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Emilia Ferreiro A desestabilização das escritas silábicas: alternâncias e desordem com pertinência Emilia Ferreiro |< < Página de > >| A autora Psicolinguista e doutora em Psicologia, é investigadora emérita do Centro de Investigação e de Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México. Área de estudoPsicogênese da língua escrita. Contato Este texto 1 explora novas maneiras de entender as dificuldades das crianças de fala espanhola para abandonar a análise silábica da palavra oral e substituí-la pela análise sequencial de fonemas. Propõe-se uma analogia com a escuta musical (não profissional) de um acorde de vários instrumentos (cordas e sopros) e um mecanismo de ancoragem em uns ou outros (vogais ou consoantes), similar à alternância de centrações cognitivas. Vários exemplos do processo de produção de palavras "difíceis" por crianças de 5 anos ilustram a utilidade desse enfoque. Introdução Em 1979, foi publicado no México, o livro Los Sistemas de Escritura en el Desarollo del Niño 2 . Os dados que o compõem foram recolhidos em Buenos Aires e arredores em uma época particularmente inóspita para os habitantes do país. Esses dados foram analisados no exílio por Ana Teberosky (em Barcelona) e por mim (em Genebra), em tempos em que não havia correio eletrônico, escâner nem os recursos de comunicação a distância a que estamos acostumados.

Emilia Ferreiro

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Sobre alfabetização.

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Emilia Ferreiro

A desestabilização das escritas silábicas: alternâncias e desordem com pertinência Emilia Ferreiro

|< < Página de > >|

A autora Psicolinguista e doutora em Psicologia, é investigadora emérita do Centro de Investigação e de

Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México. Área de estudoPsicogênese da língua

escrita. Contato

Este texto1 explora novas maneiras de entender as dificuldades das crianças de

fala espanhola para abandonar a análise silábica da palavra oral e substituí-la pela

análise sequencial de fonemas. Propõe-se uma analogia com a escuta musical

(não profissional) de um acorde de vários instrumentos (cordas e sopros) e um

mecanismo de ancoragem em uns ou outros (vogais ou consoantes), similar à

alternância de centrações cognitivas. Vários exemplos do processo de produção

de palavras "difíceis" por crianças de 5 anos ilustram a utilidade desse enfoque.

Introdução

Em 1979, foi publicado no México, o livro Los Sistemas de Escritura en el

Desarollo del Niño2. Os dados que o compõem foram recolhidos em Buenos

Aires e arredores em uma época particularmente inóspita para os habitantes do

país. Esses dados foram analisados no exílio por Ana Teberosky (em Barcelona)

e por mim (em Genebra), em tempos em que não havia correio eletrônico,

escâner nem os recursos de comunicação a distância a que estamos acostumados.

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Nesse livro se defendia, entre outras teses, uma particularmente ousada: para

tratar de entender a escrita alfabética, as crianças falantes da língua espanhola

passam por um período silábico. De fato, inventam uma escrita silábica em que

cada letra escrita corresponde a uma sílaba oral. No período de apogeu dessas

construções silábicas, aparecem letras pertinentes para cada sílaba. Em espanhol,

as letras pertinentes privilegiadas são as vogais3.

Na obra se sustenta o seguinte: "A criança abandona a hipótese silábica e

descobre a necessidade de fazer uma análise que vá além da sílaba pelo conflito

entre a hipótese silábica e a exigência da quantidade mínima de grafias (ambas as

exigências puramente internas, no sentido de serem hipóteses originais da

criança) e o conflito entre as formas gráficas que o meio propõe e a leitura dessas

formas gráficas em termos da hipótese silábica (conflito entre uma exigência

interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito)".

De acordo. Porém o que quer dizer "fazer uma análise que vá 'além' da sílaba"? O

que ali se disse é basicamente correto (ainda que deveria ter posto palavras

gráficas no lugar de formas gráficas). Correto, mas insuficiente. Nesse

fragmento, somente se fala dos conflitos, mas não se diz nada acerca das

maneiras peculiares e próprias de analisar a sílaba em função da escrita no

momento de crise da hipótese silábica. Por acaso se passa do período silábico ao

alfabético porque se abandona a análise oral em sílabas e se passa a uma análise

em sequências de fonemas? O período seguinte (que chamamos silábico-

alfabético) parece indicar que isso não ocorre, já que as produções desse

momento da evolução são mistas por natureza: algumas sílabas se escrevem com

uma única letra, como no período precedente, mas outras sílabas se escrevem

com mais de uma letra, anunciando, ao que parece, o abandono da análise

silábica.

