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117 ESTUDO DO CAMPO DE CONHECIMENTO FONOAUDIOLÓGICO E A CLARIFICAÇÃO DO SEU OBJETO CIENTÍFICO Renata Chrystina Bianchi de Barros Unicentro – Campus Irati RESUMO: Através de um percurso histórico de análise, este artigo propõe um debate acerca do objeto científico do campo de conhecimento fonoau- diológico, buscando ampliar a compreensão sobre a forma material da clínica a fim de ponderar sobre pontos nodais do seu funcionamento, ins- taurando um espaço material e simbólico próprio para o debate científico sobre a ciência fonoaudiológica – a clínica terapêutica. ABSTRACT: rough a historical procedure of analysis, this paper pro- poses a debate about the scientific object in the field of knowledge of speech- therapy, seeking to broaden the understanding of the material form of the clinic in order to think over some nodal points of its mode of operation, establishing a material and symbolic space for the scientific debate on this science – the therapeutic clinic. Introdução Considerando a urgência de se pensar epistemologicamente o cam- po de conhecimento fonoaudiológico a fim de contribuir com a desco- berta do seu objeto científico para que a prática científica seja elaborada em função de um objeto próprio, e não de outra clínica próxima, é do seu interior que nos colocamos para debater a sua própria práxis e sua possível teoria singular elaborada por pares, fundamentando e compre- endendo sua história e caminhos ainda a serem trilhados. As questões que instigam a elaboração de novos estudos e o debruçar sobre esse campo de conhecimento a fim de aprofundarmo-nos para novas descobertas das suas singularidades científicas se dão por ser a fonoaudiologia um campo de conhecimento originado como discipli- na constituída no entremeio de outras ciências possuidoras de objetos

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ESTUDO DO CAMPO DE CONHECIMENTO FONOAUDIOLÓGICO E A CLARIFICAÇÃO

DO SEU OBJETO CIENTÍFICO

Renata Chrystina Bianchi de BarrosUnicentro – Campus Irati

RESUMO: Através de um percurso histórico de análise, este artigo propõe um debate acerca do objeto científico do campo de conhecimento fonoau-diológico, buscando ampliar a compreensão sobre a forma material da clínica a fim de ponderar sobre pontos nodais do seu funcionamento, ins-taurando um espaço material e simbólico próprio para o debate científico sobre a ciência fonoaudiológica – a clínica terapêutica.

ABSTRACT: Through a historical procedure of analysis, this paper pro-poses a debate about the scientific object in the field of knowledge of speech-therapy, seeking to broaden the understanding of the material form of the clinic in order to think over some nodal points of its mode of operation, establishing a material and symbolic space for the scientific debate on this science – the therapeutic clinic.

IntroduçãoConsiderando a urgência de se pensar epistemologicamente o cam-

po de conhecimento fonoaudiológico a fim de contribuir com a desco-berta do seu objeto científico para que a prática científica seja elaborada em função de um objeto próprio, e não de outra clínica próxima, é do seu interior que nos colocamos para debater a sua própria práxis e sua possível teoria singular elaborada por pares, fundamentando e compre-endendo sua história e caminhos ainda a serem trilhados.

As questões que instigam a elaboração de novos estudos e o debruçar sobre esse campo de conhecimento a fim de aprofundarmo-nos para novas descobertas das suas singularidades científicas se dão por ser a fonoaudiologia um campo de conhecimento originado como discipli-na constituída no entremeio de outras ciências possuidoras de objetos

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científicos próprios, e por esta ainda não reconhecer o seu próprio obje-to científico. Com o enfrentamento proposto colocamo-nos a observar como (e quanto) a produção prática e teórica do profissional e do pes-quisador dessa área se perde em meio ao transporte e transferência de noções de outras ciências (cf. Barros, 2011) comprometendo a relação necessária entre sujeito e objeto, impedindo o retorno metódico da te-oria ao objeto científico de referência, já que não há um objeto para o qual se voltar.

Assim, pensamos na importância de se manter vivo o debate da com-preensão da singularidade da clínica Fonoaudiológica a fim de fomentar teoricamente sua práxis, através do aprofundamento das definições e características dos seus métodos, instrumentos, do seu sujeito de inter-venção, colaborando com uma construção de arquivo que aponte para a definição de um objeto científico, já sabido existente, mas ainda não conhecido pela ciência que constitui.

O desvelamento do objeto científico desta disciplina, que desponta teórica e praticamente na elaboração da sua práxis, certamente contri-buirá para o direcionamento da atuação do profissional e do pesquisa-dor fonoaudiólogo em meio ao transporte e transferência1 de noções de outras ciências, colaborando para o delineamento científico da área com a possibilidade do retorno metódico da teoria ao objeto científico de referência. Atualmente, a não consideração da existência de um ob-jeto científico que possibilite o retorno metódico bidirecional da clínica terapêutica fonoaudiológica para uma produção teórica própria da área coopera negativamente para a sua práxis, promovendo uma práxis tera-pêutica fragmentada em áreas anátomo-biológicas do paciente, incitan-do constructos teóricos que fortalecem processos de medicalização em detrimento da consideração da linguagem (cf. Tesser, 2006).

