o brasileiro tem os olhos na ponta dos dedos: sempre deve mexer nas coisas que observa. Em lugar de coibi-lo, achei mais interessante incentivá-lo a seguir esse estilo nacional. Em miúdos, o Museu é um grande brinquedo. Quanto mais o visitante mexe com os painéis, mais novidades ele descobre, e isso através dos recursos de nós, numa forma não pretensiosa e sim brincalhona, definimos como computadores de marca caipira [GALLO, 1996, p. 260].

Ao utilizar as palavras do autor de que “O Museu é um grande brinquedo”, através

dos recursos de nós, crio possibilidades de articulação entre os intérpretes e os saberes

marajoaras. Brincar n’O Museu é criar um universo de disposição múltipla de sentimentos,

idéias, sensações que, juntas, constroem a necessidade de uma educação compartilhada e

integrada de valores individuais e coletivos. O conjunto amplo de experiências vivenciadas na

“brincadeira” faz do visitante um agente produtor de conhecimento, ao contemplar, tocar,

interagir, relacionar, cognizar e contextualizar os saberes como prática criadora da cultura;

permite também criar poética para gerar códigos pessoais com liberdade de expressão e

autonomia.

Porém, gapuiar é brincar, é uma atividade lúdica para mostrar a essência infantil

d’O Museu do Marajó como um grande brinquedo impregnado de cultura e imagens. Para

Brougère [2008, p. 40], a criança:

dispõe de elementos dessa cultura, passa, entre outras coisas, pela confrontação com imagens, com representações, com formas diversas e variadas. Essas imagens traduzem a realidade que a cerca ou propõem universos imaginários. Cada cultura dispõe de um “banco de imagens” consideradas como expressivas dentro de um espaço cultural. É com essas imagens que a criança poderá se expressar, é com referência a elas que a criança poderá captar novas produções.

As novas produções, imagéticas ou não, é parte da percepção sensorial de todos

nós, seres aprendentes, crianças ou adultos. É o momento de apropriação livre e espontânea,

através do brincar, brincar para conhecer. A ação do brincar não é imposta ou manipulada, daí

a importância de apresentar o brinquedo Museu na sua dimensão simbólica e seu aspecto

funcional. As duas dimensões são indissociáveis no brinquedo. Para a autora [Ibid., p. 41]: “A

representação desperta um comportamento e a função se traduz numa representação.”

Exemplo: As bonecas de pano n’O Museu e sua função afetiva; as urnas marajoaras e a função

utilitária [agora estética]; a língua tupi e a função social; a fauna e flora e a função ecológica;

todos os saberes e a função cultural.

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CENA 2. O Museu é um grande brinquedo

Nesta cena, a narrativa é essencialmente imagética, complementada com algumas

inserções descritivas decorrentes da ação do Ver, Tocar e Contextualizar, no sentido de

aclarar as proposições levantadas.

PLANO 1. O Ver

Fotog. 19 - Contemplação. Fonte: MPEG

O sentido do Ver é o sentido da contemplação, visual é claro. É um encontro

analítico pelo olhar das imagens, das peças arqueológicas, das urnas, dos computadores

caipiras com todos os seus saberes. É quando as:

[...] organizações figurativas dizem respeito aos modos pelos quais o ambiente e as fantasias são percebidas, e, portanto, elas relacionam as formas como a realidade é captada e estruturada na consciência [...] Este estudo faz-se sempre com a contemplação de uma série de imagens desdobradas, incluindo os diálogos entre o analisando [com suas impressões e associações] e o analista [também com suas impressões e associações] [URRUTIGARAY, 2007, p. 158].

Para a autora, o processo de leitura de imagem é fundamental para um processo

analítico. Ler uma imagem n’O Museu é contemplá-la e analisá-la nas suas diferentes formas

de composição estética, passando pelas questões da técnica e dos demais conteúdos

circunstanciais da história e do sujeito que a produziu. O visitante-aprendiz, ao contemplar

uma obra d’O Museu, esta o conduz:

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à sensibilidade, ao conhecimento da beleza, intensificando suas reações intelectuais e afetivas, promovendo assim, o conhecimento de si mesmo e dos outros seres, pela assimilação que permite da experiência simbolizada na obra. Evidente que é um processo em curso no âmbito da cultura, onde a arte, assim como a linguagem, se desenvolvem como vanguarda do desenvolvimento da humanidade, da sociedade e do indivíduo [LOUREIRO, 1979, p. 47].

Loureiro [1979, p. 25-8] aponta também O Belo a ser contemplado como

verdadeira realidade, que humaniza o homem e lhe dá um caráter social; é o resultado de uma

síntese entre liberdade e necessidade. A beleza d’O Museu é a beleza em si. A busca do Belo é

um desejo de eternidade, de preservação, de compartilhamento, e isso pode ser encontrado na

natureza, ou na sua representação como campo sagrado imaginado, que o homem deseja

habitar. É uma educação do desejo, do olhar e do sentir. Sobre esse olhar desejante, anuncio

Meira [2003, p. 76], que diz:

O olho ouve e o ouvido vê [...] O desejo é investimento afetivo sob forma sensual corpórea, embora não imediatamente visível nem inteligível. O desejo age num plano mais complexo, compondo figuras esquivas com as paixões, metamorfoseando-se com o tempo, em sua insaciável voragem por um ser, um objeto, uma forma de completamento. Insinua-se nas práticas de modo escamoteado, mascarando-se.

A autora traz uma prática do olhar que se transforma no seu tempo de

contemplação, que procura se completar para poder existir. N’O Museu, esse olhar se

movimenta de forma insaciável, é voraz, e busca sua completude movido pelo desejo de

aprender. É o olhar do aprendente. Ao citar o livro Ensaio sobre a cegueira, de Saramago

[2002], refere Meira [2003, p. 77]:

O autor refaz um tal mundo, procurando mostrar a insuficiência das palavras para resgatar o afeto perdido e o que corresponde à iluminação das qualidades e terrores do homem e das mulheres em especial. Quanto aos museus

[grifo meu], diz Saramago, é uma autêntica dor da alma, de cortar o coração, toda aquela gente, todas aquelas pinturas, e sem terem diante de si uma pessoa a quem olhar.

Entendo as palavras de Saramago, referindo-se aos museus, como um mundo de

cegos para quem não deseja ou sabe “ver”, como diz o próprio autor: “redução da humanidade

a afetos e sensações mais básicos, progressivo obscurecimento.” O obscurecimento é a

ausência da relação construída entre o “ver” e a imagem. O ver a imagem é construir uma

relação entre imagem/pulsão, imagem/ação e imagem/relação. A primeira parte da imagem em

si, que é contemplada e pede para ser notada; a segunda, a ação de quem a contempla; e a

terceira, a relação das duas primeiras. Todas “levam a conceitos visuais abstratos [...] as

crianças manifestam esse sensível pensar. Nesse estágio de sincretismo visual [...] funcionam

como um esquematismo simbólico operante” [Ibid., p. 77].

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PLANO 2. O Tocar

Fotog. 20 – Contemplação, percepção e cognição. Fonte: Alves [2007].

O Tocar n’O Museu, além de se apropriar da contemplação do Ver, traz consigo a

percepção e a cognição. O Ver também tem esse privilégio. Para BARBOSA [2006, p. 18],

percepção “é o processo pelo qual o organismo se torna consciente de seu meio ambiente”; é a

decodificação dos fenômenos através dos sentidos que os percebe. A percepção antecipa a

cognição. São imagens construídas no pensamento, advindas do Ver para depois Tocar, ou

Tocar para depois Ver. Desse movimento híbrido resulta a cognição. Antecipo a

Contextualização [PLANO 3] para entender o gráfico abaixo. É um movimento construído

advindo do Ver para depois Tocar ou, em alguns casos, o processo inverso, Tocar para Ver. Os

dois gestos conduzem à terceira ação para a construção de analogias do conhecimento, o que

permite a contextualização dos fenômenos percebidos.

A cultura do tato, em muitos países, é considerada como um ato de resistência,

dependendo do contexto e da situação. Países como Inglaterra e Canadá são pouco flexíveis

nos assuntos relacionados à afetividade mediada pelo tato, diferentes da Itália, Espanha, França

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onde suas populações são altamente tátil-afetivas. Mais que isso, os latino-americanos, e num

adensamento da situação, nós brasileiros, por exemplo, são, em sua maioria, sinestésicos. Isso

passa pelas questões da aprendizagem, quando alguns teóricos da educação associam esse

processo aos sentidos e à sensibilidade corpórea. Os visuais aprendem mais pela visão do que

os demais sentidos; da mesma forma os auditivos pela audição; e os sinestésicos pelo

envolvimento sensível do corpo, às experiências do toque.

Em seu estudo sobre A comunicação não-verbal, refere [DAVIS, 1979, p.140]: “O

tato, o paladar e o olfato são sentidos que requerem proximidade. A audição e a visão, por

outro lado, podem ser considerados sentidos que permitem a experiência à distância”. O ato de

tocar é vontade expressa de um sentimento de aproximação íntima com a pessoa próxima ou o

objeto [in]desejado. Se o brasileiro tem os olhos nas pontas dos dedos, tudo que vê quer pegar,

é indispensável dizer que seu processo de comunicação é projetado, em grande parte, na

experiência de tocar as coisas. A mão, na sequência os dedos, são apenas instrumentos do

gesto mobilizado pela vontade e desejo do Ver, enquanto que o Tocar pode ser o resultado

deste processo, e reinicia outras leituras do Ver, agora de forma mais perceptiva e completa.

Nesse sentido, a leitura de percepção fenomenológica, já anunciada, adquire uma

conceituação semiótica de origem pierceana.36

A autora apresenta três olhares para perceber esses fenômenos, os quais trago para

alicerçar a percepção do intérprete n’O Museu. São eles: o primeiro olhar é o olhar

contemplativo do visitante, precisa dar um espaço de tempo para que os fenômenos possam se

mostrar e serem percebidos, e isso vai depender do modo como ele [fenômeno] aparece; o

segundo olhar é o observacional, quando o intérprete d’O Museu já conhece a existência dos

fenômenos advindos do primeiro olhar, e passa a discriminá-los e decodificá-los em seus

limites, formas, cores, tamanho, peso, altura, largura, e as significações de textos recorrentes,

ou seja, “daquilo que é nele irrepetível, único”, são as analogias; o terceiro olhar “surge da

capacidade de generalização, que os matemáticos levam ao seu ponto máximo. Trata-se de

A Teoria de Pierce [apud SANTAELLA, 2004]

abre possibilidades para a percepção dos fenômenos, e “nos adverte que o exercício da

fenomenologia exige de nós tão-só e apenas abrir as portas do espírito e olhar para os

fenômenos” [2004, p. 29-8].

36 Referente ao semioticista Charles Pierce; percurso metodológico-analítico dos fenômenos perceptivos, aquilo que atrai a sensibilidade humana, em qualquer tempo e espaço – crescimento da razão criativa corporificada no mundo; lógica, também chamada de semiótica [SANTAELLA, 2002, p. 2-3].

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abstrair o geral do particular” [2004, p. 31-32]. Esse movimento requer a presença do

intérprete que consiga extrair de um fenômeno o que ele tem em comum com os demais da

mesma classe ou o que tem de específico que o diferencia.

Dessa forma, o mundo é dado ao homem somente através do que ele percebe, imagina, pensa desse mundo, através do que ele deseja, do que ele sente. O mundo se oferece a ele como conjunto de significados, partilhado com outros homens. O homem só tem um mundo porque tem acesso ao universo de significados, ao simbólico, e é nesse universo simbólico que se estabelecem as relações entre os sujeitos e os outros, entre o sujeito e ele mesmo. Assim a relação com o saber, a forma de relação com o mundo, é a relação com sistemas simbólicos, notadamente com a linguagem [CHARLOT, 2000, p. 78].

A comunicação estabelecida entre os intérpretes e computadores é a forma de

linguagem presente nesta relação, é o funcionamento mental deste primeiro que conduz a

abstração de conteúdo presente no segundo. Portanto, entender os significados desse universo

simbólico é entender a linguagem d’O Museu na sua função de educar. A questão da educação

é uma visão privilegiada para quem pensa interagir com os saberes na perspectiva de se

construir uma relação entre a gestualidade e a linguagem, que, para Zumthor [1997, p. 205]

“exige três séries de definições: redudante, o gesto completa a palavra; precisando-a, dissipa

nela uma ambigüidade; enfim, substituindo-a, ele fornece uma informação, denunciando o não

dito.” A comunicação, portanto, é constituída de gestos que se configuram de acordo com o

espaço em que eles se desenvolvem e são assim distintos: “gesto do rosto [olhar e mímica];

gesto de membros superiores, da cabeça, do busto; gesto do corpo inteiro” [p. 206]. Entre os

gestos de Zumthor, encontra-se o tato que aqui contextualizo nesse processo de aprendizagem.

A experiência de tocar os computadores caipiras é uma intimidade positiva e

desejável, revela uma “afinidade [...] do nosso fazer com estilo próprio, original, intransferível,

e por meio dele nos re-conhecemos.” [ROSA, 2007, p.69]. Para Rosa, a experiência do fazer,

eu entendo como experiência do tocar, imprime o ato de brincar, com dimensão de idéia e

possibilidade. O intérprete pode ou não tocar os computadores, dependendo do seu desejo,

pode ou não brincar na gapuiagem, e isso está diretamente ligado a uma das características do

verdadeiro espírito lúdico, em que tudo depende da vontade de quem brinca, não está atrelada

a imposições. O visitante, intérprete, toca nos computadores e/ou objetos quando quer, quando

tem vontade, o que não acontece na maioria dos museus, em que a ordem é não tocar.

Desejado o ato de tocar os computadores n’O Museu, inicia-se o processo cognitivo na

apreensão dos fenômenos como elemento de informação, em seguida, a construção de

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conhecimento. Em seus estudos, Barbosa [2006, p. 16] refere-se ao livro “Artes visuais: da

exposição à sala de aula”, o qual comprova que:

os professores que buscam os museus e centros culturais como laboratórios de pesquisa visual para os seus alunos o fazem sabendo da importância que o desenvolvimento destes alunos – em fazer arte, em falar e escrever sobre arte – terá para o desenvolvimento para os processos cognitivos em geral.

No Brasil, o estudo sobre cognição se amplia com a importância dada à Arte-

Educação, temática discutida em congresso realizado na cidade de Campos do Jordão, São

Paulo, em 1983. Esse movimento “se afirma para desenvolver formas sutis de pensar,

diferenciar, comparar, generalizar, conceber possibilidades, construir, formular hipóteses e

decifrar metáforas” [BARBOSA, 2006, p. 16].

PLANO 3. O Contextualizar

Fotog. 21 – A intérprete expressa o saber mítico-lendário gapuiado. Fonte: Alves [2007].

Contextualizar os saberes n’O Museu é problematizar os fatos históricos e

circunstanciais desses saberes, bem como sua configuração no contexto social, cultural e

político; é estabelecer representações simbólicas no ato de gapuiar, perceber e interpretar os

diversos conceitos e significações de linguagem e conteúdo; é estabelecer relações entre o

sujeito desejante e os saberes desejados, um não existe sem o outro nessa relação construída,

como forma de percepção e apropriação. Um percebe e apropria, o outro é percebido e é

apropriado. São variadas as formas de se apropriar dos saberes dentro d’O Museu, ainda que

tenha uma diversidade para aprender. Essa questão do “aprender” é mais ampla que a questão

do “saber”.

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Para Charlot [2000, p. 60-1]: “Não há saber sem relação com o saber [...] não há

saber sem um sujeito engajado”, pré-disposto a aprender voluntariamente. Parto dessa

afirmativa para posicionar o visitante-aprendiz, frente a frente com os saberes marajoaras e

identificar as possíveis relações construídas. Ao apropriar-me do suporte teórico do autor,

arrisco afirmar que, para viver certas experiências dentro n’O Museu, é permitir assegurar um

domínio do mundo no qual se vive, é comunicar-se com outros seres, míticos e reais, e

partilhar o mundo fenomênico com eles. Nessa experiência, ao fazer sua gapuiagem, o

visitante-aprendiz, intérprete, torna-se maior e mais independente, procura por mais saberes e

instala-se como sujeito do saber para relacionar-se com o mundo marajoara.

Charlot [2000, p. 60] busca na filosofia clássica a essência do homem pela razão,

mas não perde o referencial das paixões e das emoções do sujeito que “desenvolve uma

atividade que lhe é própria: argumentação, verificação, experimentação, vontade de

demonstrar, provar, validar. Essa atividade é uma ação do sujeito sobre ele mesmo”, somada

aos sentimentos que o move e o conduz. O autor dialoga com Monteil [1985] e,

se dedica a discutir a informação, o conhecimento e o saber. A informação é um dado exterior do sujeito, pode ser armazenada, estocada, inclusive em um banco de dados; está sob a primazia da objetividade. O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivas-cognitivas; como tal, é intransmissíveis, está sob a primazia da subjetividade. Assim como a informação, o saber está sob a primazia da objetividade, uma informação que o sujeito se apropria [...] sob este ponto de vista, também é conhecimento [...] O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos; torna-se, então, “um produto comunicável”, uma informação disponível para outrem [1985, p. 61].

Nessa perspectiva, conceituo “o que é o saber?” para aclarar, em primeiro

momento, a pergunta problema de meu objeto. Assim sendo, os saberes marajoaras gapuiados

pelos intérpretes é apenas o resultado de uma relação construída entre esses visitantes, com

qualidades afetivo-cognitivas, e os próprios saberes; é a apropriação do espaço de

aprendizagem como seu lar, seu jardim, seu sótão ou laboratório para entender o todo, o

conhecimento, como resultado de uma experiência pessoal intransmissível.

A prática de tocar os computadores caipiras é uma forma de construir um saber

desejado, e deve ser aprendida, enquanto prática, para ser dominada e apreendida. Essa prática

mobiliza informação, conhecimento e saber. Como banco de dados, O Museu estoca

informações de importância e interesse por parte de quem procura conhecimento, mas isso não

é suficiente se o visitante não se transforma em visitante-aprendiz, ou seja, não exerce a prática

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de tocar os computadores e construir o seu saber. O movimento desse percurso é o movimento

da relação que se edifica, que é a relação com o saber. Em outras palavras, esse saber é o

produto de relações epistemológicas entre os visitantes-aprendizes e os saberes d’O Museu do

Marajó, são relações sociais, de espaço e tempo, de validação da cultura local; é quando as

Instituições e a comunidade científica o reconhecem. Esse reconhecimento pode ser localizado

em autores que apontam uma relação direta entre cultura e saber. Exemplo disso é Ribeiro

[1985, p. 127], que diz:

Cultura é a herança social de uma comunidade humana, representada por acervo co-participativo de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua existência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação.

Vejo O Museu então com toda sua plenitude: herdeiro social da comunidade

marajoara; traz consigo as representações que promovem o provimento da subsistência; é uma

instituição reguladora das relações sociais e de saberes, de valores e de crenças; exprime

criatividade artística em uma ação motivadora de forma individual e coletiva, na elaboração de

projetos sócio-culturais e educacionais.

Essa construção conceitual da cultura promovida dentro d’O Museu é agraciada

com a classificação de Morais [2002] ao afirmar que a cultura tem três sistemas componentes:

um sistema interativo, um sistema associativo e um sistema ideológico. O primeiro sistema

resulta da necessidade humana de se adaptar à natureza, adequando-a também às suas

exigências de sobrevida; o segundo constitui o empenho de um povo em organizar relações

sociais de maneira mais ou menos formal; e o terceiro, sistema ideológico, compreende a idéia

e os sentimentos gerados no esforço por compreender a experiência coletiva e por justificar ou

questionar a ordem social, nisto tudo situado, como imaginário, as condições do existir

individual.

De forma mais específica, a comunidade humana a qual se refere Ribeiro, pode ser

atribuída ao povo do Marajó numa apropriação de conceitos e significações. É a comunidade

do homem amazônico-marajoara numa representação co-participativa dentro do Museu, que

passa a ser Instituição reguladora dessas relações sociais e dos saberes pertinentes, dos valores

e crenças de quem os constitui explicando sua própria existência. Ao visitar aquele

espaço/território, o homem visualiza, contempla, toca, interage, dinamiza, expressa, cria,

motiva a sua própria ação criadora num fluxo permanente. Essa necessidade humana está

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adequada à natureza do próprio homem, ao associar valores da vida cotidiana com os valores

em exposição. Sua condição de aprender está em compreender essa experiência individual e

coletiva, que o leva a questionar a ordem social a qual pertence. Se for estabelecida uma

sociologia da relação com o saber marajoara do visitante-aprendiz dentro d’O Museu, cada

intérprete escolherá sua abordagem porque cada um tem a sua maneira de se relacionar, de

gapuiar saberes, ou seja, “cada um descobre o seu Museu”.

CENA 3 . Expressão dos sentidos: o brincar e a capacidade criativa

Nas ilustrações a seguir, apresento a expressão dos sentidos como parte conclusiva

da dinâmica. É o momento em que as crianças configuram os saberes gapuiados e os seleciona

em categorias ilustrativas através do desenho, de forma lúdica e brincalhona, onde o brincar é a

capacidade criativa de produzir conhecimento. Sobre isso, pergunta Rosa [2001, p. 44-5]: Teria o percurso realizado até aqui nos conduzido à superfície? [...] a aventura do conhecimento é algo que sempre nos escapa, exatamente como aquele coelho branco [de Alice no País das Maravilhas] [...], o brincar – como o conhecer – estão sempre a meio caminho entre os conteúdos da vida subjetiva [sonhos, fantasias, desejos] e a riqueza dos objetos oferecidos pela realidade exterior [O Museu]. [...] o objeto simbolizado abre a possibilidade da criança, capaz, só agora, de retirá-lo da pura objetividade.

Para não deixar escapar o “coelho branco do conhecimento”, realizo a “ciranda de

conversa” [CARVALHO, 2006] para identificar os saberes mais emergentes e que flutuam na

percepção dos intérpretes infantis após a experiência de visitar O Museu. Esclareço que esta

atividade conclui a dinâmica da percepção triádica nesta segunda sequência. É importante não

confundir este momento da dinâmica com o terceiro momento dos demais intérpretes

anunciado no terceiro capítulo.

Sentados em minha volta, os intérpretes ouvem as instruções planejadas para este

momento, apresentadas passo-a-passo para não limitar a capacidade de apreensão e

compreensão do que é solicitado. Distribuo papel a cada um, e disponibilizo caixas de lápis de

cor, de cera, ao centro da roda. Em seguida peço que desenhem ou escrevam o que mais

gostaram da visita ao Museu. A expectativa criada é visível aos olhos dos intérpretes e

pesquisador. Os primeiros, para definirem o que escrever ou desenhar diante da diversidade de

conteúdos, o segundo pela preocupação de não infantilizar e tornar reducionista uma atividade

que parece estar desgastada no cotidiano de sala de aula. A questão era saber se esses

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intérpretes já haviam desenvolvido n’O Museu semelhante atividade. Curiosamente, para eles,

era a primeira vez que isso acontecia. Para este momento, busco Carvalho [2006, p. 188]: Muitas são as expressões que podem ser usadas para tentar expressar, o que significa o universo amazônico. Para uns pode ser belo, misterioso, rico, paraíso, para outros pode ser inferno, lugar distante perdido no meio do mundo. No universo amazônico, independente de qualquer palavra que se use para lhe atribuir um significado, não se pode esquecer que o imaginário e a realidade estão sempre presentes na vida de todo ser humano. A realidade segundo Teves [1992], está relacionada ao ser objetivado e as representações reais e imaginárias, pois aquilo que se dá a conhecer é a base de onde se destaca o ser conhecido.

A autora reporta-se a Teves [1992] para apresentar a posição do indivíduo [intérprete] na

realidade e construção de mundo, ao aprender diferentes modalidades da realidade empírica

vivenciada n’O Museu: “a realidade das idéias, dos sonhos, das crenças, das emoções, das

insatisfações, enfim a realidade interior e exterior a todos nós e que se entretece numa totalidade

vivida e constituída socialmente [1992, p. 188].”

Fotog. 22 – Ciranda de conversa 2: a expressão dos sentidos. Fonte: Alves [2007] Fotog. 23. Recursos materiais. Fonte: Alves [2007]

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Decidido o que desenhar, o menino levanta para pegar os recursos materiais e

iniciar sua expressão. Esse material, entre outros, é utilizado por [URRUTIGARAY, 2007, p.

142] em seu livro Interpretando Imagens Transformando Emoções: “Costuma ser um

instrumento muito apreciado por crianças e pacientes idosos, porque a técnica realiza logo uma

composição, já que preenche espaço mais rapidamente, e é fácil de ser usado.” Trago os

conceitos de Urrutigaray para trabalhar o desenho como técnica expressiva viabilizadora de

uma conexão entre o Homem e O Museu. Para ela, este trabalho “possibilita sua reorganização

por meio da união de seus sonhos, fantasias, ideais com rabiscos, desenhos, colagens,

construções com caixas de areia etc., os quais aproximam o imaginário com o real do

[intérprete].” [...] Por meio da imaginação e das fantasias, [o intérprete d’O Museu reorganiza] suas sensações e idéias, unindo sua capacidade e habilidade de poder relacionar suas próprias imagens com os determinantes culturais e as situações da vida cotidiana. Aos poucos, ele percebe e compreende, pela relação amorosa estabelecida no Encontro Analítico [ciranda de conversa], a sua implicação no engajamento e na aceitação de sua totalidade psicológica: a união, ou síntese, do sensível e do inteligível [URRUTIGARAY, 2007, p. 41].

Fotog. 24 – Cada um descobre o seu Museu. Fonte: Alves [2007].

[...] O lápis de cera: chamado o seu uso por “encáustica” [tinta de cera] que corresponde “as técnicas de pintura baseada no uso de pigmentos e cera, tratados a quente, que se caracteriza pelo efeito translúcido” [CUNHA, 1982, p. 295]. A prática de desenho e pintura com este material já era conhecida pelos egípcios, gregos e romanos há 559 anos a.C. Formado por meio da união de pigmentos com cera, aderidos pelo aquecimento, eles têm a facilidade de aderir a qualquer tipo de superfície e são muito fáceis de manuseios. É um excelente meio de trabalho, já que não oferece resistência a qualquer tipo de demanda apresentada, trazendo sensações de firmeza e segurança. Possui a característica de cobrir todo o fundo ao qual se interpõe. E, mesmo oferecendo uma opacidade [densidade] no trabalho, permite a gradação de cores, e efeitos de luz e sombra quando trabalhados do mais claro ao escuro, oferecendo sensações de fusão, comunhão, união de forças. Como o seu uso é fácil de ser controlado, aporta também a idéia de domínio e firmeza diante do real [imaginário], facilitando o emergir dos sentimentos isolados, frios, distantes [URRUTIGARAY, 2007, p. 142].

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Apresento agora algumas expressões individuais de saberes gapuiados pelo grupo

focal após a brincadeira n’O Museu, bem como o relato dos respectivos intérpretes:

SABER 1: O lugar

Fotog. 25 – Expressão da intérprete Maria, 12 anos. [2007].

Nesta expressão, a intérprete revela um dos saberes apreendidos durante sua

gapuiagem. Amplia sua experiência de visitar O Museu com sua vivência e cotidiano, e

contextualiza sua realidade com os elementos da linguagem visual de seu desenho; o lugar

onde se vive, se brinca e se relaciona.

Maria: Ah! Eu fiz assim... a minha casa, taí dentro do Museu [...] igualzinha [...] vi lá no final [do salão] junto com outras coisas [...] eu pintei igualzinha [...] madeira sim senhô [...] a gente brinca perto do campo que fica perto. É assim, né [...] eu já vim no Museu, mas não tinha reparado direito assim... pra vê, desenhar. Legal, muito legal. Ah! Fica perto do Choque.

Choque é o nome de um bairro do município de Cachoeira, situado às margens do

rio Arari. As casas são predominantemente de madeira e suspensas tipo palafitas para

protegerem-se das cheias em tempos de chuva. O nome choque, segundo os moradores, vem

da abundância de peixe poraquê entre as várzeas, que dá choque ao ser tocado. As casas desse

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bairro são interligadas por estivas de madeira. O desenho foi abstraído de uma maquete

localizada no final do salão de exposição. No fotograma a seguir, a referida maquete é revelada

por inteiro no desenho de Jonison.

SABER 2: O lugar do homem e da cultura marajoara

Fotog. 26 – Expressão de Jonison. Fazenda típica do Marajó. [2007].

Jonison gapuia os saberes do campo ao visualizar uma maquete de cinco metros

de tamanho dentro d’O Museu. A representação é surpreendentemente fiel, com a validade do

pesquisador, ao considerar a relação estabelecida entre as formas e os espaços situacionais de

cada desenho. Outra relação construída é percebida entre o intérprete e sua identidade de

lugar. Solicitado para que explicasse o seu desenho, responde:

Jonison: Vi aquelas casinhas [maquetes] lá, né? E... meu pai trabalha numa fazenda aqui perto, bem parecida com esta aqui, aqui perto, do outro lado do rio [aponta com o braço estendido]. Tem até aqui uma ponte pro barco, igualzinha, essa casa, essa outra [...] tem dois “irmão” que trabalha lá também.

O desenho do vaqueiro montado atrás do boi é um acréscimo de seu imaginário.

Da mesma forma os barcos sobre as águas azuis37

37 No Marajó a água dos rios é barrenta decorrente da argila que emoldura a paisagem ribeirinha e várzeas; os rios arrastam plantas, galhos, folhas e deixam raízes expostas às margens, ricas em propriedades orgânicas da floresta amazônica.

[idéia de águas oceânicas] e o verde das

matas na fazenda; um poço artesiano ao lado da casa do patrão, esta representada em escala

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maior com janelões, de dois pavimentos e escadaria na porta principal; ao lado, uma pista de

pouso de aeronaves denuncia o poder econômico dos latifundiários, que visitam suas fazendas

sazonalmente; a casa do vaqueiro é expressa em escala menor à esquerda do desenho, na beira

do rio; os currais dos bois também são revelados em formas quadráticas e divisórias para a

seleção das reses, no objetivo de vacinar e cuidar da saúde do gado, separar o boi gordo do

magro, pronto para a venda ou abate. São saberes contextualizados na vida cotidiana do

menino intérprete que visita O Museu.

SABER 3: A presença da religiosidade

Fotog. 27 – Expressão de Évila, 1ª série. Estuda na Escola José Afonso Viana. [2007].

Ao expor seu desenho, Évila verbalizou parte de seu cotidiano com a família, e

deixou clara a relação com os saberes religiosos, encontrados n’O Museu.

Évila: É porque vou assim... no domingo pra missa com minha mãe [...] eu vi um santo [imagem] aí no Museu e aí me lembrei da missa [...] aí fiz essa igreja. O vrido [vidro] é assim todo colorido.

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SABER 4. Afetividade

Fotog. 28 – Ilustração da boneca de pano gapuiada n’O Museu [2007].

Há uma seção de bonecas de pano dentro d’O Museu. São confeccionadas pelas

avós e madrinhas na ausência das bonecas industrializadas. Cada uma tem uma história de

sentimentos afetivos. Évila também tem a sua.

Évila: “E essa boneca aqui é igualzinha uma que eu tinha. Minha avó me deu.Eu ajudei ela a fazer... Tem um bocado aí dentro [...] eu queria uma pra mim, mas tá tudo sujo. Não pode levar.”

Évila tem consciência de que as bonecas expostas n’O Museu não podem ser

levadas pelos visitantes. Pressupõe-se que ela entende a função estética daqueles elementos,

embora sujos, empoeirados, remetem à memória afetiva de quem os contempla, às histórias de

vida das avós, a infância locada em ambientes simples, de gestos simples. As bonecas eram

retalhos de pano, moldados e costurados para presentear as meninas do lugar. O processo do

“fazer a boneca” é internalizado como uma relação construída entre avó e neta, mãe e filha,

presente nas lembranças da Intérprete.

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SABER 5. Preocupação ambiental

Fotog. 29 – Expressão de Maria, 12 anos. [2007].

A natureza está presente no cotidiano dos cachoeirenses. No Marajó, a

predominância do sol advém das coordenadas próximas ao eixo do equador, zona tórrida.

Jurandir [1997, p. 15] inicia o “Chove nos Campos de cachoeira” com o capítulo “A noite

vem dos campos queimados”:

A tarde sem chuva em Cachoeira lhe dá um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como que está feliz por esperar a morte. Os campos não voltaram com ele, nem as chuvas, nem os passarinhos e os desejos de Alfredo caíram pelo campo como borboletas mortas. Mas para longe já eram os campos queimados, a terra preta do fogo e os gaviões caçavam no ar os passarinhos tontos. E a tarde parecia inocente, diluída num sossego humilde e descia sobre os campos queimados como se os consolasse [...] os campos de Cachoeira não eram campos cheios de flores, como aqueles campos de uma fotografia de revista.

O romance de Dalcídio Jurandir traz o personagem Alfredo, menino com a idade

dos intérpretes desta dinâmica [imagino-o entre eles], como que contasse a vida nas tardes

quentes que torram os campos de Cachoeira. A intérprete Maria desenhou o sol e sabe o

significado das cores quentes para representar o seu sentimento em relação ao clima

marajoara. A cor vermelha é vibrante ao centro do desenho e causa uma ação determinante do

calor. Em Cachoeira, após o almoço, a cidade parece ficar deserta, poucos se arriscam a

transitar pelo sol escaldante [raios solares entre a cor amarela], que se abranda ao cair da

tarde. Nuvens [na cor azul] escurecem na precipitação e anunciam, quando em vez, uma

chuva para aliviar o calor. Esta representação de chuva na região é aclarada no desenho de

Rafale.

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Fotog. 30 – Expressão 1 de Rafale. Na dúvida, não sabe se tem 12 ou 13 anos. [2007].

Rafale também apresentou sua preocupação com o meio ambiente. Em seu

desenho percebe-se a presença predominante de um Brasil rural, e autentica o Marajó como

território brasileiro ao fincar a bandeira e escrever o nome de seu país. O campo aparece com o

traço verde e a presença do boi como símbolo das tradições culturais e econômica do lugar, da

mesma forma o pássaro pousado em um galho de árvore, emoldurado como um quadro,

espécie de índice, signo indicial, da mata ainda presente no seu cotidiano. A casa é o abrigo

das chuvas em traços diagonais sob a nuvem. Em sua voz, “brinca” sério com o amigo e lhe

chama a atenção por atitudes menos educada em relação aos animais. Consciência e

preservação.

Rafale: Eu gostei dos passarinho, umas fotos com nome esquisito [científicos]. A gente precisa é... Como é mesmo? É... preservar. Isso! Preservar! [aponta para o colega ao lado] Ele mata passarinho, esse aí!

Amigo: Mentira! [risos]

Rafael: É sim, outro dia eu vi ele atirar uma pedra no bicho!

Amigo: Ah! Foi só pra espantar ele! Tava brincando só!

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SABER 6. Identitário mítico-lendário

Fotog. 31 – Desenho de Ciléia, 11 anos [2007].

A natureza vem agora acompanhada das lendas e mitos. Ciléia é a mesma menina

que aparece no fotograma 21, e vestida de sereia no fotograma 33. Ela faz parte do GAFMA e

interpreta a personagem “Sereia” nas apresentações folclóricas do Grupo. Para aclarar, o

desenho da sereia antecedeu à performance de Ciléia. Após o intervalo do almoço, depois da

dinâmica, o Grupo me surpreendeu ao aparecer vestido com personagens representados. Isso

não poderia ficar de fora deste estudo, por quatro motivos: primeiro, porque entendo a real

importância, para essas pessoas, o que fazem para a preservação da cultura marajoara;

segundo, por terem atendido ao meu pedido de participarem voluntariamente da dinâmica,

meus parceiros-mirins nessa jornada, e que me ajudaram a entender melhor o ambiente da

pesquisa; terceiro, pelo compromisso assumido de fazê-los intérpretes de um mundo chamado

Museu do Marajó, com sua história e missão; e o quarto, por entender que as diferentes

formas de representação da cultura marajoara, a pesquisa por eles realizadas no processo de

construção destas expressões, também é forma de produzir conhecimento e saberes38

38 Charlot [2000] traz analogias e diferencia informação, conhecimento e saber.

. A

seguir, a expressão de Ciléia e a performance do grupo focal.

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RELAÇÃO COM O SABER

Fotog. 32 – Expressão de Ciléia. [2007]. Fotog. 33 – Ciléia interpreta a sereia Iara39

os meninos brincam e se vestem de índios. ao se apropriar da representação mítica da personagem. Ao fundo, 40

39 A Iara é um dos seres mitológicos da Amazônia. 40 Na performance, Iara está sentada à beira de um riacho [declive do terreno com água de chuva – jardim d’O Museu], penteia os cabelos e canta para atrair os índios. Seduzidos, eles se aproximam e são levados para as águas e desaparecem. São saberes mítico-lendários da Amazônia, apropriados pelos intérpretes após a gapuiagem.

O cenário é o jardim d’O Museu. Fonte: Alves [2007]. O Museu tem a missão de resgatar e conservar a nossa história ajudando-nos a preservar a nossa identidade e, ao mesmo tempo, incentivando na comunidade o interesse para o progresso intelectual [...] Museu quer dizer pesquisar e neste caso seria pesquisa voltada à ação, para criar atividades produtivas: O Museu deveria ser pólo de desenvolvimento através da cultura [GALLO, 1996, p. 192].

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SABER 7. Os motivos marajoaras

Fotog. 34 – Expressão de Ozil [11 anos] com motivos marajoaras. [2007].

Ozil: Isso aqui é uma urna que os índios faziam quando eles viviam aqui no Marajó. A gente acha nas fazenda. Isso aqui é uma tanga que as índias usavam para se proteger dos peixe, né? [Todos riem] É... Elas usavam assim pra não... tomar banho de rio, entendeu? Faz parte da cultura daqui, esses desenhos. Inclusive tem roupa que fazem para vender com esses desenhos, bordado, olha ali na parede [aponta os quadros com os bordados]. É tudo nosso, daqui do Marajó.

A fala do intérprete revela o sentido de pertencimento ao se referir aos desenhos

marajoaras; ele se apropria do lugar, e se sente parte daquela cultura. Percebe-se que n’O

Museu o visitante descobre vínculos e a sensibilidade fala mais alto em função da própria

metodologia, que leva a uma reflexão; ao mesmo tempo em que promove esse

reconhecimento, o visitante se reconhece frente aos saberes e se apropria dele, como se

dissesse: “faço parte desse universo”.

Ao mostrar seu trabalho, Ozil se diz desenhista e sabe expressar o que mais lhe

chama a atenção n’O Museu. Os cacos arqueológicos, as urnas com desenhos marajoaras lhe

imprimem um sentimento de orgulho ao descrever seus traços. Da mesma forma Cleberson ao

desenhar a fachada de uma casa. Para ele, os “motivos” [é como chama os motivos

marajoaras], são o símbolo maior da cultura do Marajó.

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Cleberson: Nas rua tá tudo pintado aqui, os poste [de energia], os bancos, a lanchonete, o restaurante, na escola [...] e as casas também, né? Até em Salvaterra ta pintado com esses desenhos, Soure.

Fotog. 35 – Motivos marajoaras. Autor: Cléberson, 12 anos. [2007].