Recentemente, comecei a prestar atenção em processos de produção que podem

nos pôr na pista de um novo modo de compreensão desse período de transição.

Dois exemplos enfocam a questão.

Maria (5 anos) vai escrever a palavra sopa. Vai dizendo as sílabas enquanto

escreve as vogais correspondentes. O resultado é OA. Maria observa o resultado

e diz "está faltando". Típica situação em que o requisito de quantidade mínima se

impõe. O interessante é que Maria, buscando outras letras para pôr, não repete

nenhuma das anteriores, mas volta a dizer "so-pa" enquanto coloca as consoantes

correspondentes a essas sílabas. (De fato, repete várias vezes "so" antes de pôr S

e várias vezes "pa" antes de grafar P, como se buscasse essas letras). O resultado

é OASP. Todas as letras da palavra estão ali, mas em desordem. Maria não

consegue ler sua própria escrita. Poderíamos pensar que primeiro analisou as

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vogais, os núcleos vocálicos das sílabas e depois os ataques 4 consonantais.

Contudo, essa descrição me parece incorreta. Como veremos, se trata sempre de

representar a sílaba, a mesma unidade, porém com base em perspectivas

diferentes, ancoragens diferentes. O que Maria produz são duas escritas silábicas

justapostas.

Um caso extraordinário é Santiago, também de 5 anos (Molinari e Ferreiro,

2007). A essa criança se solicita que escreva uma lista de compras, primeiro no

papel e depois no computador. Dois desses pares de palavras são notáveis.

Santiago já sabe que não se pode escrever somente com vogais. Produz SA no

papel e OD na tela para soda; escreve SAM no papel e ALE na tela para salame.

Por quê, se Santiago conhece todas as letras de soda e desalame, não pode

colocá-las juntas? Temos chamado alternâncias grafo-fônicas esse fenômeno.

Como explicá-lo? Creio que assistimos a alternâncias de centrações cognitivas

sobre dois aspectos da unidade sílaba. A sílaba oral é considerada com base em

suas ancoragens diferentes. As letras escolhidas correspondem a essas duas

ancoragens. Uma centração no lado vocálico da sílaba ocorre depois uma

centração no lado consonantal. A mesma sílaba é ouvida de outro lugar. (Ouvida

e vista porque a escrita permite vê-la).

Novos dados de investigação

As crianças que estão me ajudando a entender esse frágil, mas importante

momento da evolução, são de La Plata, Argentina. Têm 5 anos e foram

interrogadas por Andrea Ocampo e Graciela Brena com a supervisão e o apoio de

Claudia Molinari.

Elas frequentam duas escolas diferentes, porém similares quanto ao modo de

introduzir a cultura escrita. Não necessito detalhar aqui suas características,

somente enfatizar que a análise da oralidade resulta da confrontação com

desafios que a escrita ou a leitura colocam5. E que essas crianças estão

acostumadas a justificar suas produções porque escrevem habitualmente no

coletivo ou em pequenos grupos e porque a confrontação de diferentes soluções

para um mesmo problema de escrita é habitual. Os últimos dados obtidos são do

fim do ano escolar de 2008. Ainda nos resta muito para analisar, mas alguns

resultados são suficientemente claros para publicá-los porque me parecem muito

importantes.

Selecionamos crianças que no início do ano escolar escreviam bem o nome

próprio, mas escreviam qualquer outra palavra usando quase exclusivamente

vogais (vogais pertinentes). A essas crianças propusemos a escrita de uma lista

de palavras particularmente difíceis: 15 palavras em uma sessão (o que é

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enorme), todas dissílabas (que são particularmente difíceis pela exigência de

quantidade mínima) e, além disso, dissílabas com uma sílaba que os professores

qualificam de "complexas": CVV, como na primeira sílaba da palavra piano6;

CVC, como na primeira sílaba da palavra torta; CVVC, como na primeira sílaba

da palavrafiesta7 (festa)

8.

Realizaram-se três entrevistas individuais ao longo do ano escolar. Quinze

crianças foram acompanhadas em 2007 (com foco em sílabas CVV) e outros 15

em 2008 (com foco em sílabas CVC, CVVC).

