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Assis, no acervo do IMB, com um dos raros discos do maestro – Foto Darlan Ferreira Capa do LP do XVI Festival de Inverno de Campos do Jordão, com participação de Eleazar Capa do LP com aberturas de Carlos Gomes Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº 3 – 2/7/2012 Eleazar, por Assis Pela terceira vez chegamos aos leitores de Jornalistas&Cia com o especial Memória da Cultura Popular Brasileira, resultado da par- ceria com o Instituto Memória Brasil e seu fundador e presidente Assis Ângelo. E desta vez fomos resgatar de seu acervo, composto de mais de 150 mil itens, uma joia rara: a entrevista que ele fez com o maestro Eleazar de Carvalho em 1985, publicada original- mente no D.O. Leitura, suplemento do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 4 de julho daquele ano. E não poderia haver momento mais oportuno para a reedição deste belo trabalho: no último dia 28 de junho celebrou-se o centenário de nascimento desse que é um dos mais importantes maestros brasileiros de todos os tempos. Boa leitura! Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli O maestro dos maestros e das grandes orquestras Este é o ano do centenário de nascimento de Eleazar de Carvalho, um brasileiro que encantou o mundo com a sua batuta. E bem que poderia ser também o ano de lançamento em CD e DVD dos concertos que deixou. Por Assis Ângelo Não foram nem dez nem 20 as or- questras que Eleazar de Carvalho regeu mundo afora, ora como titular, ora como convidado. Só na Europa, foram 43; nos Estados Unidos, 18, sem contar passagens pelo Japão e Oriente Médio. A sua batuta mágica e forte presença nos grandes palcos estrangeiros estão registradas na retina e memória de admi- radores das sinfônicas de Londres e Paris e das filarmônicas de Viena e Berlim, entre muitas outras. E não foram poucas as vezes que ele encantou os frequentadores do Teatro Alla Scala de Milão, na Itália, onde Carlos Gomes, um de seus autores prediletos, estreou Il Guarany, em 1870. Para a posteridade, deixou apenas três LPs: um com sua participação à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Osesp, no XVI Festival de Inverno, ao lado de Diogo Pacheco e Fábio Mechetti; outro com uma de suas duas óperas, O Descobrimento do Brasil; e mais um com aberturas e prelúdios do autor de Il Gua- rany, que levou ao público no tempo que liderava a Orquestra Sinfônica Brasileira, a OSB. Esse disco – Aberturas de Carlos Gomes –, de 1969, traz texto na contracapa assi- nado pelo pianista pernambucano Marlos Nobre sobre a formação da música erudita no Brasil, desde o romântico Carlos Gomes ao modernista Villa-Lobos; passando, antes, pelo padre José Maurício Nunes Garcia, nome marcante da nossa música dos tem- pos coloniais. Inexplicavelmente, porém, o pianista Nobre nenhuma referência faz a Eleazar, seja como maestro, seja como autor. Mas não importa. Importa que reeditem e tragam à tona no formato de CD ou DVD os concertos que o maestro deixou grava- dos, hoje esquecidos nos arquivos de rádios e televisões estrangeiras e brasileiras, como os da Fundação Padre Anchieta. Eleazar estudou, ensinou e regeu muito. Doutorou-se em Música pela Washing- ton University e em Letras Humanísticas pela Hofstra University, depois de estudar com Sergei Koussewitzky, que considerava um mestre. O mundo conhece alguns de seus alu- nos: Zubin Mehta, Claudio Abbado e Seiji Ozawa... De volta ao Brasil, Eleazar dirigiu várias orquestras, entre elas as de Paraíba, Recife e Porto Alegre, e criou o Festival de Inverno de Campos do Jordão, em 1972. Em 1985, em entrevista que me conce- deu no escritório que mantinha numa das dependências do Teatro Cultura Artística, à rua Nestor Pestana, 196, no bairro pau- listano da Consolação, ele lembrou um en- contro que teve com Gustavo Capanema. Ia para os Estados Unidos. Capanema, seu amigo e ministro da Cultura de Vargas, em 1946, quis saber o que ele ia fazer lá fora. “Estudar”, ouviu o ministro como resposta. Eleazar foi estudar no exterior por achar que o ensino de música no Brasil estava muito atrasado. O tempo passou e 26 anos depois de estar à frente das principais orquestras do mundo – incluindo a Saint- -Louis Symphony, que dirigiu por quase uma década e com a qual fez mais de 1.000 concertos –, reencontrou Capanema já se- nador, que de novo quis saber sobre a qua- lidade do ensino musical no País. “Continua do mesmo jeito, talvez pior”, respondeu. Cearense de Iguatu, Eleazar Segundo Afonso de Carvalho nasceu em 28 de junho de 1912. A sua história é incrível. Dono de forte personalidade e extre- mamente decidido, pode se dizer que ele inventou o seu próprio destino. Foi tudo o que quis ser e fez tudo o que achou que deveria fazer na vida. Pra começo, em 1927, trocou a pequena Iguatu pelo Rio de Janeiro. Depois já em 1930, precisamente no dia 27 de janeiro, ele soprava tuba num dos

