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Paloma Abreu Monteiro
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DIREITO EM CAMPO
Um Ensaio Sobre Representações Sociais no Direito ou a Surpreendente
Empiria Ignorada
Paloma Abreu Monteiro1
Resumo
Este artigo busca trabalhar um pensar sociológico sobre o estudo do direito e de
suas representações sociais, partindo da análise de cinco entrevistas realizadas no
ano de 2012 com diferentes profissionais - “operadores do direito”. Tais entrevistas
discorreram a respeito de representações corporais da sociedade presentes em
nossa cultura jurídica, sob o olhar daqueles que operam internamente nesse
sistema, com foco nas vestimentas e tatuagens. Além de buscar uma leitura que
promova uma nova abordagem no estudo do direito, este artigo pretende discutir
quais dimensões da vida social estão inseridas nesse imaginário jurídico e, em
contrapartida, como se administram os conflitos daí decorrentes. É um breve ensaio
propondo uma reflexão a respeito do direito, das representações sociais e das
questões que surgem quando um não se reconhece no outro, e vice-versa.
Pretende, também, construir-se como um ensaio provocativo à ausência de
ferramentas de estudo empíricas no decorrer da formação jurídica.
Palavras-chave: cultura jurídica, corpo, estudo empírico no direito.
Abstract
This paper seeks to work a sociological thinking about the study of law and its social
representations, starting from the analysis of five interviews conducted in 2012 with
different professionals - “law operators”. Those interviews discoursed about society‟s
bodily representations present in our legal culture, under the gaze of those who
internally operate on this system, focusing on clothes and tattoos. Besides seeking
an interpretation that promotes a new approach to the study of law, this article
pretend to discuss what dimensions of social life are embedded in this legal
imaginary and, in return, how to manage the conflicts that emerge therefrom. It's a
1 A autora é formada em Direito pela Universidade Federal Fluminense e mestranda no Programa de
Pós-Graduação stricto senso em Direito Constitucional pela mesma instituição.
short essay proposing a reflection about law, social representations and the issues
that arise when one does not recognize itself on other, and vice versa. It also intends
to build itself up as a provocative essay to the lack of empirical study tools in the law
graduation.
Key words: legal culture, body, empirical studies on law.
Introdução
Neste artigo, começarei falando a respeito da minha experiência com a
graduação na faculdade de direito e, posteriormente, o meu encontro com uma
abordagem empírica de estudo do mesmo, destacando todas as dificuldades daí
decorrentes, visto tal ferramenta de pesquisa ter sido praticamente ignorada em
sala, ao longo dos meus cinco anos e meio de formação.
Logo depois, apresentarei brevemente o objeto e metodologia de pesquisa
que lancei mão na graduação, de modo a contextualizar as entrevistas de que farei
uso para pensar esse outro olhar sobre o estudo do direito, bem como minhas
impressões a respeito das mesmas - sempre trabalhando a questão do corpo no
direito.
Finalmente, após analisar as entrevistas e destacar alguns trechos,
apresentarei a conclusão acerca das impressões expostas no texto.
Bom, o momento em que, em vias de se formar em direito, você se dá conta
de que o que lhe foi dito em sala de aula até então foi pouco, quase nada, é
memorável para alguns. E não me refiro à prova da OAB ou à prática cotidiana dos
advogados, tampouco a da magistratura ou qualquer outra - esses conhecimentos
ficam a cargo dos milhões de cursinhos e escolas preparatórias que, ainda assim,
pouco dizem da mesma forma.
O “não dito” a que me refiro neste artigo corresponde ao estudo sociológico
do direito, à antropologia jurídica, às ferramentas empíricas de pesquisa que
possibilitam enxergar o direito como um produto das relações sociais entre os
múltiplos atores que o constroem, como cultura, e não apenas um conjunto de leis e
jurisprudência.
