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1 PARÓQUIA JESUS OPERÁRIO Elementos Fundamentais de Cristologia Frei Oton Júnior, ofm Junho de 2011

Elementos fundamentais de cristologia frei oton

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PARÓQUIA JESUS OPERÁRIO

Elementos Fundamentais de Cristologia

Frei Oton Júnior, ofm

Junho de 2011

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ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DE CRISTOLOGIA

PRESSUPOSTO FUNDAMENTAL: O ACESSO HUMANO AO DIVINO, POR JESUS

Pensar a relação do ser humano com Deus, - reconhecendo de antemão que Deus exista e que haja a

possibilidade de se relacionar com Ele - por muitas vezes é referido como algo demasiado ingênuo. Afinal,

quem é Deus e quem é o ser humano? Há um abismo enorme entre as duas realidades: da eternidade e do

tempo, da onisciência (saber tudo) e da dúvida, do poder e da fraqueza.

Se formos sinceros o bastantes, devemos admitir que nos é impossível entrar no ser de Deus mesmo. O

mistério Divino é muito maior que a capacidade humana de alcançá-lo. Estranhamente, ouvimos expressões

como ‘Deus quer’, ‘Deus falou’, ‘Deus gosta ou não gosta’. Ora, como saber essas coisas de verdade? Aquilo

que dizemos que Deus não gosta, é mesmo de Deus ou somos nós que jogamos para Deus algo que não

gostamos?

Caso parássemos por aí, poderíamos ter uma imagem equivocada de Deus, como se de fato não houvesse

solução para esse impasse. Como o cristianismo resolveu isso? Pela encarnação do Filho de Deus: Jesus de

Nazaré. Assim, não sei o que Deus quer, gosta, repudia, mas conheço o agir de Jesus, e dele posso tirar

minhas conclusões.

Portanto, quando falamos da humanidade de Jesus, o mais importante em tudo isso não é só os exemplos

de Jesus. O decisivo é que, na humanidade de Jesus, Deus mesmo nos é dado a conhecer e, além disso,

também nessa humanidade descobrimos o projeto de Deus. Porque, em última instância, o que Jesus nos

ensina é que o projeto de Deus e o que Deus quer de nós, não é que nos divinizemos (e menos ainda que nos

“enDeusemos”), mas que nos humanizemos.1

O projeto cristão é fazer-nos cada dia mais simplesmente humanos. Portanto, o projeto de Deus não é

fazer-nos “religiosos”, nem “sagrados”, nem “consagrados”. Na medida em que tudo isso nos eleva sobre a

simples condição humana, nessa mesma medida nos separa, nos divide, é origem de categorias e distinções,

dignidades, poderes e privilégios que geram confrontos de uns com outros. Tudo isso nos desumaniza. E Jesus

não quer isso, ele o detesta.

Por isso, sem dúvida, Jesus confrontou-se com a religião e seus dirigentes, com o templo e seus sacerdotes.

A “humanidade” é algo tão decisivo para Jesus, que defendê-la custou-lhe a vida. Nisso Jesus viu que jogava

o ser ou não ser de sua mensagem. E isso – digo-o com todo respeito e sinceridade – é o que Paulo de Tarso

nunca compreendeu.

1 José Maria Castillo, A humanidade de Deus e a humanidade de Jesus, palestra proferida na

faculdade Jesuíta, FAJE-BH no dia 5 de maio de 2011, ao qual se cita até o fim da sessão.

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Paulo não conheceu o Jesus terreno, nem sua humanidade o interessou. Conheceu somente o Ressuscitado

(Gl 1,11-16; 1Cor 9,1; 15,8; 2Cor 4,6). E chega a dizer que o Cristo “segundo a carne” (em sua humanidade)

não o interessa (2Cor 5,16). Por isso Paulo não se interessa pelo Deus que se revela a nós em Jesus. Ele

continuou crendo no Deus de Abraão (Gl 3,16-21; Rom 4,2-20).

Suposto isso, compreende-se que o projeto cristão é um projeto de humanização, no sentido de ir

libertando-nos progressivamente da desumanização que todos trazemos fundida em nossa vida, para poder

fazer-nos assim, cada dia, mais profundamente e mais plenamente humanos. Chegar a ser plenamente

humanos não está a nosso alcance. Por isso necessitamos de Deus. E esse é o significado que tem o recurso a

Deus. Para que, por meio da força de seu Espírito, possamos aproximar-nos do ideal de nossa plena

humanidade.

Por último, em que consiste o projeto de nossa humanização? O humano contrapõe-se ao divino. O divino

associa-se ao poder, à gloria e à grandeza sem limites. Ao contrário, o humano relaciona-se com a debilidade,

com a limitação, inclusive com a fragilidade. De fato, aquilo que é minimamente humano, o comum a todos

os humanos, se reduz à “carnalidade” e à “alteridade”: todos nós humanos somos de carne e osso

(carnalidade); e todos nós humanos necessitamos uns dos outros (alteridade).

Pois bem, sendo assim a condição humana, compreende-se que a tentação satânica fundamental seja a

apetência de “ser como Deus” (Gn 3, 5). Ou seja, ser mais que os outros e estar sobre os demais. Daí a

violência em todas as suas formas. Por isso, segundo os evangelhos, Jesus marca o caminho de nossa

humanização porque o projeto de vida que nos traçou foi não querer estar nunca sobre os demais, mas sim

estar sempre com os demais, especialmente com os últimos, com os que estão mais abaixo, até acabar, ele

mesmo, como o último. Uma vida entendida assim, se traduz em união, solidariedade e felicidade partilhada.

Diz Andrés Torres Queiruga: O que mais me impressiona em Jesus Cristo não é este ou aquele detalhe. É o

fato em si de sua existência. Essa síntese, ao mesmo tempo, simples e extraordinária, de um homem no qual

transparece a majestade de Deus, de um Deus que passeia sobre a paisagem cotidiana da Palestina a mais

simples e normal existência do homem.

[Em vez de um Deus manifesto com sinais no céu, assim como esperavam os judeus], o que nos é

oferecido é a humanidade mais humana, mais despojada, e normal. Não é um Deus que utiliza o recurso de

uma espécie de humanidade e empréstimo para despejar nela os esplendores de sua onipotência, e sim um

homem normal e profundamente humano. De uma humanidade tão pura e radical que somente pode realizar-

se de dentro do coração da divindade. E com isso insinuo já a fórmula que mais me ajuda a aproximar-me ao

mistério de Cristo é tão pobre – com tal pureza, tal coerência, tal fidelidade – que só pode ser Deus.2

No evangelho de João, há algumas afirmações curiosas: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único, que é

Deus e está na intimidade do Pai, foi quem o deu a conhecer” (Jo 1,18); Eu e o Pai somos um”(Jo 10,30);

Filipe disse: ‘Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta’. Jesus respondeu: ‘Filipe, há tanto tempo estou

2 Andrés Torres Queiruga, Repensar a Cristologia: Sondagens para um novo paradigma, São Paulo,

Paulinas, 1999, 18.

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convosco, e não me conheces? Quem me viu, tem visto o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai’? Não

acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim

mesmo; é o Pai que, permanecendo em mim, realiza as suas obras? (Jo 14,8-10).

I. JESUS HISTÓRICO E O CRISTO DA FÉ

A Pessoa de Jesus Cristo é o elemento fundamental para a fé dos cristãos. Para isto, a fé transmitida

pelos discípulos na Sagrada Escritura é a principal fonte para aproximarmo-nos deste homem, aclamado como

Filho de Deus, Senhor da História. No entanto, as interpretações acerca de Jesus foram as mais diversas. Por

vezes se valorizou o aspecto humano em detrimento do divino; por vezes, o contrário.

