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Endomiocardiofibrose biventricular associada à amiloidose renal

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Arquivos Brasileiros de Cardiologia - Volume 85, Nº 4, Outubro 2005

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Endomiocardiofibrose Biventricular Associada àAmiloidose RenalBiventricular Endomyocardiofibrosis Associated with Renal Amyloidosis

C o r r e s p o n d ê n c i a : J o s é R a m o s F i l h o • R u a B e n j a m i n A r r u d a , 1 2 6 / 1 - 1 2 9 1 4 - 5 6 0 - B r a g a n ç a P a u l i s t a , S P

E-mail: [email protected] Recebido em 02/09/04 • Aceito em 30/03/05

José Ramos Filho, Carlos Alberto Fontes de Souza, Enzo Magrini, Marcelo de Macedo, Roberto Bauab IsolatoUniversidade São Francisco - Bragança Paulista, SP

A endomiocardiofibrose (EMF) é uma cardiomiopatiarestritiva, caracterizada por envolvimento fibrótico doendocárdio e miocárdio adjacente, e disfunção diastólica,causada por alteração da distensibilidade, dificultando oenchimento ventricular adequado, estando a funçãosistólica preservada. Clinicamente, apresenta-se comoinsuficiência cardíaca, mas, para o diagnóstico etiológicocorreto, são necessárias perspicácia semiológica, suspeitae investigação clínica. Relatamos o caso de uma pacienteportadora de endomiocardiofibrose biventricularassociada à amiloidose renal.

A EMF é doença de etiologia desconhecida, sendo aprincipal cardiomiopatia restritiva em nosso meio,caracterizada por envolvimento fibroso do endocárdio emiocárdio adjacente1. Como nas outras formas decardiomiopatias restritivas, a função sistólica costumaestar preservada com prejuízo da função diastólica,causada pela redução da distensibilidade, prejudicandoo enchimento adequado de um ou ambos os ventrículos2.

O diagnóstico da síndrome restritiva deve ser sempreaventado frente a um paciente que apresenta limitaçõesao esforço físico, com cansaço ou fadiga e dispnéia,congestão jugular, hepatomegalia, edema de membrosinferiores ou anasarca.

O ecodopplercardiograma é essencial, a biópsiacardíaca pode auxiliar e o estudo anatomopatológico decorações de necropsia é capaz de fechar o diagnóstico.

Endomyocardiofibrosis is a restrictive cardiomyopathycharacterized by fibrotic involvement of the endocardiumand adjacent myocardium, and by diastolic dysfunctioncaused by changes in distensibility making ventricularfilling inadequate while preserving the systolic function.Clinically, it appears as heart failure, but etiologicalsymptomatic discernment, suspicion and a clinicalexamination would be necessary in order to make acorrect etiological diagnosis. The case of a patient withbiventricular endomyocardial fibrosis associated withrenal amyloidosis is presented.

RELATO DO CASO

Mulher negra de 49 anos, natural de Ilhéus (BA),procurou atendimento médico no pronto-socorro, comhistória de fadiga, anasarca, dispnéia aos mínimosesforços e paroxística noturna, com início dos sintomashá cerca de um ano e nítida piora nos últimos seis meses.Inicialmente, manifestava edema discreto em membrosinferiores no período vespertino, com progressiva evoluçãopara anasarca há dois meses, importante deterioraçãodo estado clínico geral (inapetência, emagrecimento, piora

do cansaço) e dispnéia, atualmente em repouso. Comoantecedentes, manifestava tabagismo crônico, desde aadolescência e hipertensão arterial controlada comcaptopril. Ao exame físico, apresentava-se pálida, ansiosa,taquipnéica (freqüência respiratória acima de 30 porminuto), ausculta pulmonar com presença de estertorescrepitantes bilateralmente. A freqüência cardíaca estavaelevada (aproximadamente 120 bpm) e a pressão arterialreduzida (60 x 40 mmHg). O ritmo cardíaco encontrava-se regular, com presença de sopro sistólico mitral etricúspide e quarta bulha. À inspeção do pescoço, notava-se evidente arterialização do pulso venoso jugular. Aoexame abdominal, observava-se hepatomegalia dolorosae ascite moderada. Realizado o diagnóstico sindrômicode insuficiência cardíaca, foi iniciado tratamento clínicocom suporte hemodinâmico intensivo e examescomplementares. Os achados relevantes foram:creatinina: 2,37 mg/dl; uréia: 98 mg/dl; albumina: 1,66g/dl; proteínas totais: 4,2 g/dl. Exame de urina comproteinúria e hemoglobinúria. Ao raio-X de tórax,observamos: cardiomegalia, sinais de hipertensãovenocapilar pulmonar, com presença de hilos proeminen-tes, infiltrados peri-hilares, linhas septais de Kerley,derrames laminares e costo-diafragmáticos. O eletrocar-diograma mostrava alternância entre ritmo sinusal ejuncional, sobrecarga biatrial e alterações de repolarizaçãoventricular na parede lateral, com complexos QRS de baixaamplitude. Foi realizado ecodopplercardiograma, que

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evidenciou redução das dimensões da cavidadeventricular esquerda, aumento discreto do ventrículodireito, da espessura miocárdica e discreto derramepericárdico póstero-lateral à direita (figs 1 e 2). Os fluxostransvalvares evidenciaram refluxos sistólicos em ambasas valvas atrioventriculares (insuficiência mitral etricúspide de grau moderado a importante). A funçãoventricular sistólica era normal, com nítida restriçãodiastólica ao enchimento biventricular.