A percepção de Cleberson é contextualizada em uma dimensão ampliada e

imprime uma identidade geográfica que ultrapassa os limites do município onde mora. Para

ele, a casa pintada com motivos marajoara é a casa dos moradores de cachoeira e outros

municípios como Salvaterra e Soure. Lembrando Benjamim [1993, p. 198], “Quem viaja tem

muito que contar”. Para a idade do narrador, conhecer outras cidades da ilha do Marajó é uma

aventura privilegiada, estabelecer as relações das simbologias percebidas n’O Museu com as

das cidades visitadas, é um ganho para as experiências do intérprete nessa “brincadeira”.

O desenho é uma das inúmeras possibilidades de expressão, embora alguns

educadores pensem que a atividade de desenhar está banalizada nas atividades escolares,

ainda assim, traz um imaginário em síntese da criança, no sentido de brincar com as formas,

as cores, as texturas, e dão condições visuais e duradouras para esboçar uma diagnose da

realidade do aprendiz, é uma espécie de jogo, em que o intérprete desenha o imaginado e cria

relações de brincar com ele mesmo. Nesse sentido, aproprio-me dos conceitos de Carvalho

[2006, p. 244-5]:

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A criança brinca pelo simples fato de brincar, e é ai que a liberdade está vivificada, na capacidade da criança se afastar da vida cotidiana e entrar no mundo imaginário do brinquedo. O jogo, o brincar de maneira geral, se apresenta de forma dinâmica. É uma forma de pensar, agir e sentir, que se expressa através da manifestação lúdica de quem brinca, extrapolando a visão de uma simples atividade. O jogo se desenvolve dentro de limites temporais e espaciais próprios, quem brinca tem autonomia para determinar, o inicio e o fim da brincadeira. Pois no brincar, no seu acontecer lúdico tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação e separação.

Fotog. 36 – Avenida d’O Museu, Nº 1983. MPEG Fotog. 37 – Expressão 2 de Rafale. [2007].

Nos fotogramas acima vemos uma relação de saber na expressão 2 de Rafale. Na

primeira expressão [fotog. 30], identificamos saberes gapuiados de forma específica; na

expressão 2 [fotog. 37] visualizamos a fachada d’O Museu, como identidade maior do qual se

orgulha e admira.

Rafale: Tá feio meu desenho, queria que ficasse mais bonito. O Museu não é assim [...] Ah! Tá tudo aqui. O Museu é tudo pra gente que mora aqui, pra mim. Olha, tem tudo aqui dentro [risos geral]. Tudo que vocês fizeram aí tem aqui dentro [para os colegas]. Isso pra mim é importante, ora!

A intérprete mostra em seu desenho uma relação entre sentido e significado de sua

percepção global dos saberes. Para ela, O Museu é síntese de todos os saberes visualizados.

Essa relação surge ao longo da dinâmica quando se permitiu brincar na gapuiagem, deixando-se arrebatar por um novo significado que é criado enquanto brinca [...] Algumas ações das crianças confirmam as teses de Brougère [1989] e de Elkonin [publicadas pela primeira vez em 1948], sobre a natureza social da brincadeira: a presença do cinegrafista em classe com seus equipamentos e apetrechos de vídeo [grifo meu], chamaram a atenção das crianças, que tentaram imitá-lo, recriando a câmera com os blocos. [...] no entanto, ficou claro o potencial da brincadeira como espaço de interação e construção de conhecimento pelos alunos na idade pré-escolar, quando a necessidade de pensarem sobre a filmagem foi explicitada por mim [WAJSKOP, 2007, p. 98].

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Wajskop também utilizou a técnica da videogravação em sua experiência com

crianças na sala de aula [eu n’O Museu]. O que diferencia a minha experiência com a

experiência da autora, é que os intérpretes que participaram desta dinâmica tríade, já sabiam da

presença da câmera desde o primeiro momento antes de adentrarem n’O Museu. A estratégia é

criar uma intimidade durante a aproximação, explicar o objetivo e relevar a importância e a

participação deles para a pesquisa, deixá-los bem à vontade, “quebrar o gelo” do

estranhamento e estabelecer uma relação íntima com o instrumento novo, que não é tão novo

para quem conhece os mecanismos da televisão, dos jornais, os repórteres, os cinegrafistas e

todo um aparato de imagens presentes no cotidiano dessas crianças.

O importante, nesse processo, é não subestimar essas inteligências e pensar que a

câmera digital vai interferir na performance dos intérpretes. O que determina o rumo e a

estratégia metodológica da pesquisa, a exemplo desta, não é o instrumental câmera, mas a

maneira de se construir relações entre os sujeitos, intérpretes e pesquisador, relações de

confiança, de compartilhamento, cumplicidade, envolvimento e domínio sobre o instrumental

eletrônico. O domínio referido não é o operacional da câmera, é o processo mental criado e

estimulado naturalmente e sem pressa nos intérpretes quanto ao comportamento diante da

lente. É um processo de adaptação e conquista.

É claro que a proposta foi sugerida intencionalmente, para que pudéssemos, de alguma maneira, avaliar as possibilidades das crianças em imaginarem uma situação e brincarem com ela. Como encontrei dificuldades em propor situações de brincar de fato, principalmente por parte da professora, atuei no espaço possível, qual seja, o desenho [WAJSKOP, 2007, p. 100].

Ao considerar os objetivos dessa dinâmica, apresento-a como um ensaio das ações

a serem desenvolvidas pelos intérpretes adultos, que fazem parte deste estudo no próximo

item. Analiso “como item destacado as produções das crianças, discriminando aquelas que são

resultados de propostas dirigidas e aquelas que foram elaboradas livremente por elas” [2007, p.

79].

Destaco o tempo de duração da atividade, uma manhã e parte da tarde n’O Museu,

ao perceber que os resultados foram compensatórios e confesso que foi uma grande aventura.

No decorrer do processo, videogravei a performance dos intérpretes infantis para que nada

fosse desperdiçado. É claro que a seleção das vozes e imagens é um critério de ordem e

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distanciamento para não contagiar emocionalmente o que proponho pesquisar. Contudo,

expressa [BARBOSA, 2006, p. 21]: “Desenvolver a cognição e potencializar a performance

acadêmica, a segunda sendo para mim a mera consequência da primeira”. Em síntese, Ver,

Tocar e Contextualizar é um enfoque cognitivista e de aprendizagem n’O Museu, centrado na

mobilização dos fenômenos que são percebidos, apreendidos e cognizados.

Às crianças do grupo focal, minha gratidão; aos autores minha reverência às suas

idéias que ajudaram a consolidar esse estudo, tirado das entranhas, mas com a lucidez de quem

deseja contribuir para a educação de minha gente. Como os intérpretes, envolvidos com eles,

também sou sujeito nesta pesquisa-ação que ora se encerra, e entendo que a ação desenvolvida

na dinâmica mudou a visão de visitar O Museu do Marajó para esses aprendizes.

FUSÃO

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SEQUÊNCIA 3. GAPUIAGEM DE SABERES

Após a experiência com as crianças, entro novamente n’O Museu, agora, mais

confiante e adequadamente preparado para buscar a[s] resposta[s] do problema da pesquisa.

Aproprio-me do espaço museológico e mergulho no rio de saberes para iniciar a gapuiagem

com os intérpretes. Esse processo é realizado em dois momentos: 1. Roda de Conversa41

Fotog. 38 – Fonte: Teixeira [2007]

antes

da entrada no salão de exposição; 2. Gapuiagem entre os saberes, quando os visitantes-

aprendizes [intérpretes] entram n’O Museu. Antes, porém, apresento, na Panorâmica 1, um

fotograma de como realizo a “roda de conversa”; na Panorâmica 2, os fotogramas que revelam

os computadores e seus intérpretes para a visualização do cenário onde se realizam as cenas da

gapuiagem.

PANORÂMICA 1. Roda de conversa

A roda de conversa ocorre antes da visitação, ou seja, é o primeiro momento antes

da gapuia, quando o pesquisador recebe os visitantes e reforça o convite para que eles possam

fazer parte deste estudo. Na oportunidade, são colocados os objetivos e a importância da

pesquisa e solicitado o voluntariado destes intérpretes.

41 Técnica de abordagem utilizada por Fares [2003] em sua tese de doutorado intitulada Cartografias Marajoaras: cultura, oralidade, comunicação. A autora reúne seus intérpretes [sujeitos da pesquisa] para ouvir os relatos sobre os saberes marajoaras.

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O local das rodas de conversas é um auditório equipado de som e vídeo para as

preleções aos visitantes, uma espécie de ante-sala com cadeiras estufadas e um balcão de

atendimento construído em bambu para combinar com a lateral de uma das paredes. Uma

pintura em Óleo sobre tela mostra uma paisagem da cidade de outros tempos; outros painéis

na parede contornam o ambiente como um prenúncio do que pode ser encontrado no salão de

exposição. Ambientados, os intérpretes exercitam suas curiosidades de forma espontânea e

desenvolvem o que Freire chama de curiosidade epistemológica.

O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto mais epistemológica ela vai se tornando [FREIRE, 1999, p. 97].

A conversa é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada. Dessa forma,

conduzo os intérpretes ao desafio de descobrir os saberes d’O Museu e os deixo

epistemologicamente curiosos antes de adentrarem no salão de exposição. Para Freire [1999, p.

96]: Antes de qualquer tentativa de discussão de técnicas, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica assim, é preciso, indispensável mesmo, que o professor [pesquisador] se ache repousado no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade humana.

Ainda Freire, “o exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as

emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do

achado da sua razão de ser”. N’O Museu, esses intérpretes imaginam possibilidades, hipóteses

em torno do universo marajoara que podem ser configuradas, ou não, durante a gapuiagem.

Ao encontro dessa discussão, trago Menezes [1993], que, também, traz a curiosidade como

ponto de partida para se construir uma narrativa na história de sua intérprete Scherazade42

42 Contadora de história; que seduz seu ouvinte com narrativas criadas despertando permanente curiosidade, desejo de saber o desfecho da história que nunca acontece.

, na

obra Do poder da palavra: ensaio de leitura e psicanálise. Qual personagem, multiplico a

curiosidade dos visitantes sobre os “mistérios” d’O Museu do Marajó perguntando-lhes sobre

o que esperam encontrar lá dentro, que saberes marajoaras têm esses visitantes antes de

entrarem n’O Museu? A “astúcia” desta provocação é lidar com o desejo dos intérpretes, o

desejo de conhecer, de procurar saber sobre, de entra n’O Museu e começar a gapuiar.

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E todos sabemos que o Desejo não tem um objeto que o aplaque; uma vez acumulado, ele ressurge do outro, e assim sucessivamente [...] A função de Scherazade era alçar sua vontade, tendê-la para algo por vir. Ela age no sentido de acutilar o Desejo, de atiçá-lo [...] por uma noite. Uma vez supostamente aplacado, ele renascerá. O objeto do Desejo está sempre além, sempre adiante, visa sempre um além que escapa [MENEZES, 1993, p. 49-0].

Nesse sentido, acrescento que o desejo é uma categoria que acompanha os

visitantes d’O Museu em sua trajetória do antes, durante e depois da gapuiagem. Antes por

desejar saber o que encontrar; durante por desejar saber como funcionam os computadores

caipiras, e depois por desejar voltar ao Museu, por não ter tempo suficiente para conhecer os

saberes marajoaras em uma só visitação. É um desejo que acumula sucessivamente, que

renasce e que está sempre adiante do intérprete. Arrumadas as cadeiras e os instrumentais,

apresento os intérpretes da pesquisa e os autores que a eles se referem.

CENA 1: O intérprete

Normalmente, emprega-se o vocábulo intérprete quando se alude ao campo da

arte, em relação à música e às artes cênicas. Paul Zumthor [1997] menciona o personagem ao

referir-se àqueles que proferem a voz poética, e situa em diferentes culturas o homem

privilegiado na condução do texto oral. Empresto do medievalista a palavra para explicitar

que o intérprete lê a sua própria realidade, que pode ser concebida de forma individual ou

coletiva, contudo, nunca anônima. São o que outras áreas chamam de informante, sujeitos,

atores sociais, narradores: “o intérprete é o indivíduo de que se percebe, na performance, a

voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista [ZUMTHOR, 1997, p. 225].

Os intérpretes d’O Museu do Marajó são visitantes que chegam dos campos, dos

rios e cidades com desejo de conhecer O Museu, dotados de uma curiosidade primeira que se

inicia na liberdade de expressão e no desejo de estar presente. Ao imaginar e descobrir o seu

Museu, criar símbolos dessa imaginação, o intérprete adquire um compromisso com a

verdade, com a objetividade e com a ordem de mundo. Sendo O Museu representante da

ordem do mundo marajoara e constituído da objetividade de revelar um universo de saberes,

cabe ao intérprete desconstruir essa ordem e reconstruí-la através do seu imaginário, que tem

um compromisso com o real [pensamento], e estabelece relação com a realidade [natureza].

O que de fato parece intolerável é a convivência com a tese de que as produções científicas ocupam o mesmo território da vida imaginativa, pois isto coloca o problema de se admitir que ‘a imaginação pode ser uma via de acesso à realidade, que a fantasia pode ser uma forma de pensamento’. [ROSA, 2001, p. 93-4].

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A autora cita Menezes [1996] para respaldar-se de que a imaginação é via de

acesso à realidade nos contos de 1001 Noites, e ancora-se no testemunho de Einstein [1981, p.

140]:

A suprema tarefa do físico consiste em procurar as leis elementares mais gerais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo. Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente a intuição a se desenvolver paralelamente à experiência.

Rosa [2001] dialoga com Menezes [1996] e Einstein [1981] para comentar o

aparecimento da intuição no processo de descoberta, e aponta para a situação do brincar, tese

de Winnicott [1994], constituído do tempo que se relaciona à experiência cultural e admite a

existência de uma dimensão não-linear no processo de conhecimento. “O que não quer dizer

que estivesse desconsiderando a força de vontade e a disciplina envolvidas no trabalho do

cientista, e sim revitalizando-as”[ROSA,2001,p.94]. Para a autora, essa proposição é uma

complementaridade entre estados de continuidade e descontinuidade da mente nos processos

de criação. Trago também outro autor que apresenta os intérpretes, como narradores de suas

histórias que se constroem e que se movem nas correntezas de suas experiências individuais

e/ou coletivas:

O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas suas camadas artesanais [...] assim como essas camadas abrange o estrato camponês [...] o acervo de experiências dessa camada se manifestam para nós [...] Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos [BENJAMIM, 1993, p. 214].

Nesse sentido, os intérpretes que chegam ao Museu são, na maioria das vezes,

pessoas que trabalham na zona rural do Marajó, nas camadas artesanais com estrato camponês,

que “imprimem na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”

[Ibid, p. 205]. Outros visitantes, dos centros urbanos, também se enquadram nesse contexto se

desejarem entrar n’O Museu e se relacionarem com os saberes ali constituídos.

Assim definido o narrador figura entre os mestres e os sábios [...] pois podem recorrer ao acervo de toda uma vida [uma vida que não inclui a própria experiência mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila a sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer]. [Ibid., p. 221].

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Ao ouvi-los, busco um fio narrativo em suas palavras para saber seus sentidos em

relação a sua visita. A palavra, nesse contexto, tem o valor do que representa O Museu para

esses visitantes, é ela que transforma e movimenta os saberes guarnecidos e os faz emergir na

correnteza da cultura marajoara em forma de gapuiagem.

Trata-se de uma palavra mágica, palavra eficaz, que tem o poder de remover um rochedo, o poder de fazer abrir a entrada da gruta onde os quarenta ladrões guardam seus tesouros [...] Há algo de mágico na palavra, na história do rei Schariar e da Bela Scherazade [...] a Palavra é palavra eficaz: provoca alterações, transforma aquele que a recebe [Ibid., p. 51-52].

O intérprete agora tem o poder de abrir o portal d’O Museu onde está guardado o

tesouro, ou seja, os saberes. A chave do segredo é a sua palavra eficaz como instrumento de

força, guardada na memória com respeito e cuidado, e surge através das narrativas. Como

“Abre-te Sésamo”, O Museu começa a ser desvendado nas narrativas dos intérpretes e

pesquisador. Nesta sequência, as vozes fazem parte da performance de quatro grupos de

visitantes e um individual, projetados nos planos a seguir:

PLANO 1. Família Pereira

Os integrantes deste grupo vêm de Belém e é composto por dois casais – Jorge e

Rosa, Raimundo e Eliane – e três adolescentes: Daiane, Amanda e Fernanda. Estas últimas

filhas do primeiro casal. O grupo encontrava-se na cidade a convite de Raimundo, que mora

na capital, mas é nascido no Marajó. Os componentes do grupo se apresentam:

Meu nome é Daiane Ribeiro, sou amiga da Fernanda, sou daqui mesmo do Marajó, eu tenho 10 anos, eu estudo na escola Gautino Paraense e tô na quarta série. Obrigada!

Meu nome é Amanda Rodrigues Pereira, eu tenho 13 anos, eu vim de Belém do Pará [...]. Estudo na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Padre Francisco Bertoldo, no bairro do Tapanã, oitava série.

Meu nome é Fernanda Rodrigues Pereira, tenho 12 anos, eu vim lá do Belém do Pará, e eu estudo na escola Doutor Júlio Soares, e eu faço a sexta série.

É... meu nome é Jorge Pereira, sou pai de Amanda e Fernanda, esposo de Rosa e irmão de Eliane. Nós somos tudo da família dos Matinta aqui [riso geral]. Eu moro em Belém, lá no Tapanã, eu sou

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funcionário público, trabalho lá no pronto-socorro municipal, sou técnico de enfermagem. É a primeira vez que eu vim aqui em Cachoeira e vou sair daqui com o meu QI mais elevado, principalmente na parte de conscientização de preservar.

Meu nome é Rosa Rodrigues Pereira, sou esposa do Jorge, tenho 38 anos e tô aqui, com muito prazer, e sou de Belém do Pará.

Meu nome é Eliane Costa Pereira, nasci em 1960, tô tendo esse privilégio de conhecer tudo isso aqui através do meu marido Raimundo Cabral Moraes. Meu irmão, minha cunhada, meus sobrinhos... tudo, e eu vou preservar na minha memória, a história toda de Giovanni Gallo, né?

Meu nome é Raimundo Cabral de Moraes, tenho 41 anos, trabalho numa firma [...]. Convidei eles pra vim conhecer aqui. E tô tão feliz por isso!

PLANO 2. Músicos

Os visitantes deste grupo moram na cidade de Castanhal, Pará. São músicos que

viajam por diversas cidades do interior do Estado pela força da profissão, mas é a primeira

vez que chegam à Cachoeira do Arari. É composto de 5 músicos, que assim se apresentam:

Meu nome é Afonso, tenho 22 anos, moro em Castanhal, e tô vindo de Belém. Meu nome é Neto, tenho 24 anos, sou de Castanhal também.

Meu nome é Everton, tenho 25 anos e tô vindo de Belém.

Eli de Oliveira, 23 anos, Macapá, Amapá.

Willian Pinheiro, 24 anos, Castanhal, Pará.

PLANO 3. Acadêmicos

Grupo formado pelo casal Ana Paula e Gustavo, e mais a amiga Priscila. Todos

têm formação acadêmica. O casal vem de São Paulo, e Priscila mora em Belém. Na

apresentação, eles enfatizam a falta de divulgação d’O Museu do Marajó:

Meu nome é Ana Paula, tenho 29 anos, sou de São Paulo e tenho mestrado em matemática [...] Eu acho assim, que falta um pouco isso, assim, o Brasil é um país muito grande. A gente que vem de longe não tem uma idéia tão forte de como é aqui. Eu acho que não é muito divulgado isso. Já ouviu falar da Ilha de Marajó e tal...

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Meu nome é Gustavo, sou ecólogo, tenho 30 anos. O contato com O Museu, acho que é o grande lance, do Museu, dum cara que é sediado aqui em Cachoeira do Arari e tentar trazer todos os marajoaras de tudo quanto é canto, né? Aqui pra Cachoeira pra tentar manter isso, né?

Meu nome é Priscila, tenho 25 anos, faço graduação em biologia, sou de Natal, mas moro em Belém [...] Eu acho que... eu, particularmente, antes de chegar à Belém eu já tinha visto alguma coisa na TV, né? da região. É uma ilha muito grande com uma diversidade muito rica [...] Infelizmente, eles [refere-se a pessoas de outras cidades] só vêem isso na TV.

PLANO 4. Moradores do Marajó

Grupo formado por quatro moradores da Ilha do Marajó, dois de Cachoeira do

Arari e os demais de cidades próximas. Os quatro integrantes não revelaram seus nomes reais,

por isso os apresento com nomes fictícios:

Agenor: Sou mototaxista [...]. Bom, pra mim que moro aqui... acho que o Museu significa muita coisa, porque tem cultura, Marajó, a ilha do Marajó, é um privilégio muito grande pra gente, marajoara, ter um museu aqui.

Joaquim: Sou estudante e moro perto daqui de Cachoeira [...] vim aqui pra bater foto, mostrar pra minha mãe, mas acabou a pilha. É a segunda vez que venho, a primeira foi em julho do ano passado.

Amélia: Sou daqui do Marajó, mas não conhecia Cachoeira, nem o Museu [...] a minha [curiosidade] mesmo é a ansiedade pra mim conhecer aí dentro.

Leandra: Eu vim com eles.[risos]

PLANO 5. Visita individual de Rafael

Visita realizada de forma individual por Rafael, natural de Belém, Pará. Ele

explica que, apesar de conhecer Cachoeira e outras cidades do Marajó, ainda não havia

entrado n’O Museu.

Rafael Assunção, 22 anos, de Belém do Pará [...] Isso aí é estudo, né? [...] Freqüento também o Marajó. Não é só Cachoeira do Arari que eu conheço. Conheço Ponta de Pedras, conheço Breves, assim, assim de viagem, né? A gente vê que em cada povoado tem a sua cultura, né? Tem seu modo de comemorar suas festas, tipo assim,

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festa na cidade, aniversário da cidade, né? Tem seu tipo diferente de comemorar.[...] O que eu conheço assim, alguma coisa assim deles [marajoaras] é... pelo fato assim, de eu vim pra cá, sempre eu tá vindo [...] aqui, conheço, tipo assim, artesanato, coisa que eles fazem também, né? Isso aí, que eu não conheço muito não [Museu]. Não sei se hoje...[...] Aqui n’O Museu, é a primeira vez.

Feitas as apresentações e as perguntas do “Apêndice A”, amplio o foco das lentes

sobre as categorias “Homem e Cultura Marajoara”; outra categoria, desta vez advinda das

vozes dos intérpretes, é a “Curiosidade”. Sobre ambas, discorro nessa primeira roda de

conversa.

LENTE 1. Homem e Cultura Marajoara43

Nesse momento, o intérprete cria uma expectativa em relação ao Museu e revela

uma curiosidade primeira, desejante, sobre o que lhe espera lá dentro. Para ele, o imaginário do

homem marajoara é um cenário construído pela própria imaginação, pela lente da curiosidade,

criadas como parte do ato de pensar e antevê o que pode ser visto ou não dentro d’O Museu,

associando ao que já se conhece a respeito do Marajó. Sobre isso, expressa Freire [1999, p. 98]:

LENTE 2. Sobre a curiosidade

As lentes são formas de ver o “Homem e Cultura Marajoara”, bem como a

“Curiosidade” focada no interesse de aprender. Esta última acompanha o intérprete em toda a

trajetória de sua visita. No sentido metafórico, o visitante [intérprete] abre o obturador da

mente, como uma máquina fotográfica, e deixa a luz do desejo, advindo da curiosidade,

invadir o campo fértil que faz germinar conhecimento.

Ajustar o foco da lente sobre os saberes marajoaras é função do intérprete ao

visitar O Museu, conduzido pela curiosidade. A lente do intérprete pode diferenciar-se nas

múltiplas interpretações sobre os saberes gapuiados. Em outras palavras, as analogias são

formas de construir saberes através da curiosidade.

Rafael: Aqui conheço, tipo assim, artesanato, coisa que eles [os artesãos marajoaras] fazem também, né? Isso aí que eu não conheço muito não [aponta para o salão de exposição]. Não sei se hoje aqui no Museu...

43 Deixo a analogia das duas categorias para a sequência 4. Pressuponho que os intérpretes expressem saberes sobre homem e cultura marajoara depois da visitação realizada, ou seja, após conhecerem O Museu.

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O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado da razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação [...] Satisfeita uma curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar continua em pé.

Ao convocar a imaginação dos visitantes-aprendizes nesta roda de conversa, busco

em Freire o início de uma fundamentação epistemológica para apresentar um intérprete

epistemologicamente curioso. Para o autor, a curiosidade é a pedra fundamental do saber

humano. “É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re-conhecer [Ibid., p.

96].” Ana Paula e Gustavo ilustram esta citação.

Ana Paula: De onde veio o búfalo? Nós estávamos discutindo ontem, quando estávamos chegando aqui no Marajó. Da onde vieram os búfalos? Alguém trouxe pra cá? Veio da África. Veio da África, né? [entreolham-se].

Gustavo: Bastante cultura, cultura tradicional... E eu tive oportunidade de conhecer, o Marajó, a história do Marajó.

Ana Paula: Eu, particularmente...

Gustavo: De onde surgiu essa cultura marajoara? É exatamente isso. Você tentar entender uma história, uma cultura através de peças, de desenhos. Acho que, na verdade, esse é o papel de um museu, né? Você tentar perpetuar, não deixar morrer a cultura aí, marajoara.

Na voz de Gustavo, percebe-se que o intérprete tece um ato de pensar imagens

com liberdade. O imaginário em liberdade rompe os limites do real, da vida cotidiana;

“transporta [o intérprete] para a embriaguez do imaginário que festeja; e consiste na explosão

que propicia o início de uma nova época” [LAPLANTINE; TRINDADE, 2003, p. 77]. A

curiosidade que convoca a imaginação n’O Museu é a mesma curiosidade que também

convoca o imaginário livre, levada pela subjetividade criadora e se transforma na imaginação,

que se encontra no processo do conhecimento científico, por meio dos procedimentos

intelectuais elaborados. Para os autores: O imaginário ocupa um lugar de representação, porém ultrapassa a representação intelectual [...] não significa a ausência da razão, mas apenas a exclusão de raciocínios demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da imaginação científica [LAPLANTINE; TRINDADE, 2003, p. 78-9].

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O imaginário referido por Laplantine e Trindade tem um compromisso com o real

e não com a realidade. Para elas, a realidade está presente na natureza, enquanto que o real é

interpretação, pensamento. Portanto, o imaginário é real, existe. Nesse sentido, a interpretação

é uma representação da realidade [natureza]. Essa é uma das formas que o homem se

relaciona com a realidade, atribuindo-lhes significados. “Se o imaginário recria e reordena a

realidade, encontra-se no campo da interpretação e da representação, ou seja, do real”

[LAPLANTINE e TRINDADE, 2003, p. 78]. Representação através de símbolos. Nessa perspectiva

em Narrativas Orais e Imaginário Amazônica, expressa Fernandes [1999, p. 109]:

Concluímos que o símbolo é uma questão de uso social, que vai além da obediência à razão, algumas vezes pela força da lei, mas que também é sentimento e afeição quando o símbolo sofre a rotineirização da vida cotidiana. O homem, ao ultrapassar o universo puramente físico e também criar e viver num universo simbólico, inventa formas desse universo existir, que são a linguagem, o mito, a arte e a religião, momentos em que, mais do que no universo físico, ele está emocionalmente envolvido, pois as formas simbólicas nascem e têm como fim o sujeito.

Fernandes imprime uma analogia do homem que ultrapassa o seu universo físico

para criar e viver outro universo, o simbólico, qual intérprete que chega para visitar O Museu,

ajusta a lente da curiosidade e inventa o seu próprio Museu. Apropria-se da linguagem, do

mito, da arte, da religião, e de outros saberes com suas representações e significados. É neste

momento que se envolve emocionalmente, e faz florescer outras formas simbólicas que têm

como fim o sujeito, que é ele mesmo. “Cada um descobre o seu Museu”, para lembrar Gallo.

Cada um imagina o seu Museu.

Afonso: Olha, eu... a gente, nós dois, né? [olhando pro amigo visitante que o acompanha] Ainda não adentrou no museu ainda. Ficamos mais aqui pela recepção, mas a gente vai procurar aprender um pouquinho sobre os municípios do Estado. Principalmente as lendas, né? Neto: É. Digamos que suprir a necessidade do aprendizado. Acho que muitas vezes quando você procura conhecer as culturas, você quer aprender, e a partir do momento que você aprende você fica rico em cultura, fica rico em aprendizado e você passa a ter historias pra contar, entendeu? Everton: Temos a curiosidade de conhecer, assim, eu acho que nós não temos muito esse contato [...] A gente mora na cidade, então a gente ouve muito falar, sabe? [...] então, quando a gente chega num município assim, né? A gente vê muito é... de conversa, as histórias, as lendas, né?

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Chamarei a curiosidade dos intérpretes de curiosidade espontânea por considerá-la

voluntariosa e primeira; ninguém visita O Museu forçadamente, a não ser, talvez, algum

estudante desestimulado no cumprimento de uma tarefa escolar. O pensamento desejante dos

intérpretes faz parte dessa curiosidade. Nesse contexto, o desejo acompanha o visitante-

aprendiz, ou seja, o intérprete, nos três momentos de sua visita: antes da visita, o desejo de ver

e aprender, de “procurar saber a respeito de”; durante a visita, o desejo de tocar os

computadores, de interagir com eles; no terceiro momento, o desejo de contar e compartilhar

sua experiência de ter visitado O Museu do Marajó, o desejo de voltar outro dia por não ter

conseguido aprender tudo que [não]viu lá dentro.

O importante, nesse processo, é o tratamento que se dá a essa curiosidade, saber

conduzir o “curioso” em uma estratégia de envolvimento com o assunto de seu vital interesse.

Por se tratar d’O Museu, o fato dos intérpretes estarem ali dispostos a visitá-lo, é um grande

motivo para ser celebrado e trabalhado com sutileza e bom senso. Segundo Freire [1999, p.

69]: O exercício do bom senso, com o qual só temos que ganhar se faz no corpo da curiosidade. Nesse sentido, quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais críticos se pode fazer o bom senso.

Ao término desta discussão, apresento aleatoriamente outros intérpretes que

expressam suas curiosidades.

Joaquim: A gente quer encontrar mesmo de frente a coisa que a gente ouviu falar da... do artesanato que tem daqui, porque [...] é uma coisa típica daqui mesmo, porque a gente tem curiosidade de ver de perto, de saber, de pegar na... poder conhecer mesmo.

Leandra: Outras coisas, a história também, né? assim... as lendas, né? O que tiver pra ser visto vai ser [...] tudo da cultura marajoara, né? E o pessoal de fora tem curiosidade de saber, e a gente tá aqui tendo a oportunidade de estar aqui, e a gente quer ver tudo. ... assim, "por alto"... Eu fiquei prestando atenção. Só que a gente nunca parou assim pra... é isso, eu queria ver aqui [no museu].

Willian: É. Porque é bem interessante o que a gente vê [...] passa assim, essas ilhas, né? [na TV] Como é que o homem teve a capacidade [refere-se ao ribeirinho]... “Égua, eu vou vim [vir] pra cá, pra fazer minha moradia aqui, vou sobreviver aqui, vou tirar tudo daqui.” Às vezes a gente passa assim e vê uma, uma região assim e diz: "Égua, será que mora alguém aí?". Aí quando a gente vê tá lá

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uma casinha lá, né?Impressionante, né? eu queria saber assim como é que eles conseguiram "se habitar", né?... num lugar assim, longe, né? Eli: A questão também dos... dos búfalos, né?... que só tem aqui mesmo, que é difícil pra lá, não tem em Belém, Castanhal, esses cantos do Pará.

Everton: Onde ficam as coisas? Como é que tem o nome dessas coisas aí tudinho? A minha [curiosidade] é a ansiedade pra mim conhecer aí dentro [dentro do museu] [...] já ouví gente falando, assim, entendeu?... assim... "por alto" assim.

Neto: Eu fiquei prestando atenção, só que a gente nunca parou assim pra... a professora falou assim... fazer trabalho no museu mesmo, ver documentos pra melhorar a cidade, melhorar as ruas, manter a cidade limpa, é isso. Dinossauro. Tem dinossauro?

Posta as curiosidades, convido os intérpretes a gapuiarem os saberes dentro d’O

Museu.

CENA 2: Gapuiagem entre os saberes

Fotog. 39 –. Videogravação como recurso de produção de dados. Fonte: Teixeira [2007].

Neste segundo momento procuro responder o problema do objeto de pesquisa e as

questões norteadoras. Entro no salão de exposição com os intérpretes para observar e

investigar que saberes se manifestam em uma gapuiagem desenvolvida pelos intérpretes n’O

Museu do Marajó; como esses intérpretes interagem com os múltiplos computadores caipiras

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existentes n’O Museu, como reagem, e o que referem durante a visita; que sentimentos são

atribuídos nessa relação entre Intérpretes - saberes marajoara - Museu do Marajó.

Para a produção dos dados utilizo a videogravação digital, capto imagens e vozes

dos intérpretes frente aos painéis, bem como o som ambiente no manuseio dos computadores,

o ruído das manivelas, das roldanas, do bater das tabuinhas ao serem largadas após leitura de

uma curiosidade, enfim, lanço mão de um recurso indispensável para um universo tão

dinâmico e espontâneo que é a experiência de navegar por entre saberes diversificados, ao

mesmo tempo, por entre os intérpretes desses saberes.

O método da observação por meio do olho da câmera facilita a apreensão dos

dados em narrativas durante a pesquisa, uma vez que o uso da tecnologia capta além da

palavra, o gesto, o movimento, a performance do corpo. Além de Bakhtin, Freitas, Souza e

Kramer, Flick [2004] também faz suas inserções do suportes vídeo e fotografia ao falar de

produção de dados: Cada vez mais, leva-se em conta o fato de que não apenas a participação do observador, mas também o meio de comunicação do filme e da câmera enquanto equipamento, exercem uma influência sobre os eventos em estudo e sobre sua apresentação para o observador [FLICK, 2004, p. 171].

Cada fotograma é um mosaico de informações que ajuda a configurar uma análise.

A imagem [foto-documentação] é uma estratégia de produção de dados visuais, que reforça a

narrativa do pesquisador para ilustrar, em ocorrência natural, uma situação que envolve

sujeitos, um objeto ou lugar. Esta comunga com a observação dinâmica e o desejo de

documentar o fato recorrente e a relevância dos fenômenos a serem estudados. Através dos

fotogramas, posso fazer leituras interpretativas e estabelecer relações de tempo - espaço;

intérpretes - computadores - saberes; ensino - aprendizagem; educação - prática educativa. As

inserções descritivas, legendas, podem ser compreendidas como plotter.44

Nunca foi feito um inventário geral das peças expostas, por falta de pessoal,mas a gente pode ter uma idéia, considerando o número dos computadores caipiras de várias gerações [24]. Gosto de dizer brincando que o processo de patente está em andamento. São os modelos Pull-down, Roundabout, Puxa-Puxa, Levanta e Vê, Windows, Windows-Super, Penduricalhos, Roda-Roda Tamanho Gigante, Big e Mirim, Dobra-a-Página. As vitrines são 169, os painéis de parede, 22. Evidentemente estes números são provisórios! [GALLO, 1996, p. 267].

44 Técnica utilizada nos museus para exibir ou esclarecer uma idéia ou conceito, colocado em painéis ou paredes.

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PANORÂMICA 2. Fotogramas: Os computadores caipiras e seus intérpretes

As imagens são quadros, fotogramas dispostos a serem contemplados e que

revelam alguns momentos da gapuiagem. Como uma exposição em galeria, outras se

apresentam no Adendo I para ampliar outras leituras e também revelar O Museu na sua

plenitude. Por enquanto, elas aparecem em seleção pelo olhar recortado do pesquisador através

de sua câmera digital. Nesse sentido, apresento Fares [2003, p. 133]: A pesquisadora aciona as lentes e filmes mais sensíveis, o olhar perscrutador clica em panorâmica e passeia pela cultura marajoara, exposta ao enorme salão de exposição, que conta a história dos índios, que ironiza o branco colonizador, que defende os negros, que fala, fala, e fala do caboclo marajoara: do vaqueiro, do pescador, da língua, das linguagens, do modo de vida, das lendas, dos utensílios, da tecnologia, dos medos, das lendas e, principalmente, da cerâmica marajoara [Apesar da boa vontade, nenhum pesquisador alcança, mesmo em panorâmica, o imenso volume de informações].

Fotog. 40 – Gapuiagem 1: computador em forma de pêndulo. Foto: MPEG.

No fotograma 40, percebe-se a luz natural e diminuta do salão de exposição. Sem

mascarar a produção da fotografia com recursos outros de fotometria, mostro O Museu na sua

situação in natura. É preciso fazer um esforço visual para definir bem as mensagens

impressas nos computadores. A imagem apresenta dois meninos que gapuiam saberes. A ação

imprime a performance do gesto de levantar a plaqueta, que anuncia um saber no anverso e o

desvela no verso e na plaqueta sucessiva. Um saber puxa o outro, uma espécie de ‘link’ para

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outra página e leitura. São doze plaquetas de cada lado da caixa de madeira no formato de

pêndulo, quarenta e oito imagens e textos colados, sobrepostos e sucessivos, que se mostram

numa sequência de cima para baixo. De conteúdos diversos, um tema chama a atenção dos

intérpretes: o mamífero voador, o morcego.45

Fotog. 41 – Gapuiagem 2. Computador em forma de mesa. Foto: Alves [2007].

Ao visualizar o computador, o desejo do intérprete anima sua ação de tocar num

extremo dinamismo do olhar que se lança à imagem que ele mesmo constrói. No computador

do fotograma 41, percebe-se uma fotografia cujo apelo visual convida o visitante a interpretá-

la e, conseqüentemente, desvendar o saber por baixo do visor de vidro. O acabamento das

arestas e o modelo com angulação indiciam o cuidado do artesão/artista para confeccionar a

engenhoca. Observe ao fundo do fotograma, na parede, outro computador, desta vez

bidimensional com plaquetas em alto-relevo.

O painel mostra com detalhes esse movimento e

as inúmeras histórias e curiosidades sobre esse e outros animais da espécie. A preocupação

com a fauna, o equilíbrio ecológico são exemplos de temas transversais sugeridas neste

computador.

45O morcego habita a restrita floresta marajoara, que causa desequilíbrio na sua cadeia alimentar, daí invadir as áreas urbanas em busca de sobrevivência.

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A ação do gesto é diferenciada a cada gapuiador. Essa linguagem está num campo

social habitado por sujeitos intérpretes, logo a ação é constituída de códigos e significados.

Zumthor [1997, p. 204] apresenta o intérprete na performance “exibindo seu corpo e seu

cenário, não está apelando somente à visualidade. Ele se oferece a um contato. Eu o ouço,

vejo-o, virtualmente eu o toco [...] uma mão estendida seria o suficiente.”

