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I v ~:0 :~~. ~.': \ ELEY, Geoff. A História da Esquerda na Europa. São Paulo: Abramo, Z005. pp.157-Z02 . -~. I t ~. I ti ~ -!1. .;t I ,'I; .i}' i~ í I 1/4. :i tif ,~ :.~> A RUPTURA DA GUERRA: Crise e reconstrução da esquerda, 1914-1917 ~ .. ~j t s :.~,' A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL MUDOU dramaticamente o lugar do socialismo na orga- nização política. Depois de serem o inimigo interno, os socialdemocratas de toda a Europa qç~jªJam o consenso patriótiso, defendendo a segurança nacional contra a agressão estrangeira e mantendo uma trégua-d~~é~ti~~dura~t~a g~~~~. )\-~dida que 1 os Estados forçavam seus súditos .;.l_sactifí~i.9s..iné.Qi!Q.~,- as transformações resultantes na c~i~i~~iíQ.U.c:;~ foram eXtraordinárias. Essa longa situação crític~ -d~-época d~'guer- ! ,- .' ..-.~- ".-" '" > •• - ,' ••• - ._,~ .••. _~""'-"'- ! r ra estimulou lealdades nacionalistas em intensidades até então desconhecidas, facili-I _~ '>/ tando a integração dos movimentos de trabalhadores ao consenso patriótico e transfor-] í' mando o "interesse nacional" na nova moldura hegemônica do socialismo moderado. \ \ Notavelmente, dadas as histórias de exclusão intransigente anteriores a 1914, os sacia- 1 listas também entraram pela primeira vez no governo. Durante o mesmo período, o grande levante revolucionário com centro na Rússia , alterou profundamente a geografia política da Europa. Inicialmente, o entusiasmo da i esquerda pelos acontecimentos na Rússia foi inteiramente ecumênico, inspirando tanto .\ socialistas moderados corno anarquistas, sindicalistas revolucionários e outros radi- cais. Mas a simpatia pela queda do czarismo, o epítome do atraso reacionário, era urna coisa; apoiar os bolcheviques era outra completamente diferente. Admitir a Rússia no campo democrático em fevereiro de 1917 transformou-se, em outubro, em coisa muito i mais ameaçadora: pela primeira vez um partido socialista revolucionário tinha chega- ' do ao poder ~l~:yi~l,~~g;. Renunciando ao tradicional parlamentarismo da esquerda, ' o bolchevismo proclamava, em seu lugar, a nova legitimidade dos Sovietes baseada na : classe. A ominosa "ditadura do proletariado" passou a circular publicamente. ' Poucos países não foram tocados pelas insurreições populares em 1917-18, e algu- mas experiências revolucionárias de curta duração na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Itália seguiram o exemplo russo. Ademais, no Leste e na periferia ocidental da ~:t .,,,' .~ i :g; ",t .'t'; ~~~. t... c. 157

ELEY Geoff A história da esquerda na Europa 157-202

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\ ELEY, Geoff. A História da Esquerda na Europa. São Paulo: Abramo, Z005. pp.157-Z02. -~.

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A RUPTURADA GUERRA:Crise e reconstrução daesquerda, 1914-1917

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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL MUDOU dramaticamente o lugar do socialismo na orga-nização política. Depois de serem o inimigo interno, os socialdemocratas de toda aEuropa qç~jªJam o consenso patriótiso, defendendo a segurança nacional contra aagressão estrangeira e mantendo uma trégua-d~~é~ti~~dura~t~a g~~~~. )\-~dida que 1os Estados forçavam seus súditos .;.l_sactifí~i.9s..iné.Qi!Q.~,-as transformações resultantesna c~i~i~~iíQ.U.c:;~foram eXtraordinárias. Essa longa situação crític~ -d~-época d~'guer- !

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Durante o mesmo período, o grande levante revolucionário com centro na Rússia ,alterou profundamente a geografia política da Europa. Inicialmente, o entusiasmo da i

esquerda pelos acontecimentos na Rússia foi inteiramente ecumênico, inspirando tanto .\socialistas moderados corno anarquistas, sindicalistas revolucionários e outros radi-cais. Mas a simpatia pela queda do czarismo, o epítome do atraso reacionário, era urnacoisa; apoiar os bolcheviques era outra completamente diferente. Admitir a Rússia nocampo democrático em fevereiro de 1917 transformou-se, em outubro, em coisa muito imais ameaçadora: pela primeira vez um partido socialista revolucionário tinha chega- 'do ao poder ~l~:yi~l,~~g;. Renunciando ao tradicional parlamentarismo da esquerda, 'o bolchevismo proclamava, em seu lugar, a nova legitimidade dos Sovietes baseada na :classe. A ominosa "ditadura do proletariado" passou a circular publicamente. '

Poucos países não foram tocados pelas insurreições populares em 1917-18, e algu-mas experiências revolucionárias de curta duração na Alemanha, na Áustria, na Hungriae na Itália seguiram o exemplo russo. Ademais, no Leste e na periferia ocidental da

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FORJANDO A [)EMOCRACIA

·Europa, na Irlanda, os dois motivos, o "nacional" e o "revolucionário", coincidirampoderosamente quandov'revoluções nacionais" transformaram as ruínas dos impériosmultinacionais Habsburgo, Romanov, Otomano e Hohenzolern, !'- !l~e!!a no O_cidente{gi ~pljr.!1(.!!ia!pJ:_nte_um~. luta entre E~taºQ.~~~!~citos p~;:di.~~bui~ão d2 poder", aopasso que,n~Oriente,.'.'a_gg~ra lipertou ct\U_QQ!r-ºled~..9. ant<\g9nismos nacionais,

; .c!~.(;la~~.~.€,:_S.9Çiªi~CI1}(;Hti~',..abrindº-.!!!Th'LY-~~Qadeiracaixa de Pandora de subversão'. A· turbulência revolucionária que se seguiu a 1917 foi decisiva para o futuro, principalmen-

.~· te por provocar oportunidades contra-revolucionárias para o fascismo. No primeiro mo-· mente, ela dividiu o movimento socialista europeu: depois de se beneficiar da longa

aglutinação socialdemocrata anterior a 1914, os .movimentos da classe trabalhadora fo-· ram desde então irremediavelmente divididos entre socialistas e comunistas.\ Com a possível exceção da década de 1860, a guerra trouxe a mais concentrada e: singular transformação social pau-européia desde a Revolução Francesa. À parte a

horrível mortandade, a guerra móvel na Frente Oriental deslocou enormes populaçõespelo mapa. E o impacto da guerra atingiu todas as esferas da vida social. Ela redefiniu

· ,~!elação entre goverf1Q.!e.~,Ç.Q!1ºr!1jjl,trazendo uma centralização inesperad~·d~-p;:odu-'. ção, distribuição e consumo, promovendo a expans~º~~~lguns setores em prejuízo de· outros (armas e produção destinada à guerra em prejuízo dos bens de consumo) e: gerando uma nova f,ÇJ$lÇ.~Qtriangj!@r en!r~.E.s.t.aclQ~capita~ trabalh2" o que demandou

~?!>.ili~~0?.t.a_"!to l?~.~í}l~~~..i.~~0!~giC:~55'_I"0~~e~SS?E~~.O crescimento do patriotis-• mo durante a guerra se apoiou numa ~~.aJ()rl11~~~.~?fltr.ato ~().s.\~:ao fazer demandas• sobre a lealdade popular, o_~~~mos ince~i~<l:fan1. certa~e2'peçt!!t!'y.ª,~.de reforma no· pós-guerra e, na percepção popular, QS sacrifíciosda guerra seriam.c~Ú~~m-•.pensa.9_o.~.~~_.~)(!?~ns.~9~~i.c!~~a. Isso significou uma en~f.!!.1~J:I.Qª.Dçª_4e..~ns-· .ciênci~. Estava claro na imaginação popular: ao final da guerra, as coisas teriam de

• mudar.

A CRISE DA SEGUNDA INTERNACIONAL

A guerra emboscou os socialistas da Europa. Ironicamente, ela chegou no pico de umacampanha européia pela paz, quando tanto o X Congresso da Internacional Socialistacomo o XXI Congresso pela Paz Universal estavam programados para se reunir emagosto-setembro de 1914 em Viena, bem no centro da crise diplomática que detonou aguerra. As tensões nos Bálcãs havia muito eram bem conhecidas, e as esperanças dereprimir o assassinato de Francisco Ferdinando em Sarajevo, no dia 28 de junho, aindapersistiam, mesmo depois do ultimato austríaco à Sérvia no dia 23 de julho. No entan-to, quando o Birô Socialista Internacional (ISB) se reuniu em 29-30 de julho, a guerraentre a Áustria e a Sérvia já estava definida.

O Birô tentou manter a dignidade, transferindo o Congresso de Viena para Paris eapelando para :1 arbitragem internacional. Como disse Hugo IIaase, co-presidente do

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:~;~~-. A RUPTURA DA GlJERRA

.",:-t\ SPD, os protestos contra a guerra na Segunda Internacional talvez não tivessem efeito,mas pelo menos "podemos ter a satisfação do dever cumprido?", Mas, depois de um

