17
O VISÍVEL E A VISUALIDADE DO ARTESANATO DE FIBRAS VEGETAIS NO CATÁLOGO “O PODER DAS MÃOS” (SANTA CATARINA, 1980) Gabriel Cruz de Souza - Mestrando PPGH - UDESC 1 Introdução Este artigo pretende discutir as relações entre o visível e a visualidade do artesanato de fibras vegetais no catálogo “O poder das mãos”. Em um primeiro momento, farei considerações sobre o catálogo como documento iconográfico, pensando o conceito de artesanato e as coisas artesanais como coisas vivas, que possuem capacidade própria de agir. Ao longo do trabalho buscarei reconhecer os visuais dos artesanatos de fibras vegetais presentes no documento, examinando o visível e a visualidade desses artesanatos a partir de duas imagens: a das cestarias indígenas com alça e a da boneca de palha. A partir dessas considerações, é possível questionar algumas das relações de presença e ausência nas imagens, confrontando as relações de (in)visibilidade com os planejamentos de Governo e com os discursos produzidos pelo Estado. O catálogo o “Poder das mãos” fornece indícios sobre as diferentes concepções de arte e os interesses e estratégias em jogo no campo da cultura. A sua visualidade nos permite refletir sobre como os sistemas de comunicação visual foram ao mesmo tempo agenciadores das políticas culturais do período e espaços de disputas por visibilidade. O catálogo como documento iconográfico A emergência do visual é um elemento intrigante para desafiar os historiadores a pensar 1 Licenciado e bacharel em História. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, com orientação da professora Dra. Mara Rúbia Sant’Anna. Email: [email protected]

Gabriel Cruz de Souza

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Gabriel Cruz de Souza

O VISÍVEL E A VISUALIDADE DO ARTESANATO DE FIBRAS VEGETAIS NO

CATÁLOGO “O PODER DAS MÃOS” (SANTA CATARINA, 1980)

Gabriel Cruz de Souza - Mestrando PPGH - UDESC1

Introdução

Este artigo pretende discutir as relações entre o visível e a visualidade do artesanato de

fibras vegetais no catálogo “O poder das mãos”. Em um primeiro momento, farei

considerações sobre o catálogo como documento iconográfico, pensando o conceito de

artesanato e as coisas artesanais como coisas vivas, que possuem capacidade própria de agir.

Ao longo do trabalho buscarei reconhecer os visuais dos artesanatos de fibras vegetais

presentes no documento, examinando o visível e a visualidade desses artesanatos a partir de

duas imagens: a das cestarias indígenas com alça e a da boneca de palha.

A partir dessas considerações, é possível questionar algumas das relações de presença e

ausência nas imagens, confrontando as relações de (in)visibilidade com os planejamentos de

Governo e com os discursos produzidos pelo Estado. O catálogo o “Poder das mãos” fornece

indícios sobre as diferentes concepções de arte e os interesses e estratégias em jogo no campo

da cultura. A sua visualidade nos permite refletir sobre como os sistemas de comunicação

visual foram ao mesmo tempo agenciadores das políticas culturais do período e espaços de

disputas por visibilidade.

O catálogo como documento iconográfico

A emergência do visual é um elemento intrigante para desafiar os historiadores a pensar

1 Licenciado e bacharel em História. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente pela

Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, com orientação da professora Dra. Mara Rúbia Sant’Anna. Email:

[email protected]

Page 2: Gabriel Cruz de Souza

sobre as suas relações com as fontes históricas e com a capacidade cognitiva das imagens.

Partindo do ponto de vista de Durval Muniz (2009), podemos tomar o catálogo “O poder das

mãos” como um discurso, que nos cede pistas sobre as suas condições de produção, sua

respectiva época e circunstância de contingência. Para investigar o visível e da visualidade do

artesanato de fibras vegetais no catálogo “O poder das mãos” utilizarei como base teórica a

grade de análise de documentos iconográficos sugerida por Sophie Cassagne (1996) e os

balanços provisórios apontados por Meneses (2003).

O catálogo “O poder das mãos” foi produzido durante um período de abertura política e

de reorientação econômica do país com o mercado internacional. Publicado na década de

1980, o catálogo fez parte de um projeto publicitário organizado pela Fundação Catarinense

do Trabalho - FUCAT e o Governo de Santa Catarina em parceria com a Fundação Roberto

Marinho. Esta edição integrou uma campanha veiculada nacionalmente pela televisão, criada

com o objetivo de divulgar e valorizar a arte do artesão catarinense.

