Epistemologia de Maturana

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    1/10

    A EPISTEMOLOGIA DE MATURANA

    The epistemology of Maturana

    Marco Antonio Moreira1

    Resumo: Diferentemente dos epistemlogos mais conhecidos no Ensino de Cincias, geralmenteoriundos das cincias fsicas e predominantemente racionalistas, Maturana vem das cincias biolgicase procura explicar o conhecer explicando o conhecedor e tomando como ponto de partida a experin-cia do observador e o observar. Esse observador no pode distinguir, na experincia, entre iluso e per-cepo, mas pode gerar explicaes da experincia que so reformulaes da experincia. As explicaescientficas, por exemplo, so reformulaes da experincia aceitas pela comunidade cientfica por satis-fazerem um critrio de validao estabelecido por ela mesma. Este texto procura detalhar essas idias.

    Unitermos: Cincia, explicaes cientficas, biologia do conhecer, epistemologia.

    Abstract:Unlike some epistemologists well known in science education, usually coming from the physicalsciences and mostly rationalists, Maturana comes from the biological sciences and tries to explain knowingby explaining the knower and taking as starting point the observer's experience and the observation. Thisknower cannot distinguish, in his/her experience, between illusion and perception, but he/she can generateexplanations of the experience, which are reformulations of the experience. Scientific explanations, for instance,are reformulations of experience accepted by the scientific community because they satisfy validation criteriaestablished by the community itself. This paper attempts to clarify these ideas.

    Keywords:Science, scientific explanations, biology of knowing, epistemology.

    Objetivo

    A finalidade deste texto, de carter monogrfico, a de descrever idias centrais da episte-mologia de Maturana. Para aprofundamento nessa epistemologia necessrio recorrer bibliografiaindicada ao final, particularmente obra Cognio, Cincia e Vida Cotidiana(MATURANA, 2001).

    Introduo

    Humberto Maturana, bilogo chileno nascido em 1928, fez doutorado em Biologia emHarvard, trabalhou em neurofisiologia no M.I.T. e professor da Universidade do Chile desde1960. A partir da noo de sistema, no mbito da Biologia, Maturana se perguntou: Que classe desistema um ser vivo? Essa pergunta guiou suas reflexes tericas e epistemolgicas e o levou, jun-tamente com Francisco Varela, outro chileno com a mesma formao, ao conceito de autopoiese.

    Teoria da autopoiese, ou Biologia do Conhecer, o nome dado ao conjunto das idiasde Maturana. Autopoiese a explicao do vivo:

    uma explicao do que o viver e, ao mesmo tempo, uma explicao da fenomenologia observadano constante vir-a-ser dos seres vivos no domnio de sua existncia. Enquanto uma reflexo sobre oconhecer, sobre o conhecimento, uma epistemologia. Enquanto uma reflexo sobre nossa experin-cia com os outros na linguagem, tambm uma reflexo sobre as relaes humanas em geral, e sobrea linguagem e a cognio em particular. (MAGRO & PAREDES, in MATURANA, 2001, p. 13).

    597Cincia & Educao, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004

    1 Instituto de Fsica da UFRGS. Caixa Postal 150519, CEP 1501-970, Porto Alegre, RS.http://www.if.ufrgs.br/~moreira. (e-mail: [email protected])

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    2/10

    Alm da Biologia, Maturana interessou-se por Filosofia, Antropologia, Anatomia,Gentica e Cardiologia (estudou medicina durante quatro anos). Quer dizer, preparou-se nombito biolgico de maneira ampla e, como conseqncia, seu interesse fundamental tem per-

    manecido centrado no humano. Em particular, seus estudos sobre o sistema nervoso e sobreos fenmenos da percepo o levaram concluso de que no o externo o que determina aexperincia; o sistema nervoso funciona com correlaes internas (MATURANA, 2001, p. 24).Conseqentemente, rejeita o "modo tradicional de abordar o ato cognitivo" que, segundo ele,tem sempre a ver com a indicao de algo externo ao sujeito.