dia, a.~9bilização geral da Rússia havi~ .~~tru~~5.'!..~S'~.~.~s.p~rspec:ti yª.s. de confinaraguerra aos Bálcâs, Em }2 de agosto, os parârnetros haviam se alterado completamente.A Internacional era impotente para impedir a guerra. Mesmo a opção mais prosaica dossocialistas, coordenar a oposição parlamentar à guerra país por país, se revelou um atodesesperado) .

~~~?.nhecendo a impotência daInternacional, . .o.s.~~iali.s.t:l~'pa~s.?r.~rp..imediQ.~~_mentea ap_oi?:~_~..g-,!~a. No dia 4 de agosto, os socialistas alemães - depois de umsofrido debate - e franceses aprovaram os créditos de guerra de seus respectivos go-vernos. Os socialistas da Bélgica, da Grã-Bretanha, da Áustria e da Hungria adotaramo "defensismo nacional", como também o fizeram os partidos socialistas da Suíça neu-tra, da Holanda, da Suécia e da Dinamarca. Minorias dissidentes não chegaram a arra-nhar o escudo de resignação patriótica. Nos países beligerantes, apenas as esquerdasda Sérvia e da Rússia divergiram desse padrão - os dois socialdernocratas no Legisla-tivo sérvio condenaram o ultimato austríaco, bem como o nacionalismo de seu própriogoverno, enquanto na Duma russa bolcheviques e mencheviques se uniram ao PartidoTrabalhista de Alexander Kerensky na oposição à guerra. Entre os neutros, tanto ossocialistas italianos como a facção "Estreita" dos socialdemocratas búlgaros condena-ram a guerra em 1914, mantendo essa posição mesmo após a entrada de seus governosno conflito, em 1915. Mas, apesar dessas exceções, e para todos os fins práticos, 0/'

velho intemacionalismo estava enterrado.No clímax da Crise de Julho, a esquerda voltara os olhos para Berlim, pois o SPD

era o principal partido da Internacional, o defensor de suas tradições declaradas. Ini-cialmente, a executiva do partido convocou manifestações de massa pela paz, que che-garam ao clímax em 28-30 de julho, exatamente quando a Áustria-Hungria declaravaguerra à Sérvia. Foi uma grande demonstração de força - 30 mil manifestantes emBerlim, 35 mil em Dresden, 50 mil em Leipzig, 20 mil em Düsscldorf e Hanover, 10mil em Brernen, Colônia e Mannheim, e em outras cidades. Mas os comícios se realiza--. ...... ,--- ..... __ ..._ ..

rarn emre~iJltoJ~~ha~o., sem nenhuma campa~~~ de..manifestações de rua e.a_<:.~!:.aberto. Nunca se chegou a pensar numa greve geral. O SPD evitou contestar diretamen-te adisposição pública de ardentecha:u.~1.rÚ~;;lo, ~gue t0r.!l01l}11aisfácil desrnobilizar a'E1.i!i!âQ..c2ilquando "paz'~ se. transformou em "defesa ~~~i~nal'::" A Vorwãrts já soavaessa nota em 30 de julho e, em 2-3 de agosto, os Sindicatos Livres e a representação doSPD no Reiehstag tornaram-na oficial. No dia 4 de agosto de 191.~, o partido votouunanimemente no Reichstag pelos créditos de guerra do governo alemão".

As motivações eram variadas. A resignação teve papel importante, refletindo ostemores exagerados dos poderes repressivos do Estado gerrnano-prussiago. A lideran-ça se recusou a arriscar as realizações da organização em confrontações do tipo tudo-ou-nada e desconsiderou a eficácia de ações revolucionárias. Além do mais, o traba-

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lhismo francês não seguiria a greve geral alemã, pensavam eles, um ceticismo confir-mado pelo assassinato de Jaurês, o mais apaix.onado defensor francês do internaciona-lismo. Com as evidências crescentes de entusiasmo popular com a guerra, os líderes do

" SPO duvidaram até da resposta de seus próprios militantes a uma convocação contra a~j guerra. A definição do conflito pelo governo como ~.~uerra contra a agressão czaristaI foi o golpe de mi~ticÓ@.ia. Dadas as conotações históricas de (~ilção czaris.tll..e de1 atraso eslavo para a esquerda alemã, isso deu ao SPO argumentos positivos para sei j~"ãõbíõZo patriótico. Evidentemente, esse tipo de justificação "progressista" tarn-! bém fl:Jnci0.!2..C:~P~a...9,~,~, ~ que lhes pelmiHu.xilifi.<Jlt.Q.S-ªlemães. Como disseI Haase a um camarada francês durante um almoço em Bruxelas: "Se só os franceses\! estivessem em questão, nossa atitude teria sido simples. Mas havia os russos. O que a

J ~9ta prussi~E.~~i_g_n.~~<:v_~para vocês, o ch!co~2:!:!~~ificava para ~S"5.

Sob essa coerção escondiam-se as agendas posteriores. A maioria da liderançado SPD demonstrou um pragmatismo obstinado mas pleno de consciência de clas-se, carregado de nacionalismo. Esperavam uma explosão reformista quando os tra-balhadores tivessem demonstrado sua lealdade. Como disse ao governo um dosprincipais reformistas do SPD, Eduard David, "as centenas de milhares de socialde-mocratas convictos que estão dando tudo pelo esforço de guerra esperavam comorecompensa alguma forma de reconhecimento de seus próprios desejos'", o quesignificava a tão esperada introdução do voto universal na Prússia, além de umpacote de reformas sociais. Para os sindicatos, significava a sanção legal da nego-ciação coletiva e a total participação na administração da economia. Em resumo, aemergência da guerra prometia uma base duradoura para a aceitação do movimen-to de trabalhadores na nação.

Motivos "puramente" nacionalistas eram inseparáveis desses cálculos reformistas.Desertar da pátria na hora de perigo era um estigma que o SPD se recusou a carregar,principalmente quando o agressor parecia ser o porta-estandarte da reação européia. Aconvocação à unidade nacional foi a chance de sair do sereno. Para Ludwig Frank, umadas estrelas reformistas do movimento, que se apresentou como voluntário em 1914 emorreu na Frente Ocidental na primeira ofensiva alemã, isso assumiu uma forma parti-cularrnente dramática. Como ele escreveu da frente de batalha: "Em vez de uma grevegeral estamos lutando uma guerra pelo sufrágio prussiano", Ou em outra de suas frases:"Estarnos defendendo a pátria par<1COl1q~li.~!fi.:la1'"

A proposta de renunciar ao internacionalismo revolucionário em favor de limareforma democrática alemã não era nova, mas a guerra permitiu que essa idéia flores-cesse. Os reformistas passaram a falar com mais confiança em converter a socialderno-cracia numa "democracia nacional", em se chegar a uma "forma º~l.d.amentar democrá-tica de governochefjéld.ap.~itmQnª~qll~~'~. Os defensores ;~ai~diretos tinh~m·i~·i~;;docontatos com o governo em 1914: Eduard David, Albert Südekum, Max Cohen-Reuss.Com apoio da Executiva do SPO e de Karl Legien, presidente dos Sindicatos Livres.

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e: eles rapidamente definiram o tom no parlamento e nas declarações públicas do SPD.Adisciplina partidária foi endurecida, e as bases mais fortes da ala esquerda, como adiretoria da Vorwârts, foram expurgadas. A lógica se tornou mais clara com o passar daguerra. Essa direita do SPD se ajustou com incrível facilidade à violação da neutralida-de belga pela Alemanha e à invasão da França, abandºIill.I1g9.JaçÜa.m~l)t~.afórmulaJI~uma gl}.~rra defensiva c9.nlL'L~LçzID~IlliLEm agosto de 1915, eles já se opunham àli~h~I..i~i0.'!lio partido, de paz sem anexaç~sPD ad~t2u_~r;~ci~~í~~ç?o·ª~~~~j.e~ 1

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A ESQUERDA SE REAGRUPA[~:.

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Os socialistas em outros países se igualaram aos alemães no patriotismo". Na Grã-Bretanha e na França, o consenso os absorveu mais profundamente: Jules Guesde eMarcel Sembat entraram no governo da França em 28 de agosto de 1914; seis mesesdepois, três membros do Partido Trabalhista Britânico aceitaram cargos no governo.Socialistas de todos os lados criaram justificativas altissonantes. Austríacos e húngarosestavam defendendo a cultura da Europa contra o despotismo oriental; os alemães es-tavam fazendo o mesmo, ao libertar povos oprimidos pelo despotismo czarista; osingleses e franceses defendiam a democracia contra o tacão prussiano. O legado jacobinoda guerra revolucionária foi adaptado para fins nacionalistas na França, assim como oanátema democrático do czarismo na Alemanha. Em compensação, a atitude de oposi-ção à guelra dos socialistas italianos se tomou ainda mais notável, apesar da passivida-de prática do PSIdepois da intervenção italiana em maio de 1915. Na Rússia, um czarismopoliticamente reacionário tornou mais fácil para a esquerda se posicionar contra a guerra,enquanto os socialistas italianos enfrentavam pressões semelhantes às de seus corres-pondentes alemães, franceses ou britânicos.

Abraçar o patriotismo foi mais fácil na Grã-Bretanha e na França, onde tradiçõesmais longas de governo parlamentar ou republicano permitiam apresentar a guerracomo a defesa da democracia contra o militarismo. Para o SPD na Alemanha, no entan-to, o "defensismo nacional" passou a ser o caminho para os mesmos ideais parlamenta-ristas. Pesadarnente sindicalizado na sua política de guerra, o SPD avançou confiante-mente em direção a um futuro reformista, ignorando com desprezo os críticos da alaesquerda, enquanto fixava um olhar preocupado na insatisfação popular. Por toda aEuropa, a esquerda foi simplesmente desarmada pela aparente universalidade do pa-triotismo em 1914. "Os trabalhadores foram carregados por uma irresistível onda denacionalismo", alegou mais tarde Albert Merrheim, "c não teriam deixado à polícia atarefa de atirar em nós. Teriam atirado eles mesmos". Mas havia também um sentido deoportunidade histórica, que levava a esquerda a agir. Nas palavras de Leon Jouhaux,secretário-geral da CGT: "É preciso abandonar a política de brandir os punhos a fim de

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adotar a política de estar presente nos problemas da nação. [... ] Precisamos estar emtodo lugar onde os interesses dos trabalhadores estejam em discussão"!",

No outono de 1914, os socialistas da direita estavam criando suas novas posiçõesnacionalistas. No congresso de Viena em abril de 1915, os partidos socialistas daspotências centrais poderiam ter usado a retórica da independência nacional e da defesacontra a Rússia, mas a marcha do exército alemão através da Bélgica tinha deixado oSPD numa posição de aguda desvantagem moral, acusado pelos antigos companheirosfranceses, belgas e britânicos de endossar a agressão militar de seu governo. Em Lon-dres, em 14 de fevereiro de 1915, esses três partidos, ao lado dos RevolucionáriosSocialistas da Rússia (nem bolcheviques nem mencheviques foram convidados), forameloqüentes nessas denúncias: a guerra contra a Alemanha era uma guerra pela demo-cracia, e a derrota da Alemanha seria a salvação da democracia.

Os socialistas dos países neutros tentaram uma mediação. Várias iniciauvas foramrapidamente tentadas - de Estados Unidos, Suécia, Holanda, Itália e Suíça - mas semresultados. Os esforços de refazer a unidade socialista só começaram a dar resultadosmais tarde, com dois acontecimentos externos: <UI}Lç[email protected]~ ..wº.Q..QrowWilson,

iniciad_~.e_m_s!.~~fIl\:>!.ode 1916, ~B~volll_~Russa de feEr.~i2.skl2.!.2. Seguiram-se atividades febris, enquanto o SPD, os socialistas ocidentais e os líderes socialistasneutros manobravam, cada um, em busca de influência junto aos grupos socialistas naRússia. Os holandeses, liderados por Pie ter Troelstra, finalmente ignoraram os belgasrecalcitrantes e, em 15 de abri I de 1917, convocaram um congresso internacional emEstocolmo em seu próprio nome, formando um comitê organizador holandês-escandinavo no dia 10 de maio. Foram convidados todos os filiados do ISB, inclusive asfacções minoritárias produzidas pela guerra. Mas a grande questão era saber se ossocialistas aliados se sentariam com os alemães 11.

Nesse mesmo período, na Suíça, um movimento declaradarnente de oposição, emgrande parte não-oficial, tentou retomar os partidos nacionais dos "socialpatriotas" ereformistas. Na primavera de 1915, já havia sinais de um ressurgimento da esquerda.Na Alemanha, um terço do grupo parlamentar do SPD já se opunha aos créditos deguerra. Os radicais formaram o Grupo Internacional, enquanto os moderados se aven-turaram em críticas públicas à liderança". No 1º de maio, na França, o jornal dosmetalúrgicos se opôs à guerra. Enquanto isso, congressos internacionais de mulheres edepois de jovens se reuniram em Berna, enquanto o suíço Robert Grimm, jornalistasocialista de esquerda, atiçava o fogo, ajudado pelo partido italiano e por exiladosrussos e poloneses. O resultado foram os congressosInteruaciouais ..n~_yilaSJleZimmerwald (setembrod~1~_15) e Kienthalfabrilde 19~_~L

Zimmerwald era um fórum vital da esquerda emergente, que deu origem à Comis-são Socialista Internacional (rsc). Psicologicamente, depois da derrocada de 1914, suasignificância foi imensa, embora nas condições de guerra não estivesse claro o quepoderia ser feito. A resposta de Lenin, num dos extremos de Zimmerwald, foi exigir

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A RUPTURA DAGUERRA,i~~ uma nova Internacional. Mas esse era um ponto de vista claramente minoritário, confi-

nado aos notoriamente divididos bolcheviques e a alguns outros. Os demais, principal-mente os franceses e alemães, se recusaram a quebrar a trégua civil. A maioria dosdelegados não se sentia em condições de negar velhas alianças. Somente uma campa-nha_p.etª-J.~.az,em vez de novos lemas revolucionários, diziam eles:~--;:iãcondlçãô de.' : . .._---------,~..•------.__. ", .. ,-'. '" .

sUJl5:!~__a des!!!.ºIªJ.i.~,,ª@2.~os trabalhadores. O principal consenso foi um compromis-·s~a!11~rfu"pela paz numa S~g~'~'d;"i~t~;";;;;o~al re~ovadalj:' ." _... - --- . --..-.-

. ... Já ~-;K;~~th~I~;;êõiSãs-ilr'-hâmSerãOiêãllz-âao.A principal resolução agora ataca-

va as lideranças reformistas dos partidos beligerantes e a passividade do ISB. Original-mente, foram também propostas sanções: primeiro, a executiva do ISB deveria serreforrnulada com os partidos não-beligerantes; depois, os partidos filiados deveriamexpulsar os socialistas que ainda estivessem ocupando cargos no governo, recusar cré-ditos de guerra e quebrar a trégua civil. Foi uma clara guinada à esquerda. Somente osdelegados franceses aplicaram o freio, opondo-se a todos os pontos da resolução pro-posta, enquanto Pavel Aksel'rod, o menchevique, agia de forma totalmente conciliado-ra. A verdadeira intransigência veio dos bolcheviques de Lenin, que denunciaram todacooperação com o [SB. Não conseguiram convencer a maioria, que ainda receava umrompimento. Mas o núcleo da esquerda em Zimmerwald havia crescido de 8 para 12,com apoio flutuante em questões particulares".

Quais foram as características de Zimmerwald? A mais evidente foi a proeminên-ciada.periferia russa ..c- do. .Leste, .óaJ~l.!r9.I?1l, que ap~~se~touo-g-rüpõ- ~ai;f~rt~'d"~partidos nacionais que compareceram oficialmente em Zirnmerwald, entre eles, as fac-ções bolchevique e menchevique dos social democratas russos, o partido da Letônia, oBund, os revolucionários sociais, o SDKPiL e os socialdernocratas sérvios, romenos ebúlgaros (Estreitos). A lista de presenças foi completada pela ala esquerda do PPS, pelafacção polonesa da oposição do SPD (Rosa Luxemburgo, Leo Jogiches, Karl Radek) epelo grupo parisiense Golos/Nashe Slovo, influente nas rodas pacifistas francesas. Otrabalho de base foi feito por Christian Rakovsky, o delegado romeno e futurobo1chevique que solidificou contatos em Milão, Paris e Suíça antes de se filiar aospartidos romeno, búlgaro, grego e sérvio na Federação Revolucionária Socialdernocra-ta Balcânica, o primeiro reagrupamento internacional da guerra, Finalmente, a perife-ria do Sul também foi fundamental. Os socialistas portugueses se filiaram e enviaramEdrnondo Peluso a Kienthal. Mas os socialistas italianos foram o apoio organizacionaldecisivo e o maior partido europeu ocidental a se filiar.

Os socialdernccratas suíços foram outro importante filiado: embora a liderançadesautorizasse Grimrn em outubro de 1915, o congresso do partido reabilitou-o poresmagadora maioria no mês seguinte, aceitou o Manifesto de Zimrnerwald e filiou-se àISCIS• Além desses, a ISC atraiu pequenos grupos de oposição no Ocidente: o GrupoTribuna da Holanda; a Liga Socialdemocrata da Juventude da Suécia; os SocialistasInternacionais da Alemanha, grupo reunido por Julius Borchardt depois de Zimmmer-

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wald, além do mais circunspccto Grupo Internacional; o Comitê de Ação Internacio-nal, reunido pelos zirnmerwaldianos franceses em novembro de 1915; e o Partido So-cialista Britânico e o ILP da Grã-Bretanha,

Simpatias a Zimmerwald se cristalizavam na Alemanha e na França. Em 1915, aoposição antiguerra do SPD abrangia desde o radical Grupo Internacional até os mode-rados reunidos em tomo de Haase, Kautsky e Bernstein, com bolsões locais em Berlirn,Bremen, Stuttgart e Dresden. Então, a maioria do SPD levou a situação ao rompimento:Liebknecht foi expulso do grupo parlamentar por 60 votos contra 25, o que levou outroradical, Ouo Rühle, de Dresden, a renunciar em solidariedade. Com outros 18 deputa-dos expulsos por votarem contra o orçamento de emergência, eles fundaram o GrupoTrabalhista Socialdemocrata dentro do partido existente. Ao longo de 1916, resoluçõesda ala esquerda também avançaram na SFlO.

Até que ponto houve uma posição coerente contra a guerra entre tos extremos daala direita da socialdernocracia e da exigência revolucionária de rompimento apresen-tada por Lenin? A irritação dos que se opunham à guerra implicou políticas revolucio-nárias em vez de apenas "pacifistas"? A oposição à guerra gerou intenções anticapita-listas? Evidentemente, associar abstratamente a paz à vitória do socialismo já não sa-tisfazia aos boJcheviques, que queriam o rompimento definitivo com a Segunda Inter-nacional. Mas eles só conseguiram reunir 8 dos 38 delegados em Zimmerwald e 12 dos39 em Kienthal, e a maior parte da esquerda ainda receava o rompimento". Aindaassim, a principal motivação em Zimmerwald foi a paz, para fazer a esquerda se moveroutra vez; em Kienthal, a insistência de Lenin em clareza atraía os revolucionáriosdeclarados. Durante 1916, isso galvanizou as maiores delegações - italianos, polone-ses, e russos não-bolcheviques, alguns dos franceses e spartakistas (como o GrupoInternacional passou a ser conhecido), a esquerda de Bremen e os Socialistas Interna-cionais na Alemanha. Em seguida, era necessário mover também as mais amplas es-querdas parlamentares franco-alemãs.

, . Esses alinhamentos prefigura varn os anos revolucionários de 1917 a 1921. A ampla, ~..s.(l.!:I~.r:cj.3!.an~Ü2~1J.<:.0_~,u~miúdereverteu à socialdemocracia durante a cisão comunista-

socialista da década de 1920. Isso também valeu para os zirnmerwaldianos suíços,alguns dos franceses, a maioria dos principais dirigentes italianos e a maior parte dosoposicionistas alemães. Em compensação, os jovens zimmerwaldianos nascidos nosanos 1880 ajudaram a fundar os partidos comunistas dos mesmos países e figuraramproeminentemente no Cornintem. Os zimrnerwaldianos poloneses formaram o núcleodo Partido Comunista Polonês nos anos entre as guerras, e a continuidade entre o Gru-po Internacional e o Punido Comunista Alemão foi especialmente forte, Acima de tudo,a liderança bolchevique foi refeita por causa de Zimmerwald. O futuro Comitê Centraldo Partido Bolchevique em 19 J 7 e as principais personalidades do Estado soviéticod~sc:eTlger_aULdos.ill1cmaciQnª,l!~1'!1de 1211:..1 7. Originalmente heterogêneos, suas pers-

'" pectivas se tomaram claras em virtude da incansável linha revolucionária de Lenin.