Talvez em tom um pouco confessional, o nascimento deste ensaio reflete o
momento da minha percepção desse silêncio, matéria após matéria, quando da
minha graduação em direito. O encantamento logo no início, com as discussões
sobre os conceitos de justiça, ética e princípios constitucionais não demorou muito
para se transformar em estranhamento - algumas vezes, por certo, até em um
sentimento de não-pertença - algo que me acompanhou até o dia em que comecei a
pensar a monografia2.
Foi a partir daí que a minha graduação fez sentido - quando comecei a pensar
o direito em ação: suas práticas, rotinas, seus espaços e atores, o que de fato
acontece e constrói o direito. Observar suas instituições e o trabalho de seus atores
possibilitaria o [re]conhecimento desse saber jurídico e, portanto, perceber, constituir
e interpretar aspectos da nossa própria sociedade.
Era ir além dos argumentos de autoridade, o “ponto final” dos doutrinadores, a
reprodução de enunciados dos tribunais. Era, enfim, poder ir além, observar e
discutir vieses do direito que foram percebidos in loco, através de olhos e ouvidos.
Daí em diante, tendo ao lado um ótimo professor-orientador, doutor não
apenas em antropologia, mas também em paciência, dei início ao refinamento de
minha pesquisa, que dentre outras produções textuais deu origem às entrevistas que
falarei mais a frente.
O foco do meu interesse sempre foi a relação íntima, e ao mesmo tempo
oculta, entre o corpo e o direito. Enquanto controle social, quais seriam as
representações sociais acerca do corpo presentes na cultura jurídica?
2 MONTEIRO, Paloma Abreu. Uma análise sobre as expressões corporais como signos sociais no
meio jurídico: tatuagem e vestimenta. 106 f. Tese (Monografia de conclusão de graduação). Faculdade de Direito, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012.
Como bem disse Kant de Lima, “o direito aparece como um caso privilegiado
de controle social, não só para reprimir comportamentos indesejáveis, mas também
como produtor de uma ordem social definida. A instância jurídica não só reprime,
mas produz” (KANT DE LIMA, 2009, p. 9). O que eu buscava compreender era o
que o direito reprimia e produzia no que diz respeito a duas expressões corporais:
vestimenta e tatuagem.
Acontece que a partir daí, além das diversas dificuldades comuns a qualquer
pesquisa e trabalho de conclusão, deparei-me com um universo completamente
necessário e novo - a pesquisa empírica.
A crítica a se fazer aqui, portanto, traduz a realidade da faculdade de direito
brasileira (resguardadas quaisquer exceções): onde estão as ferramentas para
permitir que um estudo empírico seja realizado por um bacharel?
Essa ausência não apenas produz uma única e limitada visão do direito, como
dificulta o surgimento de novas pesquisas e estudos sobre ele. Espero, contudo, não
passar a equivocada impressão de que tal crítica nasceu de um rancor acadêmico,
enquanto que na verdade ela surge de uma constatação empírica - sim,
ironicamente empírica - desse vácuo na academia.
As entrevistas que realizei, superadas ou não tais dificuldades metodológicas
e teóricas, foram pensadas não apenas como um meio de observação e coleta de
dados, acerca dos significados que os profissionais do direito dão às suas próprias
ações e ideias. Busquei, já nessa experiência, a aplicação dessa nova abordagem
para o estudo do direito, sob um viés sociológico e crítico de si mesmo. Elas próprias
foram significante e significado.
Enfim, contextualizada a situação, apresento agora as notas a respeito das
entrevistas e o que tirei delas acerca das representações sociais do corpo no direito.
As Entrevistas
Importante dizer que trarei apenas alguns trechos das entrevistas neste
artigo. As cinco entrevistas realizadas para a monografia aconteceram entre junho e
julho de 2012 e estão transcritas, na íntegra, na dissertação depositada na biblioteca
da Faculdade de Direito, na Universidade Federal Fluminense.