Especial Cultura Popular Nº 3

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Especial Cultura Popular Nº 3

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Page 1: Especial Cultura Popular Nº 3

Assis, no acervo do IMB, com um dos raros discos do maestro – Foto Darlan Ferreira

Capa do LP do XVI Festival de Inverno de Campos do Jordão, com participação de Eleazar

Capa do LP com aberturas de

Carlos Gomes

Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº 3 – 2/7/2012

Eleazar, por AssisPela terceira vez chegamos aos leitores de Jornalistas&Cia com

o especial Memória da Cultura Popular Brasileira, resultado da par-ceria com o Instituto Memória Brasil e seu fundador e presidente Assis Ângelo. E desta vez fomos resgatar de seu acervo, composto de mais de 150 mil itens, uma joia rara: a entrevista que ele fez com o maestro Eleazar de Carvalho em 1985, publicada original-mente no D.O. Leitura, suplemento do Diário Oficial do Estado

de São Paulo, em 4 de julho daquele ano. E não poderia haver momento mais oportuno para a reedição deste belo trabalho: no último dia 28 de junho celebrou-se o centenário de nascimento desse que é um dos mais importantes maestros brasileiros de todos os tempos.

Boa leitura!Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº 3 – 2/7/2012

O maestro dos maestros e das grandes orquestrasEste é o ano do centenário de nascimento de Eleazar de Carvalho, um brasileiro que encantou o mundo com a sua batuta. E bem que poderia ser também o ano de lançamento em CD e DVD dos concertos que deixou.Por Assis Ângelo

Não foram nem dez nem 20 as or-questras que Eleazar de Carvalho regeu mundo afora, ora como titular, ora como convidado. Só na Europa, foram 43; nos Estados Unidos, 18, sem contar passagens pelo Japão e Oriente Médio.

A sua batuta mágica e forte presença nos grandes palcos estrangeiros estão registradas na retina e memória de admi-radores das sinfônicas de Londres e Paris e das filarmônicas de Viena e Berlim, entre muitas outras.

E não foram poucas as vezes que ele encantou os frequentadores do Teatro Alla Scala de Milão, na Itália, onde Carlos Gomes, um de seus autores prediletos, estreou Il Guarany, em 1870.

Para a posteridade, deixou apenas três LPs: um com sua participação à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Osesp, no XVI Festival de Inverno, ao lado de Diogo Pacheco e Fábio Mechetti; outro com uma de suas duas óperas, O Descobrimento do Brasil; e mais um com

aberturas e prelúdios do autor de Il Gua-rany, que levou ao público no tempo que liderava a Orquestra Sinfônica Brasileira, a OSB. Esse disco – Aberturas de Carlos Gomes –, de 1969, traz texto na contracapa assi-nado pelo pianista pernambucano Marlos Nobre sobre a formação da música erudita no Brasil, desde o romântico Carlos Gomes ao modernista Villa-Lobos; passando, antes, pelo padre José Maurício Nunes Garcia, nome marcante da nossa música dos tem-pos coloniais.

Inexplicavelmente, porém, o pianista Nobre nenhuma referência faz a Eleazar, seja como maestro, seja como autor.

