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Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRO Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRO Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRO Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRO Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRO NO C NO C NO C NO C NO CAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL AMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL AMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL AMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL AMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL * JOSÉ LUIZ DE ANDRADE FRANCO ** JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND * ** 1 – INTRODUÇÃO – OBJETIVOS E ESCOPO O objetivo deste artigo é contribuir para a “redescoberta” do pensamento e do trabalho de Frederico Carlos Hoehne (1882-1959), um dos primeiros e ainda um dos maiores botânicos brasileiros. No momento em que se busca estabelecer a genealogia da preocupação ambiental e recompor a história das ciências naturais e biológicas no Brasil (NOGUEIRA, 2000; KURY e SÁ, 2001), são altamente relevantes a trajetória, o trabalho e os achados científicos de Hoehne, registrados na sua vasta produção científica, grande parte da qual de acesso muito difícil hoje em dia. O texto apresenta primeiro alguns dados biográficos de Hoehne e, em seguida, explora algumas dimensões de seu trabalho como cientista, escritor e como administrador de instituições científicas. É dada atenção especial às suas preocupações e propostas concernentes à conservação da natureza, tema no qual foi um dos pioneiros, não apenas pelos seus escritos e pelas suas próprias ações de construção institucional, mas também pela enorme contribuição propriamente científica que deu ao melhor conhecimento da flora brasileira. Hoehne deixou um legado que ajudou e ainda ajuda na formação de novas gerações de cientistas naturais brasileiros, muitos dos quais, de diversas formas, engajaram-se, ou engajam-se, nos esforços de conhecer e preservar a natureza do país. * Baseado parcialmente em FRANCO, 2002. ** Doutor em História pela Universidade de Brasília. Técnico da Diretoria de Áreas Protegidas, da Secretaria de Biodiversidade e Florestas, do Ministério do Meio Ambiente. e-mail: [email protected] *** Ph. D. em Recursos Naturais e Desenvolvimento. Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. e-mail: [email protected] Recebido em 06/2004 – Aceito em 02/2005.

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Frederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIROFrederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIROFrederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIROFrederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIROFrederico Carlos Hoehne: A ATUALIDADE DE UM PIONEIRONO CNO CNO CNO CNO CAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASILAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASILAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASILAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASILAMPO DA PROTEÇÃO À NATUREZA NO BRASIL*****

JOSÉ LUIZ DE ANDRADE FRANCO**

JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND* **

1 – INTRODUÇÃO – OBJETIVOS E ESCOPO

O objetivo deste artigo é contribuir para a “redescoberta” do pensamentoe do trabalho de Frederico Carlos Hoehne (1882-1959), um dos primeiros e ainda umdos maiores botânicos brasileiros. No momento em que se busca estabelecer a genealogiada preocupação ambiental e recompor a história das ciências naturais e biológicas noBrasil (NOGUEIRA, 2000; KURY e SÁ, 2001), são altamente relevantes a trajetória,o trabalho e os achados científicos de Hoehne, registrados na sua vasta produçãocientífica, grande parte da qual de acesso muito difícil hoje em dia.

O texto apresenta primeiro alguns dados biográficos de Hoehne e, emseguida, explora algumas dimensões de seu trabalho como cientista, escritor e comoadministrador de instituições científicas. É dada atenção especial às suas preocupaçõese propostas concernentes à conservação da natureza, tema no qual foi um dos pioneiros,não apenas pelos seus escritos e pelas suas próprias ações de construção institucional,mas também pela enorme contribuição propriamente científica que deu ao melhorconhecimento da flora brasileira. Hoehne deixou um legado que ajudou e ainda ajudana formação de novas gerações de cientistas naturais brasileiros, muitos dos quais, dediversas formas, engajaram-se, ou engajam-se, nos esforços de conhecer e preservar anatureza do país.

* Baseado parcialmente em FRANCO, 2002.** Doutor em História pela Universidade de Brasília. Técnico da Diretoria de Áreas Protegidas, da Secretaria de

Biodiversidade e Florestas, do Ministério do Meio Ambiente. e-mail: [email protected]*** Ph. D. em Recursos Naturais e Desenvolvimento. Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento Sustentável

da Universidade de Brasília. e-mail: [email protected] em 06/2004 – Aceito em 02/2005.

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2 - DADOS BIOGRÁFICOS RELEVANTES

Frederico Carlos Hoehne foi um dos primeiros cientistas brasileiros aempreender estudos sistemáticos, abrangentes e de longa duração sobre a nossa floranativa e sobre assuntos associados, como biogeografia e ecologia. Apesar de ser umherdeiro indireto dos numerosos “viajantes naturalistas” que percorreram vastas porçõesdo território brasileiro ao longo do século XIX, Hoehne distingue-se deles de formamarcante. Primeiro, por ser brasileiro (ainda que de primeira geração) e ter passadotoda a sua vida no Brasil. Segundo, passou décadas estudando continuamente a florabrasileira, alternando as suas viagens de campo com extensos períodos de trabalho delaboratório, herbário e pesquisa, em instituições brasileiras. Terceiro, por formar coleçõesque permaneciam no país e serviam de base para os estudos de outros cientistas. Quarto,por ter trabalhado em/ou dirigido instituições científicas brasileiras, numa fase deescassos investimentos na ciência. Em poucas palavras, Hoehne combinou uma extensaexperiência de campo com a formação de coleções de plantas, sobre as quais produziupublicações numerosas e influentes, tendo ainda administrado institutos de pesquisano país e participado de organizações da comunidade científica (os dados biográficosforam retirados de FERRI, 1994; DEAN, 1996; HOEHNE, 1937; HOEHNE, 1951).2

Nascido em Juiz de Fora (MG), em 1/2/1882, Hoehne faleceu em 16/3/1959, tendo residido no Brasil por toda a sua vida. Era um dos oito filhos de doisimigrantes alemães que chegaram em 1858 ao Brasil, ainda crianças. Os seus paiscresceram e se conheceram já no Brasil, casaram-se em 1870 e nunca retornaram aoseu país. O seu pai se dedicou à agricultura, à marcenaria e à montagem de máquinasindustriais, nas imediações de Juiz de Fora, onde tinha um pequeno sítio. Hoehnecasou-se em 1907, com Carla Augusta Frieda Kuhlmann, também de ascendênciaalemã com quem teve quatro filhos, que lhe deram pelo menos 11 netos. Tal comoHoehne, seus filhos e netos aparentemente fixaram residência no país, caracterizandouma migração bem sucedida, no sentido de criar raízes e aproveitar perspectivas novasno país de destino.

Hoehne foi criado em localidade rural próxima à cidade industrial deJuiz de Fora, em área de domínio da Mata Atlântica. As formações florestais locaiseram provavelmente muito modificadas por estradas, ferrovias e fazendas de café. Elediz, no entanto, que ali teve “oportunidades sem conta de observar os fenômenos danatureza”. Ao menos no sítio paterno em que foi criado, as matas, embora alteradas,eram em parte bem preservadas, fornecendo lenha, taquaras, frutas e outras utilidades.Ainda criança, Hoehne teve contato com a primeira coleção de plantas de sua vida,ajudando a manter um “rústico orquidário” criado pelo seu pai no pomar da propriedade.A coleção atraía interessados e visitantes. Parte das orquídeas era vendida e a receitaajudava no sustento da remediada família. Aos oito anos, Hoehne começou a organizaro seu próprio orquidário, num outro recanto do sítio paterno. Segundo ele, nasceu ali“o alicerce para o [meu] interesse para a botânica”.

Concluído o ensino médio em 1899, e sem acesso a um curso superior doseu interesse, Hoehne, com 17 anos, buscou o caminho do autodidatismo para prosseguir

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com as suas observações sobre plantas, sustentando-se em parte com vendas deorquídeas. Mandava comprar livros especializados no Rio de Janeiro e ampliou a suacoleção de plantas, inclusive através de permutas com outros colecionadores,esforçando-se para identificá-las e classificá-las, já com a ambição de descobrir novasespécies. A sua coleção de plantas suplantou a do pai e ganhou fama local. O jovemHoehne se tornou um perito consultado por amantes e estudiosos de plantas.

Em 1907, quando tinha 25 anos, deu o grande salto que lançou a suacarreira de pesquisador e cientista. Com a ajuda do presidente da Câmara de Vereadoresde Juiz de Fora, amigo de sua família, este jovem interiorano sem formação científicaconseguiu ser nomeado, um tanto surpreendentemente, para o cargo de Jardineiro-Chefe do Museu Nacional do Rio de Janeiro, a maior instituição científica do país.Poucos meses depois de assumir o cargo, foi convidado a integrar uma expedição denaturalistas do MN que acompanharia Cândido Mariano da Silva Rondon numa viagemao Mato Grosso. Em meados de 1908, logo no início da carreira, portanto, partiu paraessa que seria a primeira de suas numerosas viagens de pesquisa a muitos pontos doBrasil. Em fins de 1909, voltou de Mato Grosso trazendo 2.000 plantas colhidas emvários locais do então remoto e gigantesco estado, as quais foram incorporadas aoherbário do MN. Enviou alguns exemplares florísticos à Alemanha, para identificação.Desenhos seus (de plantas) foram impressos também na Alemanha e depois anexadosao relatório oficial da expedição de Rondon. Em 1910 Hoehne estava de volta a MatoGrosso, na companhia dos botânicos Hermano e Geraldo Kuhlmann, em novaexpedição de estudos da flora. Em 1912, foi, outra vez, botânico de uma expedição deRondon (Mato Grosso e Amazonas) e em 1913 desempenhou a mesma função nachamada Expedição Científica Roosevelt-Rondon. Em pouco mais de cinco anos,portanto, fez quatro longas viagens de exploração científica.