    Ao invs de centrar-se em caractersticas materiais dos seres vivos ou de seus compo-nentes, Maturana (e Varela) fixa(m) a ateno em sua organizao e estrutura. A organizao dealguma coisa o conjunto de relaes que devem existir ou que tm que ser satisfeitas para queessa coisa exista; refere-se s relaes que definem a identidade de um sistema. A estrutura refe-re-se aos componentes, mais as relaes entre eles, que constituem um sistema particular. Na

    organizao no h referncia a componentes: eles tm que satisfazer as relaes da organiza-o. A estrutura tem que satisfazer as relaes da organizao, mas esta no faz referncia aoscomponentes. A organizao necessariamente uma invariante. Pode haver mudanas estrutu-rais sem perda de organizao. Qualquer mudana estrutural com perda de organizao umadesintegrao. (op. cit., p. 77-78). Portanto, h mudanas estruturais com conservao ou semconservao de organizao: a conservao ou no conservao definida pelo critrio de vali-dao do observador.

    No caso dos seres vivos, h, ento, uma organizao que os define como classe.Maturana e Varela (segundo ROSAS & SEBASTIN, 2001, p. 59) propem que o traocaracterstico dos seres vivos que, em sentido material, produzem a si mesmos de maneira

    constante e a isso chamam de organizao autopoitica. Para eles, os seres vivos so mquinasautopoiticas, ou seja, mquinas que continuamente especificam e produzem sua prpria orga-nizao por meio da produo de seus prprios componentes, sob condies de contnua per-turbao e compensao dessas perturbaes (produo de componentes).

    A organizao caracterstica dos seres vivos , ento, a autopoiese, mas esta tem comoproduto a organizao da mquina-ser-vivo em questo, que produz sua prpria organizao.Trata-se, portanto, de uma definio recursiva da organizao dos seres vivos: no se trata sim-plesmente de uma estrutura que explica uma fenomenologia prpria, mas sim de uma estru-tura que determina uma estrutura que determina uma estrutura que determina uma... queexplica uma fenomenologia prpria. (op. cit., p. 61). Esta definio situa-se completamente na

    rede de relaes entre relaes (entre relaes...) que constitui a recursividade.As mquinas autopoiticas so autnomas (subordinam todas suas mudanas con-servao de sua prpria organizao), tm individualidade (mantendo invariante sua organiza-o, conservam sua identidade) e no tm entradas nem sadas (mas podem ser perturbadaspor fatos externos e experimentar mudanas internas que compensam essas perturbaes).(MATURANA & VARELA, 1970/1994, apudROSAS & SEBASTIN, 2001, p. 63).

    A clula o exemplo paradigmtico concreto de unidade autopoitica: seu metabo-lismo consiste em uma rede de interaes que interconecta seus componentes moleculares eproduz molculas que formam parte da prpria clula. As molculas produzidas pela clula soprodutos da dinmica celular e ao mesmo tempo insumos para seu prprio funcionamento.

    O dinamismo prprio do processo de autopoiese implica uma permanente renova-o dos componentes moleculares, ou seja, uma permanente mudana estrutural. A histriadas mudanas estruturais de uma unidade autopoitica particular o que Maturana chama deontogenia(op. cit., p. 64).

    Marco Antonio Moreira

    598

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    3/10

    Para Maturana, existe uma congruncia estrutural mnima entre o ser vivo e o meio,da qual depende a existncia do primeiro. Nessa congruncia, uma perturbao do meio nocontm em si mesma uma especificao de seus efeitos sobre o ser vivo, este em sua estrutu-

    ra que determina sua prpria mudana frente a tal perturbao. Esta propriedade das unida-des autopoiticas chama-se determinismo estrutural(MATURANA & VARELA, 1984, apudROSAS & SEBASTIN, 2001, p. 65).