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Finalmente, quem estava ausente de Zirnmcrwald? Em primeiro .lugar, nenhumgrande partido da Europa Ocidental ou Central esteve oficialmente presente, nem mes-mo o núcleo socialdemocrata da Europa Central e do Norte antes da guerra: o Traba-lhismo Britânico, a SFIO, os partidos belga e holandês, os partidos escandinavos (com aexceção parcial do norueguês) e os socialdernocratas alemães, austríacos, tchecos ehúngaros; apenas os seus rivais sectários e minorias eloqüentes se uniram à ISC. Emsegundo lugar, os nacionalistas não-russos do império czarista também não se fizeramrepresentar. Os zimmerwaldianos Ietões e poloneses rejeitaram explicitamente a auto-determinação nacional, e o Bund judeu não enviou delegados exatamente pela mesmarazão. Nenhuma das revoluções nacionais de 1917-21 nas antigas terras czaristas -Finlândia, Ucrânia, Geórgia - passou perto de Zirnrnerwald: nem as dos antigos territó-rios habsburgos da Europa Centro-Oriental em 1918-1917• Em terceiro lugar, com ex-)ceção dos três filiados americanos e da Liga Socialista Internacional da África do Sul,o.mundo.exrra-europeu estevé êõrnpleIãiilente-ã'üSehte~ niim "c6iiti:aslenofáveT'comõ Iinteresse global gerado p~i~R~~;i~çã~R~~~~pela Terceira Internacional.l

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Fora de Zimmerwald, começou a surgir lentamente um ressentimento das bases contra

_~s privações dagllerr~~8. Evidentemente, ~~ PC?~ít!c-aspopulares .f~r~~_"s~~~~~m~12terestringidas pelas condições de guerra. Não só as liberdades civis foram limitadas pe-k;s regulamentos'de em~igê-;;cT;:";;;;; o clima público da trégua civil atacou diretamen-te a oposição. As restrições eram tanto ideológicas corno policial-repressivas. Um enormecompromisso - fosse ele coragem moral ou fanfarronice - era necessário para alguémse declarar publicamente contra a guerra. De fato, muitas instituições locais do movi-mento de trabalhadores reagiram à guerra mobilizando positivamente a solidariedadesocial. Essa reação foi especialmente notável na França, onde os socialistas organiza-ram inúmeras medidas sociais para as famílias dos soldados e para outros necessitadosem 1914- I5, oferecendo refeições comunitárias e outros tipos de apoio". Mesmo quandosurgiu a insatisfação, a trégua civil perpetuou uma linguagem particular que usou oconsenso patriótico idealizado como seu terreno comum.

À medida que a guerra se arrastava, a esquerda descobriu que esse consenso erauma fraqueza e uma força. Apelos à comunidade patriótica tanto criaram aberturaspotenciais para agitação esquerdista como inicialmente forçaram-na ao silêncio. Noscálculos da direita, a guerra deveria com toda certeza banir a oposição, como na famo-sa declaração de Guilherme li em 4 de agosto de 1914: "Não reconheço mais partidos;só reconheço os alemães'?", Mas essa atitude poderia facilmente tornar-se um tiro pelaculatra. O consenso patriótico não obedecia apenas ~ pr~ssão insistente dos sindical!s-tas Q!:!?,gn:lá.tiç.Q.sem busca da recompensa reformista, mas também aos ideais populares

-d~-justiça social~6 iato de s-e~olocar no int;ric)rde-sse consenso libertou os defensor~s. "'~-------~._---., .. -...•

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FORJANDO A DEMOCRACIA

das classes trabalhadoras para exigir uma distribuição mais eqüitativa dos sofrimentosda guerra, geralmente através da ação militante direta, seguros na justificação moraloferecida pelos apelos do governo ao sacrifício comum. O entusiasmo bélico deu à

'{ . esquerda a alavancagem vital quando as agruras começaram a se fazer sentir, p~~~ as~-: qlJ~llWLp-o.di;mLl.IsaLaIlles..maJif1&'!..~~elT!i1Qrovada pelo patriotismo oficial. As de si-li gualdades de classe, agravadas pela escassez da economia de guerra, foram um terreno

, \ óbvio para a reclamação popular.No espaço de um ano, as privaçõesda classe trabalhadora exauriram a retórica do

sacrifício patriótico - o que se viu, por exemplo, nos protestos pela falta de alimentosi em Berlim na primavera de 1915, ou na recusa de pagamento das taxas de arrendarnen-Ito em Clydeside entre maio e novembro de 1915. A trégua civil não foi capaz de abafarII a combatividade de classe na esfera econômica. Com a continuação da guerra, oI igualitarismo nos editoriais socialistas era acompanhado do aumento do ressentimentoI da classe trabalhadora com o racionamento de alimentos e o mercado negro, a quedai nos salários reais e a piora das condições de trabalho, a militarização da economia e a\ carnificina crescente na frente de batalha". A insatisfação era alimentada pelo abismo\ entre as exortações do governo ao sacrifício comum e a experiência de desigualdade daimaioria do povo.I

Na Alemanha, o divisor de águas foi o verão de 1916. O racionamento de alimen-tos provocou manifestações em Düsseldorf, Frankfurt, Kiel e Hamburgo, e extensossaques em outras cidades, especialmente violentos em Leipzig, Worms, Offenbach,Hamborn e Hamburgo. Tudo isso coincidiu com a Batalha do Som me e as maioresbaixas da guerra. As manifestações contra a guerra, organizadas pelos esquerdistas doSPD, ocorreram em Dresden, Stuttgart, Braunschweig e Bremen. No Centro houveaçõesparcialmente espontâneas em favor de Karl Liebknecht, condenado a trabalhos força-dos em j unho de 1916 por ter se oposto à guerra. Cerca de 60% dos trabalhadores de 65fábricas de Berlim (55 mil trabalhadores) responderam à convocação de greve pelosdelegados sindicais do sindicato dos metalúrgicos, e ações similares aconteceram emBraunschweig e Bremen.

Por trás dessa atividade estava a reestruturação da classe trabalhadora na econo-mia de guerra. Uma quantidade enorme de hom~I.1:~.~stava.D.º_~x.~Lcito, que mais quedobrou na Alemanha, passando de 5 milhões p'~·~.II_I1~~~~~~.9.l!!~~a. Isso nãoapenas deprimiu a força de trabalho industrial, mas também exigiu recrutamento maci-ço de mulheres e jovens para indústrias antes unicamente masculinas. Já em .1.2.18, as

mulheres haviam passado de p% par:?:34% do total da força <l~~~~~~l~? Em doisanos, o trabalho feminino na indústria metalúrgica alemã ~ubiuçle.}'1o.p_a.ril23~.d.o_Jo.t~J, e !'(i indústria elétrica,_de21~_.Q~I.a._~ ..?~' 1'-IaFrança, um (mm:to da força detrabalho da indústria de gue.rIª-já era f~~maéíopor mulheres em 1918" e nas indústriasmetalúrgicas de Paris chegava a um terço •.Na Alemanha, as indústrias mineradoras,siderúrgica, metalúrgica e química empregavam em 1918 seis vezes mais mulheres do

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!\ RUPTURA DA GUERRA

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que em 1913. Crescimento igual ocorreu na França, e na Grã-Bretanha o número demulheres empregadas na metalurgia e química aumentou de 212 mil para 947 mil emnovembrode 191822. __ . .00 • -'.. • •••••••••••••••• •

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A mobilização econômica envolveu uma grande reorganização da economia. In-dústrias que não estavam ligadas à guerra evidentemente sofreram. O trabalho foi des-locado para os setores que produzia~_9.irela.r..n~!1~_~_P_<l!~.~~~ra,euja força de trabalhoaumentou em~_% na Alemanh~!!tre 1914 e 1918.: eng~D~_<;~lQ.~,:1s.t!',i~~.9~J2..az"e"r@s.~~D.iver:am...quedas .deAo.%.e.21% •..resp.e.çtl'@..!I!\?j).1~;3Ao estudar o radicalismotrabalhista, os historiadores se concentraram nos grandes conglomerados de produçãode guerra, como os centros alemães de metalurgia e engenharia em Berlirn, no Ruhr eem Stuttgart; as indústrias químicas de Leverkusen, Ludwigshafen e Merseburg; com-plexos comparáveis de munições em Viena, Budapeste, Pilsen e Turim; e centros equi-valentes na Grã-Bretanha e na França. Mas nos centros menores de conversão indus-trial o impacto não foi menos intenso.

O recrutamento para a guerra também envolveu enormes migrações. Na Itália, apopulação de Turim aumentou em um quarto entre 1911 e 1918, dobrando o número deassalariados de 79 mil para 185 mil (ou um terço da população total?". Outras econo-mias não conseguiram atender às suas necessidades de mão-de-obra com a populaçãodo campo: a fonte alternativa na Grã-Bretanha foram as mulheres, e na Alemanha osestrangeiros conscritos" . Foi a interação desses recém-chegados com as tradições exis- .~tentes do movimento de trabalhadores que se mostrou explosiva. Nos centros maisradicais, um influxo turbulento de mulheres, jovens e novos recrutas semiqualificadosou sem qualificação estava pronto para "seguir a liderança dos trabalhadores qualifica-dos bem pagos que capitalizavam sua indispensabilidade e o papel auto-imposto devanguarda da classe trabalhadora'<" . Esses trabalhadores de "guerra" estavam relati-vamente mais protegidos contra a conscrição e foram menos atingidos pela erosão dospadrões de vida. Mas a "diluição" em novos trabalhadores apressadamente treinadosameaçay~ ~sh!~r~~quia.s de..tl:al;>a!1]2,os dif~~;;-~ci;i~ de~~iáriôs·eãs ir;\cÚçÕ~;'prof~-

_sj.o.flais~()s.t~~.!J3l~.~9()E~s..g~.'.l!i~~~:~?S,acoluna dorsal dos sindic~.~os. ep~ti?~s socia-li~ta~ de antesda guerra,:.

Nesse sentido, a guerra transformQ.u.il.x<.)ªÇ.~.Q_e:J1Jr.e:9.IDo.v.il]~~I.Jt~.!!.~!?~~~~~aclasse oflerária em geral, que estava sendo drasticamente recomposta. Em 1917, 64'70 .:.. " .."- -~.. _-._- ..- •.._- --_ - -.- - -_ _" . -'-.-."." -.- .•~-dos sindicalistas alemães estavam na frente de batalha, e o quadro de membros do SPD

havia caído de mais de 1 milhão para meros 243 mil. Não é de surpreender que osseguidores mais fiéis do socialismo - os homens qualificados e não-conscritos da me-talurgia - começassem a se queixar da trégua civil e seus efeitos. No entanto, viam-secercados por colegas de trabalho - !'1}!,l.]ll~res,jovens,.1rabalhnd9re.s ..sem._treiQ<).I11.eJl~9-

qt:l~~E~I!I_o__~~!~r.~ótipo do con~á!.:io da consciê~~~~.9~ class~. Essa alteração na socio-logia do trabalho foi fundamental para o crescimento acelerado da militância de baseem 1917-18. Não foi possível conter nem o "novo" trabalhador antes desorganizado,

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FORJANDO A DEMOCRACIA

nem os "velhos" politicamente experientes. Onde um carecia das lealdades formativasdas tradições do movimento anteriores a ]914, os outros sentiam essas tradições preju-

dicadas pelas necessidades da economia de guerra.Ao abrir acesso sem precedentes à tomada de decisão no Estado e na indústria, a

economia de guerra centralmente regulamentada trouxe ganhos reais para a liderançasocialista e partidária. Os socialistas da direita esperavam investir seu patriotismo emreformas, administrando astutamente a recente influência do trabalhismo organizado.Mas os trabalhadores no chão-de- fábrica sentiram esses ganhos institucionais comomais privações. Além da miséria humana de matar, aleijar e separar provocada pelaguerra e dos efeitos horríveis de uma guerra longa nos padrões de vida, a influência dotrabalhismo oficial foi paga com o prejuízo das necessidades do trabalhador no chão-de-fábrica. Se a regulamentação da economia de guerra era percebida como uma formade "socialismo" por socialistas da direita e burocratas dos sindicatos, parao trabalha-dor comum ela significou a~ent()~ .d2}i.!E10 de pr<?dllx~o, suspe.~~ã.Qdos regulamen-tos de fábrica, redução dos pa(h:õ.es..de..s.eg.~a, cOllgc::lame!l.t.Q_ºº~direitos sindicais.~ásiZ9~.~ ;;ç.r.9i"~;aliZã.cta..cte..CDJltra1L ---- -- l_I'

Assim, a integração dos socialistas no governo foi acompanhada da <t)i~~ção da ;base trabalhadora., Na Grã-Bretanha, por exemplo, o controle nacional da oferta de /trabalho foi realizado por meio do Acordo do Tesouro, acertado entre governo e sindi-catos em março de 1915, grandemente endurecido pelas conscrições feitas de acordocom as Leis de Serviço Militar de janeiro-julho de 1916. Para atropelar assim direitose práticas tr~b~íhf~i;~-e~;b~íecidos, os líderes trabalhistas garantiram algo em com-pensação: um sistema de isenção do serviço militar para trabalhadores qualificados;uma estrutura de conciliação industrial, inclusive o Ministério do Trabalho, Comissõesde Agitação Industrial e o Comitê Whitley de Conselhos Industriais; e promessas de

. reforma social no pós-guerra. Quando se formou a Coalizão Lloyd George, em dezem-bro de 1916, a entrada do Partido Trabalhista no governo e a criaçãod9Jv1inistério do

. Trabalho foram essenciais para esse realinhamento político".Isso se ajustou às próprias esperanças reformistas do movimento oficial de traba-

lhadores, articulado na Grã-Bretanha por meio do Comitê Nacional dos Trabalhadorespara a Emergência de Guerra". Noutros países da Europa, as ações reguladoras doEstado foram mais autoritárias, envolvendo a rápida militarização da força de trabalhoe controles mais rígidos. Exemplo notável disso foi a Itália, onde Comitês Centrais eRegionais de Mobilização Industrial administraram um sistema draconiano de discipli-na militar em todas as empresas ligadas ao esforço de guerra, subordinando os traba-Ihadores a determinados termos de emprego sob pena de demissão, prisão militar ouenvio para a frente de batalha. Nos dez últimos meses de guerra, 19.018 trabalhadoresforam condenados a trabalhos forçados e outros 9.522 à prisão comuri)'pºLª~ªlldona-rem o empregoououtras infraç5~S;' ;'~p-res~l;tã'~dà-cerca de J 0% de todos os trabalha-dores "militares" ou "isentos" em~~rtas indústrias "auxiliares'?".

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A RUPTURA DA GUERRA

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Assim, em certos casos, os ganhos conquistados pela liderança dos trabalhadoresdif!c~I~~m~J'ºmmnQ!.~.dosp~k>~~tt~b~lbad;~;;_c~~u~. Os sindic~tos representadosnos Comitês Italianos de Mobilização Industrial envolveram-se pesadamente emarbitrações e adquiriram a legitimação de facto que os sindicatos ingleses obtiverampela ~ç!!"!1l~~~a.ç.!~.d_aconscri~. Mas, enquanto o Sindicato dos Metalúrgicos (FIOM)

e seu secretário, Bruno Buozzi, talvez tenham ficado satisfeitos, os rnetalúrgios, entreos quais os próprios membros do FIOM, que passaram de 11 mil para 47 mil durante aguerra, não ficaram. Os militantes italianos de base se voltaram cada vez mais contra osistema da MObilização, ~~g~~~~~d;~;;~~ss-uaspr6i;rEisCoillisSõe;:Iiitern-àS-. Neste

caso, ~PL~IT.J~~.~~d.eT~teg·r~ç~ci-.·ªõ.s.~~~í)_ájFâª~[eS·2ãs~Ii~~aHg:~~ã.i~~~~~?nt:~~o -~!12ITl.()v.Lmentocomba~b'~_q~h.?~ti}.i~~?~_de c1~_s~ acentuando ~ ~l1sQ.J!I'pª~iI;>H.i~?~~..~t:J~reos.ínteresses dos trabal~~~~~~_c.!?,".(;~ei~~~ A versão inglesa das Comissões Internasfoi o movimento de delegados sindicais, que se espalhou de Clydeside em 1915·16 aSheffield e outros centros produtores de munições. Nas palavras do Comitê de Traba-lhadores de Clyde: "Vamos apoiar a liderança sindical enquanto ela representar corre-tamente os trabalhadores, mas vamos agir independentemente tão logo ela passe a )representá-los mal'?", .

Depois de dois anos de guerra, essa atitude criou grandes tensões em todos os •movimentos trabalhistas nacionais. ~_LeidoServiçQAu~i!!ar Patriótico Alemão (Y~izembro de 1916) encapsulou bem essa contradição. De um lado, foi um sucesso notá-vel para o sindicato e para a direita do SPD. Embora fosse dirigida originalmente para amilitarização completa do trabalho, visando carrear trabalhadores para as indústriasque mais necessitassem deles, a medida foi parcialmente apropriada por Karl Legien eseus companheiros socialistas quando aprovada no Reichstag. Ela criou conselhos dearbitração com representação sindical, que se estendia potencialmente a questões ge-rais de salários e condições de trabalho. Para Legien, esse foi um ganho decisivo dereconhecimento sindical, arrancado do governo contra a dura oposição dos emprega-dores. Ela interrompeu a drenagem de associados dos sindicatos. Para a direita do SPD,

foi o principal fruto da nova orientação colaboracionista. Ainda assim, aLeiaprofundou J

a-.fQI)1pIjcidade dos sil~~~~,:t~~..?o..POliCi~lrTle_n,t~ d_e..sey~ ~s?o~.i~cl.Q_L.Scna prática ~ 1\

mudança de emprego dos metalúrgicos qualificados foi pouco reduzida, a Lei não che-gou a aliviar suas queixas, D~r~nte o pior inverno da guerra, esse último ato patriótico Ida liderança só conséguíú ampliar o abismo entre as políticas oficiais ~?_IE_o..:::ime0~e !os desejos da base".

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No final de 1916, uma conjunção de fatores provocou uma radicalizaçãoemescalaeuropéia ..As cruéis privações da gu.e!!a, o retomo da m.iEt.~ncia da.!Jª~e. !r.l~llstri~I, oreagrupamento da esquerda revolucionária em Zirnmerwald e o crescimento da politi-

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IOIUANDO A DEMOCRACiA

ca antibelicista na corrente principal do socialismo geraram tensões no consenso pa-triótico de 1914. O grupamento dominante ~?d~ era composto das maio~ias r~9Ernis-tas da maior parte dos partidos socialistas de antes da guerra, cujas lideranças optaram

pela defesa nacional em agosto de 1914; entre eles, não apenas os partidos dos princi-pais combatentes, com a exceção ambígua da Rússia imperial, mas também os neutrosdo Norte na Holanda, na Dinamarca e na Suécia. Entre as exceções estavam os partidosda Itália, da Suíça, dos Bálcãs e dos territórios do império russo, mas mesmo nessescasos .1l9P9~ição à guerra não evitou a emergência de fortes correntes refonn.istas.

À medidaque·ag;;;a~~·~~t~v~:-t~~-;~~se mais difícil manter unido o àinplo

consenso patriótico. A oposição crescia nos movimentos franceses e alemães ao longode 1916, com uma executi va bem equilibrada no congresso da SFIO em dezembro e aformação da oposição no SPD em março. Já no início de 1917, esse processo haviaavançado. Apesar de ninguém na oposição alemã desejar romper com o movimento ecom seu próprio passado, a liderança do SPD não deixou escolha. A executiva do parti-do agiu contra os bastiões da esquerda e assumiu o controle de seus jornais. Quando aoposição tentou se defender contra outras retaliações, a executiva propôs a expulsão.Um partido separado passou a ser a única escolha e, nos dias 6-8 de abril de 1917, oPartido Socialdemocrata Independente (USPD) foi fundado.

Para a liderança do USPD, o rompimento tinha mais fundamentos morais que polí-ticos cuidadosamente avaliados. O que os moveu foi a oposição à colaboração do SPD

com uma guerra de agressão que se tomava crescentemente opressiva para a massa detrabalhadores, o que comprometia as mais caras tradições do movimento. Mas nãoestavam bem claros os pontos em que o USPD discordava do partido original. Ao invo-car as tradições revolucionárias do movimento, os líderes se referiam a uma mistura deagitação extraparlamentar e obstrução parlamentar, não à política revolucionária totaldefendida por Lenin. Reafirmaram o velho, em vez de proclamar o novo; eram a cons-ciência culpada do SPD, que clamava de uma era anterior. Tal como às amplas oposi-ções de esquerda em outros países - na França, ou a convenção nacional de baseconvocada pela esquerda antibelicista inglesa em Leeds, em junho de 1917, ou o"maxirnalisrno" italiano em tomo de Giacinto Serrati -, faltava ao USPD uma visãocoerente ou uma organização popular sólida.

Na extrema esquerda. os filiados explicitamente revolucionários de Zimmerwaldtinham objetivos mais coerentes, mas não tinham apoio popular. É claro que o pequenonúmero de spartakistas alemães ou a Facção Revolucionária Intransigente da Itáliapoderia dar uma idéia falsa de sua força, pois, em condições de guerra, o vanguardisrnodeterminado de alguns agitadores realizava muito": Mas nenhum desses grupos afetouo controle das tradições soclaldernocratas sobre os trabalhadores politicamente cons-cientes. A orientação do neo-sindicalismo revolucionário da esquerda de Bremen embusca do chão-de-fábrica foi mais um rompimento, formando a base do obscuro Socia-listas Internacionais da Alemanha. Na Itália, tradições do sindicalismo revolucionário