O risco da medicalização da práxis fonoaudiológica sobre o paciente advém da sua história. Este é um campo de conhecimento construído no tangenciamento entre a medicina, a psicologia, a linguística e a edu-cação. Não existe outra disciplina que tenha sido originada no entre-meio de outras grandes disciplinas científicas e clínicas como estas. E é por esta, entre outras razões, que propomos o estudo epistemológico da fonoaudiologia, fundamentados sobre a base dos estudos epistemo-lógicos das ciências médicas e da saúde, das ciências humanas e sociais, porém, voltados para o levantamento científico da inscrição da fonoau-diologia partindo de estudos contemporâneos como o fizeram Casari e Lopes (2006) e Ostiz (2010).

Dessa forma, com a presente pesquisa, objetivamos debater sobre o objeto científico fonoaudiológico, tomando o “conhecimento pro-posicional” (cf. Dutra, 2010) através do estudo do Tesauro do campo

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científico da fonoaudiologia para compreender, sob a luz da teoria da Análise de Discurso (cf. Pêcheux, 1997 e Orlandi, 1996a, 1996b, 2012), a sua forma de apresentação através dos descritores usados em trabalhos publicados e recentes em uma revista de significância para a este campo científico.

O espaço material da clínica fonoaudiológicaOcupando um espaço próprio em paralelo às clínicas médicas e psi-

cológicas, sendo, o objeto da primeira, a doença que incide no corpo humano e, da segunda, a subjetividade do indivíduo ou do sujeito em sofrimento psíquico (cf. Barros, 2011), qual é o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica para o qual se elaboram tantas técnicas e se constroem instrumentos e ferramentas se há, na sua configuração, o acontecimento de divisões em campos de atuação fazendo parecer que para cada campo há um objeto de intervenção diferente? E para quem?

A fonoaudiologia clínica pode ser separada em quatro áreas de espe-cialização2: audição e equilíbrio, voz, motricidade orofacial e linguagem. São estas quatro especialidades voltadas para áreas de estudo que po-dem ser diretamente relacionadas ao corpo de indivíduos, ou sujeitos – fazemos aqui um alerta para que não se pense que, apesar de podermos relacionar todas estas áreas com lugares anátomo-fisiológicos do corpo humano (audição e equilíbrio: órgãos da orelha externa, média e inter-na e do sistema vestíbulo-coclear; voz: órgãos dos aparelhos fonatório e respiratório; motricidade orofacial: órgãos do aparelho fonatório e di-gestório; linguagem: córtex cerebral, órgãos do sistema motor), o corpo é o objeto de intervenção da fonoaudiologia. Este é objeto da medicina clássica que, ao elaborar métodos e instrumentos para a ação sobre o corpo descobre um novo objeto científico – a doença.

Aqui versamos sobre a forma material da clínica a fim de ponderar pontos nodais do seu funcionamento instaurando um espaço material e simbólico próprio para o debate científico sobre a ciência fonoaudio-lógica. Para nós, o paciente da clínica fonoaudiológica é sujeito. Assim o compreendemos porque ocupamos um lugar teórico (Análise de Dis-curso) que concebe que

todo sujeito já é sujeito porque é interpelado pela ideologia, pela língua e pela história [numa] sujeição àquilo que é dos sentidos... é pelo assujeitamento à língua, na história, que o homem se sub-jetiva, significando e sendo significado na medida mesma em que as relações discursivas e sentidos são mobilizados (BARROS, 2004, p.57).

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Este lugar de compreensão do sujeito transforma a interpretação so-bre o paciente, configurando a prática sobre o objeto de intervenção. Ou seja, a práxis terapêutica é transformada pela força teórica anteriormen-te mobilizada. É esta uma prática que só existe através de uma ideologia e “só há ideologia por e para sujeitos” (cf ALTHUSSER, s/d apud HEN-RY, 1992, p.23).

A força da escolha da denominação do paciente enquanto indivíduo ou sujeito implica no comprometimento teórico, analítico e prático com um ou outro espaço teórico, porque estas noções alicerçam as discipli-nas científicas, assim como seus objetos científicos e de intervenção afe-tam a prática terapêutica.

Do mesmo modo, sem nos prolongar sobre cada um dos fundamen-tos das ciências humanas, pensamos que neste processo de produção do conhecimento próprio da clínica, o terapeuta que se põe a pensar o paciente da sua clínica como indivíduo também habita teorias científi-cas que contém em seu substrato indícios que direcionam a sua prática. Porém, o objeto de intervenção não se modifica. O que muda em função das teorias científicas é o paciente sob as ideias de sujeito ou de indiví-duo, transformando o modo de funcionar as teorias através dos métodos de intervenção. Há a consideração de um ou mais fundamentos para a indicação da natureza deste sujeito ou indivíduo: a ideologia e a histó-ria, para o sujeito da Análise de Discurso; a cultura e as relações sociais, para o sujeito do sócio-interacionismo; o inconsciente, para o sujeito da Psicanálise; o comportamento humano na relação com o ambiente, para o sujeito da teoria do desenvolvimento; a anatomia e a fisiologia sadias e doentes, para o indivíduo da medicina; e o ambiente com estímulos sobre o organismo humano, para a mudança do comportamento, para o indivíduo do behaviorismo.