A tarefa consistia em escrever uma lista de palavras, porém os elementos da lista

estavam inseridos em uma mininarrativa que falava sobre a preparação de

uma fiesta (festa), com umbaile, a escolha de uma reina (rainha) a quem se vai

dar um collar de perlas... (colar de pérolas). Fiesta, baile, reina, collar,

perlas faziam parte da lista. O objetivo do procedimento era assegurar que as

crianças compreendiam as palavras que iam escrever9.

Por que apresentar palavras tão difíceis a crianças de 5 anos? Pode parecer

absurda a proposta. Com efeito, se interrogamos aquelas que ainda não resolvem

com as duas letras necessárias a escrita de sílabas CV, o que esperamos que

façam com as sílabas complexas? Precisamente, é disso que se trata em uma

investigação psicogenética e psicolinguística (já que não temos a intenção de

desenvolver uma investigação didática). Necessitamos verificar se as crianças, ao

longo do ano escolar, ignoram as dificuldades dessas sílabas (reduzindo-as

primeiro à vogal e depois, eventualmente, à CV) ou se enfrentam essas

dificuldades e o que resulta disso.

Recordo a célebre boutade - dito irônico, provocativo - de um brilhante

colaborador de Jean Piaget (1896-1980), Pierre Gréco (1927-1988), que disse em

uma conferência: "A um psicólogo que trabalha com a teoria psicogenética se

pode pedir que nos diga de que maneira um bebê anda de bicicleta". Pois bem,

queremos ver de que maneira os que ainda não podem escrever CV (ainda não

podem caminhar) resolvem sílabas complicadas (andam de bicicleta).

Sílabas com ditongo (CVV)

Nem todas as sílabas complicadas são igualmente difíceis. Um dissílabo é difícil,

porém, se o dissílabo contém um ditongo, pode se transformar em um trissílabo,

acentuando as duas vogais (pia-no se converte em pi-a-no), com o qual se pode

escrever IAO, superando, ao mesmo tempo, os requisitos quantitativos e

qualitativos próprios desse período. As crianças se dão conta dessa

possibilidade?

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Algumas delas escrevem esses dissílabos com ditongo como se se tratassem de

trissílabos e põem as três vogais pertinentes. Elas, ao longo do ano, começaram a

incorporar consoantes em sua escrita. Entre uma entrevista e a seguinte,

registramos dois fenômenos particularmente importantes: a) desaparecimento do

ditongo ao aparecerem as primeiras consoantes; ou então b) o ditongo subsiste,

mas em desordem, quando aparecem as primeiras consoantes.

Vejamos um exemplo de desaparecimento do ditongo ao surgirem as primeiras

consoantes. Uriel escreve radio (rádio), ao longo do ano escolar, assim:

AIO>ROO>RIO (as setas indicam a existência de intervalo entre uma entrevista

e outra). O ditongo se perde ao aparecer a primeira consoante. R não é o ataque

da sílaba, mas outra maneira de escrever a sílaba "ra", primeiro com A e depois

com R. Na última entrevista, o ditongo reaparece - a renúncia momentânea à

variedade interna havia deixado Uriel insatisfeito. Parece-me difícil sustentar que

Uriel pôde analisar o ditongo e que, poucos meses depois, foi incapaz de analisá-

lo. Creio que o que está ocorrendo tem pouco a ver com as possibilidades de

análise oral de fonemas. O problema está em outro lugar.

Em outros casos, as vogais do ditongo subsistem, mas em desordem, na segunda

entrevista. Julieta escreve radio: AIO>RIDO>RADIO.

É importante o registro de tudo o que ocorre durante o processo de produção para

compreender por que essas letras pertinentes, porém em desordem, satisfazem as

crianças. Por exemplo, Micaela (na terceira entrevista) vai escrever baile e

começa com as vogais AE. Olha o resultado enquanto diz "bai, bai... La ve corta

(V)"10

e intercala a letra V: AVE. Volta a considerar o resultado enquanto diz

"bai-le... Falta o L" e o agrega ao final. O resultado é AVEL e o lê sem

problemas, assinalando duas letras para cada sílaba. Está satisfeita porque,

efetivamente, as letras são pertinentes. A ordem dentro da sílaba não importa.

Sílabas com consoantes em posição coda (CVC)

O aparecimento das consoantes na posição coda costuma ir acompanhado de

severos problemas de desordem com pertinência. A palavra torta foi proposta nas

duas primeiras entrevistas. Milagros e Valentina escreveram TROA na segunda

entrevista, mas chegaram ao resultado por meio de processos diferentes.