Mas não importa. Importa que reeditem e tragam à tona no formato de CD ou DVD os concertos que o maestro deixou grava-

dos, hoje esquecidos nos arquivos de rádios e televisões estrangeiras e brasileiras, como os da Fundação Padre Anchieta.

Eleazar estudou, ensinou e regeu muito.Doutorou-se em Música pela Washing-

ton University e em Letras Humanísticas pela Hofstra University, depois de estudar com Sergei Koussewitzky, que considerava um mestre.

O mundo conhece alguns de seus alu-nos: Zubin Mehta, Claudio Abbado e Seiji Ozawa...

De volta ao Brasil, Eleazar dirigiu várias orquestras, entre elas as de Paraíba, Recife e Porto Alegre, e criou o Festival de Inverno de Campos do Jordão, em 1972.

Em 1985, em entrevista que me conce-deu no escritório que mantinha numa das

dependências do Teatro Cultura Artística, à rua Nestor Pestana, 196, no bairro pau-listano da Consolação, ele lembrou um en-contro que teve com Gustavo Capanema. Ia para os Estados Unidos. Capanema, seu amigo e ministro da Cultura de Vargas, em 1946, quis saber o que ele ia fazer lá fora. “Estudar”, ouviu o ministro como resposta.

Eleazar foi estudar no exterior por achar que o ensino de música no Brasil estava muito atrasado. O tempo passou e 26 anos depois de estar à frente das principais orquestras do mundo – incluindo a Saint--Louis Symphony, que dirigiu por quase uma década e com a qual fez mais de 1.000 concertos –, reencontrou Capanema já se-nador, que de novo quis saber sobre a qua-lidade do ensino musical no País. “Continua do mesmo jeito, talvez pior”, respondeu.

Cearense de Iguatu, Eleazar Segundo Afonso de Carvalho nasceu em 28 de junho de 1912.

A sua história é incrível.Dono de forte personalidade e extre-

mamente decidido, pode se dizer que ele inventou o seu próprio destino. Foi tudo o que quis ser e fez tudo o que achou que deveria fazer na vida.

Pra começo, em 1927, trocou a pequena Iguatu pelo Rio de Janeiro.

Depois já em 1930, precisamente no dia 27 de janeiro, ele soprava tuba num dos

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Capa da partitura de Ta-hí e Carmen Miranda na época em que gravou a música

Em 1946, foi para os Estados Unidos sem falar uma frase sequer em inglês.

Mas antes, ainda no tempo dos 13 anos, o pai Manoel, capitão do Exército, o matriculou na Escola de Aprendizes de Marinheiros para fazê-lo se aquietar, pois era de uma inquietação só; barulhento e traquinas.

Internado naquele ambiente, não de-morou a descobrir que os meninos que integravam a banda de música recebiam tra-tamento diferenciado, inclusive à mesa, onde as refeições servidas eram melhores e fartas.

Foi quando, então, teve um estalo e se inscreveu como tocador de tuba, mas não tocava tuba.

Problema? Não, pois logo virou o melhor tubista

da banda.Esforçado e sempre estudando, Eleazar

desde muito cedo se preocupava com o ensino musical no Brasil, tanto que, con-vencido por Villa-Lobos e Carlos Lacerda, candidatou-se a deputado pela UDN.

A ideia como deputado era investir na área de ensino, mas não galgou sucesso.

Motivo: na eleição, recebeu apenas 12 votos.

Como compositor operístico, ele deixou Tiradentes e O Descobrimento do Brasil, que apresentou pela primeira vez em

11/6/1939, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

O que o nacionalista confesso Eleazar de Carvalho tinha de talento, tinha também de simplicidade. Jamais deixou de atender a quem quer que fosse, independentemente da predileção do gênero musical de quem o procurasse, popular ou erudito.

O que ele achava da música popular?“Uma bobagem”, e uma vez ilustrou: “O

seu amigo Vandré tem muito talento e quer que eu faça uns arranjos da sua obra, mas não dá para fazer”.

O maestro detestava a expressão “arran-jo”, por isso não foi de estranhar a sua recusa ao autor de Caminhando.