    O ser vivo , assim, uma mquina autopoitica determinada estruturalmente. Aestrutura de cada ser vivo especifica quatro domnios (ibid.):

    Domnio de mudanas de estado, i. e., mudanas estruturais sem mudar a organi-zao, mantendo, ento, a identidade de classe. Domnio de mudanas destrutivas, i. e., mudanas desintegradoras, perdendo aorganizao desaparecendo como unidade de uma certa classe.

    Domnio de interaes perturbadoras, ou seja, interaes que geram mudanas deestado. Domnio de interaes destrutivas, i. e., aquelas que resultam em mudanas des-trutivas.

    O ser vivo , ento, um sistema dinmico (uma mquina determinada estrutural-mente) e, como tal, sua estrutura est constantemente mudando, o que, por sua vez, implicaconstante variao nesses domnios estruturais.

    O acoplamento estrutural entre duas ou mais unidades autopoiticas de primeiraordem, mantendo a organizao autopoitica, resulta em uma unidade autopoitica de segun-

    da ordem e assim por diante. Para Maturana e Varela, um sistema autopoitico que implica aautopoiese das unidades autopoiticas que o geraram, um sistema atuopoitico de ordem superior(apudROSAS & SEBASTIN, 2001, p. 68).

    Embora o objetivo deste texto seja o de descrever a epistemologia de Maturana, asreferncias feitas at aqui a aspectos da Biologia do Conhecer (teoria da autopoiese) so neces-srias porque Maturana entende que para explicar o fenmeno do conhecer necessrio expli-car aquele ser no qual se materializa esse fenmeno, ou seja, necessrio explicar o conhece-dor que nesse caso o ser humano (op. cit., p. 75). Mas para explic-lo necessrio definir umponto de partida e este ponto a experincia do observador.

    Iluso e percepoMaturana chama ateno para o fato de que, na experincia, a iluso indistingu-

    vel da percepo. Na vida cotidiana e na vida social, enfim, na experincia humana, no pode-mos distinguir entre a iluso e o que chamamos cotidianamente de percepo (op. cit., p. 26).Por exemplo, quando "sentimos" que nosso trem est partindo, mas na verdade estamos para-dos e o trem no trilho ao lado que est em movimento.

    Conseqentemente, no podemos distinguir, na experincia, entre verdade e erro: oerro um comentrio a posteriorisobre uma experincia que se vive como vlida. Se no foivivida como vlida, era uma mentira. (MATURANA, 2001, p. 27).

    A epistemologia de Maturana

    599Cincia & Educao, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    4/10

    Explicaes

    Como j foi dito, para explicar o conhecer Maturana diz que necessrio explicar o

    conhecedor, que o ser humano, e o caracteriza como uma mquina autopoitica, uma mqui-na que funciona com correlaes internas produzindo sua prpria organizao atravs da pro-duo de seus prprios componentes.

    Toma, ento, como ponto de partida o observador observando, e o observar (ibid).Esse observador qualquer um de ns. Quer dizer, a tarefa a qual se prope a de explicar oobservador e o observar. Mas ele chama ateno que o explicar uma operao distinta da experinciaque se quer explicar. Ou seja, uma coisa a experincia e outra a explicao da experincia. Maturanad o seguinte exemplo (op. cit., p. 28): voc est dirigindo e, de repente, um carro que pareceter surgido do nada lhe ultrapassa; seu acompanhante se surpreende e voc procura justificarum pouco a surpresa dizendo "certamente ele vinha muito rpido, ou estava no ponto cego do

    retrovisor". Mas suas palavras so uma explicao da experincia. O fato que, na experincia,o automvel surgiu do nada. Dizer que estava no ponto cego ou que vinha muito rpido umaexplicao da experincia.

    O explicar sempre uma reformulao da experincia que se explica. As explicaes so sem-pre reformulaes da experincia, mas nem toda reformulao da experincia uma explicao. Umaexplicao uma reformulao da experincia aceita por um observador (op. cit., p. 29). O explicar ea explicao tm a ver com aquele que aceita a explicao. As explicaes so reformulaes da experin-cia aceitas por um observador (ibid.). No caso do ponto cego do retrovisor, essa no seria uma expli-cao para o aparecimento sbito do carro se no fosse aceita pelo acompanhante.