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convergiram no futuro movimento de conselhos comunistas em Turim, em tomo dojornal Ordine Nuovo, fundado no 12 de maio de 1919. Mas a ressonância desse grupofoi limitada. Uma oposição de ampla base popular à liderança reformista do movimen-to de trabalhadores foi apropriada pela restrição política durante a guerra, que fortale-ceu tendências à fragmentação sectária .

Contudo, os movimentos da base trabalhadora iam além desses grupamentos. Umindicador foi o número de greves. Na Grã-Bretanha, esse número chegou a cair tantoquanto no continente com o início da guerra: em 1915-16, o número total de grevescaiu de 672 para 532 (e de 401 mil grevistas para 235 mil), mas num nível ainda maisalto que o dos anos de paz de 1902-10 e que a taxa de greves no continente durante aguerra; em 1917-18 os dissídios recuperaram os níveis imediatamente anteriores à guerra,passando de 730 para 1.165 greves e de 575 mil para 932 mil grevistas, respectivamen-te. Em outros países da Europa, o declínio e a recuperação da militância foram maisdramáticos. Dos valores mínimos de 1914-15, as greves francesas passaram de 314 e41 mil grevistas, em 1916, para 696 e 294 mil, em 1917, um nível comparável ao deantes de 1914, mas com mais grevistas envolvidos em menos dissídios. O padrão foiainda mais claro na Alemanha, onde a suspensão abrupta do conflito industrial, emagosto de 1914, foi seguida de uma recuperação gradual, em 1915-16, e de um grandeaumento nos dois anos seguintes".

O caso alemão mostrou dissídios de caráter muito diferente: eles se tornaram maisconcentrados e mais políticos, espelhando a concentração da época de guerra da indús-tria de munições, o entrelaçamento do Estado com a indústria na economia de guerra,o crescimento de sentimentos populares antibelicistas e a ausência crucial de oportuni-dades de expressão política durante a guerra. O padrão típico de antes da guerra fora agreve localizada em firmas pequenas e de porte médio, ditado pela fraqueza dos sindi-catos nos setores mais concentrados da indústria pesada, construção mecânica, quími-ca e engenharia elétrica. Mas esses eram agora precisamente os setores expandidos deprodução de guerra que manifestavam a volta da militância. As condições de guerratambém apagaram a fronteira entre ações econômicas e políticas, tão cuidadosamentepreservadas pelo movimento trabalhista de antes da guerra: numa greve da indústria demunições na fábrica Knorr-Brernse, em Berlim-Lichterfclde, em abril de 1917, umcomício de massa de 1.050 grevistas (cerca de 60% da força de trabalho) discutiuprincipalmente demandas políticas, inclusive a libertação de Liebknecht e outros pre-sos políticos, a remoção das restrições à associação e a outras liberdades, um sistemaadequado de racionamento, a interrrupção do estado de sítio e o fim da guerra semreparações e anexações".

O penado entre abril e setembro de 1917 viu a ruptura do clima político popular daEuropa. Sem exceção, dissolveu-se o consenso patriótico. Na Grã-Bretanha e na Fran-ça, a agitação trabalhista era comparável ao amotinamento do exército": Igualmentegraves, a acumulação contínua dos protestos contra a falta de alimentos e as ações

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I'OIUi\NDO A DEMOCRACIA

diretas das mulheres na Alemanha tomaram a desordem social um fato diário, quefatalmente corroía a crença popular na eficácia do Estado alemão. Desde 1914-15, asmulheres haviam protestado publicamente contra os racionamentos, as desigualdadesde distribuição e a corrupção oficial, obtendo uma notável receptividade do governo"num ciclo de protesto e apaziguamento de que os funcionários não conseguiam esca-par"36. E, no verão de 1917, a paciência popular estava esgotada, enquanto a máquinacentralizada do Estado imperial era incapaz de superar os efeitos do racionamento, daineficiência e do bloqueio aliado. Os protestos femininos contra a falta de alimentos

,:: fundiram-se então com a miJitâ.!!_~~~.!ndi~al- que também era cada vez mais f~~~d~ __cr_t:sc;entemente por mulheres - para desafiar a a!ltori4.ê9.!< ..l?úbliq.

Essa luta diária por-ca-u~~~?Salimentos e da distrib.lJ.içIi.º_MJi.P[\~il.ç9§§.~iaisda gu~rra, com su~·iÓgiçilP.rátiça~~I1~gQÇÚ1~;;:,.I:?Q.Q.y.r.deu força decisiva à oposiçãopopular. Enquanto o governo alemão alardeava uma solidariedade patriót,ica usando aretórica igualitária de sacrifício, participação e comunidade, as desigualdades reaisdavam vida a uma nova política centrada na mulher cidadã-consumidora. Quando a"ditadura da comida" não foi capaz de enfrentar as privações do desastroso "invernodo nabo" de 1916-17, a credibilidade do governo foi profundamente abalada. A inca-pacidade de Georg Michaelis, primeiro como comissário de provisões, em fevereiro de1917, e depois como chanceler, de julho a novembro, assinalou o "fim da confiança nacompetência, na boa-fé e na legitimidade" do Estado. Em Berlirn, o abismo entre go-verno e povo se aprofundou: "À medida que permaneceu intacta, a sociedade civilrecusou qualquer relação ou obrigação para com o Estado, exceto uma relação de ini-

I.mizade. O Estado deixou de ter o direito de pedir coisa alguma aos residentes [de

'.. Berlirn]'?",Uma crise semelhante do Estado estourou na Itália, onde os socialistas, em 21-28

de agosto, foram sacudidos da passividade antibelicista por um levante popular emTurim, provocado pela interrupção no fomecimento de pão. A classe trabalhadora dacidade, diante do poder armado do Estado, levantou barricadas antes de ser derrotada.Vindo de baixo, o levante imediatamente galvanizou os radicais locais e nacionais doPSI, enquanto a repressão resultante dramatizava as divisões entre reformistas e radi-cais no movimento". Como aconteceu em Berlim, os protestos contra a falta de ali-mentos, comandados por mulheres, impeliram a radicalização, convergindo para amilitância sindical, que também era formada principalmente por mulheres. As mulhe-res trabalhadoras foram recrutadas em números crescentes na Itália a partir do final de1916; compunham a maioria dos grevistas no ano seguinte e 21,9% da força de traba-lho da Itália já em 1918. As ações diretas 'eram maciçãS-e- violentas: "ho·~vesaquésdelojas, descarrilamcnto e incêndio de bondes, [...] construção de barricadas, corte daslinhas telefônicas e telegráficas, e ataques às prefeituras". As causas imediatas foram"falta de pão [...] salários baixos [...] custo de vida [...] partida dos soldados [...] [e]punição de trabalhadores". Mas as ações foram "sempre contra a guerra e pela paz'?".

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Houve também ações de massa na Áustria, envolvendo uma série de greves - emDonawitz no fim de março de 1917, nas ferrovias no fim de abril, nas áreas industriaisde Viena em maio, e em SI. Põlten, Fohnsdorf, Knittelfeld e Graz em junho e julho.Repetiu-se a mesma sinergia: ações de protesto contra a falta de alimentos e greves;colapso da confiança no governo; repúdio irritado aos socialistas e líderes sindicais.Na Alemanha, protestos de massa explodiram na primavera: uma greve de metalúrgi-cos entre 16 e 23 de abril, principalmente em Berlirn (cerca de 300 mil trabalhadoresem cerca de 300 fábricas) e Leipzig (30 mil trabalhadores), mas com outras ocorrên-cias em Braunschweig, Dresden, Halle, Hanover, Magdeburg e outras cidades. ~r.~_dll-

çã.od~3.ges de ~ãSlR.~_<:..ip.!!..~~Lr.r:'!i9r.e_~~~ig~!~~j~\.~_y.~í~ica~~que se agravaram numdesafio contra o governo pelo movimento de delegados de fábrica que então nascia epelo recém-fundado USPD. As ações continuaram durante o verão. No distrito militarde Münster, que abrangia o Ruhr, as autoridades relataram 22 casos independentes dedissídio entre 22 de junho e 5 de julho, desde uma greve de três dias de mineiros emWesthausen, perto de Dortrnund, até uma enorme passeata de 3.500 empregados daRheinrnetall em Düsseldorf'".

Apesar de dever muito aos ati vistas de esquerda, essa ira popular cristalizou suaprópria organização. O Comitê de Trabalhadores de Clyde de 1915 e o movimentonacional dos delegados de fábrica pressagiaram esse fenômeno na Grã-Brctanha, se-guido pelas ações dos metalúrgicos de Berlim e Leipzig em abril de 1917. Mas asenormes greves centro-européias na indústria de munições, em janeiro de 1918, deramo verdadeiro impulso. Um milhão de trabalhadores em Viena e na Baixa Áustria, naAlta Áustria, em Estíria e Budapeste entraram em greve fazendo exigências políticas eeconômicas gerais contra a guerra (14-22 de janeiro), seguida por uma semana deações por toda a Alemanha (28 de janeiro), com meio milhão de trabalhadores emBerlim e talvez 4 milhões no total. Esse não foi apenas o maior protesto de massadurante a guerra; foi o maior movimento grevista na história das classes trabalhadorasda Áustria e da Alemanha. Quando a greve cedeu, deixou em seu lugar uma organiza-ção permanente, o Comitê Berlinense de Delegados de Fábrica Revolucionários'".

Essas manifestações de massa de 1917 aconteceram antes da revolução boJcheviquede outubro. Independentemente do papel desempenhado pelos boJcheviques para oresto da Europa em 1918-19, antes de outubro de 1917 os movimentos alemão, austría-co e italiano j~_~flrÜ.ª-m_ºp'r.2prio ritmo. Ainda assim, os acontecimentos de fevereirona Rússia tiveram enorme imp~·tõõõ clima de outros lugares, liberando os desejosantes contidos de paz democrática. Invalidaram a justificativa original dos socialistasaustro- gêrmanicos .. um~· defesa ne~~·ssária<'-~~~t;~aa reação czarista.· poriiritü;· é 'do

1 impacto da Revolução R~·ssa que devo agora tratar. - .- _."... __ ._ - -._- _ ~.. ,. ._--.~.._--.-

A RUl'ruRA DA GUERRA

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Capítulo 8

A REVOLUÇÃO RUSSA

No DIA 27 DE FEVERElRO DE 1917, a ordem pública entrou em colapso enquanto aagitação crescia nas ruas de Petrogrado. MuJh~~~_sl.as tecelagens e das filas de pão!9ram.-2....l!!Q!QI,empurrando umas às outras para frente-;té que '300 mÚ trab~ihadoies7euniram numa greve geral por toda a cidade. Astropas.se, amOtlll3fª!l!:.. Trabalhadoreg e

_solºªQ~~~~..!.~.9.~s.!:',li as. O czar:.N ic;()}~!!l~!1ª,ºQfr:~c;~l.lJid.era!1çª, .m.ª~.<iLslQl-~~Q.a .ºym.a.e __o_Ǻilli~Jj1..2.,?~_~ji~<2'A9. s:~i.!:.A~_l}oit~,J!J?1J]l1.a.assumiu o controle .d,?prQçs;!t$JLLf2...fI2.1~_.?S.9.!l!!.~ TeJE.r.~~~Jyara um nov_()go.,:e!!l5~~Antes, soldados etrabalhadores invadiram a sede da Duma ;)'0 l'àlac'j() --Tauride, onde ressuscitaram o

~2.~i~_t!'!_cl2êJ}-ªº-ª1I)açlgre.s_de.PetrOgra.9~.:.cujos 50 dias de existência, entre outubro edezembro de 1905, haviam simbolizado olegad().p()pula,r ~~:ev()luçãodaqu_el.(!,_~o.Assim, quando o Comitê Temporário indicou finalmente o Governo Provisório de dezministros liberais, no dia 1Q de março de 1917, ele não dividia apenas o Palácio Tauride,mas também o exercício da soberania. O Governo Provisório foi formado em consultascom a Executiva do Soviete, e juntos eles criaram a Comissão Militar conjunta paramanter a ordem pública. O czar, q!:l~.a!Jcljc;m·ª--IlQ._d,ja..~...s!~D:13[SC?,era carta fora dobaralho, !!I~s.nenhuma auto~i~..a.d~__Ü!q,ll~~~iC?n.0:~La..s.~l!.~~~.!!l~rl.

Esse foi o famoso "poder dual", Enquanto o Governo Provisório buscava a legi-timidade futura de uma Constituição parlamentar, o Soviete reivindicou a legitimida-de das ruas, mais dura e imedi'~!<;l.Exigindo a democratização do exér~ito;~I~qi:I'imtoadotava uma atitude inegável de guerra de classes, o Soviete proclamou sua autori-jli.c!e militar. O poder real- "o poder de convocar o povopara a~~à~: 'd~faietas •- ._ .." .._ .....-coisas funcionarem ou se desmancharem" - estava com o Soviete, não com o gover·no" E essa separaçãc.institucional se fazia acompanhar de uma p~.::rizaçã?s()~~al:entre a sociedade privilegiada das classes proprietárias e as esperanças igualitáriasdo povo .

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FORJANDO A DEMOCRACIA

o PODER DUAL: A DINÂMICA DA RADICALlZAÇÃO

Inicialmente, houve essa divisão conveniente entre direita e esquerda, em que o libera-lismo moderado do Governo Provisório se contrapôs aos socialismos do Soviete, O

. governo pretendia organizar eleições e uma Assembléia Constituinte, estabelecer o,_ . império do direito e implementar, de modo geral, a "revolução burguesa"; o Soviete se

encarregaria da administração prática e garantiria os maiores benefícios para a classetrabalhadora no sistema parlamentar a ser então criado. Os dois marchariam na mesma

direção, mas separados.Contudo, as esperanças populares foram mais rápidas que esses objetivos limita-

dos fixados para a revolução pela primeira liderança do Soviete. ºs camp~~i-~iam_~~[().rl!lª-agI:ária imediata; os trj!!!alhadores queriam voz ativa na economia. Elestambém esperavam qlle os~ºvie.Le.sjQ.S~illÜD.stitw::io~nstitaüçªo, de uma

: forma que dificilmente se ajustaria a um sistema parlamentar. Mais importante, o! "defensismo nacional" proposto pela Executiva do Soviete não se ajustava à disposi-i ção do povo. No chão-de-fábrica, nas ruas e entre os soldados, as atitudes eram con-

\vencionais: dar urnf(lJ!-ª-.guet:J:QeJazer.:voltar os.ex~s.A polarização social rapidamente fez explodir a estrutura política da revolução bur-

guesa. Em vez de responder à pressão da base, os líderes do Soviete se entrincheiraramatrás de objetivos nitidamente moderados. Depois da crise Miliukov, em abril de 1917,os socialistas dirigentes se juntaram à coalizão a fim de ampliar sua base, apenas parasuportar o fardo inevitável de suas deficiências'. Na teoria, as novas pastas da esquerda-os ministérios de Trabalho, Agricultura, Abastecimento, Correios e Telégrafos, Justiça eGuerra _ davam muito espaço para a iniciativa revolucionária. Mas os novos ministroseram muito tolhidos por interpretações limitadas do potencial da revolução, enquantomesmo reformas modestas continuavam bloqueadas. Portanto, exatamente quando a opi-nião popular se voltava contra o Governo Provisório, os socialistas moderados foramtentados a defender as políticas do governo, comprometendo desastrosamente suas cre-denciais populares. Essa foi a chave da crise de abril, o insolúvel "problema da autoJida-de dual, polarização social e os futuros objetivos e direção da revolução?'.

O período de abril-outubro de 1917 foi uma história de contradições crescentes.As expectativas populares superaram a vontade declinante do governo em todas asfrentes; e, enquanto a sociedade russa se mobilizava, decaía a capacidade do governo:quando simplesmente tomou as terras, os camponeses o acusaram de estar protelandoa reforma agrária; quando não l1egociou a flaz, perdeu a lealdade dos solgados. Aºf~Jl::siva militar de junho foi um desastre. O moral entrou emcolapso. Seguiram-se mani-festações populares em 18 de junh~,~~om grandes desorde~-n~; dias 3-5 de julho, osDias de Julho. O levante deJ(omilQ..v, de 25-28 de agosto, um golpe contra-revolu-cionário pelo recém-nomeado comandante-em-chefe, foi derrotado pela resistência daclasse trabalhadora, com o ressurgimento das esperanças revolucionárias populares e

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A REVOLUÇÃO RUSSA

novos prejuízos para o governo. Acima de tudo, em meio ao colapso econômico gene-ralizado, a lua-de-mel entre trabalhadores e empregadores chegou ao fim. Trabalhado-res organizados assumiam cada vez mais o controle prático por meio de comitês defábrica e da coordenação do Soviete. Nas três frentes - ~erra!_exército e indústria -aumentou a pressão pela solução da dualidade do poderem favor do Soviete. -=-~==:':=:-'::'=-.E.==-- -- _

Depois da crise de abril, o grupo que reclamava consistentemente essa solução foio dos bolcheviques. Imediatamente depois de fevereiro, os bolcheviques já haviamreunido outros socialistas numa coalizão ampla em torno do Soviete. Mas, com a voltade Lenin do exílio, em 3 de abril, tudo isso mudou radicalmente. No dia seguinte, eleleu suas "Teses de Abril" perante urna audiência socialista mista e exigiu, pela primeiravez, que se colocasse a revolução no estágio socialista:

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"A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição do primeiro estágio darevolução, que dá o poder à burguesia por falta de consciência e organização do proletaria-do, para o segundo, que deveria entregar o poder nas mãos do proletariado e das faixas maispobres do campesinato".

O regime vigente nunca iria pôr um fim à guerra, impJementar reformas e recupe-rar a vida econômica. Era necessário o novo Estado:

"Não uma república parlamentar - uma volta a ela depois do Soviete dos Delegados deTrabalhadores seria um retrocesso =, mas uma república de Sovietes de trabalhadores, cam-poneses pobres e delegados de camponeses por todo o país, crescendodebaixo para_ci~~'.

A economia seria reorganizada pela nacionalização das terras, convertendo as gran-des propriedades em fazendas-modelo, criando um único banco nacional e colocandoa produção e a distribuição sob o controle dos Sovietes. Essas medidas iriam provocarrevoluções nos países capitalistas avançados da Europa Ocidental. Os bolcheviquesfariam campanhas com esse fim entre os trabalhadores até que se garantisse a maiorianos Sovietes. Uma insurreição para a tomada do poder poderia então ser lançada",

A platéia de Lenin ouvia sem acreditar. No dia 8 de abril, o comitê do partido dePetrogrado rejeitou suas Teses por 13 votos a 2, com uma abstenção. Somente depois demuita persuasão as maiorias foram convencidas: primeiro, no Congresso Bolchevique daCidade de Petrogrado (14-22 de abril), e depois no Congresso do Partido de Toda aRússia, que se reuniu logo em seguida. Os debates se concentraram no poder dual. ParaLenin, isso só poderia ser transitório, inerentemente carregado de conflitos. Era inevitá-vel a vitória de urna autoridade sobre a outra: "Não pode haver dois poderes no Estado:".Os bolcheviques deveriam realizar a transferência da soberania para o Soviete, que pode-ria então supervisionar o segundo estágio da revolução. Mas, para os adversários deLenin, isso seria uma aventura. A revolução burguesa não havia se completado. A Rússia

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dRJANDü A DEMOCRACIA

ainda não estava madura para a transição imediata para o socialismo. O Soviete poderiaexercer "controle vigilante" sobre o Governo Provisório, mas não poderia evidentementederrubá-lo. O debate foi decidido em favor de Lenin. A partir de então, o lema "Todopoder aos Sovietes" dividiu claramente os bolcheviques do restante da esquerda.