Ao pensar sobre elas, decidi primeiro qual seria a sua estrutura. Com o
objetivo de ouvir e compreender o máximo de informações e pensamentos “livres”
dos entrevistados, no sentido de não “limitá-los” a formulários e perguntas
padronizadas (embora eu seguisse um roteiro básico, para que eu não me perdesse
do objeto da pesquisa), optei por entrevistas abertas.
Acredito que foi a melhor escolha, pois todas as conversas fluíram, cada uma
no seu tom, mas sempre da mesma forma: conversas.
Contudo, cometi o que posteriormente considerei meu primeiro erro
“empírico”. Todas as entrevistas foram feitas com o uso de um gravador3 (o que
possibilitou a completa transcrição a que me referi acima). Enfim, segui para a
escolha dos entrevistados.
A abordagem sociológica do direito fez com que eu recaísse não apenas
sobre suas instituições, mas sobre seus atores. O fim era pensar esse olhar
específico, pois a operação de um saber jurídico apropriada de formas particulares
por cada ator é o que de fato dá sentido às próprias instituições. “Trata-se não só de
se compreender as instituições do Estado e suas lógicas próprias de funcionamento,
mas também como os atores concretamente engajam suas ações e atendem às
demandas dos indivíduos” (GERALDO, 2012, p.1).
Mas quem seriam esses atores? Na intenção de ouvir práticas diversas,
busquei variar os ambientes profissionais dos possíveis entrevistados. Aliada à
questão do tempo e acesso a essas pessoas possíveis, foi a partir de indicações de
colegas de curso e abordagens por e-mail e na própria faculdade que cheguei a uma
lista de cinco nomes, cinco profissões distintas.
3 “Acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absolta é apenas
viver em uma doce ilusão” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996).
Os entrevistados eram dois advogados atuantes, um com seu próprio
escritório, tendo como rotina profissional a realização quase diária de audiências
cíveis e trabalhistas; a outra, uma advogada que trabalhava em um escritório de
médio porte, especializado em direitos artísticos e autorais, raramente realizando
audiências; um procurador federal, com o corpo repleto de tatuagens, desde o
punho até o pescoço e que, segundo ele, participava das audiências sem paletó e
gravata sempre que podia (i.e. “quando o juiz não fazia questão”); um
desembargador da Justiça do Trabalho e também professor de direito na UFF; e, por
fim, outro professor da UFF que, após se formar na faculdade de direito, decidiu
abandonar a advocacia e seguir integralmente a área acadêmica, tendo doutorado
em ciências políticas e pós-doutorado em direito social, lecionando desde então.
Admitindo esse pequeno grupo de atores como capaz de me trazer um relato
sobre algumas representações do meio jurídico profissional, realizei uma entrevista
individual com cada um.
Ao me encontrar com cada um dos entrevistados, ora nos seus ambientes de
trabalho, ora nas suas próprias casas, a minha intenção era sempre a de observar
como o meio jurídico percebe e recebe determinadas expressões manifestadas no
corpo, de dentro para fora, na construção de uma imagem, a partir dos seus
discursos - esses profissionais tinham olhares sobre corpos e eles mesmos eram
corpos que transitavam nesse “espaço jurídico”.
A princípio, pensava que não só as práticas, como também as opiniões eram
diversas e divergentes. Foi, inclusive, o que me chamou atenção ao me deparar com
o grupo que tinha para a pesquisa e, no que se refere às práticas, nenhuma
novidade por serem de fato distintas, afinal, essa sempre fora a minha intenção.
Ou seja, já de início eu busquei oferecer uma distinção ou diversidade, o que
demonstra que a minha própria concepção já me dizia sem dúvidas que havia uma
diferença entre os atores do direito. Para mim, em um primeiro momento, a diferença
não só existia e era óbvia, como seria essencial para desenvolver a minha pesquisa.
Acontece que a leitura e muitas outras releituras de tais entrevistas me
possibilitaram refletir sobre a unidade dessa pequena “abordagem etnográfica” e,
mais ainda, sobre a unidade que traziam os próprios dados coletados.