Fotog. 42 – Corpo... ...e toque. Fonte: Alves [2007]

No cenário de placas, o intérprete exibe corpo e toque no meio dos

“penduricalhos” sobre elementos lingüísticos do Marajó. É a seção “Assim falam os

Caboclos”. São inúmeras plaquetas penduradas com fio de nylon a uma grade suspensa de

bambu. O termo lingüístico é anunciado no anverso ou no verso da placa, virando-a, lê-se a

resposta correspondente. Próximo à janela, é um espaço privilegiado pela luz natural, a qual

incide de lado e facilita a leitura dos saberes. As crianças maiores se divertem quando passam

pela instalação. O intérprete toca com as mãos, com o rosto, com os braços, o corpo reage, a

sensação de prazer é perceptível.

O que esses exemplos [...] parecem indicar é que existe uma complementaridade interessante e necessária entre um estado de mente onde um certo grau de des-ordem abre espaço à criação e um outro no qual a vigilância do pensamento des-ordenado e in-disciplinado dá forma às construções produtivas [...] outra perspectiva, o “brincar” não fica apenas permitido, mas entra como elemento importante no trânsito entre a tradição cultural e a inserção, no mundo, do gesto criativo do educando [ROSA, 2001, p. 96].

O brincar n’O Museu imprime também a idéia de jogo, lúdico. A ludicidade é

revelada por meio do impulso de tocar os computadores caipiras, o impulso lúdico. Para

anunciar o impulso lúdico como ideal de beleza construído pela razão, trago Schiller [1995],

nas palavras de Carvalho [2006, p. 262-3]:

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Para Schiller (1995:84), a beleza presente na realidade equivale ao impulso lúdico, ao jogo. Paralelamente o ideal de beleza construído pela razão, impõe o ideal de um impulso lúdico, que deve estar presente na alma, na sensibilidade do homem em todos os seus jogos, considerando que o principio do jogo está no fato de que o homem deve somente jogar com a beleza, e somente com ela jogar. O impulso lúdico apresenta uma relação direta, com o brincar da criança. Quando a criança brinca, ela não se sente coagida pela sensibilidade, nem pela razão. Basta que se observe o seu brincar, para que se perceba o quanto de arte e beleza se encontra nesse ato, pois sua criatividade é liberada a partir do momento em que encontra um ambiente propício, para que possa voar livremente por meio de sua imaginação.

Fotog. 44 – A movência do olhar ... ...e do gesto. Alves [2007]

O educando n’O Museu, depara-se com os conteúdos do brincar, que é permitido

sempre, através do gesto criativo, aleatório, que se sucede em complementaridade. No

fotograma, as lendas e mitos são paisagens que se configuram na imaginação da intérprete. As

placas enfileiradas e alinhadas com indicações à frente, ao serem levantadas, descobrem-se no

verso as informações sobre a imagem do primeiro plano; outras imagens ou textos são

encontrados na base que serve de suporte. Nos detalhes, recorto a movência do olhar e do

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gesto da intérprete ao aproximar o foco de minha percepção em sua performance. Em

“Cartografias Marajoaras...”, Fares [2003, p. 135] reforça:

No painel “As Lendas Amazônicas”, pequenas plaquetas anunciam o seu conteúdo informativo. Ao levantá-la, o voco-visual conta a história através de textos escritos e das protagonistas retratadas em cerâmica, num cenário construído com materiais regionais.

A intérprete do fotograma 44, que antes gapuiava saberes sozinha, agora vai ao

encontro do namorado [Fotograma 45] para compartilhar os conteúdos na gapuia.

Fotog. 45 – A tipologia dos computadores determina a performance dos intérpretes [Alves, 2007].

O brincar n’O Museu conduz também ao compartilhar as descobertas. No

fotograma 45, os intérpretes se movimentam no universo do brincar. O desejo de conhecer, a

curiosidade, os faz agachar para melhor visualizar as imagens no painel com altura inferior a

meio metro. O apelo motor que os computadores exercem sobre os intérpretes, os faz reféns

da curiosidade, como Schariar que se rende à sedução das histórias de Scherazade.

Esta é mais uma estratégia de Gallo para movimentar o visitante d’O Museu. Os

computadores de diferentes tamanhos e de diferentes alturas, os suportes diversificados e as

questões anunciadas imprimem uma prática pedagógica diferenciada, poética. Sobre o

processo de movência da performance poética, manifesta-se Zumthor [1997, p. 207]:

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A expressão corporal corrente encandeia séries contínuas de gestos de todas as espécies. Um movimento do corpo inteiro se faz acompanhar, em geral, de uma gesticulação dos braços e da cabeça, além de uma mímica e de um olhar particular. A performance poética pode suspender intencionalmente este encadeamento, e permite como pertinente apenas o gesto do rosto, ou do braço, ou alguma dança não expressiva. A vocalidade poética [...] às vezes confere uma função ao silêncio: assim, a gestualidade pode integrar, de maneira significativa, “gestos zero”.

Fotog. 46 – Toque de saber. Fonte: Alves [2007].

O intérprete está diante de um computador em forma de pêndulo suspenso por uma

corda que gira no eixo desta. Ele lê o enunciado para gapuiar saberes, a resposta está escondida

precisando ser desvendada pelo levantar da tabuinha. O antebraço, entreaberto, forma um

ângulo com menos de noventa graus do braço posicionado na posição vertical, leva a mão à

altura dos olhos, fixos na plaqueta; o busto e cabeça estão imóveis. Na mão esquerda, não

visível, está uma máquina fotográfica que não funcionou, e que fez o visitante mudar de

estratégia na sua gapuia. É um sentimento de sacralidade e reinvenção que motiva essa

imobilidade. “Só a mímica ou um olhar se encontra, excepcionalmente, na performance,

quando o executante quer provocar, no resto do espaço temporal, um efeito zero”

[ZUMTHOR, 1997, p. 208]. O autor ainda enuncia:

A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar. [...] Gesto e olhar, com efeito, são igualmente concorrentes [...] Os movimentos do corpo são assim integrados a uma poética. Empiricamente constata-se a admirável permanência da associação entre o gesto e o enunciado: um modelo gestual faz parte da “competência” do intérprete e se projeta na performance. [Ibid., p. 203].

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Fotog. 47 – O computador comanda o gesto do intérprete. Fonte: Alves [2007].

A gapuia continua e o menino interage com outro computador dentro do

Museu. No fotograma acima, a resposta dos saberes marajoaras aparece num visor de vidro

depois da ação de rodar a manivela ao lado da engenhoca ao alcance dos olhos do visitante, em

ângulo privilegiado; os computadores foram feitos para ele, como um brinquedo: a altura, as

proporções, a diversidade de assuntos sobre os “Índios no Marajó”, um quebra-cabeça que

aguça a imaginação na curiosidade epistemológica de Freire.

Apresentados os fotogramas e as performances dos intérpretes frente a alguns

computadores [reforço que n’O Museu são numerosos], acrescento as vozes constituintes da

gapuiagem. Chamo esta ocasião de Mergulho no Rio de Saberes.

CENA 3: Mergulho no Rio de Saberes

O mergulho ocorre após a roda de conversa e acontece entre os computadores, os

corredores d’O Museu agora são rios de saberes onde os intérpretes fazem a gapuia. Neste

momento, opto por descrever as ações dos intérpretes. As performances são enquadradas na

câmera de vídeo e descritas como fonte de produção de dados, por meio do discurso indireto.

PLANO 1. Família Pereira A Família Pereira está na gapuia e navega entre os saberes d’O Museu. Um dos

painéis chama a atenção, lê-se: "Você conhece o Marajó?". Há também algumas fotos e

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escritos esclarecedores sobre as temáticas em exposição. Daiane passa por trás das urnas

marajoaras, seguida por Amanda. As duas entram em uma cabine de barco, uma espécie de

instalação, em escala real, representando uma embarcação típica do Marajó. Elas brincam de

pilotar, rodam o timão e simulam puxar a corda do apito de navegação. Em seguida, Amanda

se dirige a um painel que está escrito: "Foi ao Pará, parou. Tomou açaí, ficou." Tem uma

máquina de bater açaí em baixo dessa placa. Ao lado da máquina, uma peça de madeira.

Também há alguns pratos e vasos de barro, alguidares46

No painel em que Rose mexe, há um letreiro na parte de baixo: "Pajé é da terra!".

Raimundo está no painel onde está exposto o boto sobre uma esteira de palha. Na parte

superior, há um letreiro que indica: "É verdade que o boto vira gente?" O rapaz toca no boto

embalsamado de um metro e trinta centímetros de comprimento, aproximadamente.

Novamente ouve-se Jorge anunciar as receitas das patologias que lê. “[...]é bom para fazer

sarapatel, mas também em casos de dor de ouvido, o caboclo usa o ‘mijo’ dele como

e três peneiras, um pequeno armário

de madeira com alguns utensílios utilizados pelo açaizeiro no ato de seu ofício.

A navegação continua. Jorge e Rosa tocam em outro painel, o pêndulo, uma caixa

pendurada ao teto com várias placas nas quatro superfícies. Jorge lê atentamente em voz baixa

para Rosa. Ambos comentam sobre o que está escrito na peça. Ele continua lendo: "Coisas

que o povo faz". O casal vai para outra peça e, então, tanto ele como ela percebem minha

presença, dão um sorriso para a câmera e fazem sinal positivo, como se consentissem minha

abordagem. Disfarço e giro a lente para outro ângulo. Novamente, ele começa a ler em voz

alta para Rosa uma das plaquetas daquele painel: “A barata. Em 1782, foi preconizada pelo

médico Francisco Antônio de Sampaio como remédio contra asma. Como torrar... torrefar.”

Ele abaixa a plaqueta, levanta a do lado e gapuia outro assunto.

Em outro canto do Museu, Eliane mexe em uma grande peça de madeira, mesa

inclinada com várias plaquetas por cima em alto-relevo. Ela levanta uma dessas plaquetas. Ao

fundo, se pode ver a imagem, escultura de Iemanjá em um altar de madeira. Ela baixa a placa

e levanta outra. Ouve-se Jorge: “O poraquê, também conhecido como peixe-elétrico dá

choque de até 400 volts, mas não é sempre pra prejudicar. Os caboclos garantem que uma

série de choques bem dados cura o reumatismo.”

46 Vasilhames feitos de barro utilizados para o amasso do açaí e abrigar outros alimentos.; bacia de barro de forma arredondada.

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remédio”. Eliane, ainda na mesma peça, levanta uma placa após a outra, levanta a vista e

caminha lentamente para o próximo painel atrás da mesa, e lê um pequeno letreiro: "Mais do

que Deus, ninguém". É um painel instalação com motivos religiosos.

Na parte de baixo da instalação, algumas imagens. É um oratório envelhecido com

algumas imagens de santos populares. Eliane continua a levantar as placas do referido painel.

Outras ao lado. São muitas. Ela escolhe aleatoriamente. Lendo-as em silêncio, seus lábios

mexem, parecendo falar consigo mesma. Entre os diversificados textos lê-se: "Técnica x

Natureza – Homem-bicho”; “Os bichos têm vícios?”; “Complexos?”; “Ferramentas, armas

sofisticadas?”; “Disfarces requintados? O homem inventa ou simplesmente vai copiando

quem é mais artista?”; “Aí vem o Marajó invisível." Próximo, uma pequena imagem de índio

e uma vela acesa chamam a atenção de Eliane. De um jeito curioso, ela toca na peça. É um

chocalho. Ao lado, a imagem de Iemanjá. Novamente seus lábios se mexem como se rezasse;

toca novamente no maracá com certa atitude, sacode-o lentamente num ritual próprio, emite

sons, e o passa tremendo pelo corpo. Dá pra ver que está descalça. Coloca o maracá no

oratório, bate palmas em reverência e vai calçar seus tamancos; pega sua bolsa que deixara ao

lado, e, dando um sorriso discreto, sai.

Eliane agora passa em frente ao painel do bezerro-de-duas-cabeças, que está

embalsamado dentro de uma grande caixa de vidro e madeira. Jorge mexe em sua máquina

fotográfica, e se aproxima. Lê a placa em voz alta: "Bezerro de duas cabeças." Depois de

achar a posição certa, tira uma foto. Rosa aproxima-se, toca no boto e caminha lentamente,

sem tirar o olho do animal. Enquanto isso, Eliane olha o bezerro-de-duas-cabeças. Neste

painel, ela toca a placa onde se diz "levante a tampa". Jorge tira outra foto do bicho.

Eliane continua lendo baixo as informações sobre o animal. Ao terminar, volta-se

para o boto, toca com os dedos, como se quisesse saber se é de verdade. Jorge acompanha: "O

boto", diz ele. Rosa pegunta: É de verdade esse boto?. Jorge: É!... É tucuxi", levanta e lê as

placas da peça "golfinho”. As informações sobre o boto parecem ser bem interessantes. Ficam

demoradamente lendo as informações sobre o animal: as lendas; as histórias; as curiosidades.

Na instalação, algumas plaquetas de madeira ilustram as lendas da Amazônia relacionadas

com o mamífero. Ao fundo do painel, na parede, encontra-se ilustrações de outros peixes para

o visitante fazer analogias de espécies oceânicas e amazônicas, os nomes científicos dos

peixes, e outras informações pertinentes [Fotog. 48].

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Fotog. 48 – Boto tucuxi. Fonte: Portal [2005].

Entre os computadores e as urnas marajoaras do salão de exposição fica uma

escada que dá acesso a um mezanino em madeira. Fernanda sobe as escadas, vai até Rosa e

Eliane, que observam a seção de “anomalia” [animais embalsamados com deformações

físicas]. As três andam por entre os painéis. Eliane pára perto da escada, parece querer descer;

Rosa e Fernanda continuam a observar. Logo chegam a um grande painel onde já está Jorge:

"As lendas da Amazônia", diz o rapaz. Os três levantam placas. Uma delas chama a atenção

de Jorge, a da “Mãe d'água”. Daiane e Amanda lêem sobre as lendas, uma sucessão de vozes

sobrepostas. Cada um mostra a lenda que mais achou interessante. Curiosidade, percepção,

toque, leitura, reflexão, dedução. Nesse movimento, todos gapuiam os saberes do imaginário

marajoara dentro do Museu, observam conceitos e constroem suas próprias concepções das

práticas educativas ali constituídas, de forma autônoma e voluntária.

Os intérpretes continuam a mexer nas pequenas placas. Fernanda agora está

sentada em uma galeria próxima, parece cansada. Jorge, próximo às escadas, aponta outra

placa na seção de lendas amazônicas: “Tá aqui a do guaraná, Ó!” Fernanda se levanta e se

aproxima para ver, Rosa também. Fernanda lê: “foi encontrado morto debaixo duma árvore,

mordido por uma cobra. E aqui nasce Jaci, ó, Jaci! [...]. Aqui é uma lenda, de uma índia”, fala

Jorge ao levantar uma placa. A placa esconde uma pequena imagem atrás de um vidro.

Enquanto que Fernanda lê a lenda do guaraná, Jorge informa-se sobre a lenda de Jaci,

primeiramente em voz alta, depois em silêncio. Fernanda continua, fragmentando o texto:

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“respeito a quem contou... quem teria a coragem de sagrar - pode ser ‘sangrar’ - os olhos do

menino, tão querido, estava morto[...] teria nascido por conta própria, no lugar onde caiu o

raio [...] o guaraná, da onde frutinhas vermelhas e milagrosas [...] os fracos ficaram fortes, os

jovens não envelhecem e os velhos voltam a serem uns brótos...” Jorge corrige: “Uns brotos.”

Fernanda: “É! Os...” Jorge corrige novamente: “Os maués”. Fernanda: “Os Maués [esfrega o

nariz] reencontraram a felicidade e deixaram a herança para ...” Jorge complementa: “Nós!”

Fernanda: “Para nós!” [...] “Do guaraná fazem refresco, remédio que dá para tudo. Jorge

dirige-se a outra plaqueta: “Macunaíma”, e diz: “Essa lenda é bonita também, Macunaíma”.

Fernanda se afasta e se aproxima de Eliane, que está em outro painel. Fernanda:

“E isso aqui, Ó!” [há esculturas no chão, atrás de algumas caixas de madeira] Eliane: “Isso é

um caboclo, é... um... imagem de caboclo. De macumba, de candomblé!” Jorge se aproxima e

lê: “ Mais do que deus, ninguém”. Eliane: “É verdade. O trabalho do pajé. Isso tudo eu sei!”

Do outro lado da mesa, Rosa, sozinha, mexe em outro computador. Raimundo a acompanha e

interage conjuntamente. Em primeiro plano, Jorge lê: “As técnicas de pajelança”. Fernanda

toca em um quadro colorido de fotografias diversas e se afasta.

Ao perceber que estava sendo filmada, Eliane aproximou-se e, antes que ela

perguntasse algo, apressei-me em cumprimentá-la, e explico o objetivo e a importância da

pesquisa. Esta abordagem teve um caráter diferenciado das demais, uma vez que não houve a

roda de conversa introdutória. Daí, a surpresa e a espontaneidade do registro dos gapuiadores

de saberes.47

Nesta gapuiagem, diferente da primeira, o grupo dispõe de um guia d’O Museu.

Começa com o levantar de duas tampas de madeira de um computador caipira no formado de

Essa aproximação fez crescer as relações para a produção de dados, ao

construirmos um diálogo informal e descontraído.

No jardim do Museu, percebi que ainda estavam entusiasmados por tudo que

viram e tocaram, e que o tempo para eles não era problema. Após uma pequena pausa,

sentados à sombra das árvores, tiraram fotografias, colheram frutas das árvores [araçá e

goiaba], até avistarem o túmulo e a casa do padre, conforme roteiro na sequência única [pág. 56].

PLANO 2. Músicos

47 Referentes aos visitantes-aprendizes dentro do Museu; aqueles que tocam os computadores caipiras, produzindo saberes.

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mesa, localizado na ante-sala do salão de exposição. Duas perguntas provocam os intérpretes

a desvendarem as respostas que estão no fundo das caixas. Sobre este momento explica Gallo

[1996, p. 260]:

No canto estão duas caixinhas, com o convite “O Museu começa aqui!” e duas perguntas intrigantes: “Quantos anos tem a peça mais antiga do Museu?” Surpresa, incerteza e resposta absurda. Levantando uma tampa, encontra-se uma escala geológica da terra, mais em baixo uma peça da era mesozóica, período jurássico: um fóssil, o tataravô da nossa traíra com a certidão de nascimento que espanta, 190 milhões de anos! Bem ao lado, outra pergunta intrigante: “Qual é a peça mais nova?” Embaixo está um espelho com a escrita: “É você!”, porque cada um descobre o seu Museu, seguindo os seus interesses, dirigido pela sua própria formação específica, que o estimula a procura, oferecendo a oportunidade de dar seus palpites e sua contribuição [...] As reações do público são um show!

A brincadeira surge espontaneamente. Os intérpretes simulam suspense antes de

abrirem as tampas do computador. Na primeira, um enunciado: “Qual a peça mais antiga d’O

Museu?”; na segunda: “Qual a peça mais importante d’O Museu?” Ao levantar a primeira

tampa, aparece o fóssil, situado ao fundo da caixa com informações históricas

correspondentes.

“Vamos ver, né?” Afonso abre a segunda caixa onde está colocado um espelho ao

fundo. Ele é observado pelos demais intérpretes. Neto: “Olha! A peça mais nova do Museu

é... tá certo. Somos nós, né?” Guia: “É, a peça mais nova do nosso Museu é... é mesmo você.

Aqui, cada visitante descobre um Museu diferente.” Afonso: “Tá certo.” Eli abre a primeira

caixa: “Tanto de anos que ele tem, né?” Refere-se ao fóssil de 190 milhões de anos na caixa

ao lado. Risos. Afonso destaca o homem entre as duas caixas: “Mas eu acho que, no caso, a

nova história somos nós, né?” Guia: “Às vezes, chegam as pessoas, entram aqui e dizem:

“Ah! Não, não vou abrir porque eu tô com medo. E se...de repente o bicho me pula?” Eu falo:

não é bicho, não é.... Eles vêm e dizem: “Ah! tá...”

Afonso fala da importância de conhecer conteúdos ainda não conhecidos e

revelados aos estudantes e à sociedade. Ao aproximar-se do grupo, Wiliam diz estar curioso e

deseja abrir também as caixas. Junto com ele chega Everton, que toma a iniciativa para abri-la

e brinca com o amigo ao mencionar falta de coragem. Aberta a caixa, a curiosidade de todos

converge as cabeças para olharem, ao mesmo tempo, o espelho e suas imagens refletidas.

Brincam com a simplicidade da resposta e questionam sobre a importância de ser o foco d’O

Museu. O Guia os convida a entrarem no salão de exposição.

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Guia: Vamos conhecer mais?

Eli: Vamos!

Reflexivos e surpresos, os intérpretes atravessam a portinhola para o salão de

exposição. O primeiro painel observado é “Cantinho do Gallo”, onde é revelado um

histórico, em tópicos, da vida do sacerdote durante sua estada no Marajó: a chegada na Villa

de Jenipapo, as aventuras em Santa Cruz do Arari, as primeiras idéias da cooperativa de

pesca, os primeiros presentes, a chegada em Cachoeira, as iniciativas voltadas para O Museu

e, por último, a história do atropelamento, o agravamento do estado de saúde e sepultamento.

Os intérpretes ficam demorados minutos lendo as diversas plaquetas sobre esses

saberes, entre sucessivas perguntas e respostas comentadas em voz alta. Guia: “Aqui é o

cantinho dele. Aqui conta a história dele, do atropelamento, sofrimento, aí você levanta

[mostra como se faz], e vai...” Neto: “Quem foi atropelado aí?” Guia: “Ele, o padre”. Willian:

“Morreu de acidente. Mas foi carro, foi?” Guia: “ Não, bicicleta. Olha aí você!” Mostra algo

escrito no painel. Afonso para Neto: “Não quer ler, tá com preguiça, né?. Lê aí pra gente,

você que tem uma voz mais...” O Guia se antecipa: “O rapaz, no momento do acidente, ficou

sem ação diante do ocorrido. Foi quando uma ambulância... para levar Giovanni Gallo até o

hospital, daí em diante, começou o seu sofrimento.”

Afonso lê as informações no painel e o guia continua a explicar os detalhes do

acidente do padre. Neto pergunta sobre a velocidade da bicicleta. E Afonso lê no painel as

informações assim transcritas de um narratário: “À meia-noite, mais ou menos, meu telefone

tocou. Quando atendi, era o Gallo dizendo: ‘Senhor, não estou passando bem’. Imediatamente

parti para a sua casa. Chegando lá, encontrei Giovanni sentado em sua poltrona, cansado.

Então perguntei: ‘Gallo, o que você tem?’. Ele respondeu: ‘Meu filho, não estou passando

muito bem, estou com uma dor aqui.’ Então comecei a fazer uma massagem, e ele adormeceu.

Logo depois, logo depois de acordar, ele me perguntou: ‘A que horas você vai para Belém?

Eu respondi: Às três horas da manhã. Então ele disse: ‘Não. Você deixa que eu vou pedir um

avião e você vai comigo’. Aí foi sua primeira viagem de sofrimento para Belém.” Everton

comenta: “Uma coisa assim, digamos assim, impensada, né? Uma bicicleta começa a dar fim,

começa a dar a uma trajetória de fim à vida de uma pessoa muito importante, né?... no caso,

esse Museu, ele é tão rico de aprendizado que é praticamente impossível você conhecer tantas

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coisas em um só... em uma hora, sua história da vida. Aqui a gente tá vendo só a história do

fundador do Museu, né? Juntamente com toda a trajetória dele. Então, pra você conhecer ele

[O Museu] perfeitamente, você tem que passar praticamente o dia todo”.

O sentimento de incompletude toma conta do intérprete ao sentir a imensidão de

saberes por gapuiar. Everton caminha, olha ao redor e observa as urnas marajoaras dentro de

uma vitrine, toca no vidro, aproxima o rosto em zoom, e amplia sua lente para ver de perto a

peça arqueológica. Neto aproxima-se e expressa também seu sentimento de incompletude.

Neto: “Eu acho assim, o dia todo não é o suficiente, porque pelo o que a gente pode, a gente

mal entrou aqui, a gente pode ver que aqui...” Willian, ainda no painel, interrompe: “Pra

conhecer legal, né? Conhecer aos poucos, é rico em cultura. Então, eu acho que assim, não é

um dia...” Afonso: “É. O básico. O ideal mesmo não é só um dia.” Everton: “Acho que em um

dia, a pessoa pode aprender ali no momento, né?” Willian para o Guia: “Os moradores vêm

muito aqui, vêm? Os moradores...” Guia: “De vez em quando...” Afonso: “E o apito? O que é

que ele representa essa apito?” O guia abre a tampa da caixa onde se encontra o apito e

contextualiza a história do objeto. Eli fica curioso mais ainda e admira-se de saber que o

Padre apitava jogo de futebol em campeonatos promovidos pela comunidade. Everton

manifesta entusiasmo de saber que o padre era querido em Cachoeira. Ele lê: “uns alegres

pelo sentido dele ter realizado as coisas antes de ter partido...” “Puxa! Legal olha... então ele

era muito querido, não era?”

Os intérpretes queriam saber mais do acidente de Gallo. Willian aponta a foto do

padre na cama do hospital e lê o texto ao lado da foto: “sorria para não chorar”. Aponta mais

uma foto do padre, de cadeira de rodas. O guia mostra uma imagem do último desfile de Gallo

na semana da pátria. Afonso: “O que ele mais amava em Cachoeira do Arari... A vida dele foi

esse Museu, né?” Guia: “Isso!” Eli: “Ele ficou paraplégico, foi? e o rapaz que atropelou ele?”

Guia: “Eu não conheci. Não cheguei a conhecer.” Eli: “Não? Ele foi embora daqui?” Guia:

“Não sei!” Curiosidades e necessidade de saber.

Enquanto o Guia aponta um painel onde se lê: “O que é o que é?”, Eli comenta

com Afonso sobre as reportagens presentes no computador caipira em forma de pêndulo. É

um cubo de madeira com plaquetas em alto relevo contendo assuntos da saúde cabocla.

Afonso manifesta desejo de conhecer o bezerro-de-duas-cabeças, o Guia diz pra ele guardar a

curiosidade. Eli ouve a conversa diz também conhecer o animal. Em tom de brincadeira, o

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Guia diz estar no “arsenal” [estaleiro], lá em cima, sem fugir, a espera dos intérpretes. O Guia

percebe que parte do grupo, mesmo interessado no bezerro-de-duas cabeças, está

contemplando um painel com peças arqueológicas, são cacos das cerâmicas marajoaras

catalogados em uma bancada. Everton indaga: “Me diz, essas daqui foram descobertas aqui?”

Afonso reforça: “As verdadeiras, né?” O Guia confirma as assertivas dos intérpretes, os quais

não param de perguntar sobre os saberes arqueológicos

A gapuiagem segue. O grupo se espalha pelo salão de exposição. As observações,

os olhares atentos em várias direções procuram o que mais atrai nesse labirinto de saberes. A

câmera acompanha esse movimento e o recorte do ecrã seleciona o que é possível na

observação do pesquisador. Outro painel se revela: o da língua tupi. Todos mexem e lêem os

cartões vermelhos encaixados nos suportes verticais devidamente enfileirados. Cada um

mostra aos demais sua descoberta. Everton: “Essa língua aqui que eu achei bacana, achei

interessante [...] maloca, olha, maloca, macaxeira.” Neto aproxima-se: “É, são todas língua

tupi.” Everton toca uma placa e lê: “Ah! ‘É maqueira, né? Maquira, rede de dormir fabricada

com fibra de nossa flora.’ Eli: “Sucuri. Sucuri é cobra, né?” Afonso: “Abaíba, árvore-

depósito, para indicar árvore que conserva no tronco abundância de óleo balsâmico medicinal

[...] Engraçado, né cara? [para Everton] Como eu tô te falando, né? a gente que vive na

cidade, ter a oportunidade de tá descobrindo esses segredos...”

Enquanto isso, Willian mexe em um cubo giratório fixado ao chão, Everton volta-

se para as peças de cerâmica. Eli aproxima-se e aponta uma urna marajoara e surpreende-se

com o tamanho e visualiza as informações esclarecedoras sobre a origem e fases

arqueológicas. Descobrem que nelas eram guardados os ossos dos índios sepultados e

exumados. Indagam sobre os desenhos nas peças e relacionam com os encontrados nas

pinturas das casas e bancos da praça de Cachoeira. Neto confunde as urnas com as panelas

utilizadas pelos índios. Neto: “Hoje nós temos panelas de alumínio, temos panelas... o pessoal

hoje faz panela com tanta facilidade, enquanto eles não, era criatividade deles mesmo... de

barro. Só pra suprir as necessidades deles.” Eli: “Pra suprir as necessidades deles e ficar

aquela coisa gravada, né?” [motivos marajoaras]; Neto: “Hoje em dia nós temos os panelões,

né? De, de alumínio, né? E antigamente, ó... [aponta] faziam de barro, isso aqui serve pra

fazer comida... muitas vezes as pessoas pensam que não, mas uma peça dessa daqui [mostra

outra urna], isso aqui é um panelão [risos] [...] sai melhor [comida] do que no gás.” Eli: “E

sai mesmo!” [Risos].

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Eli questiona com o Guia sobre a originalidade e a reprodução das urnas, bem

como os povos primitivos que as fabricaram. Pergunta se O Museu tem curso de cerâmica. A

guia responde que sim, mas que não participou de nenhum até o momento. O grupo

permanece em frente às vitrines e observa os motivos marajoaras gravados nas peças. Eli:

“Aqui no caso, vocês já têm o curso de cerâmica e vocês fazem... a réplica.” Guia: “Eu nunca

fiz, né? Mas tem curso de cerâmica sim [...] são, são desenhos, réplicas, mas bem

trabalhadas.” Eli: “Significavam alguma coisa esses desenhos?” Neto: “Eu acho que é pra

diferenciar, da tribo, alguma coisa, né?” Eli: “Por que essas daqui é as tanguinhas que as

índias usavam, né?” Guia: “Os índios também eram vaidosos, eles são até hoje...” Neto: “Pra

se expressar, né? Já pensou uma comunidade só com essas mulheres... pra variar também,

né?” Eli: “Já tá, já no teu momento, né? Já tá no teu momento, né?” [Risos].

Nessa gapuiagem, percebo que o Guia tem pouca participação nos diálogos.

Quando em vez é interrompido pela ansiedade dos visitantes que se antecipam às suas

“explicações”. Percebo que O Museu é auto-explicativo e pouco exige a presença de um Guia.

Não há um roteiro rígido a seguir nessa visitação. A mobilidade dos intérpretes é livre e

aleatória. “Cada um descobre o seu Museu” [GALLO, 1996]. Outras peças são reveladas: Eli:

“A pessoa vai conhecendo e vai vendo que [...] por que tem muita gente que [pensa]... Ah! é

coisa antiga, tem muita gente que pensa assim.” Everton: “Eu acho uma coisa interessante

assim porque, além de ter o objeto, tem a explicação de cada objeto.” Eli: “É verdade. E

depois que você atenta [...] aí entra a vontade de ficar o dia todo, o mês todo, de fazer várias

visitas.”

O Guia mostra o painel de bordados e informa aos intérpretes sobre o projeto que

O Museu possui chamado “ponto de cultura”. Sobre esse projeto, segundo um dos diretores

d’O Museu, Paulo Câmera, é um projeto voltado para as senhoras e moças do município que

desejam desenvolver as potencialidades de costura e bordado como atividade geradora de

renda. Há um anexo d’O Museu onde funciona um ateliê com máquinas e mesa de corte e

costura funcionando no horário comercial. São camisas masculinas e femininas, vestidos,

guardanapos, toalhas de banho e inúmeras peças desenhadas e criadas por esses artesãos. Essa

atividade é ampliada em lojas para venda aos turistas que nunca deixam de levar uma

“lembrança” do Marajó.

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Na continuidade, os intérpretes estão diante de um painel com formato de caixa

com visores de vidro e manivela lateral. Trata-se de um computador com assuntos do homem

ribeirinho. Eli brinca e diz que o computador não tem fio elétrico, não tem internet. Todos

riem da situação e tocam na engenhoca girando a manivela que movimenta em eixo horizontal

os textos informativos e se surpreendem. Guia: “Esse aqui é o famoso computador do

ribeirinho. Sem tomada, sem, sem, contato mundial, né?” Eli: “Não tem internet...” Risos.

Guia: “É só o trabalho de abrir e botar outra história aí dentro.” Everton surpreende-se: “Olha!

O visitante e o ribeirinho, né?” Eli: “É bem interessante essa engenhoca, bem interessante

mesmo. Nossa Senhora! Esse Museu é tão rico em cultura que eu tô impressionado e é

complicado de... como já falei de ver só em um só dia, né? Muita coisa pra se aprender, muita

coisa pra se aprender.”

São muitas as informações que cercam os intérpretes. Viram-se para a direita,

esquerda, caminham para frente, voltam-se, olham para todos os lados. A impressão que tenho

é que estão em um parque de diversões, e na verdade estão, qual crianças sem saber direito o

que tocar primeiro. Passaram por vários computadores, saberes, como se navegassem pelos

rios marajoaras escolhendo um charco ou um teso para realizar sua gapuia. Agora, encalharam

na antropologia. Willian lê: “ ‘Fase mangueira’. É impressionante a criatividade dos povos

antigos. E a gente acha que tem criatividade é o... [que somos] o homem moderno, né? O

homem do século 21 [Ironiza].”

Ao lado do painel sobre antropologia está uma vitrine com livros de Dalcídio

Jurandir e de Gallo, como também de outros autores que se debruçaram ao pesquisar o

Marajó. Passam pela vitrine arrastando os dedos sobre o vidro, como se desejassem tocar nas

obras literárias, se pudessem, certamente fariam o manuseio das páginas. Na sequência, vê-se

a seção dos negros e os artefatos sobre a escravidão. Percebe-se que, neste painel, há um

destaque para os assuntos da cultura negra presente na ilha, os documentos antigos, as

primeiras cartas de alforria, as certidões de nascimento de antigos habitantes concedidos pela

Coroa e Senhores nos tempos do Império, os instrumentos de castigos espalhados pelo chão,

as lamparinas e candeeiros, as bonecas de pano feitas pelas avós e outros artefatos. Próximo,

outro painel mostra as palavras de origem africana, as gírias e a linguagem por eles utilizadas,

a culinária, a moradia, as frases pejorativas e que discutem o racismo. A câmera descreve esse

ambiente e foca Afonso, que aponta uma foto de satélite da Ilha do Marajó e se dispersa logo

em seguida. Aparecem outros livros, a maioria sobre o Marajó.

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Aproximam-se de um cubo giratório em forma de pêndulo, O Museu está cheio

deles. Nas laterais, algumas plaquetas de madeira provocam o interesse pelo assunto

“racismo”. Lêem simultaneamente. Neto: “Vocês sabiam que as nossas gírias discriminam os

negros?” Everton: “Nossas gírias denunciam o racismo [...] o racismo é anticonstitucional’.

Eu acho que discriminação, racismo, eu acho que... não só é coisa do passado, mas é coisa de

pessoas que tem a mente fraca, né? Eu acho. Querem tanto diferenciar raças, cores, povos,

que acabam sendo pessoas medíocres, né?”

Neto aponta uma peça de madeira no chão do Museu e lê uma placa: “O

pelourinho”. Ele indaga os demais intérpretes sobre o modo de como eram usados os artefatos

de castigo contra os negros em tempo de escravidão. Travam um diálogo sucessivo de

perguntas e suposições. Tocam os objetos e tentam levantar as pesadas bolas acorrentadas,

fixadas na parede. Ao chão estão as travas de grossas madeiras com orifícios de pescoço, pés

e mãos.

Configuram uma situação ao simularem a posição dos escravos quando de castigo.

Lêem as placas com conteúdos históricos, os costumes da época, a linguagem pejorativa

utilizada, as histórias contadas dos escravos no Marajó, os documentos de compra e venda, as

cartas de alforria, tudo é motivo de descoberta para os intérpretes que não param de gapuiar.

Afonso chama a todos para ver a sua nova descoberta. Afonso: “Isso aqui! O que é? Eles

colocavam a pessoa... será?... pra...” Intrigado, continua: “é o tronco de ferro e madeira! Eles

colocavam os braços, as pernas. Isso aí!” Ele aponta paras as peças de ferro fixadas na parede.

[deduz] “Ficava em cima disso daqui... acorrentados, tá entendendo? Pra ficar preso!” Eli:

“Difícil. Aí as mãos deles ficavam pelo lado de lá, né? E eles botavam nesse ferro aí.” Mostra

a abertura maior do buraco na peça de madeira exposta no chão. “Aqui, como é maior, dá pra

ver a diferença de como ficava o pescoço das pessoas. Dos escravos no caso, né?”

Complementa. Everton: “Era o pescoço, era? O escravo ficava aqui, Ó! [aponta] É verdade!”

Percebo que os intérpretes ficaram impressionados com os instrumentos de tortura

do tempo da escravidão. Sem fazer nenhuma adjetivação dos meus sentimentos em relação a

esse momento, digo que esses conteúdos no Museu é um dos pontos altos da visitação, por

considerar o impacto causado, para quem nunca viu algo semelhante, e a forma de como são

apresentados.

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Em suas falas, ficam claras as impressões causadas por esses objetos, ao mesmo

tempo em que impressionam, promovem uma contextualização do pensamento de uma

sociedade de outrora, costumes e situações sócio-políticas de nossa história. Eles permanecem

na gapuia. Willian: “Olha! Olha como funcionava isso aqui, Ó! Olha como funcionava, olha

como é bem interessante” Mexe no “pelourinho” e mostra como era usado. Everton aponta

para uma bola de ferro no chão: “E a bola de ferro era no pé.” Afonso: “Não. A bola de ferro

era mais no caso assim. [...] é de, de...” Tenta levantar a bola: “esse pesa, viu! Esse pesa.

Deve ter uns trinta quilos, não é não?” Guia: “Não. Tem mais. Uns quarenta, quarenta e cinco,

mais ou menos.” Afonso: “O cara, neste caso, o escravo, desidratado não fugia nem com... O

cara desidratado, com fome, mal alimentado... pesava cem quilos”.

Uma foto do Michael Jackson chama a atenção de Eli. Logo abaixo da foto

pergunta: "Será que o branco é melhor do que o preto?” Essa seção d’O Museu tem causado

polêmica e divide opiniões por parte dos Cachoeirenses. Segundo relato de um dos

funcionários, que não quis se identificar, a seção sobre “racismo” não é bem compreendida

por alguns moradores negros do município que pensam “estar servindo de piada aos

visitantes. Não compreendem o verdadeiro objetivo desse painel, que é provocar reflexões a

respeito de um assunto tão velado”. E segue a gapuiagem dos Músicos.

PLANO 3. Moradores do Marajó: a presença do riso na gapuiagem

Iniciada a gapuiagem, Amélia e Leandra abrem a caixa do computador caipira

“Aqui começa o nosso Museu”. Lêem atentamente sobre o período jurássico da peça mais

antiga. A reação deste grupo é diferente dos intérpretes da gapuiagem anterior, daí a

importância de mostrar as diferentes reações para diferentes interpretações.