Em junho-julho, a frustração popular estava se transformando em fúria de classe.Os Dias de Julho forneceram um ímpeto frenético: o primeiro ataque real contra amilitância popular também aliviou as inibições das classes altas, excitando receiospopulares de uma contra-revolução - uma ansiedade que logo se confirmou no golpeabortado de Kornilov. A economia se deteriorava até quase o ponto de colapso sistêrnico.Os trabalhadores experimentavam essa situação na pressão inflacionária sobre os salá-rios reais, no fechamento de fábricas, no racionamento e na ineficácia do governo -que eles crescentemente atribuíam a interesses "burgueses". Durante o verão, as criseseconômicas foram associadas, na imaginação popular, à "sabotagem" capitalista. Aimpaciência dos empregadores com a rnilitância revolucionária levou águaa esse moi-nho. Uma notória declaração feita à Sociedade Comercial e Industrial em 3 de agostopelo grande financista e industrial de Moscou, Pavel Riabushinskii, levou a inimizadede classe ao seu ponto crítico: "Vai ser necessário que a mão ossuda da fome e dapobreza nacional agarre a garganta desses falsos amigos do povo, desses membros devários comitês e Sovietes, antes que tomem juízo'".

Para os socialistas que pregavam a unidade nacional, a polarização social teveefeitos desastrosos. Mas, na qualidade de único grupo que não se deixou levar nodescaminho do Governo Provisório, os bolcheviques atacaram o poder. Quando o Pri-msiro Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia se reuniu no início de junho, osbolcheviques ainda eram minoria em relação aos rnencheviques e revolucionários so-ciais (105 delegados contra, respectivamente, 248 e 245, num total de 822). Mas osmeses de junho e julho operaram em favor deles. A derrota de Kornilov foi o incremen-to final de radicalização. Os Sovietes de Petrogrado e Moscou aprovaram o programabolchevique, passando rapidamente suas executivas para o controle bolchevique. Onúmero de membros do partido confirmou a ascensão: em fevereiro havia apenas 2 milem Petrogrado e 600 em Moscou, mas já em outubro os números chegavam a 60 mil e70 mil respectivamente, num total nacional de 350 mil". Com o governo paralisado, osoutros socialistas acomodados, as massas estimuladas para a ação e o aparelho soviéti-co sob firme controle bolchevique, a tomada do poder, na noite de 24-25 de outubro de

1917, foi relativamente simples.

MENCHEVISMO EM 1917:A REVOLUÇÃO DE ACORDO COM O REGULAMENTO

Os acontecimentos na Rüssia tiveram influência decisi va na esq uerda de outros países,fixando a imagem do que, positi va ou negativamente, deveria ser uma revolução socia-

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,.r A REVOLUÇÃO RUSSA

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lista. De um lado, ela foi vista como a patologia do atraso. O czarismo sofria sob 'ascontradições da modernização e desabou sob as tensões adicionais da guerra. No caosque se seguiu, o poder caiu nas mãos do grupo suficientemente duro para impor suavontade. Nas versões anticomunistas, o centralismo foi a expressão lógica da ideologiabolchevique, tendo em Lenin o vilão-em-chefe. Ela descendia da d_L~~!!!:.,Ijªfºbir:J_a,passando pelo vanguardismo insurrecional das tradições conspiratórias do século XIX.

Essa linhagem, C~!!~~~~1~.s~~1~dT~?f~a5~~.gciSl:eí1tãr:t~~e··;;-;~·~~g~;~~~~y;dã:n(lscondições russas. A chave do sucesso bolchevique foi, portanto, omodelo do partido

rigid~I?~nte di;ciplinado de revol~~ionári...?~ pro0ssi9!2..~~~l:~·~~_.~~r~~~~!.9i~é.iri-º_que !aze;r(T902), perrrlitiiidõ~manipulação das massasp..QLJJ1eiQ.da.organiz.J!Ção i

_s~2.eri~;9~O~0 rus.~~: ~~ i~'d~cÍ~·~~~I~I.!§!!!,Çl.~0~i!;!9~e, distinguiu basicamente ja situação S5)~.~J)~E~0,de vista do9.~id~~.t~:o.

Sº1) ..s:~~~~~P~~~~c..~:::~~~~n,~tânc:.!~.:>_~~~~'...~<::g.0~m~_ºcid~~~~:. Apesar da re-pressão inalterada do governo czarista, em 1914 o "patriotismo social" não esteve demodo algum ausente na cena russa. Plekhanov pregou a defesa Illlcion~l:.~,menos q~se detivesse o militarismo alemão, as liberdades européias seriam extintas, atrasandoe~déc-;;'d~'~ as ch;~c~s ·d~s~·~i~li~~o. Isso ac;;;:;~t;-u todos os acordos do~ -;o~i~iistãs

da d;~~it;;;:~Órã-Bre~anh~, I;aF;~~çâ e na Alemanha, entre os quais o mais reprovávelse deveu ao caráter reacionário da Rússia imperial. Foi também o que colocou Plekhanove seus colaboradores contra o próprio movimento para cuja criação eles haviam traba-lhado. Plekhanov abraçou essa contradição com chocante entusiasmo: "Se não estives-se velho e doente, eu me alistaria no exército. Abater a baioneta nossos companheirosalemães me daria enorme prazer"!'.

O verdadeiro teste da trégua civil na Rússia imperial seriam ~~ab~I!u~~sp~are~on.h.eciIl1e.!1t~.~o.s.sindic;at().s e reformaparlamentar PI()J!l.~tjC\?-J.P~.0.$!!~~3ntesnão havia razões de esperança". Dois terços da Duma se juntaram a um grupo doConselho de Estado no Bloco Progressista que, no final de agosto de 1914, ofereceuao czar um programa de união nacional. Isso exigia liberalização mínima do governo:clemência para infratores políticos e religiosos; relaxamento das medidas policiais;emancipação dos judeus; concessões aos poloneses, ucranianos e finlandeses; igual-dade de direitos para os camponeses; extensão geográfica e fortalecimento legal doszemstvos. Essas medidas dariam a base para o governo imperial no que existia nasociedade civil russa, um passo rudimentar em direção ao consenso social. O Comitê_de)~~t~()g:a~o das Indústrias de Guerra também tinha representação limitada dos tra-balhadores: dez trabalhadores em 150 membros, eleitos indiretamente nas fábricascom mais de '5ÕO'~~;~;~g;d-~~:i;~-~ri~~'(;s-êlTíe'mas comuns de participação d~ es-qU(!J~d~,cofl.lPlicad()~p",.la_~5:lOtinuação da ilegalidade dos sindicatos, os veículos. 90corporativismo no Ocidente. Os bolcheviques boicotaram. Os mencheviques, porspavez, sedividiram: a Secre(~ria de Exí\io,pró-boic~te,t~~~ a oposição das seções de.Petrczrado.~.._.~ ..".-.-. __ .

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FORJI\NDO A DEMOCRACLA

f Inatingível sob o czarisrI10,.~.9~m()(;raci~~~i~.~?Letivo rev9} ucion ário mencheviquc_destinado a fortalecer os direitos da classe trabalhadora. A Revolução de Fevereiro seàjusiã~a perfeitam;nte à teoria m;~~h~~i~~~';'~~~olapso do czarisrno por seu próprioimobilismo, por meio da crescente pressão popular e exasperação das classes superio-.

\, res. A "Sociedade" - instituições públicas, burocratas e capitalistas modernizadores, as\ i forças do Bloco Progressista - havia convidado o czar a ampliar a base de sua autocra-

cia; ele recusou; assim, a polarização de antes da guerra entre Estado e sociedade foiretomada. A revoluçãç P_9Jíticatornou-se essencial para abrir caminho à n.lOdernização.Para os mencheviques, isso iria liberar o potencial do capitalismo, com todas as refor-

mas liberais - con~~~ionais, l:.~~:~s,s~~i~~ e ec::~.~~~.~~-, repetindo a ascensão docapitalismo no Ocidente. A esquerda seria o cão de guarda da democracia nessa revo-lução burguesa. Ela não poderia, de acordo com a maioria dos rnencheviques, forçar o

(.}ocialismo.Essa leitura menchevique era perfeitamente coerente com êlS principais tradições

da Segunda Internacional e de fato espelhava as reações à Revolução de Fevereiro nospartidos socialdernocratas do Norte da Europa. Afinal, o marxismo da Segunda Inter-nacional refletiu leituras fortemente deterrninistas de acumulação capitalista e crise: ocapitalismo deveria sofrer crises estruturais crescentes geradas por suas próprias leisde desenvolvimento, atingindo o momento final do colapso revolucionário. Isso enco-rajou os socialdernocratas a cair tanto no fatalismo como na certeza. Seus partidosbuscavam o máximo de democracia no sistema existente, tanto para as reformas decurto prazo quanto para melhor se posicionar quando viesse a queda do capitalismo.Tal como todo evolucionismo determinista, esse modelo parlamentar implicava umatransição pacífica para o socialismo, e não revoluções de barricadas como em 1789 ou1848. A tradição anterior a 1914'enfatizava a construção do movimento pela organiza-ção nacional. Onde as sociedades capitalistas adquiriam instituições de governo parla-mentar e local, os partidos deveriam usá-Ias para fins de propaganda legal e trabalhoprático.

Foi essa a política adotada pelos mencheviques. Se a revolução de 1917 era umarevolução burguesa, então seria necessário um movimento de trabalhadores legal e debase ampla, com braços políticos e sindicais, bem como recursos sociais e culturais

i para levar a causa dos trabalhadores através das sucessivas transformações capitalis-\", tas. Em razão do atraso russo e da pusilanimidade da burguesia, a classe trabalhadora

tomaria a dianteira. Mas ela não poderia forçar as coisas prematuramente em direçãoao socialismo. Essa posição menchevique exigia o que Kautsky denominou "limitaçãomagistral" - uma política ativista, até mesmo a liderança de coalizões revolucionárias,mas observando os limites impostos pela história: "Até que ponto o socialismo podeser introduzido vai depender do grau de amadurecimento que o país atingiu. [...] Umpaís atrasado nunca poderá ser pioneiro no desenvolvimento da forma socialísta':". Aesquerda deve facilitar as condições de amadurecimento das possibilidades do socia-

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T4A REVOLUÇÃO RUSSA

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lismo - erradicando o atraso e o tradicionalismo, enquanto prepara o terreno para o .capitalismo, Quando o capitalismo russo estivesse maduro, talvez depois de várias'gerações, a classe trabalhadora estaria pronta para colher sua herança.

Baseada em princípios e realista como uma avaliação dos recursos de desenvolvi-mento existentes na Rússia, essa estratégia permaneceu doutrinária, infinitamente dis-tante da mobilização popular de 1917. O senso de responsabilidade menchevique pe-rante a história, de um lado, entrava diretamente em choque com a resposta mencheviqueao radicalismo popular, de outro. Os mencheviques se viram constantemente forçadosa tentar conter as esperanças populares dentro dos limites normativos da revoluçãoburguesa. Isso se aplicou principalmente ao Soviete. Na teoria, o poder dual permitiriaaos socialistas não só lutar pelos interesses imediatos da classe trabalhadora, mas tam-bém enrijecer a resolução da burguesia, mas sem ultrapassar os limites estruturais darevolução. Na prática, porém, o movimento da classe trabalhadora não poderia jamaisse confinar ao papel de cão de guarda. Ele era inelutavelmente atraído para uma res-ponsabilidade cada vez maior pelo governo em si, principalmente quando as falhasliberais eram tão gritantes.

Assim, os mencheviques caíram na armadilha de uma lógica debilitante de incor-poração. O defensismo nacional foi uma política desastrosa, porque as massas exigiama paz. A economia envolveu da mesma forma os mencheviques. Nas fábricas, na admi-nistração das cidades e na economia em geral, as lideranças da classe trabalhadora nos.Sovietes, sindicatos e comitês de fábrica eram crescentemente atraídas para a adminis-tração do caos. Em 1917, fortalecer a classe trabalhadora sob o capitalismo significava:assumir responsabilidade pelos problemas do capitalismo, e isso levou as esperanças . ~da classe trabalhadora para além dos limites que os mencheviques haviam definido """para a revolução. A saída foi uma lógica compensadora da liderança popular dernocrá- ;tica, em que a esquerda assumiu total responsabilidade pela derrubada dos liberais e : ~\,pela formação de um governo exclusivamente socialista. Mas esse era um passo que a . \maioria dos rnencheviques jamais daria. Foram os Sovietes e os comitês de fábrica - .uma infra-estrutura emergente de auto-administração da classetrabàlhadórá"- que .as-~.umir;)m...gDllf.daS-de..Qrgªnização social e administração econômica em 1917, Que-rendo ou não, os mencheviques reconheceram isso as>acei;~;;~~pon~~bÜTêiade pelogoverno entre abril e outubro. Mas nunca deduziram as outras conclusões: 'Continua-ra~' ~c.u~;~d~~-~.!~~~;~d~iQiçi~qÇ.~'})- a .~~lrg!!.~.~LaJi)J~~(lL::-que, acreditavarn.ríeviaser a responsável pela revolução".

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BOLCHEVISMO: FAZENDO A REVOLUÇÃO

Para o bolchevismo em 1917, a chave era a polarização social. Tratava-se de um pro-cesso dual: o isolamento político da autocracia se tomava cada vez mais sobrecarrega-do por uma lacuna social que se apronfundava no campo anticzarista entre "privilegia-

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FORJANDO/\ OEMOCRAClA

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dos" e "não-privilegiados", entre os "proprietários" e o "povo". Enquanto a sociedadepolítica se aglutinava numa oposição anticzarista, a classe trabalhadora se afastava dossetores privilegiados num confronto generalizado com a sociedade respeitável. Ade-mais, as mentalidades "trabalhadoristas'' da nova militância ameaçavam isolar os so-cialistas moderados no pólo errado dessa confrontação em andamento. Isso tomou operíodo 1912-14 muito diferente do desenvolvimento da revolução de t9.95.;...quandouma Jrente.-ampla..daJ.ntl:;lectu alid!l.sle,_'l1!~~r~rgiaJiQe~s, mar!.J~ e !?2@!1$,

Jalo~eIll_I1.o.l!I<e...9:~..!?~vo~Já em 1914, a militância da classe trabalhadora desordenou a... simplicidade da confrontação anticzarista anterior".

Inicialmente, os trabalhadores pareciam abertos à cooperação, em troca da refor-ma pela produtividade, ratificada por um acordo de 10 de março que introduziu ajomJldade..Qit.QJ]~, Os comitê..§.Qef~l.:lrica.e..aCâmaraCentraldeCo~ o;J.p.Qio.d9.i.WJPlegadores..de. Eetmgrado.c ..do_~e. Reduziram-se as :greves, enquan-to os trabalhadores se concentravam na arena política e em outras formas de protesto.Sajd.as rituais ...(hlocal_de..IIal:>-,1Ib.9,_P!!llÇ..Q~.!).,fQl\nifestações e .?taqu_~Lª-J~áriosimpopulares visaram mais corrigir os abusos e afirmar os valores comunitários do queinierromper- a produção ou questionar prerrogativas da administração". O que tornouimpossível a estabilização desse modus vivendi e, por extensão, da política de coalizãofoi a.i.nc:.apas.içladede dar fim à guerra~ Os sentimentos antibélicos, amargamente frus-trados, minaram as perspectivas, principalmente em razão da presença maciça dasoldadesca barulhenta e descontente, de cerca de um quarto de milhão apenas em

, Petrogrado.~º.1r~aB~..QlJ!1I.,PJ,$?,ç!sTI917, ocorreu uma radicalização gradual na escala, na

forma e no conteúdo da agitação da classe trabalhadora. Os Dias de Julho marcaram atransição da política de unidade revolucionária para um discurso com maior divisão declasse, em que as prioridades do governo passaram a ser a lei e a ordem, enquantoempregadores e trabalhadores retomavam as suspeitas mútuas. No congresso de Tra-balhadores e da Indústria de 3 de agosto, seu presidente, Riabushinskii, denunciou ossocialistas no governo como "um bando de charlatães" que dificultavam a política deestabilização burguesa; e em outubro, depois do fracasso de Kornilov, em meio à de-sintegração econômica crescente, e com os Sovietes de Moscou e Petrogrado já sobcontrole dos militantes, os trabalhadores responderam à altura. Em setembro-outubroentraram maciçamente em greve com muito mais violência, prendendo e agredindogerentes e proprietários, bloqueando a movimentação de materiais e produtos, forman-do os Guardas Vermelhos e ocupando fábricas. Aumentaram as ações de rua por causado racionamento de alimentos!". Foi retomada a política de polarização social.

Q bolchevismo .ascendeu ao poder p~}~organização dessa radicali?~ç~<?~ar.O sucesso dos bolcheviques é geralmente red~zid;i~~g~~ização superior - de acordocom o modelo de partido disciplinado, rnonolítico e altamente centralizado, formadopor revolucionários profissionais, atribuído ao O que fazer? (1902), de Lenin. Ainda

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assim, a-partir do momento do retorno de Lenin a Petrogrado, a estratégia bolcheviqueevoluiu através de desentendimentos, quer em torno das Teses de Abril de Lenin, nacQ!!fgsão dos Di~_s..4~}ul~9.._guer pela oposiç~?'d~Ç~ T<a~eneve Grigory Zinovie~ à,tº!!1ad~_90 J.?0d~.': . Ess.a..illmº[f~r.<l:de debat~ ~ontradiz a imagem do partido de van-,guarda. De qualquer maneira, as condições da vidà-põIíiíca naquelêsmeses; a'voiãiilidádeativista das massas e a ocupação do partido em Petrogrado por dezenas de milhares detrabalhadores e soldados desinfonnados sobre os debates esotéricos de 1902-14 acercada organização tornaram absurda a fantasia de um partido impiedosamente disciplina-do. O sucesso dos bolcheviques resultou de sua recusa consistente em participar dogoverno, o que Ihes deu acesso à contralegitimidade revolucionária do Soviete. Aocontrário de seus rivais, para quem a turbulência popular ameaçava o progresso ordei- ./ro da revolução, eles preferiram liderar o movimento popular.

A crença de Lenin de que os trabalhadores deslocariam a burguesia como a princi-pal força da revolução era resultado da idéia de "desenvolvimento desigual ecombina-=".Sociedade absurdamente atrasada, a Rússia entrou numa Europa já dominada pe-las economias capitalistas avançadas. Isso deu a ela o acesso ao capital externo, anovas tecnologias e às mais recentes técnicas gerenciais, as características mais moder-nas da indústria capitalista. Mas eles se viram enxertados nos piores aspectos do atra-so, desde uma <estrutura política reacionária até uma sociedade civil desesperadamentesubdesenvolvida e uma vasta maioria de camponeses. Como o capitalismo russo sed/e.s.en:y.~i'{~u.·peI'i_inLe.!:~e.~ç~ã9'~qE~t~d~-~"'çomSaI?.iial estr~~iei~o, e ~ão "org~i~-;-

. "~'''''''-''.~_ ....•..-....,mente" de empresas nativas, a burguesia russa continuou fraca. Em contraste, dada asua a c.9!l~C::.l!.~~aç~ofí§iS:.ª_<e..~cgnômica, o proletariado russo era excepcionalmente for-te, o que acentuava a coesão da classe trabalhadora, aumentava a consciência de classee dava aos trabalhadores importância política central.

Até aí, pouca coisa os separava do menchevismo. Dois fatores permitiram queLenin - e Trotsky, o primeiro pioneiro desse argumento - alegasse que os própriostrabalhadores poderiam tomar o poder. Primeiro, a dinâmica da mobilização da classetrabalhadora não deixou alternativa ao partido revolucionário; os trabalhadores iriamsempre exigir medidas socialistas, e qualquer partido que tentasse contê-Ias seria var-rido. Segundo, o processo global de desenvolvimento desigual e combinado criava ascondições materiais para o curso adotado. Como disse Trotsky, "é possível que ostrabalhadores cheguem ao poder num país economicamente atrasado antes que numadiantado"!". O atraso que envolvia a sociedade russa e a fraqueza política da burgue-sia, além da importância desproporcional de Moscou e Petrogrado como capitais polí-ticas, administrativas e culturais onde os trabalhadores também se concentravam, da-vam à classe trabalhadora uma capacidade política que era ainda maior que seu núme-ro. Assim, "o n_~~~?, a fO.I1Ce.l!!.!:.~ção,a cul~~_~~e a j.m.portância_I2~~~~E-cio proletária-do industrial" determinaram seu papel de liderança. Era essa a teoria da "revoluçãoP~;~1;~~nte"20 " ... '. "",. . '.. _..... _._-- . .~

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FORJANDO A DEMOCRACIA