Mas ele também surpreendia, e muito.Numa ocasião, ele me chamou ao es-

critório para me entregar um texto que escrevera de próprio punho a respeito do livro O brasileiro Carlos Gomes, de minha autoria, que lhe dera para ler.

Achei curioso e guardei o texto, que está no box da pág. 3.

Capa da partitura

estúdios da extinta Victor para a portugue-sinha Carmen Miranda cantar na gravação da marcha Ta-hí (Pra você gostar de mim), de Joubert de Carvalho.

Foram muitas as vezes em que ele se apresentou ao lado de nomes conhecidos como Pixinguinha, Donga e Ary Barroso e integrou grupos musicais como o American Jazz; e até gravou marcha carnavalesca de sua autoria, com o pseudônimo de Razaele.

Em 1941, Eleazar já colecionava diplo-mas de Composição, Canto, Contraponto, Harmonia, Regência; 18, no total.

Selo que os Correios lançaram em homenagem

ao centenário de nascimento do maestro

Qual a linha divisória que separa a mú-sica popular da chamada música erudita ou clássica?

– A meu ver, a linha divisória é uma linha eminentemente filosófica. A música popular, a chamada música popular, pra mim “música de diversão”, se detém no tonalismo, seu ponto principal. A música tonal é aquela que pode ser cantada sem nenhuma desafinação e que representa o povo, o que está no povo, o que vem do povo, a realidade do povo. Ela segue mol-des tonais. Por isso, esse tipo de música en-velhece muito rapidamente. Ao passo que a outra música, a música que chamamos “artística” e que muita gente conhece por “clássica” ou “erudita”, é escrita exatamente para resistir ao tempo. Ela se eterniza ao passar do tempo. Nas salas de aula, nós situamos esse tipo de música dentro do período de 1770 a 1830. Resumindo: a meu ver, é a força tonal que separa uma música

da outra; é a invenção, a criação no atonalismo que separa uma da outra. Beethoven e Ravel, por exemplo, são compositores populares no mun-do inteiro. Bach então, é popularíssimo!

Maestro, o sr. teve uma rápida passa-gem pela música popular brasileira ou pela “música de diversão”, como queira. Pois bem, dá para o sr. falar um pouco dessa experiência?

– Bom, essa experiência foi uma ex-periência meramente profissional. Na época eu tocava na orquestra da ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e, frequentemente, era solicitado por grupos que faziam música pra dança, pra cassino, música de gravação, enfim. Eu tocava tuba. A tuba, depois, foi substituída pelo contrabaixo, pelo contrabaixo acústico, pelo contrabaixo sem acústica e sei lá por mais o quê. Então, eu era convidado pra tocar nesses grupos. Com a tuba, meu ins-trumento, cheguei a tocar num conjunto chamado American Jazz. Gravei muito. Gravei com Carmen Miranda, com muita gente. Quem organizava esses grupos musicais era o Ary Barroso. Ary era meu amigo. Privei da amizade de Ary Barroso,

Pixinguinha, Donga, João da Baiana, desse pessoal todo. Mas eu não queria seguir o mesmo caminho que eles seguiram. Eu sempre quis seguir outra direção, a direção em que hoje me encontro. Sou maestro, compositor artístico. Talvez seja por isso que não sou citado na história da chamada música popular brasileira. O que é natural. Esse pessoal com quem trabalhei deu uma contribuição diferente daquela que eu poderia dar. Naquela época, eu já me inclinava para a composição artística e compunha com um certo pensamento nacionalista. É dessa época, por exemplo, a

O D.O. Leitura com a entrevista de Eleazar de Carvalho

Do popular ao erudito:

O nosso grande maestro já compôs marcha de carnaval, tocou tuba em bailes do Botafogo, em companhia de Donga, Pixinguinha, Ary Barroso e Almirante, e até gravou com Carmen Miranda. Nesta entrevista, Eleazar de Carvalho revela fatos pouco conhecidos de sua vitoriosa carreira de regente e conclui pessimista: “O nosso ensino está atrasado uns 100 anos, pelo menos. A nossa escola de música é medíocre!”Entrevista ao jornalista Assis Ângelo

Eleazar de Carvalho(reprodução da íntegra da entrevista publicada no D.O. Leitura, suplemento do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 4/7/1985)

Você sabia?... Que saiu do acervo do Instituto

Memória Brasil a exposição multimí-dia Roteiro Musical da Cidade de São Paulo, que o Sesc Santana apresentou de 25/1 a 27/5 deste ano?