    Por outro lado, a explicao se d na linguagem. O discurso que explica algo d-se

    na linguagem. Para Maturana, os seres humanos existem na linguagem. esta nossa condioinicial (op. cit., p. 28): somos observadores no observar, no suceder do viver cotidiano na lingua-gem, na experincia na linguagem. Experincias que no esto na linguagem, no so. No hmodo de fazer referncia a elas, nem sequer fazer referncia ao fato de t-las tido.

    O explicar se d, ento, na linguagem, mas sua validade no depende do explicadore sim de quem aceita a explicao. Assim, h tantos explicares diferentes quanto modos de acei-tar reformulaes da experincia (op. cit., p. 30). H tantos explicares, tantos modos de explicar,como modos de aceitar as explicaes que so reformulaes da experincia. E isso absoluta-mente cotidiano (ibid.).

    Segundo Maturana, a cincia, por exemplo, se define por um modo particular de

    explicar. Para ele, a cincia no tem a ver com a predio, com o futuro, com fazer coisas, massim com o explicar. Os cientistas so pessoas que tm prazer em explicar. O que define o cien-tista , em sua ao como cientista, o modo de explicar e o critrio de aceitao de explicaesque usa (ibid.). Assim sendo, no tem sentido separar a cincia da vida cotidiana. ParaMaturana, a cincia uma glorificao da vida cotidiana, na qual os cientistas so pessoas quetm a paixo de explicar e que esto, cuidadosamente, sendo impecveis em explicar somentede uma maneira, usando um s critrio de validao de suas explicaes... (op. cit., p. 31).

    Dois modos de aceitar explicaes (reformulaes da experincia)

    Para Maturana, h dois modos fundamentais de aceitar reformulaes da experincia(op. cit., p. 32 e 33):

    No primeiro deles, o observador comporta-se como possuidor de certas habilidadescognitivas como se elas fossem constitutivas dele. Assume-se o observador e o observar como

    Marco Antonio Moreira

    600

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    5/10

    condies iniciais constitutivas. Conseqentemente, a pessoa opera como se os elementos queusa no observar, no explicar, no escutar, existissem independentes dela mesma. Seres, objetos,idias, diferentes modos de aceitar, existem independentemente do que a pessoa faz como

    observador. A existncia independente do observador. Este caminho explicativo o queMaturana (p. 32) chama de caminho da objetividade. Objetividade a seco, ou objetividade semparnteses, como diz ele. Nesse caminho, assume-se, explcita ou implicitamente, que poss-vel distinguir entre iluso e percepo porque se admite referncia a algo independente doobservador. Percebe-se, v-se, detecta-se com instrumentos; a razo permite dizer que isto assim independentemente do observador.

    No segundo caminho, aceita-se a pergunta pelo observador, assume-se a biologia doconhecer e, nesse caso, tal independncia no existe. Assume-se o fato de que o observador nopode distinguir entre iluso e percepo. O fenmeno do conhecer tem que ser explicado sema suposio de que possvel distinguir entre iluso e percepo. O que est disponvel para

    explicar o conhecer o que o observador faz no observar, i. e., o que ele faz como observador.A existncia depende, ento, do observador e a isso Maturana (p. 34) chama de objetividadeentre parnteses. Como ser humano, como ser vivo, o observador no pode distinguir entre ilu-so e percepo, logo, qualquer afirmao cognitiva sua vlida no contexto das coerncias quea constituem como vlida.