Essa transferência das ideias e saberes de um campo científico para outro resignifica os sujeitos, objetos e instrumentos sobre os quais há ação numa práxis terapêutica e é a interpretação desses saberes e práti-cas pelo profissional que os recebe, voltados para a posição que ocupa num espaço clínico outro para agir sobre o seu objeto de intervenção, que transforma os sentidos.

Com esse novo funcionamento, a clínica fonoaudiológica é posta em paralelo a outras duas grandes clínicas que são partes integrantes da sua configuração. Há, portanto, nesta configuração, uma estrutura que lhe é singular. Não existe outra disciplina que tenha sido originada neste en-tremeio. Tomamos o exemplo da aproximação da fonoaudiologia com a linguística.

Para Barros (2004), “enquanto prática de reabilitação, a fonoaudio-logia, num perfil da área paramédica, foi condicionada à figura do mé-

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dico. A Medicina e a Psicologia, ciências estabelecidas e já consolidadas, legitimaram a doença da linguagem propondo uma conduta corretiva (p.15)”. A fonoaudiologia iniciou a sua prática e a construção do seu referencial teórico pautada em ideais corretivos, como aponta o estudo realizado por Berberian (2001), que encontra a formulação desse cam-po de conhecimento fundamentada em referenciais linguísticos do es-truturalismo, em meio ao movimento político da década de 1920, que visava a eliminação das diferenças sociais aparentes na língua nacional, caracterizando a fonoaudiologia como ―profissão responsável por prá-ticas corretivas da fala.

Assim, o fonoaudiólogo, compreendendo a linguagem como estrutu-ra, desenvolvia seu trabalho perseguindo a possibilidade de caracterizar e descrever as patologias da linguagem. Sua atuação estava intimamen-te ligada às ideias de correntes teóricas como o inatismo e o estrutu-ralismo. Esta prática é comumente nomeada de clínica tradicional ou tradicional-hegemônica. Após a década de 1970, a visão da linguagem como comunicação foi transformada, e a fonoaudiologia começou a questionar os conceitos de sujeito e linguagem adotados na medida em que a Linguística avançava em suas reflexões, dando ênfase ao sujeito no processo de desenvolvimento da linguagem e ao da língua. A este modo de prática clínica chamaremos de clínica discursiva. Utilizaremos aqui a caracterização oferecida por Zaniboni (2007) para a prática fonoaudio-lógica tradicional-hegemônica:

(...) – trata-se dos estudos que, fundamentados essencialmente na literatura médico-biologicista, com princípios normativos e cor-retivos da linguagem, tem suas idéias e seus ideais predominan-do e perdurando frente a outras propostas teóricas. São aqueles estudos que, fundamentados em concepções positivistas de (se) fazer ciência, preocupam-se em apresentar métodos empírico--objetivos para avaliar, quantificar e, assim, generalizar a forma de funcionamento da linguagem... (ZANIBONI, 2007, p.13).

Diferentes autores produziram materiais demonstrando sua preocu-pação com a manutenção dos ideais médicos patologizantes e para com o apagamento das especificidades daquilo que torna o homem sujeito no mundo (Bolaffi, 1994; Lacerda, 1995; Barros, 2004; Bordin, 2006; Za-niboni, 2007; Fedosse , 2008; Labigalini, 2009; Navarro, 2009). Apoia-dos em Henry (1992) ressaltamos que, inclusive no interior da própria linguística, em cada uma dessas práticas, ou destes estudos, está alçada uma diferente linguística. Paul Henry (1992) destaca que em linguística

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(...) perfilam-se concepções diferentes do que se entende por ci-ência em geral e o que se entende por cientificidade na linguística em particular (...). O lugar atribuído ao sujeito nas teorias linguís-ticas comanda a posição tomada com relação ao sentido, naquilo que se entende por língua. (HENRY, 1992, p.113).

Em meio à história da fonoaudiologia, pensar no interior/no espaço da Análise de Discurso em um campo do conhecimento que há pou-co fez seu primeiro contato com ela não é tarefa fácil. Compreender e aceitar a forma com que a Fonoaudiologia percebe as alterações da linguagem com os instrumentos da Análise de Discurso pode ser, ini-cialmente, incômodo, uma vez que vimos percorrendo um caminho que privilegia aquilo que é palpável na clínica médico-terapêutica (cf. Fou-cault, 2003).

Com base na historia da fonoaudiologia, do seu advento à con-temporaneidade, podemos afirmar que abdicar do confortável para o trabalho clínico, isto é, daquilo que faz parecer que somos capazes do controle do que dizemos, não é simples. Aqui, conforme formu-lamos anteriormente, pensamos a fonoaudiologia como uma dis-ciplina de intersecções, inicialmente transferindo instrumentos de outras ciências, significando para o seu próprio fazer, com as ideias da medicina para o trabalho com o corpo, da psicologia para o tra-balho com a subjetividade e também com o conhecimento e os ins-trumentos da linguística para o trabalho com a língua. Porem, é pre-mente dizer que a união dessas ideias tem sido ainda utilizada para a elaboração de técnicas que proporcionam perceber um homem/sujeito fragmentado, recortado, com marcas específicas da divisão dos territórios, uma vez que estas clínicas apresentam característi-cas epistemológicas, físicas, simbólicas e práticas diferentes. Assim, pensamos que a reflexão que propomos aqui se faz urgente, uma vez que podemos perceber que, no campo de conhecimento fonoaudio-lógico, ainda não se reflete sobre o que pode lhe ser próprio quando do uso de instrumentos para pensar o seu objeto e os seus métodos de atuação.