Amélia: “É um peixe, pra mim é um peixe. É uma cobra. Mas, pra mim mesmo é

um peixe.” Leandra: “É um peixe.” Amélia lê a placa: “A peça mais antiga é esse peixinho que

tem a beleza de 190 milhões de anos. Vivia tranqüilo quando a Terra virou uma fúria [...] da

nossa Traira?” Risos. Amélia continua: “190 milhões de anos’. Ixi!. Vamos ver qual é a peça

mais nova. Vamos lá!” Levantam a outra tampa e se vêem no espelho. Risos. Amélia aproveita

e ajeita o cabelo. As duas intérpretes entram no salão de exposição, acompanhadas de Agenor

e Joaquim; observam em silêncio os painéis. Seguem direções diferentes e se encontram no

“Cantinho do Gallo”. Lêem atentamente as informações, sempre calados; dirigem-se ao cubo

giratório, levantam algumas plaquetas e as soltam como se estivessem com pressa; passam

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pelas urnas marajoaras. Leandra pára e chama Amélia e comenta: “Olha esse vaso!” Agenor:

“Não é vaso, é urna [...] igaçaba.” Leandra: “hummm!!!”

A brincadeira continua. As duas, de mãos dadas, mexem em um computador,

falam entre si baixinho e riem. A seguir, vão até uma parede, onde estão pendurados vários

utensílios domésticos. Agenor e Joaquim seguem caminhos diferentes. Amélia pergunta a

Leandra sobre a peça. Leandra diz que aquelas são coisas antigas. Aparece uma placa no alto:

"Marajó ontem e hoje - a cada objeto antigo corresponde outro moderno - confira”. Elas

mexem nos objetos estabelecendo relações entre os artefatos. Leandra: “Olha! Legal. Pescaria

da saúde!”. Joaquim também se interessa e se aproxima da instalação sobre saúde: “É?”

Amélia se aproxima, puxa um dos barbantes e pega uma das plaquinhas

correspondentes e lê silenciosamente. Em seguida, Agenor faz o mesmo, lê outra plaquinha, e

mais outra. Ambos estão a gapuiar os saberes da saúde. Tudo muito rápido. O ritmo é deles.

Caminham até um mural, pegam em panos, olham alguns vidrinhos, abrem tampas, lêem as

informações que estão dentro dos vidros como mensagem dos náufragos históricos. Joaquim

pega em umas pequenas placas penduradas a altura de seus olhos, gira o verso e anverso, e dá

uma rápida lida. Volta-se, abre e mexe outro "computador". Mais adiante, giram a manivela,

lê os enunciados no visor, levantam a vista, foca para a parede onde estão algumas fotos e

identifica o padre Gallo no meio de uma procissão. Joaquim: “É no enterro dele é?” Amélia:

“Que enterro? Não, é ele aqui” Aponta uma pessoa de costas, supostamente o padre. Leandra:

“É ele. Acho que é a procissão de Nossa Senhora da Conceição.”

Nas fotografias do painel estão as festas populares de Cachoeira do Arari, uma

delas é a festa de São Sebastião, identificadas pelos intérpretes. Em seguida, avistam um

pequeno armário e Leandra aponta a figura de um santo: “E esse aqui qual mesmo? Senhor do

Bonfim, né? Senhor do Bonfim” Esfrega o dedo no vidro empoeirado. Por um momento

Leandra e Amélia se afastam do grupo. Joaquim observa a seção de culinária “nossos pratos",

enquanto Agenor mexe em um “relógio”, gira a manivela e percebe que outro painel é

movimentado por trás, uma espécie de engrenagem. Um vaso ornamentado48

48 Vaso marajoara; ornamentado, com desenhos tribais, “motivos marajoaras”.

aparece no ecrã.

Joaquim abandona o computador da culinária marajoara e direciona-se para um oratório. As

meninas se aproximam junto com Agenor. Agenor aponta uma imagem: “Isso aqui é a cabeça

de quê mesmo, heim?” Amélia: “Quem é essa mulher aí? O que que ela representa?” Leandra

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soletra a placa: “A-nas-tá-cia”. Amélia: “Quê? Tia Anastácia, é?” Refere-se à personagem de

Monteiro Lobado49

Este intérprete mostrou-me outra possibilidade de se aprender n’O Museu.

Solitário, revela-se autônomo e livre para gapuiar os saberes que mais lhe interessaram. Nesta

. Risos.

Outros painéis surgem à frente das meninas, que olham apressadamente como se

escolhessem um assunto de maior interesse. Aparece a maquete de uma cabana e alguns

animais embalsamados. Leandra: “Olha o tamanho do...” Amélia: “Olha o tamanduá-

bandeira, olha! Ixi! [faz gesto de susto] parece que tá vivo, vai pegar a gente. Isso aqui é o que

mesmo, heim?” Amélia: “Isso aqui é uma... esqueci o nome!” Joaquim: “Cutia?” Amélia:

“É!” Leandra: “Isso aqui é uma preguiça, tatu, tucano, tucano. A gente não pode pegar nele

não, né?” Agenor: “Não. Olha aqui, o que é isso aqui?” Leandra: “Uma cobra? Nããão! Deu

medo.” Amélia: “Ah! É mesmo?” Risos.

Os quatro intérpretes se divertem com os animais, simulam correr de medo, tocam

e conversam e demonstram intimidade com aquele universo. Dirigem-se a uma maquete de

madeira. Leandra: “Olha aqui, como é aqui, Ó! O Museu.” Agenor: “Como Cachoeira é

pequena, né?” Amélia: “Que nada! Isso aqui é O Museu.” Leandra: “Ah! O Museu era desse

tamanho, é?” As duas caminham na direção de um boneco em escala real. Trata-se do

“vaqueiro” e seu ambiente. Leandra simula brincadeiras de assustar Amélia. Leandra ameaça

tocar e Agenor a repreende. Ela insiste e comprova o material que constitui a peça. Observa

os detalhes e comenta sobre a bolsa à tira-colo da imagem. As duas agora tocam o boneco

simultaneamente, uma de cada lado. Leandra conclui: “Não falei que o boneco é feito de um

tipo de borracha! Não... acho que é palha. Parece borracha. Que material é esse?” Os

intérpretes seguem para outra parte do Museu. Param em frente a um esqueleto de cavalo

cercado por uma espécie de cerca. Leandra não perde tempo: “Bonito. Não falei que tinha

assim tipo um dinossauro!” Agenor: “Égua! Dinossauro! Eu, heim! Isso é esqueleto de cavalo

sua...”

CORTA

PLANO 4. Gapuiagem de Rafael

49 Personalidade da literatura brasileira, autor do Sítio do pica-pau amarelo, onde Tia Anastácia é personagem. No painel d’O Museu, Anastácia é uma escrava bonita, que é morta e assassinada.

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gapuiagem, faço um recorte de sua trajetória pelo Museu, para descobrir outros saberes não

apresentados até agora.

Rafael gira a manivela de um computador. Aparece um cartaz com a escrita:

"Criar uma nova consciência pública de respeito ao índio". Há também, nesse mesmo cartaz,

uma foto em preto e branco de uma índia com um bebê. Estão dormindo, ou mortos. Tem um

texto de Álvaro Caripuna logo abaixo, que diz: "e que o índio seja encarado como ser não

como objeto; que seja o fim, não o meio; que seja aproveitado e não jogado; que seja

lembrado não esquecido, considerado, não menosprezado; tratado em nível de igualdade, não

de inferioridade; que seja considerado capaz e não incapaz [...] com diretos de vida em busca

da felicidade, porque, afinal, é um ser humano, respira, pensa e sofre!"

Durante algum tempo, Rafael fica agachado diante da banca lendo e

contemplando o cartaz. Levanta-se e dirige-se a outros painéis. Há algumas caixas a sua

frente. Rafael abre uma delas onde está escrito na tampa: "Piranha - o advogado dos peixes".

No interior da caixa um texto: "Esta malhadeira foi usada três vezes". Tem uma rede velha de

pescador dentro da caixa. Rafael fecha a caixa e abre a do lado. "O homem que a piranha

comeu", diz na tampa. Ao levantá-la, aparece a história do homem que foi devorado pelas

piranhas. Comenta: "Esse rio aí, do Ararí, é só piranha".

"Piranha morde mesmo. Abra", diz a tampa da caixa seguinte. Rafael abre. "Aqui

estão as lembranças dos dentes das piranhas", está escrito na tampa pela parte de dentro da

caixa. Dentro, há um grande pedaço de borracha [câmera de pneu] com marcas de dentes de

piranhas. No fundo da caixa, um pequeno texto sobre a peça. Outros animais lhe chamam a

atenção: o pirarucu embalsamado; crânios de búfalos. "Os maiores búfalos aqui do Marajó",

ele lê no painel informativo. Lá atrás, uma maquete de uma fazenda.

Rafael mexe em outro computador. Dá pra ler que está escrito: "o museu do

Marajó tem o aviário mais ecológico do mundo, por quê?" No outro lado da placa: "os nossos

passarinhos estão cantando no quintal. Aqui, porém, deixaram a carteira de identidade [nome

científico e popular] com foto colorida, claro!". Na parte de baixo da peça, há várias

plaquinhas penduradas, com imagens de pássaros. Rafael continua a girar a peça e toca de

leve nas plaquinhas [ouve-se um galo cantar ao fundo]. Lê uma delas, a do sabiá. Pega outra

placa, a do bem-te-vi.

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E ele toca e mexe, vira e levanta plaquetas, roda manivelas e se depara com a

fauna do Marajó. Na parede, mais imagens, de aves e borboletas. Levanta o braço direito e

quer tocar os animais enfileirados por trás de um vidro; aproxima o rosto como se quisesse

ampliar sua visão nos enunciados das espécies; percorre a vista lentamente e gira o corpo,

baixa o olhar e depois a cabeça. Em uma mesa, avista os mais variados tipos de nós. "Nós de

guia", diz Rafael lendo o papel [o galo volta a cantar]. No chão, um imenso jacaré

embalsamado. Rafael se curva e pega uma placa, levanta e lê as informações sobre o bicho.

Dirige-se então às outras plaquinhas penduradas. Passa por entre elas e dá uma

lida em algumas. Ele está agora nos penduricalhos "Assim falam os caboclos", diz o painel.

Em uma das plaquinhas está escrito: "Perecatas". Na parte de trás, a explicação: "Espécie de

sapato grosseiro feito com couro". Em outra placa: "Escoado". No verso, a explicação:

"Manada de gado de onde já foram apartados os animais aleijados, velhos, vacas muito

barrigudas, ou com bezerro recém-nascido, gado de outro lote ou fazenda".

Rafael segue. Vê um urubu empalhado. Abaixo, várias ilustrações [o galo canta

novamente]. Rafael levanta uma plaquinha e lê a informação sobre a ave, que diz: "Urubu

gosta de carniça e peixe podre, porém não recusa comida fresca e não dispensa carne de sol.

Todo cuidado é pouco, senão ele faz a limpeza do varal, onde as mantas [de carne] estão

penduradas. Existe um remédio: mágico, infalível, só por uma peixeira com a ponta para

cima, bem na ponta do varal ou um pano branco feito bandeira.

Rafael levanta outra plaquinha. Está escrito por baixo: "Faz mal contar urubu. Dá

verruga no dedo" [mais uma vez ouve-se o galo cantar]. Em outra placa que levanta está

escrito: "Uma moça saiu a procurar um marido. Ela queria mesmo casar com o gavião inajé.

Infelizmente, errou o caminho, bateu na porta da mucura e depois do urubu. Até que enfim

encontrou o gavião e casou com ele. No dia seguinte o urubu apaixonado, correu atrás da

moça e acabou brigando com o gavião e apanhando uma bicada que lhe quebrou a cabeça. A

mãe dele em casa quis fazer um curativo e aquentou a água para lavar a ferida. A água ficou

tão quente que acabou depenando-lhe a cabeça que ficou assim pra sempre.” Rafael baixa a

placa, toca em outra, ao levantar, aparece a foto de um indiozinho com arco e flecha, lê a

explicação: "Flecha, feita com pena de urubu-rei, nunca erra o alvo". O intérprete olha para a

parede onde está esticado o couro de uma cobra: "Isso aqui é um couro de cobra de sucuri. Ela

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devia ter mais ou menos... sete metros. Vive muitos anos. [...] A cobra virou serpente", diz o

rapaz, ao ler uma das plaquinhas abaixo do coro de cobra esticado.

A gapuia continua e Rafael vai ao painel "Você fala tupi?". Levanta uma das

inúmeras plaquinhas vermelhas [caiçara] "Caã-içara: o cercado, a trincheira", ele lê; abaixa a

plaquinha. "Língua tupi”, lendo o letreiro principal; estala os dedos e esfrega as mãos; levanta

outra plaquinha “Moqueca”. Está escrito por baixo: "Moqué ou po-kéca: feito embrulho,

peixe assado entre folhas que o envolve e no meio das cinzas." Abaixa a plaquinha.

Por um momento, o rapaz põe as mãos na cintura, olha de um lado para o outro,

parece não saber pra onde ir. Rafael fixa o olhar, caminha e pára diante de uma vitrine com

várias peças expostas. Como pesquisador, percebo que a escolha pelo saber gapuiado é um

dos ingredientes da educação dentro d’O Museu. Ao escolher a vitrine de pedras, percebe que

estas são armas ou instrumentos primitivos. Está escrito: "Machado de aço: um problema

sério", diz o papel. Dirige-se à outra peça. Levanta as plaquinhas e vê que não há nada escrito

por baixo delas, somente na primeira é que tem um texto.

No fotograma 42 [performance do intérprete], Rafael gira uma plaquinha, lê a

resposta de um lado, girar a peça e lê a pergunta correspondente. São os penduricalhos na

seção “Assim falam os caboclos”. Ele prossegue sua gapuiagem.

Fotog. 49 – Computador caipira do tipo “penduricalho”..Fonte: Portal [2005]

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Para ilustrar, o fotograma mostra uma das seções mais visitadas d’O Museu. Fica

do lado esquerdo do salão de exposição em área privilegiada pela luz natural que entra pelas

janelas. São plaquetas penduradas aleatoriamente, com assuntos diversos da lingüística

marajoara. Nessa instalação, percebo uma forte identificação das palavras usadas em nosso

cotidiano com as palavras utilizadas no vocabulário do homem do Marajó. Segundo Silva

[2005, p. 242]: “Sobressaem-se em seus intercâmbios lingüísticos cotidianos, como resultado

de condutas, atitudes e valores, ou seja, de identidade cultural e principalmente geográfica.” A

autora afirma em sua tese intitulada “Estudo Semântico-Lexical com vistas ao atlas lingüístico

da meso-região do Marajó/Pará” publicada pela editora da Universidade da Amazônia -

Unama, no ano de 2005, que, o falar marajoara é a mais genuína representação do falar do

povo paraense.

As gapuiagens chegam ao final. Os rios de saberes n’O Museu se espraiam e

inundam a fervescente imaginação dos intérpretes, como “os campos inundados fervem ao sol

da tarde. Sobe um calor das águas paradas que subiram meio metro. Os peixes bóiam n’água

transparente comendo o resto de comida que Inocência sacode da toalha” [JURANDIR, 1997,

p. 283]. Está na hora de fazer a apartação.

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SEQUÊNCIA 4. APARTAÇÃO DOS SABERES GAPUIADOS

Após a gapuiagem apresentada na sequência anterior, primeiro e segundo

momentos, faço agora a apartação dos saberes. É o terceiro momento da visitação, onde reúno

os intérpretes em uma segunda roda de conversa, para investigar os sentidos atribuídos à

experiência vivenciada n’O Museu. O termo “apartação” é utilizado por considerar parte do

vocabulário marajoara e não significa isolar os saberes gapuiados, porém, destacá-los em uma

relação organizada,

com tudo quanto estiver relacionado com ‘o aprender e o saber’ [...] Analisar a relação com o saber pode ser, de acordo com o momento do processo, seja ordenar dados empíricos, seja identificar relações características [...]. [O pesquisador] estuda relações com os lugares, pessoas, objetos, conteúdos de pensamento, situações, normas ralacionais, na medida em que, é claro, está em jogo a questão do aprender e do saber [CHARLOT, 2000, p. 79].

[...] Kant já escrevia, no fim do século XVIII: “O homem é a única criatura que precisa ser educada [...] Dado que a criança nasce inacabada, deve construir-se e só pode fazê-lo de “dentro”, a educação é produção de si próprio. Dado que a criança só pode construir-se apropriando-se de uma humanidade que lhe é “exterior”, essa produção exige a meditação do outro. A educação não é subjetivação de um ser que não seria sujeito; o sujeito está sempre aí. A educação não é socialização de um ser que não fosse já social: o mundo, e com ele a sociedade, já está sempre presente. O que é analisado aqui como relação funciona como um processo que se desenvolve no tempo e implica atividades. Para haver atividade, a criança deve mobilizar-se. Para que se mobilize, a situação deve apresentar um significado para ela [Idem, p. 54].

A relação dos intérpretes d’O Museu com os saberes é construída em analogias

sociais de saberes na procura de uma educação mobilizada em processos que se desenvolvem

em atividades compartilhadas, ou seja, é a relação com o mundo marajoara, com o homem

marajoara, e com ele mesmo. Apartar os saberes gapuiados na roda de conversa é apresentá-los

e analisá-los na contextualização dos próprios saberes. É quando os intérpretes revelam os

sentidos atribuídos ao desejo de aprender, ao apropriar-se dos saberes e relacioná-los com as

vivências e experiências de vida de quem produz e/ou vivencia o saber marajoara.

Dessa maneira, procuro responder a última questão norteadora na busca de

resultado[s] para a problemática deste estudo: que saberes emergem após a gapuiagem n’O

Museu? As respostas são simultâneas e sucessivas. Na roda de conversa, todos querem falar ao

mesmo tempo. Os sentidos estão ali, emergentes, fervescentes.50

50 Termo utilizado para justificar a efervescência dos sentidos expressos por um grupo de pessoas, de forma espontânea e irreverente, em uma roda de conversa após a visita n’O Museu.

Saberes apartados.

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Fotog. 50 – Família Pereira após a gapuiagem. Fonte: Alves [2007].

Na efervescência das vozes, emergem com freqüência os saberes sobre o “Homem

e a Cultura Marajoara” descritos na Panorâmica 1, onde dialogo com autores que abordam

essa temática ao discorrer cenas que falam do sagrado do mito e o profano dos seres

humanos; da mesma maneira sobre vaqueiro pescador ou pescador vaqueiro?; o lugar dos

seres humanos e da cultura marajoara; e, complementando, as vozes da cultura como saber.

Adiante, na Panorâmica 2, outros saberes são apresentados como pilares que sustentam a

educação dentro d’O Museu.

PANORÂMICA 1. Homem e Cultura Marajoara

Ao analisar as significações sobre o saber referendado, opto por apresentar as

vozes dos intérpretes, articuladas às inserções teóricas dos autores e à narrativa do

pesquisador. Entende-se homem marajoara os seres humanos que habitam a ilha como novo

paradigma de gênero.

As múltiplas interpretações sobre os seres humanos marajoaras, por parte dos

intérpretes, revelam a presença do[a] índio[a], do homem e mulher ribeirinhos, do[a]

pescador[a], do[a] criador[a] de búfalos, do homem e da mulher rural, todos[as] constituintes

das populações do Marajó e que se fundem à paisagem do campo e dos rios, os quais vivem na

e para a natureza. As falas sobre Seres Marajoaras se mostram sem excluir a Cultura

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Marajoara e se expõem sobre Cultura Marajoara sem excluir os Seres Humanos Marajoaras.

Portanto, é difícil ou quase impossível desassociar essas duas categorias. Vamos conferir:

Agenor: São aquelas pessoas que têm aquela cultura assim [...] antiga sabe, assim, no caso das ilhas.

Joaquim: Eu lembro um pouco os indígenas, né? na minha concepção... Aquela coisa, os ribeirinhos também, né?

Ana Paula: Cultura tradicional.

Gustavo: É uma civilização.

Ana Paula: Artesanato. Uma civilização, né?... da Ilha do Marajó.

Rafael: É aquele homem que vive assim, pra natureza, né? caça, pesca, é isso aí. Vive pra natureza. É uma pessoa que vive assim, diferente do que vive na cidade.

Amélia: Homem marajoara? Mora aqui no Marajó! É um trabalhador, isso! Só pode ser isso! É uma pessoa, pescador, sei lá! Ah! Anda de búfalo, vaqueiro... eu acho que pra mim é isso. Os fazendeiros marajoaras. É assim o que eu penso!

É forte o sentimento de tradição quando falam da cultura marajoara. Nesse sentido,

o imaginário dos seres marajoaras passa a ser cenário que se configura a um conceito de que a

ilha do Marajó é predominantemente rural. As cidadezinhas que pontilham aquele território

são vilas de pescadores[as] e de trabalhadores[as] rurais, ao mesmo tempo sede de apoio aos

fazendeiros os quais buscam infra-estrutura para desenvolver atividades nas fazendas. Assim

vive os Seres Humanos do Marajó, com as histórias de sobrevivência, de cultura da terra, dos

rios, suas lendas e mitos. Sobre isso, expressa Gallo [1996, p. 260-61]: A idéia básica é apresentar não o objeto e sim o homem que está atrás do objeto [...] Aqui chega a oportunidade de explicar por que a peça mais importante do nosso Museu é o homem e não o objeto exposto: este não é nada mais do que o elo entre o visitante[- aprendiz] e a realidade marajoara. As famosas igaçabas são lindas, mas é mais interessante descobrir quem eram os índios que as fabricavam, sobretudo por quê.

A citação deixa claro que O Museu foi pensado e construído para os seres humanos

compreenderem o processo histórico-cultural do Marajó. Freqüentar O Museu é visitar não

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somente os artefatos e saberes constituídos, mas visitar os próprios seres marajoara e toda sua

expressão cultural, sua origem, os índios e sua [a]culturação, o processo de mestiçagem, o

caboclo, o branco colonizador, as histórias do negro, da escravidão e de muitos outros

assuntos ligados à antropologia, arqueologia e outras áreas do conhecimento.

Sobre as famosas igaçabas referidas pelo Gallo [1996], o caboclo marajoara

acredita que os índios cortavam os mortos em rituais de funerais. Sabe-se que os ossos achados

nas igaçabas eram restos mortais de exumados, enterrados normalmente em primeiro

momento; em seguida, passado um tempo, os ossos eram pintados de urucum51

Para somar, Fares [2003] busca em Ginzburg a história de um moleiro,

Menocchio,

e guardados

nas igaçabas, e estas enterradas. Junto com os ossos, um apetrecho identificava o morto,

podendo ser boneca, se criança; machado, se homem; tanga, se mulher. Parte dessas peças é

encontrada nos tesos dos rios, nos sítios arqueológicos de tribos primitivas como o povo

nuaruaque que habitou a ilha do Marajó no início dos anos de 1.100 a.C, e se desenvolveu na

costa norte até o rio Camará [CRUZ, 1987, p. 17].

52

Nesta perspectiva, vejo O Museu do Marajó também com essa função de revelar os

seres humanos a eles mesmos, ao apresentar valores do sagrado e instituído [a natureza, os

saberes], em meio às interferências do profano, do perigo, o que destrói [ação do homem]. A

para captar o pensamento crítico e formular estratégias de criação

histórica/narrativa de seus personagens. Qual Ginzburg, a autora dialoga com Gallo, para

construir suas cartografias marajoaras, e nelas, o narrador para apresentar a cultura, a

oralidade, as histórias de vida, sua ilhas imaginárias. Nesse sentido, Gallo é o moleiro

marajoara que valoriza as micro-histórias sobre o Homem do Marajó.

CENA 1. O sagrado do mito e o profano dos seres humanos

No cenário do universo marajoara aparecem o sagrado do mito e o profano do

seres humanos. Para Fares [2003, p. 159]: “Um define o outro. O sagrado é um território

apolíneo, o profano é dionisíaco. A ordem sagrada é o espaço de manutenção, do instituído; o

profano é o de desestruturação, da criação.”

51 Pigmento avermelhado, corante natural extraído da semente do urucum, utilizado nas pinturas corporais, adornos do artesanato e culinária. 52 Personagem de Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes, que é processado pelo Santo Ofício em plena idade média. Prioriza o como das coisa, valoriza o acaso levando-o para a cientificidade.

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linha interpretativa está na relação entre seres humanos e natureza. É o ser na sua dualidade

imaginária. Como anunciação do sagrado e instituído, O Museu espalha saberes mitológicos da

Amazônia, os encantados com as histórias que atravessam as gerações em memórias, “os mitos

tradicionais [mito índio, boiúna, iara], os elementos propriamente culturais [Sereias] até o

homem [canoeiro], encontram-se elevados a um status mitológico” [OLIVEIRA, 2003, p. 75];

como também anuncia saberes profanos construídos e [re]criados pelos seres humanos, aqueles

que interferem na natureza mítica e a transformam, ora preservando, ora destruindo. Segundo o

autor, é uma forma de confrontamento entre mito e realidade, ligados a um tempo cósmico,

submetida a uma nova realidade que se impõe.

Ao encontro desta prospecção, outro autor que trago para o diálogo é Loureiro

[2007], que diz: “O imaginário vem do real. O imaginário e o real se apresentam no mesmo

plano. Para compreendermos a relação entre mito e realidade, seres humanos e natureza mítica,

é preciso ter em mente seu caráter educativo.”53

53 Afirmação feita pelo autor em palestra no Programa de Mestrado da UEPA. 2ª turma, em abril de 2007.

Nessa afirmativa, é necessário abrir um espaço

poético para melhor compreender as inferências deste autor, na tentativa de justificar o caráter

educativo do presente estudo ao Museu do Marajó e a valorização dos seres humanos

marajoaras, detentores do fundamento da natureza mítica, e que conhece bem o rio sem saber

explicá-lo, se mito, se rio, porque é rio, e nada mais: O rio não tem consciência de si mesmo, tanto que sua existência é ser corrente. O rio-em-si não é nem bom, nem mau. É rio. E, sendo rio, inunda a seca, pois inundar a seca, é o ser do rio e sua inconsciência de si mesmo.

[LOUREIRO,1985, p. 129]

Para Oliveira [2003, p. 93], o mito destruído não explica, nem é explicado:

Afoga-se a Uiara em poluentes.

E abandonado, o homem de seus mitos, passa boiando boi homem de bubuia, no esquife dessas ondas mortuárias... [p.128]

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Sem a simbologia da Uiara na poesia, o homem fica sem sua visão lendária, que é

destruída. O olhar atento do poeta Loureiro nos revela outra situação obscura aos olhos dos

desatentos, nesse confronto entre mito e realidade: Por sob cada folha um olho olha, boiunamente multinacional um olho olha. De pálpebras raízes minerais um olho olha [...] O rio é berço do homem. O rio é boca do homem. O rio é vida do homem. O rio é cova do homem. Os olhares semeam-se em barrancos de boiúnas mundiando a dúvida. A moenda das águas mói as ondas... [p, 143-144]

Oliveira [2003] apresenta a boiúna como um mito em seu habitat, como simbologia

de seu próprio mito, e o descola esteticamente para exercer uma função distante e “natural”.

No poema, a boiúna é metáfora que representa a destruição e medo, ou medo da destruição, ao

mesmo tempo pode ser a metáfora da cobiça humana representada pelo capital “boiunamente

multinacional”. Dessa forma, trazer para discussão a poesia de Loureiro, nesse contexto, é de

fundamental importância para se pensar nos seres humanos marajoaras e seus mitos. Para

Cassirer [2001, p. 123], se quisermos dar conta do mundo da percepção mítica e da imaginação mítica, não deveremos começar com uma crítica de ambos os pontos de vista dos nossos ideais teóricos de conhecimento e de verdade. Devemos aceitar as qualidades da experiência mítica por sua ‘qualitatividade imediata’. Pois o que precisamos aqui não é uma explicação de meros pensamentos ou crenças, mas de uma interpretação da vida mítica.

Em “Ensaio sobre o Homem – Introdução a uma filosofia da cultura humana”,

Cassirer dialoga com Durkheim [s/d] e diz que não podemos explicar os mitos enquanto

procuramos sua origem no mundo físico. “A sociedade é o modelo do mito e não a natureza; o

substrato do mito não é um substrato do pensamento, mas do sentimento do homem” [p. 135] e

sua relação com a natureza. De tal modo, o homem é protagonista da paisagem mítica, e o rio

no Marajó se torna cenário, paisagem que se configura e determina o ritmo do todos que

habitam e visitam a ilha. “É uma realidade labiríntica, assume uma importância fisiográfica e humana

excepcionais [...] Dele depende a vida [...] a fertilidade [...] e a economia.” [LOUREIRO, 1995, p. 121].

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Como personagem do cenário marajoara, os seres humanos são agentes fundantes

de suas próprias culturas, sendo vaqueiro, pescador, ou os dois ao mesmo tempo. Seja lá qual

for a sua atividade, está recheada de histórias que são construídas através da oralidade como

expressão genuinamente de seu habitat, “a partir de matérias escavadas nas formas orais de

sobrenaturalidade e no imaginário popular [...] os horizontes conflitantes da ação humana com

a natureza e compreende que o mundo sobrenatural é uma categoria a ser incluída” [FARES,

2003, p. 157]. A inserção do sobrenatural na cultura dos seres humanos do Marajó é

incorporada como necessidade de preservar a memória através dos ritos de consagração, que servem para transmudar a natureza do profano e do sagrado. Os ritos de dessacralização ou expiação, ao contrário, têm o caráter negativo, restituem a pessoa ou objeto puro ou impuro ao mundo profano [...] as proibições ou tabus protegem o homem e a natureza das catástrofes, constituem-se em defesas, destinam-se a manter a integridade do mundo organizado. Os antepassados, ao instituírem os interditos, fundaram a boa ordenação e o bom funcionamento do universo, determinaram a relação entre seres e as coisas, os homens e os deuses, definiram os limites do permitido e do proibido. O tabu consiste num ato que não se pode bulir sem causar prejuízo à ordem universal, cada transgressão desconcentra a ordenação na sua totalidade [FARES, 2003, pag. 159].

Em sua tese, a autora traz a Mãe d’água como exemplo do universo mítico-

lendário. Considera mãe dos rios da Amazônia, a Mãe d’água é também chamada de mãe dos

lagos, penaliza os que pescam desnecessariamente. Também é conhecido como Iara, um dos

mais conhecidos seres mitológicos da Amazônia. Sobre a Iara, trago Carvalho [2006, p.225]: Iara é a sereia das águas amazônicas. Seu poder de sedução sobre os homens é tão forte, quanto o do boto sobre as mulheres. Ela é descrita como uma mulher muito bonita, com longos cabelos, e dona de um canto maravilhoso, que aparece banhando-se nas águas dos rios e igarapés, sua morada. A Iara atrai os homens com seu canto irresistível, ao vê-la os homens enlouquecem de desejo, e são capazes de segui-la para o fundo dos rios, onde desaparecem para não mais voltar.

Voltando a Fares [2003], outros encantados também são citados como Curupiras,

mãe das matas, mães do fogo, boitatás, que perseguem os destruidores das florestas; os que

maltratam os animais da mata são os Anhangás; nos manguezais os Ataídes, que assustam os

catadores de caranguejos em época de defeso, uma espécie de protetor da espécie. Todas se

configuram em formas diferentes, dependendo de cada região. Por exemplo: A mãe do fogo amazônica é considerada uma variante do boitatá. A visagem de fogo é o fogo corredor do nordeste, o fogo-fátuo que ocorre em todo o Brasil, a ronda-dos-Lutinos da França, a luz-louca da Alemanha, a luz mala ou víbora de fogo da Argentina conforme informa Cascudo [1988:31]. O pesquisador explica ainda que, no

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Brasil, o boitatá corresponde a uma alma penada que purga os pecados de uma união incestuosa ou sacrílega,ou uma alma de menino pagão. O fogo é elemento purificador que ocorre universalmente nesse tipo de mito. Não tem uma função específica, mas provoca o temor noturno. [FARES, 2003, p. 160].

Fares cita que o padre José de Anchieta já mencionava as cobra de fogo nos seus

escritos, que viviam maior parte do tempo perto dos rios e mar, nas praias e eram chamadas de

boitatás, que quer dizer cousa de fogo, que é todo fogo, que corre de um lado para outro. Seja

qual for o nome da aparição, são histórias recorrentes que ainda se ouve no Marajó, tanto em

Cachoeira como em Retiro Grande.

CENA 2. Vaqueiro pescador ou Pescador vaqueiro?

O Marajó é cenário em que os protagonistas homem ou mulher, múltiplos de

saberes, habitam, navegam e gapuiam. A profissão de vaqueiro é predominantemente

masculina. Exímio laçador dos campos no tempo de apartação, o homem marajoara, nesse caso

vaqueiro, sustenta na cilha do animal o tombo dos novilhos em cordas trançadas; pica o fumo e

protege a brasa da porronca54

Em meio às necessidades do homem laçador encontramos o “frito”, o alimento do

vaqueiro. Constituído de carnes vermelhas diversas, bufalina, bovina, cortadas em pedaços

miúdos, gordurosas, é frito na própria gordura sem óleo ou azeite. Sal a gosto. A farinha pode

da chuva sob as abas do chapéu nos campos alagados; cavalga com as bainhas da calça enroladas no meio das canelas; os pés descalços, firma os dedos maiores nos estribos estreitos [...] fecha o gado nos tesos do amalhador, espalhando no vento, os gritos de aboio, trocando o som gutural da fala dos deuses africanos, pelo latim cantado dos padres Jesuítas, das rezas e cânticos das ladainhas votivas [STEINER, 2004, p.14]

Segundo Steiner, o vaqueiro referido chama-se Tião, acompanhou o escritor Jorge

Amado na cavalgada sob chuva em uma fazenda no Marajó. Como Tião, muitos homens da

ilha exercem a profissão de vaqueiro, quando não de pescador, e, em algumas vezes, as duas

coisas. O vaqueiro marajoara é protagonista na literatura sobre o Marajó, porém, opto pelas

inserções de Fares [2003, p. 148] para falar das tarefas cotidianas do personagem do campo:

“Além do cuidado com o gado, são caçadores, pescadores, construtores, artesãos, responsáveis

pela confecção dos próprios instrumentos de trabalho.” E acrescento, de sua comida.

54 Tipo de cigarro, fumo do nativo marajoara; tabaco enrolado em papel tipo charuto, fino e comprido;segundo as histórias dos vaqueiros e pescadores, é utilizado para espantar os mosquitos com a fumaça.

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ser um ingrediente adicionado. Rudolfo Steiner [2004, p. 31], em “Ilha do Marajó na visita de

Jorge Amado”, explica sobre o frito:

A farofa do frito é o recurso utilizado, no ajuntamento dos vaqueiros durante o serviço, no campo, levada no surrão, nas malas estreitas feitas de couro espichado ao sol, fechadas pelas tiras finas do mesmo relho, através dos buracos feitos pelo vazador, e levados nas garupas das selas.

O autor esclarece que a alimentação nas fazendas é recheada de traços culturais

no preparo da carne, aberta em mantas salgadas depois da vaca abatida, é assada na panela

suspensa sobre o fogo do fogão a lenha. Um buraco é cavado no chão do barracão e cercado às

beiras por pedras para não espalhar a brasa. Alimento pronto, faz-se a partilha aos presentes, e

o que sobra guarda-se na lata hermeticamente fechada para a merenda do dia seguinte.

Sobre esses saberes, n’O Museu há um painel intitulado “Vaqueiro Marajoara”,

revelado na gapuiagem de Amélia, Leandra, Agenor e Joaquim. Os intérpretes brincam diante

da escultura em escala natural com inúmeras plaquinhas informativas penduradas, tocam no

“boneco”, que mais parece boneco de cera, para certificarem-se da natureza do material;

simularam medo em tom de brincadeira, e lêem parte das informações escritas por Gallo [In

FARES, 2003, p. 148]:

Filho de vaqueiro era vaqueiro [...] vivia preso pelo serviço, o conhecimento profundo da natureza [...] pra voar mais alto recorria a ajuda dos duendes preferidos como a cabocla Mariana [...] a maioria deles não tinha a carteira assinada e recebia como pagamento o rancho do mês. Dependia do dono [Fazenda], que de fato podia tratá-lo como membro da família, em caso de doença, ou como escravo [...] agora o vaqueiro conhece os seus direitos, apesar de que, às vezes, ele fique vítima de padrinhos que o explore em lugar de defendê-los.

Para Fares, o vaqueiro do Marajó é apresentado como agente da cultura que se

movimenta na confecção dos artefatos de couro e fibra os quais são substituídos, nesse tempo

de agora, pelos utensílios sintéticos, como as selas e arreios dos cavalos. Há também os

elementos idealistas nos moldes tradicionais, que a autora apresenta como “caboclo puro de

descendência dos Aruãs, reconhecido pela bravura, enfrenta os perigos da fauna, as enchentes”

[FARES, 2003, p. 150]. As vozes de Agenor e Gustavo ilustram a citação da pesquisadora.

Agenor: Os homens marajoaras, acho que é bem a cara disso, né? Em geral, assim, é também raça, a nossa raça.

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Gustavo: Ah! O homem pescador, que cria búfalo, é uma cultura forte, bastante forte.

As falas dos intérpretes refletem o caráter deste personagem marajoara, como

homem forte, de raça, que cria [cuida de] búfalo, exímio laçador e cavaleiro, mora sitiado nas

fazendas de seus senhores ou nas palafitas à beira dos rios, quando assim estão, são chamados

de ribeirinhos. Sendo pescador, o homem vaqueiro transforma as situações de dificuldades sem

peleja em benefício próprio, da família e da comunidade em que vive; sabe que depende do

rio, do lago, da natureza, e espera a hora de comungar o pão-de-cada-dia no tempo que não é

dele, mas da própria natureza na ditadura das águas. Ele constrói uma relação íntima com o

cosmo do rio, em uma percepção própria de quem conhece o rio corrente de cultura viva, e

estabelece um “pacto”, naturalmente compreensivo, de obediência ao gigantismo da obra. É o

homem natural, agora pescador, junto com ele a mulher, quando casado, que o ajuda a tecer a

rede e montar os matapis.

O[a] canoeiro[a] do rio pode ser o[a] pescador[a], se não o é. O rio para ele[a] tem

uma existência, habitado por seres imaginados e alimentados pelas ‘histórias de pescador’. O

tempo para ele[a] não é inventado, porém instituído pela própria natureza que se impõe

soberana e exige respeito. O[a] pescador[a] sabe do seu limite e não ousa tirar mais do que

precisa para o seu sustento. Se a maré não favorece, tira uma soneca depois do almoço nas

tardes de calor; refresca-se no embalo das redes às varandas; espera a maré subir para passar

sobre as lamas com a embarcação na intensidade da estiagem. Nas enchentes, joga o anzol pela

janela se mora à beira do rio ou quando a água invade o subsolo da casa. Se mulher, há sempre

uma ocupação a cumprir, lavar roupa na beira do rio ou na beira do poço, cuidar dos filhos,

fazer a comida, lavar louça no jirau e cuidar do marido. Pouco descansa.

A necessidade de cultivar o sustento da família os faz híbridos ao transitar entre

várias tarefas de rede e de rédeas, ao mesmo tempo nômade quando muda de um barraco para

construir outros em diferentes estuários do mesmo rio, sempre próximos dos filhos, da família.