Descobri, então, após poder analisar as entrevistas, aspectos inusitados
sobre essa minha concepção de diferença, antes ocultos por uma familiaridade que
costuma retirar a perspicácia e a sensibilidade da imaginação sociológica (KANT DE
LIMA, 2009). Pude, enfim, estranhar minha própria sociedade.
Digo isso porque foi nessa dualidade “diferente, mas igual” - que explicarei
mais a frente - que me trouxe a reflexão a respeito do corpo no direito, as
representações sociais traduzidas e introjetadas nessa cultura jurídica.
Conversas com o Procurador, a Advogada, o Advogado, o Juiz e o Professor
Antes de escrever sobre as falas dos entrevistados, considero importante
descrever os cenários em que elas foram colhidas e, sob a ótica do objeto da
pesquisa, as pessoas dos entrevistados.
O primeiro deles foi quem identifico como o Procurador. A sua participação
foi-me indicada por um colega de faculdade que já havia estagiado no Ministério
Público Federal e, sabendo sobre o tema da minha pesquisa, disse que já tinha visto
e ouvido falar sobre um Procurador da República bastante tatuado. Achei
interessante e fui pesquisar o contato do mesmo no site do MPF.
Após alguns e-mails, ele prontamente se dispôs a dar a entrevista,
mostrando-se bastante interessado. Na mesma semana ele pode marcar um
encontro em seu gabinete, no prédio que se situa no centro da cidade do Rio de
Janeiro.
Chegando lá, pude comprovar o relato do meu colega. De fato, o Procurador
me pareceu uma figura que se destacava do meu imaginário acerca desta profissão
e, inclusive, da escura e fechada arquitetura que adentrava pela primeira vez:
usando uma camisa social bastante estampada, dobrada até o cotovelo e com
alguns botões abertos, o Procurador ostentava um corpo musculoso e tatuagens que
começavam no punho, subiam os braços e peito, chegando ao limite do pescoço.
Possuía a pele clara4.
Muito educado e falante, a conversa se deu de forma fácil e tranqüila, em uma
das gravações mais extensas dentre todos os entrevistados. As falas dele traduziam
uma personalidade aparentemente contestadora daquilo que ele próprio
compreendia como o viés “conservador” e “opressor” do direito, destacando que a
sua “rigidez” era direcionada apenas aos casos de corrupção que lidava no cotidiano
da profissão, em especial no setor público, e jamais com relação à roupa, por
exemplo.
A segunda entrevistada e única mulher do grupo selecionado foi a que
identifico como Advogada. Sócia de um escritório considerado de “médio porte”, ela
foi a única cuja fala defendeu explicitamente o direito enquanto instituição de
controle, inclusive no controle à imagem de seus atores, referindo-se a ele como “a
instituição ideal”. Destaco abaixo um trecho da sua entrevista:
“Eu, particularmente, acho que tem que haver algum tipo de formalidade, mas o terno, especificamente, acho que não é adequado ao nosso clima. Eu acho que se poderiam criar regras mais adequadas ao clima. (...) Eu acho que o Direito é necessário. É uma forma de compor os interesses dos indivíduos que estão reunidos em sociedade. O Direito é essencial! Acredito que o Direito possa ser usado como uma instituição controladora, mas na verdade ele é uma instituição ideal. Ele é necessário, a não ser que haja algum abuso por parte de alguma força política vigente, ele é necessário para compor os interesses existentes na sociedade. É importante.”
A entrevista ocorreu na sua casa, em Niterói. Ao contrário do primeiro
entrevistado, esta foi a conversa mais breve dentre as demais.
A Advogada não possuía tatuagens ou qualquer outro signo corporal que
pudesse ser considerado “diferente” ou “provocador” a seu ver (algo que concordo,
4 Aqui, faço uso do termo “pele clara” em oposição ao termo “pele negra”, apenas para identificar os
entrevistados em uma distinção rasa, porém que considero importante destacar no contexto do nosso país, visto que pesquiso a questão imagética do corpo.
sob o ponto de vista da pesquisa). Ela era loira, pele bem clara e olhos azuis, com
os cabelos na altura dos ombros.