Foi na cidade de São Paulo (para onde se transferiu em 1917), no entanto,que Hoehne se fixou profissionalmente e desenvolveu uma atuação sistemática e delonga duração, no que diz respeito ao estudo e à proteção da natureza. A sua carreiraesteve intimamente vinculada ao surgimento do Instituto de Botânica do Estado deSão Paulo. De início, foi convidado pelo diretor do Serviço Sanitário, em 1917, paraorganizar um horto de cultura e aclimatação de plantas medicinais. No entanto,dedicou-se a um projeto mais amplo, montando uma Seção de Botânica no InstitutoButantã. Mais tarde, em 1923, transferiu-se a Seção de Botânica para o Museu Paulista.Em 1928, mais uma mudança, agora para o Instituto Biológico de Defesa Agrícola eAnimal, passando a denominar-se Seção de Botânica e Agronomia. A seção ganhoumais autonomia em 1938, quando se transformou em Departamento de Botânica,subordinado diretamente à Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio.Finalmente, em 1942, o Departamento passou a ser o atual Instituto de Botânica.Hoehne esteve sempre à frente dessas instituições, trabalhando até 1952, quando, aoatingir a idade de 70 anos, recebeu aposentadoria compulsória.

Entre 1908 e 1948, participou de 15 expedições científicas pelo Brasil ealguns países limítrofes, consolidando-se como cientista de campo. Usava as expediçõespara coletar exemplares de plantas e ampliar as coleções sob a sua responsabilidade,

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sobre as quais publicava sistematicamente artigos, inventários e notas, além de realizartrabalho de identificação, classificação conservação, reprodução e intercâmbio. Asviagens o levaram, entre outros lugares, a Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Riode Janeiro, Paraná, Santa Catarina e ao litoral sul brasileiro, gerando extensos relatosde viagem e numerosos artigos sobre as paisagens, coletas e descobertas.

Nessas expedições, ele e os seus colaboradores coletaram pelo menos10.000 espécimes vegetais, correspondendo a pelo menos 4.000 espécies distintas, dasquais cerca de 200 eram novas para a ciência. Assim, Hoehne realizou plenamente oseu sonho juvenil de descobrir plantas novas para a ciência. Foi ainda mais longe:dezenas de outras plantas da flora nativa brasileira, também novas para a ciência,foram batizadas com o seu nome, a título de homenagem de colegas, assistentes eadmiradores.

Escreveu mais de 600 artigos científicos e de divulgação, principalmentesobre as plantas coletadas nas suas viagens, mas também sobre outros assuntos, comoarborização de estradas, desmatamento, reflorestamento, introdução de plantas exóticas,uso e cultivo de plantas medicinais, agricultura, recuperação ambiental e econômicade regiões desmatadas, criação de plantas e de coleções, unidades de conservação,estações de pesquisa etc. Contribuiu com muitas outras produções, como palestras,conferências, livretos para crianças e textos diversos de circulação restrita. Esta obra,muito vasta, obteve amplo reconhecimento, inclusive, internacional. Hoehne foihomenageado por inúmeras instituições, destacando-se o convite para participar comomembro honorário da American Orchid Society, distinção conferida a poucos cientistasno mundo inteiro, e o recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidadede Göttingen na Alemanha, em 1929.

O legado de Hoehne está sub-aproveitado, no entanto. Sem exagero,pode-se dizer que é um cientista brasileiro de renome internacional que, se nãoesquecido, é ao menos insuficientemente estudado e cultuado. Os seus principaislivros se tornaram raridades bibliográficas, apesar de terem tido grande aceitação dentroe fora dos meios científicos. Os seus numerosos artigos, espalhados por muitaspublicações seriadas, algumas interrompidas, também são de difícil acesso. Na falta deuma biografia mais extensa e de apreciações analíticas mais profundas sobre o conjuntoda sua obra, hoje em dia é difícil ao leitor comum ou mesmo ao especialista se informarsobre Hoehne, embora ele tenha morrido há apenas 45 anos. Em contraste, dezenas deviajantes naturalistas estrangeiros – como Saint Hillaire, Spix e Martius, Burmeister -, apesar de terem vivido antes de Hoehne, apesar de terem passado poucos anos noBrasil e apesar de terem feito as suas carreiras no exterior, têm pelo menos os seusprincipais livros de relatos de viagem publicados e disponíveis em português.

Consultas à Internet geram informações tipicamente fragmentadas ourepetitivas sobre Hoehne. Por exemplo, no site http://www.geocities.com/Athens/Crete/6030/historia.htm, aprende-se que a carreira, as publicações e a vida de Hoehne sãohomenageadas pela Sociedade de Orquidófilos de Juiz de Fora (MG), a sua terranatal, desde a criação da entidade, em 1946. Por ter sido fundador do Instituto deBotânica e do Jardim Botânico de São Paulo, acham-se informações precisas mas

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relativamente sumárias sobre Hoehne no site do Instituto (http://www.ibot.sp.gov.br/Destaque/140104.htm), inclusive sobre recente exposição de plantas organizada emsua homenagem, evento ligado à comemoração dos 450 anos da cidade de São Paulo(ver ainda ROCHA & CAVALHEIRO, 2001). Outros tipos de informação fragmentadasobre Hoehne, recuperáveis na Internet, vêm em duas modalidades. A primeira sãoimagens e/ou fichas técnicas das muitas plantas (geralmente orquídeas) batizadascom o nome de Hoehne, as quais fazem parte de acervos disponibilizados por associaçõesde criadores de orquídeas ou por institutos botânicos de várias partes do mundo. Aoutra, são anúncios sobre livros raros de autoria de Hoehne (geralmente os ilustrados),constantes em sites de venda de sebos ou lojas de livros raros do Brasil e do exterior(que pedem preços bem elevados por eles).

Portanto, justificam-se esforços para recuperar a memória sobre o trabalhoe a trajetória de Hoehne. Não se trata apenas de uma merecida homenagem a umpioneiro, pois em muitos casos, os seus livros e artigos, as suas coleções e as suaspropostas, contêm materiais relevantes ao estado da arte da ciência botânica brasileirae, principalmente, da reflexão sobre a conservação da natureza.

3 – IDÉIAS E AÇÕES

O Museu Nacional desempenhou um papel importante na formação deHoehne, no início de sua carreira como botânico. Desta época, além da amizade e dasoportunidades oferecidas pelo diretor da instituição, João Batista de Lacerda, e pelosecretário, o zoólogo Alípio de Miranda Ribeiro, Hoehne recordava, com agrado:

... a orientação que na citada repartição do Rio de Janeiro, nos deu o Dr.Alberto José de Sampaio, primeiramente como assistente e depois como chefeda Seção de Botânica. Não olvidamos também a atenção que sempre nos foiproporcionada na biblioteca do Museu Nacional e somos agradecidos aosfuncionários da mesma dos anos de 1908-1916 (HOEHNE, 1949: 7).

Hoehne reconhecia a sua dívida intelectual com Alberto José Sampaio.A convivência e o interesse comum pela proteção à natureza fizeram com quecompartilhassem ideais e realizassem trabalhos semelhantes.

A preocupação de Hoehne com a preservação de espécies e com adiversidade biológica fez com que, desde cedo, defendesse a necessidade da criaçãode reservas genéticas da flora e fauna nativas. Em uma edição comemorativa da Seçãode Botânica e Agronomia do Instituto Biológico de São Paulo (HOEHNE, 1937), elelistou os trabalhos que havia produzido sobre o assunto, desde 1917. Encontram-se,entre outros, artigos sobre: a) reservas florestais e estações biológicas, especialmente aEstação Biológica do Alto da Serra, criada por Ihering e que, em 1918, passou àjurisdição da Seção de Botânica; b) ornamentação de ruas, parques urbanos e estradasde rodagem, com a defesa da plantação de espécies nativas; c) reflorestamento, quedemandava conhecimento específico do manejo e utilidade das essências nativas; d)proteção de florestas, com destaque para a necessidade de uma legislação de proteção

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à natureza; e) o combate aos hábitos da derrubada e queimada; f) a defesa das florestasem geral, como fatores determinantes do clima, da agricultura e da estética; g) adefesa de florestas no Estado de São Paulo, especialmente as do Jabaquara e do morrodo Jaraguá, em prol das quais organizou campanhas de preservação entre 1924 e 1926.

Esses temas foram constantes na obra de Hoehne. Os seus pontos de vistarepetem-se em seus trabalhos, sem alterações de fundo. Por isso, para desenvolver esteartigo optamos pela análise de textos selecionados de Hoehne que, se não abrangem atotalidade de seus escritos, representam o fundamental no que diz respeito à suaconcepção de proteção à natureza. A sua percepção do mundo natural era intimamenteligada a uma moral que articulava utilidade e estética. Desse modo, para ele erafundamental que os humanos agissem de modo harmônico com a natureza que oscircunda, procurando conhecê-la e admirá-la. Era uma perspectiva organicista, naqual o uso e a transformação do meio natural deviam obedecer às leis naturais. Decorredaí o seu nacionalismo, que se exacerbava na medida em que percebia a naturezapátria como particularmente pródiga. Em 1930, publicou o volume I de As PlantasOrnamentaes da Flora Brasílica (HOEHNE, 1930). O seu desejo era o de:

... apresentar algo que sirva para despertar, na mente e no coração dospatrícios, o interesse e amor pelo mais belo e empolgante que a natureza danossa terra produz e oferece. A intenção é nobre e patriótica, porque é pura,despida de vaidade e orgulho. Ensinando a conhecer as belezas da floraindígena, pretendemos fazê-la querida e admirada e, conseguindo isso, teremoslogrado implantar um patriotismo que pulsa e freme por tudo que o seiopátrio cria e produz (HOEHNE, 1930: 3).

Segundo Hoehne, havia, naquele momento, um interesse maior pelas“coisas da nossa gente” e por “seus costumes”, embora ainda fosse necessário “começara querer bem às nossas plantas, animais e todas as produções da natureza do nossopaís, para delas nos utilizarmos e com elas criar o ambiente que nos possa tornar felizese alegres” (HOEHNE, 1930. p. 3-4).