Indiciando a necessidade de estudo do tesauro do campo de conhecimento fonoaudiológico3

Pensamos a fonoaudiologia instaurada como um campo científico que, como aponta Bourdieu (2004, p.20) “[a noção de campo] está aí para designar esse espaço relativamente autônomo” e enquanto tal, se coloca na posição de defender ou transformar o seu próprio campo a fim de impor confronto e visibilidade perante seus pares.

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Em percurso histórico sobre o nascimento da fonoaudiologia Ber-berian (2007) constatou que sua origem foi marcada por uma demanda social e política e vem pensando, desde então, a sua práxis ao redor de uma perspectiva moldada por outros campos de conhecimentos autô-nomos e investe pouca atenção àquilo que é da sua própria construção e formulação própria (cf. Cunha, 2000; Barros, 2004; Barros, 2011).

Um importante problema relacionado a esta condição foi apresen-tado por Cunha (1997) orientando que ao ser descrita como uma disci-plina de empréstimos, a fonoaudiologia acaba por reduzir a sua prática clínica àquilo que pode ser mensurado e analisado organicamente uma vez que, tendo a medicina como fundamento da sua formação, o profis-sional percebe seu sujeito de intervenção constituído prioritariamente de matéria orgânica.

Em contrapartida, sabemos que a fonoaudiologia tem ampliado seus espaços de intervenção pensando não somente em demandas sociais, mas, sobretudo, fundamentando-se em estudos teóricos realizados no próprio interior do seu campo de conhecimento, e na relação com as instituições e outros campos. Tendo isso posto, constatamos essa afir-mação ao nos deparar com o posicionamento de instituições sociais de regulação e fomento de pesquisa, especificamente a Comissão Especial de Estudos CNPq, Capes, Finep (2009/2012), que graduam a fonoau-diologia como área (campo) de conhecimento, como segue:

Para nós, isto é resultado da ampliação do arquivo de produção científica fonoaudiológica que vem registrando seus gestos através de pesquisas que apontam a existência de um sujeito, de um método e de instrumentos para a sua práxis, além da realização de pesquisas que objetivam o desvelamento dos seus elementos científicos (BARROS, 2011), porém é ainda necessário que se aprofundem os estudos sobre esse campo a fim de contribuir para o direcionamento da sua práxis e para o fortalecimento da fonoaudiologia como um campo de conheci-mento autônomo e provocativo às demais ciências.

Tendo pontuado nossas metas, clarificamos a proposta de nos orientar pelos estudos fundamentais das ciências da saúde, das ciên-cias humanas e sociais, realizando uma pesquisa que objetiva explorar e descrever os registros das pesquisas científicas fonoaudiológicas, abor-dando qualitativamente os dados obtidos para a interpretação sob a luz da Análise de Discurso.

Dessa forma, ocupamo-nos com o estudo dos modos de se fazer ci-ência na fonoaudiologia a fim de proporcionar maior familiaridade com o registro da ciência fonoaudiológica através de seus descritores e de apresentar características importantes que representam hoje este campo científico no domínio da ciência.

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Como estratégia, a pesquisa, exploratória, foi realizada junto ao ban-co de dados SciELO, no qual encontra-se indexada a Revista da Socie-dade Brasileira de Fonoaudiologia online. Optamos por explorar esta publicação por tratar-se de documento de uma sociedade científica que é inclusive responsável pela elaboração, produção e execução dos Con-gressos Brasileiros e Internacionais de Fonoaudiologia, podendo assim ser considerada uma importante entidade de representação da produção científica deste campo. O corpus desta pesquisa foi, portanto, composto por publicações da Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia no ano de 2010, 2011 e 2012.

Considerando o estudo de Bocato e Fujita (2006), a fonoaudiologia não está completamente considerada e articulada com os descritores de saúde e está hierarquizada na categoria de saúde pública, mas não so-mente. Os termos comuns à fonoaudiologia estão também hierarquiza-dos em outras categorias “sendo as principais a anatomia, doenças, téc-nicas e equipamentos, psicologia e psiquiatria, antropologia, educação, sociologia, e fenômenos sociais, entre outras” (BOCATO & FUJITA, 2006, p.20). Estes descritores devem representar os campos conceituais das comunidades que servirão.

Apesar de Bocato e Fugita (2006) recomendarem à BIREME4 a cons-trução de uma categoria própria para a fonoaudiologia, por conter nes-ta, “características específicas” (p.28) dentro da área da saúde, pensamos que a atual apresentação do DeCS representam o que vimos debatendo ao longo deste texto, até então.