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Todavia, apesar de "avançada", a classe trabalhadora ainda era minoria num paísesmagadoramente camponês. Para Lenin, a revolução no campo iria completar amobi-lização dos trabalhadores das cidades, o que significava nãQJ\penas um compromissocg.I!!-ª-.!.€!Jormª-ª[email protected]@,_trul..Llambém sua implementação imediata, o que nem osmencheviques nem os Socialistas Revolucionários (SRS) poderiam aceitar. Foi esse oprimeiro erro da esquerda não-bolchevique. Obedecendo a um decreto de 21 de abrilde 1917, os comitês da terra estavam preparando a reforma agrária, mas o governoadiou intransigentemente a ação, Os boJeheviq ues exigiram a transferência imediata daterra para os camponeses, ~~~ c,<?~e~~ação, ~~.m eS~H!L..a.Assembléi3 Constitl1in~.O compromisso de Lenin com os camponeses pobres, formulado depois de 1905, foiproeminentemente incluído nas Teses deAbril. Foi consistentemente repetido durante1917. No final de agosto, ele tomou o "decreto modelo" dos SRs (uma compilação de242 exigências do Congresso dos Camponeses de Toda a Rússia, em maio) p acrescen-tou-o ao programa anticapitalista dos bolcheviques. Ele endossou o confisco de terras,e os dois primeiros atos do govemo boIchevique em 26 de outubro - o decreto sobre apaz e o decreto sobre a terra - eraf!1 uma gritante validação das aspirações frustradas

" d_<?~~ame.?.~~es.!:!..~i.!I!!.~ºsnove meses anteriores".r: Não se deve exagerar a orientação pró-camponesa. Os bolcheviques não tinham.! membros fora das cidades. O movimento não tinha presença prática ou visível no cam-1 po. O próprio pensamento de Lenin sobre política agrária mudou muito antes e durante,I 1917. Por mais positivas que fossem as atitudes bolcheviques com relação aos campo-l neses durante a revolução, os últimos anos da década de 1920 revelaram uma históriaIj diferente. Todavia, em 1917, sua posição foi singular. Só eles trataram com seriedade

".J os camponeses" . Mais que isso, Lenin entendeu a dinâmica do radicalismo no campo.í Nisso, os bolcheviques se diferenciaram nitidamente da tradição socialista. Os socia-I, listas da Segunda Internacional raramente se interessaram pelo campesinato. Mesmo

quando os socialdemocratas eram apoiados pelos camponeses, como se deu na Geórgiamenchevique entre 1905 e 1921, eles não entenderam essa sociologia". Dado esseponto cego, a abertura de Lenin da política bolchevique à questão agrária foi crucial

para legitimar o partido junto ao povo em 1917.Os bolcheviques também entenderam a importância dos Sovietes. Apesar de sua

crítica da espontaneidade dos trabalhadores em O que fazer", Lenin viu imediatamentea significância do Soviete em outubro de 1905: por sua própria iniciativa, os trabalha-dores haviam criado uma nova democracia revolucionária. O Soviete se tornou a prin-cipal arena de intervenção dos revolucionários, e o lema de Lenin. "Todo poder aosSovietes", identificava a estratégia boJchevique. Independentemente da sinceridadepessoal de Lenin, foi nos Sovietes - e nos conselhos de fábrica, onde os bolcheviques

.,ganharam as primeiras eleições em 1917 - que o bolchevismcgaranuu suas creden-:L~.iaisdemocráticas, Também foi crucial a criação pelo Soviete de. Petrog.0dõdo êomi-!tê Militar Re~9Illc.i0.!1~!Í.<?_9..l!.eorganizou'; t~~acla do poder eni,';~)~~I:9:oque evitou

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. li -1:;' que os boJcheviques tivessem de agir em seu próprio nome. ~,,?:.:::~~~~cia dos Sovietes( -. ofereceu a legitimidade que levou os bolcheviques ao poder.

. Menos atraente era a confiança de Le~i;-~a-CTsão-::-;u ímpeto de cl~~.z.ap()l~f!ll-

ça,.q\lJ!_-ªf.lllitQuJJ.D!t!11m~Q.ts:,~,Ç.!!~rivais. Acentuar diferenças era um meio de caracteri-zar seu modus operaruli, tanto na cisão ~rigina'l~entre bo\c~iques e mencheviques de1903 como na intensa ati vidade política de 1907 a 191424• É também uma descrição deZirnmerwald, onde ele queria cindir a Segunda Internacional e criar um centro revolu-cionário alterna tivo. f..~i.~!:l!..'!.~~!:T~tégiabem exec!ltada em--.l217, enfatizando desde oinício ~flão-cooperação com os mencheviques e SRS, 9i!?~ociando o jnandato revolu-~!~l1áriº.d{)\Jo\chevisJTI() .~m.:gutu~~? do:;fl~.~~()_sdo governodos seis mesesant~~i?r.e:>,Foi também a disposição de Lenin para o exercício do poder se a oportunidade lhefosse dada, sua determinação absoluta de aproveitar o momento revolucionário. Osn:!lm~~qu_es, pelo contrário, fizeram da hesitação quase uma virtude. ~~stringiram aprópri.a.i111agi-;;~ç,,~?2...?!adaao JiITl.\\e_9ª revolu~~L!2),1rguesa:... Mas, quandoTser~i~lli-insistiu, no Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia em junho de 1917, que nenhumpartido estava disposto a afirmar: "Entreguem o poder em nossas mãos e vão embora,nós assumimos o seu lugar",)::~}~.i!1 retrucou desafiadoramente do salão". Era uma11lli.dad_e_ILQ.cjSô!:º§~de_çQ.t1xiçç~.o.~.~ç!o,a certeza de que seria possível realizar a revo-lução. Foi o que transformou a aceleração do ímpeto popular do Partido B()l~~~~!g.l!.:.'entre julho e outubro, num ímã I>~~~todo.o...~!ivi5l!;~ev~1~<:0~~~_.~:u.~~~a_~'?.

No intemacionalismo bo\chevique, o pragmatismo se unia à convicção. O impera-tivo internacionalista de Lenin vinha de sua análise do capitalismo na sua fas~mOIlop.()E~a_(;irt1.2~rialista - sua certeza de que o capitalismo ~~~.l:I_~_a_~~~encialprogressista pela necessidade de se expandir em escala mundial, com a resultante ex-p~Çã~'ci~ l~~n-dõ-sl;bdm~olvido e o ag~ç~~~e~t~·d~·~-~-;-ntradições. na metrÓliolê'.

Segundo ele, o-s~~ovim~~t~~~e Ii~ert.~~~o..!25:cjonalnos países subdesenvo-l~i.ctº;.i[i;1I!alterar o processo de acumulação imperialista, solapar a prosperidade das economiascap;t~ii~t~s -~d~sencade,u:~;-;;-;;--;nTlitãnéiap(;pular renovada. A.s:-ºnf.~nuaç~o c'.lpitalis!ahavia, nesse meio-tempo, levado as forças produtivas ao seu pleno potencial, tornando~~~ para a socialização os níveis doco'ITiãri'dõ"ci"[1ecõ'nomiá'-Finàlm~nte, a guerra

,e,a intensificação da competição entre as grandes potências haviam acentuado tod~sessas condições, com conseqüências explosivas para qualquer potência derrotada, Comoafirmou Lenin, "a guerra deu ímpeto à hi;tÓ"ria, que agora se move com a velocict-;de deuma locomotiva":". Como "o elo mais fraco da cadeia imperialista", a Rússia czaristaera especialmente vulnerável aos efeitos desestabilizadores, particularmente quando asociedade imperial desmoronava sob a tensão ela guerra.

Essa perspectiva internacional funcionou de maneira particular. Ela contradizia acerteza menchevique de que o atraso russo dificultava a construção do socialismo. Taisobjeções tinham longas histórias entre os socialistas, e quando Lenin, nas T..e.s.e~_.~eAbril, propôs passar diretamente para a revolução socialista, muitos bolcheviques tarn-

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A REVOLUÇÃO RUSSA

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FORJANDO A DEMOCRAC1A

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bém relutaram. O socialismo não poderia ser construido a partir da escassez, mas so-mente da abundância material, depois que o capitalismo tivesse liberado as forças doprogresso: "De onde virá o sol da revolução socialista? Acho que com todas as condi-ções existentes, com nosso padrão de vida, o início da revolução socialista não vai

" pertencer a nós. Não temos a força nem as condições objetivas para tanto'?".Nem Lenin nem Trotsky discordavam dessa afirmação. De fato, Trotsky acrescen-

tou uma dimensão adicional:

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"o verdadeiro obstáculo à implementação de um programa socialista [...) não seria tantoeconômico - ou seja, o atraso das estruturas técnicas e produtivas do país - quanto político:o isolamento da classe trabalhadora e a inevitável ruptura com seus aliados camponeses e

pequeno-burgueses'V''.

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Mas, nesse caso, o internacionalisrno fornecia uma solução, por meio da revoluçãosolidária no Ocidente. Os problemas desapareceriam no contexto maior de uma Euro-pa socialista federada: as economias mais avançadas forneceriam os recursos de desen-volvimento inexistentes, compensando o isolamento do proletariado russo com a soli-dariedade internacional dos Estados de maior base trabalhadora a oeste. O internacio-nalismo era vital para os bo\cheviques: se a tomada do poder tivesse de ser justificadaperante o tribunal da história, a revolução no Ocidente teria de ocorrer. Lenin e Trotskyentraram na Revolução de Outubro com essa idéia explícita. Caso contrário, teria sidomuito mais difícil ignorar a acusação sarcástica de aventureirismo feita pelos menche-

viques._ Foram esses então os principais ingredientes do sucesso bolchevique: uma com-

r preensão mais nítida das condições específicas da Rússia, que incluía tanto a precoci-I dade como o atraso; a defesa do campesinato; a centralidade institucional do Soviete;I a demarcação ativista contra os outros partidos de esquerda; e uma análise global da

~. : situação geral da Europa, o que trouxe confiança nas perspectivas de uma revoluçãosolidária no Ocidente. Outros fatores foram também importantes, inclusive as persona-

i lidades de Lenin e Trotsky. Mas foi acima de tudo a combinação de_ativismo incansá-.:-::.~l~~~~~~~l<l:_e_z.~<!~jlerspectivas, em condições de c!.~?s_e..D!0ad.kalismQ.lJ..()pulare

\ extr~_~_ap()ll1!i~ação social, qU5 }eV9.1L9SbºlçJ:L~yjqu~5..JLQ...po.deL...

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DO PODER DUAL À DITADURA DO PROLETARIADO

Depois da Revolução de Outubro, a concentração política foi rápida e extrema. Assimque os bolcheviques tomaram o poder, suas relações com os outros grupos de esquerdatomaram-se cruciais, Em 25 de outubro, os mencheviques e os SRs se desligaram doSegundo Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, formando o Comitê de Toda aRússia para a Salvação do País e da Revolução, e prepararam um levante para se unir

186

~1 A REVOLUÇÃO RUSSA

ao esperado ataque do ~-~!~':..s.:~ e seus cossacos à capital. Krasnov foi'derrotado com facilidade em 29-30 de outubro, mas isso deu aos bo\cheviques razõespara romper as conversações e apertar a disciplina nas suas próprias fileiras. Então osSRs da esquerda romperam decididamente com o partido, recusaram-se a se juntar àdebandada de 2S de outubro, endossaram a tomada do poder pelos bolcheviques e, em

. 15 de novembro, se uniram aos bolcheviques numa coalizão.Os conflitos se referiam à questão da legitimidade e da definição fundamental da

revolução, ou "burguês-democrática" ou "pr_~~!ªri.º~~9.sil!!is.ta", agora centrada .'l9sSovietes. O levante bolchevique foi deliberadamente cronometrado para a abertura doSeg'ünêi~Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, e, assim que os primeiros líderes

dos Sovietes se fossem, 1~12ºderi~J~I?~.~i!~!.1.lpit~.nc;!a popular de atrave_s.s~_~ssa~~trut!lra~S.Qn10_Çj.~~!:!.~mos bolcheviqucs, ~~colhas políticas estavé!.Q!.~~eI!gQjJ-ºI~i-zadas. De um lado estava a legitimidade formal conferida pela iminente AssembléiaConstituinte e pelo sistema parlamentar defendido pelo Governo Provisório; ~~Ol!Y!lestava a nova legitimidade revolucionária dos Sovietes. Ao abandonar pomposamente'. _._-_._-----~.._~_.. -_ ..._._.~,--~-~-' .~.. - •.._ ..- ...~... - ...•._-._--o congresso soviético, os mencheviques e os SRS de direita não deixaram dúvida deonde estava a sua lealdade, o que destruiu todas as chances de Qill.:JlO_UQy.Ju<::gimeum.~_

~ªS~soºial\~!l~.ª-C2:P.art~~. O leva~t~lJolch:".iqu.e t~~e .1!C?t~V_'E!_~9io,especialI!!.~ll:~<:Io~ !':Í.I~taEte~ n.9..~~~~~!~~~Eas fábricas. Mas houve igualmente fortes sentimentosde unidade em favor de uma cQa]).?ªº.ruuodos _Q.~ so~ali.§.!ª~L deliQ.~__9 ue fQ..$.se.antiburguesa. Foi esse o potencial desperdiçado fatalmente pelos mencheviques e SRs.C;;;~~ mais tarde o menchevique Nikolai Sukhanov, "nós desatamos completa-mente as mãos dos bolcheviques, tomando-os donos de toda a situação e deixando-lhes toda a arena da revolução'i".

Assim, a Assembléia Constituinte já não tinha legitimidade antes mesmo das elei-ções de 12 de novembro de 1917. Naquelas eleições, o resultado foi favorável aos SRs

- 41.Qs:ªQ.~iIª::i.illlllU.ºI~.\s!".Zº1.,.c;9~tr._a~s.1.2.~._?~Sbo\ch~es. Mas os outros rivaísdos bo\cheviques foram arrasados. Os bolchcviques ganharam nas cidades, c.9_[J~.3§5g~otos das capi~is .P!.?.~!.~.~L~is,contra 23% para os Kadets, o único partido burguêsque sobreviveu, e 14% para os SRs. O alinhamento político, com o apoio urbano divi-dido entre bolcheviques e Kadets, agora registrava diretamente a polarização social.Apesar de os SRS terem mantido suas posições, os resultados foram dcsanirnadorescomparados à situação do verão, e os mencheviques foram completamente derrota-dos30

Os bolcheviques, como partido dominante da esquerda nas cidades, cresceram naréj.9..i!::.alizaçãourbana ainda em evolução. Adistân(;).;tt!ntre a liderança bo\chevique nosSoyietes e sua posição mais fraca na Assembléia C~;~~t~~;'i~'t;-~ão os desencorajou.Quando a Assembléia volto~ ~ ~e 'reunir em S de janeiro de. ·19.I.f eles corrigiram, o

~q~i.1íErio, dissolvendo-a, o que era coerente com o lema "Todo poder aos Sovietes"e Com a lógica do apoio popular urbano. Para legitimar o fechamento da Ass~~1bíéia

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FORJANDOA DEMOCR!\C1A

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1- Constituinte, os bo\cheviques conv~'!.~_':l~~;~Q,um Terceiro Congresso dos Sovietes\ de Toda a Rússia (depois dos de junho e outubro de 1917), ma~~~bé.rn u.!!lCongresso

\de Delegados dos Campones_es 9.\:Toda a Rússia para I]leaQgs ~Lejane~~. Odocument~ de -~b~rt~ra f~Ts~-; "D~arª~Q de Direitos ôos Povos Trabalhadores e\ªX2..~Qr~S", escrita_::o dia 3 de'janeiro, aPI-º~a_p.~l5!._Col1gKsj_ÇLdQs Soviete; de!Toda a Rússia em 15 de janC;:!!'9e inscnta na nova S:~'!.stituiç?9_em julho. O eixo operá-lrio-camponês foi fundamental nesse caso, mas a forma como se apresentavam os pró-Iprios boIcheviques - o élan revoluci<2.~o da cultura política bolchevique - ~-

/'cutivelme~!~J~1:21.~~:!~: Adaptar essa forma de autopercepção às necessidades de uma

, aliança entre operários e camponeses foi uma questão crucial para o curso posterior da

\ revolução.Outros problemas pairavam no ar. Um deles era .c()~'? internacionalizar a demo-

f@CÜl._cliret1l-º()~..~.()xi~t~s_e d.9~52.@it.ê~_2..~..Qti~a. Outro e!1i_~_Cl.':1.estãodo pluralismç- c-ºlno lidar com a oposição (;rgani.zada. A ~S1ão das nacionalidades, apresentada naD~cl~;'~çã~cÍ~~D;r~ii;;-dos Po~os T~cl,-;Ihadores e Explorados, era ainda outro. Cadaum desses problemas ia ao âmago da relação entre socialismo e democracia. O temaimportante era a E~~.a.g~.!Il.Qademocracia parlamentar para a soviética, uma mudançadecisiva, cujo único exemplo na tradição socialdemocrata das duas primeiras Interna-cionais fora a Comuna de Paris. Ao antigo ideal de uma maioria parlamentar democra-ticamente eleita, o bolchevismo contrapunha a fórmula, que soava ominosa, da ditadu-ra do proletariado. Algo importante havia claramente mudado. O Congresso dos Sovietesde Toda a Rússia saudou a dissolução da Assembléia Constituinte cantando a M arselhesa(o hino da Revolução Francesa) e a Internacional (o hino da Internacional dos traba-lhadores) para marcar a transição da época da revolução burguesa para a da revoluçãoproletária".

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Capítulo 9

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DO SOCIALISMO:O comunismo de esquerda,1917-1923

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OS EXTREMOSRUSSOSCRIARAMOPORTUNIDADESpara a esquerda que não existiam emoutros lugares da Europa. Algumas circunstâncias de guerra eram genéricas - principal-mente a incorporação do movimento de trabalhadores por meio do patriotismo, trazen-do vantagens para as lideranças e privações para a massa trabalhadora. Mas, de outrasformas, as circunstâncias russas não eram iguais às dos outros países, porque a debilida-de da sociedade civil tomava a Rússia extremamente vulnerável ao colapso generaliza-do, que os recursos institucionais mais desenvolvidos do Ocidente permitiam evitar.Isso deixou um vácuo, ao longo de 1917, que a classe trabalhadora altamente mobiliza-da de Moscou e Petrogrado se propôs ocupar. Aproveitar a oportunidade exigia umaimaginação revolucionária, que Lenin, Trotsky e os bolcheviques forneceram.

O bolchevismo quebrou o molde da tradição socialista, arrancando os marxistaseuropeus de seu fatalismo. O socialismo já não era a saída necessária da inevitávelcrise capitalista; pelo contrário, agora era possível fazer revoluções. Não eram apenaso resultado objetivo das leis da história, elas exigiam ação política criativa. Para osradicais dos partidos socialistas europeus, para os militantes trabalhadores de 1917-18e para muitos intelectuais jovens recém-ingressos na esquerda, a Revolução Russaampliou o sentido de possibilidade política. Criou um novo horizonte. Incentivou umsentido geral de movimento e oportunidade, de ampliação das fronteiras da imagina-ção política. Para Antonio Gramsci, Lenin foi "o mestre da vida, o agitador de cons-ciências, o despertador de almas adOJmecidas"'.-º.~!2gl~~~viqutõs haviam feito do."~?-'~ell.l_q fatm:..çI-º-miJJ-,tm~º?J~slC)ri?!_12!oos fatÇl~_e<;.2~~~iÇQ~sec~ - homens em socie-dades, homens em relações uns com os outros, fazeTldoaEordos uns com os outros, ,desenvolvendo através desses contatos uma vontade social, coletiva". O atraso russo'não foi problema: "Os próprios revolucionários hão de criar as condições necessáriaspara a conquista total de seu objetivo". A Revolução era o cadinho da oportunidade'.

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FORJAI\fDO A DEMOCRACIA

Durante um breve período - que variou por toda a Europa, mas se concentrou entre1917 e 1920 -, a imaginação política se libertou. E, antes que baixasse a maré revolu-cionária, muita coisa havia mudado. A revolução da classe trabalhadora não teve su-cesso em nenhum outro país, e alguns movimentos nacionais sofreram derrotas arrasa-doras. A maioria dos movimentos se dividiram dolorosamente entre partidos socialis-tas sobreviventes e os novos partidos comunistas. Houve também limites para as novaspolíticas. As constituições pós-revolucionárias ainda eram concebidas em termos par-lamentares. Os novos revolucionários deixaram de construir as coalizões tão cruciaispara a sobrevivência prática de regimes revolucionários, dada a heterogeneidade so-cial, religiosa e étnica de todos os países europeus. Mesmo onde eram mais ambicio-sos, como no grupo Ordine Nuovo reunido em tomo de Gramsci, sua política culturalraramente transcendeu as tradicionais estruturas políticas de classe, que minimizavamos interesses das mulheres e outras questões vitais",

( Ainda assim, quando a imaginação foi chamada de volta da fronteira para tarefas: mais prosaicas pela estabilização desigual de 1921-23, ~J?aisagem estava fundarnen-

tall1}ente transformada. Em grande parte do Mediterrâneo e da Europa Oriental -I::hlllgria..ltáli.i.l.,J3ulgária, Espanha -, a e~gbilLzação assumiu formas autoritárias, der-rotando e jogando na clandestinidade fortes movimentos radicais nas cidades e nocampo. Mas, no "núcleo socialdemocrat( da Europa Central e do NOIte de antes daguerra, composto por Áustria, Alemanha, Tcl1(':coslováquia..•..Sllíça e Escandinávia, alémde França, Países Baixos e Grã- Breta~, a ~Uer~il}~.s.illY.'LmJ!.ilQ.mai~fQrte qu~ antes.

.' ~- Enq-~~~to-em- algunscasos a l12elh~'!.e...§.~lli.Y.~4Q~_ª'1tigºH~gi~pe-! riai$J'mLfl1c:eiQ.AlllJ_QVRvs:iaRY.Q.1.IJ.0.~.!2~iae, em outros, I}Q.IJy.epres?Q.~§__Q2ill!Jares em

&r_~!!.<!~~~.ala,-js~º_~cheg.QJLaCm·ªc_terizar_.!!.I:rL~~nço especific}!J11~1l!~9..fialista.Pelo contrário, trouxe o f<2palecimt;DJ9. pa democracia parlamentar, a~.l?~.ns~direitos.dos tla.billh.ªg.QI.~9_l:U!..ISj, o aumento do reconhecimento dos sindicatos, o- ------== .cre"~ç:imento_clas liberdades civis e o início de um ESt3cIOde bem-estar. O aprimora-mento da esfera pública - em termos parl~ares, jurídic:0' e cu).!:.t:trais- foi tambémum ganho importante, especialmente nos países em que as liberdades públicas eramantes restringi das e perseguidas.