Essa valorização adquiria um caráter de urgência, pois:

Olvidados, qual herdeiro que não sabe o que herdou, vínhamos destruindo asflorestas na ânsia de despir o solo, sem percebermos que elas nos prepararameste terreno tão produtivo que exploramos sem maiores esforços, semrepararmos que elas encerram mil outras preciosidades além da madeira elenha, que oferecem muitas outras vantagens e proporcionam outros benefíciosindiretos (HOEHNE, 1930: 4).

Não só as florestas, mas também, as outras formas de vegetaçãocaracterísticas da fitogeografia brasileira eram dignas de reconhecimento. Referindo-se aos cerrados, Hoehne reclamava que “os campos agrestes … nunca mereceram anossa atenção. As chamas os devoraram, sem que pela nossa mente passasse a idéia deque são admiráveis, ricos e dadivosos” (HOEHNE, 1930: 4).

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Os animais silvestres também deviam ser objeto de maiores cuidados,pois “com as selvas e campinas exterminávamos os insetos, as aves e milhares de outrosseres animados, que são os nossos auxiliares, nossos amigos. E, dessa forma, cavávamosa nossa própria ruína” (HOEHNE, 1930: 4).

Hoehne preocupava-se com a destruição de um patrimônio natural muitovariado, pouco conhecido e explorado equivocadamente, sem que houvesse consciênciasobre as múltiplas possibilidades que se revelavam e viriam ainda a se revelar, caso sefizessem estudos mais acurados:

Não são apenas madeira e lenha as riquezas dignas de atenção das nossasmatas. Dos campos não merecem atenção apenas as forragens e plantasmedicinais. Milhares de plantas úteis de outro modo vegetam nas selvas ecentenares de ervas e arbustos preciosos crescem nos últimos. Da nossa floraindígena poderíamos escrever muitos livros. Ela é riquíssima de espécies eformas, farta de coisas interessantes e bonitas. As madeiras, as plantas oficinais,corantes, gomíferas, resinosas, oleíferas, forrageiras, têxteis, taníferas, frutíferase outras, poderíamos estudá-las separadamente porque nos dariam assuntospara belas monografias. De todas elas temos dito alguma coisa, sem jamaisesgotar tudo o que se conhece a seu respeito (HOEHNE, 1930: 4).

Neste As Plantas Ornamentaes da Flora Brasílica, Hoehne tinha doisobjetivos. Em primeiro lugar, pretendia “mostrar um pouco do muito e interessante que anossa flora indígena oferece, para a decoração das ruas e praças públicas, para os jardins eparques, para as estufas, para as salas e para as artes e a poesia” (HOEHNE, 1930. p. 6).Defendia, com esse propósito, que “principalmente na arborização das nossas ruas e praçaspúblicas, as árvores das nossas selvas e campos deverão ter sempre a primazia. Elas devemser preferidas às exóticas, porque temos muitas para substituí-las com vantagens reais emtodos os misteres” (HOEHNE, 1930: 10).

O outro objetivo, explicava Hoehne, “é mostrar a vantagem das matasnaturais, sobre as artificiais, para o desenvolvimento das artes. Com isso queremosdespertar defensores para elas, para que, por muitos séculos ainda, os filhos da nossaterra possam inspirar-se nelas e encontrar os elementos para compreenderem as grandesmaravilhas que o Criador espalhou pelo nosso torrão natal” (HOEHNE, 1930: 12).Programaticamente, esclarecia que “precisamos de defensores da natureza da nossaterra. Agora que se fala tanto na fundação de sociedades de amigos das cidades, dasescolas, das artes e das letras, não seria inoportuno pensarmos também na criação deuma associação de amigos da natureza, que seria a melhor e mais patriótica de todas”(HOEHNE, 1930: 12).

Como mencionado, havia no início dos anos 1930 um clima de apelo àreconstrução nacional. A questão da proteção à natureza inseria-se neste contexto, edevia desempenhar, na opinião de Hoehne, um papel central na elaboração de umprojeto de nação. O seu pragmatismo, no entanto, fez com que direcionasse a sua açãopara objetivos mais pontuais. Acreditava, no que se relacionava à fundação de gruposcívicos, que:

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As associações dessa natureza contribuem muito para garantir as belezasnaturais de um país. Geralmente, são elas que promovem e incentivam acriação de parques nacionais, estações biológicas e museus e jardins botânicose zoológicos, instituições todas, de que há tanta carência em nosso meio.Além disso, uma associação de amigos da natureza, em nosso país, poderiarealizar muitas obras realmente altruísticas, divulgando ensinamentos pormeio de revistas e publicações dedicadas, única e exclusivamente, a essacausa tão patriótica quanto filantrópica, ou realizando conferências oupalestras sobre esses mesmos assuntos. Não temos dúvida alguma em queseria bem aceita se fosse bem lançada e assim poderia chegar a fazer coisasrealmente grandiosas. Todavia, enquanto ela não existe, faça cada um de nósa sua parte na defesa do belo quinhão que a Providência nos deparou nanatureza do nosso país, para que ela também possa ser ainda admirada ecantada pelos nossos filhos e netos. Para bem ampará-la, aprendamos aconhecê-la, porque somente então ela se tornará digna de toda a nossa atençãoe carinho (HOEHNE, 1930: 13-14).

De fato, em 1939, sob a inspiração de Hoehne, foi fundada em São Paulo,a Sociedade de Amigos da Flora Brasílica que, junto com o Instituto de Botânica,promovia publicações, organizava palestras e procurava influenciar a opinião públicaem favor das reservas biológicas e do reflorestamento. Em Limeira, a Sociedade tinhamesmo um Parque Biológico, cujos objetivos eram a pesquisa e conservação da flora efauna nativas (HOEHNE, 1951).

O conhecimento era certamente um ponto fundamental nesta apreciaçãoda natureza. A Seção, e depois o Instituto de Botânica, se dedicaram principalmenteao mapeamento e à pesquisa da flora brasileira. Hoehne tinha como a sua maior ambiçãoeditar uma obra de peso, nos moldes da ambiciosa Flora Brasiliensis, de Martius, quefosse a sua atualização. Publicou vários volumes desse trabalho, que intitulou FloraBrasílica. No entanto, não bastava a produção pura e simples do conhecimento - erapreciso divulgá-lo. Essa foi uma preocupação constante de Hoehne, pois ele via adevastação da natureza no Brasil como resultante da ignorância, ou da má fé e egoísmodos que só tinham olhos para o lucro imediato. Era necessário, portanto, disponibilizaras informações sobre a conservação da natureza e dos seus recursos para um público, omais amplo possível, e garantir a elaboração de leis que submetessem o interesse privadoao bem público.

Hoehne exerceu certa influência nos círculos governamentais, porintermédio de Fernando Costa, que foi Secretário de Agricultura, Indústria e Comérciodo Estado de São Paulo, no governo de Júlio Prestes, e Ministro da Agricultura eInterventor do Estado de São Paulo, durante a era Vargas. A causa da proteção ànatureza aproximou os dois homens, que se tornaram amigos. Na esfera federal, asidéias de Hoehne contribuíram para a criação dos primeiros parques nacionais brasileiros.No âmbito estadual, Costa foi um grande incentivador dos projetos do amigo, além deter tido participação direta na criação do Jardim Botânico de São Paulo (HOEHNE,1937; HOEHNE et alli, 1941; HOEHNE, 1947). Em 1928, mandou chamar Hoehneao seu gabinete para lhe falar da necessidade de se cultivarem as plantas ornamentaisdas “nossas matas e campos, para salvaguardá-las do extermínio e para aproveitamento

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delas nos parques e jardins. Eu quero que me ajude nisto. Veja como poderíamos criarum jardim próprio para realizar esta minha idéia” (HOEHNE, 1947, p. 115).

Na manhã seguinte, estiveram os dois na reserva florestal das cabeceirasdo rio Ipiranga, que mais tarde passou a se chamar Parque do Estado, abrigando oJardim Botânico e o Zoológico, além do Simba Safári. No mesmo dia, contava Hoehne,que:

Para demonstrar-lhe quanto estávamos interessados no assunto que constituíaa base do seu plano, convidamo-lo a ver o nosso jardim e orquidário particular,…, para dar-lhe uma boa idéia daquilo que se poderia realizar para o Estado.Ao contemplar o nosso orquidário...teve o Dr. Fernando Costa a seguinteexpressão aflorada aos seus lábios: “Que maravilha, Hoehne! ... Se vocêpôde realizar isto particularmente, porque não o poderá fazer o Estado, quetem muito mais meios?”. E nós lhe replicamos, sem detença: “Sim. O Estadoo pode e o deve fazer para instrução da nossa gente, para elevação damentalidade com referência ao que é peculiar e próprio do nosso país. OEstado pode e deve fazer coisa muito maior e nós estamos à disposição deVossa Excelência, para trabalhar neste sentido” (HOEHNE, 1947: 115).

Desta conversa resultou a criação do Jardim Botânico, com o seu orquidário,abertos à visitação em 1928, sob a administração da Seção de Botânica, dirigida porHoehne. As instalações eram precárias, pouco podendo ser realizado até 1938, quandonovas dotações orçamentárias permitiram a construção de um projeto arquitetônicoque previa uma sede definitiva para o então Departamento de Botânica, MuseuBotânico, Biblioteca e Fitoteca, além de estufas mais adequadas para o orquidário e oherbário. Em 1944, o Instituto de Botânica mudou-se definitivamente para a sede doJardim Botânico (HOEHNE et alli, 1941; HOEHNE, 1937; HOEHNE, 1943-1951.)Sobre a adequação do local, Hoehne explicava que:

O lugar tem para sua auréola histórica o fato que é a cabeceira do ribeiroIpiranga, em cujas margens, dois ou três quilômetros mais abaixo, o brasileiro,em 7 de setembro de 1822, ouviu o ‘brado retumbante’ que definiu a atitudede D. Pedro I, em relação ao domínio português, de que adveio a nossaemancipação política. Ele tem ainda os documentos topográficos e a floraque Martim Afonso de Souza, no começo do século XVI, percorreu ao chegardo litoral de S. Vicente, depois de haver atravessado o contraforte da Serrado Mar, para conhecer a aldeia de Piratininga.... Como o Morro do Jaraguá,o atual Parque do Estado, onde fica o nosso Jardim Botânico, é um marcohistórico que precisa ser conservado e que de fato será mantido em suascondições naturais, mesmo servindo para o fim a que se destina... Para JardimBotânico regional possui S. Paulo o essencial nesse próprio do Estado e hálugar, campos e terrenos desnudados também, para se plantar aquilo quefalta para que o conjunto se torne cada vez mais interessante para o leigo esempre mais útil para os estudantes e os cientistas que desejam estudar botânica(HOEHNE et alli, 1941: 13-14).