Com base nos exames iniciais, configurou-se odiagnóstico de insuficiência cardíaca restritiva, podendo-se estabelecer três possíveis etiologias: amiloidosecardíaca, EMF ou fibroelastose endomiocárdica. Acintilografia miocárdica realizada com MIBI-Tc99

evidenciou perfusão normal e hipertrofia biventricular.

Para o diagnóstico definitivo, a paciente foi submetidaà biópsia miocárdica e os cortes histológicos demons-traram exame anatomopatológico compatível com fibroseendomiocárdica. A coloração vermelho Congo, utilizando-se técnica de luz polarizada, foi negativa para amiloidose,foram realizadas ainda a técnica da Orceína para fibraselásticas e Tricrômico de Masson, esta última coloraçãoevidenciou o tecido conjuntivo fibroso (figs 3 e 4). Devidoà alteração da função renal, foi realizada biópsia ediagnosticada amiloidose renal associada. Investigou-se proteinúria de 24 horas (4,9 g), ausência dedismorfismo eritrocitário, pesquisas de hepatites B, C,HIV, complementos séricos C3 e C4 negativos.

A paciente encontra-se com insuficiência cardíaca emclasse funcional III, segundo NYHA, aguardando proce-dimento cirúrgico.

DISCUSSÃO

A EMF é caracterizada pela deposição de tecidofibrótico, que recobre o endocárdio, inicialmente noápice, progredindo em direção ao plano valvaratrioventricular, predispondo à elevação da pressão

diastólica final do ventrículo acometido e, conse-qüentemente, aumento atrial e da pressão venosasistêmica e/ou pulmonar. O resultado final é oenrijecimento endocavitário, causando, portanto, dis-função ventricular por restrição do seu enchimento2.

No caso do comprometimento preferencial doventrículo direito, observa-se: obstrução da ponta(associada ou não a trombo), dilatação da via de saídae movimento paradoxal do septo interventricular. O átriodireito pode estar aumentado e as veias sistêmicasdilatadas3. Insuficiência tricúspide de grau variável eaumento da pressão diastólica final do ventrículo direito,geralmente sem associação com hipertensão pulmonar.

Se o comprometimento é predominantemente noventrículo esquerdo, as alterações se repetem, relaciona-das às cavidades ventriculares esquerdas3. O aumentodas pressões é transmitido ao átrio esquerdo e, conse-qüentemente, ao leito venoso pulmonar, causando hiper-tensão pulmonar. Esse aumento da pressão pulmonarpode, por sua vez, ser transmitido à valva tricúspide,gerando insuficiência, mesmo sem acometimento dascavidades direitas.

A insuficiência valvar, mitral ou tricúspide, pode ounão ser expressa por sopros cardíacos, principalmentequando a pressão diastólica final da cavidade ventricularfor muito semelhante à pressão atrial média2,3.

Com relação ao ECG, o acometimento do ventrículodireito demonstra diminuição da amplitude doscomplexos QRS, devido ao derrame pericárdico quasesempre presente. Outros sinais encontrados são asalterações do segmento ST e da onda T e critérios desobrecarga atrial direita com o clássico padrão qR emV1. Já no comprometimento do ventrículo esquerdo, épossível encontrar alterações semelhantes às doventrículo direito, incluindo fibrilação atrial e sobrecargade câmaras esquerdas. O ECG, associado à doençacardíaca amilóide, pode apresentar baixas voltagens doscomplexos QRS e evidência de doença do nó sinusal e/

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Fig. 1- Ecocardiograma transtorácico, corta paraesternal longitudinal, demonstrando textura acústica com granulações grosseiras e obliteração apicalpor deposição de tecido fibrótico. AE- átrio esquerdo; Ao- aorta; VE- ventrículo esquerdo; VM- valva mitral.

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Fig. 2 - Ecocardiograma apical modificado das cavidades direitas durante a diástole e a sístole ventricular, apresentando obliteração apical doventrículo direito por tecido fibroso. AD- átrio direito; VD- ventrículo direito; VT- valva tricúspide; DERR- derrame pericárdico.