Às vezes tornam-se andarilhos da floresta, da mata intocada em busca de fartura e terra para

plantar suas roças, tornando-se habitantes e viajantes. Sendo vaqueiro, aventura-se extrapolar

os limites da fazenda em busca de terras “sem dono”, para marcar seu território e sonhar com

uma propriedade. São aquelas casinhas enfiadas em igarapés, e aí se tornar pescador, gapuia

em águas rasas, constrói sua própria canoa ou jangadinha feita de miriti, arma os pequenos

matapis, desta vez, sozinho, para pegar camarão e edifica currais para apanhar peixe à beira do

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rio; a rede de pescar ainda é difícil, geralmente ele mesmo tece quando pode comprar linha.

Quando a família não acompanha nessa empreitada, solitário e sem estrutura, desanimado,

volta, e começa tudo novamente.

Diferente disso, planta sua roça e ergue sua casa de farinha; cria uma nova situação

em busca de dias melhores, chegam os filhos, e forma uma nova comunidade, vila, lugarejo,

tudo no seu tempo, sem pressa. Sendo pescador, sendo vaqueiro ou agricultor, o homem

marajoara é plural em sua formação cultural, herança conquistada dos antepassados e que se

perpetua de geração em geração. As mulheres acompanham no que podem e no que são

permitidas.

Detalhe 1. A Escola

A vontade de mudar de vida os faz pensar na educação dos filhos, que, quando

crescem, migram para o povoado mais próximo onde se encontra escola. Lá, a criança fica em

casa de parentes, sempre encontra um, e é criada com tios, vizinhos ou amigos bem próximos.

Poucos chegam a séries mais avançadas. Com muito esforço e desejo chegam à capital ou

cidades maiores da ilha como Soure ou Breves, para cursar uma graduação. Essa é a maior

recompensa daqueles que se orgulham de ter um filho “doutor”. “Vaqueiro ou pescador, não

importa, meu filho é doutor!” [personagem de Cachoeira do Arari - Marajó, 2007]. Na seção

do Vaqueiro, outras informações são apreciadas pelos intérpretes em suas visitas. Ao lado, um

letreiro apresenta dados sobre a educação dos filhos [do vaqueiro]. Segue parte do texto

também escrita por Gallo [In FARES, 2003, p. 150]: Na maioria dos casos, a preocupação era só aprender a ler e escrever, um ideal nunca alcançado pelos pais. Muitas vezes nem poderia ser considerado um problema, porque o estudo parecia ser uma coisa desnecessária. N’algumas fazendas, uma professora era contratada dava aulas àquela meninada toda, com resultados sempre considerados satisfatórios. Agora são outros quinhentos. Todos os filhos querem estudar e os pais, a maioria, concordam. A professora leiga da fazenda não dá mais conta, eles precisam ir à sede do município ou à capital. Se lá moram parentes, tudo bem, se não é preciso encontrar uma família amiga, com a obrigação de mandar um rancho, mais uma ponta para as despesas. E quando os filhos são muitos, então a mãe os acompanha, para diminuir a despesa. A família fica dividida, com dois viúvos na ponta da linha: um grande problema, não somente financeiro.

Detalhe 2. Alfredo pescador quer estudar

Dalcídio Jurandir ganha destaque n’O Museu. Uma mesa com visor inclinado de

vidro guarda alguns exemplares dos livros do escritor. Entre eles, “Chove nos campos de

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Cachoeira” [1997] apresenta Alfredo, um menino que pesca pelas frestas do assoalho da casa

como se brincasse de pescador, “aquele filho que desceu a escada e caiu na Maré debaixo do

jirau. Maré cheia” [JURANDIR, 1997, p. 147].

Nesse contexto, relevo uma visita feita à Casa de Dalcídio55

Não falou seu nome, também não perguntei. É apenas um pescador que trago a este

texto para ilustrar este estudo. No romance “Chove...”, Alfredo é um menino que sonha estudar

na cidade grande, é o protótipo de muitos filhos de pescadores e vaqueiros que sai de meio do

mato e várzea para formar-se “doutor”. Realidade ou ficção, este exemplo encontramos nas

durante a pesquisa.

Atualmente mora um casal de pescadores com o compromisso de manter e preservar o

patrimônio. A fachada foi alterada, embora os interiores, quartos, paredes, assoalhos, fogão de

lenha, jirau “parecem” guardar a memória dos tempos em que morava Jurandir. A visita foi

feita por debaixo de chuva, na companhia do Professor Tadeu, morador de Cachoeira e

pesquisador da obra do escritor paraense. Ao som da chuva, pensei: “Chove nos campos de

Cachoeira”. Clima favorável. Ao entrar na casa, senti a presença dos personagens do romance

“Chove...”, imaginei Alfredo com seu dengo e choro ao cuidar das feridas nas pernas, mas

também o vi, de joelhos e com a linha na mão, “bicorando” o peixe pelo assoalho suspenso de

tábuas pretas e arestas desgastadas.

As divagações foram interrompidas pelo professor ao apresentar o pescador

sentado, o qual fiava uma rede de pescar engatada na parede de madeira. Sem camisa, vestido

da cintura para baixo, movimentava as mãos com agilidade: uma esticava a rede, a outra

mergulhava a paleta de madeira que servia de agulha para levar o fio entre as malhas da rede.

Parecia não se importar com a chuva que respingava pela janela. O céu cinza emoldurava uma

luz que lhe invadia o rosto e peito de pele bronzeada e maltratada pelo sol. Depois do “fique à

vontade”, iniciei um diálogo sobre o que ele conhecia: o rio, a rede, o peixe. Uma relação

costurada pela necessidade e a falta de estímulos em procurar outros meios de subsistência,

como a rede em suas mãos, tece saberes próprios e específicos, e somente ele, homem do

Marajó, sabe construir relações constituindo esses saberes.

55 Onde o escritor Dalcídio Jurandir passou a infância; localizada em Cachoeira do Arari – Marajó. Nascido no município de Ponta de Pedras, também no Marajó, Dalcídio mudou-se ainda criança para Cachoeira; mudou-se para Belém aos onze anos de idade para estudar, depois seguiu para o Rio de Janeiro onde iniciou carreira diplomática e de escritor.

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obras de Dalcídio Jurandir. Há quem diga que Alfredo é o próprio Dalcídio quando menino. A

casa de Jurandir? São saberes que mergulho em outra correnteza em outra oportunidade.

CENA 3: O lugar do homem e da cultura marajoara

O Museu-lugar é a paisagem que se movimenta e se constitui dos[as]

narradores[as] que nascem e crescem na ladainha das rezas, “que perdoa[m] a ofensa do

agressor e muda[m] de fazenda ou abandona[m] o município e o assunto morre por falta de

comunicação” [STAINER, 2004, p.34]; é o lugar do homem e da mulher que produzem o frito,

o qual se faz pescador[a] para gapuiar tamuatás e abri-los às costas amarelas, assados na brasa,

e degustar com farinha. A família em volta compartilha o “comer” no costume à mesa, ou com

os[a] companheiros[a] de labuta. Ora o frito, ora carne de caça silvestre, ora peixe assado na

brasa. E assim constrói sua rotina e paisagem.

Faço apropriar-me dos estudos de Rodrigues [2004, p. 23] e defino o Homem ou

mulher no lugar Museu. Para a autora, “são sujeitos construtores [...] atores [ou atrizes] e

grupos sociais, que produzem e reproduzem suas práticas sociais cotidianas, imprimindo assim

características próprias a cada um desses lugares”, que chama de paisagem e que se

transformam sob ação desses[as] atores [atrizes]: paisagem histórica.

Sendo lugar do vaqueiro e do[a] pescador[a], O Museu do Marajó é paisagem e se

apresenta como conjunto de configurações visuais, apropriadas, contempladas, percebidas e

compreendidas pelo homem e pela mulher, um movimento sucessivo dos fenômenos que

compõem a paisagem, ou seja, a paisagem histórica em movimento. Portanto, se O Museu é

espaço dos seres humanos do Marajó, vejo-o como uma paisagem em movimento que se

configura com a presença desses[as] atores/atrizes e grupos sociais, como intérpretes, que

desejam nela [paisagem] interagir.

Ao ampliar o universo de relações, esse movimento rompe as fronteiras daquele

espaço/território e se complementa pelos campos e várzeas da ilha, onde as urnas

arqueológicas, pisoteadas pelos búfalos nos tesos dos rios, são gapuiadas em cacos e

catalogadas para exposição; onde as matintas e cobras-grande se revelam em lendas, nas

iguaçu; onde as lamparinas dos sítios e fazendas iluminam as rodas de conversa, os casos, nas

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noites em companhia de Iacitatá.56

56 Nome de mulher: Ia é a fruta, Ci é a mãe, quer dizer a lua que faz germinar as plantas, Tatá é foguinho: o foguinho da lua é a estrela! [GALLO, 1996, p. 261].

A humanização do espaço é a ação do homem e da mulher

na natureza que se modifica ou modifica-se naturalmente sem depredação. Para Rodrigues

[2004], cada indivíduo ou grupo social se desenvolve em uma lógica biológica [com a ingestão

de alimentos], produtiva [com o trabalho, entendida como maneira geral] e/ou cultural [com

seus mitos, tradições, hábitos e costumes]. A autora amplia o conceito de paisagem para o que

ela chama de lugar, conforme segue:

É nesse lugar que os atores ou grupos sociais desenvolvem suas práticas sociais cotidianas, e em constante transformação/modificação, onde acima de tudo, haveria a identificação do sujeito [atores] com o produto do seu agir [...] o lugar é [...] a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante-identidade-lugar [...] O lugar é a porção do espaço apropriável para a vida [...], vivida/conhecida/reconhecida em todos os cantos [RODRIGUES, 2004, p. 26-7].

Nestes termos, O Museu do Marajó é o lugar dos seres humanos que se

reconhecem e se identificam, se transformam e se modificam, produzem e reproduzem saberes,

na tríade habitantes-identidades-lugar. Os conceitos de seres humanos marajoaras estão

diretamente ligados aos conceitos de cultura marajoara. Em outras palavras, não podemos

falar de cultura marajoara se não os invocarmos, assunto esclarecido nos parágrafos anteriores.

CENA 4: As vozes sobre cultura marajoara

As diferentes citações sobre cultura aparecem nas narrativas dos intérpretes e

tecem um mosaico de informações referentes às tradições do fazer cotidiano dos habitantes

marajoaras, desde as tribos primitivas até o[a] caboclo[a] de agora. As vozes dos intérpretes

expressam o que pensam sobre cultura após.

Amélia: Cultura? Eu imagino assim, as coisas antigas, né? assim que, muita gente ainda absorve, né? Conservam, ainda conservam.

Leandra: Tanto é... a culinária quanto a questão de remédio, essas coisas, eu acho que é tudo isso, né?

Ana Paula: Uma cultura forte, onde você tem uma raiz. E o artesanato, né? Essas peças... Mas podiam assim, divulgar mais esse tipo de manifestação. Tradição: dança, artesanato, as peças marajoaras.

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Gustavo: Resgate cultural, identidade também... Perpetuar cultura de várias gerações aí. Uma cultura intrínseca daquele povo, no caso do marajoara seria na Ilha do Marajó [...] perpetuar por várias gerações uma tradição.

Ana Paula: É claro que quando a gente fala de tradição, a gente tá falando de gerações e de pessoas antigas, né? Tentando passar essas informações pra pessoas mais novas é o que eu vejo... como já tem em outros lugares também, ter trabalhado com outras culturas e ver que isso vai se perdendo ao longo do tempo, parece uma coisa natural, e, às vezes, é bom, né? [ir] atrás de um museu, né? de, de... trabalhos científicos, pra você tentar manter isso, informar a população a importância de se manter uma tradição, uma cultura..

Rafael: Cultura marajoara é... o que eu penso assim, na minha mente, é esses artesanato, né? Forma de fazer escultura com o quem tem na... o que tem na selva, né? Sementes, plantações, essas coisas que eles falam. E tanto a cultura, o fato de ser também, religião deles, né? religião daqui tem, tipos de danças, cultura [...] Folclórico.

Agenor: Ah! Eu acho assim, cultura é o que as pessoas viveram no século passado, pra mim é isso [risos]. [...] Aí, eu acho que é o que alguns arqueológicos [arqueólogos] descobriram.

Nessas vozes, a cultura aparece como processo de transmissão de conhecimento,

repassada pela oralidade, pelas conversas, pelo cuidar da saúde, pelos remédios cultivados da

natureza ligados à religiosidade, pelas peças arqueológicas de povos antigos, pelas

manifestações folclóricas, pelas danças, pelo pensamento mestiço. Para aclarar o termo

pensamento mestiço, trago Gruzinski [2001, p. 31-32], o qual apresenta uma Amazônia como

território que: serviu para se imaginar a criação indígena em termos de sobrevivência e para se pensar no homem [...] Assim, a antropologia estruturalista fez da Amazônia o conservadorismo do pensamento selvagem, multiplicando monografias e teorias eruditas.

Nas palavras do autor, ninguém duvida de que esses pesquisadores, estando Claude

Lévi-Strauss no primeiro nível deles, tenham dado uma contribuição essencial às ciências

humanas do século XX. Antes disso, o que se sabe é que existiam outras Amazônias com

influências européias que aculturavam os índios com seus presentes sedutores e estranhos à sua

cultura [facões franceses e fuzis holandeses]. A história nos faz recuar até o início da

“descoberta” e nos mostra uma Amazônia já modificada pelas idas e vindas dos estrangeiros.

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A escravidão, influência marcante nessa cultura marajoara, ora os negros e negras

que chegavam em navios, ora os[as] próprios[as] índios[as], era a moeda de troca entre os

colonizadores viajantes e residentes, que demarcaram terras e latifúndios com o aval legal do

poder que se instalava no país.

Gruzinski [2001] afirma que a militarização do centro da Amazônia, influência

crescente de europeus, era uma preocupação da Coroa portuguesa para manter sua soberania

contra os invasores. Muitos nativos eram forçados a somar a essas forças nos trabalhos mais

pesados, criando infra-estrutura de subsistência na lavoura e urbanismo, surgindo as primeiras

vilas, incluindo as do Marajó.

O processo de miscigenação se fortalecia ao longo dos anos; as missões religiosas

eram permanentes, entre elas os jesuítas que influenciaram profundamente a estrutura de

povoamento de índios e índias, caboclos e caboclas, especificamente na vila de Joanes -

Marajó, os quais eram pressionados a cultuar as imagens cristãs.

Técnicas eram desenvolvidas para o ensino religioso dos analfabetos oprimidos

que apreendiam das imagens, nos quadros e esculturas, os diversos conteúdos factuais da via

sacra, expostos em uma sequência imagética, contando a história da crucificação de Cristo e

santos da igreja católica. Era uma forma dos jesuítas se fazerem comunicar e exercer o

domínio de sua língua e de sua cultura.

Os carmelitas também tiveram suas inserções nesse processo com a difusão da

festa de São Joaquim no alto rio Negro, mas eram mesmo os jesuítas que levavam vantagens

em número e influência com a Coroa portuguesa. Apesar da tradição cultural dos índios com

seus rituais religiosos, a pertinência da cultura estrangeira não os deixava fixar um lugar para

exercerem seus ritos e crenças. Incomodados, tornaram-se nômades para fugir do assédio e da

escravidão.

É então que começa a se fazer sentir os efeitos da mestiçagem biológica. Desejando eliminar as reações de hostilidade e reter os nativos nas aldeias cristãs, as autoridades portuguesas incitam os soldados destacados para a floresta a se casarem com as filhas dos chefes indígenas, para que os índios se interessem mais a viver nas aldeias [GRUZINSKI, 2001, p. 33-34].

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Esse movimento nômade de índios e negros, na mistura das raças, caboclos e

cafuzos, também os brancos estrangeiros, forma civilizações espalhadas ao longo do rio

Amazonas e afluentes, e chega até a foz com o Atlântico. E o Marajó não escapou da

interferência e exploração, da “evangelização”.

Apesar de parecer um território quase impenetrável, esse arquipélago borda a

entrada da floresta como se fossem pontos estratégicos para confundir o navegante estrangeiro.

Inevitável e inútil é a tentativa de esconder os valores da Amazônia, já reveladas às águas

crespas no encontro com o oceano. É como se fossem o fio de Ariadne57

57 Na mitologia grega, Ariadne é a bela princesa que ajuda o herói Teseu a se guiar pelo labirinto, onde ele entra para matar o Minotauro. Para isso, Ariadne amarra a ponta de um novelo na entrada do labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói penetram naquele espaço. Morto o Minotauro, ambos conseguem sair do labirinto enrolando o fio de volta.

no labirinto do

Minotauro. Nessa metáfora com a mitologia grega, o antropófago Minotauro é confundido

com o próprio índio-selvagem-amazônico, morto ou engaiolado por não obedecer às

inferências dos europeus, muitos deles devorados na história de suas [des]venturas. O novelo

desenrolado pelos exploradores para achar o caminho de volta eram as bandeiras nas

cabeceiras dos rios, conjuntamente as margens feridas ao longo do caminho na busca do

alimento farto e água potável. Certamente a situação desses índios nunca foi tão tranqüila.

Não muito diferente desta realidade colonizadora, retrocedemos um pouco mais na

história no período de povoamento da Ilha do Marajó para melhor compreender esse processo

de formação da cultura marajoara. Com base no desenvolvimento dos costumes dos povos

primitivos nas grandes florestas, Cruz [1987] apresenta o povo nuaruaque como o primeiro a

habitar a região andina, provavelmente vindo da Oceania, chegando à Amazônia no percurso

das águas. Segundo o autor, ao entrarem no Brasil, os nuaruaques se depararam com os

Caraíbas, que, na disputa dos territórios, os expulsaram para a foz do grande rio com o oceano

Atlântico, onde se estabeleceram e formaram grandes aldeias.

A forma de sobreviver e a fomentação de uma cultura própria, fez dos nuaruaques

um artífice ao desenvolver no Marajó técnicas de traçados, até hoje conhecidas como as

cestarias e as redes de dormir. O assunto que compõe a técnica de traçados dos nuaruaques é

apenas um entre tantos saberes gapuiados nos tesos dos rios e adjacências.

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Isso tudo é relevante e essencial para apresentar O Museu do Marajó, em primeiro

momento, com uma missão sócio-histórica de preservação da cultura amazônica, mas a

questão vai além dessa preservação antropológica e arqueológica envolvendo não somente o

cultural, e sim, o cultural imbricado no educacional. Destarte, apresento-O como um lugar

pedagógico ligado ao universo da educação nesta relação de educação e cultura. Uma

educação que pode ser desenvolvida em um cenário natural de vida cotidiana, não somente

para quem habita o Marajó, mas para todos que compartilham livremente dessa visão de

mundo-meio-natural.

O Museu é uma redescoberta da escola como um lugar de produção da cultura,

“como um múltiplo e fascinante cenário aberto à pesquisa de interações significativas entre

pessoas e entre pessoas e instituições aquém e além de um domínio exclusivamente

pedagógico.” [BRANDÃO, 2002, p. 149]. Para o autor: Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao participar de eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si mesmo [...] de incorporar em diferentes instâncias de seus domínios pessoais de interações [...] de e entre afetos, sensações, sentidos e saberes [2002, p. 26].

Nesse contexto, educação e cultura marajoara possuem um caráter estetizante na

busca de construir uma relação mais estreita entre si, e vejo esses conceitos imersos na estética

de vida do índio e caboclo amazônicos. O processo educacional permanente d’O Museu

envolve projetos culturais próprios, individuais e coletivos. Entende-se então que cultura

marajoara não é somente um produto resultante de ações culturais, mas um processo de

construção dialógica entre ser, natureza e ação educativa, ou seja: a cultura do ser enquanto

sujeito; a cultura de valorizar, cuidar e preservar a natureza; a cultura de ação educativa que

advém da anterior ou educar para cuidar e preservar.

São essas ações, educativas e culturais, que busca Gallo em seu projeto global,

interativo, vivo, dinâmico, onde os seres humanos marajoaras são a razão de ser do seu Museu

existir. Dessa forma, os planos do ex-padre merecem ser priorizados e atendidos. Sobre isso

ele anuncia:

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O Museu tem a missão de resgatar e conservar a nossa história ajudando-nos a preservar a nossa identidade e, ao mesmo tempo, incentivando na comunidade o interesse para o progresso intelectual [...] Museu quer dizer pesquisar e neste caso seria pesquisa voltada à ação, para criar atividades produtivas: O Museu deveria ser pólo de desenvolvimento através da cultura [GALLO, 1996, p. 192].

Como pólo de desenvolvimento através da cultura, O Museu é contemplado com a

concepção clássica de Thompson [2003, p. 170] que é definida da seguinte forma: “cultura é o

processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela

assimilação de trabalhos acadêmicos e artísticos e ligados ao caráter progressista da era moderna.” Ao

encontro desta conceituação, os intérpretes apontam essa preocupação de fazer do Museu do

Marajó um centro de cultura e pesquisa voltado para a ciência. Ao ler A interpretação das

Culturas, localizei outra dimensão sobre este tema nas palavras de Geertz [1978, p. 39]:

Cultura é um padrão de significados historicamente transmitidos, incorporados aos símbolos. [...] Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas.

A meu ver, esses dois autores, Thompson e Geertz, juntos aos demais, se

completam e fundamentam a relevância desta pesquisa no que tange os saberes n’O Museu do

Marajó. O primeiro pela visão abrangente e de aproximação com o meu objeto, formatando-o

como produção científica; o segundo pelo olhar recortado desses saberes dentro d’O Museu e

suas dimensões simbólicas, através dos visitantes-aprendizes, na concepção de uma pedagogia

autônoma mergulhada no espaço educativo, como diz o autor, “no meio”; e aí acrescento: “dos

saberes marajoaras”.

Em seu estudo, Geertz [1978, p. 39] aponta caminhos para fugir da incompletude

de sua análise cultural. Segundo ele, quanto mais profunda, menos completa é essa análise.

São eles os caminhos: “transformar a cultura em folclore e colecioná-lo; transformá-la em

traços e contá-los; transformá-las em instituições e classificá-las, transformá-las em estruturas

e brincar com elas.” Nesse terceiro caminho de infindas interpretações, Gallo aproxima-se

deste autor quando elabora os dispositivos manipulados pelo visitante-aprendiz n’O Museu, de

se dispor a tocar, interagir, brincar com os saberes ali presentes, de forma plural e inusitada. A

ação de brincar, como fala Geertz, é uma maneira de transformar também o processo de

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aprendizagem, de forma lúdica e criativa. O autor defende um conceito semiótico de cultura

que eu trago para aclarar as proposições da pesquisa em relação à cultura encontrada dentro

d’O Museu. Na tese “Entre o rio e a floresta...”, expressa Carvalho [2006, p. 9]:

Geertz (1989:15) defende um conceito semiótico de cultura. E sendo a Semiologia a ciência do significado, ela abrange a cultura justamente por sua função simbólica, fazendo com que seja uma ciência interpretativa. O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise (referindo-se aos significados), portanto não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura de significados. Para Geertz, a cultura, vista como teia de significados, está em constante processo de construção e reconstrução, aberta a transformações e não fechada em si mesma. Vista dessa forma, a cultura consiste então em estruturas de significados socialmente instituídos.

Nesse contexto, a cultura marajoara é plural com múltiplas possibilidades de

estudo e múltiplas abordagens sobre etnias, antropologia, identidades, histórias de vida,

memórias e muitos outros temas. Se a identidade amazônica é plural, é nessa pluralidade que

os intérpretes gapuiaram os saberes culturais dos seres humanos marajoaras n’O Museu.

PANORÂMICA 2: Saberes Emergentes

Nesta panorâmica as vozes trazem à tona os saberes gapuiados e apartados, os

quais apresento nos próximos planos. São eles os saberes: cuidativos; arqueológicos;

identitários; ambientais; míticos e lendários; e históricos.

PLANO 1. Saberes Cuidativos

Neste plano, apresento os detalhes como saberes cuidativos revelados a respeito

d’O Museu. São eles: do Patrimônio histórico e cultural; da Memória; da Medicina cabocla:

da Relação com a terra e as ervas; da Saúde e as questões políticas; sobre a Ausência do apoio

institucional.

Detalhe 1. Patrimônio histórico e cultural

Eliane: Eu queria que fosse divulgado mais sobre isso aqui, porque eu não sabia que existia isso, né?

Jorge: E também... Porque, quando eu vejo, eu quero que as outras pessoas vejam, eu quero que dêem valor, que zelem por um tesouro, um tesouro.

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Eliane: É um patrimônio, né? Um patrimônio, cultural nosso, nosso, nosso. Rosa: É uma riqueza, muito grande, aqui em Cachoeira que tem e as pessoas nem falam, nem divulgam isso.

Jorge: Ah! É muito bacana, é muito legal mesmo. A gente aprende mais sobre o Museu, né? Sobre as coisas que têm nele. Muita cultura, né? que a gente tem que dar valor. Eliene: É! Cultura amazônica!

Eli: O trabalho dele [Gallo] e a preocupação de montar a história dele pra gente saber, né? Sobre o que foi que aconteceu. É legal isso daí!

Afonso: Acho que é um patrimônio tão rico desse assim, né?

A preocupação dos intérpretes com O Museu como patrimônio histórico e

cultural não é isolada entre todos que compartilham com esse sentimento. Nas minhas

observações de campo, conversando informalmente entre os moradores de Cachoeira do

Arari, pude perceber uma angústia generalizada e coletiva quanto à preservação das peças que

representam a cultura marajoara, e que estão ali “guardadas”. O prédio também é alvo nas

conversas que sustentam o cuidado como patrimônio público, bem como as áreas verdes de

preservação ao redor. Todos se ressentem da falta do fundador Padre Gallo, e lembram do

jesuíta, das conversas que ele produzia entre as pessoas e dos que se aproximavam para ajudá-

lo na sua jornada de trabalho, como voluntários[as], construindo os computadores caipiras que

tanto faz sucesso n’O Museu.

Ao ouvir os[as] intérpretes, somo seus sentidos e contextualizo o valor agregado

de suas vozes que clamam por mais cuidados e preservação, que O Museu seja mais

divulgado, que a cultura marajoara seja mais divulgada, que a história seja mais divulgada.

Esta última, compreendo que o intérprete se refere à história dos saberes marajoaras e

amazônicos, à história dos povos primitivos, suas culturas, etnias, à história das línguas, da

arqueologia, “sobre as coisas que têm nele.” Sobre a valorização histórico-cultural d’O

Museu, destaco [GALLO, 1996, pag. 257]:

Aos poucos [...] a comunidade começou a interessar-se, sem, porém, dar a valorização desejada. No começo, para muitos alunos, O Museu era um local onde se encontrava um camarada, quer dizer, eu, que tinha obrigação de dar de mão beijada a resposta às pesquisas recebidas na escola: mais ou menos uma cola legalizada. Aos poucos e com dificuldade, chegamos à idéia de que os alunos vêm

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aqui não somente para receber, mas sobretudo para dar, contribuindo com os seus trabalhos, convencido de que o Museu não é do Gallo, e sim deles! Mais tarde, diante da ameaça de mudar o Museu para outra sede [...] a comunidade deu prova de grande maturidade, iniciando um movimento em defesa deste patrimônio, organizando abaixo-assinados e promoções para salvá-lo, até ameaçando piquetes!

Detalhe 2. Memória

Ana Paula: A população parece que também acha que é natural perder... já viveram, sabe. Estão esquecendo a importância que teve os seus pais, avós... A academia e o Museu, através do Museu tentar fixar isso na população residente, atualmente aí.

Gustavo: O que eu acho que fica pra mim é como ela comentou, está relacionado à importância da população local não perder, entendeu? – o contato com o Museu. Acho que é o grande lance do Museu, dum cara que é sediado aqui em Cachoeira do Arari é tentar trazer todos os marajoaras de tudo quanto é canto, né? Aqui pra Cachoeira pra tentar manter isso, da importância do pessoal repassar isso de geração em geração. Isso se perde, naturalmente. Eu tô vendo que as coisas estão se perdendo.

O cuidado de preservar a memória dos saberes marajoaras está nas vozes de Ana

Paula e Gustavo. As histórias de vida, as ladainhas, as festas religiosas, as simpatias, são

todos eles conteúdos da memória cultural d’O Museu, bem como a língua tupi identificada

nas palavras indignas, a língua geral que é o nheengatu, os artefatos criados nas fases

Ananatuba, Mangueira, Formiga, Aruã, os costumes, onde e como moravam; a cosmologia

cabocla, as lendas e mitos, enfim,

tudo o que é vida do Marajó tem um lugar no Museu: as embarcações, a fazenda, o vaqueiro à moda antiga e o vaqueiro de hoje, que mudou para o pior trocando a baeta pela napa, e o chapéu de carnaúba pelo capacete de plástico [...] as histórias etiológicas nos revelam como o caboclo explica certos fenômenos estranhos; as histórias dos escravos e do sofrimento negro [...] A história dos escravos ganha a nossa atenção com documentos autênticos, como a carta de alforria com a qual João Manoel da Cunha Mello recebe, na presença do tabelião de Soure, em 7 de junho de 1847, a quantia de duzentos e cinqüenta mil réis em moeda corrente do país e doa a liberdade à cafusa Francisca Maria de Nazaré com “a condição, porém, dela não poder se retirar da minha companhia enquanto eu for vivo”. [GALLO, 1996, p. 264].

Gustavo enfatiza a voz de Ana Paula quando se refere à perda das histórias de pais e avós,

dos[as] escravos[as], e que são resgatadas, graças ao esforço do padre Giovanni Gallo em reunir

tamanho acervo para preservar, com dificuldades, a memória daquele povo. “O Museu, graças a Deus,

está vivo, porém luta desesperadamente para sobreviver. A palavra certa é que não morre porque eu

não o deixo morrer, mas eu estou ficando velho e o futuro é incerto.” [GALLO, 1996, p. 258].

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Por se tratar de uma pesquisa, a memória d’O Museu passa a ser uma memória

social, com espectro da história oral e visual de seus personagens imprescindíveis na

composição e constituição dos computadores caipiras. Quando gravo em vídeo a produção de

dados envolvendo intérpretes, revelo o papel do narrador como instrumento ou objeto de

memória com certo “rigor conceitual daquilo que se pesquisa, a mensagem cultural

transmitida ou remontada em outra linguagem que não a puramente escrita, que ajude a

sintetizar ampliando os horizontes de compreensão da pesquisa em si” [FRANCE, 1994 apud

KOURY, 2001, p. 9]. Nesse caso, chamo a atenção para o vídeodocumentário “É proibido não

tocar os saberes n’O Museu do Marajó”, que está em anexo a este texto dissertativo.

Detalhe 3. Medicina cabocla: relação com a terra, os alimentos e as ervas

Eli: Eu gostei da parte do remédio, é uma coisa bem interessante, que isso é uma coisa mesmo daqui, coisas que só tem aqui mesmo, que o pessoal usa, aqui adoece, aqui se trata. Não precisa ir pra outro canto. Porque aqui é um lugar que, aqui se planta, aqui se colhe. Aqui é uma terra boa pra se colher, pra se plantar [...] Tem várias ervas medicinais [...] Porque, na verdade, todos os remédios farmacêuticos vêm dessa coisa assim, bem natural mesmo. Willian: Esse patrimônio aqui, não pode deixar se perder assim. Um pouco da cultura daqui da terra, um pouco mais da cultura, mais a fundo assim, da cultura, os remédios, que eles usavam, que usam ainda até hoje, da culinária tem tudo, tudo tem um pouco aí, né? Enfim, essa coisas aí. Conhecimento também [...] Se eu falar tudo aí!... Neto: Nunca tirando a característica do riberinho como é aqui, né? É tudo feito artesanalmente entendeu?

Nesse detalhe, abro diálogo com a citação de Gallo [1996, p. 263]:

O caboclo sente-se cercado de inimigos naturais [...] um novo computador, do tipo levanta-e-vê, nos revela como é que ele se defende com recursos naturais não poluentes. A jibóia é a melhor defesa contra os ratos, só deixá-la no teto da casa [...] Mais perigosos são os inimigos não-naturais, o olho grande, a inveja, a espinhela caída, a matinta pereira... O mal de lua aparece quando a criança faz cocô verde: foi descuido da mãe, que deixou a criança ou os cueiros expostos ao luar. O médico não pode curar, é doença de pajé: precisa mostrar o bumbum do doente à lua, fazendo a reza apropriada: “Lua luar, leva teu mal, deixa meu filho criar!” [...] qual é a técnica do fogo, do doente carregado nas costas [do mestre-guia], dos vidros quebrados sobre os quais o pajé atuado dança, o diagnóstico, as causas e os remédios de cada

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doença não-natural. É o resultado da pesquisa de um especialista, R.H. Maués, com a colaboração da minha experiência pessoal.

Entre tantas informações sobre a medicina cabocla, destaco um computador

chamado “Pescaria da Saúde”, no qual Gallo inspira-se nas brincadeiras do arraial de

Nazaré58

O nativo leva a sério o alimento reimoso

. É uma estrutura de madeira em forma quadrática, constituída de vários

penduricalhos embaralhados, que são as plaquetas com os diagnósticos correspondentes às

doenças anunciadas a cada extremidade do cordão. Ao serem puxados, os cordões, estes

acionam uma das plaquetas de madeira que está pendurada entre várias. É curioso tentar

identificar a resposta antes da plaquinha se mexer, é um embaranhado de fios e placas que

aguça a curiosidade até pegar a resposta certa. é pesquisa, não prontuário. Fastio? Amarrar no pescoço da criança um colar com dente de piranhas. São as simpatias por analogias ou transferência, a medicina empírica, mágica ou religiosa, com todas as variedades de pirótica, excretoterapia [jasmim de cachorro, remédio infalível contra o sarampo] mais as outras opções alternativas: não é só o pajé que procura caminhos diferentes da farmacopéia oficial. [GALLO, 1996, p. 264-65].

A relação do caboclo marajoara com a terra tem um caráter universal na

subsistência dos povos, mas o que o diferencia é a sua maneira de transformar o que lhe é

dado em saberes constituídos e sacralizados pelas histórias orais, as simpatias de cura, os

remédios tirados das plantas e cascas de árvores; difícil é não ver um morador de Cachoeira

que não tenha uma planta “medicinal” no quintal de sua casa, as ervas que produzem os chás

para dor de barriga, dor de cabeça, anti-inflamatórios; mais distantes, no meio do mato, as

sementes miraculosas que produzem o óleo de andiroba, óleo de copaíba.

59

58 Festa realizada durante os festejos do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, no mês de outubro, em Belém - PA; brincadeira de puxar os barbantes como “pescaria da sorte”. 59 Termo utilizado para explicar que o alimento: peixe de pele ou marisco, carne de porco, jacaré e outros, quando ingeridos, fazem mal à saúde de quem está doente.

e que faz mal à saúde quando está com

ferimento, pode inflamar; todos são saberes da saúde e que estão dentro d’O Museu. Em

sua voz, Eli faz uma importante analogia sobre a produção farmacêutica [talvez alopata] que

se apropria dos princípios ativos dos produtos naturais, não somente do Marajó, mas de toda a

Amazônia. Como saberes cuidativos, a saúde é um dos saberes mais pesquisados n’O Museu,

principalmente para o habitante in natura na sua fé abnegada de crença e cura.

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Detalhe 4. A saúde e as questões políticas

Willian: Não tem quer ir lá em Belém ou em outro canto pra se tratar se eles têm tudo aqui.

Afonso: É, não há necessidade de sair. Um fato, assim: eu acho que eles não conhecem muita... Assim, muita oportunidade de ter um hospital, que nem em Belém, né? Essas coisas assim, né? Avançada, né? Aí como desde pequeno tem aquela cultura: "Ah! Bora fazer um remédio caseiro", aí, o pessoal vai aprendendo, né? É isso que a gente gostaria de ressaltar, porque, mesmo pelo fato deles ter essa questão do remédio, tudo, aqui deveria ter hospitais, deveria ter um saneamento melhor, tudo isso, porque tudo isso influencia pra cultura daqui

Everton: Os políticos, eles tinham que olhar mais pra esse lado. Mesmo eles tendo todos esses recursos aqui da naturalidade, mas deveriam ter.

O cuidado que Willian, Afonso e Everton apresentam neste plano de detalhe,

levanta uma questão importante nas políticas de saúde de nosso Estado. A ausência dos

médicos e profissionais da saúde nos municípios distantes, especificamente no Marajó, é

histórica e geoeconomicamente incompreensível. A ilha está entre duas capitais, Belém e

Macapá, onde o fluxo de barcos e navios é constante, diário, o que facilita em muito o

abastecimento de insumos e remédios para toda a região, sem contar com as pistas de pouso

nas cidades de maior porte como Breves, Soure e Cachoeira do Arari. A propósito, esta última

cidade, onde se localiza O Museu, está ligada a uma estrada de terra que há anos se peleja

para ser asfaltada; é um trecho de 55 km² até a estrada de Joanes chegando ao porto Camará,

conforme fotograma 3.

Quando Everton diz que “os políticos, eles tinham que olhar mais para esse lado”,

o intérprete percebe a ausência da saúde como programa de governo. Afonso destaca a falta

de saneamento básico, o que agrava os assuntos de saúde do cachoeirense; da mesma forma

hospitais mais equipados; o mais próximo, com recursos melhores, é encontrado na cidade de

Salvaterra; outro pouco melhor, no município de Soure. Em situações mais urgentes, os

pacientes são “transferidos”, melhor, transladados para a capital em busca de atendimento.

Atualmente se vê, em alguns casos isolados, o transporte em helicóptero de pacientes com

poucos recursos financeiros, acidentados e em estado grave, que moram em lugarejos como os

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igarapés, rios distantes, fazendas, chegam às vilas e chamam por socorro o águia60

Para ser justo, o Museu Paraense Emílio Goeldi tem “apadrinhado” O Museu do

Marajó em algumas ações, disponibilizando profissionais e pesquisadores que prestam

assessoria para desenvolver um inventário histórico de todo o acervo patrimonial; a

Universidade Federal do Pará nas de restauro das peças arqueológicas. No complemento, a

Universidade do Estado do Pará viabiliza entendimento na questão educacional, ao apresentar,

em seu programa de mestrado, através desta dissertação, O Museu como espaço educativo,

lúdico e detentor do maior acervo da cultura marajoara. A Petrobrás também é parceira.

Segundo Paulo Câmera, membro da diretoria, há um projeto para esta empresa patrocinar a

restauração completa dos computadores caipiras, ou seja, “vai substituir o compensado pela

madeira de lei” – afirma Câmera [2008].

. Sorte

quando são atendidos em tempo hábil. Willian, mais otimista, acredita no poder da medicina

cabocla sem recorrer a outros recursos.

Essas inferências da política de saúde no Marajó fazem do[a] marajoara um[a]

curandeiro[a] ou pajé, ou pai-de-santo, ou mãe-de-santo, na necessidade das horas difíceis;

formam as parteiras na ausência das maternidades; fortalecem as tradições quanto ao cuidado

com a saúde, as crenças, as rezas, as ervas, tudo ajuda. Lembra do depoimento de Dona

Hermita? Enfermeira do Gallo? [pag. 32]. O tempo não espera!

Detalhe 5. Ausência do apoio institucional

Afonso: O governo podia intervir, no caso, é... ajudando com verbas, né? Pra que [O Museu] fosse muito mais cuidado, tá entendendo? Prá não se acabar assim tão rápido, tá entendendo?

Everton: Acho que o governo deveria dar mais uma força, né? Pra dar uma melhorada mais na infra-estrutura.