Em 1937, na Resenha Histórica para a Comemoração do Vigésimo Aniversárioda Seção de Botânica e Agronomia, Hoehne explicava que a seção vinha cumprindo o

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seu papel como centro de pesquisas e agência de divulgação de conhecimentos defitologia, por meio da manutenção do herbário e de publicações. A seção pretendiaainda realizar um programa com o propósito de preservar, conservar e refazer adocumentação sobre a flora nativa, por meio de “testemunhas vivas”. Contava, paratanto, com a Estação Biológica do Alto da Serra e com o Jardim Botânico.

Hoehne não foi um preservacionista strictu sensu. Defendia o uso, desdeque previdente, dos recursos naturais, bem como a fruição estética e a pesquisacientífica, que deveriam ser garantidos pelo artifício humano em consórcio com anatureza. Ele estava, portanto, longe de uma posição estritamente “preservacionista”,“anti-humana”, como infelizmente ele e a sua geração de cientistas vêm sendoapresentados por uma parte da literatura atual. Ele era a favor da produção, numamodalidade que hoje chamaríamos de sustentável. Cidades arborizadas e floridas,entrecortadas de parques e jardins, estradas entremeadas de reservas florestais,constavam de seus projetos. Havia, também, a constatação de que:

O que herdamos e, especialmente, aquilo que nos legou a natureza, paranosso recreio, edificação e instrução, representa um patrimônio dahumanidade, do qual cada geração e cada indivíduo têm o direito de tirar oessencial para o seu uso, sem depredar e sem inutilizar, porque isto é um bempúblico, um patrimônio da coletividade humana... Reconstruir a histórianatural tem sido e há de continuar a ser preocupação útil e instrutiva doshomens. Para realizar isto, tudo que a biologia produz torna-se interessante eprecioso. Cada vez mais difícil torna-se, porém, conservar os dados e oselementos para se descobrirem as cadeias e séries que formam o reino vegetale o animal. Desaparecem as selvas e transformam-se os campos, pornecessidade ou por vandalismo e, com isto, reduzem-se as espécies e abrem-secada vez mais hiantes as lacunas entre os elos que ligam os gêneros, quecompõem a escala natural...A natureza virgem, em que possam ainda serencontradas todas as espécies vegetais e animais primitivas da era atual,representa, por isto, hoje, uma relíquia de valor inestimável. Raras são aslocalidades, mesmo no Brasil, onde o bípede humano já não tenha exercido asua influência modificadora. Onde vicejavam florestas maravilhosas, hámenos de dois séculos, elevam-se hoje chaminés de fábricas, ou estendem-secampos de agricultura aqui e acolá já reduzidos a taperas. Do primitivo,pouco nos resta na flora e pouquíssimo sobrevive na fauna (HOEHNE,1937: 75).

Embora a perspectiva de Hoehne não fosse das mais otimistas no tocanteà preservação de áreas dotadas de flora nativa, a sua disposição para o trabalho nuncaesmoreceu. Em suas viagens pelo território brasileiro, costumava identificar os espaçosque pensava serem destinados à produção, separando-os daqueles onde deviam sercriadas reservas naturais. Nas estradas e nas cidades, sempre se preocupava com oaspecto estético: paisagens, arborização, parques e jardins. Insatisfeito com o ritmo doprogresso, sempre procurou sugerir meios de torná-lo mais harmonioso.

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4 - VIAGENS E ORQUÍDEAS

As viagens realizadas por Hoehne pelo Brasil, bem como o seuconhecimento e as suas preocupações com a flora e fauna nativas, foram sintetizadasem Iconografia das Orchidáceas do Brasil (HOEHNE, 1949b), no capítulo “ExcursãoMental pelo País”. Trata-se, basicamente, de elucidar quais são, onde e como vivemas orquidáceas brasileiras. No entanto, à medida que acompanhamos o autor na viagemproposta, são discutidas outras questões mais gerais, relacionadas à fitogeografia ou àproteção e uso racional da natureza. Em princípio, ficava acertado que:

A excursão será mental, estribada em fatos e observações feitas durante asnossas excursões e viagens levadas a efeito desde 1895 até 1946, espaçadas eintercaladas sempre de trabalhos longos de laboratório. Para melhorcompreensão e comparação do que existia e do que agora existe,mencionaremos, onde for aconselhável, a época em que registramos asimpressões. Fá-lo-emos, entretanto, sem nos atermos à sua ordem cronológica,mas seguindo rumos geográficos para também darmos uma idéia da imensidãodo nosso território. Partiremos, portanto, de São Paulo e tornaremos a ele semsairmos do conforto do lar com o nosso físico, viajando com o nosso espírito(HOEHNE, 1949b: 52-53).

Logo de início, Hoehne constatava que o papel econômico que asorquidáceas podiam desempenhar não tinha sido compreendido até então, sendo asua exploração completamente irracional:

Essas plantas têm sido daqui tiradas, ... , por estrangeiros e nacionais, sem queo fisco e mesmo os possuidores das terras tivessem tomado nota ou intervindopara o obstar. Todavia, é incontestável que o seu valor é maior do que o dasmadeiras em muitas regiões. É enorme o seu apreço comercial e precioso,portanto, o papel que deveriam desempenhar na economia nacional. É comumencontrarem-se árvores que ostentam espécimes bastantes para fazerem subiro valor de uma floresta ao décuplo daquilo que ela poderá valer pelo seuconteúdo de madeira ou lenha. Todavia, essas plantas são retiradas, levadase vendidas sem que daí advenha, ao proprietário ou ainda ao governo do país,qualquer vantagem (HOEHNE, 1949b: 50-51).

As orquidáceas podiam e deviam ser coletadas, cultivadas e mesmomelhoradas, embora exigissem cuidado e conhecimento profundos, para que fossemmanejadas com sucesso. Era preciso tomar cuidado para que a exploração descontroladanão comprometesse a reprodução da variada flora orquidófila do país, em prejuízo dacoletividade, e principalmente das gerações vindouras. Hoehne alertava:

No que concerne à distribuição geográfica de algumas espécies mais preciosas,constata-se que muitas já estão completamente exterminadas em localidadesonde, ainda há um século atrás, podiam ser colhidas em enormes quantidades.Não fosse a grande dispersão de muitas delas, sem dúvida já teríamos de

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lamentar o desaparecimento de todas as que são mais cobiçadas peloscolecionadores nacionais e estrangeiros (HOEHNE, 1949b: 51).

Além de suas atualíssimas preocupações com as questões pragmáticas dovalor econômico e da possibilidade de extinção dessas flores e de outros integrantesde nossa flora, Hoehne destacava o aspecto estético envolvido na apreciação dasorquídeas, em particular, e da natureza, em geral. Ele era, ao mesmo tempo, um homemde ciência e um romântico, um apaixonado pelos coloridos e pelas harmonias do mundonatural. As orquídeas desempenhavam:

... com seu perianto, exibição não muito diferente daquela que a donzela fazquando chega a idade em que deve escolher o seu namorado. Essa exibição,da parte das orquidáceas, como de outras plantas, destina-se também, comoali, ao embelezamento do ambiente, ao proporcionamento da alegria danatureza. E é justamente por isso que deparamos com tantas formas, com tãovariados aprestos. Tudo se esforça na natureza para ser diferente, paraconcorrer para a diversidade dos formatos e dos coloridos... (HOEHNE,1949b: 52).

O mundo se revelava como um ser vivo e dotado de finalidade. A perfeiçãose realizava por meio da expressão da beleza:

Permitam-nos mais um devaneio. Se literato ou poeta fossemos, diríamos quetodas estas belezas, esta harmonia que observamos na natureza, é resultado,efeito da luz, exteriorização da vida, em tudo manifesta, em todos uma só.Essa vida, - harmonia e beleza -, surge em todos os recantos, nos ensolaradose sombrios, e traduz, em cada ambiente, uma finalidade que, - aparentementeegoísta, por natureza exercida com requintado e insofismável desejo de alijare excluir rivais e comparsas, - resulta no maravilhoso entrosamento deinteresses, que, em realidade, é a energia universal mantenedora de todas ascoisas e de todas as espécies, causa do equilíbrio, que ao observador argutonão escapa (HOEHNE, 1949b: 52).

Para além da desordem e da competição, prevalecia a cooperação. Anatureza expressava-se como um todo harmônico. A metáfora judaico-cristã da criaçãoe do homem como o seu centro era retomada por Hoehne, porém, na sua hermenêutica,a humanidade aparecia como parte integrante e integrada ao todo. Não havia apossibilidade de um conhecimento produzido de fora, à parte do mundo:

O homem, rei deste planeta por ordenação divina, é também elementointegrante desse mundo, todavia acredita, ingenuamente, que o podecompreender e julga-se apto para tudo interpretar. De fato, tudo estuda eesquadrinha, sonda e contempla detalhes e minúcias, mas, do mistério conheceainda muito pouco. Se parte é do todo, como poderia compreendê-lo, comoconseguiria abrangê-lo, excluindo-se?! Todavia, o homem é criatura divina, étambém um criador. Com utilização do existente, cria novas espécies, formase variedades, e o faz com relativa perfeição, quando aplica a sua inteligênciaao trabalho. Dentro das leis eternas preexistentes, sujeito a elas o realiza para

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seu maior proveito, nem sempre, porém, para o aperfeiçoamento do todo efelicidade geral (HOEHNE, 1949b: 52).