A primeira distinção que se deve ter em vista é aquela do homem Jesus, nascido na cidade de Belém, filho

de um casal de classe média, carpinteiro de formação, pescador de profissão. Líder religioso morto por

conspiração judaica e romana.

A outra faceta é o Cristo Senhor, Verbo Encarnado, Senhor do Universo, reconhecido pelas comunidades

cristãs como Filho de Deus, cumpridor das Escrituras. Para nós hoje, pode parecer tranqüila esta separação,

mas ela demorou muito a ser feita.

Nossa dificuldade muitas vezes é admitir que Jesus, a partir da encarnação, esvaziou-se de toda a glória.

Ao entrar na condição humana, Jesus deixou para trás todo o conhecimento divino que tinha, logo, não sabia

de tudo o que estaria por acontecer. Os evangelhos mostram a angústia de um Jesus que aos poucos vai

tomando conhecimento de sua missão e assimilando sua vida conforme a vontade do Pai.

Os discípulos tiveram uma dificuldade inversa: como aquele homem que comia, andava, falava, dormia,

poderia ser o Filho de Deus? (‘És tu que devias vir ou devemos esperar outro?’, Lc 7,19).

A síntese final da cristologia é justamente aclamar Jesus como o Cristo de Deus e reconhecer que o

Filho de Deus (Segunda Pessoa da Trindade) se fez homem naquele homem de Nazaré.3

A fé cristã consiste em equilibrar bem estes dois elementos: Jesus Histórico e o Cristo da Fé.

Primeiro equívoco: Os evangelhos levam-nos à fé em Jesus, Filho de Deus, relatando o extremo de

humanidade de Jesus. Lentamente a teologia, fascinada pela grandeza do dogma da única pessoa divina de

Jesus, inverteu o percurso da sua elaboração, atribuindo ao Jesus palestinente todos os atributos divinos. Desta

sorte, Jesus na terra sabia de tudo, conhecia todas as realidades, como Deus as conhece. Suspendeu somente

os efeitos secundários dessa união beatífica sobre seu corpo.

Por mais que se quisesse valorizar a humanidade de Jesus, esta ficava a rebote da divindade. E quanto

maior e mais poderosa era a imagem que fazíamos de Deus, tanto mais a humanidade de Jesus se encurtava.

Era um Jesus que podia brincar com os milagres. A qualquer momento poderia destruir seus inimigos, descer

3 A afirmação de que Jesus é ‘verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus’ só foi feita no Concílio

de Calcedônia, em 451. Veja o anexo ao final da apostila.

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glorioso da cruz, produzir as maiores maravilhas diante dos nossos olhos. Afinal de contas, ele era Deus,

onipotente, onisciente, infinito. Se não fazia tais maravilhas, é porque não queria.Vejamos alguns riscos

quando tal síntese não é bem feita:

A) Conseqüência da valorização unilateral do Cristo da fé

a. As celebrações litúrgicas tendem a ficar desvinculadas do seguimento do caminho percorrido por

Jesus, na etapa terrestre; acontece separadamente da partilha e do amor serviço (cf. 1Cor 11,17ss)

b. A visão unilateral do Cristo glorificado leva facilmente à exaltação religiosa, deixando de lado o

caminho do serviço e o anúncio do Crucificado. A orgulhosa sabedoria humana tende a substituir a sabedoria

da cruz (cf 1,17 – 2,16).

c. A referência exclusiva ao Cristo glorificado faz com que sua figura fique afastada da vida cotidiana do

cristão cristo é visto como algo sublime, abstrato e perdido na distancia. Sem levar em consideração a vida

concreta de Jesus de Nazaré, pode-se muito facilmente interpretar o Cristo de maneira ideológica, utilizando-o

para justificar os mais variados interesses.

d. Invoca-se hoje, freqüentemente, o Espírito de Cristo, mas será que se trata do mesmo Espírito que

impulsionou Jesus em sua vocação de Messias-servidor? Quando se esquece a missão de servidor,

desenvolve-se com facilidade em espiritualismo desencarnado.

e. Da mesma maneira, é muito fácil utilizar o Cristo-Poder para justificar e sacralizar poderes deste

mundo: Políticos, econômicos e outros. O poder de Jesus é utilizado também para justificar o exercício

dominador do poder da igreja. Faltando a conexão com a vida, as opções e as atitudes de Jesus de Nazaré, fica

aberta a porta para a deturpação do significado e da qualidade do poder que certamente ele possuía.

f. O Cristo glorificado poder ser invocado pelas pessoas ou pela instituição para evitar o compromisso

diante das injustiças e dos conflitos atuais. Na referência exclusiva do Cristo glorificado, é fácil esquecer que

Jesus de Nazaré não se manteve neutro frente aos conflitos de seu tempo e de sua sociedade.

B) Conseqüências da valorização unilateral do Jesus Histórico

a. Desenvolve-se uma distância para reduzir Jesus a um simples revolucionário, ou a um sábio. Há,

assim, um empobrecimento radical da “novidade” de Jesus Cristo.

b. Jesus de Nazaré e sua proposta, bem como sua vida de servidor, acabam por configurar o único

critério da fé cristã. Esquece-se de que o anúncio do Ressuscitado contém algo “novo” em relação ao Jesus

terreno.

c. O encontro com Jesus terreno, separado do Cristo ressuscitado, acaba sendo estéril. As pessoas

desistem logo da missão.

d. Pode-se “usar” a imagem de Jesus para defender interesses pessoais e de classes, desvinculados de

qualquer compromisso com a transformação social e pessoal. É a manipulação da mensagem.

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Não se deve separar o homem Jesus – a condição humana de Jesus Cristo – de sua condição divina. O

mesmo e único Jesus Cristo existe na condição humana real de homem servidor e, ao mesmo tempo, na

condição divina real de homem glorificado.

Daqui, é possível duas maneiras de estudar a Cristologia: a partir do alto, valorizando o Cristo da fé,

encarnado; ou a partir de baixo, de Jesus, que deu vida por seu povo.

II. QUEM DIZEM OS HOMENS QUE EU SOU?

Transparece nos evangelhos a grande dúvida se Jesus seria mesmo o Messias esperado.4

Bem sabemos que a idéia de Messias que Jesus tem em mente é bem diferente desta, mas se reconhece

muito mais com as profecias de Isaías do servo Sofredor (cf. Is 53).

Lembremo-nos

que a espera messiânica teve início mil anos antes de Jesus, com o fracasso da monarquia em Israel. “De agora

em diante não acreditamos mais no poder da realeza humana. Deus mesmo nos há de mandar um Rei

Messias”, era a mentalidade da época.

A Identidade do Jesus Terreno

a. O enquadramento social: Jesus teve um estilo de vida fortemente original: renúncia às riquezas,

separação da família, pregação itinerante, todas as cosias que a Igreja Primitiva não entendeu como

normativas para o cristão em geral.

Jesus se propõe como uma autoridade carismática original, livre nos confrontos da família, da sociedade,

dos valore humanos e culturais de seu tempo, constitui um movimento profético de tudo particular.

b. A relação com os discípulos: Jesus inicia o seu ministério público com o chamado dos discípulos (só

Lucas a remete um pouco depois, depois do episódio da sinagoga de Nazaré).

c. O grupo de Jesus é diferente do grupo de João Batista (p.e. Jesus não batiza seus seguidores, não tem

pregação apocalíptica como o Batista).

d. O grupo de Jesus é diferente dos essênios. Seu grupo é itinerante.

e. Jesus é definido como Mestre, título usado só nos evangelhos. É Ele que chama os discípulos,

diferentemente do costume da época. Jesus chama para que o sigam, enquanto os profetas chamavam para

seguir a Deus.

f. O costume judaico pedia que se sepultassem os parentes próximos, enquanto Jesus relativiza o

costume (Lc 9,60). O celibato é algo negativo para um judeu, e Jesus o aconselha (Mt 19,12).

g. Enquanto ser discípulo de um rabino significava dedicar-se ao estudo da Torá, no caso de Jesus

significa segui-lo, até o extremo de dar a vida por ele.