    Realidade

    No caminho explicativo da objetividade sem parnteses, h uma realidade indepen-dente do observador, qual ele tem um acesso privilegiado que lhe serve para elaborar sua

    explicao e configurar afirmaes cognitivas como peties de obedincia (p. 36), ou seja "assim", " independente de mim" ou "de ti", portanto, deve ser aceita.Porm, no outro caminho, o da objetividade entre parnteses, uma afirmao cog-

    nitiva vlida apenas no contexto das coerncias que a constituem como vlida. O observadorno pode pretender um acesso privilegiado no explicar pois, como ser humano, como ser vivo, nopode distinguir entre iluso e percepo. (ibid.) Nesse caminho h muitas realidades. A reali-dade no caminho da objetividade entre parnteses uma proposio explicativa. Ou seja, sempre um argumento explicativo. Ento, h tantas realidades todas diferentes, mas igualmentelegtimas quantos domnios de coerncias operacionais explicativas, quantos modos de reformulara experincia, quantos domnios cognitivos pudermos trazer mo (p. 38). Se h discordnciaentre o explicador e outra pessoa porque essa outra pessoa est em um domnio de realidadediferente daquele do observador, porm igualmente legtimo. Isso significa que as distintas rea-lidades que aparecem nesse caminho no so vises distintas da mesma realidade. No! Hdiferentes realidades, todas legtimas, o que para Maturana (p. 37), no o mesmo que dizerque a realidade no existe.

    No caminho explicativo de objetividade sem parnteses o explicador no respon-svel pela validade do que diz porque a realidade independente dele. Portanto, a negao dooutro responsabilidade desse outro. O outro nega a si mesmo (p. 38). Porm, no caminhoexplicativo da objetividade entre parnteses o outro pode estar em um domnio de realidadediferente daquele do explicador que igualmente vlido, ainda que no lhe agrade. O outropode, ento, ser negado no porque esteja equivocado mas porque est em um domnio de realidadeque no agrada ao primeiro. Pode tambm haver aceitao e respeito ao domnio de realidade dooutro. Respeito, no tolerncia, porque esta implica negao do outro enquanto o primeiroimplica em se fazer responsvel pelas emoes frente ao outro, sem neg-lo (p. 39).

    A epistemologia de Maturana

    601Cincia & Educao, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    6/10

    Emoes

    Emoes so disposies corporais dinmicas que especificam os domnios de aes

    nos quais os animais, em geral, e os seres humanos, em particular, operam em um dado instan-te. (p. 129). Maturana chama de aestudo o que fazemos em qualquer domnio operacional quegeramos em nosso discurso, por mais abstrato que ele possa parecer.Assim, pensar agir no dom-nio do pensar, refletir agir no domnio do refletir, falar agir no domnio do falar, e assim por dian-te, e explicar cientificamente agir no domnio do explicar cientfico (p. 128).

    Na vida cotidiana, nos movemos de um caminho explicativo para outro em umadinmica de emoes. Muitas vezes aceitamos e respeitamos o outro (estamos no caminhoexplicativo da objetividade entre parnteses), mas freqentemente queremos que o outro faao que queremos, ou que aceite o que explicamos e, ento, recorremos razo, nos colocandono caminho da objetividade sem parnteses. Argumentamos que o outro tem que fazer o que

    queremos ou estar de acordo com o que dizemos porque "racional e objetivo" (p. 39).Os cientistas, por outro lado, afirmam que suas emoes no participam na gerao

    das explicaes cientficas porque o critrio de validao dessas explicaes especifica, de umaforma independente de seu emocionar, quais as operaes que devem efetuar como observa-dores-padro para gerar tais explicaes, e porque aprenderam a serem cuidadosos para nodeixar suas preferncias e desejos distorcerem-se e, com isso, invalidarem sua aplicao do cri-trio de validao das explicaes cientficas (p. 145). Afirmam tambm que aprendem a reco-nhecer que quando isso acontece cometem um erro grave.

    Mas para Maturana as emoes especificam a todo momento o domnio de aes noqual os cientistas operam ao gerarem suas perguntas. Quer dizer, as emoes no entram na

    validao das explicaes cientficas, mas o que explicado surge atravs do seu emocionarexplicando o que querem explicar, e o explicam cientificamente porque gostam de explicardessa maneira. (p. 147)

    Ento, a cincia, como um domnio cognitivo, existe e se desenvolve como tal sempre expressandoos interesses, desejos, ambies, aspiraes e fantasias dos cientistas, apesar de suas alegaes de obje-tividade e independncia emocional (ibid.)