Logo em seguida, entrevistei o Advogado, marido da Advogada, também na
residência do casal.
O Advogado usava os cabelos curtos e cavanhaque. Possuía o total de quatro
tatuagens, sendo que apenas duas estavam visíveis no momento da entrevista -
eram duas tatuagens que cobriam a parte superior externa dos braços (ele usava
uma camiseta no momento da entrevista). As outras duas localizavam-se no
abdômen e em toda a extensão das costas. Possuía pele clara.
A respeito da fala do Advogado, após a coleta de todas as entrevistas, notei
um fato curioso. Ao passo que ele criticava e atribuía o uso do terno aos
magistrados, o outro entrevistado, identificado como o Juiz, considerava tal uso
como uma opção do advogado. Imaginei uma roda de conversas entre os cinco
entrevistados...
O quarto entrevistado foi o que identifiquei como Juiz, embora à época
estivesse em vias de se tornar Desembargador na Justiça do Trabalho, o que se
concretizou posteriormente, e também lecionasse na faculdade de direito.
Marcamos por e-mail e, em seguida, por telefone, um encontro na sala de
professores na própria Universidade Federal Fluminense.
Também de pele clara, cabelos curtos e cavanhaque (ambos grisalhos), o
Juiz não possuía tatuagens ou quaisquer outros signos que considerasse “diferente”
ou “de estilo”. No entanto, diferente da maioria dos magistrados (ou demais carreiras
do Poder Judiciário que demandassem concurso público) que cumulavam o
magistério, este entrevistado só era visto nas dependências da faculdade usando
calça jeans, tênis e camisa polo. E foi vestido de tal forma que concedeu a
entrevista.
Um destaque na sua fala foi o fato de que ele me transmitiu uma sensação de
que compreendia o assunto e minhas perguntas, no entanto, parecia querer ocultá-
las ou afastá-las no que se refere ao cotidiano do tribunal.
Enfim, o último entrevistado foi aquele identificado como o Professor.
Encontro também marcado por e-mail, a entrevista se deu no escritório da sua casa,
no Rio de Janeiro, cercado por livros e muitas fotos de suas filhas.
Pele clara, usava óculos e a cabeça raspada, barba bem rente ao rosto, com
os cabelos um pouco grisalhos. Usava uma pequena argola em uma das orelhas e,
no decorrer da entrevista, suspendeu a manga comprida da camisa que usava para
me mostrar uma pequena tatuagem na parte interna do antebraço.
Sua fala foi permeada por lições e metodologias embasadas em teorias e
estudos que eram fruto da sua imersão na academia - um viés político e social do
direito. Como eu esperava, foi o entrevistado que possuía maior domínio e
compreensão sobre aspectos sociológicos que envolviam as terminologias usadas
na pesquisa (direito, signo, representações sociais, instituição de controle social,
percepção imagética...) - ou ao menos, foi o que melhor expressou-se sobre elas
durante a conversa.
Feitas as “apresentações”, exponho agora minhas impressões e mais alguns
pequenos trechos das entrevistas.
Breves notas
A dualidade que mencionei acima refere-se ao contraste que pude perceber
após as entrevistas: um grupo profissionalmente variado e com opiniões e práticas
completamente diferentes5, compartilhando apenas a formação em direito, na
verdade me transmitiu uma unidade de percepções fundamental para que eu
construísse as impressões a respeito do corpo e direito que trago neste artigo.
5 Inclusive, os trechos das entrevistas que selecionei para este artigo traduzem bem essas opiniões
contrastantes, em especial a respeito do uso do terno e brinco por homens (signo que, até então, nunca havia considerado).
Primeiramente, destacarei algumas diferenças aparentes.