4 ‘E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?’ (Lc

7,49); ‘De onde lhe vêm estas coisas? E que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas mãos?’ (Mc 6,2).

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h. Na escola dos rabinos um bom discípulo será um dia rabino, enquanto para Jesus um discípulo

permanecerá sempre discípulo.

i. O fato de Jesus fazer milagres revela algo de si. Porém, eles nunca foram demonstração apoteótica,

sempre pedia fé (Mc 9,23-24), e evitou o maior milagre que seria descer da cruz (Mt 27,39-43; Mc 15,24-28;

Lc 23,35-38).

j. Em relação à Lei judaica: Jesus foi um crítico voraz da Lei. A frase sobre o ‘cumprimento’ segundo

alguns autores não é de Jesus, mas mérito do redator, no caso, Mateus (que escreve para judeus). Jesus proíbe

um jovem de sepultar seu pai, algo mandado pela Lei (Mt 8,21-22); redimensiona o sábado, o divórcio, o

jejum, reinterpreta as questões de puro-impuro, questiona as oferendas Korbán (segundo as quais qualquer

coisa oferecida a Deus não podia ter uso profano).

k. O mandamento do amor era somente entre os israelistas. Jesus o propõe para todos, inclusive os

inimigos.

l. As parábolas: têm a ver com o Jesus terreno, mas apontam elementos fundamentais da cristologia ao

dizer da maneira de Deus agir.

A pregação do Reino de Deus é fundamental para o entendimento da missão de Jesus. Ocorrem em cerca

de 70 vezes nos sinóticos, e é inexistente em João. Ao mesmo tempo em que o Reino é algo a vir (‘venha a

nós o vosso Reino’), é algo reconhecido na pessoa mesma de Jesus. Algumas parábolas indicam o crescimento

do Reino (a semente nos vários terrenos Mc 4,4-9; a semente que cresce sozinha Mc 4,26-29; o grão de

mostarda Mc 4,30-32; o joio Mt 13,24-30; o fermento na massa Mt 13,13e Lc 19,20-21).

III. JESUS CRISTO CONFORME OS EVANGELHOS5

A. O projeto teológico sobre Jesus segundo São Mateus

São Mateus organizou a mensagem de Jesus em torno de grandes sermões, como eixos a ordenar e

estruturar o material disperso. Ele o fez a partir de cinco blocos: as bem-aventuras, a ação missionária, as

parábolas, a temática da Igreja, os ensinamentos sobre o fim dos tempos. No primeiro sermão, chamado

também de evangélico, Mateus deixa-nos a imortal página sobre o Sermão da Montanha, seguido de

maravilhosa série de ensinamentos sobre a conduta do cristão, atingindo as alturas do amor aos inimigos além

da clássica trilogia quaresmal da esmola, oração e jejum. No sermão da missão traça o perfil e o

comportamento do missionário de então e de sempre até o heroísmo de suportar perseguições. As parábolas

giram principalmente em torno do tema do Reino de Deus com imagens simples e profundas. O sermão

eclesial desenha a vida da comunidade cristã, frisando o amor à criança e o cuidado com a ovelha perdida. E

para fechar o conjunto de sermões estão os ensinamentos a respeito do final dos tempos. Aí o evangelista

mistura escritos que recolhem descrições da destruição de Jerusalém, já acontecida, com previsões sobre o

5 In: http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/category.php?categoryid=8

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final dos tempos. Exige-se muito cuidado na leitura do sermão escatológico para não se ser induzido a

conclusões apressadas e ameaçadoras. O ensinamento central se resume na vigilância arguta diante dos

acontecimentos e na confiança total no amor salvador de Deus.

Refletindo a vida da comunidade judaico-helenista, provavelmente da Síria, Mateus trabalha a figura de

Jesus em comparação com a grande personalidade de Moisés. Para o judeu era o grande libertador. E Mateus

mostra como Jesus, o grande Mestre, supera o próprio Moisés. Com freqüência, especialmente nos sermões do

capítulo 5, põe nos lábios de Jesus a frase: Os antigos disseram (entenda-se a lei de Moisés), eu, porém, vos

digo. Aí aparece a força da autoridade de Jesus que não veio abolir a lei de Moisés, mas levá-la à plenitude

(Mt 5, 17).

B. Como Marcos nos apresenta a Jesus

É o exemplo do catequista. Na linguagem de Bento XVI, ele nos ensina a fazer o “itinerário pessoal da fé”.

Conduz o leitor a duplo ato de fé, um simbolizado por Pedro e o outro pelo centurião romano. Pedro, modelo

do cristão, interpelado por Jesus sobre o que os discípulos pensam dele, responde: “Tu és o Cristo” (Mc 8, 29).

E no final do evangelho, após percorrer toda a vida de Jesus, o cristão clama, como o centurião romano:

“Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (Mc 15, 39). A vida de Jesus, como a do cristão, se

processa como drama atravessado pela luta contra o mal. Marcos descreve-nos Jesus a desdemonizar o

mundo. Usa a linguagem do tempo em que o demônio era visto como personagem quase física. Hoje a mesma

luta prossegue. O demônio veste-se de milhares de formas sutis do consumo e do prazer desbragados, do sexo

desvairado, da dominação, da injustiça social. Daí a imensa atualidade da figura marcana de Jesus.

Marcos escolhe três cenários fundamentais da vida de Jesus, que ilustram a existência cristã: Deserto, mar

e caminho. Três realidades altamente simbólicas e carregadas de sentido. O deserto da intimidade com Deus,

da provação e tentação; o mar da vida, da beleza, das pescas, mas também das tempestades, dos riscos, dos

perigos e vigílias perdidas; o caminho do seguimento, das agruras, do contínuo andar. Todos traços da vida

cristã.

As viagens não simbolizam menos. Jesus transita continuamente entre dois mundos: Galiléia e Jerusalém, a

Galiléia judaica e pagã. De novo, que beleza simbólica! Na Galiléia, Jesus irradia vida, pregação, milagres. Na

Judéia, tramam-lhe a morte. A ida da Galiléia judaica para a pagã revela o zelo missionário de Jesus. De novo,

retrato do ser cristão.

C. A face do Jesus em Lucas

Lucas escolheu o eixo de Jerusalém para pensar a vida de Jesus e a irradiação da fé. Tudo converge para

Jerusalém. Jesus inicia, na segunda parte da vida pública (Lc 9, 51), uma única viagem para lá e no caminho

tece ensinamentos, faz milagres, põe as exigências do seguimento. Nessa cidade, morre, ressuscita, faz todas

as aparições, envia o Espírito Santo e dela saem os missionários para levar pelo mundo a fé cristã. O sentido

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teológico do caminhar para Jerusalém oferece alimento à meditação cristã. Além desse eixo aglutinador,

Lucas desenha a figura de Jesus à base de contrastes. De um lado, sobressai a face humana, misericordiosa,

acolhedora. De outro, aparecem os traços exigentes a propor o seguimento radical e o desprendimento dos

bens materiais. Jesus oscila entre caminhar no meio do povo e silenciar-se em orações nos momentos

decisivos da vida: no batismo, na véspera de pronunciar o Sermão da Montanha e da escolha dos doze

apóstolos, no contexto da interpelação aos discípulos sobre sua identidade, na transfiguração, antes de ensinar

a oração do Pai e finalmente no momento da dramática noite da agonia no horto. Todo o conjunto da vida de

Jesus insere-se no projeto salvífico. Como em nenhum outro evangelho, Jesus fulge como salvador

misericordioso.