Antes de comentarmos a motivação da excursão mental propostapor Hoehne, é importante compreendermos o papel desempenhado pela estética emsuas reflexões sobre o mundo natural. Em outra obra sua, As Plantas Ornamentais daFlora Brasílica (HOEHNE, 1930), ele procurou definir de modo mais completo a estéticae a sua relação com a natureza. Platão, Aristóteles, Kant e Schelling eram citadospara demonstrar que a apreciação estética era um sentimento elevado, capaz deimpulsionar os humanos no caminho da transcendência:

O senso estético não é, porém, peculiar, isto é, desenvolvido em todos oshomens. Ele é natural e próprio dos seres elevados, peculiar e bem desenvolvidonos espíritos cultos e aprimorados, que cogitam das coisas transcendentes esublimes... Educar o espírito e aperfeiçoar o moral dos nossos semelhantes éconvertê-los em apóstolos do bem, transformá-los em seres capacitados paracompreender e amar a estética. O estético alimenta o espírito, eleva a alma,não só de uma pessoa e em prejuízo de outras, mas de todas, em proveito dacoletividade, porque, o belo e o bom o são, simultaneamente, para todos, semprejuízo de quem quer que seja (HOEHNE, 1930: 23).

Este sentimento de unidade e harmonia era proporcionado, sobretudo,pelo convívio com a natureza que, como modelo maior de perfeição, devia guiar econduzir a humanidade no prazer e na alegria:

Se detidamente analisarmos e observarmos as leis que regem o cosmo, seexaminarmos os detalhes dos componentes da flora e da fauna e pesquisarmosa simbiose e a mútua dependência e reciprocidade de interesse que existementre espécies, verificamos que, efetivamente, a natureza é perfeita, obradigna do maior artífice, energia vital e criadora, que respeitamos e acatamoscomo Deus Supremo. Adaptar-se à natureza, gozá-la, auscultando-a epesquisando seus segredos, é tornar-se feliz. Os seus aspectos são vários,várias as suas condições e, de acordo com eles, devem ser o nosso vestuário,alimentação e vivendas; conforme estes a nossa arte decorativa (HOEHNE,1930: 26).

Desse modo, o sentido de harmonia estética devia estar presente em todas asrealizações humanas, dando-lhes um padrão de equilíbrio com as produções da natureza:

Entre o estilo das nossas casas, jardins e parques e a natureza local, deveexistir perfeita harmonia, tanto no aspecto, como na feitura e no coloridogeral. A natureza de uma região é constituída pela topografia do terreno, suacobertura vegetal de bosques, florestas ou campos naturais, mares, rios, lagos,correntes atmosféricas, desencadeamento dos hidrometeoros, brilho do sol,animais e espécies vegetais, por tudo, enfim, que nela aparece. E, como esseselementos se entrelaçam e combinam, também nós precisamos adaptar-nos eharmonizar-nos com o todo, para vencermos na luta pela vida e para gozá-lacomo merece ser gozada (HOEHNE, 1930: 27-28).

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O espírito romântico de Hoehne fazia dele um bom observador dadiversidade e das especificidades locais. No caso do Brasil, não devia ser sofrível aadaptação a um meio pródigo, embora fosse fundamental levar em conta o fato devivermos em terra de fisionomias múltiplas:

Se em nosso país a natureza sorri e brilha em cores berrantes e vistosas, éporque todos os demais fatores com ela colaboraram para isso. Conformando-nos com ela e vivendo de acordo com as suas leis, também nos harmonizaremoscom ela em vida e saúde... A fitofisionomia da nossa terra não é a mesma emtodas as zonas, nem em todas as altitudes. Como em outras partes do mundo,ela varia de conformidade com as influências telúricas e atmosféricas. E, deacordo com o aspecto, a densidade e altura da vegetação, variam as espéciescomponentes da flora e as espécies que representam a fauna. Idênticas nãopodem também ser as casas e as cidades em todo o nosso território, se queremharmonizar-se com a natureza adjacente. Elas têm de variar de conformidadecom a natureza, porque a desarmonia de um conjunto se tornará feio, ridículoe se presta pouco para proporcionar bem estar (HOEHNE, 1930: 28).

Hoehne, antecipando-se às afirmações contemporâneas sobre a ”mega-biodiversidade” brasileira, considerava que a natureza devia ser a mestra e inspiradorade todas as criações, sobretudo no Brasil, pois:

Nenhum outro país do mundo tem maior variedade de motivos do que onosso. As nossas florestas e campos naturais ostentam trepadeiras e ervascom flores mais bonitas e mais belas do que as do Acanto da Grécia eabrigam orquidáceas com flores mais lindas e artísticas do que todas as rosasda Bulgária e Itália. Porque deixarmos que os artistas em terras estranhas nostirem o privilégio de introduzi-las na arte decorativa, de baixos relevos, barras,gregas e chapeados, como em papéis pintados e enfeites de estuque? É urgentee muito conveniente que volvamos as nossas vistas para todas essas maravilhasda natureza indígena para utilizá-las nas artes, nos jardins, nos parques e nossalões. Assim fazendo, praticaremos obra patriótica, porque concorreremospara que a gente da nossa terra aprenda a apreciá-la, a amá-la, não só peloque ela produz do lado intelectual, mas também pelo que nasce e brotaespontaneamente do seu ubérrimo solo (HOEHNE, 1930: 33-34).

Se Hoehne teve uma preocupação com a exploração dos recursos naturais,marcando a sua obra com um tom de objetividade e pragmatismo, o fundamento erauma percepção estética do mundo natural, na qual os humanos eram parte da totalidade,e cada uma das outras partes, todas inter-relacionadas, valia por si própria e por serparte do todo, uma posição que hoje em dia se denomina de deep ecology (ecologiaprofunda).

1Voltemos, portanto, à excursão imaginária sugerida por Hoehne, tendoagora em vista os motivos que o conduziram em suas apreciações estéticas, prenhes delirismo, e em suas propostas mais concretas e objetivas. Ele procurava justificar osmotivos que o levavam a tornar públicos os segredos das orquídeas em sua viagemimaginária:

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Ninguém nos censure, portanto, por havermos revelado o ‘habitat’ de muitasOrquidáceas. Ninguém pode defender aquilo que não conhece. Aosproprietários das florestas, e governadores dos municípios e dos Estados,indicamos o patrimônio que lhes está confiado. Envidem, portanto, todos osmeios, empreguem todas as forças e artigos de leis, a fim de conseguir estabelecerreservas florestais e estações biológicas, onde forem viáveis e recomendáveis,para que protegidas sejam e constituam testemunhas vivas daquilo queacabamos de referir. Não olvidemos jamais que o Brasil é nosso e a maisninguém assiste o dever de defendê-lo das garras, não só dos estrangeiros masdos filhos desnaturados e impatriotas, que não trepidam em dilapidá-lo nemem explorá-lo no interesse pessoal (HOEHNE, 1930: 124)

A flora brasileira era extremamente diversificada, e:

Do mesmo modo como acabamos de realizar esta excursão mental pelo nossogrande e belo país para conhecermos a sua riqueza orquidológica, poderíamoslevar a efeito outras para estudarmos as suas Filicíneas ou “Samambaias”, ouainda para conhecermos as suas Bromeliáceas, Gramíneas, Begônias,Bignoniáceas, Apocináceas, Gencianáceas, etc. Sempre teríamos ensejos paranos orgulharmos da nossa pujante e bela flora. Mas se nos dedicássemos umavez, devotadamente, ao estudo das árvores das nossas selvas virgens, que sãoos suportes naturais da maioria das mais preciosas Orquidáceas do Brasil,certamente descobriríamos que também elas são dignos ornatos da nossaflora que, do mesmo modo, deveriam merecer a nossa proteção, não somentepelo lenho ou madeira que proporcionam, mas pelas suas lindas flores. Umacoleção de árvores com flores vistosas ou abundantes, poderá proporcionarao amigo da natureza tanto deleite quanto lhe proporcionam as Orquidácease estas se aninhariam espontaneamente sobre muitas delas (HOEHNE,1930: 124).

As orquídeas faziam parte de um sistema equilibrado, no qual cada partegarantia mecanismos de suporte para as outras. Hoehne alertava que:

A devastação que se alastra maus augúrios nos insufla. Tombam os gigantesdas florestas com as suas cargas de plantas dendrícolas e, aqui e acolá, sãoformados eucaliptais que pouco recurso para as últimas proporcionam e quemuito pouco fazem recordar da nossa maravilhosa terra (HOEHNE, 1930:124).

Defendia, portanto, a necessidade de preservação da flora nativa, emboraisso não significasse que ela não podia ser explorada economicamente, e de formavantajosa:

Com sabedoria e discernimento pode o homem utilizar-se de tudo sem deixarlacunas. Assim poderá também colher e cultivar Orquidáceas das florestas edos campos naturais, sem exterminar espécies ou gêneros nas regiões em que anatureza as distribuiu e mantém (HOEHNE, 1930: 124).