Alguns discursos se sustentavam em negar, a princípio, qualquer identificação
de um diálogo entre direito e as expressões corporais especificadas nas perguntas -
tatuagem e vestimenta -, no sentido de haver alguma limitação ou manutenção de
um signo próprio obrigatório, justificadas pelo fato de “nunca ter presenciado algo”.
No entanto, elegiam outros signos e mantinham a ideia de que não havia
“proibição”, apenas “olhares”. Abaixo, um trecho da fala do entrevistado que
identifico como o Juiz:
“Poderia simbolizar a questão do terno, que é muito falada. Porque se usa terno, num país como esse, muito quente? É obrigatório ou porque o advogado quer usar o terno? Eu acho que é muito mais uma opção do advogado, em partes. É lógico que se o advogado for fazer uma audiência sem terno, isso pode ser sentido como uma falta de respeito, porque existe uma tradição. Eu nuca vi ninguém levantar nada com relação a isso. Eu vejo essa questão da tatuagem como uma questão de geração. Se você fizesse uma pergunta assim: e o juiz usando brinco? Aí eu diria que existiria, evidentemente, uma rejeição. Ninguém iria falar, até porque não é proibido, mas iria ser visto com uma certa reserva, numa questão fácil de entender pela sociedade, da mesma forma que se daria com um militar ou um padre, com todos aqueles que expressam uma certa autoridade, o uso do brinco ainda é visto como uma fraqueza ou desejo de chamar atenção. Não vejo nada diferente no Tribunal do que é no resto da sociedade. O que estou dizendo aqui é o que ocorre na sociedade, não vejo nada específico do Tribunal. É como você receber uma carta com ou sem o envelope: a carta é a mesma, o conteúdo é o mesmo, mas é diferente receber uma carta em um envelope mais elegante do que uma carta sem envelope, um papel dobrado. São coisas que ajudam na eficácia do que se pretende realizar.”.
Outros, por sua vez, não só identificavam, seja uma obrigatoriedade do uso
do terno ou uma “orientação implícita” de não exibir tatuagens, como também
criticavam o que classificaram como “conservadorismo”. Ainda assim, exerciam essa
manutenção no cotidiano de suas práticas profissionais (importante aspecto que
tratarei a seguir).
Em paralelo, destaco abaixo um trecho da entrevista com o Advogado e, em
seguida, com o Procurador:
“No meu modo de ver ele [o direito] tem que ser apartado, porque, na verdade, ele é um órgão que serve a sociedade, mas ao mesmo tempo, a fiscaliza. Ele fiscaliza a sociedade no sentido que ele norteia, serve de mediador dos conflitos. Então, para você ser o mediador, você tem que impor a sua decisão, a sua vontade. Para impor a sua vontade, você tem que ter o poder, parecer diferente da sociedade para estar acima dela como um todo. A toga, a solenidade de uma audiência, no meu entendimento, vem muito disso. Para você mostrar ao cidadão comum, ou seja, aquele indivíduo que não faz parte do meio jurídico: „olha, aqui você está em um lugar diferente. Aqui você é a exceção e nós somos a regra‟. (...) Eu expresso minha opinião, mas a verdade é que, profissionalmente, quando eu vou ao fórum despachar ou a alguma audiência, eu não estou defendendo somente o meu ponto de vista. Eu estou defendendo o interesse do cliente. (...) A minha opinião é muito clara. Eu acho - (...) - um exagero para o clima que nós temos, usar paletó. Gravata, por uma convicção pessoal, eu acho sufocante e feio, mas já faz parte do conjunto do terno. (...) Eu acho que para um calor de 42 graus tem uma explicação simples do porque é obrigatório o uso do paletó. Quem tem poder de determinar isso, que seriam os magistrados, ficam em uma sala com ar condicionado. Desliga o ar condicionado do Judiciário que automaticamente o paletó entrará em extinção. Infelizmente, vivemos refém dessa situação”.