D. A figura de Jesus no evangelho de João

Paradoxal é o mínimo que se pode dizer da figura de Jesus na pena de João. Há traços estritamente

históricos que remontam à memória do jovem João que seguiu bem cedo ao Mestre. Recorda-se ele da hora do

primeiro encontro com Jesus: “Eram quase quatro horas da tarde” (Jo 1, 39). Ao longo dos escritos, semeia

pequenos dados bem historiográficos. Doutro lado, alça vôos teológicos. Pensa Jesus à luz da transcendência

de Deus. Ele o faz caminhar na Terra com o resplendor da eternidade nas palavras, nos gestos, nas atitudes.

Tudo se explica a partir do prólogo em que Jesus é identificado com o Logos eterno, divino, junto do Pai. E,

em dado momento, tomou carne, habitou entre nós. O lado escondido, frágil. Mas, continua focalizando o lado

glorioso de Jesus, “vimos a sua glória, a glória de Filho único do Pai, cheio de graça e verdade” (Jo 1, 14).

Jesus é o Filho único de Deus, a quem ninguém jamais viu, mas ele sim, que está junto do Pai, pode dar-nos a

conhecer (Jo 1, 18). Temos aí a chave cristológica de João. Sendo o Filho, conhece perfeitamente o Pai e no-lo

revela.

Longas narrativas de milagres (Caná, cura do paralítico, multiplicação dos pães, cura do cego de nascença,

ressurreição de Lázaro), conversas (com Nicodemos, com a Samaritana, com os discípulos na Ceia) e

discussões com os judeus constituem-se reflexões teológicas profundas sobre o ser último de Jesus. João

propôs-se desvendar para os cristãos onde residia o segredo maior de Jesus: ser o Filho que vive em

comunhão com Deus Pai e que assumiu a carne para habitar entre nós.

A cristologia de João fecha com imensa riqueza as figuras que os sinóticos tinham desenhado do Senhor. O

cristão pode, enfim, compreender em profundidade o mistério da pessoa de Jesus. E daí para frente virão os

Concílios e a teologia para caminhar na linha de traduzir a centralidade do querigma nas linguagens culturais

dos diversos tempos.

Em resumo, a linguagem a respeito de Jesus a partir dos evangelhos

Criando uma palavra nova, os evangelhos constroem uma Teo-narrativa do Jesus histórico. Predomina

neles o gênero literário da narração. Mas não como as narrações históricas que conhecemos que se restringem

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a descrever o que aconteceu. E mostram-se tanto mais fidedignas quanto mais exatamente retratam os

pormenores factuais. Os evangelhos pertencem ao gênero literário maior do “querigma”, isto é, visam a

anunciar a Jesus Cristo como salvador universal. E em função de tal intenção principal tudo o mais é pensado,

organizado, dito. Portanto, a narrativa é teológica – teo+narrativa. Assim nasceu e assim deve ser entendido e

explicado. Não tem sentido, portanto, apontar imprecisões historiográficas de Lucas como comprometedoras

da verdade do evangelho. Nem se deter em discussões abstrusas de pormenores que não afetam o sentido

teológico salvífico dos evangelhos.

IV. O REINO DE DEUS

- É uma realidade dinâmica que se aproxima. Não é algo concluído, está sendo feito e se faz com a

colaboração do homem que responde ao chamado de Deus para que o reino possa ir chegando...

- É uma realidade ambígua que cresce entre o trigo e o joio. Não se pode tentar arrancar o joio porque com

ele arranca o trigo que é símbolo da realidade divina do reino.

- É um tesouro que para comprá-lo vale a pena vender o que se tem. E nisto estão as exigências de

conversão. Para responder à realidade do reino, aos objetivos que Jesus propõe, é necessário realizar uma

mudança interior.

- É uma realidade que acontece na história, mas que transcende a história de todos e de cada um dos seres

humanos. De um modo para nós misterioso, o reinado de Deus tem sua realização depois da morte pessoal e

histórica.

O reino de Deus é uma realidade Divina e humana. Ao mesmo tempo histórica e escatológica pela qual as

pessoas e as estruturas vão se realizando completamente de acordo com o designo de Deus, que se revela em

Cristo.

Deus como Pai: apesar de em Jeremias ser encontrada o relacionamento de Deus como Pai, no tempo de

Jesus isso não era mais usado. A figura de Deus impunha respeito e reverência, o que impedia um

relacionamento tão íntimo.

Jesus parece se compreender como profeta. O termo ‘Cristo’ é usado, sobretudo depois da ressurreição,

mas não havia unanimidade sobre como seria este Cristo-Messias.

Se Jesus sabia que era o Messias, pelo menos pensava num Messias bem diferente. Perante Caifás ele o

admite ((Mc 14,62). Seu título preferido parece ter sido Filho do Homem (que ocorre 31 vezes em Mt, 14

vezes em Mc, 25 vezes em Lc, 13 vezes em Jo).

“A mensagem de Jesus sobre o reino de Deus não culmina com um apelo ao uso da violência para

conseguir um futuro melhor: quem se servir da violência, à espada morrerá. A sua mensagem visa a renúncia à

violência; não retribuir o mal; fazer o bem a quem nos odeia; abençoar aos que nos amaldiçoa; rezar por quem

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nos persegue, libertar dos demônios os doentes psicossomáticos(...). Bem entendido, Jesus foi mais

revolucionário na sua bondade praticada do que os revolucionários.”6

V. MILAGRES NA ESCRITURA

Tanto no AT como no NT se narram milagres atribuídos a profetas, a Jesus a aos apóstolos. Ao que chama

milagre na bíblia? “os milagres são acontecimentos extraordinários que aquele que tem fé interpreta como

sinais da ação salvadora de Deus” (Afonso Weiser).

Trata-se de acontecimentos maravilhosos, excepcionais, atribuídos, à divindade e enquadrados na

experiência religiosa. Para muitos dos homens modernos são narrativas. Os fatos narrados não ser analisados

simplesmente como fatos históricos. Os milagres relatados como obras de Jesus podem ser fatos históricos,

mas podem ser fatos criados pelos evangelistas ou podem ter conteúdo histórico em certa medida “milagroso”

que o autor procurou adaptar em função de sua catequese.

O assunto da historicidade dos milagres contidos na Escritura não é o principal. O que precisamos

compreender é que nossa concepção de milagre é diferente da daquele tempo. No nosso mundo cultural

ocidental, o milagre é visto como um acontecimento portentoso, que interrompe as leis da natureza e só pode

ser atribuído a Deus, criador do mundo e das suas leis. Nesta perspectiva, a natureza é considerada um sistema

fechado: só em casos excepcionais Deus intervém na ordem desse mundo por ele criado. A visão dos judeus

era bastante diferente. Para eles, o mundo criado bem como o ser humano estão continuamente abertos à ação

divina criadora e salvadora. Tanto a natureza quanto a história estão sempre abertas as intervenções de Deus.

Em conseqüência, os milagres não eram interpretados como interrupções das leis da natureza. Milagre era

toda comunicação da presença vivificadora e libertadora de Deus, mas sempre uma comunicação feita com

poder. Não seria, então, o milagre a ação misericordiosa e eficaz de Deus, atuando na profundidade última do

natural, com o objetivo de suscitar saúde e liberdade, isto é, uma vida mais plena? O que realmente nos

interessa são as narrativas de milagres, que são para nós, “palavra de Deus”. Lendo estas narrativas nos

perguntamos: o que nos diz Deus ou o que nos revela Jesus no sentido da nossa salvação da nossa salvação em

todas e em cada uma dessas narrativas?