Ao nos deparar com a escolha por palavras-chaves nos estudos pu-blicados na Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia podemos visibilizar os deslizamentos do campo de conhecimento da fonoaudio-logia para a área da saúde, direcionada para a dicotomia saúde-doença. Entendemos claramente a necessidade, muitas vezes, da escolha de pa-lavras voltadas para o campo da doença, uma vez que a fonoaudiologia se coloca a terapeutização de sujeitos em processos de doença, seja ela mental, vestibular ou vocal, porém os descritores anormalidade e trans-tornos (para citar apenas dois) têm sido utilizados tanto para a descri-ção de pesquisa e ação voltados para aspectos especificamente orgânicos quanto para outras que são sociais e de linguagem. Ao fazer uma busca pelos descritores anormalidade e transtornos, o DeCS apresenta os se-guintes grupos de definição:

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O autor, ao optar por estes descritores, e não outros, para descre-ver parte ou o todo do material a ser publicado, insere-se politicamente num campo semântico que direciona a sua produção para determinado espaço teórico e prático. Na condição de produção acima, frente a es-colha dos descritores apresentados, os autores optam por palavras que nos deslizam os sentidos para as noções da patologia, isto é, da doença, condição própria do estudo e práxis da medicina.

Conforme apresentado por Bocato e Fugita (2006), a fonoaudiologia, ao ser agrupada hierarquicamente em áreas cientificamente estabelecidas na área da saúde, acaba por ter apagada sua singularidade enquanto campo científi-co, afastando-se daquilo que se propõe (cf. Barros, 2004, 2011), inclinando-se para a manipulação de objetos científicos outros, que não o seu próprio.

Campanatii-Ostiz e Andrade (2010, p.398) acreditam que “quando uma dada comunidade científica não desenvolve a sua própria termino-logia técnica e científica, vê-se obrigada a usar alguma outra terminolo-gia de área mais desenvolvida para a comunicação de seus conteúdos”. Para nós não é o fato de uma comunidade ser mais ou menos desen-volvida que a impelem a utilizar a terminologia de outras comunidades científicas, mas o fato dessa comunidade não ter claro o seu real papel frente aos fenômenos científicos. Para a fonoaudiologia, especificamen-te, por não haver a clarificação do seu objeto científico e, assim, a deli-mitação da sua objetividade frente ao lugar que ocupa.

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Esta objetividade não está diretamente ligada a uma ciência posi-tiva, mas àquela que estabelece um retorno metódico bidirecional no objeto científico ao objeto de intervenção e à base teórica ali instaurada para a elaboração e execução da práxis terapêutica. É preciso saber para quem se elabora um processo terapêutico, sob qual sujeito e ideologias teóricas partindo de um ponto que favoreceu a escolha por esta clínica terapêutica e não outra. A partir dessas articulações pode-se então fazer a escolha dos instrumentos e métodos terapêuticos a serem utilizados.

E não sejamos ingênuos ao ponto de pensar que a escolha de um ou outro descritor de estudos para indexação de bibliografia não interfere na elaboração de processos terapêuticos. São estes importantes docu-mentos que fomentam a práxis fonoaudiológica, assim como o contrá-rio também é possível.

Campos de sentido, Campos de conhecimento A história da constituição da fonoaudiologia, como já citado ante-

riormente, corrobora para esta aparente aproximação do objeto de ci-ência e intervenção fonoaudiológica dos objetos de outras disciplinas na sua prática clínica, sendo observada na escolha de descritores por autores fonoaudiólogos, mas especialmente se dá por estar, na relação de complementaridade entre as ciências aqui relacionadas, o ponto de convergência para se pensar o homem no interior desta clínica – um ser biológico, psicológico e social. Esta condição de sujeito complementar, constituído por aspectos não apenas biológicos, ou sociais ou psicológi-cos é necessária para a fonoaudiologia.

A atuação fonoaudiológica se dá na estreita relação do corpo anáto-mo-fisiológico com o próprio da linguagem sobre um objeto de inter-venção que não é constituído complementarmente numa relação direta do corpo com a linguagem.

Por não haver corpo que não esteja investido de sentidos “constituí-do por processos nos quais as instituições e suas práticas são fundamen-tais para a forma como ele se individualiza” (ORLANDI, 2012, p.93), o corpo sobre o qual a clínica fonoaudiológica intervém está relacionado com a própria instituição que ele habita enquanto sujeito-paciente. Por-tanto, porque é pensado no interior da clínica fonoaudiológica, a práxis fonoaudiológica não é realizada sobre o objeto de intervenção sujeito, mas sobre o corpo investido de sentidos, marcado por uma condição própria da linguagem, da sua não transparência.

Isto que chamamos de corpo-sentido (cf. Barros, 2011) não é o corpo na forma empírica, no qual se localiza o objeto de intervenção da fono-audiologia. Corpo-sentido é o modo como o corpo significa num gesto discursivo (comunicativo). O sujeito da clínica fonoaudiológica, ao pro-

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curar por atendimento terapêutico fonoaudiológico, traz consigo o seu corpo investido de sentidos: da boa-má comunicação, do bom-mau fa-lante, do sujeito-paciente que se subjetiva porque tem estabelecido rela-ções de sentido únicas. Num gesto de procurar atendimento terapêutico fonoaudiológico, simboliza o desejo, a sua vontade de ruptura com esta forma de relação com a sociedade. É este corpo investido de sentidos o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica – o corpo-sentido, o objeto de intervenção desta clínica.

Devemos aqui nos lembrar a que se propõe a fonoaudiologia: à tera-pêutica do indivíduo ou sujeito que procura por atendimento fonoau-diológico por apresentar queixas e questionamentos acerca da comuni-cação (cf. quadro 1), através de métodos que possibilitem a “pesquisa, prevenção, avaliação e terapia fonoaudiológicas na área da comunicação oral e escrita, voz e audição, bem como em aperfeiçoamento dos pa-drões da fala e da voz” (Lei 6965/81).