Milagros inicia escrevendo OAA e comenta "dois a... está complicado". Lê o

resultado "to-o...or-ta". Em função dessa leitura, tenta colocar OOA, revisa suas

escritas prévias e vê que já pôs OOA para collar (colar). Deixa OAA, insatisfeita.

Na segunda entrevista, antecipa "como Tomás, o T e o O (TO) e o A (A)". O

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resultado é TOA. Leitura de controle: "tor... e o erre" (agrega R ao final). O

resultado é TOAR (desordem com pertinência). Nova leitura de controle: "tor-

tar... ah! o erre aqui". Volta a escrever: TROA (desordem com pertinência, com

o R inserido em lugar inadequado, porém "dentro" da sílaba a que pertence).

Valentina, na primeira entrevista, começa a aceitar duas letras para não repetir

vogais. Escreve OA. Na segunda entrevista, verbaliza enquanto escreve: "to, a

letra te (T) torr, o erre (R) tor-ta, a letra a (A)" O resultado é TRA. Inicia a

leitura de controle: "tor... a letra o". Intercala essa vogal. O resultado é TROA

(desordem com pertinência, como Milagros).

Vejamos um exemplo do que pode ocorrer com uma palavra no

plural, perlas11

(pérolas) cujas duas sílabas apresentam codas (R e S,

respectivamente). Tomás é uma criança que desde a primeira entrevista utiliza

consoantes e está muito atento à representação das codas. Em todas as

entrevistas, escreve essa palavra com letras pertinentes, mas em desordem:

PRES>REAS>PRSA // PRLSA (a barra dupla indica mudança durante a mesma

sessão). A escrita da segunda entrevista (REAS) é particularmente notável

porque Tomás escreve as duas codas, porém nenhuma das duas consoantes em

posição de ataque. O detalhamento da produção é assim: na primeira entrevista,

Tomás antecipa "per, per, perlas, a letra pe e o erre" (PR) "o e" (E) "esse" (S)".

O resultado é PRES, que lê assinalando duas letras por sílaba. Na segunda

entrevista, também antecipa enquanto escreve: "o erre e o e" (RE) las, o a

(A)per-las, esse (S)". O resultado é REAS. Na terceira entrevista, antecipa duas

letras por sílaba: "per (PR) las (SA) Aí está". Lê o resultado, PRSA, como "per-

las" (2 por sílaba) e conclui "o ele (L) na frente do esse (S). Intercala essa letra.

O resultado é PRLSA. Procede a uma leitura de controle: "per (PR) las (LSA)".

Mostra-se satisfeito com o resultado.

Sílabas com ditongo e coda (CVVC)

Uma das palavras propostas, fiesta, tem uma sílaba inicial particularmente difícil,

com ditongo e consoante S em posição coda. Uriel escreve fiesta assim:

IEA>IEA>ETA // FSA. As escritas das duas primeiras sessões são idênticas.

Porém, na terceira, há uma troca notável. O primeiro recorte oral é "fies-ta" e

corresponde à produção ETA. Ao controlar sua produção, Uriel faz outro recorte

"fi-es-ta", recusa o que havia escrito e produz FSA (lê uma letra por sílaba).

Indicação importante de evolução: há mais consoantes que vogais na última

produção.

Camila, na terceira entrevista, nos oferece um expressivo exemplo. Diz: "com

efe" e escreve FETA. Lê "fi-es" (sobre as primeiras duas letras) e conclui: "Falta

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o esse (S)". Inclui o esse e fica FETSA. Começa a ler: "fi... falta o i". Insere o i e

fica FEITSA. Novamente controla: "fi... Tenho que tirar o E". Dessa vez, decide

reescrever a palavra e o resultado é FITA. Começa a ler: "fies... Falta o esse".

Inclui S na mesma posição que antes. Fica FITSA. Camila, cansada, renuncia a

uma leitura analítica e lê "fiesta" sem segmentações, deslizando o dedo sobre as

letras, em um gesto contínuo. A série de transformações de Camila é a seguinte:

FETA // FETSA // FEITSA // FITA // FITSA.

Todo o trabalho de Camila é sobre a primeira sílaba, a sílaba difícil. A segunda

sílaba, bem resolvida de início, fica desarticulada por todo esse trabalho. Na ação

de escrever, Camila intercala sem ordenar. É a leitura que impõe a busca de uma

ordem porque na oralidade as sílabas não são permutáveis. Camila insere letras, o

que é um sinal de grande progresso. Mas, uma coisa é dar-se conta que a

sílaba /fies/ tem um I e um S, e algo muito diferente é saber onde exatamente pôr

essas letras. Camila sabe que devem ir "dentro", mas não sabe ainda se "vai antes

de" ou "depois de".