Agora um trecho da fala do Procurador (que, à época, também ministrava
aulas na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro):
“A questão da tatuagem, qualquer lugar que vou as pessoas me olham de uma forma esquisita. Isso é muito comum na EMERJ. Ela é um núcleo do Tribunal e, como todo tribunal, é pautado por um conservadorismo. Ao dar uma aula sem terno, alguns alunos olham da mesma forma. Depois de um tempo, ao perceberem que a aula tem uma certa substância, passam a desenvolver respeito. Quando descobrem que sou Procurador, também. A partir de então, começa a se desenvolver uma curiosidade. Esse preconceito inicial acaba por se transformar em um fator de aproximação”.
A partir de agora, a dualidade “diferente, mas igual” a que fiz referência
anteriormente começa a ganhar forma.
Seguindo esta linha de pensamento, foi possível perceber que todos
identificaram a existência de um determinado corpo do direito, cada um expressando
suas diferentes impressões a respeito do porquê desse corpo e como ele era,
imediatamente usando a si mesmos como exemplos.
Pensando nos momentos das entrevistas, pude perceber que todos eles, sem
exceção, demonstraram uma espécie de incômodo ao ter de, diante das minhas
perguntas, analisar e falar sobre as relações estabelecidas entre direito, tatuagem e
vestimenta. Acredito, contudo, que esse incômodo se dava por diferentes razões.
Em um primeiro momento, esse incômodo mostrou-se perceptível na própria
linguagem corporal dos entrevistados. Ao trazer tais questões à tona, de imediato
surgia uma pequena agitação, traduzida em um desencostar da cadeira, em uma
rápida cruzada de pernas, ou num arquear de sobrancelhas, ainda que todos
soubessem previamente do tema da entrevista.
Em suas falas, todos identificaram como próprio do universo jurídico tanto a
obrigatoriedade do uso do terno e, no caso das mulheres, roupas “formais e
respeitáveis”, como identificaram também a rejeição ao uso ou, pelo menos, à
exibição de tatuagens;
Todos mencionaram as palavras “formalidade”, “tradição”, “conservadorismo”
e “preconceito” - ora para criticar, ora para justificar e defender essa obrigação ou
rejeição/ocultação nas expressões corporais especificadas;
Também observei que alguns dos entrevistados expressavam esse
desconforto criticando o tal padrão de imagem imediatamente após identificá-lo,
quase que “se desculpando” por sustentar, ainda que contrariamente, seus signos;
outros, ao imediatamente justificar o porquê desse padrão ou atenuando o sentido
de obrigação das vestimentas e rejeição das tatuagens - nestes casos, acredito que
influenciados pela minha própria imagem, ao suporem que eu mesma seria uma
crítica deste padrão ao pesquisar sobre o assunto na minha graduação em direito.
Conforme disse, está aí a unidade nos discursos. Criticando ou não
determinados signos identitários do direito, mas aderindo a eles em certos
momentos de suas práticas profissionais, os entrevistados me pareceram
estabelecer uma espécie de relação ritual entre sagrado e profano - uma ação
cênica temporária intermediária: nem completa adesão, nem completa recusa aos
signos, mas um permanente diálogo com o sistema.
Interessante destacar esta fala do Professor:
“Primeiro, eu uso brinco, que não é também alguma coisa aceita dentro do campo do Direito. Então em todo o momento que eu tive formalidades dentro do campo do Direito para o ingresso nele, por exemplo - eu já usava brinco desde os dezoito anos -, quando eu fui fazer a minha prova na UFF [refere-se, aqui, à prova do concurso público para professor], eu não fui de brinco; quando comecei a trabalhar na UFF, só fui voltar a usar brinco muito tempo depois; eu tenho uma tatuagem também [o entrevistado mostra a tatuagem que possui na parte interna do antebraço] e, normalmente, uso camisa, o que não a deixa de uma maneira mais ostensiva. Ou seja, de uma certa maneira, eu também interiorizo, mesmo tendo algumas referências, uma certa postura dentro do campo, que é uma postura que pode me causar problemas na aceitação em certos âmbitos”.