O paciente que procura por atendimento fonoaudiológico será en-tão submetido a práticas que visem a prevenção, a reabilitação e/ou o aperfeiçoamento das condições do seu corpo para a comunicação. Este não é um corpo – anatômico e fisiológico, e não é qualquer corpo – de qualquer lugar e espaço. Este é o corpo de um homem (indivíduo ou sujeito) que se relaciona com o mundo, que procura intervenção fono-audiológica em espaço clínico próprio da terapêutica, para a adequação das condições anátomo-fisiológicas para a comunicação através deste aparato corporal, porém, incondicionalmente, sobre as considerações da relação deste corpo com o funcionamento da linguagem.

A linguagem é própria do homem, e isto o diferencia do animal (cf. HENRY, 1992). Esta formulação – do homem em oposição ao animal – é uma máxima da compreensão das diferentes áreas da ciência. Confor-me aponta Henry (op cit), a existência da linguagem, “invocada como apoio a uma irredutibilidade do humano à animalidade” (HENRY, 1992, p.115) direciona para uma problemática dos estudos do homem (da linguagem) nas ciências humanas e nas ciências sociais, que chama de complementaridade, trazendo aos estudos das áreas o acontecimento de mais de um objeto de estudo científico. Henry (idem, p.114) resume esta condição com uma frase: “do humano, tudo aquilo que não é de ordem do psicológico, é social reciprocamente”.

O que para o autor é um problema – o hiato existente na relação do psicológico e do social, por tratar de compreender o lugar da lin-guística para o estudo da linguagem −, para nós é necessário, pois nesta relação de complementaridade está a compreensão do sujeito e do objeto de intervenção5 da clínica fonoaudiológica, somados a um corpo anatômico e fisiológico (humano). Na fonoaudiologia o

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homem é um ser biológico, psicológico e social e, acrescentamos, afetado pela história e pela ideologia.

Pensamos que, independente da especialidade da clínica fonoaudio-lógica, é para o trabalho com a linguagem que a fonoaudiologia elabora a sua prática, de maneira intimamente relacionada ao corpo do sujeito (ou indivíduo). Em nome da prevenção, da reabilitação e/ou o aperfei-çoamento da comunicação humana (cf. Lei 6965/81). A capacidade e as habilidades de comunicação do homem são terapeutizadas para a ade-quação da sua existência no espaço social, para as relações na sociedade.

Pensamos que esta é uma singularidade da clínica fonoaudiológica. Esta clínica tem em sua constituição um sujeito e um objeto científico6 e de intervenção, que são próprios deste espaço, funcionando ideológica e praticamente e que independem da materialidade referida pelas espe-cialidades fonoaudiológicas. Há um sujeito na clínica fonoaudiológica para a adequação das condições de um corpo-sentido para significar comunicativamente. Sobre este objeto de intervenção são praticadas atividades elaboradas com objetivos específicos de cada área de espe-cialização.

O especialista em voz poderá realizar práticas de adequação do siste-ma respiratório e vocal, assim como, das condições articulatórias para a expressão vocal. Na área de audição e equilíbrio o terapeuta poderá agir com mensurações audiológicas, com seleção e adaptação de aparelhos de amplificação sonora individuais para a facilitação da audição. Para a adequação das condições anatômicas e de funcionamento do complexo orofacial, o fonoaudiólogo selecionaria atividades para a isotonia mus-cular, massagens e estimulação de pontos e zonas motoras da face para a adequação anátomo-funcional da face para a fala, e o especialista em linguagem poderá fazer a sua prática intimamente relacionada à estru-tura e ao funcionamento da língua (enquanto entidade representativa de uma nação) pela leitura e pela escrita, para a adequação da comuni-cação escrita (compreensão e expressão comunicativas).

A clarificação do objeto de intervenção fonoaudiológica envolve o problema com o qual a fonoaudiologia se depara ao discutir a sua singu-laridade enquanto disciplina prático-científica. A explicação sobre o seu objeto tangencia os objetos de intervenção da medicina - o corpo para as práticas da audiologia e equilíbrio, motricidade orofacial e voz, e da psicologia. A subjetividade para a prática na área de linguagem, porém, não se confunde.

O homem é um Ser da linguagem, do simbólico, das relações. Para que o sujeito possa comunicar é preciso que ele considere (de forma conscien-te ou não) diversos aspectos: anatomia e fisiologia do corpo humano, a língua (estrutura e acontecimento), a audição, a fala (aspectos prosódicos,

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articulatórios etc), a voz (pitch, loudness, projeção etc), o interlocutor, o espaço que ocupa, as formas-sujeitos-históricas etc. Não é possível haver em situações de comunicação, enquanto condição de produção, separação de elementos que interdependem para a comunicação. Inclusive quando há a falta de qualquer um deles, ou quando há falhas no seu aconteci-mento e é com base nestas afirmações que reafirmamos que é na relação de complementaridade científica que está a compreensão do sujeito e do objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica, somados a um corpo anatômico e fisiológico (humano), constituindo um sujeito bio-psico--social para a fonoaudiologia. Porém, o seu objeto de intervenção não é uma somatória de elementos advindos de ciências e áreas afins, pois o pensamos no interior de uma clínica singular – a clínica fonoaudiológica, assim como não o é seu objeto científico.