Para julgar os anos revolucionários de 1917-23, temos de visualizar todo essequadro, avaliando tanto os limites como as forças da nova política, precisamente o quefoi e o que não foi realizado. Isso significa avaliar não só as oportunidades reformistasmas também as revolucionárias - os ganhos lentos, desiguais e r~Yf.L';J.Y~isda esquerda,não apenas as explosões dramáticas deaç-ãorevolucio~a deliberada.

A GEOGRAFIA DA REVOLUÇÃO

Ostensivamente, as previsões bolcheviques de revolução generalizada na Europa de-ram frutos. Sinais de uma crise revolucionária potencial chegaram com as grandes

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QUEBRANDO O MOLDE DO SOCIALISMO

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greves de janeiro de 1918. Em protesto contra a forma como o governo alemão condu-ziu as negociações de paz com os bolcheviques em Brest-Litovsk e espalhando-se apartir de Viena e Budapeste, elas cresceram e se transformaram em ações de massa daclasse trabalhadora contra a guerra, abrangendo Berlim e grande parte da Alemanha, asterras tchecas e a Cracóvia antes que amainassem? . A falta de coordenação acabou portirar a força do desafio, mas a aposta bolchevique nos sentimentos antibelicistas doOcidente não foi sem base. Outra condição dramática da guerra - uma piora das priva-ções populares ou uma derrota militar - poderia ter gerado uma crise mais difícil decontrolar",

A crise chegou oito meses depois, em outubro de 1218., com o colapso. çlª~ebúlg~ª sg)ara~ãQ.entreÁustrll!_~l:l],1llgri~!i~da ~'<:"'l12anh~1. O primeiroato foi uma ~qii.êl1çiª_de'~re'yQLlJ0es..n.ªçiQ!1-ªis", erigindo novas soberanias republica-nas sobre as ruínas da monarquia Habsburgo: Tchecoslováquia primeiro (proclamadaem 28 de outubro de 1918), seguida de Iugoslávia (29 de outubro), "Áustria alemã" (30de outubro), Hungria (31 de outubro), Polônia (entre 28 de outubro e 14 de novembro)e Ucrânia Ocidental (Galícia Oriental), onde a República Popular foi proclamada nodia 31 de outubros. Os novos Estados, com exceção da Ucrânia Ocidental, que foianexada pela Polônia em julho de 1919, garantiram legitimidade constitucional, prin-cipalmente pelo reconhecimento internacional na Conferência de Paz de Versalhes.Ademais a cadeia de revoluções republicanas foi concluída com a derrubada da monar-quia Hohenzollern e a proclamação de uma República alemã em 9 de novembro de1918.

De modo geral, esses acontecimentos não chegaram a ser menos grandiosos que arevolução de fevereiro na Rússia. Levaram a revolução ao Reno e aos Alpes, e sacudi-ram a ordem sociopolítica numa larga faixa da Europa Central. Assim como os aconte-cimentos da Rússia, a Revolução Alemã reverberou no exterior. Sem evidência de pron-tidão da classe trabalhadora, o líder socialdemocrata holandês Pieter Troelstra procla-mou, quixotescamente, a revolução na Holanda em dois discursos nos dias 11 e 12 denovembro, causando prejuízo à moral e à credibilidade da SDAP. OS acontecimentos daAlemanha precipitaram uma crise na Suécia (de 10 de novembro a 6 de dezembro), emque somente a habilidade de Hjalmar Branting e do SAi' evitou que a exigência de umaConstituição democrática se perdesse em meio a desejos socialistas mais radicais. NaSuíça, uma confrontação de longa data entre o governo e o movimento trabalhista deesquerda detonou uma greve geral em 12-14 de novembro", Ao sul dos Alpes, os socia-listas italianos observaram com atenção os acontecimentos na Alemanha.

Seguiram-se seis meses de radicalização, A Revolução Alemã atingiu o ponto decrise com uma nova cisão entre o SDP e o USPD em dezembro de 1918, o malfadadoLevante Spartakista no início de janeiro e os assassinatos de Rosa Luxemburgo e KarlLiebknecht. Embora fosse uma derrota sangrenta, a esquerda viu nisso um aguçamentodas contradições, de onde resultaria o apocalipse revolucionário. O lançamento da

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fORJANDO A DEMOCRAC1A

Terceira Internacional em Moscou num congresso apressadamente convocado, de4~,&9ar:ço.de_l2J 9, dramat~isão. O período aberto pelas revoluções nacionaisda Europa Central pareceu ser um tempo de oportunidades cada vez maiores, em que ai",iciativa se~e crescente cabia à classe trabalhadora, !§.~omo o poder dualjjnha

~lli!9-º.~obr:..~~_~.()I~h~~!g~~~Essa dinâmica venceu na Hungria. Os sindicatos socialdernocratas foram o núcleo

r maciço do governo de coalizão do conde Michael Karolyi em 31 de outubro de 1918.• Com a deterioração das condições econômicas - desmobilização e reconversão daj indústria, racionamentos, desemprego crônico e uma crescente crise de produção -,, eles foram cada vez mais atraídos para a administração das indústrias, lançando as. sementes da idéia do controle pelos trabalhadores. No Natal, enquanto os trabalhado-

\, res formavam conselhos e guardas vermelhas, a exigência de democratização da indús-.•1 tria se fortalecia. O programa de nacionalização sistemática do novo g9vemo comunis-t ta-socialista que assumiu em 21 de março de 1919 surgiu logicamente desses aconteci-

mentos. Karolyi havia renunciado em protesto contra as perdas húngaras em Versalhes,Imas a dialética da diarquia - a situação de dualidade no poder semelhante à que ocor-

rrera na Rússia - provocara o nascimento do novo regime. Seu líder, Bela Kun, via-secomo o Lenin em relação ao Kerensky de Karolyi".

, A República Soviética da Hungria durou apenas quatro meses, de março a agosto\. de 1919. Mas, por ter vindo imediatamente após a fundação do Cornintern e coincidido,~com as Repúblicas Soviéticas da Baviera (7 de abril a 1Q de maio) e da Eslováquia (16;1 de junho a I" de agosto), ela preservou o ímpeto revolucionário. O eixo principal era-! agora a Europa Central, com forte guinada para a esquerda na Tchecoslováquia e vio-

}lenta radicalização na Alemanha. Impelidos pela repressão antiesquerdista, os traba-

_ lhadores alemães passavam do SDP para o USPD, cujo número de filiados cresceu de1300 mil para 750 mil entre março e novembro de 19 19. O fermento revolucionário! também chegou mais longe, com o ~!!!.~li<!.b(llfheyis-'lI..c1.e\.9.'!:'§.:1Q..!Jª-1.2.§~.<Le oll0.enni~Jo§~_sJ.~J2!2-:kD....D-ª-_!!.@~

A mais concentrada agitação revolucionária européia foi emoldurada pelo primei-ro e pelo terceiro congressos do Comintern de março de 1919 e junho de 1921. O JICongresso do Comintern (julho de 1920) foi o ápice, refletindo o avanço do ExércitoVermelho sobre Varsóvia na Guerra Soviético-Polonesa". Mas em agosto a correntetomava a direção contrária. Depois da contra-ofensiva polonesa de 16 de agosto, oExército Vermelho bateu em retirada até o armistício de 12 de outubro, seguido da Pazde Riga em março de 192J. A tudo isso corresponderarn acontecimentos dramáticos

" em outros lugares. Em outubro de 1920, o movimento de conselhos de fábrica em\~i Milão e Turim deixou a Itália à beira de llJ1l~-I:~volu~ã;g;I;~r;Úz',;da ant~~-dé cai7-na

I \ ',desmoralização. Na Alemanha, a Ação de Março do Partido Comunista foi um fracas-., ; so. Finalmente, no mesmo mês, ~..!Jl<l situaçãoperigosarT\~Mç:_-º~~@J~gr.gQQr~~

•bol~heviques relaxaram o ritmo na própriil.~~~si~ com a Nova Política Econômica

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QUEI3RANDO O MOLDE DO SOCIALISMO

(NEP), e cO_l!l~çYa.m_anormalizar as relaçõescomo mundo 'capitalista por meio Q{!..umacordoco~f.i.~I.S.Q.!It-ª.D[ªJir~ta.pllit~Isso deu fim ao radicalismo bolchevique mais____ -....w:..~,__ 4'•••·•.•-~'-

avançado - e à política revolucionária decisiva aoeste do Vístula.

o ALCANCE DA EXPERIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

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Depois da Rússia, não houve revoJ.~ç~~J:iQçialis~ascP1!~)9.17 <?..l92},exceto o Soviete .hÚ~g-;;ro:ae-vttlãCfu1;:-C~;t~;houve muitas situações re~oiuci~nári'~s: insu~eições\PoP-;;iãf-ês'q~~de;;}baram regimes existentes; radicalizações tendentes à "diarquia", !em que a extrema esquerda confrontava os novos governos constitucionais, inspirada! ';no exemplo bolchevique, a militância popular forçando regimes não-socialistas a rea- '

-----.--- ---------.------ ..-.-- - - -- Ilizar reformas preventivas, que foi a situação mais comum entre 1917 e 1923; atos J

~~l~-d'oi'-de i~surgêncla revolucionária; e, evidentemente, contra-revolução. .Um drama extraordinário se concentrou naqueles anos. A cadeia de revoluções na

Europa Central, que criou os chamados Estados sucessores entre 28 de outubro e 14 denovembro de 1918, o fez por meio de greves, manifestações, rebeliões, motins e pelaformação de conselhos de trabalhadores e soldados. As novas Constituições democrá-ticas de Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Áustria, Hungria e Alemanha se basea-ram nas insurreições populares, que também afetaram a Bulgãria. Ocorreu expansão dademocracia na Grã-Bretanha, na França, nos Países Baixos e na Escandinávia. Somen-te na Hungria o exemplo dos bolcheviques inspirou um breve Estado revolucionário.Mas, entre 1919 e 1920, houve radicalizações maciças na Alemanha, na Tchecoslová- ":quia e na Itália, com lutas de rua, repetidos desafios às autoridades e levantes regionais,levando esses países à beira da guerra civil. A derrota dessas insurreições trouxe seu () .contrário: a repressão e o terror policiais. Depois do Terror Branco de 1919-20 naHungria, entre 1922 e 1923 uma direita renascente destruiu os ganhos da esquerda naItália, na Espanha e na Bulgária. --._- -' ---'--

- A refo~~ em-resposta à pressão radical foi uma síndrorne comum naqueles anos.Como as revoju·ç5~~t;.os países maxirnizavam as an~i~d-;;-d~~·dõs-govemàsrerã-

tivas às suas próprias sociedades, até mesmo minorias revolucionárias geraram efeitosdesproporcionais. ~Çl!..C!.H~:e_ocor~~'-:1.~~13jlgi..~e na_.f.:ança e~. O caso holandêsfoi especialmente claro, já que a ameaça revolucionária era absolutamente retórica.Troelstra proclamou a revolução holandesa, em 11-12 de novembro de 1918, em res-posta aos acontecimentos da Alemanha, galvanizando assim seus companheiros horro-rizados do partido e dos sindicatos, comprometendo-os com a afirmação de importan-tes reformas, exigindo a nacionalização de certas indústrias convenientes, a derrubadada proibição de greves de empregados públicos de 1903, a jornada de oito horas, pen-sões para a velhice e abolição da câmara alta. Apesar de a SDAP ter conquistado apenas22% dos votos nas primeiras eleições democráticas de julho de 1918, foi aprovado umpacote fortemente reformista que incluía até o voto para as mulheres. Acima de tudo,

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FORJANDO A DEMOCRACIA

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um novo acordo corporativo foi proposto para o trabalho organizado, inclusive o Mi-nistério de Assuntos Sociais e o Alto Canse lho do Trabalho, com funções consultivas,em outubro de 1919, reunindo as quatro principais associações de empregadores, trêsfederações de sindicatos, agências de governo e especialistas privados".

O meQQ.do CDntágiQ..b.akhe.Yiq.uUQi vital na Europa Ocidental. mas outros fatorestambém facilitaram a reforma. l:!.<!!:m0niasocial e consenso patrióti~o foram as senhas:o ímpeto não foi o interesse setorial de classe, mas "a nova consciência democrática ea nova consciência social que nasceram durante a longa agonia desta luta" (a guerra) 10.

Não se pode subestimar o apel()_..ap_3Jt.\.4.ª.riº-si..~~ll[ença na regen~~~o social. NaGrã-Bretanha, as propostas do Ministério da Reconstrução, fundado emjulho de 1917,além do Ministério de Pensões (1917), os pareceres do Departamento de Educação(1917-18), planos para o Ministério da Saúde (fundado em 1919) e um direito de votomais democrático ofereceram uma visão grandiosa do contrato social, Os acordoscorporativos do Ministério do Trabalho foram a pedra fundamental política. Comodisse o rei Jorge v em seu discurso ao Parlamento em fevereiro de 1919: "Não pode-mos nos deter diante de nenhum sacrifício de interesse ou preconceito para erradicar a

pobreza imerecida, diminuir o desem~~ of~!~E_~~"u!.~s, ~~I~?!ar a saúdedj;LI}ilíse elevar o padrão de yida..e.-belD=est.al;..pox..to.da.o..país."".

Essas oportunidades de reforma seriam inconcebíveis sem o crescimento extraor-

dinário dos sindicatos entre 191 g e 1920.

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"A densidade sindical na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Dinamarca e na Noruega ao finalda Primeira Guerra Mundial ficou entre duas e três vezes o percentual de 19I3, na Suécia ena Holanda, mais de três vezes, na Bélgica, quase cinco vezes. [...) Em certos casos -principalmente na Grã-Bretanha e na Alemanha - a força dos sindicatos como percentagemda força de trabalho era maior que em qualquer outra época, em outros - França, Dinamar-ca e talvez Noruega - não foi atingida outra vez antes de meados ou do fim da década de

1930."12

Esses números fenomenais resultaram do curto boom de quando a indústria seEec?1?verteup~::_~_y~::. Com a demanda rep!i.;_~~,,-s.:f~itã- ctec"ápácid;dede

produção, disponíbilidadede capital pa!,a. inves~iI11(~_~~'relaxamento dos controles dogoverno e políticas fiscais inflacionárias, ocorreu um notável crescimento entre a pri-mavera de 1919 e o verão de 1920 (que durou um pouco mais na Europa Central),dando fim a uma retração igualmente severa. Depois ela onda de desemprego no verãode 1918-19, portanto, os soldados que retomavam foram rapidamente absorvidos porum mercado de trabalho em expansão. Nem a tendência a favor da reforma do governo,nem a escala da militância, nem a enorme expansão sindical teriam sido possíveis semesse boom. Quando ele terminou abruptamente, o desemprego voltou a subir a níveisalarmantes e os trabalhadores foram lançados sem cerimônia na defensiva.

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QUEBRANDO O MOLDE DO SOCIAI.lSMO

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As circunstâncias do pós-guerra deram enorme alavancagem aos líderes sindicais- uma abertura para a qual o corporativismo do período de guerra os havia preparado.Sob condições de turbulência quase revolucionária, enquanto os trabalhadores tenta-vam ativar seu músculo industrial, líderes sindicais "responsáveis" tornaram-se a me-lhor esperança de conter a desordem 13. Com a inquietação dos trabalhadores na Grã-Bretanha chegando ao máximo no início de 1919, Winston Churchill detalhava: "A.maldição do sindicalismo residia em sua escassez e no fato de não ser ainda suficiente-mente desenvolvido para forçar seus secretários regionais a se alinhar com a sede" 14 •

Era exatamente essa a questão. Os líderes sindicais enfrentavam sua própria perda decontrole. O clima revolucionário após 1917-18 aumentou a força das esperanças daclasse trabalhadora, de forma tal que a militância no local de trabalho talvez já estives-se superando seus líderes 15.

Na Europa Oriental, os levantes revolucionários de 1917-23 também tiveram po-derosas dimensões nacionalistas, porque o acordo político pós-1918 envolveu não apenasmudanças sociais e reformas políticas, mas também revisões territoriais e novas rela-ções entre Estados. O Tratado de Versalhes (junho de 1919) foi seguido por suplemen-tos para a Europa Oriental, a maioria dos quais foram precedidos por guerras. Não poracaso, a maioria envolvia a grande potência ausente em Versalhes, a Rússia Soviética.A maioria também teve dimensões de guerra civil.

Em novembro de 1918, quando a guerra na Frente Ocidental foi perdida, o exérci- -.to alemão ainda ocupava uma IinhjLque~a ..d.a.Ein.!.fu1Qiª ao Cáucaso.: Esse impactoalemão na Europa Oriental complicou gravemente a construção de ordens governantesestáveis após a tomada do poder pelos bolcheviques, com grandes implicações para asnacionalidades não-russas do antigo Império Russo. Na Europa Ocidental, o enfraque-cimento de alguns Estados (Alemanha) e o engrandecimento de outros (Grã-Bretanhae França) pela Primeira Guerra Mundial foram importantes para a esquerda, pois on,!cionalismo favorecia a direita, mas revisões territoriais eram qualitativamente dife-rentes no Leste, onde elas acompanharam o colapso de Estados existentes. Essas revi-sões envolveram !]1eno_~_º_lliH.~J:nSm.Q.~~_~ig~~. fronteiras quea cIi~ç_ã.2...s!~p..'.li.ses

intei~~~12te _~~~~ cujos sist~ma~.E~!i~:.9.~riam d~"~~~_9i.~~~ Isso ficoumuito claro na 0~.l!_2.,!çã.9_a.~e_~.~_ºª,J3l~~?iª_I:!I!).J217-18,onde a marreta militar alemãdestruiu o que ainda existia do antigo tecido social em grande parte do Báltico, daBielo-Rússia e da Ucrânia. O recuo da voraz administração alemã, no final da guerra,deixou uma situação calamitosamente anárquica, complicada pela morte do czarisrno".

Ao se intrometer entre os povos do Império e sua autodeterminação no momentomesmo da mudança revolucionária - depois da queda da antiga ordem, mas enquanto anova ainda lutava para nascer -, O exército alemão suspendeu a democracia antes queela pudesse começar. Bolcheviques, autonornistas, nacionalistas de esquerda, separa-\tistas e contra-revolucionários viram-se numa relação confusa com as populações 10- \cais, mas na maioria dos casos a 1?,giSl.Q[,ática do nacionalisl~o operou contra a neces- '

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FORJANDO A DF'vlOCRACIA

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sidade de consolidação de Moscou. Os bolcheviques poderiam teoricamente endossar~l!!.()determinação nacional, mas os movimentos ~ela independência sempre se ali-nhm:.am..c.illlLOsinimigos do bolchczismo, primeiro com os alemães (até o final de1918) e depois com ingleses e franceses (1919-21), que também apoiaram os Brancosna Guerra Civil Russa. Dessa forma, os acontecimentos regionais - na Finlândia, noBáltico, na Ucrânia, no Cãucaso e até na Bielo-Rússia - se desenvolveram em proces-

..j so..s. r..evo.lu..C.iOnáriOS..' separados com iIl.teg..r.i.da.deprópria. Em visão estratégica,_~;5,ILe-: riência popular e delimitação prática, ~ratOl!~sfstt:..!evoluçõesnacionais, 9.Ú!!S-ÍDnnasI .

\.. çQnfu.!lglr~I11_9s.lQtulospolíticos ou ~9ciai.i.s9.!lY!llifi~·Afirmações rivais de nacionalidade e classe formaram essa dinâmica revolucioná-

ria nos antigos territórios czaristas entre 1917 e 192318• Não se tratava de simplesdicotomia em que uma identidade impede a outra. O apelo à solidariedade nacionalpoderia suprimir ou não enfatizar as hostilidades de classe, prendendo a política daclasse trabalhadora a grandes coalizões patrióticas lideradas por conservadores ou li-berais, em que, na prática, as aventuras socialistas eram proibidas. Mas a esquerdapoderia também reivindicar para si a liderança das coalizões nacionais, oferecendoprogramas distintos no interior da estrutura nacionalista em desenvolvimento. Pelomenos ela poderia ter defendido interesses específicos das classes trabalhadoras ououtros interesses populares de formas mais modestas e defensivas. Premissas relativasàs bases nacionais da identidade política poderiam ter fortalecido a estratégia socialis-ta, ao invés de solapá-Ia.