A escuta da sílaba como um acorde musical

Para tratar de compreender o que está ocorrendo - compreendê-lo desde o ponto

de vista do sujeito em evolução -, proponho deixar momentaneamente de lado as

teorias fonológicas da sílaba que não podem dar conta desses processos porque

não estão pensadas em termos evolutivos. Pensemos na escuta musical de alguém

que não é músico de profissão.

Posso escutar uma obra orquestral (uma sinfonia de Joseph Haydn [1732-1809]

ou Wolfang Mozart [1756-1791], por exemplo) prestando atenção na linha

melódica em geral, nas mudanças de intensidade, nas variações rítmicas. A obra

musical é produzida por todos os instrumentos da orquestra e posso escutá-la

como um objeto único, mesmo sabendo que diferentes instrumentos contribuem

para ela, mas sem atentar em particular a nenhum deles.

Porém posso ter uma escuta da mesma obra focalizada nas cordas (os

instrumentos indispensáveis da orquestra) ou alternadamente nas cordas e nos

instrumentos de sopro. Ter uma escuta que diferencie cordas e sopro, mas

integrados na sonoridade plena da orquestra, é muito difícil para alguém que não

seja músico profissional.

A analogia me parece útil para tentar compreender esse momento preciso da

evolução. Da centração privilegiada nas vogais (as cordas que vibram) se passa a

escutar o mesmo acorde musical desde outros instrumentos (não vogais). São

centrações alternadas, incompatíveis entre si: uma ou outra, porém não as duas

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de uma vez.

Parece-me que as crianças escutam a sílaba como se fosse um acorde musical

produzido por vários instrumentos. É a escrita que obriga a considerar esses sons

simultâneos como se fossem sucessivos.

As alternâncias com pertinência (caso Santiago, escritas de soda e salame)

expressariam o momento das centrações excludentes sobre os instrumentos que

participam do acorde musical (as cordas e os sopros, ou seja, as vogais e as

consoantes). Essas centrações alternadas podem aparecer na mesma escrita (caso

Maria, escrita de sopa) como agregados sucessivos. Depois se dão conta de que

no acorde musical (a sílaba) há sons que estão ali dentro e por isso começam a

intercalar. Põem dentro, não põem "antes de" nem "depois de" . Não se pode

passar imediatamente de "está dentro" a "está antes de" ou "depois de"12

. No caso

da sílaba, isto é tanto ou mais difícil que em outros domínios do desenvolvimento

cognitivo.

Omissões e desordem, dois elementos clássicos do diagnóstico de dificuldade de

aprendizagem. Porém essas crianças são perfeitamente normais. Nesse estudo,

todas produziram escritas com letras pertinentes, porém em desordem, em

quantidade variável (no mínimo uma vez e no máximo oito em cada sessão de 15

palavras). Para compreender o que fizeram, é evidente que não basta analisar o

produto final. É preciso compreender o processo e saber com precisão o que

dizem enquanto agregam, apagam, substituem ou intercalam letras. Saber se

seguem modificando a primeira produção ou se decidem reescrever. A

observação deve ser detalhada, e a análise, cuidadosa.

Observações finais

Nas escritas silábicas, a fronteira silábica fica marcada, já que, quando deixamos

que decidam, as crianças preferem caracteres separados e cada letra, separada das

outras, corresponde a uma sílaba. Na escrita alfabética, essa fronteira desaparece.

Parte da dificuldade reside no desaparecimento dessa fronteira.

A passagem do "saber fazer" no plano da ação verbal ao "pensar sobre" os

elementos do produto dessa ação verbal é, nada mais nada menos, que a

transformação da linguagem - instrumento de ação - em objeto de reflexão. É

preciso colocá-la fora de si mesmo e dos outros falantes. Tirá-la do contexto

comunicativo e concebê-la como objeto a ser considerado em si mesmo e por si

mesmo. A grande dificuldade reside em que não se trata de um objeto do mundo

físico ou cultural que preexiste à ação do sujeito sobre esse objeto. A língua oral

existe na medida em que existem atos de fala13

.