Conteúdo teológico dos milagres evangélicos

1. Os milagres de Jesus são “atos de poder”, “obras”, e “sinais” da presença libertadora do Reino de

Deus. O poder de Satanás é vencido. Começa a atuação do Reino de Deus: Mt 12,28.

6 KÜNG, Hans. Credo. Profissão de fé apostólica explicada ao Homem contemporâneo. Lisboa,

Instituto Piaget, 1992, 86.

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12

2. Os milagres ressaltam que a libertação realizada pelo Reino de Deus tem um caráter também corporal.

O ser humano inteiro, em todas as suas dimensões, é atingido pela libertação e pela novidade da vida. E,

mediante essa corporalidade, o mundo todo é penetrado pela salvação do Reino.

3. Os milagres de Jesus são sementes e sinais de esperança, no coração da realidade atual. Eles

comunicam a mensagem de que, apesar de tudo, o seu humano e seu mundo têm futuro.

4. Constituem “atos de poder”, mas não de um poder dominador, que anula ou diminui a liberdade do ser

humano. Os milagres são feitos em função do Reino e traduzem uma realização-vivência do amor-serviço. O

milagre é uma forma de fazer o bem (At 10,38), de ajudar as pessoas no seu caminho de libertação, mas não é

apresentado pelo NT como um poder mágico, capaz de “dar solução” aos problemas da história humana. Não

é a solução, mas sim sinal de que a solução é possível.

- Os milagres são sinais realizados sempre a partir da fé, com a abertura-aceitação do dom do Reino de

Deus. São sinais que, de um lado, levam a uma fé mais explicita e amadurecida e, de outro, supõe a existência

de uma fé ou abertura inicial.

- Os milagres libertam o ser humano para que ele possa viver um novo ser, próprio do Reino de Deus, e

seguir Jesus (cf. Lc 8,26-39)

-A libertação para o amor-serviço inclui a vivência comunitária. O milagre liberta e leva o ser humano do

fechamento à abertura comunitária.

VI. JESUS PERANTE SUA MORTE

Jesus foi aos poucos intuindo que morreria em decorrência de sua pregação e atitudes. Fariseus e Saduceus

já estavam em seu encalço há tempo. Somado a isso, já vira o que acontecera a João Batista (Mc 9,13; Mt

17,12), o conhecimento do que acontecia aos profetas (Mc 6,4; Mt 23,37; Lc 13,33-34), e sua fala começa a

revelar seu destino (renegar a si mesmo, perder a vida para salvá-la, beber o cálice, o esposo que será tirado,

os vinhateiros homicidas (Mc 8,34; Mc 10,38 e Mt 20,22; Mc 2,20; Mc 12,8).

No judaísmo, não constava que o Messias devesse morrer. Na última ceia, se liga a morte de Jesus com a

redenção (Mc 14,24; Mt 26,28, Lc 22,20), e sabe que sua morte tem a ver com o plano de Deus, não algo

meramente casual. Jesus parece ter consciência de que sua morte seria a redenção do mundo.

Deus permanece presente, mesmo escondido, quando o sofrimento parece não ter sentido; Deus não

protege de todo sofrimento, mas sim em todo o sofrimento; deveríamos sempre que possível, provar a nossa

solidariedade no sofrimento e tentar ajudar a carregar o sofrimento alheio; não nos limitamos a suportar o

sofrimento, mas sempre que possível, combatemos, combatemos, o sofrimento, não tanto nos seus

pormenores, mas sim as estruturas e condições que provocam tal sofrimento.7

A questão posta por Hans Küng é que de fato “não sabemos em que medida o próprio Jesus esperava uma

viragem dramática, escatológica possivelmente ainda durante a sua vida, reparou o seus discípulos para um tal

7 KÜNG, Hans. Credo. Profissão de fé apostólica explicada ao Homem contemporâneo. Lisboa,

Instituto Piaget, 1992, 110.

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acontecimento dramático: as profecias de morte e de ressurreição, tal como são relatadas nos evangelhos, só

devem ter sido formuladas posteriormente”.8

VII. A FORÇA DA RESSURREIÇÃO

As narrativas acerca da ressurreição são nossas conhecidas, porém, um detalhe não deve ser esquecido:

ninguém a testemunhou de fato. A agonia, a morte, o descendimento da cruz foi testemunhada por várias

pessoas, mas os evangelhos ocultam o modo como Jesus ressuscitou, justamente porque ninguém fora

testemunha do fato.

É importante o dado transmitido por Mateus: ‘no dia seguinte, que é o dia depois da Preparação, reuniram-

se os príncipes dos sacerdotes e os fariseus em casa de Pilatos, dizendo: Senhor, lembramo-nos de que aquele

enganador, vivendo ainda, disse: Depois de três dias ressuscitarei. Manda, pois, que o sepulcro seja guardado

com segurança até ao terceiro dia, não se dê o caso que os seus discípulos vão de noite, e o furtem, e digam ao

povo: Ressuscitou dentre os mortos’ (Mt 27,63-64).

A ressurreição de Jesus é diferente das outras ressurreições que aparecem no evangelho, como a filha de

Jiro, o jovem de Naim, Lázaro. Eles voltaram à vida terrena e depois morreram de novo. Com Jesus, a

ressurreição é um evento trans-histórico: não é a mesma vida, não é o mesmo corpo. É um evento além da

história, mesmo que seja possível tocá-lo como fez Tomé.

Para Paulo, a ressurreição de Cristo inaugura a ressurreição da humanidade, Cristo é ‘é o princípio e o

primogênito dentre os mortos (Col1, 18); Cristo as primícias, depois os que são de Cristo, na sua vinda.

Depois virá o fim, quando tiver entregado o reino a Deus, ao Pai, e quando houver aniquilado todo o império,

e toda a potestade e força (1Cor 15,23-24).

O corpo do Ressuscitado é radicalmente diferente do corpo histórico, agora é incorruptível, imortal, não

sujeito às leis físicas desta criação.

O mundo inteiro gira em torno da cruz, mas somente na ressurreição a cruz chega ao seu pleno significado

de evento salvífico. Cruz e ressurreição constituem o único mistério pascal no qual a história do mundo tem o

seu centro. Por isso, a Páscoa é a maior solenidade da Igreja, pois celebra e renova a cada ano este evento,

carregado de todos os anúncios do Antigo Testamento e de todas as esperanças e as esperas escatológicas

projetadas para a plenitude do tempo, com a chegada do Reino de Deus, na história do homem e no universo.

VIII. OS DOGMAS CRISTOLÓGICOS

As primeiras comunidades não se preocuparam em formular a fé de maneira precisa. Paulo dá os primeiros

passos nesta direção, mas depois, com as perseguições, não havia ambiente para refletir a fé, importava salvar

a pele!

8 KÜNG, Hans. Credo. Profissão de fé apostólica explicada ao Homem contemporâneo. Lisboa, Instituto Piaget, 1992, 128.

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14

Somente no século IV, depois de o cristianismo ter se tornado a religião oficial do Império Romano as

reflexões acerca da fé cristã puderam ser desenvolvidas. Ao mesmo tempo, cresceram as interrogações sobre a

validade desta fé em contraste com a fé dos gregos. O desafio não era pequeno: como traduzir uma fé narrada

em termos judaicos, para uma cultura grega, desconhecedora do judaísmo?