Para nós, o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica é o corpo que significa, pois está investido de sentidos – corpo-sentido. Pa-rafraseando Orlandi (2011), consideramos que o sujeito é individuado num mecanismo de interpelação do Estado pela ideologia, afetado pela língua e pela história em condições próprias de uma sociedade capi-talista. Num modo de significar pela linguagem, ele simboliza em seu corpo marcas da relação com a sociedade. E é por existir esta relação que, pensamos, não pode ser pensada fora de suas condições políticas e ideológicas.

As condições políticas e ideológicas que referimos são aquelas em que circulam os sentidos da “boa comunicação”, ou seja, da ilusão da transparência da linguagem e dos sentidos que faz parecer aos sujei-tos que aquilo que se diz é inteiramente compreendido por quem ouve (cf. ORLANDI, 1996; PÊCHEUX, 1997). Funciona também a noção de imaginário,

que na relação discursiva, é um mecanismo dentro de uma con-juntura sócio-histórica e que faz necessariamente parte do fun-cionamento da linguagem. Ele assenta-se no modo como as rela-ções sociais se inscrevem na história e são regidas por relações de poder inscritas na sociedade (BARROS, 2004, p.58).

Desse modo, temos que o sujeito é interpelado pela ideologia do bem-falar7, da boa comunicação, numa sociedade regida por regras po-lítico-ideológicas que estabelecem condições para que os sujeitos sejam considerados aptos ou não para ocupar lugares-sociais privilegiados cultural e economicamente.

Observe-se que não estamos afirmando aqui que uma ou outra al-teração de comunicação acontece ou aparece no corpo do sujeito por

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ocasião da interpelação da ideologia do bem-falar8, mas que este é um fator determinante para que este sujeito procure atendimento fonoau-diológico e não psicológico ou médico. Isto acontece porque este é o su-jeito da clínica fonoaudiológica que, ao procurar por atendimento tera-pêutico fonoaudiológico, traz consigo o seu corpo investido de sentidos: da boa-má comunicação, do bom-mau falante, do sujeito-paciente que se subjetiva porque tem estabelecido relações de sentido únicas. Num gesto de procurar atendimento terapêutico fonoaudiológico, simboliza o desejo, a sua vontade de ruptura com esta forma de relação com a sociedade. É este corpo investido de sentidos o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica – o corpo-sentido, não o corpo como forma empírica, no qual se localiza o objeto de intervenção da fonoaudiologia. Corpo-sentido é o modo como o corpo significa num gesto comunica-tivo, num gesto de significação.

De Souza (2010) aponta como o corpo – discursivizado como cor-po, ainda enquanto carne – apresenta sentidos como uma “presença de entremeio – que fica entre dois sujeitos” apoiando-se sob a ideia de efeito ideológico elementar de Althusser (ALTHUSSER, 2007 apud DE SOUZA, 2010, p.05) “eu sou” – “indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia”. É este um corpo-simbólico.

Pensamos que a clínica fonoaudiológica é o espaço de se pensar, de compreender e de intervir sobre os gestos comunicativos do sujeito-pa-ciente. Gesto aqui pensado como “ato no nível simbólico” (PÊCHEUX, 1969 apud ORLANDI, 1996, p.18), não como ação empírica, mímica. São gestos comunicativos: a escrita, a leitura, a fala etc. Estes gestos, numa condição de produção que aponte um sujeito que se percebe mau--falante, mau-comunicador e instaura uma prática possível de clínica fonoaudiológica.

E que espaço é este, o da clínica, que autoriza intervenções de um homem sobre o outro, que autoriza ao próprio homem submeter-se à avaliação, interpretação e intervenção de um outro homem sobre o seu corpo, sobre os seus sentidos?

Ao afirmamos que um espaço significa na medida dos acontecimen-tos, temos a necessidade de saber sobre esse espaço no qual “as coisas” acontecem. Um espaço com sua forma material “que é histórica, com sua opacidade e seus equívocos... em que o conteúdo se inscreve” (ORLAN-DI, 1999, p.31-32). Assim, ao falarmos de acontecimento num espaço entre quatro paredes no qual estão acomodadas camas que são usadas para dormir – o que chamamos de quarto, é diferente de falarmos de acontecimentos em um espaço entre quatro paredes no qual estão aco-modadas macas com pacientes para atendimento – o que chamamos de hospital ou ambulatório. Isso em função da sua forma material. Os

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efeitos de sentido que circulam num espaço têm relação com o que está posto pela forma material porque nela estão inscritas condições históri-cos e ideológicos que configuram sentidos.

Não nos interessa o pensamento de que o espaço da clínica é o lugar onde o paciente é aquele que sofre de uma doença e é observado por um terapeuta capacitado para diagnosticar e proceder a um tratamento. Nosso olhar é para um espaço clínico que se preocupa com a posição--sujeito que se apresenta como paciente (da cidade) que sofre. Temos também que considerar que a clínica é um corpo urbano com o qual o sujeito se relaciona. “Sujeito-paciente e sujeito-terapeuta, com suas es-pecificidades, histórias sentidos e imagens sobre suas posições, relações frente a outros sujeitos, espaços e instituições (...)” (BARROS, 2004, p.66). Pensar a clínica é pensá-la no espaço urbano em que se constitui e constitui o sujeito que procura por atendimento, é olhar para a manu-tenção do diferente na coletividade, o sentido.