O impresso é feito de um material resistente, de qualidade, brilhoso e colorido,

semelhante ao de revistas, com uma dimensão de 25 X 21 cm. No documento não consta

nenhuma datação específica registrada, mais consta a marca “cumprindo a carta dos

catarinenses”, o que permite chegar a uma data aproximada. O primeiro Governo de Espiridão

Amin se deu entre os anos de 1983 e 1987 com um plano de Governo que ficou conhecido

como à “Carta dos catarinenses” (AMIN, 1987). Uma das metas de Amim era articular as

tradições e as etnias da cultura catarinense com o desenvolvimento econômico. A fundação da

FUCAT2 e a criação do Programa Catarinense de Desenvolvimento do Artesanato -

PROCARTE indicam algumas das estratégias formuladas pelos governos catarinenses para

gerir a cultura do artesanato no Estado.

Intitulado como “Artesanato de Santa Catarina - O poder das mãos”, o documento

apresenta indicações bilíngüe (português/inglês) com título, sumário, uma apresentação da

edição e pequenos textos que abordam a diversidade do artesanato catarinense a partir da sua

materialidade. Os artesanatos produzidos com o barro, com os fios, com as fibras vegetais,

com a madeira, o couro e outros materiais são representados através de imagens. As suas indi

2 A FUCAT foi fundada entre 1983 e 1987, ficando responsável pela gestão do Programa Catarinense de Desenvolvimento do Artesanato - PROCARTE, criado no ano de 1979.

Page 3: Gabriel Cruz de Souza

cações icônicas evidenciam a heterogeneidade e a materialidade dos artesanatos por meio das

fotografias3 (196 imagens) que estão acompanhadas de 06 contracapas, com legenda e uma

referência elaborada a partir de uma numeração que conta e denomina uma tipologia e um

nome para cada tipo de artesanato. Destinado a turistas, artesãos e ao público admirador do

artesanato o catálogo contém vinculações políticas, ideológicas e profissionais. As imagens e a

visualidade construída nesse documento fornecem importantes indícios sobre as relações entre

arte, política e identidade.

O conceito de artesanato pode ser empregado para compreender “os processos de

produção, ou seja, à tecnologia executada com as mãos” (LIMA, 2010, p. 25). Para o

antropólogo Ricardo Gomes Lima “todo artesanato tem a sua arte, as suas questões de estética,

contrastes e conteúdos simbólicos, com os seus significados e representações” (LIMA, 2010,

p. 25). No artesanato são as mãos que marcam e que dão forma a matéria-prima. O artesanato

não é uma simples mercadoria, é sobrevivência, técnica e criação. Ele tem a sua autoria, está

sujeito ao gesto humano e dispõe de um ritmo específico. Como uma linguagem, ele expressa

a identidade e a cultura dos lugares, dos grupos sociais e dos indivíduos.

As coisas artesanais têm um longo vínculo com o passado, mas estão em constante

transformação. Elas são coisas heterogêneas e irregulares, são coisas que tem a sua vida social,

as suas marcas, os seus usos e trajetórias. Estudos como o de Appadurai (2008) e Marcelo

Rede (2012) atestam que as coisas têm a sua agência, a sua capacidade de agir, são coisas

vivas que também significam as pessoas, os contextos e os espaços. Os artesanatos têm os

seus modos de serem vistos, os seus visuais e os seus regimes de visualidade. Dentre os

diversos tipos de artesanatos presentes no catálogo, elenquei para este trabalho o universo do

artesanato de fibras vegetais4 com o objetivo de analisar o visível e a sua visualidade no

catálogo “O poder das mãos”.

3 A fotografia do catálogo foi feita por Nilton José Passos.

Page 4: Gabriel Cruz de Souza

Reconhecendo os artesanatos de fibras vegetais.

No catálogo o artesanato de fibras vegetais é apresentado através de 34 imagens, com um

pequeno texto e uma contracapa que reúne um pouco do universo desse tipo de artesanato.

Para analisar o visível e a visualidade do artesanato de fibras vegetais selecionei duas imagens:

a das cestarias indígenas com alça5 e a da boneca de palha6. As imagens dependem da

produção de um sujeito que a produz ou que as reconhece. De forma imaginária ou concreta,

para Joly as imagens nos levam a perseguir os “[...] seus diferentes significados mesmo que

inconscientes, subjetivos e seu poder de constituir conceitos” (JOLY, 2008, p. 19). Para

Kossoy (2005) elas são como “uma segunda realidade” que o historiador pode acionar para

investigar os fatos, os sentidos e significados construídos no espaço e no tempo. As imagens

nos possibilitam uma versão iconográfica do objeto representado.