    Os cientistas, portanto, praticam a cincia como uma maneira de viver sob uma dasnumerosas emoes que constituem o ser humano em seu viver como ser humano emocionalnormal, ou seja, sob a paixo, emoo, desejo do explicar. (p. 150).

    A objetividade e a universalidade da cincia so, para Maturana, afirmaes morais. Aafirmao de objetividade na prtica da cincia uma afirmao moral porque significa o com-prometimento do observador-padro em no deixar seus desejos ou preferncias distorcerem ouinterferirem na sua aplicao do critrio de validao das explicaes cientficas. Analogamente,a alegao de universalidade da cincia uma alegao moral porque uma vez que a cincia, comodomnio cognitivo, acontece na prxis de viver do observador-padro como ser humano, todo serhumano pode, em princpio, operar como observador-padro, isto , aplicar, objetivamente, ocritrio de validao das explicaes cientficas, se assim o desejar (p. 148). Ou seja, a universali-dade da cincia no est em sua referncia a um universo, mas est na configurao de umacomunidade humana que aceita o critrio explicativo da cincia (p. 60).

    Marco Antonio Moreira

    602

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    7/10

    Cincia

    O cientista faz cincia como observador, explicando o que observa. Como obseva-

    dor ser humano e este j se encontra na situao de observador observando quando comeaa observar seu observar na sua tentativa de descrever e explicar o que quer explicar. Quer dizer,ele j se encontra na linguagem, fazendo distines na linguagem quando comea a refletir nalinguagem sobre o que faz para explicar o que quer explicar. Isso cotidiano. O cientista j estna experincia de observar quando comea a observar o que quer observar para explicar o quequer explicar.

    Mas, se o cientista faz o que faz o observador cotidiano que vive no observar, o quecaracteriza a cincia como domnio cognitivo e o cientista como cientista operando na paixodo explicar aquilo que deseja explicar?

    a aceitabilidade de um critrio particular de validao das explicaes (cientficas).

    As explicaes cientficas no se referem verdade, mas configuram um domnio de verdade. A cin-cia um domnio cognitivo vlido para todos aqueles que aceitam o critrio de validao das expli-caes cientticas(p. 57).

    Para Maturana, a cincia , ento, uma atividade humana, cotidiana. O que a definecomo um domnio explicativo particular o critrio de validao de explicaes que os cientistasusam, e o que define o cientista como um tipo particular de pessoa sob a paixo do explicar o usodo critrio de validao de explicaes que constitui a cincia como um domnio explicativo (p. 134).

    O critrio de validao das explicaes cientficas

    So quatro as condies que devem satisfazer as explicaes de um fenmeno (refor-mulaes da experincia) para serem consideradas cientficas, na perspectiva de Maturana (p. 56,57, 134, 135, 138, 139, 140):

    1. Ter ofenmeno a explicar, o qual sempre apresentado como uma receita do queum observador deve fazer para ter a experincia que vai tratar como fenmeno aexplicar. Fazer tal e tal coisa, ver isso e aquilo, medir assim e assim, controlar de talmaneira,... Ou seja, a primeira condio a apresentao da experincia (o fenme-no) a ser explicada em termos daquilo que o observador-padro deve fazer em seudomnio de experincias para experienci-la. Assim, o que o observador tem como

    experincia que constitui o que se quer explicar, no o fenmeno. Aqueles que nopodem satisfazer as condies que geram a experincia no tm lugar no espao deatividades do cientista.2. Ter a hiptese explicativa, que sempre a proposio de um mecanismo que, postoa funcionar, gera o fenmeno a explicar como resultado deste funcionamento naexperincia do observador. Em outras palavras, a reformulao da experincia (ofenmeno) a ser explicada dada sob a forma de um mecanismo gerativo que, se rea-lizado por um observador-padro lhe permite ter em seu domnio de experincias aexperincia a ser explicada, tal como apresentada na primeira condio.3. Satisfazer a deduo, a partir da operao do mecanismo gerativo proposto nasegunda condio, assim como de todas as coerncias operacionais do mbito deexperincias do observador-padro a ele vinculado, de outras experincias que umobservador-padro deveria ter atravs da aplicao daquelas coerncias operacionaise das operaes que deve realizar em seu domnio de experincias para t-las.