Você sabia?... Que o Instituto Memória Brasil

preserva o maior acervo de poesias gravadas em discos de todos os for-matos, incluindo os de 78 rpm, que deixaram de ser fabricados em 1964?

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minha primeira ópera, O Descobrimento do Brasil, e outras obras inspiradas nos grandes movimentos nacionais, como Tiradentes, Retirada da Laguna e Guararapes. E tam-bém foi nessa época que, participando de conjuntos de dança como tubista, gravei algumas músicas de diversão. Lembro de Ta-hí (ou Pra você gostar de mim, de Joubert de Carvalho) e O teu cabelo não nega (dos irmãos Valença, com Lamartine Babo).

Isso em que período, maestro? – Entre 38 e 44. Nessa época eu já estava

na orquestra do Teatro Municipal, como lhe disse. Entrei na escola de música (Es-cola Nacional de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1930. Oito anos depois eu estava terminando o curso superior (de Composição e Regência). Mas, para terminá-lo, em 1941, eu fazia tudo, fazia uma mistura musical danada. Em junho de 39, eu fiz o meu primeiro grande trabalho de cena, que foi O Descobrimento do Brasil. Antes disso, porém, eu já havia escrito outras obras para orquestra e para banda. Sim, compus muitos dobrados para

banda. Cheguei a cantar em coros de igreja. Fiz todos os cursos da Universidade: 18, pois eu pretendia ser professor de Solfejo. Foi sorte minha não ter sido...

O sr. lembra de quantas gravações participou?

– Não, realmente não me lembro. Na-quela época, não pensávamos em fazer história. Gravávamos como profissional, pensávamos como profissional. Era assim: a gente recebia um cachê pela participa-ção numa gravação qualquer e ia pra casa dormir.

O sr. sempre tocou tuba?– Sim, eu sempre toquei tuba. Mas quan-

do fui para os Estados Unidos tive de estu-dar piano e contrabaixo. Mas fiz um estudo de piano rudimentar, piano de regente, para acompanhar cantor, e não um piano concertista, aquele que deve comparecer num palco tocando uma sonata de Beetho-ven ou um concerto de Rachmaninoff. No piano rudimentar, se faz o essencial para se destrinchar as harmonias de uma partitura. E só, nada mais.

O sr. chegou a compor alguma canção sozinho ou mesmo em parceria com ar-tistas como Pixinguinha ou Ary Barroso?

– Não, não chegamos a compor nada juntos, em parceria, embora tocássemos frequentemente num mesmo palco. Aliás, a primeira e última vez que me aventurei a escrever uma música de diversão não me saí bem. Era uma marcha de carnaval, uma tolice que não fez sucesso nenhum.

Que marcha era essa?– Não me lembro. Lembro que assinei

com um pseudônimo.Qual era o pseudônimo?– Meu nome ao contrário: Razaele. Mas

lembro que me apresentei muitas vezes no Cine Odeon, na Cinelândia, no Rio de Janei-

ro. Entre um filme e outro havia uma sessão de música. E lá tocávamos eu, Pixinguinha, Ary Barroso, Donga, Almirante. Eu integrava a Orquestra do Donga. Nessa orquestra, a gente ia até para as “batalhas” de confete. Enfim, a gente fazia essas bobagens todas! A batalha de confete era uma coisa muito importante na época. Nós circulávamos dentro de um carro: eu, sentado na capota, tocando tuba, e eles tocando seus próprios instrumentos. Também fazíamos bailes todos os domingos na sede do Botafogo Fu-tebol Clube. Além de mim, Donga, Pixingui-nha, Ary Barroso e Almirante, integravam esse conjunto, essa orquestra, os cidadãos Areias, no saxofone-tenor; Fon-Fon, no saxofone-alto; Rodrigues, no trompete, e um pianista cujo nome não me recordo.