Interessa-nos pensar a clínica como espaço singular da cidade, apon-tada por Silva (1999, p.23) como “espaço de interpretação, com lugares enunciativos que o seu habitante ocupa para ser sujeito do que diz e pro-duzir sentidos em uma relação determinada com a história”, além de nos atermos em questões de subjetivação, da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, afetado pela língua e das formas de individuação do sujeito pelo Estado (ORLANDI, 2012).

Consideramos a língua para a compreensão do processo de individu-ação, porém esta nos interessa não na sua forma estrutural que apresenta um conteúdo a ser descoberto, mas sim nas formas materiais da ciência do discurso que permite a análise do funcionamento do texto, isto é, colocando em questão os sentidos que circulam para dada interpretação. Considera-mos que os sentidos e a interpretação estão dados para interrogação.

Na realidade, não há um sentido (conteúdo), só há funcionamen-to da linguagem. No funcionamento da linguagem, o sujeito... é constituído por gestos de interpretação que concernem sua posi-ção. O sujeito é a interpretação... É pela interpretação que o su-jeito se submete à ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá. A ideologia se caracteriza assim pela fixação de um conteúdo, pela impressão do sentido literal, pelo apagamento da materialidade da linguagem e da história, pela estruturação ideo-lógica da subjetividade (ORLANDI, 2001, p.22).

É o dispositivo ideológico de interpretação funcionando nos acon-tecimentos do mundo. Este está relacionado ao interdiscurso – rede de

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memória discursiva – que é estruturado pelo esquecimento9. Nesse mo-vimento, na relação do sujeito com os sentidos que circulam em dada conjuntura, é que as posições sujeito se darão sob as forças de inter-pelação ideológica de formações sociais que controlam a interpretação institucionalmente.

Por sabermos que a clínica fonoaudiológica tem uma forma material singular e que em sua práxis está re-significando e construindo instru-mentos e métodos próprios que se têm instaurado no processo tera-pêutico fonoaudiológico, trabalhamos acontecimentos que interpelam o sujeito em sujeito complementar e possibilita a práxis fonoaudiológica sobre um objeto de intervenção singular.

Palavras finaisA proposta de analisar os descritores utilizados para indexação de

trabalhos científicos fonoaudiológicos foi profícua ao indicar a necessi-dade de ampliação do estudo.

A breve análise realizada apontou a ausência de definição objetiva para o campo científico fonoaudiológico e apesar dos autores optarem por incluir descritores de diferentes áreas e campos científicos que fun-cionam na tangência com a fonoaudiologia, também incluem descrito-res que apresentam a sua práxis.

Neste percurso, apresentamos uma proposta de debate que, pensa-mos, é de grande importância para a fonoaudiologia e para a ciência de modo geral acerca da necessidade da clarificação do objeto científico fonoaudiológico.

O campo científico fonoaudiológico contemporâneo apresenta pro-fícua produção científica, porém tem sido representado por meio de es-colha de palavras-chaves que circulam pelos significados da patologia na práxis fonoaudiológica e, apesar de em sua grande parte não serem relacionadas com a proposta de atuação para a adequação da comuni-cação, apontam para a existência de um objeto científico a ser definido e caracterizado.

Na instância do confronto com os resultados obtidos através da elaboração deste material, pudemos nos colocar a pensar, a partir do advento da clarificação e da compreensão da singularidade da clínica fonoaudiológica, os sentidos que se mostram latentes para essas discus-sões, provocando esta disciplina prática para que se empenhe na com-preensão do seu objeto de ciência e, desta forma, se coloque a produção de conhecimentos teóricos próprios que possam fomentar a sua práxis.

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Notas1 Para a distinção e definição destas noções cf. E. Orlandi (2001).2 Pensamos aqui somente as áreas de especialização da práxis clínica, não considerando a Fonoaudiologia Educacional e a Fonoaudiologia em Saúde Pública.3 Projeto de Pesquisa Especial (PQe) autorizado e realizado na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). RESOLUÇÃO CONSET - SES/I 014/2012.4 Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde.5 Objeto de intervenção, e não do objeto científico fonoaudiológico.6 Mesmo que ainda não definido pela área.7 Os trabalhos de Friedman (1994), importante autora sobre o tema gagueira, diferem do nosso ao pensar a ideologia do bem-falar por ocupar o teórico da Psicologia Social e nós, da Análise de Discurso.8 Neste trabalho não objetivamos compreender as alterações em suas especificidades.9 Cf. Pêcheux (1997c): “o esquecimento nº 1 inscreve o sujeito em uma formação dis-cursiva e produz a ilusão de que o sujeito é fonte de seus enunciados ... O esquecimento nº 2 diz da onipotência do sentido. O sujeito, ao enunciar, tem a ilusão da transparência do sentido, achando que quando diz algo é porque apenas pode dizer esse algo como o disse” (Barros, 2004 p.57-58).

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