Neste detalhe, não muito diferente do anterior, os intérpretes apontam a

importância do apoio institucional ao Museu do Marajó como um dos saberes cuidativos. Não

somente a saúde pública da ilha do Marajó precisa de cuidados e atenção, mas o acervo d’O

Museu como o todo. O que se sabe, algumas instituições têm prestado assessorias para a

viabilização dos projetos de restauro e de educação, como o Museu Paraense Emílio Goldi,

Universidade Federal do Pará – UFPA e a Universidade do Estado do Pará – UEPA.

60 Helicóptero do governo estadual utilizado para transporte de pacientes; sediado em Belém.

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Enquanto isso é visível a decomposição de algumas peças em exposição, como,

por exemplo, os bichos embalsamados, que, segundo um professor da rede estadual no

município, promove riscos à saúde dos visitantes; ele mesmo afirma não leva seus alunos para

visitação. Os computadores caipiras, feitos de compensado [aglomerado de madeira], estão

apodrecendo devido à umidade e a pertinência de cupins; as peças arqueológicas cheias de

mofo, os cacos marajoaras, as urnas, sem contar com as instalações físicas do prédio, o

telhado com infiltrações, goteiras em tempo de chuvas; as instalações elétricas, a iluminação

precária e insuficiente, ou seja, as peças não têm iluminação direcionada a elas como merece

toda obra em exposição; e, para completar, a falta de recursos humanos, profissionais

qualificados para tocar os projetos esboçados. Atualmente O Museu conta com voluntários do

próprio município, na maioria das vezes sem formação acadêmica, que se esforçam para

atender a demanda dos poucos turistas, estudantes e pesquisadores.

O que se sabe, nas conversas pela rede virtual de grupos de cultura, há uma

corrente de profissionais engajados para federalizar O Museu como alternativa necessária para

salvaguardar aquele patrimônio que está se ‘perdendo’ às vistas distantes e míopes do poder

público até então. O movimento cria forças nas palavras com boa articulação de sua

assessoria, mas não é correspondido naquilo que almeja.

Aproveito a oportunidade para reforçar esta situação e conjecturar a vontade de

contribuir para que, um dia, isso possa acontecer. De minha parte, além deste texto, fiz um

vídeo sobre a educação n’O Museu do Marajó que desejo difundi-lo em todas as escolas

possíveis, promover oficinas educativas e de conscientização à natureza, de respeito ao meio

ambiente, apresentar os saberes marajoaras a todos os alunos e todas as alunas, a todos os

professores e todas as professoras das escolas municipais e estaduais, até mesmo do ensino

privado, fazer uma articulação entre educação e cultura marajoara nos currículos. Penso,

portanto, cuidar não somente d’O Museu, mas da natureza, da Amazônia, dos seres humanos

– é o que O Museu propõe.

PLANO 2. Saberes Arqueológicos

São esses os saberes arqueológicos gapuiados: O fóssil de 190 milhões de anos;

As fases arqueológicas; O Restauro, os desenhos, as réplicas; e Relação entre saberes.

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Detalhe 1. O fóssil de 190 milhões de anos

Referente ao primeiro computador caipira na entrada do salão de exposição. Nele,

os intérpretes revelam a peça mais antiga e a mais nova d’O Museu.

Afonso: Uma das coisas assim, intrigantes assim, né? Da visita aqui nesse museu começa ali [aponta para a entrada]. Como se diz: "Olha! A peça mais antiga do Museu, né?". Aí, poxa, todo mundo [fala]: "Puxa! o que será?". Aí abre e tá... Aí a gente não fala o que é porque a pessoa vai ter que vir aqui conhecer. Aí tipo... depois, a peça mais nova do Museu, né? Aí a pessoa... tá entendendo, então... cria aquele impacto. O mais novo e mais importante.

William: O peixe. Era o peixe, o animal fóssil. Mil e novecentos milhões de anos [reflexivo]. Afonso: Cento e noventa [corrige o amigo].

Willian e Afonso: “Cento e noventa milhões de anos” [falam em coro pausadamente].

O fóssil de 190 milhões de anos é do período jurássico da era mesozóica. É uma

das peças que mais orgulhava Giovanni Gallo quando apresentava seu acervo aos visitantes.

Para melhor compreensão, apresento os períodos da era mesozóica, também chamada de Era

Secundária: são três períodos: o triássico [245-208 milhões de anos atrás], o jurássico [208-

146 milhões de anos atrás], e o cretáceo [146-65 milhões de anos atrás]. Durante esse período,

a fauna do planeta sofre mutação. Os dinossauros, habitantes do período triássico, não

diversificaram no jurássico; com exceção dos pássaros, os dinossauros foram extintos no final

do período cretáceo. O período mesozóico inferior foi domado por fetos, cicadáceas [plantas

com folhas de palmeira], ginkgos [sequóias] e por outras plantas não comuns. Gimnospermas

[plantas sem frutos] modernas, tais como as coníferas, abrolharam no triássico inferior. No

período cretáceo médio, as angiospermas primitivas tinham aparecido e começaram a se

diversificar.

O nome Mesozóico é de origem grega, que significa “meio”, interpretado como

"a idade medieval da vida". O clima, nesse período, era predominantemente seco, tornando-se

úmido no Jurássico. Além dos répteis dinossauros, outros animais surgiram, como as aves.

Alguns desses animais adaptaram-se à vida terrestre e outros à vida aquática. Nos mares,

multiplicaram os cefalópodes61 do grupo dos Amonites62

61 Os Cefalópodes [Cephalopoda, do grego kephale, cabeça + pous, podos, pé] são a classe de moluscos marinhos a que pertencem os polvos, as lulas e os chocos.Fonte:

, que igualmente se extinguiram.

wikipedia.org/wiki/Mesozoico. Acesso em: set. de 2008.

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Surgiram os peixes teleósteos, as primeiras aves, criaturas exóticas dotadas de dentes e de

cauda.

No Brasil, especificamente na Bacia de Caciporé ou Foz do Amazonas, o solo é

bordejado de rica arqueologia, entre fósseis e cerâmicas encontradas nos estuários dos rios.

Com outro nome, a Bacia do Marajó tem um formato de meia-lua e se estende por uma área

de 52.000 km² sob as águas oceânicas do Atlântico. Grande parte dessa sedimentação advém

da descarga dos rios da Amazônia. As rochas ígneas do período jurássico acumularam

kilômetros de metros de sedimentos, revestidos e protegidos pelo terreno pantanoso e argiloso

da ilha, o que conjetura rica plasticidade de peças encontradas, por exemplo, o fóssil de 190

milhões de anos.

Detalhe 2. As fases arqueológicas

Fotog. 53 – Fases arqueológicas da cerâmica marajoara. Fonte: Fares, 2008.

Outros autores também se debruçaram para investigar objetos dessa cultura. [...] o objeto de estudo por parte dos norte-americanos Clifford Evans e Betty J. Meggers

62 Animais barbatanas de vida aquática - As amonites viviam no meio aquático e eram carnívoras, usavam os seus tentáculos como pés para se deslocarem. Fonte: wikipedia.org/wiki Acesso em: Set. de 2008.

, o trabalho desenvolvido pelos povos da ilha de Marajó foi classificado em fases, o que possibilita uma melhor apreensão do aspecto artístico das peças [arqueológicas] bem como uma maior compreensão sobre a organização social dessas populações [CRUZ, 1987, p. 16-17].

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Como afresco63

A fase Formiga é caracterizada pela evasão em larga proporção dos inimigos

caraíbas. Se na primeira fase os nuaruaques fugiam, desta vez foram massacrados e, os que

ficaram vivos, serviam de escravos, principalmente as índias. A produção da cerâmica é

, o painel pintado na parede d’O Museu [Fotog. 53] ilustra os

saberes das fases arqueológicas, apartados nas vozes de Eli e Afonso no Detalhe 3 deste

Plano. São cinco as fases arqueológicas: Ananatuba; Mangueira; Formiga; Marajó e Aruã, e

anos correspondentes.

Fases da cerâmica do povo Nuaruaque

1ª fase .... Ananatuba ... período de 1100 a.C. a 200 a.C. .............................costa norte da ilha até o rio Camará

2ª fase .... Mangueira ......................... 900 a.C. a 100 d.C. ................................parte oeste do ilha até Caviana

3ª fase .... Formiga ............................. 100 a.C. a 400 d.C. ............................................ de Chaves ao lago Arari

4ª fase .....Marajoara .......................... 400 d.C. a 1300 d.C. ..................................costa norte da ilha e lago Arari

5ª fase.....Aruã....................................1200 d.C. a 1700 d.C...........Chaves e Soure, Amapá, Mexiana e Caviana

Trago Cruz [1987, p. 17-9], o qual se refere às fases evolutivas da produção de

artefatos arqueológicos no arquipélago do Marajó. Após leitura de seu texto em “Marajó essa

imensidão de ilha” [1987], montei o quadro acima para melhor visualização. Segundo o autor,

a fase Ananatuba é a primeira deste estudo, e se estende no período que vai de 1100 a.C. a 200

a.C e se alargou no litoral norte do Marajó até o rio Camará. Foi uma fase da cerâmica, vinda

dos antepassados, que não evolucionou em escala de produção e qualidade, considerando as

preocupações de fuga dos inimigos caraíbas e o escasso tempo para se dedicarem aos desenhos

de identificação gravados.

A fase Mangueira é contemporânea à fase Ananatuba, iniciada nos anos de 900

a.C. Somente nos anos 100 a.C essa fase consegue firmar-se no cenário oeste da ilha,

especificamente nas beiras de rios, com forte influência da primeira fase, principalmente na

ornamentação. As pequenas tigelas e utensílios de cozinha eram predominantes.

63 Afresco português brasileiro ou fresco português europeu é o nome dado a uma obra pictórica feita sobre parede, com base de gesso ou argamassa. Assume, frequentemente a forma de mural. A palavra afresco é empregada, muitas vezes, para designar a pintura mural em geral. Do italiano "buona fresco", pintura mural mais antiga e resistente da história da arte. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Afresco . Acesso em: Set., 2008.

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minguada e de pouco destaque na qualidade. Algumas aldeias ainda conseguem produzir em

pequena escala, mas sem cotejar o iniciado valor estético das fases anteriores. Foi uma fase

abstrusa e de difícil coexistência, que vai de 100 a 400 a.C.

A fase marajoara chega da necessidade do povo nuaruaque iniciar atividades de

agricultura com mais empenho para compensar as baixas sofridas. O manuseio com a terra,

principalmente às margens dos rios e várzeas, aprimorou a extração de argila em larga

proporção. Assentados, em um período de paz aparente entre 400 a.C – 1.300 a.C, os

nuaruaques conseguem produzir, com empenho, grandes e numerosas peças com prodigiosos e

requintados desenhos, abstraindo traços da fauna e flora, imprimindo um novo modelo de

pintura. O hibridismo é uma das características fortes desta representação. Nas peças

marajoaras, vê-se a figura humana misturada à figura animal, é o homem-tamanduá, homem-

felino, homem jacaré, homem-pássaro, todos fazem parte da dimensão sobrenatural, que é

parte da história e cotidiano dos povos amazônicos.

Geograficamente, o lago Arari é o centro da produção de cerâmica marajoara,

ampliando para a costa norte da ilha e rio Arari na direção sul da ilha, onde pequenos afluentes

desenhavam a paisagem ainda não explorada pelo interesse latifundiário. A vegetação era bem

diferente dos campos de pasto que hoje encontramos. Os igarapés eram cobertos por vasta e

dessa floresta com árvores de médio poste, o que facilitava a camuflagem das urnas quando

enterradas e guardadas. Nesta fase, aparece a construção dos tesos como característica

importante. São elevações nas cabeceiras dos pequenos e labirínticos rios, conhecidas como

aterros artificiais ou ‘mounds’64

, eram também utilizados como esconderijo em caso de

invasão nas aldeias. Nas peças, a policromia aparece e se destaca pela variedade de desenhos e

os tons das argilas na exuberância da decoração. As cores vermelha e preta são prioridades,

extraídas dos pigmentos naturais entre sementes e resinas de plantas. Esse povo usava a própria imaginação para decorar esses aterros com calma e perfeição. Talvez por questão de tradição, e em virtude das elevações rasteiras e inundações, não se fazia uso do tipo de habitação a que estavam acostumados antes de sua chegada àquela região de Marajó. [CRUZ, 1987, p. 18].

64 Os centros arqueológicos incluem os sambaquis, as estearias, os mounds e também hipogeus, cavernas, etc.1. Sambaquis: palavra de origem indígena que deriva de tambá (concha) e ki (depósito). Possuem formações de pequena elevação formadas por restos de alimentos de origem animal, esqueletos humanos, artefatos de pedra, conchas e cerâmica, vestígios de fogueira e outras evidências primitivas. 2. Estearias: jazidas de qualquer natureza que representam testemunhos da cultura dos povos primitivos brasileiros. 3. Mounds: monumentos em forma de colinas, que serviam de túmulos, templos e locais para moradia. 4. Hipogeus: ambientes subterrâneos, às vezes com pequenas galerias, nas quais eram sepultados os mortos.

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N’O Museu, os “motivos marajoaras”65

65 Desenhos encontrados nas cerâmicas marajoaras e que servem de inspiração para bordados e pinturas no vestuário, peças ornamentais e casas na ilha do Marajó.

têm destaque logo na entrada. Há uma

parede revestida com painéis de madeira e tecidos bordados, uma amostra do trabalho das

mulheres envolvidas nas atividades direcionadas à preservação e valorização da cultura

indígena, sua obra e costumes. No salão de exposição encontramos urnas marajoaras originais,

algumas inteiras, outras trincadas com pequenas fissuras, algumas quebradas, e também os

cacos a espera de restauração.

A fase Aruã [1200 a.C – 1700 a.C.] prevaleceu no litoral leste da ilha, ampliando

às cidades de Chaves e Soure, atravessou as águas até as ilhas Mexiana e Caviana e atual

Estado do Amapá. Considerada de menor qualidade, a cerâmica na fase aruá limitava-se às

igaçabas para funerais secundários, somente essas igaçabas eram decoradas.

Os desenhos eram sobrepostos sem nenhuma preocupação estética e indicavam a

posição social do morto. Conforme Cruz [1987], os ossos encontrados nelas eram pintados de

vermelho, alguns esqueletos apresentavam deformações no crânio. “É bem provável que o

trabalho artístico realizado no barro tenha sido copiado das pinturas feitas nas pequenas

embarcações usadas para o transporte fora e dentro da ilha.” [p, 19].

Fico imaginando um retroprojetor ligado e sendo utilizado pelo professor em sala

de aula [quando isso é possível]. O aparato tecnológico dos tempos atuais exige energia

elétrica, operador qualificado [geralmente o professor], preparação do conteúdo em

powerpoint e uma sequência de conteúdos teóricos para explicar, no caso, as fases

arqueológicas.

N’O Museu, o power é artesanal, é mural, é pintura, desenho, é criação, onde a

síntese dos dados é uma das características fortes, sem perder os pormenores do assunto. Amplio

essa questão a todos os computadores caipiras criados para não depender de fio e energia elétrica; a

energia é motora do próprio intérprete, que o move para aprendizagem. Era a realidade da região nos

tempos em que Gallo ainda formava seu acervo em Santa Cruz do Arari e Jenipapo.

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Detalhe 3. O Restauro, os desenhos, as réplicas.

Fig. 54 – O marajoara e a prática de construir saberes. Fonte: MPEG

Eli: Encontraram apenas a metade das peças, aí o que tiveram que fazer? Como não encontraram as outras metades pra poder unir, pra poder fazer a... pra poder mostrar o certo como era, o que eles fizeram? Fizeram uma réplica, tá entendendo? Procuraram pesquisar, né? Se aprofundar nos conhecimentos preservando a peça original. Tipo assim, você chega no mostruário, você vai ver a peça que foi feita, que foi criada aqui no Museu mesmo, devido ao aprendizado que eles tiveram aqui no Museu.

Afonso: O original.

Eli: E você vê logo ao lado, o original.

No decorrer da conversa, os intérpretes desse grupo continuam o diálogo sobre os

assuntos d’O Museu. Em suas vozes percebe-se entusiasmo, euforia e o desejo de sintetizar as

ações de restauro dos cuidadores. E sem interrompê-los, capto outras informações que surgem

com acréscimo aos dados produzidos. Para ilustrar, faço um teste e pergunto o que os índios

colocavam nas urnas. A resposta veio de imediato:

Afonso: Seus entes querido. No caso, era só os ossos, era?

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Em algum momento de sua gapuiagem Afonso leu, viu ou tocou nos saberes sobre

a maneira de como os índios na Amazônia cuidavam de seus mortos, uma relação direta no

trato das cerâmicas e suas utilidades funerárias da época. Sua resposta é um sinal de que a

aprendizagem n’O Museu é autônoma e ‘desinteressada’, torna o aprendiz livre e

despreocupado em seguir roteiros e conteúdos sistematicamente planejados como os de sala

de aula. De certa forma, O Museu também sistematizou seus saberes para serem apreciados, a

diferença é a escolha, e esta acontece voluntariamente e parte do visitante-aprendiz-intérprete.

Quanto aos projetos de restauro. Eu mesmo presenciei o trabalho de uma equipe

de estudantes especialistas da Universidade Federal do Pará - UFPA, à frente a professora e

também pesquisadora, a arqueóloga Denise Schaan66

Fotog. 55 – Abstração de saberes.

. Entre os estudantes, destaco a

pesquisadora Vera Portal, cachoeirense, dedicada e compromissada com os assuntos do

Marajó, que se disponibilizou em ajudar no fornecimento de dados para esta investigação.

No jardim d’O Museu, há uma reserva técnica onde são guardadas as peças em

fase de restauração. Algumas são retiradas do próprio acervo, outras são os presentes dos

nativos de Cachoeira e circunvizinhança que, quando em vez, chega com “cacos” achados nos

encharcos da ilha.

Detalhe 4. Relação entre saberes

66 Ph.D. em Antropologia Social [Arqueologia] pela Universidade de Pittsburgh [2004]. Atualmente é Professor Adjunto I da Universidade Federal do Pará [Faculdade de Ciências Sociais]. Leciona cursos na graduação, especialização em Arqueologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA. Dedica-se à pesquisa arqueológica na Amazônia, atuando principalmente nas seguintes áreas: sociedades complexas, ecologia histórica, arqueologia da paisagem, gênero, simbolismo, cultura material, patrimônio cultural e arqueologia pública. Lattes 2008; http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. Acesso em: set. de 2008.

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O detalhe proporciona uma reprodução dos motivos marajoaras no desenho de

Ozil, advindo dos cacos arqueológicos em exposição n’O Museu. São relações entre saberes,

entre o real e o imaginário. Esta expressão é ampliada no Saber 7, na Sequência 2 [Fotog. 34,

35 e 36] deste roteiro.

PLANO 3. Saberes identitários

Neste plano, apresento os saberes identitários que emergiram. São eles: O Negro e

Os Povos tradicionais:

Eliane: Ah! Tudo de importante, maravilhoso, inédito, porque, a primeira vez que eu vim mesmo aqui, eu logo me emocionei lá com a... [estende o braço] Com a casa onde vivia o Dalcídio Jurandir, né? Porque eu estudei muito sobre ele, literatura... tudo, toda a vida dele, onde ele nasceu, o que ele fez, tudo, tudo... Aí quando eu cheguei aquilo me emocionei muito. Aqui novamente eu senti a mesma emoção, um museu bem diferente de todos, né? Que a gente já conhece. Inclusive tem a parte da umbanda, que eu conheço e que eu adoro, faz parte da minha vida, tem tudo alí... É tudo muito lindo. Muito lindo. Ana Paula: A gente não conhece a população daqui, mas eu percebo que algumas populações tradicionais acabam indo pra cidade pra estudar, pra buscar novos conhecimentos e acabam voltando sem... aquela identidade meio perdida, acho que é interessante tá valorizando isso. Afonso: A gente vive um pouco o que ele [padre Gallo] viveu, né? assim... quis passar pras pessoas que fosse visitar aqui, né? Assim, o que ele sentia, né? No momento que ele tava construindo isso, né?

Eliane se identificou com dois saberes: sobre Dalcídio Juradir e sobre a umbanda.

O primeiro por conhecer parte da obra do escritor e a casa onde ele morou em Cachoeira.

Sobre isso, ver “Detalhe 2. Alfredo pescador quer estudar”, nesta sequência. A umbanda

aparece com destaque para a intérprete, que dedicou maior parte de seu tempo de visita diante

do ‘altar’ das entidades religiosas, narrativa também presente na gapuiagem da “Famíla

Pereira”.

Ana Paula preocupa-se com a identidade das pessoas que deixam suas origens e

voltam diferentes com “aquela identidade meio perdida”, referindo-se aos nativos que migram

para a cidade grande, a maioria para a capital Belém. Para a intérprete, os marajoaras buscam

oportunidades de estudo, ‘sofrem’ um processo de mudança e voltam à terra natal com outros

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conceitos e outra leitura de mundo, pouco se interessando pelas ocorrências do ambiente. Em

breve analogia, a voz da intérprete retrata também uma realidade premente no cotidiano deste

estudante ou trabalhador em busca de oportunidades, uma recorrência permanente em larga

proporção. Isso não inclui os poucos que voltam em definitivo para ajudar a família e fomentar

dias melhores na própria comunidade onde cresce e se firma sem perder a identificação do

lugar, orgulhando-se disso.

Afonso revela o sentido de compartilhamento com as idéias do criador d’O Museu,

coloca-se no lugar dele ao construir as engenhocas e O Museu em si. No percurso das vozes,

ainda percebo fechos de identidade no salão de exposição que arguo nos seguintes planos de

detalhe:

Detalhe 1. O Negro À parte, o negro ganha destaque nas vozes, embora esteja configurado sua

presença como povos tradicionais que trato no detalhe 2 deste plano.

Jorge: Eu pelo menos... eu li as lendas, essas lendas lá, eu ví uma lenda lá que eu nunca tinha visto, mas... tem uma lenda lá que fala lá da raça negra, né? Que diz que, quando o Nosso Senhor criou, ele criou, todo mundo era "preto". Aí, de tanto eles reclamarem, reclamarem... Aí diz que Nosso Senhor mandou eles se lavarem no rio lá... Então, aqueles primeiros que foram se lavar, quando a água tava limpa, ainda, aí se lavaram e saíram branco, ne? [...] Aí os outros que foram depois se lavar lá, aí a água já tava meia suja, ficaram moreno, pardo, assim, né? E já os negros chegaram por último, quando chegaram lá pra se lavar, não tinha mais água, só deu pra lavar a palma da mão e o pé, por isso que... Achei interessante, por que o seguinte: retrata a realidade... Apesar de a gente dizer que não tem racismo no nosso país, mas a gente sabe que tem, né? [...] Apesar de ser um conto, uma lenda, uma coisa que mostra que todos nós... na realidade, aquilo alí, o escritor [Gallo] fez aquele conto alí pra mostrar que todos nós somos iguais, né? [ele faz um gesto com a mão]. Esse negócio de cor não interessa, isso é coisa que as pessoas inventaram. Então eu acho isso muito importante. Eu achei muito interessante isso aí, uma coisa nova [a estória] que eu nunca tinha visto nem falar. Outras coisas já tinha visto falar, outros contos, outras coisas.

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O intérprete Jorge revela uma estória67

de racismo exposta n’O Museu. É uma das

inúmeras histórias registradas e vivenciadas por Gallo [1996] durante sua vivência no Marajó.

Segundo o autor, os próprios marajoaras negros fazem piadas da sua cor.

Gustavo: Aprendi um pouco mais sobre os negros, no caso... principalmente sobre o padre Giovanni Gallo, esse fundador aí, que se dedicou tanto por esse Museu e... Ana Paula: Eu me interesso muito sobre a cultura afro-brasileira. Eu acho que eu fiquei um tempo a mais lá. Muitas coisas foram muito novas pra mim, eu gostei bastante.

William: É bom que aqui ele [Gallo] conseguiu juntar tudo, né? um pouquinho.

Afonso: Sobre a prisão dos escravos, né? que tinha, né? As corrente que têm aí...

Neto: Muito legal [faz um gesto com o dedo] ...muito pesado! [referindo-se às bolas de ferro].

A seção sobre o racismo é uma das mais visitadas pelos intérpretes. Nas vozes

supracitadas dá para se ter uma idéia do interesse por esta temática. A ilustração deste assunto

está na gapuiagem dos intérpretes na sequência 3.

Detalhe 2. Os Povos tradicionais

Entende-se por povos tradicionais as numerosas famílias ribeirinhas agroextrativistas

que habitam em terras de domínio público, especificamente em área de várzea e igarapés nas

inúmeras ilhas que formam o arquipélogo do estuário amazônico-marajoara. Além dos negros

remanescentes de quilombos, formam os povos tradicionais do Marajó os ribeirinhos

caboclos, cafusos, mamelucos e os índios, que também são lembrados na apartação, nas vozes

de Eli, Joaquim e Raimundo.

Joaquim: Eu vi uns barcos, caretas, umas caretas de barro feitas pelos índios.

67 Estória é um neologismo proposto por João Ribeiro [membro da Academia Brasileira de Letras] em 1919, para designar, no campo do folclore, a narrativa popular, o conto.

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Eli: Eu acho que muda sim, por exemplo, hoje uma pessoa chega contigo e pergunta: "O que que tu sabe da história dos ribeirinhos? O que que tu imagina?", né? Tá entendendo? O que que tu imagina da cultura dos povos mais antigos, não só do Brasil, mas do Norte do Brasil?E então... uma coisa puxa a outra.

Raimundo: Eu aprendi também muito que a gente deve preservar nossa cultura, porque é uma coisa muito importante pra gente e, foi muito interessante.

O povo de Cachoeira do Ararí é formado por caboclos, mamelucos e cafuzos. A

origem dessa mistura de raças vem dos povos primitivos68

68 Os primitivos habitantes da região do Ararí, conforme indícios existentes, foram os índios Aruãs, ligados aos Neengaíbas, também denominados pelos historiadores como Homens do Pacoval, por ser o local que tem essa denominação, um dos pontos que conserva os vestígios mais acentuados da passagem dos silvícolas pela região. Cachoeira do Ararí surgiu no período colonial, com a chegada dos jesuítas a partir de 1700, quando se iniciou a colonização da região do Rio Ararí, fundando-se as fazendas de gado pertencentes à Missão, em terras do médio e alto Ararí. O povoado surgiu a partir da fazenda que pertenceu ao Capitão-Mor André Fernandes Gavinho, que após obter uma Carta de Data de Sesmaria, escolheu o local para construir sua casa em frente a uma cachoeira do rio Ararí. Fonte:

, os índios andinos, com os

invasores europeus e escravos durante a colonização. O intérprete Eli simula uma situação

de auto-avaliação ao tentar responder suas próprias perguntas sobre as tradições de povos

antigos, dos ribeirinhos, e outras manifestações culturais através do folclore, da dança, dos

costumes, da vestimenta, do cantar. Como ele mesmo diz: “uma coisa puxa a outra”.

Inúmeras citações sobre os povos tradicionais são percebidas. É um tema híbrido

que transita em quase todos os computadores que fala do homem marajoara. Seja na seção de

lingüística, seja nas seções que fala dos índios e índias e as fases das cerâmicas, dos negros e

negras, caboclos e caboclas, vaqueiros, pescadores e pescadoras e suas histórias, com tradições

e manifestações culturais. A voz de Joaquim traz a reflexão para os saberes dos povos

tradicionais. Traz os índios e suas produções artesanais, na ocorrência, os barcos e “as caretas

de barro”. Sobre este assunto, em seu texto A representação humana da arte marajoara,

escreve Shaan [1999, p.1]:

Estudos sobre a arte pré-histórica costumam descrever, classificar, comparar e discutir as manifestações artísticas em sociedades conhecidas arqueologicamente. Em vista da necessidade de descrição dos símbolos visuais, geralmente as temáticas observadas são divididas em quatro grandes categorias: a) as figuras antropomorfas (que lembram na sua forma a figura humana); b) as figuras zoomorfas (na forma de animais); c) as figuras fitomorfas (na forma de plantas); e d) os grafismos

http://www.ferias.tur.br/informacoes/4587/cachoeira-do-arari-pa. Acesso em: set. de 2008.

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(que não possuem referencial conhecido e que por isso são muitas vezes descritos como desenhos abstratos ou figuras geométricas). As representações de humanos, animais e plantas, quando muito semelhantes aos modelos reais, são chamadas de representações realistas ou naturalistas. Estas não devem, no entanto, serem tomadas como retratos da realidade. Estudos realizados entre sociedades iletradas em diversas partes do mundo têm demonstrado que as representações naturalistas, juntamente com os grafismos, são utilizadas para veicular idéias, para narrar estórias mitológicas, ou ainda para simbolizar parentesco ou filiação a determinado grupo social. Assim sendo, representam formas de pensar, de conceber o mundo, de entender os papéis sociais - ou seja, representam visões cosmológicas dentro de um contexto cultural específico. Vista dessa maneira, a arte cumpre o papel de trazer para o mundo dos objetos, tornando visual e concreto aquilo que antes estava no plano do pensamento (Geertz 1983).

A autora dialoga com Geertz [1983] para apresentar seu estudo sobre as

representações naturalistas e/ou realistas dos povos tradicionais, sua forma de pensar e

conceber o mundo, nesse caso, “da cultura dos povos mais antigos”, como diz Eli, os índios

marajoaras, suas diversas formas de expressão, como o grafismo para veicular as idéias do

cotidiano vivido na ilha, as estórias narradas mediadas pelas imagens ou “caretas de barro”,

como diz Joaquim.

N’O Museu há numerosas peças arqueológicas com essas representações, a fauna,

a flora, e o antropomorfismo das figuras humanas. Sob o ponto de vista antropológico, essas

peças também podem ser consideradas uma representação da cultura desse povoado como

saberes dos povos tradicionais do Marajó no período mais primitivo. São nas caretas de barro

que Joaquim percebe o hibridismo das formas humanas e a relação com a natureza, fauna e

flora, que transcendem ao sobrenatural, criando um estilo próprio de civilização, suas histórias

e estórias, tradições.

Entre os povos tradicionais do Marajó, encontramos a forte presença dos

quilombolas e pescadores, os ribeirinhos, os quais se adaptaram às adversidades naturais do

meio ambiente, entre as secas na escassez das chuvas e as alagações durante o inverno. Nas

enchentes, as águas levavam os peixes até as cabeceiras dos rios; estes, quando baixavam,

deixavam esse alimento já represado, em forma de barragem, pelos habitantes do lugar. Assim,

a necessidade de sobrevivência fazia dessa técnica uma forma de manejo e apreensão dos

peixes, da mesma forma determinava a fixação desses povos nesses lugares, lagos, rios e

igarapés, onde criavam e transformava dificuldades em oportunidades de subsistência,

estratégias de produção de saberes, justificada pela presença de recursos naturais. É nesse

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cenário que se estabelecem as tradições místicas e alegóricas que são incorporadas ao

cotidiano da população.

Em tempos atuais, a relação de tradição está na rede de produção cultural das

festas religiosas atreladas às datas comemorativas. Faço um recorte deste universo

apresentando o município de Cachoeira do Arari, onde se vê: a Folia de São Sebastião69

Fotog. 56 – Folia de São Sebastião, exemplo de saberes tradicionais. Fonte: MPEG.

e

Ladainhas ocorridas no período de 10 a 20 de janeiro; o Corredor da Folia, no mês de

fevereiro; a Festa do Tucumã, 04 de abril; aniversário de Cachoeira do Arari, 10 de maio;

Festividade do Glorioso Santo Antônio, 13 de junho; Festa de São Pedro, 26 a 29 de junho;

Festival da Carne de Búfalo e seus Derivados - "Fescabu", 20 e 21 de julho; Festa do

Produtor Rural, 25 de julho; Festival Folclórico, 22 a 24 de agosto; Festival da Carne de

Sol, 01 de setembro; Fórum de Turismo, mês de outubro; Festividade de Santana, 3º

domingo de novembro; Círio de Nossa Senhora da Conceição, 2º domingo de dezembro;

Festival da Canção, mês de dezembro.

69 A Festividade do Glorioso São Sebastião em Cachoeira do Arari começa sempre no dia 10 de janeiro estendendo-se até o dia 20. Porém, desde o mês de março do ano anterior a imagem do santo já inicia sua peregrinação visitando as residências dos cachoeirenses residentes em Belém. Para receber a pequena imagem na sua residência é necessário antes um cadastramento junto a Diretoria da Festividade que organiza o grupo de ladainha que conduz a imagem de um lugar ao outro. Em junho, a imagem retorna para o município de Cachoeira do Arari de barco. Na chegada, banda de música e muitos fogos iniciam a peregrinação pelas propriedades rurais de Cachoeira. São muitas fazendas que recebem a visita da imagem do santo cumprindo sempre um mesmo ritual de cânticos e muita oração, algumas até mesmo em latim. Fonte: http://salvaterra.tur.br/index.php. Acesso em: out. de 2008.

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São nessas manifestações que a cultura marajoara se reafirma, advindas das

histórias de vida, dos saberes tradicionais, as rezas, as ladainhas, que envolvem tocadores de

carimbo e lundu, cirandeiros, mamulengueiros, catireiros, repentistas, mães-de-santo, pais-de-

santo, benzedeiras, erveiras, parteiras, e muitos outros intérpretes sociais, é gente de

sabedoria que não se encontra nem será substituída pelos livros de papéis, mas nos livros

sempre novos que não precisamos folhear, mas escutar e viver. Gente participante, que,

juntos, pescadores ou vaqueiros, entre negros, brancos, índios, cafuzos, mamelucos e

caboclos, transformam-se em outros personagens para manter as tradições culturais do

Marajó, constituindo, dessa maneira, a primeira cultura complexa da Amazônia.

PLANO 4. Saberes ambientais

Os saberes ambientais foram os que mais emergiram na apartação. Nas vozes de

Joaquim, Raimundo, Daiane, Eliane, Amanda, Jorge, Ana Paula, Rosália, Gustavo, Afonso e

Willian brotam interpretações plurais sobre: preservação, meio ambiente, aquecimento global,

relação homem e natureza, conscientização e cuidado, a fauna [as anomalias].

Os assuntos sobre os saberes ambientais no Marajó ganharam espaço na primeira

Conferência Regional de Meio Ambiente, realizada no município de Muaná - Marajó, dia 8 de

outubro de 2003, promovido pela Diretoria do Meio Ambiente e a Pará Turismo –

PARATUR. De lá pra cá, outros encontros têm ocorrido graças às intervenções de grupos e

sociedades organizadas voltadas para os assuntos ambientais. Todavia, outras instituições já

iniciaram ações volvidas para o meio ambiente como a Estação Científica Ferreira Penna sob

a responsabilidade do Museu Paraense Emílio Goeldi e o Instituto Chico Mendes, responsável

pela Floresta Nacional Caxiuanã70

Sob o ponto de vista educativo, os serviços voltados ao meio ambiente no Marajó

só terão significado se houver o que podemos chamar de “compensação social”, focada na

erradicação do analfabetismo e de políticas de inclusão às populações ribeirinhas e habitantes

, nos municípios de Portel e Melgaço, no Marajó. A

população local vive do agroextrativismo como saberes tradicionais de subsistência, como a

farinha de mandioca, o principal produto destinado à comercialização, depois a castanha-do-

pará e o açaí. São populações de baixa escolaridade e de poucas oportunidades aproveitadas.

70 A Floresta Nacional de Caxiuanã foi criada em 28 de novembro de 1961 por meio do Decreto nº 239. É a Floresta Nacional mais antiga da Amazônia legal e a 2ª mais antiga do Brasil. Está localizada nos municípios de Portel e Melgaço no Marajó, Estado do Pará, a 300km de sua capital Belém, às margens da Baía de Caxiuanã. Essa baía é um alargamento do baixo Rio Anapu, que deságua no estuário do Rio Amazonas.

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de terras públicas -- bem pertinentes na ilha, o que requer ações imediatas dos projetos de

Educação do Campo e/ou Educação de Jovens e Adultos – EJA, programas do Governo

Federal com inserção dos projetos estadual e municipais voltados para essas demandas. Dessa

maneira, é um assunto de prioridade para os povos tradicionais que habitam o Marajó e a toda

comunidade científica. Assim como os projetos “Ponto de Cultura”71

O cachorro de seis patas faz parte da seção de anomalias, juntamente com o

bezerro-de-duas-cabeças, a maior atração d’O Museu [Fotog.13]. Sobre as anomalias dos

animais, dialogo com FERNANDES [s/d]

do governo, é um ponto

de honra para a União cuidar do Marajó.

Neste estudo, muitos foram os saberes ambientais apartados. Os que emergiram

nas vozes de Joaquim, Raimundo, Daiane, Eliane, Amanda, Jorge, Ana Paula, Rosália,

Gustavo, Afonso e Willian brotam interpretações plurais sobre: preservação, meio ambiente,

aquecimento global, relação seres humanos e natureza, conscientização e cuidado, a fauna [as

anomalias], conforme segue:

Everton: Eu achei interessante aquele do... bezerro né? de duas cabeças. Afonso: Os cachorrinhos de oito patas.

72

71 Ponto de Cultura é a ação prioritária do Programa Cultura Viva e articula todas as demais ações do Programa Cultura Viva. Iniciativas desenvolvidas pela sociedade civil, que firmaram convênio com o Ministério da Cultura [MinC], por meio de seleção por editais públicos, tornam-se Pontos de Cultura e ficam responsáveis por articular e impulsionar as ações que já existem nas comunidades. Atualmente, existem mais de 650 Pontos de Cultura espalhados pelo país e, diante do desenvolvimento do Programa, o Ministério da Cultura decidiu criar mecanismos de articulação entre os diversos Pontos, as Redes de Pontos de Cultura e os Pontões de Cultura.

: Como as coisas são engraçadas! Hoje, estive avaliando uns trabalhos científicos da UFPA sobre alterações na estrutura anatômica. Muitas delas podem ser ocasionadas devido a alterações genéticas, principalmente secundárias à cosanguinidade. No trabalho que avaliei hoje, foram relatados, aproximadamente, 40 alterações, como o crescimento de uma pata no pescoço, polidactinia e tantas outras, em um período de DEZ anos!! Ou seja, esses fenômenos são muito raros em termos de epidemiologia e estatística!

Outros animais também são gapuiados:

Jaquim: O bico de pássaros [...] o beija-flor. Tem muito por aqui.

http://www.cultura.gov.br/cultura_viva. Acesso em: set.de 2008. 72 FERNANDES, Julio. Professor da Universidade Federal do Pará -UFPA, médico veterinário PhD em Animais de Pequeno Porte.

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Raimundo: Eu gostei mais da... pele da cobra lá, que é muito grande, que eu nunca ví uma cobra tão grande assim.

Daiane: É o couro dela.. É o couro dela, e eu gostei também de uma foto de um cara que foi mordido pela piranhas, gostei disso.

Eliane para Amanda: Já, fala filha!

Amanda: Eu acho que a relação do Museu assim, com a Amazônia, com o Marajó, com tudo isso tem que haver com a preservação porque hoje, acontece o efeito estufa, sobre o aquecimento global, [alguém tosse] preservar a Amazônia cada vez vai ficando mais difícil, e o aquecimento vai crescendo cada vez mais... e então eu acho que tem relação com isso, porque, é uma coisa assim, que tem vários anos, é um Museu, né? Tem natureza, eu acho que tem a ver com isso.