A criação dos novos Estados-nação da Europa Oriental em 1918 deu forma à polí-tica no interior dessa estrutura de revolução nacional, e os socialistas encontrarampoucas perspectivas fora das heterogêneas coalizões fundadoras das novas repúblicas,com as exceções temporárias de Bulgária e Hungria. O pequeno Partido Socialdemo-crata Romeno ficou inteiramente à margem desse processo, assim como o dissidentePartido Comunista de 1921,que não teve qualquer impacto até ser banido em 1924.NaPolônia, o Partido Operário Comunista, fundado por vários zimmerwaldianos em de-

, , -. ".~ ..'-' '.......•.-zembro de 1918, tinha raízes nativas mais fortes, mas perdeu toda influência sobre acoalizão de fundação do novo Estado, por causa de seu re~nmi~!:!!n ant~lamentare seu if!ten1açionalisll1odogm.~ti_<::o.Sua autornarginalização foi selada no verão de1920 pela identificação C:0}lHl.exérçjl.<2.~I.:~1!~lh2J~sor.No novo govemo iugoslavo,onde a fundação do partido foi fortemente fragmentada segundo linhas nacionais, oPartido Comunista unificado de 1919 demonstrava maior potencial: mas, apesar de aseleições para a Assembléia Constituinte de 1920 terem tido sucesso, ele também foibanido em 192119

Nesses países. a estruturanacionalista dominante militavacontra as eS31J_~~9.a~_s.9-cialdemocrata e comunista. Mas um caso em que os socialistas ganharam espaço den-

....•. - _-" '. . -.~tro da nova estrutura nacionalista foio da 'Ichecoslováquia, onde os socialdemocra~asformaram um novo governo com os S9cialis~~ ..e ~g:ráriosTc..~~~ depois das~í~ições

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QUEBRANDO O MOLDE DO SOCIALISMO

, locais de junho de 1919, e a esquerda começou a ampliar sua força no partido. Essaesquerda socialdemocrata COIHiD!!()Il~n.2.flA0:\c!()j~..?!!.~m,~mv_~zje dividi-lo, ofere-cendo apoio.decisivo ao g()v_er:n..o.~.~.~i~~~~d._<.?.p~i.?_o_I1_a~.~l~i.çé)~s_~e.~~ly~}J_2~:Qll?E9~3.._~_~?~~~lm~~~ chegou.:,e~.~aestratég0_de_:2~s.?lidaç~?_.t?r.I10uI?ossível a~~~,lSr~.n:~eIE~i.c:ri~do~~J?~_J?!,~gy.iL~~~g~~.rclª)iIldOP.ara.ºP.ar!id.o.ÇoI11lJn.is.ta,<?'(lu~!Danteye as.f2!:.t~_s._c0I!tinu~dadescom as tradições anteri<?res.do movimento nacionaldos trabalhac!oreê.Lç()js.!l_qll~.!!.ª-02~~l!eucom outros.partidos_c:.c.:~2:l~i~~<lsde 1918-2J.A fo_rç,<l_ª-~_çºillUnil'motcheco surgiu de UI!1aradicalização "orgânica" dentro da estru-t~Jr;c1<l!.e.voluçlio..nacioual...cujalegitimidade os líderes da e~~e-rda h;;~;~'~~sa- I.

mente aceito e cujas condições constitucionais permitiram que se desenvolvesse uma'forte esquerda do CSDSD. Ademais, o Partido Comunista Tcheco - tal como o iugoslavo "- f()Jo único J2.<l.rtido-'1()seuEstadDnacionalmente_fragro~l.1tª.®..gue s~B1ostrou genui-~~~~al na estrutura, basearldo~se§e.libe!ad.?:!f1e.I1~eem todos os territóriS,ls-jn~i().!1.'!!~c;'u1ji.()em~leitoraçiºs_n.a<::ioI1ai~.~!1ic9.s..:°· .

o COMUNISMO DE CONSELHOS E A REVOLTADAS BASES

O que distinguiu a atividade revolucionária entre 1917 e 1923 foram os conselhos detrabalhadores, embora as formas exatas de militância fossem muito variadas, indo des-de comitês não-oficiais de greve que buscavam objetivos políticos maiores, como, porexemplo, os movimentos de delegados de fábrica de Clydeside, Sheffield ou Berlim,até sofisticadas inovações revolucionárias, como os conselhos de fábrica em Turim" .No intervalo entre esses extremos havia uma grande variedade: os Rãte" na Alemanhae Áustria, ~iyindicand(}funções~representação_.de c1asS,Ul!IIDILlº-çªliQªd~~conse-lhos baseados em fábricas, empresas ou outras unidades econômicas; e comitês deação local para fins específicos, como os Conselhos de Ação que se opuseram à inter-venção militar britânica contra a Rússia Soviética no verão de 1920, ou o renascimentodos conselhos na Alemanha para enfrentar o Kapp Putsch em março de 192023•

Um novo meio de atividade da classe trabalhadora, o~Dselhos djf~r.i~I11.9~~bosos pattidos socialistas, que agiam através de instituiçõesparlamentares e de Estado, e dossindicatos, que operavam de acordo com as premissas dadas da economia capitalista pormeio da relação salarial. Seus seguidores vieram da corrente principal dos movimentostrabalhistas da Europa entre 1864-75 e a Primeira Guerra Mundial, partilhando algumasafinidades com os sindicalistas revolucionários de antes da guerra, particularmente nahostilidade c..ont!<la liderança do sindicalismo oficial e as máquinas partidárias. Mas avisão militanteme~t~di~tÚrt;~i;~~;;~;~íl:;;s comunista~se ~;;ttl:iãiizoli~~'o;:;:;~-nteduranteas radicalizações de 1918-21. Poucos ativistas do conselho os viam originalmente comoUmaalternativa permanente às instituições parlamentares, mas sim como COlpOSde tran-sição durante o início da passagem à democracia, tendo possivelmente duradouras fun-ções de cão de guarda na futura Constituição republicana.

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fORJANDO A DE1\'IOCRACIA

Versões mais fortes da idéia de conselhos eram hostis ao sindicalismo ortodoxo eao eleitoralismo socialista, rejeitando o modelo aceito de movimentos políticos e eco-nômicos separadamente organizados, centralizados e nacionalmente focalizados. Emseu lugar, os conselhos tinham alicerces na produção: dentro da unidade de produçãopropriamente dita, na fábrica, na usina ou na oficina. Os conselhos levantaram ques-tões de democracia industrial, autogestão dos trabalhadores e controle pelos trabalha-dores. Eles transcenderam a procura fragmentada de objetivos "políticos" e "econômi-cos" típicos dos movimentos trabalhistas anteriores a 1914, unindo a ação direta indus-trial ao projeto político de um governo de trabalhadores. Medido pela corrente princi-pal do socialismo desde a Cornuna de Paris, esse interesse na democracia dos trabalha-dores, por oposição à representação parlamentar do povo, era novidade".

Um modelo de atividade de conselho era baseado na comunidade, mas ligado àsfábricas através dos delegados de fábrica ou de uma rede semelhante de locais detrabalho. Outro era baseado na produção, mas se ligava a arenas sociais maiores. Nasemergências nacionais, tais como o Kapp Putsch, a campanha de socialização no Ruhre na Alemanha Central na primavera de 1919, ou as ocupações de fábricas no Norte daItália, os dois convergiam. Na Alemanha, por exemplo, somente depois do desapareci-mento dos Rifle originais, na radicalização que se seguiu ao Levante Spartakista e àseleições de janeiro de 1919 à Assembléia Nacional, foi que se desenvolveu um movi-mento mais radical de conselhos. Antes, o respeito à Constituição e a lealdade ao SPD

parlamentarista evitaram que os Riite expandissem sua competência. Uma vezradicalizados, os conselhos articularam alternativas extraparlamentares, de democra-cia direta e conscientemente baseadas em classe, às estratégias e instituições existentesdo movimento de trabalhadores. A versão mais forte foi o sistema russo de poder dualconstituído em tomo do Soviete de Petrogrado.

Geralmente, os conselhos locais coexistiam paralelamente ao governo legal e arepresentantes locais do Estado. O importante era saber até que ponto os conselhos detrabalhadores eram capazes de subverter a legalidade existente. Nas versões modera-das, os conselhos se confinavam aos papéis de supervisão geral, deixando praticamen-te intacta a administração local. Mas a supervisão, às vezes, era também altamenteintrusiva, com expurgo e substituição de pessoas da administração local e imposiçãoestrita da responsabilidade pela implernentação de políticas da nova esquerda. Entre1918 e 1921, a Alemanha foi a maior evidência dessa variação, especialmente no mo-vimento distintivo dos "comunistas de conselho">.

O comunismo de conselhos alemão se cristalizou em torno de demandas de "socia-lização" - uma forte combinação de propriedade pública e controle pelos trabalhado-rcs". Em 18 de novembro de 1918, o governo criou uma comissão de inquérito paraexaminar o assunto, mas o verdadeiro motivo era a militância dos mineiros no RuhrOcidental, que evoluiu para greves em 15 de dezembro, motivadas por salários e jorna-da de trabalho. Depois de um acordo parcial em 28 de dezembro, as ações foram reto-

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madas em janeiro, incitadas pelo Levante Spartakista de Berlim. O Conselho dos Tra-balhadores e Soldados de Essen indicou uma comissão de nove pessoas para socializara indústria do carvão, ocupou a sede dos proprietários das minas e confirmou todasessas medidas num congresso regional. O governo do SPD dissimulou, mas lançou apacificação militar do Ruhr, Os mineiros responderam com uma greve geral (18 a 23de fevereiro), que foi violetamente reprimida. Mas então a campanha socializadora jáhavia se espalhado por Halle, Anhalt, Turíngia e Saxônia (23 de fevereiro a 10 demarço), Berlim (3 a 8 de março) e Alta Silésia (5 a 15 de março). As ações repetiram ociclo de rnobilização impressionante, repressão brutal e cruel derrota. A militância exas-perada dos trabalhadores produziu mais uma rodada de conflitos: outra greve geral noRuhr (lç a 30 de abril), com adesão de 73% dos mineiros no seu ponto máximo; umagreve de solidariedade em Braunschweig (9 a 16 de abril); uma greve geral emWürttemberg (31 de março a 7 de abril); além dos acontecimentos na República Sovié-tica de Munique (7 a 30 de abril).

Um abismo imenso separava os militantes dos líderes oficiais. O SPD local enfren-tou as ações com desprezo, denunciando os mineiros como rufiões e criminosos, cujaviolência solapava a política do sindicato. Esses ataques provocaram enorme ressenti-mento, semeando a própria violência que denunciavam. Mas, se o movimento foi moti-vado pelo ressentimento contra o SPD, ele não foi orientado pelo USPD nem pelo KPD. Amilitância foi espontânea, mas não desorganizada. Acima da estnrtura de quaisquer par-tidos e contra o sindicato oficial, ela procedeu de uma democracia de boca de mina, dedelegados e comícios de massa. No fato de se basear localmente na produção, por seusmétodos informais de agitação e de coordenação entre as minas, sua preferência pelanacionalização descentralizada por meio do controle dos trabalhadores de cada mina esua suspeita das burocracias nacionais, o movimento ecoou os temas do sindicalismorevolucionário - e, de fato, um sindicalista revolucionário local, Hcinrich Heiling, umlíder do pequeno sindicato desta tendência de mineiros fundado em 1908, teve proemi-nência nas agitações em Hamborn": Nas circunstâncias voláteis do início de 1919, con-fundiram-se as fronteiras que separavam a antiga tradição do sindicato revolucionário,um novo modelo de sindicalismo industrial, o jovem KPD e a militância de base semfiliação. A chave foi a alienação dos militantes do SPD e de seus sindicatos",

Foi essa conjuntura que produziu o "comunismo de conselhos". O comunismo deconselhos - e a militância de base que ele tentou teorizar - ~~Y'pre.z.0ll~~_çomplexida-~~~P5?!f.0.<,:~_da re;:gb!çlLo. A(!-ª~_enom~~_~f0E.c:mign~~~?~p~Iº2c.c2J!1.U.!ÜH(j_~.9E..~~-lhos. As questões relativas à mulher, àfamília e à divisão sexual do trabalho fpram umijd~:as. O~tra foi ~.ili~t~Q~.~-jQr:r!l.<lçãOd-~;;']izõe2' pois o ~l~~;;~;~~~~de conselhos se ,',

recusava a pens'~l:'.~?_s.c;a!~p.<?nc.s..!:s,J!?_pe_q~.~~~a.~~'J2,~~~iae em outros g~~uQ9H..QÇjªi!!..não-proletários. Os militantes desse movimento nãQ..s.~_.Q~eocupavam com as conse-qÚê~cias;d~nI.s.t[él.tjy_as.d_es~_Q[gªnizar o governo rey()luci~I;ã;i~~;ll'to;n;-d;' q~~tãoda pr_~~~ç~~,~Seos conselhos tinham base numa fábrica, em lugar de uma'i:j'ase-iemto-

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\ rial, treinando os trabalhadores para a produção em série e não para a sociedade emgeral, então como deveriam ser tratadas as f~sões não-econômi~s do governo? Comoos conselhos lidariam com o bem-=.e~tarso~ação? Como poderiam represen-tar com êxito os interesses dos não-trabalhadores?

O "produtivismo" do comunismo de conselhos - a convicção de que a verdadeirarevolução se iniciava no local de trabalho - era tão axiornãtico que essas questõesnunca eram abordadas. Isso foi exacerbado pelo enorme voluntarismo do movimento.Se 1917 foi uma "revolução contra o capital", de acordo com a frase de Gramsci -c~.Il_tr~.()u~.e_t~~in!.~.':n~.~conôm.i~~a Segunda Internacional-, os comunistas de con-selhos levaram esse conceito a seu sublime extremo". Sua abordagem pressupunhaque a Europa Ocidental já estava madura para a transformação revolucionária. Assimsendo, a política se tomaria necessariamente confrontadora, Era necessária uma estra-tégia em que a "oposição absoluta a todas as forças não-revolucionárias e a maiorpureza possível de princípios revolucionários [... ) dessem à classe trabalhadora a forçanecessária para construir a ditadura do proletariado'?". A consciência veio exuberantepara a ribalta. Era necessário revolucionar as mentes: "Na Revolução Alemã, os ele-mentos subjetivos têm um papel decisivo. O problema da Revolução Alemã é o proble-ma do desenvolvimento da autoconsciência do proletariado alemão'?'.

As relações entre os conselhos e os sindicatos eram conflitantes, refletindo ideais

lopostos de organização. Era difícil, mesmo para sindicatos com uma esquerda forte, tal.1:como os metalúrgicos da Alemanha (DMV) e da Itália (FlOM), assimilar sistemas basea-dos em fábricas de representação em conselhos. Os conselhos solapavam a capacidadedo sindicato de negociar acordos nacionais e de oferecer, de modo mais geral, umaliderança em questões nacionais. Os contratos coletivos foram o principal produto dosindicalismo anterior a 1914, e transferir as decisões para o nível local faria a delíciados empregadores, que não desejavam outra coisa senão negociar apenas com seuspróprios empregados. Os recursos dos sindicatos não poderiam mais ser mobilizadosem benefício dos setores mais fracos e menos organizados de seus membros. A capaci-dade dos sindicatos de influenciar a política nacional seria solapada, tanto de umaperspectiva revolucionária como de uma perspectiva reformista. Ademais, as reivindi-cações de controle local chegaram no pior momento possível: exatamente quando ossindicatos adquiriam força cooperativa com a economia de guerra, uma militânciadesordeira de chão-de-fábrica os ameaçava pela retaguarda. Os sindicatos despenderarngrandes esforços em 1919-20 para neutralizar o desafio dos conselhos, não só porinteresse burocrático próprio ou resistência à democratização, mas por uma preocupa-ção legítima de que os interesses coletivos dos trabalhadores fossem prejudicados.

. ' Na Itália, os líderes sindicais tentaram conter as reivindicações dos conselhos. O: acordo nacional do FIOM, em fevereiro de 1919, incluía as Comissões Internas como

comitês de conciliação, mas conflitos relativos às prerrogativas só radicalizararn o idealdos conselhos. Quando os comissários de fábrica foram eleitos em novembro-dezem-

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bro de 1919 e a militância que apoiava os conselhos assumiu o controle do PSI deTurim, os sindicatos propuseram suas próprias idéias para sua institucionalização, en-tre as quais a dos "centuriões" dos trabalhadores, adotada pelo Sindicato dos Químicosem outubro de 1919 (um delegado para cada cem trabalhadores, sem votos para osnão-sindicalizados); o sistema dos Trabalhadores em Gás de Roma, que aceitava osvotos de não-sindicalizados (novembro de 1919); e o "Projeto Baldesi" (cujo nome era -'.•uma referência a Gino Baldesi, da CGL), que propôs um acordo entre os sindicatos e o tmovimento de conselhos de Turim em maio de 1920. O Projeto Baldesi tipificava atática dos sindicatos: conceder funções de fábrica limitadas aos conselhos e permitir ovoto dos não-sindicalizados, mas reservando para si as principais políticas, transfor-mando os conselhos num apêndice das estruturas sindicais e preservando a primaziados sindicatos em questões nacionais'" . Embora o fermento italiano ainda durasse maisseis meses e o movimento de conselhos de Turim ainda se impusesse brevemente pormeio das ocupações de fábricas de setembro de 1920, as escaramuças entre conselhose sindicatos foram abruptamente interrompidas pelo fascismo.

Na Alemanha, a contra-revolução não foi menos violenta em 1919-21, mas se de-senvolveu dentro de uma estrutura parlamentar, sem derrubá-Ia, O pacto entre os sindi-catos e os grandes empregadores nos estertores da revolução de 1918, o Acordo Cen-tral de Trabalho, já previa os comitês de trabalhadores como parte do próprio mecanis-mo local dos sindicatos, e, enquanto o SPD e os sindicatos trabalhavam em 1919 paracriar a legislação, foi ~E_e o modelo burocráti.co prefgillo. A Lei dos Conselhos deTrabalho de 4 de fevereiro de 1920 protegia cuidadosamente a primazia do sindicato. ,~esapareceram todos os aspectos radicais-d~'demô-Z;:~ciã-inci~tri;re'-cont;:oTepaos

tr~tJa}h.~.c.!9_I:~_~::_~<?~ranj_~~~.~~~_r.nbl:~_~~~á;' democraCIâ'êIiiétãepõJcr-óe-ex-purgo; acesso aos livros; controle de contratação, demissão e do processo de trabalho;direitos de negociação com a administração; e independência em relação à burocraciado sindicato. ç~ntipuouJEl.~.0~~_~~rani~ ..92..~m12Ilêg<lili?r.Todas as questões maisimportantes foram reservadas para o mecanismo de negociação coletiva dos sindica-tos. Q~_~9ns.~1l19~f~~u;':4Yi;d~XZo-~&çaodeadj~.n_t2i~~~-~;~di~;t~~:-~-~~IIS j

meramente consultivo".0·0 •••••• __ ." •• ,•••. _.-~ •• __ • __

De uma perspectiva sindical moderada de reforma sob o capitalismo, essas medi-das foram uma grande vitória. A organização nacional centralizada foi defendida comunhas e dentes, tal como na Itália. Como expresso na pauta aceita por uma conferênciade presidentes de sindicatos: "A base da democracia industrial é o acordo coletivo comforça de lei'?' . Mas a!~f<?r'll~I!~.o_PQd~s_~r~epa.r.~dad_o_seyellt()~(;iEC.I,I_,!s!~Q~(!~.:-I:rç~en.:9.i-ª:~e qqeela desamlils..§.ç_as.reivindicações mais radicais do movimento de conselhos •o quecOlTlpromete.u~e~aJl}ent~. seu valor progre~-~J~tª~.A questão foi tragicamente en-tendida no clímax da lei alemã. U.l!)-ª_illª.!J.ifcs(açãQ_demassa, convocada pelo USPD

para as escadarias do Reichstag, fQim.a.ssacradªpelos_soIQª.<ias, deixando 42 mortos e.105 feridos .. !'I0 final, as esperanças sem precedentes do movimento das bases por

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i~p~~mentaçã_o~~igj_u a !~p,r~9_yj2l~!!.~.~9~Ç?y.Ül1ento original eela polícia. -O movimento de conselhos de trabalhadores estava destinado ao fracasso tão logo

uma ruptura revolucionária nacional deixasse de ocorrer, Na Itália, esse momento sedeu com as ocupações de fábricas em setembro de 1920. Na Alemanha, o USPD eoutros grupos de esquerda ainda tentaram o governo permanente pelos conselhos, fos-sem eles ligados a uma Constituição parlamentar ou não, até que a Constituição deWeimar e a legislação subseqüente, como a Lei dos Conselhos de Trabalho, deixassemmorrer essas idéias. Mas o verdadeiro problema era a questão da socialização. O gran-de impulso para a socialização s6 chegou no início de 1919, principalmente em nívellocal, no Ruhr e em partes da Alemanha Central, convocando novamente o movimentonacional para a ação socialista unida de novembro de 1918. A supressão desse movi-mento e dos Sovietes locais que brilharam fugazmente durante a primavera de 1919mudou o caráter das ações conciliadoras posteriores. A partir de então, os conselhosforam forçados a recuar para o nível local, quer como veículos de agitação revolucio-nária já desligados de perspectivas realistas de poder administrativo local, quer comocomitês de ação numa emergência política, como o Kapp Putsch de março de 1920. Naqualidade de um movimento com esperanças políticas nacionais, o comunismo de con-selhos desapareceu.

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