Várias hipóteses a respeito de Jesus foram sendo elaboradas, dentre elas pode-se lembrar:

Adocionismo: Crença de que Jesus nasceu meramente humano e que se tornou divino mais tarde em sua

vida.

Apolinarianismo: Crença de que Jesus tinha um corpo e alma inferior (a sede das emoções) humana, mas

uma mente divina. Apolinário ainda ensinou que as almas dos homens foram propagadas por outras almas,

assim como seus corpos. Proposta por Apolinário de Laodiceia (m. 390). Declarada como uma heresia em 381

pelo Primeiro Concílio de Constantinopla.

Arianismo: Os ensinamentos aprovada pelo teólogo Ário quais se afirma que Cristo deveria ser dado toda

honra, mas não a divindade, o que entra em conflito com a doutrina da união hipostática da natureza (Cristo

era totalmente divino e totalmente humano) que foi realizada pela Igreja Católica. Segundo Ário só existe um

Deus e Jesus é seu filho e não o próprio. A doutrina é associado com Ário (c. 250 dC - 336), que viveu e

ensinou em Alexandria, Egito. Ário foi condenado como herege no Concílio de Niceia, mais tarde ilibado e

depois declarado herege novamente depois de sua morte.

Docetismo: Crença de que o corpo físico de Jesus foi uma ilusão, como foi a sua crucificação, ou seja,

Jesus apenas parecia ter um corpo físico e morreu fisicamente, mas na realidade ele era imaterial, um espírito

puro e, portanto, não poderia morrer fisicamente. O Docetismo foi rejeitado pelos concílios ecumênicos e pelo

cristianismo, e em grande parte desapareceu durante o primeiro milênio. Movimentos gnósticos que

sobreviveram passado esse tempo, como o catarismo, incorpora crenças do docetismo, mas esses movimentos

seriam destruídos pela Cruzada albigense (1209 - 1229).

Macedonianismo: Crença de que o Espírito Santo foi uma criação do Filho, e um servo do Pai e do Filho.

Fundado no século IV pelo Bispo Macedônio I de Constantinopla. Professavam uma opinião semelhante à do

arianismo, mas, aparentemente, negando a divindade do Espírito Santo, e quanto ao mérito de Jesus Cristo

como sendo o mesmo em espécie, como a de Deus Pai. Isto é o que motivou a inclusão de "E no Espírito

Santo, o Senhor, o Doador da vida, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho é igualmente adorado e

glorificado, que falou pelos Profetas", no Credo Niceno no segundo concílio ecumênico. Foram considerados

como uma seita herética pela Igreja dominante. Os membros da seita eram também conhecidos como

pneumatomachi, os "combatentes do espírito".

Monarquianismo: Enfatizou a indivisibilidade de Deus (Pai) em detrimento das outras pessoas da

Santíssima Trindade.

Monofisismo ou Eutiquianismo: Crença de que Cristo tem apenas uma natureza (divina), em oposição à

posição de Calcedônia, que sustenta que Cristo tem duas naturezas, uma divina e uma humana ou a posição do

Miafisismo que sustenta que a natureza humana e divina de Cristo foram unidas como um humano do ponto

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de natureza divina partir da Encarnação. Depois que o Nestorianismo foi rejeitado com o Primeiro Concílio de

Éfeso, Eutiques surgiu com opiniões diametralmente opostas. Eutiques foi excomungado em 448. O

Monofisismo e Eutiques foram rejeitados no Concílio de Calcedónia em 451. O Monofisismo também é

rejeitado pelas Igrejas de Ortodoxia Oriental.

Monotelismo: Crença de que Jesus Cristo tinha duas naturezas, mas apenas uma vontade. Isto é contrário à

interpretação ortodoxa da cristologia, que ensina que Jesus Cristo tem duas vontades (humana e divina),

correspondentes a suas duas naturezas Originado na Armênia e Síria, em 633 dC. O Monotelismo foi

oficialmente condenado no Terceiro Concílio de Constantinopla (o sexto concílio ecumênico, 680-681). As

igrejas em Constantinopla que condenaram incluem, as igreja Ortodoxa Oriental e a Igreja maronita, embora

neguem que jamais realizada a visão monotelista. Cristãos na Inglaterra, rejeitou a posição Monotelista no

Concílio de Hatfield em 680.

Nestorianismo: Crença de que Cristo existe como duas pessoas, o Jesus humano e o Filho de Deus divino

ou Logos, ao invés de duas naturezas (verdadeiro Deus e verdadeiro homem) de uma pessoa divina. A

doutrina é identificada com Nestório (c. 386-c. 451), Arcebispo de Constantinopla. Esta visão de Cristo foi

condenada no Concílio de Éfeso em 431, e os conflitos sobre essa visão levou ao cisma nestoriano, separando

a Igreja Assíria do Oriente da Igreja bizantina.

Os dogmas querem guardar para nós a memória da fé em Jesus, para que possamos a partir de nossas novas

experiências ser fiel à verdade de Jesus. Devemos escapar de dois extremos. De um lado, construir a cada

momento um Jesus segundo nosso sabor e desejos. Nesse caso, ele seria projeção de nossas necessidades e

interesses e nunca uma revelação do próprio Deus. De outro lado, evitar a fixação do dogma numa fórmula

jurídico-religiosa que deva ser aceite independentemente de ter ou não significado para nossas experiências de

hoje.

O dogma não é uma comunicação de um conteúdo de fé, como um axioma de matemática. Ele é uma

profissão de fé. Está elaborado na linguagem simbólica, própria da fé. E, em cada geração, ele deve ser

apropriado de modo que tenha sentido de vida. Tal necessidade de reinterpretação advém do fato de que os

contextos históricos de sua formulação ontem e de sua interpretação hoje são diversos. Além disso, nenhuma

formulação dogmática esgota a totalidade da verdade revelada de modo que sempre se poderá ir apondo novas

achegas. Evidentemente, a moldura filosófico-cultural, em que o dogma se formulou, varia ao longo da

história e sofre transformações. Os dogmas não se situam no nível da informação, nem do puro conhecimento

teórico, mas dirigem-se à totalidade da pessoa, como valores existenciais a serem apropriados, vividos. A

humanidade caminha em direção a uma maior maturidade, posto não de um modo linear. E os dogmas

necessitam responder a esse processo.9

9 A partir daqui, sigo o Pe. João Batista Libânio, in www.jblibanio.com.br/modules/ smartsection/item.php?itemid=158.

Page 16: Elementos fundamentais de cristologia   frei oton

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IX. OS PRIMEIROS PASSOS DA FÉ CRISTOLÓGICA

A fé da Igreja em Jesus percorreu longa trajetória. Num primeiro momento, teve que afirmar a

originalidade e diferença de Jesus Cristo em relação ao Judaísmo. O Judaísmo caracterizou-se no meio dos

outros povos como o que professava a fé em Javé, o único e verdadeiro Deus. Não aceitava nenhum outro

deus. Como dentro desse rígido monoteísmo professar que Jesus Cristo era Deus? Uma solução fácil foi fazer

de Jesus um deus menor, subordinado ao Pai. Pertence sim à esfera divina, mas como um Logos-

Intermediário, a primeira criatura do Pai.

A fé cristã, formulada de modo lapidar por Atanásio e expressa no Concílio de Nicéia (ano de 325), não

aceita essa dependência do Filho. Ele não é criado por Deus, como afirmava o Ário, mas gerado na unidade de

natureza. Assim recitamos até hoje no Credo mais longo da missa que Jesus é “Deus de Deus, Luz da luz,

Deus verdadeiro de Deus, gerado, não feito, consubstancial ao Pai”. O esforço teológico foi mostrar que a

divindade de Jesus, o Filho, não rompia a unicidade de Deus. Pai e Filho são um só Deus. O Filho pertence à

mesma natureza do Pai. É-lhe consubstancial.

