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Sobre perspectivas tericas do espao: dana e literatura
Daniella de Aguiar
Pesquisadora, criadora-intrprete e professora de dana Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Resumo: O espao constitui uma importante categoria analtica, e se encontra em diferentes sistemas artsticos e processos de linguagem. Em dana, o espao pode ser estabelecido atravs de um equilbrio entre a orientao do corpo do danarino e a orientao de uma superfcie. Pode ser considerado, portanto, o resultado da relao entre estes participantes e sua ambincia. Rudolf Laban, um dos pesquisadores que mais contribuiu para a investigao desta categoria na dana, trabalhou com a idia de espao referindo-se com freqncia ao movimento corporal do danarino, mais do que relao de danarinos com objetos ou com o ambiente que o rodeia, ou o prprio ambiente especificamente. Em literatura, o espao ficcional tradicionalmente considerado o local onde a ao narrativa ocorre. A comparao desta categoria, especialmente o modo como concebida em diferentes sistemas, neste caso entre literatura e dana, pode levar a uma melhor compreenso das relaes que o espao pode estabelecer com outros aspectos das obras de dana. Inicialmente apresentarei alguns tipos de concepo do espao em literatura e em dana, levando em considerao abordagens artsticas. Ao final so sugeridas perspectivas para futuras aproximaes entre estes sistemas atravs desta categoria utilizando as diferentes noes de espao provenientes da Geografia Cultural, a partir de Marc Brosseau e Paul Claval, na qual se observa a tentativa de incluso do humano e de suas atividades sociais e fenomenolgicas na noo de sense of place; e das Cincias Biolgicas, mais especificamente elaboradas pelo evolucionista Richard Lewontin que defende a idia de que o espao circunscrito de um organismo (humano ou no) igual s suas necessidades e atividades, o que coloca em questo a relao interno/externo na definio de espao.
Palavras-chave: espao; dana; literatura; cenografia; geografia cultural; biologia
Introduo
O espao constitui uma importante categoria analtica, e est presente em
diferentes sistemas de signos e processos de linguagem. Entretanto, relativamente a esta
categoria, no h bvia correspondncia entre diferentes sistemas e processos, uma vez
que so muito diversos os meios e suportes de expresso. Deste modo, o espao designa
processos e/ou entidades que podem ser de naturezas muito distintas, dependendo dos
sistemas observados. Entre literatura e dana notvel a distino do modo como a
categoria concebida, descrita e operacionalizada.
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O espao ficcional tem admirvel importncia na composio de sentidos da
literatura, uma vez que os fatos ficcionais s conseguem surgir a partir de uma
localizao que lhes d suporte e significado (Gama-Khalil, 2007: 1). Entretanto,
especialmente nas fices em prosa, o espao uma categoria que pode ter diferentes
funes, como localizar a ao, auxiliar na construo dos personagens, alm de
influenciar toda a camada semntica da obra (Gama-Khalil, 2007; Hasmann, 2005;
Rodrigues, 2008). Em dana, por sua vez, h obras em que o espao, mais
especificamente o espao cenogrfico, cumpre um papel meramente decorativo; e h
obras em que a cenografia pode ser observada como obra independente ou autnoma
(em relao dana, ou ao movimento corporal), ou como o prprio tema da criao
de uma obra. (Silva, 2007)
O interesse em comparar esta categoria entre dois diferentes sistemas est
baseado no interesse primrio sobre processos intersemiticos. Para compreender
relaes de traduo, interpretao e/ou transposio entre dois sistemas distintos,
parece interessante estabelecer as semelhanas e diferenas, ou ainda as possveis
correspondncias entre as diversas categorias ou camadas de descrio das obras destes
sistemas.1 O espao, por ser uma categoria comum entre literatura e dana, pode iniciar
este processo de elaborao de mtodos ou modelos para explicao e compreenso de
fenmenos intersemiticos entre dana e literatura, que ficar para um prximo
trabalho. Alm disso, possvel, atravs da comparao entre literatura e dana,
enriquecer as explicaes sobre a categoria em cada um dos sistemas, trazendo novas
noes para a compreenso do espao no processo de linguagem que nos interessa, a
dana.
Neste artigo pretendemos apresentar alguns modos de elaborao do espao na
literatura e na dana, por meio de exemplos, e sugerir perspectivas para futuras
aproximaes entre estes sistemas atravs desta categoria utilizando as diferentes
noes de espao provenientes da Geografia Cultural, a partir de Marc Brosseau e Paul
Claval, e das Cincias Biolgicas, mais especificamente elaboradas pelo evolucionista
Richard Lewontin.