    A epistemologia de Maturana

    603Cincia & Educao, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    8/10

    4. A realizao dessas experincias, ou seja, a experincia, por um observador padro,das experincias (fenmenos) deduzidos na terceira condio atravs da realizao,em seu domnio de experincias, das operaes tambm deduzidas nessa condio.

    apenas quando essas quatro condies so conjuntamente satisfeitas que umaexplicao pode ser considerada cientfica. Isto , quando isso acontece, o mecanismo gerativoproposto na segunda condio passa a ser uma explicao cientfica.

    Maturana chama ateno que esse critrio de validao das explicaes cientficasno requer a suposio de uma realidade independente em nenhuma das condies se fazessa suposio. Ela pode ser feita, mas suprflua para uma explicao ser cientfica.

    Os cientistas, segundo ele, procuram ser impecveis em satisfazer essas quatro condiesde uma maneira coerente, sem saltos de um domnio para outro, porque no momento em que issoacontecer e a deduo no for feita a partir das coerncias operacionais ela no serve. (p. 57)

    Uma explicao vlida na comunidade de cientistas enquanto observadores-padroaceitam que o critrio de validao das explicaes cientficas foi satisfeito. (p. 136).Na vida cotidiana, o ser humano tambm explica, atravs de reformulaes da experin-

    cia, que a maneira pela qual ns validamos nossas aes na vida cotidiana, dentro de qualquerdomnio operacional, envolve as mesmas coerncias operacionais envolvidas no critrio de valida-o das explicaes cientficas. (p. 139). A diferena entre nossa operao na vida cotidiana comocientistas e como no-cientistas depende de nossas diferentes emoes, de nossos diferentes desejos de con-sistncia e impecabilidade em nossas aes e de nossos diferentes desejos de reflexo sobre o que fazemos(ibid.). Como cientistas estamos sob a paixo do explicar, e toda dvida, toda pergunta, semprebem-vinda para nossa realizao enquanto tal. Como no-cientistas, no somos cuidadosos, usa-

    mos sucessivamente muitos critrios deferentes de validao de nossas explicaes, mudamos fre-qentemente de domnios fenomnicos em nosso discurso. (p. 140)O que torna cientfica uma explicao ou uma teoria o fato de ela ser validada pelo

    critrio de validao das explicaes cientficas, no a quantificao ou a possibilidade de algu-mas predies (p. 142), ou a falseabilidade e verificabilidade:

    As noes de falseabilidade, verificabilidade ou confirmao aplicar-se-iam validao do conhe-cimento cientfico apenas se este fosse um domnio cognitivo que revelasse, direta ou indiretamen-te, por denotao ou conotao, uma realidade transcendente independente do que o observadorfaz, e se a segunda condio do critrio de validao das explicaes cientficas fosse um modelodessa realidade transcendente, em vez de um mecanismo gerativo que faz surgir a experincia a ser

    explicada tal como apresentada na primeira condio. (p. 143)

    Para Maturana, uma teoria um sistema explicativo que correlaciona muitos fen-menos (experincia) de outra forma aparentemente no correlacionados. um sistema propos-to como um domnio de explicaes coerentes, junto a alguns conceitos que definem a natu-reza de sua conectividade interna e a extenso de sua aplicabilidade gerativa. (p. 163). Para ele,o objetivo de uma teoria cientfica explicar, e no resguardar ou proteger qualquer princpioou valor, ou obter qualquer resultado desejado. (p. 166). Devido ao seu modo de constituio, asteorias cientficas surgem intrinsecamente em um domnio aberto de reflexes sobre tudo, incluindoseus fundamentos, e so, operacionalmente, livres de qualquer dogmatismo (p. 167). (Teorias filo-

    sficas, por outro lado, estariam comprometidas com a manuteno de princpios explicativos.Elas surgem no processo de gerar um sistema logicamente consistente e diretamente subordi-nado conservao de algumas noes explicativas bsicas, sob a forma de princpios ou valo-res; ibid.) A prtica cientfica , em princpio, libertadora.