Outra solução fácil não foi aceita pela fé cristã. A unidade e unicidade de Deus se mantém, porque Jesus

foi o próprio Deus Pai entre nós. É a mesma pessoa de tal modo que podemos dizer que o Pai sofreu na cruz.

O corpo humano de Jesus era pura aparência ou no máximo feito de uma matéria astral, etérea, sem a

consistência da nossa carne humana. Sua vida humana foi uma ilusão.

Mais uma vez a fé rejeitou este caminho. Os padres da Igreja viram aí um risco enorme na redução da obra

salvadora de Cristo. Formularam de maneira lapidar um axioma que fez história: “Nada pôde ser salvo a não

ser tendo sido assumido”. Se o Verbo divino não assumiu verdadeiramente nossa natureza humana, mas só em

aparência, também estaríamos salvos somente em aparência. Se fomos real e verdadeiramente salvos em nossa

humanidade, deveu o Verbo assumir verdadeiramente a nossa natureza.

Outro problema vinha da parte das pessoas que conheceram Jesus na carne e presenciaram seu fracasso na

cruz. Foram tentadas a afirmar que Jesus era um mero homem. Foi necessário salientar-lhe então a dimensão

transcendente em contraste com sua fraqueza, sem romper a unicidade de Deus.

Por sua vez, diante paganismo politeísta dos gregos e romanos, acostumados a endeusar criaturas e a

inserir com facilidade mais um deus em seu Panteon, cabia afirmar a verdadeira natureza divina de Jesus,

dentro do monoteísmo, apresentando a unidade de Jesus com o Pai.

Sob outro aspecto, a humanidade de Jesus, o mistério da ressurreição corporal precisavam ser enfatizados

em oposição à visão grega de desprezo da matéria, de identificação da pessoa humana com a alma, de uma

imortalidade da alma absolutamente independente do corpo na contemplação das idéias puras e perfeitas.

Estavam assim ameaçados gravemente o mistério da ressurreição dos corpos, a obra redentora de Cristo, a

seriedade e o caráter definitivo da Encarnação. Desta sorte, a fé da Igreja foi fazendo seu caminho no meio às

disputas, aos desvios, à busca de fidelidade à experiência primigênia de Jesus.

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Na Antiguidade, duas Escolas impuseram-se, com sua verdade e seus exageros, no campo da filosofia e

sobretudo da teologia. Uma sediada em Alexandria, outra em Antioquia.

A Escola de Alexandria

No pano de fundo desta Escola, reinava o pensamento platônico em suas diversas versões. Na leitura da

Escritura, buscava-se o sentido alegórico, espiritual. No campo sistemático, predominava a especulação de

altíssimo vôo. Na espiritualidade, almejava-se obter uma união mística com o Uno, o Absoluto.

Não era de estranhar que, ao enfrentar o problema de Jesus, os pertencentes a essa Escola se prendessem

mais à sua divindade, reduzindo-lhe a humanidade. A figura de Cristo era joanina. Ele é Deus que caminhou

entre nós, que ostentou um corpo a modo de um órgão, um instrumento de sua divindade. Transferiam para a

relação entre divindade e humanidade de Cristo o esquema corpo e alma. O papel e relevância, que eles

atribuíam à alma em relação ao corpo na natureza humana, se reproduziam na maneira como a divindade de

Jesus se relacionava com o seu corpo.

O Logos fazia-se de tal modo presente na pessooa de Jesus que diante dele se estava em adoração face-a-

face com o Logos divino. O movimento de descida do Logos à nossa humanidade foi para elevar-nos até a

divindade. A vida histórica de Jesus perdia importância como revelação do próprio ser de Deus. No fundo,

Jesus era visto como se fosse quase uma única natureza divina, enquanto a humanidade refletia antes o limite,

a imperfeição. Na vida humana de Jesus, atribuíram-se ao Logos divino os atos espirituais mais elevados

como a oração, a vitória sobre o medo da carne. A totalidade humana de Jesus, corpo e alma, era encurtada.

Desaparecia praticamente a importância teológica da alma humana, sendo sua função atribuída ao Logos

divino. Temos assim um Jesus humanamente diminuído e um Logos crescido de modo que Jesus não passava

de um instrumento do Logos divino.

A Escola de Antioquia

Esta Escola volta sua atenção para a humanidade de Jesus. O modelo, que subjazia a seu pensamento, era a

relação entre o Logos divino e o homem Jesus todo. Reagia às posições dos maniqueus que desprezavam a

importância do corpo, da matéria. Também se afastava da opinião dos gnósticos que insistiam sobre o aspecto

de conhecimento da salvação. Para os antioquenos, Jesus nos salvou, porque assumiu a totalidade de nossa

humanidade.

Mais ainda. O Logos assumiu uma humanidade com todos os seus limites. Ele renunciou o modo divino de

atuar entre nós, para tomar a forma de escravo (Fl 2,6-7). Para a Escola de Alexandria era difícil entender isso,

já que o Logos infinito era o princípio vital do homem Jesus. Logo, era um Jesus que tudo sabia, tudo podia,

sem limites.

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A escola de Antioquia, pelo contrário, valorizava as decisões humanas de Jesus. Seu itinerário salvífico foi

sendo traçado pelos atos da liberdade humana de Jesus. A natureza humana de Jesus era totalmente humana.

Não se confundia com a divina nem se misturava, embora numa unidade de pessoa.

Se para a Escola de Alexandria era fácil entender a unidade da pessoa divina de Jesus, tinha dificuldade de

valorizar-lhe a humanidade. Para a Escola de Antioquia acontecia o contrário. Debatia-se com o difícil

problema de ver em Jesus uma só pessoa divina, já que acentuava a sua natureza humana inteira.

O Concílio de Calcedônia: a síntese (ano 451)

As duas escolas desenvolviam suas posições, ora indo ao extremo de quase negar a humanidade de Jesus

(Escola de Alexandria), ora praticamente afirmando a existência de uma pessoa humana ao lado da divina

(Escola de Antioquia). No entanto, ambas as escolas sabiam que deveriam defender a dupla realidade de

Jesus: homem e Deus. Mas, no decorrer das explicações, perdiam-se em impasses.

Mais que uma explicação teológica totalmente amadurecida, o Concílio de Calcedônia encontrou uma

fórmula verbal de enorme sentido simbólico. Doravante a fé cristã tem um ponto de apoio inconcusso. As

interpretações continuarão ao longo dos séculos, ora inclinando-se mais para a valorização da divindade, ora

da humanidade. Mas nunca se poderá esquecer nenhuma das duas realidades.

A definição do Concílio de Calcedônia, considerada em sua fórmula, tem uma beleza e perfeição

impressionantes. E mais maravilhados ficamos quando nos adentramos no entrevero histórico do evento

conciliar. Os Padres conciliares não teriam redigido nenhuma fórmula dogmática, se o Imperador Marciano

não os tivesse coagido a tal. Eles julgavam que as definições anteriores de Nicéia (325) e Éfeso (431) seriam

suficientes.

Os caminhos de Deus passam precisamente pelas contingências humanas, políticas. A radicalização da

disputa entre as duas Escolas de Alexandria e Antioquia forçou, por bem da paz, que se buscasse um caminho.

Tememos muitas vezes as tensões e são precisamente elas que impulsionam a história para momentos ricos de

síntese.