Isso entre 38 e 44?– Sim. Depois, em 1946, viajei para os

Estados Unidos e por lá permaneci durante 26 anos. Morei 16 anos em Boston e dez em St. Louis. Viajei pelos Estados Unidos, Europa, Oriente Médio, Japão, pelo mun-do todo ensinando e regendo as grandes orquestras. A minha carreira foi toda enca-

De Eleazar para AssisTranscrição do texto, até agora inédito, que o maestro

escreveu de próprio punho, em julho de 1987, em papel timbrado da Orquestra Sinfônica de São Paulo, sobre o livro O brasileiro Carlos Gomes, de Assis:

“Dominando a árdua tarefa da pesquisa, Assis Ângelo escreveu o livro O brasileiro Carlos Gomes preocupado não com o sucesso comercial, mas, simplesmente, plasmando suas observações sob a inteira proteção de resultados dos fatos reais que marcaram a vida e a obra do nosso maior compositor operístico das Américas.

Como destaque, transcreve a tradução do libreto de O Guarani, de autoria do poeta Paula Barros, quase desconhe-cido do povo brasileiro; felizmente, o trio de cantores líricos – a soprano Carmem Gomes, o tenor Reis e Silva, o barítono Sylvio Vieira – e o autor deste depoimento (o único vivo desse quarteto) tiveram participação ativa na elaboração do libreto e na apresentação de trechos da ópera cantada em português.

Parabéns a Assis Ângelo por reviver o tempo passado e, como observou Roberto Machado, o tempo original, absoluto, idêntico à eternidade, que só a Arte pode proporcionar.” O texto do maestro sobre o livro de Assis

Você sabia?... Que fica no Instituto Memória

Brasil o maior acervo musical sobre o rei do baião Luiz Gonzaga, incluindo uma música de sua autoria com Zé Dantas gravada em rapanui, língua da Ilha de Páscoa?

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minhada pelo lado internacional. Fui para os Estados Unidos por conta própria, sem ser chamado ou mandado por ninguém. Quando me preparava para deixar o Brasil, fui-me despedir do ministro da Educação, Gustavo Capanema, que era meu amigo e havia-me entregue um prêmio pela minha segunda ópera, Tiradentes. Essa ópera, aliás, foi examinada e julgada por um grupo de intelectuais integrado por Mário de Andra-de e Francisco Braga. Bom, então o ministro Capanema me perguntou na ocasião por que eu estava deixando o País. Eu lhe disse que estava deixando o Brasil porque falta-vam professores e eu queria aprender mais, pois os meus 18 diplomas não me basta-vam. Eu disse, enfim: “Eu preciso estudar, ministro”. E ele: “Então estude”. Nessa época eu já tinha cursos de Regência, de Composi-ção, Canto, Harmonia, Contraponto, Solfejo etc.. Uns trinta anos depois, voltei a me encontrar com Capanema, já senador. Ele

me cumprimentou perguntando: “E agora, maestro, como é que vai a nossa música?”. Respondi: “Do mesmo jeito, senador, e no mesmo lugar, sem professores, sem nada”. E assim ainda continua... A nossa escola de música é medíocre! O nosso ensino está atrasado uns cem anos, pelo menos. Só podemos lamentar, não é? Sabemos das dificuldades e da distância no nosso meio. O Brasil é um país muito grande, mas diluíram muitas coisas, inclusive as nossas heranças primitivas.

Temos influência africana...– Portuguesa, espanhola. O que perma-

neceu um pouco mais entre nós foi a influ-ência do negro, do índio. Principalmente a do índio, que já existia antes mesmo do descobrimento. O negro, casado com o índio, acabou dando uma “força” maior à música brasileira. Não digo “popular”, digo folclórica, que é a música de raízes mais só-lidas. O povo... na verdade, o povo é quem

faz folclore. O povo é quem escolhe, quem julga, quem filtra, quem seleciona, quem canta e populariza as músicas mais simples como O teu cabelo não nega, Asa Branca e Mamãe eu quero, por exemplo. Mamãe eu quero (de Vicente Paiva e Jararaca) é uma música sem nenhum valor musical, mas ela é penetrante, ela tem raízes populares. Quando o povo faz uma escolha, essa es-colha não dá pra ser discutida.