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O propósito do trabalho de Hoehne sobre as orquidáceas era não sódespertar o sentido estético e a curiosidade científica, mas também proporcionarconhecimentos mais pragmáticos, relacionados com o tratamento adequado destasplantas:

Viajamos convosco, mentalmente, quase todo o nosso grande e belo país.Mostramos onde e como vivem as Orquidáceas na natureza. Justo é, portanto,que transmitamos conselhos aos que, honestamente, se entregam à colheitadestas plantas, para que, involuntariamente, não concorram para oabreviamento do seu total desaparecimento, mesmo onde as florestas aindapermanecem. A carência do conhecimento necessário para realizar a colheita,o tratamento preliminar e a embalagem conveniente para o transporte, têmsido, aliás, tão prejudicial à flora orquidológica do nosso torrão, quanto omachado e o facho incendiário. Já mostramos quanto isto concorreu para aperda de grandes e preciosíssimas partidas de plantas, nos primeiros decêniosda história da cultura delas nos países europeus. Mas se afirmamos que emnossos dias esses mesmos crimes se repetem, é porque temos acompanhadobem de perto a maneira pela qual continuam sendo colhidas e transportadasas mudas ainda hodiernamente (HOEHNE, 1930: 125).

Hoehne defendia o direito de as gerações futuras continuarem gozando abeleza e a utilidade de um patrimônio natural comum, num argumento em tudo igualao atual apelo “sustentabilista” pela “solidariedade intergeracional”:

Assiste ao homem o direito de usufruir todas as dádivas da natureza. Esteprivilégio lhe foi outorgado pelo próprio Criador, no dia em que o tornou serpsicozóico, isto é, ente dotado de partícula espiritual. Não devemos olvidar,entretanto, que todo privilégio outorgado também impõe, concomitantemente,responsabilidade e dever. Assim, o Criador, facultando ao homem todo odomínio, lhe ordenou também: “Cultive e guarde”. Nunca se deve esquecerque o encontrado como produto da natureza não constitui propriedadeprivativa, mas patrimônio da coletividade humana e que, justamente porisso, o “Código Florestal do Brasil” acentua, logo no primeiro artigo, que: “Asflorestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituembem de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitosde propriedade com limitação que as leis, em geral e especialmente este Código,estabelecem”. Os direitos referidos devem, por isso, ser comuns à geraçãopresente e as advindas (HOEHNE, 1930: 125).

Ao lado da concepção da natureza como uma teia de múltiplasinterdependências entre os seres que a constituem, aparece a perspectiva hierárquica,na qual um Criador supremo encarregava os humanos, como criatura superior, daadministração e cuidado de todos os outros seres constituintes da obra divina. Estaargumentação é muito parecida com as analisadas por uma série de estudiosos dopensamento ambientalista contemporâneo em diversos países (NASH, 1989;WORSTER, 1994; ACOT, 1990). Desse modo, as estações do ano renovavam, a cadaciclo, as atividades biológicas geradoras de energia, e estimulavam o homem a prosseguirna conquista dos “mais elevados ideais”. Esta disposição era manifesta no artigo

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Primavera, publicado por Hoehne, a respeito da “Festa das Árvores”, no jornal AGazeta, de 21-09-1946, e reproduzido no Relatório Anual do Instituto de Botânica, de1947. Havia, primeiro, o reconhecimento do desalento de muitos que lutaram porinstituir uma legislação e medidas relacionadas com a proteção à natureza:

Realmente! Acabrunhado está o coração de muita gente boa e honestado nosso meio, ao contemplar os tristes espetáculos que se desenrolamdiante dos seus olhos, porque lhes parece, que seivas de inteligência,programas de previdência, códigos florestais, leis coibitivas das atividadesdos famigerados e contumazes dendroclastas, com a boa vontade e obom senso, ruíram por terra! Afigura-se que milhares de bons preceitos,de excelentes propósitos, de magníficos planos estudados e maturadospor uma geração que chega ao seu clímax, são olvidados, estão em riscode se transformarem em objetos dignos de desprezo e de crítica acerba...Sem dúvida, muitos indagam: “Para onde iremos assim?”... Muitos dosque trabalharam com denodo e sacrifício para garantir reservas florestaisdestinadas a finalidades científicas e econômicas, sentem-se preteridos eexclamam: “Até quando, Senhor, até quando Senhor, repetir-se-ão em nossopaís, as tentativas para criar uma mentalidade brasílica, para fazer surgir umpatriotismo sadio e ativo, capaz de erguer-se contra os desmandos, contra aspotestades sinistras que ameaçam transformar o nosso torrão num deserto,numa terra de dendroclastas impenitentes, reiteradores das façanhas deinsensatos?!” (HOEHNE, 1947: 106-107).

Afigurava-se a Hoehne, no entanto, a necessidade de aproveitar aprimavera para renovar o ensejo pela proteção da natureza. Ele depositava as suasesperanças nas gerações mais novas:

Reunindo as forças combalidas, congregando os parcos resíduos no cérebrocansado, pedimos excusas aos que eventualmente pensam de modo diferenteconcernente aos problemas vitais do Brasil, e lhes solicitamos licença parafalarmos aos companheiros da falange dos “Amigos da Flora Brasílica”, emuito especialmente aos nobres e beneméritos educadores, mestres de escolas,aos que têm o encargo de dirigir as mentes da geração entrante. Sim, queremosrecomendar-lhes que envidem esforços no sentido de criarem os nobressentimentos nessa gente que vem vindo, nesses homens e mulheres que se vãofazendo, incutindo à juventude os deveres sagrados da defesa da naturezabrasílica, com a fiel obediência aos códigos e às leis que foram criadas paraesse mesmo objetivo. E tudo isso para que vejamos surgir um sintoma deverdadeira brasilidade... Agora que temos novamente a nossa Constituição,é necessário que aprendamos a viver como bons democratas, mas éurgente também que cheguemos a compreender os nossos privilégios eavaliar, devidamente, as nossas responsabilidades de cidadãos brasileiros(HOEHNE, 1947: 107).

Embora os tempos tivessem mudado com o fim do Estado Novo e aredemocratização do país, Hoehne continuava a defender a necessidade de umaidentidade nacional fundada no sentimento de patriotismo e de respeito ao bem comum.Por meio da educação e da legislação, a sociedade devia ser conduzida a adotar uma

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atitude mais previdente em relação ao patrimônio natural. Para tanto, Hoehnereivindicava a atuação firme do Estado e o comprometimento dos cidadãos:

Saudando as escolas públicas e particulares deste grande Estado, incitamosaos seus dirigentes e aos seus professores para usarem os privilégios que lhesficam reservados na formação de mentalidades sadias e previdentes. Incutamno coração da juventude esta grande verdade e este grande aviso: ‘Constituicrime de lesa-pátria destruir aquilo que é útil e que não pode ser restauradojamais’. Assim são as florestas virgens da nossa terra, estas matas milenáriasque a natureza criou e dotou de recursos múltiplos para a ciência, arte,literatura e economia. Uma vez destruídas, não mais poderão ser restauradascom os mesmos elementos e os mesmos recursos... Providências sábias foramtomadas pelos governos passados ao criarem as belas reservas florestaispróximas e distantes da nossa Capital e de outros centros mais populosos donosso Estado. Para que possam assegurar, à geração futura, os recursosbiológicos que encerram, é preciso, entretanto, que os nossos homens de agoraas façam respeitar (HOEHNE, 1947: 107).

Nos anos 1930, foi decretada uma legislação relacionada com a proteçãoda natureza e foram criadas algumas áreas de reserva natural. Hoehne reconhecia aimportância destas medidas, embora se queixasse da falta de observação das leis queas amparavam. Em sua opinião, era fundamental, no que dizia respeito à preservaçãoda natureza, subordinar os interesses individuais aos da coletividade, que deviam serpensados visando as gerações futuras. O patriotismo e a valorização da natureza, nãosó do ponto de vista econômico, mas também de uma perspectiva que envolvia ointeresse científico e a sensibilidade estética, eram vistos como fundamentos necessáriosda identidade nacional e garantia de perpetuação do patrimônio natural herdado.

5 - MANUTENÇÃO DOS HABITATS E REFLORESTAMENTO

No Relatório Anual do Instituto de Botânica, publicado em junho de 1951,Hoehne discutia, em um artigo intitulado “Reflorestamento”, como realizá-lo. Iniciavaesclarecendo que mantinha a opinião defendida em 1917, na revista Brasílica, emartigo intitulado “A Necessidade de uma Flora Brasileira”. Observava, primeiramente,que “A fitofisionomia de um país deveria, entretanto, ser perpetuada como característicopeculiar e se tanto se fizesse continuariam subsistindo igualmente os aspectos faunísticose mantida seria a biota” (HOEHNE, 1951: 38).

Hoehne sustentava os seus argumentos por meio da elaboração de umsaber próprio do campo da biologia, conhecimento que, segundo ele, devia orientar aescolha de espécies adequadas ao cultivo do solo:

A flora e a fauna ajustam-se à topografia, clima e solo de uma região. Asárvores e as ervas traduzem no seu aspecto e prioridades as influências exercidassobre elas pelos fatores edafológicos e climatéricos, mas contribuem por seuturno para a manutenção dos mesmos fatores. Elas influem de modoconsiderável para a caracterização das diferentes zonas e regiões do globo e

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foi justamente por isso que os aborígines sempre apreciaram o processo deidentificar cada localidade pelos seus fácies e não por aquilo que mais tardepudesse ser criado. Os grandes botânicos: Prof. Dr. Adolfo Engler, Clementse muitos outros tiraram daí a idéia de organizarem mapas fitofisionômicospor meio dos quais se pode apreciar não apenas a diversidade do aspecto dosvegetais, mas tirar também conclusões práticas para o conhecimento do solo,seu valor em humo, teor de pH, riqueza bacteriológica e micológica. Assim, abotânica pode prestar relevantes serviços à agricultura, orientando-a naescolha das espécies úteis a serem preferencialmente cultivadas em cada zona(HOEHNE, 1951: 38).