1 Alguns autores referem-se organizao de obras literrias e poticas como uma inter-relao entre diversos nveis ou camadas de descrio da obra (ver Jakobson & Pomorska, 1985; Eco, 2007; Campos, 1992). Estendemos aqui esta noo para todos os sistemas ou processos de linguagem artstica, como dana, msica, teatro, artes visuais, entre outros, alm de assumirmos que estas camadas no devem ser fixas, variando de acordo com as obras.
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Dana & espao
De acordo com Laban (1979), o espao dramtico da dana estabelecido por
um equilbrio entre a orientao do corpo do danarino e a orientao de uma superfcie.
Deste modo, o espao dramtico uma interao entre todos os participantes de uma
apresentao de dana, e, ao mesmo tempo, uma relao entre estes participantes e sua
ambincia (, 1998).
O espao um dos aspectos da composio em dana. Em manuais, ou cartilhas
de composio, recomendado que o coregrafo no considere apenas o desenho do
corpo dos danarinos e dos grupos no espao, mas tambm o desenho ou a forma do
prprio espao (Smith-Autard, 2000: 55). Silva (2007:21) destaca a importncia da
composio do espao cnico em uma apresentao de dana, seja em um palco
convencional ou em um espao alternativo. Para a autora (2007: 21), a funo bsica
dessa composio , ento, localizar, elucidar e identificar visualmente a ao num
ambiente que trar significado aos elementos dramticos do trabalho escolhido,
enfatizando o tema, o enredo e o ambiente emocional. H diversos recursos que podem
compor o espao cnico, vamos aqui dividi-los, com funo terico-didtica, em (i)
coreogrficos, aqueles que se referem aos deslocamentos e posies dos danarinos, e
(ii) cenogrficos, que se referem aos diferentes meios (pintura, iluminao, arquitetura,
escultura, figurino e outros) que ajudam na construo de uma ambincia. Aqui vamos
nos ater ao espao cenogrfico apenas.
Os bals narrativos tiveram seu incio na corte de Luis XIV, no sculo XVII.
Eram um gnero misto com interldios de dana que deu incio a construo de cenrios
grandiosos (Silva, 2007: 22). De acordo com Monteiro (1999: 177), para que a dana
se alce categoria de Belas-Artes, para que adquira graus de legitimidade, preciso que
se volte imitao potica. De acordo com a autora, os tericos do Ballet de Cour
pensavam o espetculo de bal em termos da imitao da natureza, tomando como
referncia a definio de Aristteles. Apesar das futuras renovaes do Ballet daction
de Jean Georges Noverre no sculo XVIII, a noo de imitao da natureza permanece,
e ainda ocorre a unio entre a pantomima e o bal como modo de favorecer o roteiro
sem a necessidade de recitativos e coros. Quando estes bals foram deslocados dos
sales da corte para as salas de teatro, foram pintadas telas ilusionistas para compor os
cenrios, alm de diversos objetos complementares (Silva, 2007: 23). A cenografia foi
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importada conceitualmente e tecnicamente do teatro, que no renascimento teve forte
influncia da tcnica da perspectiva. Esta tcnica ampliou ilusoriamente a cena e seus
criadores uniram as artes pictricas e a arquitetura na cenografia em projetos cnicos;
(...) esta iluso tica transformou a cena, em planos e ambientes, trazendo a terceira
dimenso ao cenrio (Urssi, 2006: 32). Neste contexto inicial, a cenografia para dana
foi, por natureza, um objeto esttico sem autonomia, de carter puramente decorativo
(Silva, 2007:22), tendo como funo a criao ou reproduo dos lugares da ao
narrativa.
No final do sculo XIX e incio do XX, Adolphe Appia e Gordon Craig
modificaram as idias sobre cenografia, especialmente no teatro. Os painis tornaram-
se arquitetura de volumes e planos sugerindo os lugares cnicos e a atmosfera foi
definida pelas novas possibilidades de iluminao eltrica dispensando a pintura
(Urssi, 2006: 45). Esta nova concepo foi absorvida nas primeiras experincias de
Isadora Duncan e Loie Fller na dana no incio do sculo XX (Silva, 2007:24).
Especialmente esta ltima fez uso da iluminao e de vestimentas especiais para criar
efeitos inditos na dana. A dana da serpente (serpentine dance) de Loie Fller
uma combinao de movimentos de improvisao com figurino de seda iluminados por
luzes multi-coloridas desenvolvidas por ela (Figura 1).2 Nesta famosa improvisao de
Loie Fller fica evidente que a cenografia no se refere apenas construo de um lugar
reconhecvel, o lugar onde a ao ocorre, mas a construo de formas e volumes
atravs da unio de figurino, iluminao e movimento corporal. A cenografia, portanto,
deixou de ser uma prtica meramente mimtica e passou a ser uma construo formal,
abstrata e simblica (Urssi, 2006: 45).