O sr. pensou alguma vez em fazer um arranjo grandioso para alguma dessas músicas popularizadas e imortalizadas pelo povo?

– Não, nunca pensei. E nunca pensei porque discordamos, porque condenamos completamente a palavra “arranjo”. Uma obra de arte deve existir e permanecer no tempo da forma como foi concebida originalmente. “Arranjar” uma obra de arte é como repintar um quadro de Picasso com uma tinta diferente só para deixá-lo

“melhor”. Isso não faz sentido, isso é um crime! Devemos amar uma obra de Picasso como ele a concebeu. Devemos olhar uma catedral gótica como ela foi concebida. Não devemos pôr, de forma alguma, uma cruz no meio dessa catedral, entende? Por que razão se deve mexer numa música como Asa Branca? Então, é por isso que nós condenamos, definitivamente, a palavra “arranjo”. Mas “nós” quem? Nós, os que se interessam pelo Purismo. E o que aconse-lhamos? Nós aconselhamos aos recriadores de obras de arte que a recriem, se preciso for. Mas a recriem da forma exata como foi originalmente concebida. Uma obra de arte não necessita de arranjo nenhum para ficar “mais bonita”. Cada criação artística deve valorizar-se ou ser valorizada pelos instru-mentos culturais de cada época. Repito: uma obra de arte deve ser recriada como foi criada. Bom, mas há quem, infelizmente, não entenda assim. Exemplo disso é o que fizeram com o Hino Nacional. O nosso hino foi violentado. Não entendo as razões que levaram o ministro da Justiça, Fernando Lyra, a permitir que ele fosse “recriado” e gravado da forma como o foi pela Fafá (de Belém). As gravadoras gostam de sucesso,

sei disso; gostam de escândalo... Passei 50 anos da minha vida ensinando as crianças a cantarem corretamente o Hino Nacional e de repente, de um momento para outro, todo esse trabalho acabou indo por água abaixo... Não entendo isso, isso é uma loucura!

Antes de se transformar num nome de prestígio internacional, de reger as gran-des orquestras do mundo e ser professor de Regência da Juilliard School of Music, de Nova Iorque, o sr. tentou a carreira política como candidato a deputado fe-deral pelo Rio de Janeiro. Como foi isso, maestro?

– Fui um dos fundadores da Orquestra Sinfônica Brasileira. A OSB sempre viveu de esmolas. Quer dizer: sempre viveu de uma pequena subvenção. Na época, os deputados tinham uma verba que era distribuída entre associações. Então, nós ficávamos pelos corredores da Câmara, pedindo a um e a outro que destinassem uma verba para a nossa orquestra. Isso foi feito, mas o que a OSB recebia era uma coisinha tão insignificante que não dava pra nada. Aí, então, como amigo pessoal de Carlos Lacerda, resolvi candidatar-me

a deputado no Rio de Janeiro pela antiga UDN. Eu queria ser deputado pra conseguir uma lei que beneficiasse a OSB e as artes de modo geral. E me candidatei com o apoio de Lacerda. Ganhei 12 votos nas eleições! Num comício, no bairro do Meyer, um ca-marada pediu a palavra no meio do povo. Ele disse: “Chega de cultura, nós queremos é feijão!”. Eu concordei com o cidadão e dis-se que ele estava correto, que estava certo, certíssimo. “Mas como é que o senhor come o seu feijão? Cru?”. Ele respondeu: “Não, eu cozinho o feijão”. “Com o quê?”, voltei a perguntar. E ele: “Com água, com uma pitada de sal...”. ”Pois então eu sou o sal do seu feijão, eu sou o sal da cultura brasileira”. Todo mundo riu, mas é verdade: a cultura é o sal da comunidade.

Você sabia?... Que o Instituto Memória Brasil

mantém centenas de entrevistas com artistas da música brasileira, feitas nos últimos 35 anos por seu presidente Assis Ângelo?

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