Havia a preocupação de que, com a técnicas agrícolas usadas no Brasil,caracterizados pelo uso imoderado do machado e do fogo, e com a imprevidência naexploração de recursos como madeira e lenha, sobrasse, em data não muito longínqua,muito pouco da fitofisionomia original do país. Hoehne convocava para que:

...os Amigos da Flora Brasílica reúnam os que pugnam pelo Brasil brasílico eenvidem esforços no sentido de preservar tudo que ainda existe e de reflorestaronde os terrenos desnudos existem, mas sem olvidarem que a vestimentavegetal deve ser tecida com material aborígine, ter lavores de frondes dasmajestosas palmeiras, franças altaneiras dos gigantescos Jequitibás, ouro purodas flores dos fortíssimos Ipês e prata das Tabebuias paludícolas, como róseomaravilhoso das corolas das Sapucaieiras e o rubro intenso ou alaranjado dasEritrinas, para que verdadeira e não mascarada esta terra amada possaapresentar-se ao mundo... (HOEHNE, 1951: 38).

Tratava-se, portanto, de:

Antes de pensarmos no reflorestamento do Brasil,..., primeiramente cogitarda conservação daquilo que ainda resta, evitando, por todos os meios emodos, o corte das matas nativas e livrando-as de incêndios e da exploraçãocontra producente. Isso seria a providência profilática recomendável para asolução do problema florestal e seria também iniciativa patriótica.(HOEHNE, 1951: 39).

O que se presenciava, no entanto, eram:

... Derrubadas, incêndios e explorações clandestinas em todos os recantos donosso país. Os que querem aparecer na sociedade como cumpridores das leisaltruístas, chegam ao desplante de requererem licença para derrubaremflorestas do patrimônio público, para em seu lugar plantarem essências exóticasque consideram melhor indicadas para o reflorestamento do nosso solo, porque,na sua opinião egoística, o indígena não possui as qualidades indispensáveisao aumento do patrimônio nacional. Todavia, esses grandes patriotas dealgibeiras insaciáveis, não se lembrariam de demonstrar as suas asserçõessolicitando ao Estado os terrenos desnudos de sua vestimenta primitiva quese estendem ao lado das florestas naturais que pretendem transformar. ….Aproveitadas a madeira e a lenha das matas que pretendem transformar,ficam novas taperas e os promotores das mesmas continuam tentando outras

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concessões, servindo-se sempre dos mesmos processos citados (HOEHNE,1951: 39).

Hoehne, que viajara por quase todo o país, denunciava essesprocedimentos que contribuíam para a devastação das matas e o mau aproveitamentodo solo. No entanto, o problema não era apenas com os especuladores, pois os agricultoresde subsistência também punham abaixo e incendiavam as florestas para plantar milhoou arroz, abandonando as terras poucas colheitas depois. Mesmo nos pontos maisafastados dos centros urbanos, a ameaça representada pelo machado e pelo fogo já eraconsiderada alarmante, salvando-se somente aquelas regiões mais ao norte do país,onde o clima, o terreno e a escassez da população ainda se constituíam em empecilho.Desse modo, argumentava:

Proceda-se ao reflorestamento com o florestamento, mas não se permita que,para isso, sejam sacrificadas as poucas matas naturais que ainda testemunhamda nossa flora e que ainda continuam sendo o abrigo para a fauna indígenaque não se pode manter nas florestas e bosques de essências lenhosas exóticasque aqui e acolá surgiram como excelentes recursos econômicos. (HOEHNE,1951: 39).

O problema florestal assumia, segundo Hoehne, um duplo aspecto:econômico e científico. Para uma política racional e previdente de uso das florestas,era importante que estes aspectos fossem considerados em conjunto. O que vinhaacontecendo, no entanto, era que só se levavam em conta as vantagens econômicasimediatas, sem considerar o interesse da ciência. As florestas valiam para o madeireiroo número de metros cúbicos de madeira que pudessem fornecer depois de derrubadas.Conforme a localização da floresta, o lucro podia ser maior ou menor, sendo mesmonulo onde o acesso fosse por demais difícil.

Mas assim não pensam os biologistas que estudam e apreciam as florestascomo fatores da biota, que se dedicam à reconstrução da História Natural.Para eles, a madeira e a lenha das mesmas, embora sejam materiais dignos deserem estudados no que concerne à sua estrutura, resistência, peso específicoe aplicações industriais correspondentes a essas características, são materiaisequivalentes no seu valor biológico aos que o vulgo geralmente menospreza.Árvores, cipós, arbustos, ervas rasteiras ou eretas, terrestres ou dendrícolas,representam para o biologista objetos de estudos e pesquisas. Muitas vezestem acontecido também que a ciência natural descobre princípios ativosnuma trepadeira ou cipó, que o madeireiro considera incomodo para a suaindústria, e proporciona ao mundo o conhecimento de uma substância orgânicaque remove dificuldades antes insuperáveis na agricultura. Outras vezes aspesquisas botânicas trazem para a indústria um látex que se transforma nabase de um novo sistema de transportes terrestres. Mais comuns são, entretanto,as descobertas de recursos terapêuticos que se tornam imprescindíveis namedicina. Tudo isso que ficou mencionado constitui o interesse científico dasflorestas. Muitas vezes os estudos realizados não apresentam resultadosimediatos, mas mais cedo ou mais tarde se tornam sempre úteis á humanidade,como bastas vezes têm sido demonstrado (HOEHNE, 1951: 40).

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Considerar o interesse científico era, ao mesmo tempo, uma forma degarantir interesses econômicos futuros. Proteger a diversidade da natureza no Brasilera fundamental para que ela pudesse ser estudada e conhecida, inclusive com opropósito de otimizar o aproveitamento dos seus recursos. Hoehne argumentava quenão era contra a introdução de essências exóticas, embora defendesse que os seusbosques, plantados com objetivos exclusivamente pecuniários, deviam ficar em áreasonde não mais existissem matas nativas. Reflorestar áreas desflorestadas, com essênciaslenhosas nacionais ou exóticas, era utilíssimo:

...pois produzindo lenha e madeira suficientes para atender as necessidadessempre crescentes, não se precisará recorrer aos já escassos redutos das matasnaturais. Fomentar a plantação de árvores que de fato utilidade apresentam,merece elogios, não porém quando para o conseguir se condiciona a derrubadadas matas naturais. Nesse caso não haverá vantagens, mas tão somentedesvantagens da tarefa realizada ou apenas projetada (HOEHNE, 1951:41).

Ainda assim, Hoehne preferia as essências nativas, com as quais podiareconstituir ambientes adequados para a fauna local. Argumentava que a silviculturaera uma atividade capaz de proporcionar não só lucros, mas também uma felicidadeprovinda da apreciação estética.

Rememoremos por um instante o que os bosques da Europa contribuírampara a literatura e quantos encantos e alegrias realmente aduzem aos seusproprietários. As árvores são escolhidas, plantadas e cuidadas, os seus troncoselevam-se e a ramagem se entrelaça e forma a verde abóbada. Alcatifa-se osolo de musgos e lindas ervas e logo ali aparecem os representantes da faunaou são propositalmente soltos e cuidados pelos silvicultores. Os guardasflorestais cuidam das árvores, retirando o que se torna supérfluo, mas zelamigualmente pelos animais de pêlo e penas e fiscalizam tudo para que nenhumdano possa ser aduzido ao conjunto biológico que assim se cria e conservapara renda e gozo do seu feliz proprietário... (HOEHNE, 1951: 43-44).

Essa silvicultura racional já vinha sendo praticada, segundo Hoehne, háséculos na Europa. Nos Estados Unidos, na Austrália e em algumas regiões da Ásia eda África também já havia sido introduzida com sucesso. No Brasil, porém:

Infelizmente, as espécies introduzidas, que constituem quase a totalidade dasnossas florestas artificiais, são impróprias para formar ambiente para a nossafauna, graças ao fato de que não possuem ramagem suficiente e própria paraatrair e abrigar as aves e os mamíferos. Elas constituem árvores sem sombrae movimento. Proporcionam, todavia, boa renda a quem as planta e explorae ao usufruto da mesma limita-se todo o prazer que lhe poderá advir dasilvicultura (HOEHNE, 1951: 44).

Bem diferentes em riqueza e diversidade faunística eram as florestas nativasdo país:

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...No Paraná e em Santa Catarina ainda chegamos a conhecer algumas[florestas] constituídas de Pinheiros, Imbuias e Erva Mate. Assim, contaram-nos velhos paulistas, estendiam-se na região de Itu até a Serra de Botucatu emuitas outras localidades de São Paulo. À sua sombra poderia manter-se acaça de pêlo: Queixadas, Caititus, Antas, Pacas, Cotias etc., e podiam criar-se as aves que vivem no solo, tais como o são os mutuns, jaós, macucos, jacus,etc., bem como aquelas que vivem nas ramagens frutíferas: araras, papagaios,pombos, etc. A cavalo se podia correr nessas florestas sem chegar a ver o solde sob a abóbada verde e ridente. Tudo desapareceu, mas pode ser reconstituídose os afortunados tiverem senso estético para plantarem as árvores com artee gosto. Escolhendo as essências lenhosas que existirem em cada região eplantando-as em promiscuidade, para que recíproca e mutuamente elas seauxiliem na disputa do ar e da luz, a natureza aduzirá o resto se o homemdeixá-la agir e proteger na sua obra (HOEHNE, 1951: 44).

A possibilidade de reflorestamento com árvores nativas, reconstituindoas feições fitogeográficas originais do país, entusiasmava Hoehne. A exploraçãoeconômica destes bosques, constituídos de espécies variadas de plantas, exigia, noentanto, que se respeitasse o tempo de crescimento e maturação de cada uma, que aespaços intercalados podiam recompensar vantajosamente os proprietários. Por isso:

Para a defesa biológica das florestas artificiais, recomendamos o emprego dasessências lenhosas indígenas próprias da região e desaconselhamos o emprego de apenasuma espécie, porque, plantada em grande número de exemplares, fatalmente o bosque virá asofrer com as pragas entomológicas e criptogâmicas... A natureza é a melhor mestra. Aquiloque ela reuniu numa floresta equilibra-se mutuamente e se do mesmo se escolher o melhorpara se reconstruir florestas, o citado equilíbrio continuará existindo. Para ambientar as avese outros animais numa floresta artificial assim constituída, não devem ser esquecidas asárvores frutíferas. Muitas de entre elas fornecem excelentes madeiras e são de crescimentorápido. Citemos os diferentes “Bacuparis”, “Jabuticabeiras”, “Cambucazeiros”, “Oitiseiros”,“Sapucaieiras”, “Cambucieiros”, “Ingazeiros”, “Jatobeiras”, “Pequizeiros”, “Cerejeirasagrestes”, “Pitombeiras”, “Araticum”, “Guabirobeiras”, que, sem exceções, crescem bem noterritório paulista... (HOEHNE, 1951: 44).