    Marco Antonio Moreira

    604

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    9/10

    Finalmente, h que registrar que para Maturana as noes de progresso, de respon-sabilidade social e tica no se aplicam cincia como domnio cognitivo. Tais noes aplicam-ses aes humanas, no cincia. A noo de progresso tem a ver com o que ns, seres humanos,

    consideramos melhor ou desejamos que acontea na vida humana. A noo de responsabilidadesocial tem a ver com nossa conscincia de querermos ou no as conseqncias de nossas aes.E a noo de tica tem a ver com nosso interesse pelas conseqncias de nossas aes na vidade outros seres humanos. (p. 149-150). O conhecimento cientfico pode ser usado para qual-quer propsito que possamos querer e a entram, no fluir de nosso linguajar e emocionar, asnoes de progresso, responsabilidade e tica.

    Concluso

    Nesta monografia tentei descrever idias centrais da epistemologia de Maturana.

    Para isso, tive que comear com a teoria da autopoiese, que a explicao do ser vivo, pois oobservador-padro um sistema vivo estruturalmente determinado e, enquanto tal, no temcomo fazer, operacionalmente, uma distino que se possa, de alguma forma, afirmar ser a dis-tino de algo independente de seu fazer. Esse observador-padro no pode distinguir, na expe-rincia, entre iluso e percepo. Mas pode gerar explicaes da experincia que so reformulaesda mesma. Toda explicao uma reformulao da experincia aceita por outro, segundoalgum critrio de validao. As explicaes cientficas so reformulaes da experincia aceitaspela comunidade cientfica com base em um critrio claro de validao estabelecido por elamesma. Cotidianamente tambm explicamos, mas nossos critrios de validao no so rigo-rosos, consensuados, nicos.

    Maturana , ou foi, cientista na rea da Biologia; fez seu doutorado em Biologia emHarvard e trabalhou no M.I.T., duas instituies mundialmente reconhecidas na pesquisacientfica. Mas sua epistemologia diferente da de outros cientistas porque seu ponto de par-tida o observador-padro enquanto ser vivo. Quer dizer, o ponto de partida distinto e deledecorre, inevitavelmente, uma epistemologia distinta. Se consegui descrev-la, neste trabalho,sem grandes distores, ou omisses, no sei, mas, como diria Maturana, o fiz na emoo, napaixo, de descrever.

    Referncias

    MATURANA, H. Cognio, cincia e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. 200 p.

    ROSAS, R. Y. & SEBASTIN, C. Piaget, Vigotski y Maturana: constructivismo a tres voces. BuenosAires: Aique, 2001.

    Bibliografia adicional sugerida

    MATURANA, H. R. La realidad objetiva o construida?: I fundamentos biolgicos de la realidad.Mxico: Anthoropos, 1995.

    ______. La realidad objetiva o construida? II fundamentos biolgicos del conocimiento. Mxico:Anthoropos, 1996.

    ______.A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. 350 p.

    A epistemologia de Maturana

    605Cincia & Educao, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004

  • 7/22/2019 Epistemologia de Maturana

    10/10

    MATURANA, H. R. & VARELA, F. El rbol del conocimiento: las bases biolgicas del conocimientohumano. Madrid: Debate, 1996.

    ______.A rvore do conhecimento: as bases biolgicas da compreenso humana. So Paulo: PalasAthena, 2001. 283 p.

    VARELA, F. Conocer. Barcelona: Gedisa, 1998.

    VARELA, F. J.; THOMSON, E.; ROSCH, E. The embodied mind: cognitive science and humanexperience. Cambridge: The MIT Press, 1993. 308 p.

    Marco Antonio Moreira

    606