Page 9: Emilia Ferreiro

Descobrir que os objetos têm partes e que suas partes são classificáveis e

ordenáveis é algo que as crianças de 4, 5 anos já fazem com outros objetos do

mundo físico ou cultural. Por meio de sua ação no mundo, descobriram também

que as propriedades dos objetos completos não coincidem necessariamente com

as propriedades das partes. Agora devem fazê-lo com a língua oral. A escrita lhes

ajuda na análise desde que não seja cópia, que seja uma construção autêntica.

Propus deixar de lado, provisoriamente, as teorias fonológicas. As teorias

fonológicas da sílaba são o que são: modelos teóricos que nos ajudam a

problematizar essa unidade (a sílaba) em termos de suas possíveis distinções

internas. Não são modelos de desenvolvimento e, muito menos, das etapas mais

instáveis desse desenvolvimento. Nós, psicolinguistas, não podemos limitar-nos a

ver quais dos modelos de análise da sílaba se ajustam a nossos dados. Não

podemos ignorar esses modelos. Mas tampouco podemos forçar os dados

evolutivos para que se ajustem a um modelo sincrônico. Por respeito às análises

linguísticas (porém reconhecendo sua im-pertinência para compreender a

evolução), sugiro buscar analogias na música, analogias que têm seu correlato na

teoria psicogenética sobre outros domínios.

Por outro lado, que informação trazem esses dados sobre as relações de

precedência ou sucessão entre oralidade e escrita nesses momentos da evolução?

Já sabemos que os modelos hegemônicos dizem que as crianças devem ser

capazes de analisar a oralidade em termos de sequências de fonemas para

compreender a escrita alfabética (phonological awareness - consciência

fonológica). Eu propus que é a escrita alfabética que obriga a adotar uma atitude

analítica com respeito à fala (Ferreiro, 2003).

Contudo, não se trata de substituir um modelo unidirecional por outro igualmente

unidirecional (como sugere Olson, 1996). O ponto de partida para a análise da

fala é a escrita socialmente constituída, assim como a escrita que as crianças

produzem. Mas indicar o ponto de partida não equivale a predeterminar a

direcionalidade das análises posteriores.

Os exemplos que tenho analisado mostram ações em ambos os sentidos porque a

oralidade não é um objeto único, nem sequer ao nível da palavra: a oralidade

analítica que busca na segmentação silábica as letras pertinentes não é o mesmo

que a oralidade verificadora (leitura) ou a oralidade confirmatória (que também é

leitura).

Por sua vez, o escrito tampouco é um objeto único, nem sequer ao nível da

palavra: há escritas que se impõem ao sujeito, como se fossem imodificáveis,

Page 10: Emilia Ferreiro

tanto como tentativas de escrita, provisórias, disponíveis à mudança (nem sempre

felizes).

Temos visto casos em que a interação oral/escrito ocorre em ambos os sentidos

(do oral para o escrito e do escrito para o oral). Mencionar uma interação em

ambos os sentidos não explica nada, mas ao menos previne contra a tentação de

substituir um modelo tradicional unidirecional (oral>escrito) por outro

igualmente unidirecional (escrito>oral).

Parece-me que compreender em todos seus detalhes esses momentos de transição

e, em particular, essa "desordem com pertinência" que expus, é crucial para

entender as dificuldades e as especificidades da alfabetização. Porque mostra,

além disso, as dimensões propriamente dramáticas do processo, um processo que

dista muito de ser linear, ou seja, por adições sucessivas. Ao abandonar a escrita

somente com vogais, ao começar a introduzir consoantes, as crianças não estão

apenas agregando letras aleatoriamente. A introdução das consoantes desorganiza

o sistema anterior e as elas devem empreender a penosa tarefa de encarar os

desafios de encontrar uma nova organização. Essa nova organização impactará

por sua vez a oralidade analítica e a escrita reflexiva.

Bibliografia

- Ferreiro, E. (2003). Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita. Porto Alegre:

Artmed.

- Molinari, C. e Ferreiro, E. (2007). Identidades y diferencias en la escritura en papel y em

computadora en las primeras etapas del processo de alfabetización. Lectura y Vida. Nº 28.

- Olson, D. (1996). O mundo sobre papel. São Paulo: Ática.

Introdução

Novos dados de investigação

Sílabas com consoantes em posição de coda

A escuta da sílaba como um acorde musical

Observações finais

Notas e bibliografia

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Publicado em Especial Artigos, Janeiro 2012.