A partir daí, comecei a pensar em como esses olhares traduziam a nossa
própria cultura jurídica e mais - como constituíam alguns aspectos da nossa própria
sociedade.
Conclusão ou “Não vejo nada diferente no Tribunal do que é no resto da
sociedade”6
Neste artigo, o grande proveito que tirei da monografia e das entrevistas que
realizei foi bem mais a experiência com a pesquisa empírica e esse contato
sociológico com o direito, do que a pesquisa em si.
Pude compreender que propor um pensar sociológico a respeito do direito é
permitir voltar-se para a sociedade munido de um olhar crítico de si mesmo,
buscando não “desvendar” o Judiciário, mas reconhecê-lo.
Uma breve reflexão acerca de tais entrevistas, nos proporciona observar
aspectos da nossa sociedade a respeito da disposição do corpo que estão
6 Frase retirada da fala de um dos entrevistados, identificado como o Juiz.
introjetados na nossa cultura jurídica, de modo que podemos desenvolver um
pensamento mais sofisticado e profundo em torno, efetivamente, das práticas do
direito.
Não se trata de um produto autônomo do direito que é despejado na
sociedade. É o oposto disso.
Compreender que o direito reprime e produz, que ele possui um corpo
específico cuja identificação está presente no relato de seus atores e que estas são
reproduções de representações sociais, garante que se possa pensar: se esse corpo
existe e percorre nossa cultura jurídica, o que ele significa estando dentro dela? O
que ele tem a dizer sobre nossa sociedade?
São esses os questionamentos que procuro, mais do que responder,
provocar. E que me permitiram, hoje, dar continuidade à minha pesquisa.
O corpo constitui-se como um território, um espaço que sustenta discursos,
dominações e manifestações. A disposição do próprio corpo, a [des]construção, e
tudo o que se pretende discutir e transformar nesse espaço traduz significações
essenciais para se compreender a sociedade que o cerca.
A frase que serve de possível título a esta conclusão é muito significativa, pois
resume praticamente todo este artigo - ela textualiza o clarão de pensamento que
me atingiu em cheio. Certamente, pensar o direito é pensar seus atores, suas
práticas, a rotina do tribunal... E a partir de então perceber sua própria sociedade.
Esse corpo do direito é permeado por signos definidos bem específicos, em
que qualquer desvio no seu padrão imagético é percebido e pouco aceito. No
entanto, é um corpo bastante conhecido e fácil de se reconhecer.
Quando não especificado em portarias e regimentos internos, pode-se
aprendê-lo em uma única visita a um tribunal - certamente os seguranças alocados
na entrada lhe darão a clara noção de que você está ou não apto a integrar o
espaço.
Por essa razão que tais entrevistas apresentaram a unidade que trago aqui. A
própria operação desse saber jurídico implica na sua reprodução.
“Na prática, o que esse saber faz é veicular certas representações, oriundas de concepções acríticas dos fenômenos sociais, de maneira dogmática. Como é esse saber que vai ser invocado nas confecções das leis, e preencherá as justificativas que serão apresentadas em juízo, ele tenderá a reproduzir concepções etnocêntricas e ultrapassadas das instituições sociais. Mais que isso, ele é ensinado hoje, nas faculdades, como atual e base para a realização da finalidade do direito como habitualmente definido: campo de estabelecimento do dever social” (KANT DE LIMA, 2009, p. 20).
Enfim, observar e ouvir, estar presente nos espaços e lugares diferentes em
que este saber é operado, sob olhares distintos, é trazer o direito e a sociedade para
discussão. Sem ferramentas empíricas, essas percepções permanecem embaçadas,
e não embasadas. A faculdade de direito precisa dessa transformação, e este breve
artigo pretendeu ser uma pequena provocação para tanto.
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