Amanda é uma estudante que contextualiza as ações do meio ambiente na

Amazônia com o efeito estufa, relacionando-as com a preservação diminuída diretamente

proporcional ao aquecimento global. Este assunto merece uma atenção especial a vista das

negociações sobre a camada de ozônio como o primeiro problema ecológico global que já

preocupa a comunidade stricto sensu.

Do ponto de vista econômico, uma crise global é bem distinta das crises locais. Nas crises locais, tais como populações de rios, engarrafamentos, ou erosão de solo, os agentes de solo são, em geral, diretamente responsáveis pelos danos a vítimas locais [frequentemente os mesmos indivíduos]. Assim, a economia da exterioridade, danos morais e outros conceitos micro-econômicos são apropriados para tratar o problema, ao menos teoricamente e até mesmo de forma prática, posto que indenizações são previstas [...] Ao contrário, ma crise ecológica global, o culpado pode ser nada menos do que um modelo de desenvolvimento,envolvendo continentes inteiros e com outros estilos de vida. Trata-se aqui, de um “universo controverso”, envolvendo debates sobre modelos nacionais [de desenvolvimento] e justiça internacional. [LIPIETZ in CASTRO e PINTON, 1997, p. 147].

Os autores referem-se aos países que pouco se preocupam com a quantidade

emitida de CFC73

73 Os clorofluorcarbonetos (CFCs), a maioria deles de origem antropogênica, foram utilizados durante muitos anos nos ciclos de refrigeração e na indústria química. Atualmente sua produção e comercialização são controladas, pois esses gases são os principais responsáveis pela diminuição global e buraco na camada de ozônio.

na atmosfera, que provoca chuvas ácidas. As ocorrências têm sido mais

freqüentes na região norte do planeta, onde se concentram as maiores indústrias poluentes, a

exemplo os Estados Unidos e a China.

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No mundo, não há regulamentação de direitos sobre a atmosfera como

propriedade privada de potências economicamente reconhecidas. Da mesma forma o espaço

atmosférico é um bem global comum a todos, ampliando para os países do sul-geográfico do

planeta, que sofrem as consequências na relação custo benefício segundo o seu nível de

desenvolvimento.

A ilha do Marajó está rente à linha do equador situada no meio das correntes de

vento norte e sul, as quais provocam as acinzentadas nuvens cúmulos-nimbos74

Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE aponta os estados

de Rondônia e Pará como os campeões do desmatamento na Amazônia atualmente, e, em

menor proporção, o estado do Tocantins. Esta afirmativa tem sido uma freqüência nos índices

dos últimos anos, considerando as coletas de dados da instituição ao acompanhar as ocorrências

de queimadas e devastação.

Milhões de árvores são derrubadas por ano, principalmente as madeiras nobres,

como o pau-brasil e o mogno. E já senso comum dizer que, em valores aproximados, até então,

17,3% do manto florestal da Amazônia brasileira já foi destruído. As causas desta devastação

têm sido as grandes questões de produção extrativista da região, passando pela pecuária,

agricultura, extrativismo mineral das grandes mineradoras instituídas por governos brasileiros

nas décadas de oitenta e noventa [Serra Pelada em Carajás], assim como as pequenas e

clandestinas mineradoras nas áreas de garimpos que poluem rios e igarapés, estas espalhadas

por todo o território.

; sofre os

respingos do fenômeno global da camada de ozônio, e absorve para si, em um contexto local,

as inferências e intempérie ambiental. Somando, a alteração da temperatura climática nos

últimos anos é proveniente das queimadas da floresta dos estados vizinhos. A situação é

concebida pelos moradores que começam a perceber alterações em seu habitat em tempos de

chuva e em tempos de sol cáustico, influenciando as fontes de alimento e trabalho.

Esse problema preocupa não somente o Brasil, mas todo o resto do mundo. E o

Marajó é considerado uma das regiões mais biodiversas do país, constituída de espécies

vegetais e, principalmente, animais, de culturas complexas, em grande parte encontradas e

representadas n’O Museu. Não é à toa que a intérprete Amanda apartou o saber sobre o

74 Cúmulos-nimbos são nuvens de tempestade; causam turbulência em aeronaves. A turbulência é causada pelas fortes correntes de ar que há dentro da nuvem. São jatos de ar voltados para cima -- provocados pelo levantamento de ar quente da superfície -- e também de jatos de ar direcionados para baixo, criados quando as gotas se formam e caem.

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‘aquecimento blobal’ na roda de conversa. Eu mesmo a observei gapuiando a seção de plantas

terapêuticas da floresta e o painel sobre a ‘emissão de gás carbônico e efeito estufa’. Nas vozes

que seguem, outros assuntos relacionados ao meio ambiente ganham destaque:

Eliane: Também têm vários quadros, né? que mostram uma parte da realidade do marajoara. Assim como, por exemplo, esse quadro aí, ó! [aponta para um quadro na parede] Aí atrás. Ele mostra uma parte assim, do pescador, dos rios...

Jorge: Eu vejo assim, no contexto geral eu acho assim, que é mais uma parte da gente se conscientizar como a Amanda falou, em preservar, né? Porque, se a gente não preservar a própria natureza, né? [...] Eu tive agora, ontem aqui do outro lado, eu tive conversando com um senhor alí numa fazenda, ali, que ele me disse que a criação de búfalos aqui no Marajó tá diminuindo muito, por que o pessoal não tá mais querendo criar, por que o gado comum tá dando mais dinheiro, e tal, essa coisas. Daqui uns anos, vai chegar uma época que vai descaracterizar, porque quando se fala no Marajó, a gente pensa logo naquele búfalo [alguém fala: "nos rios"], no rio, naquele lago, naquele peixe, essa coisas.

Ana Paula: Eu gostei de tudo. Meu estômago revirou um pouco quando eu vi os bichinhos, [risos] quando eu vi as cobras... mas eu achei interessante, é legal ver.

Ana Paula: É, inclusive você, me permita, você registrou assim: "isso aqui é meio nojento" [risos, refere-se a Gustavo]. É que tinha alguns ovinhos de cobra alí [risos]

Ana Paula: É, tinha uma cobra que parecia uma minhoca, não sei. Eu acho meio... não sei, mas quando ví uma...

Rosália [intervenção da Guia]: Por exemplo, lá, quando eu ví, eu senti, descobrimos assim, que tem uma determinada espécie de cobra, ela põe os ovos e fica ali, parece... [que ficam] chocando. Aí tem outras... aí quando nasce as filhinhas elas, elas liberam logo elas, elas não ficam com as mães. Outras não, elas tomam conta dos filhotes.

Gustavo: É, diferentes espécies tem o seu modo reprodutivo diferente, né? Todas as informações aqui tem sido válidas, não tem nada que eu não tenha gostado. Ana Paula: E eu senti um pouco de falta de uma... não sei. Tem bastante imagem de bicho e tal, sobre a parte ecológica daqui do

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Marajó. Uma manutenção, uma consciência ecológica pras crianças. É isso!

Afonso: A história da cobra também de cinco metros e trinta centímetros. Bastante interessante também.

William: Ao todo eram oito metros, né? e aí, o que restou da briga alí, foram cinco... [metros].

A briga a qual se refere Willian é a luta pela sobrevivência da cobra com outros

animais. Ao ser morta, a cobra foi lavada para O Museu já mutilada. A parte menor foi jogada

no rio, a parte da cabeça, os cinco metros restantes foram estendidos como painel na parede.

Na extensão da pele, vêem-se placas informativas sobre o ocorrido e sobre a espécie.

Abro um espaço para relatar um fato inusitado e que julgo importante nesta

contextualização. Na roda de conversa se falava de cobra e outros animais encontrados e

gapuiados n’O Museu. Eis que surgem duas novas personagens. Aparece um pescador à porta

d’O Museu, rapaz de vinte anos, aproximadamente, que chega com duas pequenas cobras,

ainda vivas, dentro de uma garrafa plástica de dois litros. Disse tê-la encontrado na frente da

cidade, nas várzeas, e que desejava vendê-la para o acervo. Era uma tarde de chuva, e, ainda

com as vestes molhadas, entra e senta-se ao lado dos intérpretes e passa a fazer parte da

conversa. A garrafa com as cobras foi deixada no chão, próximo aos seus pés. Depois de uns

minutos de perplexidade e silêncio, a conversa continua, mas todos de olho nas cobras. As

reações eram um misto de espanto, admiração e curiosidade.

As cobras roubam a cena e passam a ser as protagonistas do assunto “meio

ambiente”, estavam vivas, como vivos os saberes apartados na roda de conversa. Os

intérpretes utilizam os répteis para exemplificar as vozes. Ao se referirem à cobra grande

gapuiada n’O Museu, Everton pega a garrafa e mostra pra câmera, e diz: "Olha o filhinho

dela!” Afonso retoma a conversa.

Afonso: Igual ao Museu. Assim, como tem coisa antiga. Aí! [aponta para a cobra na garrafa] Agora chegou a Nova hóspede. Olha aí acabou de achar uma cobra cascavel, né? Olha o filhinho dela. Pegam [os pescadores] com muita facilidade que é encontrado na... nas ilha, assim [...] Uma cobra muito venenosa, né? Essa cobra aí, pra quem não sabe, acho que... sei lá, se o cara levar uma picada dela, acho que é próprio remé... o próprio veneno dela que cura, né? A pessoa.

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Everton levanta a garrafa e a gira em todos os ângulos. Ele simula tirar os animais

da garrafa e ameaça jogá-los no amigo Afonso em tom de brincadeira.

Everton: Bem interessante. Eu vou tirar uma aqui pra ela te morder [finge que vai abrir a garrafa. Risos].

Afonso [assustando-se, dá um pulo da cadeira]: A gente já tem a filha pra curar [...] Olha! cuidado que aquele furo é muito pequeno, ela pode... sair [mais risos]. [...] Tu acha... que ela se solta? [...] Acho que ela sai por esse furinho [aponta].

O Pescador pega a garrafa de Everton e pergunta:

Pescador: Alguém tem coragem de segurar ela? Vou soltar! [...] Pela cabeça. Posso?”.

Para evitar um acidente não permiti essa “aventura”. Ainda assim, insistiram em

querer saber do pescador como ele havia pegado a cobra. A roda de conversa ficou ainda mais

interessante, pois entendo que o interesse dos visitantes pelos saberes ambientais ali

apresentados era pertinente e adequadamente coerente com as minhas proposições de

pesquisador, perceber essa relação construída entre o homem e o meio ambiente; ao mesmo

tempo perceber que ali também estava acontecendo um processo de aprendizagem.

Refeitos do susto. Continuam. Afonso pergunta ao pescador se ele pegou a cobra

com a mão. O pescador demonstra cuidadosamente como se faz. Tira uma das cobras da

garrafa como se fosse um troféu em exibição.

Afonso: E se der errado? Não tem nenhum perigo, não?

Pescador: É muito difícil.

Everton: Eu acho que, tipo assim, o essencial no caso é ter a coragem, né? de chegar, pra chegar perto [...] A grandona realmente, ela... pra gente pegar ela assim, tem que ser dois.

Eli: Mas, como é a estratégia que tu usa pra chegar nela pra pegar... porque ela pode dar o bote, né?

O pescador não responde. Enquanto repõe a cobra na garrafa, Everton conclui:

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Everton: É isso. A cultura é vivenciada de perto, as próprias pessoas do município, mostrando prá nós como as coisas são [referindo-se ao pescador].

O contato direto com o pescador marajoara, o ouvir e o ver a sua demonstração,

de como a cobra é dominada, é uma ilustração ‘ao vivo’ e autêntica de saberes gapuiados.

Dessa forma, diante de tantos assuntos, os intérpretes destacam O Museu como espaço da

cultura do Marajó, e proclamam a outros viajantes conhecerem a natureza da ilha como

espaço de aliança e harmonia com o lugar. Citam os municípios de Breves e Afuá como

exemplo dos saberes ambientais valorizados.

Eli: É o aprendizado da vida mesmo, pra... pra... realidade de hoje é muito bom, muito satisfatório assim... bem bacana assim.

William: Fica a experiência, né? Assim como tem gente que tem oportunidade de vir da cidade pra cá, tem uns que não, né? Conhecer o Marajó, assim...

William: Conhecer mais sobre...

Eli: Tem Breves, tem... Nossa Senhora! Se fosse tá aqui, né? Tem a Ilha de Breves, tema Ilha de Afuá. Aí fica até o convite, né? Quer, quer descansar, quer tá em paz, quer viver bem livre... é a Ilha do Marajó... tem tantas...

William: Tem seu descanso, tem a cultura, né?... do Museu.

PLANO 5. Saberes mítico-lendários O mítico é a força constitutiva de fundação da Amazônia e de países da América Latina, enquanto Nação.[...] a sobrevivência de espaços, onde a senha que autoriza o acesso à informação assenta-se no mito, enquanto narratividade, relatos sobrenaturais: mágicos ou fantásticos, ou no que os narradores amazônicos chamam de marmota, anedota, remorso ou encantado. As Poéticas orais e populares - o conto, o provérbio, a máxima, o dito popular, a trova, o cordel – são freqüentes no cotidiano brasileiro, sobretudo na zona rural, nas zonas periféricas das grandes cidades. [FARES, 2003, p. 156]

Embora já tenha apresentado as questões sobre o mito na sequência anterior, trago

a autora e seu diálogo com seus intérpretes, a qual fala das impressões de viagem de Euclides

da Cunha pela Amazônia e as monografias dos viajantes estrangeiros sobre o homem que nela

habita. Diz Fares [2003, p. 34]: “O autor admite, que o espaço é capaz de fazer tombar teorias

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preconcebidas e tornar admissível a leitura mítica da Amazônia, pois, reafirmo, não é possível

analisar este território, descartando as explicações sobrenaturais.”

Um dos inúmeros exemplos da miticidade que a autora traz em sua ‘cartografia

marajoara’ é a mãe d’água como personagem feminina que metaforiza a erocitidade das águas

amazônicas. A figura mítica, conhecida como mãe d’água, é descrita com formas corporais

clássicas da literatura amazônica, de cabelos longos, que aparece sempre ao lado da vitória-

régia75 e escolhe o cenário entre mururés em noite de lua cheia. Seu canto de sedução e beleza

física atrai o caboclo e o arrasta para a profundeza dos rios, não o deixando voltar. Quando

volta é mundiado76

Fares revela a voz de seu intérprete Alcidino, o qual apresenta duas representações

da personagem mítica da mãe d’água: Uiara e Iara, ambas sereias. Nesse sentido, o imaginário

do intérprete é o pensamento humano estruturante da própria consciência sensível matutada

sobre si mesma, naquilo que o homem pode pensar de sua origem, de suas histórias

constituídas e originadas dos pais, avós e dos mais antigos. É a constituição de uma relação

. Este arquês mítico é o nome genérico de várias aparições sobrenaturais referentes ao espaço aquático e confunde-se com outros. Alcidino Portal explica a diferença entre a Uiara e a Iara: uma é do mar e a outra é dos rios. Esta é a sereia, mas a sereia tem uma atração segundo a gente ouve. ‘E naqueles tempos, que se não tinha outro transporte, que viajava de navio, ela se manifestava em alto mar. Então, quando iam os navios pra Rio , São Paulo, quando eles observavam no oceano, grande, aquele cântico dela, então, eles mandavam a banda de música tocar pros passageiros não ouvir, eles levavam duas bandas de música, pra disfarçar, pra não ouvir o cântico dela. E a pessoa se distraia com a música e num ouviam elas. Num sei se é verdade isso, né? Isto é coisa que nós ouvia falar, que os nossos primitivos falavam pra gente [...] Eu digo, ela é do oceano e a Uiara é daqui dos rios. Chama-se Uiara, mas não sei nem quem botou esse nome e nem porquê, quando a gente se entendeu, já ouviu esse nome, não se sabe nem quem é, se é uma mulher, se é homem. Eu sei que esse movimento, eu cheguei a ouvir.’ [ALCIDINO in FARES, 2003, p. 164-5].

75 A vitória-régia ou victória-régia [Victoria amazônica] é uma planta aquática da família das Nymphaeaceae, típica da região amazônica. Suas folhas arredondadas atingem até 2 metros de diâmetro e possuem as bordas pronunciadas e levantadas. A vitória régia flutua graciosamente na água e pode sustentar o peso correspondente ao tamanho de um coelho. A Lenda: Há muitos anos, nas margens do majestoso Rio Amazonas, as jovens e belas índias de uma tribo, se reuniam para cantar e sonhar seus sonhos de amor. Elas ficavam por longas horas admirando a beleza da lua branca, e o mistério das estrelas sonhando um dia ser uma delas. Enquanto o aroma da noite tropical enfeitava aqueles sonhos, a lua deitava uma luz intensa nas águas, fazendo Naia, a mais jovem e mais sonhadora de todas, subir numa árvore alta para tentar tocar a lua. Ela não obteve êxito. No próximo dia, ela e suas amigas, subiram as montanhas distantes para sentir com suas mãos a maciez aveludada da lua, mas novamente elas falharam. Quando elas chegaram lá, a lua estava tão alta que todas retornaram a aldeia, desapontadas. Elas acreditaram que se pudessem tocar a lua, ou mesmo as estrelas, elas se transformariam em uma delas. Na noite seguinte, Naia deixou a aldeia esperando realizar seu sonho. Ela tomou o caminho do rio para encontrar a lua nas negras águas. Lá, imensa, resplandecente, a lua descansava calmamente refletindo sua imagem na superfície da água. Naia, em sua inocência, pensou que a lua tinha vindo se banhar no rio e permitir que fosse tocada. Naia mergulhou nas profundezas das águas desaparecendo para sempre. A lua, sentindo pena daquela tão jovem vida agora perdida, transformou Naia em uma flor gigante - a Vitória Régia - com um inebriante perfume e pétalas que se abrem nas águas para receber em toda sua superfície, a luz da lua. Fonte: http://www.sumauma.net/amazonian/lendas/lendas-regia. Acesso em: set. de 2008. 76 Na Amazônia usa-se a expressão para definir as pessoas encantadas por algum ente sobrenatural, elas parecem entorpecidas ou magnetizadas por um mundo desconhecido [FARES, 2003, p. 164].

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entre homem e a natureza mítica. A natureza mítica para o homem marajoara é um espaço de

inquietações ontológicas e metafísicas, ou seja, lugar da racionalidade onde se constrói uma

perspectiva cósmica e existencial, que conduz o ser humano a indicar conjeturas e desenvolver

sistemas explicativos que se tornam verdades, críveis, e que ninguém pode duvidar. Portanto,

O Museu do Marajó está cheio dessas explicações míticas e lendárias, de histórias de vida, do

sagrado e do profano, de contos, de relatos que fazem parte desse imaginário fundante.

Jorge: É. Perguntava as coisas pra ela [esposa] mostrava também, porque, eu fui na frente, né? E mostrava... os bichos, tudo pra ela [...] Na realidade, o que a gente sente, pelo menos o que eu senti, é muitas das coisas que você imagina, é que você realiza, você vê, tipo histórias, lendas, esses coisas que a gente só ouvia falar, mas não tinha um...

Eliane: Contos, né, contos que é muito interessante. É que a gente ouve mas não tinha noção, né?

Daiane: Ah! Eu aprendi a cultura, a reservar mais as coisas, e outras coisas.

Amanda: Eu aprendi umas lendas, que não sabia que tinha tanta lenda que eu vi aqui que eu nem imaginava que existia [...] É... Como é? A lenda do guaraná eu sabia, mas não também, também... qual foi a outra? É... da amazônias [sobre as mulheres Amazonas], essas lendas aí.

Amanda se impressiona com a quantidade de lendas encontradas e visualizadas

durante sua gauiagem. Entre esses saberes, aparta a lenda das Amazonas77

O reino dos amazonas nasce sob a força do mito. O país imaginário descende da imagem das amazonas, que desdenha o macho, mas que se aproveita dele para perpetuar-se. A luta pela liberdade das mulheres guerreiras lhe impõe os arcos, lhe amputa um seio e os filhos homens, e lhe esconde o rosto. Os relatos divinos e heróicos ensinaram a vida, são oráculos dos tempos imemoriais. No mito clássico ou no equatoriano, cria-se reinos belicosos, templos secretos. A dimensão mítica do universo compreende a absorção do mundo por conceitos em que o abstrato e o concreto constituem um todo: mito, memória e paisagem não se dissociam, por qualquer caminho que se siga [...] O exemplo das Amazonas, trazido pelo imaginário ou pelo simbólico dos estrangeiros, indica, desde aquela época, a

que aqui transcrevo

das linhas de Fares [2003, p. 156]:

77 Amazonas foi o nome dado às mulheres guerreiras da Antiguidade que habitavam a Ásia Menor e cuja existência alguns historiadores consideravam um mito. Segundo a lenda, elas removiam um dos seios para melhor envergar o arco, deixando o outro para amamentar seus rebentos, que, se nascessem do sexo masculino, eram impiedosamente sacrificados. Amazonas, aliás, quer dizer sem seios [“mazos”] em grego. No século XVI, essa designação foi dada a mulheres com as mesmas características, cuja existência histórica é discutida e que combaterem os conquistadores espanhóis no baixo-Amazonas.

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sobrevivência dos espaços, onde a senha que autoriza o acesso à informação assenta-se no mito, enquanto narratividade, relatos sobrenaturais: mágicos e fantásticos, ou no que os narradores amazônicos chamam de marmota, anedota, remorso ou encantado [...] O mito impulsiona a história, influencia as mulheres guerreiras da Amazônia do século XIX. Raiol [1970, p. 291/8, 1º vol.] registra o Estatuto das Novas Amazonas ou Iluminadas, composta de mulheres, com três categorias de sócias: as irmãs Educandas, as Mestras [mais adiantadas nas práticas das virtudes e ações heróicas], Sublimes Mestras [as que tinham chegado ao auge das virtudes civis, políticas e morais, decidido amor à pátria e adesão à liberdade]. A elevação de uma classe a outra implicava em tempo, e quanto maior a ordem, maior o tempo, mas se alguma sócia prestasse um relevante serviço à sociedade era promovida imediatamente. Ao fim dos quatro primeiros anos, se a associada tivesse pago as pensões, assistido às reuniões, participado das festas, prestado os serviços que lhe foram designados e propostos vinte sócias dignas, era condecorada com uma medalha e um cordão ou um trancelim em ouro, com a inscrição Da Pátria Ilustre Defensora. As premiações, sempre em ouro, iam mudando as formas, de acordo com os serviços prestados ou as virtudes, então, recebiam as condecorações com as inscrições Honra e Glória à Mulher Forte, Às Sublimes Amazonas Eterno Louvor. O tratamento usado nas sociedades era hierarquizado. Vós, Excelsa e Sublimíssima Irmã, Excelentíssima; Excelente; Amabilíssimas, Amáveis irmãs. Cumpria-se um ritual nas reuniões e festas, entre eles, o acompanhamento do livro dos Santos Evangelhos, com um arco e uma flecha em cima e uma coroa de rosas brancas. As sócias pediam a palavra batendo com a mão na coxa direita e depois a levantando ao peito esquerdo. Para aprovar uma resposta levava a mão direita à testa e para desaprovar fazia o mesmo gesto com a mão esquerda. O grupo era organizado em três comissões: a de justiça, a de política, a de graus. E, assim, o autor continua a descrição dos trajes das datas, horários, prendas, trajes, gestos e instrumentos rituais. Os estatutos são assinados por Guiomar Maria Watrin, Marciana Paula de Oliveira e Sousa, e Ana Joaquina da Silva Campos, com data de 16 de abril de 1833, Pará.

Fares [2003] dialoga com Raiol [1970] para mostrar a influência do imaginário no

cotidiano das mulheres guerreiras do século XIX e que habitam a Amazônia. Versões

históricas vêm ao encontro da citação da pesquisadora, e relatam que em 1541 o navegador

Francisco Orelhana foi atacado por índios de vasta cabeleira ao descer o afluente Napo

próximo ao então Mar Dulce78

Muitas mulheres foram vistas no conflito. Eram índias que se misturavam aos

guerreiros formando uma grande tribo. Segundo relato do Frei Gaspar de Carvajal, que

acompanhava a missão, eram mulheres musculosas, altas e de cabelos compridos, com arcos e

flechas nas mãos. O testemunho dos viajantes enfatiza a presença de mulheres guerreiras, as

Icamiabas, como eram chamadas pelos próprios índios homens, que significa ‘mulheres sem

maridos’. Estas viviam sozinhas regidas nas próprias leis na região do rio Nhamundá, e

.

78 Nos primeiros dias do ano de 1500 o espanhol Vicente Yanéz Pinzon, descobriu o Rio-Mar de Santa Maria de la Mar Dulce, dando a primeira notícia que se teve do fenômeno da pororoca e da existência de uma grande ilha na foz do referido "mar" de água doce - era a ilha do Marajó.

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guarneciam o país das Pedras Verdes, de onde vinham os muiraquitãs79, as famosas pedras

verdes. A tribo mais próxima das Icamiabas80

Ilustro estas vozes com a narrativa de Fares [2003] para explicar a metamorfose

sofrida entre a forma humana e animal, o que caracteriza a lenda do boto. Antes desta

abordagem, apresento o argumento da autora que vai buscar na filosofia clássica as

transformações de deuses em mortais e em diversos outros seres na terra para se fazerem

presentes e acreditados no mundo. Ela apresenta também o Deus cristão, que humaniza o

barro e transforma a costela de Adão na primeira mulher. Outras transformações míticas

também são apresentadas na literatura clássica de Ovídio [42 a.C./18 d.C.], obra chamada de

As Metaforfoses, constituída de “quinze livros, mais de doze mil versos, narra

era os Guacaris. Os intérpretes continuam a

apartação, e outros saberes mítico-lendários emergem, como o famoso boto:

Afonso: As lendas daqui. Os animais, as esquisitices, né? que a gente tava vendo lá, que muita gente pensa que é contos, né? Mas algumas foram histórias reais que aconteceram e pelo fato de dizerem "Ah! è ribeirinho que tá contando", e o pessoal pensa como se diz na linguagem hoje, né? "conversa pra boi dormir [...] E das lendas assim que a gente mais conhece, né? a história do boto chegando na festa, o filho do boto, que é bastante interessante. Tem gente que acha que são as histórias antigas, mas é intrigante, né? Bem bacana mesmo [...] Igual... tu tava falando, né? de repente é...

Eli: O boto, a história do boto [...] Porque é uma história [...] dá um diferencial assim, na vida da pessoa.

Willian: Um fenômeno assim que é meio difícil, né? Por isso que eu acho assim que é uma ilha curiosa, né? dá uma curiosidade de ver, de saber como acontece essas coisa [as históras do boto].

79 Era no Lago Verde, considerado sagrado pelos indígenas, que as Amazonas recolhia a nefrite [um mineral esverdeado], para produzir seu muiraquitãs, pequenos artefatos talhados na referida pedra em forma de sapos, tartarugas e serpentes, e ao qual se atribuem virtudes de amuleto. Os muiraquitãs [versão 1] eram oferecidos à mãe lua, em troca de favores. Diz à lenda que no fundo do lago há uma pedra mágica escondida. É essa pedra que dá ao lago a sua cor azul nas primeiras horas da manhã, mas que se transforma num verde intenso, durante o dia. Na realidade, isso pode ser o efeito do sol penetrando as águas transparentes e iluminando o fundo do lago, rico em nefrita. 80 Dizia-se que as Icamiabas realizavam uma festa anual dedicada à lua e durante a qual recebiam os índios Guacaris, com os quais se acasalavam. Depois do acasalamento, mergulhavam em um lago chamado Iaci-uaruá [Espelho da Lua] e iam buscar, no fundo, a matéria-prima com que moldavam os muiraquitãs [versão 2], os quais, ao saírem da água, endureciam. Então presenteavam os companheiros com os quais tinham feito amor... Os que recebiam, usavam orgulhosamente pendurados ao pescoço. No ano seguinte, na realização da festa, as mulheres que tinham parido ficavam com as filhas e entregavam os filhos para os Guacaris... De qualquer forma, quando se pronuncia Amazônia, não se pode deixar de pensar em muiraquitãs e em mulheres guerreiras, as mulheres da Região Amazônica. http://portalamazonia.globo.com/amazoniaaz/artigo_amazonia. Acessado em: set. de 2008.

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cronologicamente 246 fábulas sobre metamorfoses, escolhidas entre o repertório da tradição

fabular Greco-romana.” [FARES, 2003, p. 194]. Prossegue referindo-se a Chcheglóv [1979,

p.156]: São típicos os casos em que o homem é transformado pelos deuses num animal , árvore ou pedra, devido seu gênio rancoroso ou comportamento inadequado [...] Às vezes um homem passa por transformações depois de sofres ou parecer [...] Inversamente, depois do dilúvio que devasta a terra, os deuses transformaram pedras em pessoas; depois de uma peste, as formigas se tornam gente [...] Pode-se dizer que as transformações do mundo ovidiano, normativamente constituído, serve de meio para o restabelecimento do equilíbrio transgredido em determinadas partes do mundo.

Na Amazônia, a literatura da metamorfose é recorrente; n’O Museu é pródiga na

temática do Boto81

Fotog. 57 – Detalhe do Boto tucuxi, apartado n’O Museu do Marajó. Foto: V. Portal. [2005]

descrita na gapuiagem da Família Pereira, na sequência 3.

A mitologia amazônica conta a metamorfose do peixe-homem sedutor,

conquistador de corações em encontros furtivos, engravida as donzelas e desaparece nos rios,

voltando à forma original. Essa premissa é uma bela justificativa que os pais das moças 81 Conta a lenda que no início da noite, o Boto transforma-se em um belo rapaz forte, alto , bronzeado, vestido de branco e muito perfumado. Com um jeito misterioso, o rapaz [Boto] chega nos bailes, dança , bebe, encanta as moças e escolhe a mais bonita . De madrugada ele desaparece misteriosamente. Dizem que quando desaparece é porque ganhou novamente sua forma de Boto e mergulhou profundamente. Quando está na forma humana usa sempre um chapéu para que ninguém veja o orifício de sua cabeça, comum aos botos.

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grávidas e solteiras, geralmente adolescentes, encontram para aceitar a situação da gravidez

precoce, bem recorrente nos lugarejos da Amazônia.

Quando aparece uma mulher grávida sem saber quem é o pai da criança, a

resposta, que antes deveria pertencer a um mundo natural, passa a pertencer ao mundo mítico-

lendário para atenuar as interpretações jocosas e discriminadas para não afetar a estrutura

idealizada de familiar. “É o Boto, pai!” A culpa é atribuída a ele, ao peixe, ao homem, ao

peixe novamente. Mas ele volta, sempre volta nas festas para dançar e conversar em forma de

homem enganador.

PLANO 6. Saberes históricos

A ênfase atribuída a esses saberes foram: a história de Giovanni Gallo e as

histórias do “Marajó em geral” [citação de Willian]. A historicidade do Marajó é

compreendida por se tratar da história do homem e da cultura marajoara, quando os intérpretes

conversam sobre os saberes decorrentes das relações estabelecidas entre homem e cultura,

homem e saber.

Os intérpretes Everton e Willian relevam a questão da aprendizagem dentro d’O

Museu nas frases: “além de aprender, a gente tá vendo a história daqui mesmo”; “O Museu é

muito rico em cultura [...] é maravilhoso aprender assim”. Eles viram a história guardada em

síntese dos diversificados saberes durante a gapuiagem. Eis as vozes:

Afonso: É. Eu gostei da história do fundador.

Everton: É. Acho que, assim, bem interessante, sabe? A história de vida dele, né? Além de aprender, a gente tá, tá... vendo a história daqui mesmo, né? Como é, como foi...

Willian: E o Museu é muito rico na cultura, e não só na cultura ribeirinha como na cultura antiga, entendeu? É maravilhoso assim, de aprender assim. E o que é legal aqui no Museu é que não tem só a história do município [Cachoeira], né? Que a gente percebe, tem também a história do Marajó em geral.

Afonso: Dos índios, dos escravos. É bem legal mesmo.

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Fotog. 58 – Capa do livro de Giovanni Gallo, publicado

em 1996. Secult/Pará. Biografia e história d’O Museu.

Analisando as vozes percebe-se que não há uma associação entre a obra e seu

criador __ ocorrência apresentada na SEQUÊNCIA 1 deste texto com o título “O Homem que

implodiu: reminiscências de um padre e a gênese d’O Museu do Marajó”. Todavia, amplio a

discussão para contextualizar as implicações da relação dual entre construção social e

historicidade.

A construção social no Marajó é produção de sentido do homem marajoara e

resgata o importante conceito de estrutura coletiva, que vai desde a formação das tribos como

sociedades indígenas, até o conceito de desenvolvimento intelectual a partir da infância nas

comunidades tradicionais, as quais se organizam e produzem seus próprios preceitos de

subsistência, fundantes e construtores de suas próprias histórias. Entende-se por homem

marajoara os seres humanos -- homens, mulheres e crianças, como nova categoria no

entendimento sob o ponto de vista do paradigma emergente dos tempos atuais.

Quando pensou no envolvimento das comunidades de Jenipapo e Santa Cruz do

Arari no início da formação d’O Museu, Giovanni Gallo precisou do aval de seus

‘colaboradores’ para autenticar uma idéia, enquanto instituição comunitária, que viesse

promover desenvolvimento social nos dois lugarejos, onde o índice de desenvolvimento

humano é diminuto em relação aos grandes centros de produção do país.

O conceito de desenvolvimento social aqui recortado é anunciado pelas

‘Tendências recentes quanto à sustentabilidade no uso dos recursos naturais palas populações

tradicionais amazônidas’, texto produzido pela pesquisadora e antropóloga do Núcleo de

Altos Estudos Amazônicos – NAEA, Lígia Simonian. Segundo a autora:

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A relação entre recursos naturais, populações tradicionais e sustentabilidade efetiva-se sistematicamente na relação natural e social e emerge no debate acadêmico enquanto uma problemática complexíssima. No passado mais distante, a mesma caracterizou-se por processos e experiências muito diversas e prolongadas. E a poucos milênios, também passou a envolver o Estado, as elites e a sociedade em geral, o que na Amazônia vem se concretizando desde a invasão européia e os conseqüentes tempos coloniais. Posta esta questão [...] efetiva-se compreender os portugueses da persistência de políticas e ações tão insustentáveis quanto aos recursos naturais e às sociedades locais. Do ponto de vista conceitual, são fundamentais para essa compreensão as categorias sustentabilidade, populações tradicionais e recursos naturais. Essa primeira se remete à discussão quanto ao desenvolvimento sustentável, em Suas vertentes normativas, “nativa” e crítica. (SIMONIAN, 2000a). Uma definição de populações tradicionais está longe de ser uníssona e, inclusive, há os que a abominam ou mesmo estão a propor a noção de destradicionalidade (HEELAS, 1996), que por sua vez enfatiza as contradições e transformações que permeiam seus modos de ser e culturas. E, no que respeita os recursos naturais (CARNEIRO FILHO, 2000; RODRIGUES, 1996; SIMONIAN, 2005a), em sua diversidade eles formam a base de intervenção e de uso destas populações. [SIMONIAN, 2007, p. 25].

O Museu se afirma nessas três categorias referendadas pela autora e busca

provocar a reflexão dos visitantes, ora intérpretes, para compreender ‘sustentabilidade’,

‘populações tradicionais’ e ‘recursos naturais’. A compreensão destes conceitos é

contextualizada nas ações voltadas ao aprendizado dentro d’O Museu sobre desenvolvimento

social na região do Marajó, seus avanços e retrocessos, em pouca ou em larga escala dos

parâmetros de desenvolvimento sustentável do Brasil e do mundo.

O lugar Museu é um lugar de história, uma caixa de surpresas, ‘brinquedos’, que

nos conduz a avaliar o que se produz na ilha, o que se preserva, o que se consome, o que se

ensina, o que se aprende, o que se constitui como conhecimento tácito e é transformado em

conhecimento científico; ainda, o que pode ser abstraído, absorvido e processado em forma de

textos verbais e escritos, conhecimento com temáticas diversas sobre os seres humanos

históricos e aprendentes e que fazem parte do acervo, personagens constituintes de saberes.

Estes estão ali colocados, em forma de figuras, desenho, esboço e contornos para falar de suas

experiências e vivências, sabem contar suas histórias, cabe a nós interpretá-las.

A interpretação das histórias está atrelada a relevância que atribuímos à

aprendizagem n’O Museu e o modo de como ela é processada. Ao mesmo tempo em que faz

emergir conteúdos do conhecimento empírico sobre os seres humanos marajoaras, a história

do Marajó é revelada e concebida pelo olhar, gesto e voz, de maneira orgânica, na

oportunidade em que esses conteúdos são tecidos em construções racionais, e nos permite

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entender as relações associadas entre personagem e história. O esforço de separá-las é uma

opção análoga de preferência didática na formatação sistemática de conteúdos em disjunção,

ainda assim, é impossível falar das histórias sem os seus protagonistas, os quais fazem parte

desta mesma história. Outra possibilidade de entender essa historicidade é escolher pela

associação despreocupada dos dois termos, como as águas dos rios Solimões e Negro quando

se encontram e formam uma grande vertente [de informações], formando um só rio de saberes

históricos.

Na metáfora desta geografia, o rio maior, ou rio mar, é a história como um todo,

ou seja, a história dos saberes marajoaras. Os afluentes são outros saberes históricos que

compõem um conjunto de saberes constituídos, formando uma grande bacia [hidrográfica] de

saberes. Navegar nos rios de saberes dentro d’O Museu é navegar pelos fatos históricos,

pontuados entre aldeias, vilas, cidades, hábitos e costumes dos povos, crenças, onde a própria

historicidade torna-se inteligível, depois de ouvir as vozes nos portos e trapiches, nos

estuários, nas várzeas e margens navegadas do conhecimento tácito, e deságua no oceano da

ciência. Os navegadores continuam a expressar os sentidos:

Afonso: O padre Gallo consegue trazer aqui [gestos com dedo] era uma fábrica de... óleo, né? Eli: Porque o fundador, né? O criador é... foi a vida dele isso aqui, né? De repente, a fatalidade dele ter falecido, né? Se perder, se acabar assim não é [...] na história que conta que o Museu é que, na verdade, ele não foi fundado aqui, né?

Willian: Do próprio fundador também, né? Como a gente tava comentando na hora que a gente tava interagindo com o Museu, às vezes a própria pessoa, o guia, né? Não tem a condição de tá atendendo a todos, e às vezes cada coisinha tem sua história no...

Afonso conseguiu, em sua gapuiagem, abstrair o período de formação d’O Museu na cidade

de Cachoeira. A fábrica de óleo referida é o espaço abandonado e aproveitado para a

instalação do mesmo, situação descrita na CENA 3 da SEQUÊNCIA 1 deste roteiro. A

preocupação de Eli aponta o falecimento do Padre Giovanni Gallo, ocorrido em 07 de março

de 2003, reminiscências da história do criador e criação.