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Fig. 3 - Visão panorâmica da biópsia, mostrando o músculo cardíaco com extensas áreas de fibrose entremeando as fibras miocárdicas (setas).(Coloração de H.E. aumento de 40X).

Fig. 4 – Endocárdio espessado por fibrose, apresentando tonalidade mais clara (setas pretas) em relação às fibras normais (setas azuis). (Coloraçãode H.E. 100X ).

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ou bloqueio da condução atrioventricular com ondas Qanormais sugerindo infarto1.

Ao raio-X de tórax encontramos aumento da áreacardíaca em graus variados, associado com sinais decongestão venocapilar pulmonar4.

O ecocardiograma bidimensional facilitou muito odiagnóstico da EMF, já que a ponta dos ventrículos podeser avaliada, demonstrando obliteração pela presençade tecido fibroso, sendo a fibrose mais ecogênica queas paredes miocárdicas, possibilitando sempre umanítida diferenciação1,2.

O Doppler mostra aspecto bastante característico nasmiocardiopatias restritivas, sobretudo na EMF. O fluxoatravés das valvas mitral ou tricúspide, dependendo doventrículo acometido, apresenta-se formando, prati-camente, apenas um pico de velocidade na protodiás-tole (onda E), com uma diminuição acentuada do tempode desaceleração, estando a onda A ausente ou bastantediminuída. Esse aspecto indica um padrão de fluxorápido logo após a abertura valvar, seguido de cessaçãoabrupta, devido à existência de obliteração cavitária e,portanto, um menor volume cavitário ou de restrição àentrada de sangue secundário à diminuição dadistensibilidade. A biópsia endomiocárdica auxilia nodiagnóstico diferencial com outras cardiopatiasrestritivas e, juntamente com os dados clínicos e deoutros exames complementares, ajuda a selar odiagnóstico. O fluxo mitral tem grande valor prognóstico.Assim, os pacientes, que apresentam fluxo mitral comcaracterísticas restritivas (tempo de desaceleraçãomenor que 150 ms), têm apenas 49% de probabilidadede sobrevida de um ano contra 92%, daqueles comsomente fluxo indicativo de anormalidade derelaxamento. A redução do relaxamento pode ser vistaatravés das valvas tricúspide e/ou mitral1,2.

Durante a realização de cateterismo cardíaco, aangiografia revela áreas de obliteração dos ápicesventriculares. O tamanho das cavidades pode estardiminuído e a parede miocárdica mais espessa que onormal. As curvas de pressão podem simular aquelasencontradas na pericardite constritiva, com formatosde ondas de depressão-e-platô, registrados durante adiástole no ventrículo direito1,2. Pode também mostrarevidentes regurgitações tricúspide e mitral.

O estudo da ventriculografia, por substâncias radionu-cleares, revela tamanho normal ou diminuído da cavidadeventricular, além de anormalidades no relaxamento daparede miocárdica, que também podem ser identificadas1.

O exame complementar, que fecha o diagnóstico é,inexoravelmente, a biópsia endomiocárdica, podendo-se fazer o diagnóstico diferencial entre as diferentesmodalidades de miocardiopatia restritiva3,5.

No caso por nós estudado, as biópsias miocárdica erenal confirmaram o diagnóstico de EMF e amiloidoserenal, respectivamente.

Os pacientes com miocardiopatias restritivas, sobre-tudo com EMF, podem ser inicialmente rotulados comoportadores de insuficiência cardíaca congestiva, sem oestabelecimento de um diagnóstico etiológico definitivo.O tratamento clínico é frustrante e insatisfatório1,6 . Otratamento cirúrgico é a principal opção terapêutica7.Os diuréticos são necessários, reduzindo pré e pós-carga, porém, é prejudicial aumentar a diurese a pontode diminuir as pressões de enchimento cardíaco2. Aterapia com corticóides não mostrou benefícios.

O prognóstico é variável de dois a dez anos, segundo agravidade do quadro clínico, após as primeiras manifes-tações8. As alterações que influenciam negativamente noprognóstico são: intensidade da fibrose apical, sinais derestrição diastólica, comprometimento da função ventricu-lar sistólica, envolvimento do aparelho subvalvar, presençade hipertensão pulmonar e trombos intracavitários3,5.

É, portanto, dever do clínico e do cardiologista umexame minucioso, complementado por exames subsidi-ários, como eletrocardiograma, radiografia de tórax,ecodopplercardiograma, angiografia, ventriculografia ebiópsia miocárdica, para um correto diagnóstico, nosentido de orientar, o mais precocemente possível, otratamento adequado.

Tem-se indicado precocemente o tratamentocirúrgico7,9, logo após o diagnóstico, realizandoressecção endocárdica, porém com altos índices demorbimortalidade, mesmo por cirurgiões experientes10.As valvas tricúspide e mitral em alguns pacientes sãosubstituídas por valvas protéticas6,7 e o transplantecardíaco pode ser necessário em casos selecionados9.