Hoje estranhamos ao saber que, nesses primeiros concílios, os emissários dos Imperadores intervinham

poderosamente sobre decisões dogmáticas, já que naqueles tempos o Império se fundava na unidade da fé

católica. Fissuras nesse edifício afetavam a própria estrutura do Império. Assim, em Calcedônia, lá estavam os

representantes do Imperador. Foram eles que forçaram os Padres a decidirem entre a posição defendida pelo

Papa Leão Magno e a por Dióscuro, que substituíra S. Cirilo na Sede de Alexandria.

A fé de Calcedônia tem uma solenidade belíssima. O Concílio põe-se no seguimento dos Santos Padres

que o antecederam, “confessando um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo”. Esta primeira afirmação

já é sintomática. O Filho e Jesus Cristo é uma única e mesma pessoa. Tradição que remonta a Paulo e João, e

que Santo Irineu já tinha formulado de modo lapidar. “Perfeito na divindade e perfeito na humanidade”. Não

lhe falta nada para ser “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. É uma abundância de expressões

para que não restasse nenhuma dúvida de que Jesus participava da nossa mesma natureza humana como da

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mesma natureza divina. Semelhante a nós em tudo, exceto no pecado. De novo o texto insiste que é o mesmo

e único Cristo, o Filho e Senhor unigênito, gerado antes de todos os séculos pelo Pai segundo a divindade e

nos últimos tempos gerado por Maria Virgem, mãe de Deus, segundo a humanidade.

A sua unidade não é composta de duas naturezas que se fundissem numa única pessoa, mas esta única

pessoa existe em duas naturezas de modo inconfuso, imutável, individido e inseparável de maneira que a

união nunca pudesse afetar a diferença de naturezas, mas antes mantivesse salvas as propriedades de ambas.

São admiráveis os quatro advérbios que o Concílio usa para, de modo negativo, rejeitar tanto uma união

que destruísse a verdade da natureza divina e humana, como uma que as colocasse de modo paralelo a

comprometer a unidade de pessoa. Uma pessoa e duas naturezas completas e perfeitas. Eis o núcleo do dogma

que a longa tradição deverá guardar, reinterpretando sempre em seus esquemas culturais próprios.

Dois advérbios querem evitar ou que se entendam as naturezas da pessoa de Jesus como que confundidas

uma na outra ou que uma afetasse a outra de tal maneira que a humanidade ficasse demasiado divina ou a

divindade demasiado humana. Os outros dois advérbios vão em direção oposta. Afastam a idéia de um Jesus

com duas naturezas divididas e separadas, como dois registros independentes.

A reflexão teológica atual

Apesar da inegável firmeza do Concílio de Calcedônia em afirmar a verdade completa e perfeita das duas

naturezas em Jesus, humana e divina, pela força de nossos hábitos intelectuais, espirituais e desejos

inconscientes, o peso da reflexão salientou sempre mais em Jesus a divindade. O modo humano de Jesus

proceder, conforme os relatos evangélicos, eram interpretados como se Jesus deixasse sempre a impressão de

um “fazer de conta”. Ele sabia tudo, mas fazia de conta que não e então perguntava, admirava-se diante de

surpresas. Ele podia tudo, mas fazia de conta que era impotente diante dos inimigos, da morte. Ele gozava de

total domínio de sua natureza humana, mas fazia de conta que se submetia às suas condições.

Já faz bom tempo que a teologia vem tomando muito mais a sério as afirmações da Escritura e o fato de

Jesus ter assumido em tudo a condição humana, de servo, exceto no pecado. Inverteram-se os sinais. Em vez

de interpretar a humanidade de Jesus a partir da idéia dos atributos divinos que conhecemos pela filosofia,

começamos a entender o divino em Jesus a partir da manifestação de sua dimensão humana nos evangelhos.

Nada é tão divino em Jesus quanto sua extrema humanidade! O divino em Jesus faz-se limitado no humano. É

a fraqueza e o limite do amor de Deus, que respeita a liberdade humana. Este parece o caminho que mais

responde a nossas perguntas e experiências. Penetrar no mistério de Jesus se faz seguindo e conhecendo seu

proceder humano entre nós.

Acima de tudo, segui-lo

Segui-lo, dizia o evangelho: compartilhar sua vida, deixar-se impregnar por seu estilo, senti-lo como

companheiro em nosso caminho. E já sabemos, porque ele mesmo o disse, que para esse caminho não se

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necessita de alforjes: não é preciso uma cultura especial nem determinado grau de brilho ou de poder social.

Segui-lo e pronto: como o coração bom de quem se preocupa de verdade com os demais; com a humildade de

quem conhece o sabor do perdão; com a confiança de quem sabe que tem um Pai. Segui-lo porque podemos

encontrá-lo: na leitura espontânea do evangelho, com o seguimento aberto; no trabalho sincero pelo irmão;

na vivência multiforme do amor. Segui-lo sabendo que o seguimento nos aproximará uns dos outros e

transformará o mundo. (Andrés Torres Queiruga, Repensar a Cristologia, 23)

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

Andrés Torres QUEIRUGA, Repensar a Cristologia: Sondagens para um novo paradigma, São Paulo,

Paulinas, 1999, 18.

Gilberto TEIXEIRA, Curso de Cristologia, Betim, 1999.

Hans KÜNG, Credo. Profissão de fé apostólica explicada ao Homem contemporâneo. Lisboa, Instituto

Piaget, 1992.

José Maria CASTILLO, A humanidade de Deus e a humanidade de Jesus, FAJE-BH.

www.jblibanio.com.br

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CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO (325-381)

Credo in unum Deum, Creio em um só Deus,

Patrem omnipoténtem, Pai todo-poderoso,

Factórem cæli et terræ, Criador do Céu e da Terra,

Visibílium ómnium et invisibílium. De todas as coisas visíveis e invisíveis.

Et in unum Dóminum Iesum Christum, Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,

Fílium Dei Unigénitum, Filho Unigênito de Deus,

Et ex Patre natum ante ómnia sæcula. nascido do Pai antes de todos os séculos:

Deum de Deo, lumen de lúmine, Deum verum de Deo vero, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus

verdadeiro;

Génitum, non factum, consubstantiálem Patri: gerado, não criado, consubstancial ao Pai.

Per quem ómnia facta sunt. Por Ele todas as coisas foram feitas

Qui propter nos hómines et propter nostram salútem E por nós, homens, e para nossa salvação

Descéndit de cælis. desceu dos Céus.

Et incarnátus est de Spíritu Sancto E encarnou pelo Espírito Santo,

Ex María Vírgine, et homo factus est. no seio da Virgem Maria e se fez homem.

Crucifíxus étiam pro nobis sub Póntio Piláto; Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos;

Passus, et sepúltus est, padeceu e foi sepultado.

Et resurréxit tértia die, secúndum Scriptúras, Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras;

Et ascéndit in cælum, sedet ad déxteram Patris. e subiu aos Céus, onde está sentado à direita do Pai.

Et íterum ventúrus est cum glória, De novo há-de vir em sua glória

Iudicáre vivos et mórtuos, para julgar os vivos e os mortos;

Cuius regni non erit finis. e o seu Reino não terá fim.

Et in Spíritum Sanctum, Dóminum et vivificántem: Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida,

Qui ex Patre Filióque procédit. que procede do Pai e do Filho;

Qui cum Patre et Fílio simul adorátur et conglorificátur: e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado:

Qui locútus est per prophétas. Ele que falou pelos Profetas.

Et unam, sanctam, cathólicam et apostólicam Ecclésiam. Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica.

Confíteor unum baptísma in remissiónem peccatorum. Professo um só batismo para a remissão dos pecados.

Et expecto resurrectionem mortuorum, E espero a ressurreição dos mortos

Et vitam ventúri sæculi. Amen. E a vida do mundo que há-de vir. Amém.