Outro ponto importante, no que diz respeito à fauna, é que a sua livrereprodução exigia áreas florestadas relativamente amplas, o que podia ser resolvidopor meio do consórcio de fazendeiros vizinhos, a fim de formarem florestas contíguas,cuidando e explorando cada um a sua parte nas mesmas. Hoehne observava aindaque:

...a exploração da madeira e lenha a ser exercida nessas florestas mistas,precisa ser levada a efeito com muito maior cuidado do que geralmente senecessita ter nas florestas uniformes constituídas de apenas uma espécie.Depois de retiradas as toras, a ramagem que não pode ser aproveitada paralenha deve ser picada e espalhada de modo tal que se decomponha o maisdepressa possível para não oferecer material de fácil combustão num eventualincêndio. O acesso do fogo às matas precisará ser evitado a todo o transe por

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meio de aceiros que também poderão funcionar como estradas ou caminhos.(HOEHNE, 1951: 44).

Embora fruto de anos de estudos e vivências junto aos campos e matas dopaís, essa perspectiva não agradava a muitos. Hoehne argumentava em sua defesaque:

Talvez os que se julgam mais práticos na vida, e colocam o interesse pelodinheiro acima de quaisquer outros, consideram as nossas sugestões pueris,sonhos de visionário ou poeta. Isso não nos surpreende nem desanima, porquehá muitos anos nos habituamos a receber as críticas de acordo com a suafonte de origem, sem olvidarmos os motivos que as aduzem. Não somostambém daqueles que pretendem converter todos os homens aos seus credos,obrigando-os a aceitarem as suas idéias. Somos liberais na dispensação dosparcos conhecimentos que, no transcurso de muitos anos, as viagens, a leiturae as experiências sedimentaram em nosso cérebro. Desde menino conhecemosas florestas virgens e secundárias e podemos afirmar de cátedra, que orecomendado por nós já foi sancionado pela experiência própria. Nascemosna roça e fomos criado em sítio onde a policultura constituía a principal fontede recursos, com os proventos de pequena indústria pecuária e onde, todavia,alguns alqueires de floresta virgem ficaram reservados para a exploraçãoracional. Todos os anos saíam dessas matas limpas e frondosas do vértice daserra quase plano toras de madeira e diariamente se extraíam alguns metroscúbicos de lenha proveniente de árvores que secavam ou caíam emconseqüência de temporais, e da ramagem daquelas que forneciam as toraspara a serraria. Ali vimos como a caça de penas aprecia uma florestadesbastada, em que naturalmente as árvores obumbram o solo farto de detritos.Muitas observações biológicas que ali fizemos que mais tarde nos foramutilíssimas e que ainda hoje se encontram gravadas em nossa retentiva(HOEHNE, 1951: 44-45).

O problema do reflorestamento, portanto, se constituía em algo mais quesimples atividade econômica. Era uma forma de criar laços mais fortes entre o homeme a natureza, os quais envolviam uma experiência afetiva e a possibilidade decrescimento moral e espiritual. Hoehne defendia que:

Praticando o reflorestamento ou florestando solos desnudos, aprendamosque o útil pode e deve ser sempre ligado ao agradável. Esses dois proveitoscabem num saco se o senso estético e o patriotismo não estiverem totalmentesufocados pelo interesse egoísta e pelo excesso de amor ao dinheiro.Propugnemos por um Brasil brasílico sem máscara. Um Brasil com as suascaracterísticas peculiares. Uma pindorama e curitiba perpétuas, para que abrasilidade sobrepuje a xenofilia, sem transformar-se em xenofobia. Sim,reflorestemos onde possível, plantemos árvores úteis pelo seu lenho, úteis peloseu aspecto e úteis pelos seus frutos e flores; escolhendo de entre o indígena omelhor, introduzindo do estrangeiro o que eventualmente possa ser aclimadoe explorado vantajosamente sem prejuízo e nem menosprezo do que é nosso,por ser dádiva da nossa terra. Assim o reflorestamento tornar-se-á práticalouvável e patriótica (HOEHNE, 1951: 45).

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6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nascido e criado no interior de Minas Gerais e com uma formação deautodidata, durante a sua longa carreira, Hoehne atingiu o status de cientista derenome nacional e internacional. Além de ser um pesquisador de primeira linha, eleconseguiu articular e comunicar uma percepção muito sensível em relação à naturezae à sua diversidade, usando argumentos tanto estéticos quanto pragmáticos no sentidode sua conservação. Alertava, já em 1927, que “aquilo que a natureza criou, uma vezdestruído, jamais poderá ser confeccionado artificialmente e... nas florestas e camposnaturais ainda possuímos milhares e milhares de plantas e animais que não conhecemosmas que um dia talvez se tornem muito importantes e úteis para nós” (HOEHNE,apud DEAN, 1996: 274). Hoehne argumentava que a preservação de faixas da florestanativa propiciava habitats para pássaros, insetos e outros animais que protegiam asculturas agrícolas dos predadores e parasitas. Essas perspectivas, com certeza, são hojeem dia sustentadas e acatadas em qualquer congresso sobre a biodiversidade e apreservação do ambiente natural, mesmo por cientistas que nunca puderam ler Hoehne.

O nacionalismo de Hoehne era uma aposta na possibilidade de que oBrasil corrigiria os seus rumos no tocante ao trato com a sua natureza e que, por meiode um projeto próprio, reconciliasse as atividades humanas com a natureza. Como nopensamento de Alberto Torres, para Hoehne, os países de economia mais avançadaperdiam o seu papel tutelar nessa dimensão, servindo-nos, quando muito, como umsinal de alerta, pois que, “tendo privado seu solo das florestas primitivas e nativas,hoje tentam restabelecer sua biota e condições ótimas por meio de florestas naturais,sem jamais o conseguir” (HOEHNE, apud DEAN, 1996: 274).

Era necessário, portanto, resguardar o patrimônio natural da nação. Em1924, Hoehne ponderava que “ao homem assiste o direito de dispor das árvores, comode tudo que a natureza lhe oferece, como melhor entender, mas, com isto, não podemosoutorgar direitos a particulares em prejuízo certo da coletividade” (HOEHNE, apudDean, 1996: 274).

A partir da defesa pública dessas posições, Hoehne assumiu importânciadestacada entre os brasileiros que se preocupavam com a proteção da natureza nosanos de 1930-1940. Na sua posição de cientista prolífico e influente, e de gestor deinstituições científicas, conseguiu transmitir o seu saber sobre a natureza brasileira e asua preocupação com a sua preservação para várias gerações de cientistas brasileiros,décadas antes de a questão ambiental emergir de forma institucionalizada naconsciência dos cidadãos contemporâneos. No entanto, Hoehne faz parte de umalegião ainda recente de vozes quase esquecidas que se manifestaram contra o tratoirracional com a natureza brasileira. José Augusto Pádua recuperou cerca de 50 vozessimilares, mais antigas, que se manifestaram entre 1786 e 1888, e que foram virtualmenteesquecidas até que ele encontrasse os seus olvidados manuscritos, opúsculos e livrosem arquivos e bibliotecas (PÁDUA, 2002). Falecido há menos de 50 anos, sobre opensamento e a ação de Hoehne já caiu um manto preocupante que, se não é de

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esquecimento, é de desconhecimento. Em termos de memória, o desconhecimentopode ser a véspera do esquecimento.

Brasília, março-junho de 2004abril de 2005

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NOTA

1. Não localizamos uma biografia publicada de HOEHNE.

ABSTRACTS

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JOSÉ LUIZ DE ANDRADE FRANCOJOSÉ AUGUSTO DRUMMOND

FREDERICO CARLOS HOEHNE: PROTEÇÃO À NATUREZA, CIÊNCIAE SENSIBILIDADE ESTÉTICA NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO

SÉCULO XX

Resumo

O texto examina o pensamento do botânico Frederico Carlos Hoehne(1882-1959) sobre a proteção da natureza. Argumenta-se que Hoehne foi um pioneirono tema entre os cientistas brasileiros do século XX. Contribuiu para a emergência deuma consciência ambientalista no Brasil, atuando como cientista, escritor e dirigente deinstituições científicas. A sua abordagem combinava a ciência com argumentos estéticose de identidade nacional. Aponta-se ainda que o seu pensamento, em grande parteesquecido, merece ser recuperado e examinado com mais atenção.

Palavras-chave: conservação da natureza / botânica / Instituto de Botânica(SP) / Museu Nacional do Rio de Janeiro / flora / ciência ambiental

FREDERICO CARLOS HOEHNE: THE CONTEMPORANEITY OF ABRAZILIAN PIONEER IN NATURE PROTECTION

Abstract

The text examines the writings of the Brazilian botanist Frederico CarlosHoehne (1882-1959) about the protection of nature. It argues that Hoehne was a pioneeron the topic among Brazilian scientists. In his work as a scientist, writer and director ofresearch institutes, he contributed to the emergence of an environmental consciousnessin Brazil. His approach mixed scientific arguments with esthetics and with appeals relatedto national identity. It sustains that his mostly forgotten ideas are worth retrieving andexamining with attention.

Key words: nature conservation / Botanical Science / Instituto de Botânica(SP) / Museu Nacional do Rio de Janeiro / flora / Environmental Science