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Willian enfatiza a interatividade com autonomia dos intérpretes sem depender dos

guias ou facilitadores, estes insuficientes para atender a demanda que chega em grandes

grupos, quando em vez, para visitar O Museu, geralmente aos fins - de - semana. A maioria

das vezes, o guia fica ociosamente a espera de um turista ou aluno das escolas do município

para cumprir sua tarefa de monitor ou monitora. Destaco esta situação para elucidar a

necessidade d’O Museu possuir profissionais qualificados e preparados para as explanações

dos conteúdos, estabelecer a relação de temporalidade, memória e de contextualização

histórica como suporte e valores agregados ao patrimônio público. Cada objeto, imagem,

fotografia, desenho ou pintura, cada feição e aspecto tem sua história e implicações.

Afonso: É! Histórias de dinossauros, histórias de portugueses, sabe? Essas histórias assim [...] cultura mais avançada [...] De como os portugueses chegaram no Brasil, né? Tem todo esse aparato aí. Mas assim, aqui não, aqui você vivencia a história de quem tá pra contar e de quem viveu pra contar, tá entendendo? Bem diferente, com certeza! Willian: Porque é muita história que não dá pra ir [conhecer]em duas horas, ou três. A pessoa vai vendo uma história e vai se interessando nas outras, né?

Outra questão é o sentimento de incompletude da visitação. O desejo de conhecer

toda a história ali presente em uma só gapuiagem deixa o visitante ansioso e apreensivo para

aproveitar todo o tempo disponível de sua presença e contato com os saberes em exposição.

Os painéis oferecem inúmeras informações organizadas em temáticas gerais e específicas,

associadas a outras temáticas como temas transversais e que compõem um banco de dados

com perguntas e respostas, em um misto de texto e contexto histórico, ou seja, uma história

puxa a outra. O intérprete então não consegue visualizar tudo ao mesmo tempo, seu olho não

pára, suas mãos, inquietas, mexem e mexem e mexem, vira e vira e vira as tabuinhas, rodam

as manivelas, os cubos, as caixas, puxam fios, agacham-se, curvam-se, esforçam-se para dar

conta de toda os assuntos, descobrindo fatos que norteiam a história da Amazônia, e,

direcionando o foco, a história do Marajó.

Eli: Não dá pra conhecer toda a história, então a gente...

Everton: São poucas as oportunidades que a gente tem que voltar de novo.

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Eli: É diferente porque geralmente nos museus das cidades mais... das cidades grandes, podemos dizer assim... São mais modernos.

Ana Paula: Parecia que a gente tinha voltado no tempo, assim, como se estivesse lá. Como se tivesse participando da história da cidade [Cachoeira], a história do Marajó e do Padre [...] Eu acho que não é só pra turista tá vindo ver e conhecendo a história, mas, manutenção histórica do... pra criança.

Ana Paula continua sua apartação e brinca com a temporalidade histórica –

memória -- que O Museu provoca, destaca a importância dos saberes marajoaras voltados não

somente as crianças, mas para o turismo regional e brasileiro; fala da função social dos

projetos voltados para a comunidade do Marajó, da cidade de Cachoeira, do trabalho do Padre.

Fotog._59. Padre Gallo: “N’O Museu tudo é história”. A obra e o criador. Foto: Site MPEG.

Na articulação dos fatos, outra preocupação de Gallo ao pensar na geração de

outras fontes de renda para a população, é fomentar o turismo para mostrar o Marajó aos

quatro cantos do mundo. A arquidiocese de Belém muitas vezes tentou convencê-lo de levar O

Museu para a capital, na troca de subsidiar recursos solicitados pelo jesuíta, uma espécie de

‘chantagem’, segundo relata o próprio padre. Este resistiu às “tentações” do bispo Dom

Alberto Ramos, então arcebispo de Belém, e ao apelo do capitalismo institucional oferecendo-

lhe vantagens e cargos na esfera da igreja católica e em outros seguimentos da política do

Estado. ‘Se O Museu sair de Cachoeira, quem vai conhecer o Marajó?’

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Pensando assim, Gallo sempre soube da potencialidade de seu trabalho e a

importância de sua obra no contexto histórico-cultural da maior reserva biodioversa fluvial do

planeta. Para ele o turismo é a segunda maior indústria do mundo como fonte de renda,

perdendo somente para a indústria do entretenimento. Portanto, o museu pode ser um forte

atrativo de turistas do mundo inteiro e do Brasil a conhecerem a história dos nuaruaque,

ananatuba, mangueira, formiga, marajoara, aruã e atuais descendentes, populações tradicionais

e urbanas que formatam o cenário e a história do Marajó.

FADE OUT

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PLANO DE SEGURANÇA82

Em síntese, os pilares ilustram os saberes apartados na roda de conversa. Sem

dúvida, não há nenhuma pretensão de fazer combinar com os sete saberes de Morin [2005] na

obras ‘Sete Saberes necessários à Educação do Futuro’. Depois de minhas observações e

quantificando as categorias emergentes de saberes, no caso seis, é que pude constatar a

aproximação com a estrutura de autor, mestre do pensamento complexo

: Pilares de Saberes

83

Figura1. Saberes gapuiados n’O Museu do Marajó.

.

Por se tratar de ‘pilares’, ouso apenas contribuir para fortalecer a estrutura de

educação n’O Museu do Marajó como saber de sustentabilidade da cultura marajoara, no

desejo de que esses saberes sejam bem aceitos por parte das políticas educacionais, sem

resistência, e sem exclusividade para os que atêm esses mesmos saberes como conhecimento

tácito.

82 No cinema o plano de segurança é para garantir o entendimento das cenas e sua fluência no roteiro e montagem do filme. Neste estudo [roteiro] esse plano reforça entendimento sobre os saberes apartados pelos intérpretes. 83 Complexidade é a escola filosófica que vê o mundo como um todo indissociável e propõe uma abordagem multidisciplinar e multireferencial para a construção do conhecimento. Contrapõe-se à causalidade por abordar os fenômenos como totalidade orgânica. Segundo MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo, 1991, p.179: "À primeira vista, a complexidade é um tecido [complexus: o que é tecido em conjunto] de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal. Mas então a complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza... Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nos fenômenos ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de selecionar os elementos de ordem e de certeza, de retirar a ambigüidade, de clarificar, de distinguir, de hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de a tornar cega se eliminarem os outros caracteres do complexus; e efetivamente, elas nos tornam cegos." Fonte: wikipedia.org/wiki/Complexidade. Acessado em: Set. de 2008.

012345

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Figura 2. Saberes cuidativos.

Figura 3. Saberes arqueológicos.

Ausência do apoio institucional Saúde e questões

políticas Medicina Cabocla: relação com a

terra, alimentação e ervas

Memória

Patrimônio Histórico e Cultural

O fóssil de 190 milhões de anos As fases

arqueológicas Restauração: desenho e réplicas Relação entre

saberes arqueológicos

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Figura 4. Saberes Identitários.

Figura 5. Saberes ambientais.

O Negro

Povos tradicionais

FaunaFlora

Efeito estufa

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Figura 6. Saberes mítico-lendários.

Figura 7. Saberes históricos.

Lenda da Mãe d’água

Lenda do Boto

Giovanni Gallo

Museu do Marajó e seus saberes

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Nas recorrências dos conteúdos, percebo O Museu como espaço multidisciplinar e

multireferencial para a construção de conhecimento. Os seis saberes emergentes na gapuiagem

desembocam “em profundos mistérios referentes ao Universo, à vida, ao nascimento do ser

humano. Aqui se abre um indecidível, no qual intervêm opções filosóficas e crenças religiosas

através de culturas e civilizações.” [MORIN, 2005, p. 13]. Para aclarar, amplio sobre os

saberes do autor e estabeleço uma possível relação com as preocupações deste estudo.

O Museu do Marajó e os sete saberes de Morin [2005]:

1. A cegueira do conhecimento: o erro e a ilusão, que apresenta o conhecimento

como necessidade primeira, que arma a mente na luta a caminho da lucidez – muitos ainda não

conhecem os saberes do Marajó, ainda que conheçam não os vêem com prioridades nas

reflexões sobre educação como eixo norteador de sustentabilidade;

2. Os princípios do conhecimento pertinente, que se referem à necessidade de

promover o conhecimento capaz de promover problemáticas gerais e absorver as parciais e

localizadas, parte e todo de um mundo complexo – O Museu é pólo de saberes com

problemáticas complexas, apresenta temos globais e transversais, é rio e afluentes, é várzea,

que formam uma bacia de saberes;

3. Ensinar a condição humana, que reconhece a unidade e a complexidade humana

– Muitas são as representações sobre a identidade dos seres humanos que habitam a ilha do

Marajó, reconhecê-las tem sido uma luta das comunidades locais junto às instituições do poder

público, que muito tem que aprender sobre a condição humana dos povos tradicionais, a

começar pelo Museu do Marajó, abandonado e desprestigiado dos orçamentos de gestão

pública;

4. Ensinar a identidade terrena, convém ensinar a história planetária e mostrar a

complexidade de crises que marcaram o século XX, e que todos os seres humanos

compartilham do mesmo destino através dos tempos – Muitas seções d’O Museu apontam essa

temática e promovem reflexão sobre o destino dos seres humanos marajoaras e do mundo

inteiro mediado pelos saberes cuidativos como possibilidades para redução das crises;

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5. Enfrentar as incertezas, que prepara a mente para o inesperado e o

enfrentamento deste – As tragédias na natureza são exemplos de devastação no meio ambiente,

o inesperado das secas e inundações são temas abundantes n’O Museu, as estratégias de ação e

técnicas de manejo dos povos tradicionais nos ensinam a enfrentar as incertezas do inesperado;

6. Ensinar a compreensão, que prega a compreensão mútua entre os seres humanos

como forma de educação básica – Os relatos encontrados em exposição trazem a intolerância

dos povos primitivos na disputa de terras, bem como os conflitos promovidos pelos

colonizadores em detrimento às tribos indígenas na Amazônia. A história conta que a

‘educação dos povos’ era um instrumento de adestramento e de domínio. Esse pilar tem um

caráter sócio-educacional por excelência e mostra, na contra-corrente, a necessidade das

relações de bem-estar dos seres humanos entre si e a natureza;

7. A ética do gênero humano, que não pode ser ensinada por meio de lições de

moral, mas que deve construir-se na mente do ser como indivíduo e que este faz parte de uma

sociedade, da espécie humana – Complementa o saber anterior, perpassa por todos os saberes

no que diz respeito à construção de uma nova consciência de preservação do patrimônio

público, a busca do conceito de sustentabilidade e desenvolvimento social e cultural é ética de

postura e comportamento. O Museu está cheio de dicas e reflexões sobre este assunto.

O ‘Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o

século XXI’, apresenta quatro pilares da educação, segundo seu organizador Delors [1998]:

1. Aprender a conhecer, cultiva a cultura geral trabalhando com profundidade

determinado tipo de conhecimento, parte e todo, que o processo de aprendizagem do

conhecimento é inacabado e pode enriquecer-se com qualquer experiência;

2. Aprender a fazer; relacionado à noção de competência físicas e/ou mentais,

capacidade de inovação e criação do futuro;

3. Aprender a viver junto e a viver com os outros, relacionado à descoberta do

outro com objetivos comuns e respeitando as diferenças;

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4. Aprender a ser, relacionado à realização completa do homem criador de sonhos,

conhecimento de si mesmo para relacionar-se com o outro em processo dialético,

individualizado e de construção social interativa.

Tanto os pilares morinianos84

84 Referentes a Edgar Morin.

como os de Jaques Delors, todos subsidiam os

saberes n’O Museu. Eles mostram que a educação ali apresentada não está alienada dos

paradigmas apresentados pelos pesquisadores da educação mundial. O intérprete quando visita

aquele espaço pode aprender a ser quando reconhece e se identifica com a realidade

vivenciada; aprende a fazer [mexer nos computadores caipiras e brincar] quando descobre

conteúdos do cotidiano que desanuviam as técnicas de manipulação dos saberes locais; pode

compartilhar sua experiência no momento da aprendizagem, aprender junto, e quem aprende

junto pode viver junto; e a conhecer-se, conhecer o outro, conhecer o mundo.

Somando aos pilares dos autores, assim se constituem os pilares dos seis saberes

d’O Museu do Marajó na composição deste cenário educacional. Na oportunidade, lembro a

educação libertadora encontrada na Pedagogia da Autonomia de Freire [1999, p.165]: “vale à

pena lutar contra os descaminhos que nos obstacularizam [...] a capacidade de comparar, de analisar,

de avaliar, de decidir, de romper [...] É essa percepção do homem e da mulher como seres programados

para aprender”.

O autor apresenta a assertiva para mostrar a prática educativa como exercício

permanente em favor da educação, em que os anseios de uma educação de qualidade aparecem

não como remédio milagroso, mas, entre outros suportes, como diz Dollores [1998, p. 11]:

“como uma via que conduza a um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico,

de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as opressões, as

guerras” em salas de aula e fora delas.

Incluo a esta análise a reflexão de que O Museu do Marajó dá alicerce aos seis

pilares de saberes da educação marajoara como contribuição à educação em todo o território

nacional; ajuda também a sustentar a educação contemporânea e nortear as políticas

educacionais no Brasil, a pensar a Amazônia e o Marajó com mais eficiência nos currículos e

Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN.

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Nesse contexto, fizeram as vozes emergir sentidos às questões da cultura e dos

seres humanos do Marajó. São saberes da terra, da mata, do rio, dos campos secos ou alagados,

da cacos encontrada na lama e barrancos alteados, do contar as histórias e lendas que mundiam

o imaginário, dos saberes ambientais da fauna, flora e efeito estufa, das ervas da medicina

cabocla na ausência de remédios e do poder público, a presença do pajé na ausência de

médicos, tudo faz parte da paisagem do ser ribeirinho, seja pescador, vaqueiro, trabalhador

rural; seja pescadora, mulheres lavradoras, cuidadoras do lar, dos filhos e da família, que ajuda

o marido a tecer a rede de pescar e o ajuda a salgar o pescado e outras ações compartilhadas de

subsistência. Portanto, o cenário marajoara é a paisagem em movimento que se transforma,

com cuidados, sob a ação humana, intérpretes que reconstrói o próprio espaço, o próprio

cenário para viver do que a natureza oferece.

A humanização do espaço é resultado das ações do homem [e mulheres] sobre a natureza, seja ela, artificial [transformada pelo ser humano], ou natural, para garantir os meios para a sua sobrevivência seja através da prática de atividades como o extrativismo, a agricultura, a caça, a pesca, etc [...] Graças a essas relações no/com o meio, o espaço é peculiar a cada localidade, com o das comunidades rurais-ribeirinhas, visto a diferenciação de relações que se desenvolvem nestes locais. Assim, cada sujeito [intérprete] cuida do espaço da melhor forma possível para preservá-lo saudável e agradável a todos [RODRIGUES, 2004, p. 24-5].

As relações construídas nas vivências dos sujeitos com os saberes marajoaras

encontrados na natureza é uma construção de aprendizagem com os saberes emergentes

encontrados n’O Museu, decorrentes de suas próprias necessidades, associada às técnicas

artesanais, e desenvolve o que Oliveira [2004, p. 62] chama de Educação do Cuidar.

A educação do cuidar apresenta, além da proteção contra os perigos que vivenciam crianças e jovens no seu meio social, uma atitude ética de respeito ao outro e a si mesmo [...] devendo ser a educação responsabilidade dos pais [...] a educação do cuidar tem a delimitação espacial a casa [...] baseia-se no diálogo, estabelecendo-se por meio da cultura de conversa, um ensino-aprendizagem, cujo conteúdo é o produzido e refletido no saber-fazer cotidiano de homens e mulheres das comunidades rurais-ribeirinhas [Ibid, p. 62-3].

Depois de ver e ouvir os intérpretes, percebo a educação n’O Museu como

expressão de uma pedagogia dialética, fenomenológica, ao superar o nível idealista. É uma

pedagogia do brincar, da alegria, da leveza, da liberdade criadora, de expressões diversificadas,

onde professor e aluno, pais e filhos, irmãos, amigos, navegam em um mesmo nível no

ciberespaço dos computadores caipiras, e gapuiam saberes de acordo com seus interesses; e

mesmo estando juntos, cada um tem uma apreensão diferente do mesmo fenômeno, o qual se

processa diferentemente a cada percepção.

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Ao rematar esta sequência, e entendendo que a educação n’O Museu do Marajó

contempla o pensamento de uma ação cultural libertadora, encerro com Freire nas palavras de

Gadotti [1996, p. 125]:

De um diagnóstico científico desse fenômeno, nós podemos determinar a necessidade para a educação como uma ação cultural. Ação cultural para a libertação é um processo através do qual a consciência do opressor ‘vivendo’ na consciência do oprimido pode ser extraída [...] Portanto, da perspectiva de Freire, educação, como ação cultural, é relacionada ao processo de consciência crítica e, como educação problematizadora, objetiva ser um instrumento de organização política do oprimido [...] O primeiro nível de apreensão da realidade é a tomada de consciência [...] Há a intensidade da tomada de consciência [...] Por essa razão, a consciência crítica implica ultrapassar a esfera espontânea da apreensão da realidade para uma posição crítica. Através dessa crítica, a realidade passa a ser um conhecido objeto dentro do qual o homem [e a mulher] assume uma posição epistemológica: homem [e mulher, e crianças] procurando conhecimento [grifo meu]. Portanto, consciência crítica é um teste de ambiente, um teste de realidade. Como estamos conscientizando, estamos revelando realidade, estamos penetrando na essência fenomenológica do objeto que estamos tentando analisar [grifo meu].

FADE OUT

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PÓS-PRODUÇÃO Esta fase conjectura a desmontagem dos cenários e a guarda dos equipamentos e

instrumentais da pesquisa. Portanto, os saberes d’O Museu do Marajó não se esgotam na

gapuiagem realizadas pelos intérpretes. O universo daquele cenário é amplo e farto. Tem sol

demais durante o calor e chuva em abundância durante as enchentes. No Marajó é assim, a

metáfora é redundante para acalmar os ânimos dos mais céticos e ávidos de compreensão.

Ao refletir sobre o Marajó, os intérpretes e os saberes gapuiados, matuto sobre as

contribuições que este estudo oferece para quem não conhece a terra dos nuaruaques, as fases

de Ananatuba aos Aruã; e penso ser vaqueiro e pescador, gapuiador de reminiscências

históricas de um italiano jesuíta “perdido” nesses confins de mundo; ao mesmo tempo

narrador das mil e uma noites em claro arquitetando cenas para sobreviver ao instituído

formal sem prejudicar a criação. Ainda assim arrisquei inserções da linguagem audiovisual

para expressar as performances e as vozes, de desejo e curiosidade, sem perder um gesto.

O foco do estudo foi o aprender. O aprender n’O Museu do Marajó. Mais ainda, a

relação construída entre os saberes marajoaras e os intérpretes, a forma de interagir com os

computadores caipiras, o aspecto facilitador da aprendizagem, a prática educativa

brincalhona, são apenas vetores que apontam possibilidades para futuras averiguações. Se não

fiz contemplar algum aspecto voltado para o meu objeto de investigação, deixo para que

outros prossigam nessa caminhada. O caminho é longo, é árduo, e vale à pena percorrê-lo.

O que emergiu das rodas e cirandas de conversas imprime os saberes gapuiados

com as lentes voltadas para os seres humanos, na correnteza chamada “cultura marajoara”. A

correnteza desse rio formou afluentes de amplos saberes nos campos da antropologia,

arqueologia, meio ambiente, lingüística, dos míticos e lendários, da história, e mais dos

saberes cuidativos com as questões do Marajó. Penso, dessa maneira, ter respondido as

questões norteadoras e, em consequência, a problemática desta pesquisa.

A câmera ligada gravou trinta e oito discos digitais com trinta minutos cada,

somados, dá um total de 1.140 minutos de imagens e vozes, assistidas, transcritas, palavra a

palavra. As performances dos visitantes a procura de saberes no “set” de filmagem, dos

moradores da ilha, entre trabalhadores, professores, estudantes, funcionários públicos Paulo

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Almeida, Paulo Câmera e Rosália, e mais Seu Domingos, Dona Sebastiana, Dona Hermita,

emolduram gestos nas imagens infindas deste estudo. Edito somente os visitantes voluntários

e divertidos, os intérpretes protagonistas, e O Museu passou a ser cenário.

A presença das crianças nas primeiras cirandas de conversa enche de entusiasmo o

pesquisador para abrir caminhos, e singrar as águas crespas marajoaras nas idas e vindas ao

campo. Miquéias, o educador lá daquelas bandas, não pára de inventar marmota para

“brincar” de cultura com os curumins. Enquanto aqui, na minha base de produção, escrevi

roteiros e devaneios na minha branca solidão. Meu cachorro invisível, sempre ao meu lado,

este sim é fiel até nas horas de distanciamento, sabe que o momento de criação é um ato

solitário, na gapuia das fontes teóricas e das vozes empíricas. Bel e Denise que digam. Essas,

minhas âncoras fincadas nos tesos do Arari, não me deixaram náufrago nos redemoinhos

encontrados pelos rios, esse labirinto selvagem, apaixonante e misterioso Marajó.

O que espero, aliás, só espero e contemplo. Mudo de idéia e não espero nada.

Respiro fundo, bebo um copo d’água e mato a minha sede. Os cálices meus em relação à

pesquisa são apoucados diante dos sentimentos dos intérpretes que visitaram aquele cenário e

ainda querem falar. São sentimentos de entusiasmo, espanto, contemplação, admiração,

compartilhamento, alegria, afetividade e, principalmente, de in-completude.

Aqui encerro o texto estruturado para a academia, o que está previsto pela ABNT.

O que segue, é um ganho de poéticas como inserção para ouvir as vozes em reverberação de

meus intérpretes sobre as imagens d’O Museu do Marajó descritas neste roteiro, como em um

filme que apresenta a última cartela em imagem congelada85

85 Efeito técnico como recurso audiovisual utilizado no cinema ou vídeo; geralmente apresentado no final da história ou roteiro, quando o diretor ou roteirista deseja sobrepor as vozes de seus intérpretes sobre uma imagem parada como fotografia, para esclarecer ou enfatizar a temática do enredo apresentado durante a projeção; podem ser vozes seqüenciadas e sucessivas, às vezes sobrepostas e intercaladas aleatoriamente. Neste estudo, essas vozes soam como eco [reverberação] para apresentar outros sentidos sobre O Museu do Marajó.

. Ouça:

ECO DAS VOZES [OFF]:

Joaquim: Feliz e assustado ao mesmo tempo. Acho que meio assombrado.

Afonso: Esse é o primeiro meu [olha pros outros].

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William: Pra mim, esse é o primeiro também.

Everton: Eu acho que é bem diferente dos outros, né? Ainda não tinha visto um igual a esse. E às vezes com essa coisa de ter um museu na capital, a pessoa nem se preocupa muito, né?

Eli: É, também!

Willian: Quando quer, vai pro outro programa totalmente diferente. E aqui não, aqui é legal porque, parece que induz a pessoa a vim conhecer aqui.

Eli: Por exemplo, nós que somos visitantes, né? A gente chegou no café da manhã lá no hotel onde nós estamos, e aí [...] E aqui a gente... eu pelo menos gostei muito da recepção, porque, na entrada, a gente foi bem tratado e tal...

Afonso: Bem organizado!

Eli: Bem organizado. Foi legal isso!

Neto: Foi bacana. É uma... uma... é bacana visitar assim por que a gente vê coisas antigas que... como é que a gente pode dizer...?

Neto: A gente pode aprender, né?

Everton: Ter uma experiência, né?

William: Um sentimento de... conhecer um pouco mais do que a gente ouve falar, né? A gente tem, só de ouvir falar um pouco das pessoas que, tipo assim, chegar lá na em Castanhal, né? e dizer que viu... certas coisas, as pessoas vão falar "Não!..."

Eli: Tipo... a gente é muito bem recebido, entendeu? O Museu é como se fosse a nossa casa no passado, entendeu? a gente pode chegar, pode olhar, pode observar de perto, pode mexer, entendeu? E é bem bacana, é bem diferente dos outros museus de visitação que você muitas vezes não pode chegar tão... [aqui] é tudo mais fácil.

Afonso: Pode tocar, né? Mexer...

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Eli: É tudo mais fácil [aqui].

Afonso: É verdade. Que um dia, né? Uma hora, duas semanas é pouco assim, pra conhecer mesmo toda a história em sí, né? Muita coisa... é muito rico realmente em história assim... eu, eu praticamente tô... admirado de tanto...

William: Abismado.

Eli: É, né? Abismado de tanto, tanto conhecimento que tem hoje dentro dessa casa aqui, entendeu? Representado nessa casa, não só em quadros, em fotos e... materiais encontrados.

Willian: Na realidade, eu acho que ele não tem aquela coisa de dizer "Ah! eu gostei mais disso, gostei mais daquilo", porque tudo [dentro do Museu] agrada e enriquece a cultura.

Afonso: Como se fosse uma escola, né?

Eli: É maravilhoso assim no caso, né? Do aprendizado, como a gente falou, ainda agora, no começo, foi bem bacana a gente poder tá convivendo, tá visitando.

Afonso: Resumindo assim, eu acho que a gente aprende a viver, né? No caso eu aprendi a viver no passado, no presente e também passa a querer preservar um pouco mais no futuro, né? Entendeu?

William: O que eu achei é... [risos] a gente tem que... não, é... o que eu não gostei? Não, eu acho que não, nada, eu acho que gostei de tudo, sim. Eu acho que tudo foi uma brincadeira gostosa, né? A gente aprende brincando, É isso!

Eli: Tudo no seu lugar. É por isso que a [outros rapazes conversam] gente fala assim: "Um dia, sabe? uma semana, às vezes até um mês é muito pouco pra você aprender, sabe? pra você colher tanta riqueza que aqui tem".

Everton: A peça mais importante?...somos nós!

Jorge: Pra mim foi uma experiência inédita, porque eu já tinha visto falar do Museu, mas nunca tinha vindo nem em cachoeira e nem aqui muito menos no Museu, né? E ter contato com isso me fez voltar ao tempo de infância, porque como eu sou marajoara, não daqui dessa área, mas do outro lado, lá de Chaves, então, muitas das coisas que vi aqui foi coisas que eu vi na minha infância e aqui eu pude relembrar, tipo, a lanterna "olhos de boi", aquela que tem lá que a gente viu lá, e tudo, meu pai usou, né? [parece feliz ao lembrar de tudo] Na época que a gente, que eu era criança, essas coisas. E com

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o aprendizado, nesse sentido aí, que é um museu diferente [...], que a gente tem o prazer, tem que tocar, né? tem que girar, tem que ler, tem que levantar a tampinha lá pra ler, essas coisas. Isso é muito importante por que você fica criativo, né? É muito bom, pra mim foi muito bom, muito bom mesmo.

Rosa: Ah! Eu senti assim, eu senti como se eu, eu queria que todos os estudantes, não só daqui mas do Brasil todo pudessem ter essa oportunidade de vim aqui, de ver... nem todos os estudantes, mas todas as pessoas... essa cultura que a gente tem, né? uma... preciosidade muito grande, e eu senti muito... e sempre quando eu vejo sobre os escravos, sobre, como eles eram acorrentados, como eles ficavam, a escrava Anastácia... Eu me emociono muito, eu [...] até chorar porque eu sempre... quando vejo essa parte aí... é uma parte que me toca muito, muito mesmo...

Fernanda: Eu senti. Eu senti uma emoção de vir aqui, porque eu nunca tinha entrado em nenhum museu, esse aqui é o primeiro museu que eu já entrei, pra ver... e eu senti uma emoção muito grande também de ver todas essas coisas, esses símbolos. Aqui você tem uma noção real, você tá lendo, você tá vendo, tá girando lá no computador de... como é que o quadro fala aí? O computador... caipira, né? Você tá girando lá e você tá vendo. Isso é muito emocionante, você fica em contato direto com a realidade, né? Daquela coisa real, daquela coisa... viva, né? isso é emocionante,

Daiane: Ah! Eu... tenho um sentimento assim, que eu venho aqui desde criança, aí sempre que eu entro aqui eu tenho uma inspiração pelo Giovanni Gallo assim, aí tudo eu leio tudinho dele desde criança assim, aí eu venho aqui às vezes só... Aí agora que faz tempo que eu não vinha aqui, e agora que eu vim, eu... rodei tudo [ela sorri], vasculhei tudinho dele...

Ana Paula: Eu gostei das pessoas, dos funcionários, gostei muito do pessoal que trabalha aqui, foram muito legais, gentis, de acompanhar a gente... Foi muito bom.

Jorge: Na realidade, eu gostei de tudo, né? Desde a hora que eu vim porque, eu até comentei com a minha irmã, eu falei pra ela: "Como é tão bom viver aqui, né? Nem celular não tem pra perturbar a gente, né? nem celular não pega, porque tá toda hora 'clin! clin! clin!'[risos]" Um lugar tranquilo, tranquilo, né? Nem celular não tem pra tá ligando... Então quer dizer, além de desse, desse... Dessa tranquilidade toda, ainda tem esse patrimônio histórico que é isso aqui tudo, pra você vim ver, relembrar, né? Aprender, quer dizer, pra mim, vai ficar uma Semana Santa que vai ficar na história, porque é uma coisa inexplicável. Enquanto que, muita gente vai pra Salinas,

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pra Marudá86

86 Municípios litorâneos do Estado do Pará, Brasil.

, não sei pra onde, não sei e tal... [...] As pessoas que puderem vir pra cá pra aprender, pra ver isso aqui, era muito gratificante.

Eliane: Teriam muito mais lucros.

Jorge: Olha, eu acho assim, aprendi um... pelo menos...

Eliane [interrompe]: Teve conhecimento.

Jorge: É, fiquei assim, mas sensível a dar mais valor nas coisas nossas, na nossa cultura, na nossa gente, nas coisas daqui, né? Porque, muita das vezes, eu imagino assim, às vezes nós, até caboclos marajoaras daqui, às vezes quando o cara tem um dinheirinho, mais ou menos, em vez dele procurar, ver as belezas que têm aqui, ele quer ir pra Nova Iorque, ele quer ir pra Tóquio, não sei pra onde, não sei pra onde... Quando na realidade ele não conhece nem o lugar que ele vive, nem o lugar que ele mora, entendeu? [alguém fala: "Não é a cultura dele."] Não é a cultura dele e quer aprender outra cultura. Então isso, eu fiquei mais sensível a essa coisa, eu me senti mais sensível [uma garota passa lá atrás], eu achei que... Acho que preciso saber mais, dar mais valor nas coisas nossas. Isso é muito importante, pra passar... [...] Então quer dizer, se você não preservar a cultura nossa, né? daqui uns 10, 20 anos você vai chegar no Marajó e não vai ver búfalo mais, não vai ver o caboclo pescando de anzol, vai ser só na rede, na tarrafa... Então quer dizer, eu tiro de lição disso tudo aqui, que a gente tem que preservar tudo isso, pra que as próximas gerações também tenham o privilégio como a gente tá tendo hoje de ver tudo isso aqui e relembrar o passado, essas coisas boas. Memórias.

Ana Paula: Eu já sabia que ia ter alguns símbolos marajoaras, claro, é o Museu do Marajó, depois que eu entrei aqui eu fiquei cada vez mais... a minha curiosidade cresceu cada vez mais em ver que era tudo muito interessante. Surpresa, e agora, assim, depois... é isso, que a minha consciência é que a gente deve preservar tudo e que foi construído... muito interessante.

Ana Paula: Eu achei bem interessante, é... principalmente começar com a história do fundador do Museu, o [padre] Gallo, acho foi bem bacana. Eu percebi assim que fica muito da história dele no Museu, deixou muito a parte dele no Museu.

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Gustavo: Bastante dedicação por cima da... construção desse Museu aqui, quer dizer. Mas, assim, no geral, eu achei maravilhoso... O Museu, eu gostei bastante.

Ana Pula: Eu acho que eu me senti no lugar da população daqui. Eu me senti, apesar de não fazer parte, sou de longe, mas eu me senti, por um instante eu em senti como se fazendo parte dessa história. A gente sente pertencendo a... ao contexto.

Gustavo: Exato, realmente, eu também me senti assim, como já disse. Resgatar e viver, mas eu acho que é o sentimento de aprendizado, né? Não sei se... de conhecimento. O sentimento de conhecimento.

Ana Paula: Eu acho assim, que falta um pouco isso, assim, o Brasil é um país muito grande. A gente que vem de longe não tem uma idéia tão forte de como é aqui. Eu acho que não é muito divulgado isso. Já ouviu falar da Ilha de Marajó e tal, mas isso fez com que crescesse o nosso conhecimento.

Jorge: Bom. Conhecer um pouco mais assim a fundo a história daqui. Aqui do Museu, não só do Museu, como do fundador [estende a mão em direção à foto de Giovanni Gallo lá trás, no alto]. Bacana, legal a história e a atitude dele.

Afonso: Pra mim foi um gênio, sabe? Em construir tudo isso aí, né? Tinha um pensamento bem amplo...

Eliane: Ele foi sepultado aqui. Muito legal isso mesmo porque, eu acho que de onde ele estiver tá se sentindo feliz, né? Pelo fato de ser enterrado no lugar que ele gostava tanto! Muito legal isso!

FIM

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MAKING OFF87

Fotog. 60 – Sentimento de religiosidade em Cachoeira. Saber constituído n’O Museu. Fonte: MPEG

: Outras cenas e sentimentos

No segundo domingo de dezembro

acontece o Círio de N. Srª. De Nazaré,

procissão pelas ruas durante o dia e à

noite ladainhas pelas casas; de 10 a 12 de

dezembro reverência à N. Srª. de

Guadalupe; a festa de São Sebastião

[aclarada na p.158-9] é uma das

manifestações mais festejadas pelos

cachoeirenses. É considerado o santo

protetor das matas e dos animais.

87 Cobertura feita nos bastidores durante a realização do filme; cenas importantes que demonstram as histórias que acontecem no set de filmagem e arredores; cenas importantes da equipe técnica montando ou desmontando cenários, gruas, câmeras, maquinária, dos atores se preparando no exercício da profissão, das pessoas do lugar, da cidade onde o filme está sendo rodado, ou seja, é o registro de todo o movimento dos seres e coisas, conectados entre si, como linguagem e contextualização.

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Fotog. 61 – Sentimento de pertencimento. Miquéias e as crianças do Grupo GAFMA gapuiam lendas e mitos às margens do rio Arari, em Cachoeira. Fonte: Acervo GAFMA [2006].

Fotog. 62 – As crianças do GAFMA. Fonte: Acervo GAFMA [2006].

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Fotog. 63 –. Fonte: Portal [2005].

A natureza amazônica se revela como pertencente a uma idade mítica [...]

Situa-se em um tempo cósmico no qual tudo brota como nas fontes primaveras da criação:

a mata, os rios, as aves, os peixes, os animais, o homem, o mito, os deuses.

É nesse contexto que o imaginário estabelece uma comunhão com o maravilhoso.

[LOUREIRO, 2000, p. 329]

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Fotog. 64 – Amaciamento da argila. Fonte: Portal [2005].

O saber popular está, assim, vinculado à vida cotidiana

[...] estaria no “centro” do acontecer histórico sendo

a essência da substância social.

[OLIVEIRA, 2004, p. 54]

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Fotog. 65 – Gapuiagem de Saberes 3: percepções compartilhadas. Fonte: Portal [2005].

[...] conceitos, imagens

e percepções

compartilhadas

que são transmitidas

de uma geração

a outra.

[OLIVEIRA, 2002, p. 55]

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Fotog. 66 – Cuidar para não descuidar. Fonte: Portal [2005].

Ao nosso ver, dar centralidade ao cuidado é

respeitar nossos próprios limites individuais e

também coletivos, é colocar a vida para além da

sobrevivência. É preciso ter cuidado para não

descuidar [TEIXEIRA, 2003, p. 83].

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APÊNDICE A

ROTEIRO PARA A RODA OU CIRANDA DE CONVERSA

1. Dados gerais do (s) Intérpretes(s) 88

a) Idade:

ou Grupo

b) Gênero:

c) Escolaridade:

d) Naturalidade:

2. Questões gerais:

a) Quando eu digo “homem e cultura marajoara”, o que primeiro lhes vem a mente?

Com base no que os jovens responderem, outras perguntas mais específicas são elaboradas e

formuladas.

3. Questões complementares:

a) Todos esses “saberes” que vocês revelaram são muito interessantes. Onde

vocês aprenderam tudo isso? Quando?

b) O que gostariam de saber mais sobre o homem e a cultura marajoara?

c) O que vocês esperam encontrar n’O Museu do Marajó?

88 Todos os intérpretes e respectivas vozes são identificados individualmente, por meio da videogravação.

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APÊNDICE B

ROTEIRO PARA A RODA OU CIRANDA DE CONVERSA

1. Dados gerais do Intérprete (s)89

d) Idade:

ou Grupo

e) Gênero:

f) Escolaridade:

g) Naturalidade:

2. Questões específicas:

a) Como foi visitar O Museu?

b) O que vocês sentiram?

c) O que vocês mais gostaram? Por quê?

d) O que acham que aprenderam hoje nessa visita?

e) Teve algo que não gostaram? O quê? Por quê?

f) Considerando tudo o que viram, leram, tocaram aqui hoje, sobre o que se

aprende mais em uma visita ao Museu?

g) Você visitaria O Museu do Marajó novamente? Por quê?

89 Todos os intérpretes e respectivas vozes são identificados individualmente, por meio da videogravação.

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APÊNDICE C

MESANINO

Fig. 8 a 15

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APÊNDICE D O MUSEU É UMA GRANDE ESCOLA

Fig

. 16

a 39

. Fon

te: O

aut

or

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APÊNDICE E

RETORNO DA PESQUISA À COMUNIDADE

Fig.

40

a 45

. Fon

te: A

cerv

o do

aut

or.

Projeção do vídeo ‘É proibido não tocar os saberes n’O Museu do Marajó’. Fonte: Acervo do autor.

AMIGOS CONQUISTADOS

Pesquisadores da UEPA e UFPA, cachoeirenses e administradores d’O Museu do Marajó. Fig. 46 a 48. Fonte: Acervo do autor.

O PESQUISADOR E O MUSEU DO MARAJÓ

Menino, tu vais ficar ‘tonto’ naquele Museu. É tanta coisa!...” [FARES, 2007]. Fig. 49 a 52. Fonte: Acervo do autor.

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APÊNDICE F

A CASA DO GALLO

Fig. 53. Fonte: Acervo do autor.

SUBJETIVA DA CASA DO GALLO

Fig. 54. Fonte: Acervo do autor.

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APÊMDICE H

PANORÂMICA PARA O RIO ARARI

Fig. 55. Fonte: Acervo do autor.

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ANEXO I G A F M A

GRUPO DE ARTE FOLCLÓRICA UNIDOS DO MANGAS CNPJ:10.333.311/0001-28

A U T O R I Z A Ç Ã O

Autorizo a veiculação de imagem e voz dos componentes do Grupo de Arte Folclórica Unidos do Mangas - GAFMA, para os fins que se destinam a pesquisa sobre a Educação n’O Museu do Marajó, do acadêmico Darcel Andrade Alves, do Programa de Mestrado da Universidade do Estado do Pará – UEPA. Cachoeira do Arari - Marajó, 21 de abril de 2007 MIQUÉIAS CALDAS DA SILVA - Presidente

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ANEXO II

DVD COM O FILME “É PROIBIDO NÃO TOCAR OS SABERES N’O MUSEU DO MARAJÓ” de Darcel Andrade

Capa e contracapa do DVD

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