Figura 1 - Cestarias indígenas com alça

Fonte: O PODER DAS MÃOS, 198?, p. 37.

Optei pela imagem das cestarias indígenas com alça, pois elas representam a diversidade

dos artesanatos de fibras vegetais utilitários feitos em Santa Catarina. Seja por sua materialidade

ou pela técnica do trançado, esses tipos de cestaria representam as esteiras de taboa, junco, os

cestos de taquara, as cestarias indígenas, o tipiti, as cestas, cestinhas ou cestões de vime.

4 A escolha por esse tipo de artesanato é motivada pelo meu tema de pesquisa de dissertação: As irmãs Souza e os seus artesanatos de fibras vegetais. 5 A imagem das cestarias indígenas com alça possui a numeração “109”, e está ao lado de mais três imagens, localizadas na páginas 37. 6 A imagem da boneca de palha está acompanhada de três imagens, localizada com a numeração “90” na página 33.

Page 5: Gabriel Cruz de Souza

A imagem das cestarias indígenas com alça está localizada de maneira frontal no canto

superior direito da página, as suas formas retangulares e/ou arredondadas, as suas dimensões e

a inserção das alças nos remete a outros tipos de artesanatos como o tapete de taboa, a lixeira,

as sacolas e as fruteiras feitas de tiririca, as cestas de vime no modelo de taça, fruteira,

talqueira, para pão, roupa ou no estilo piquenique, assim como a versão de porta-azeite ou

descansador de prato confeccionados com o cipó.

As cores das fibras, assim como o verde, amarelo, vermelho e rocho são marcas étnicas

distintivas dos grupos indígenas. Dentro dos limites desse artigo cabe pontuar que existe todo

um repertório de significados presentes nos grafismos dos grupos indígenas, nesse trabalho

procuro interpretar essa diversidade de coloração como um elemento que representa a

diversidade dos lugares, dos grupos étnicos e dos sujeitos que produzem esse tipo de

artesanato em Santa Catarina.

Figura 2 - Boneca de palha

Fonte: O PODER DAS MÃOS, 198?, p. 33.

Page 6: Gabriel Cruz de Souza

Já a imagem da boneca de palha está posicionada de forma frontal no canto superior

esquerdo da página, exemplificando outro tipo de artesanato, que alia a técnica do trançado de

fibras vegetais com a costura e o bordado. O uso de materiais como a linha, o verniz, o blush e

os botões codificam a complexidade cultural dos artesanatos produzidos em Santa Catarina

após a década de 1970. Signos como o cabelo, a boca, o nariz, os laços, a indumentária e as

formas humanas que compõe a boneca caracterizam a coisa artesanal de forma mais lúdica,

alegórica e/ou decorativa. O visual da boneca de palha representa aqui o índio, a bruxa, os

bonecos diversos, assim como o leque, as sombrinhas, as peneiras, o presépio, o quadro, o

lustre, a cortina, o leão e a coruja produzidos com uma série de materiais e conhecimentos que

envolvem a manipulação do bambu, da palmeira, da palha de milho, com a corda, o cipó e a

casca de bananeira.

As imagens selecionadas sobre o artesanato de fibras vegetais estão compostas por

intermédio de três planos. Os artesanatos estão justapostos em primeiro plano enquadrados por

um segundo plano retangular, de cor beje, semelhante a das fibras vegetais. O terceiro plano é

ordenado por um fundo branco que cria uma ambiência de neutralidade. A sua perspectiva

dispõe os elementos dos artesanatos em eixos horizontais e verticais, criando uma imagem

com um efeito de harmonia entre as cores similares as das fibras em contraste com as cores

complementares que se opõem. O tom dominante é o das fibras vegetais contrastado pelas

cores dos materiais industriais. A imagem é composta por linhas essenciais de estabilidade e

simetria do objeto representado, onde as relações de claro e escuro demonstram as diferentes

materialidades e saberes empregados na elaboração dos artesanatos. Os artesanatos são

identificados a partir de uma legenda que enumera as produções artesanais e estabelece uma

denominação para cada uma delas.

No catálogo “O poder das mãos” os agentes produtores do artesanato, assim como as suas

regiões e os seus lugares específicos de produção estão invisibilizados, localizados apenas

como procedentes do Estado de Santa Catarina. . Talvez alguns desses signos dispostos nas

imagens podem ajudar a traduzir as transformações sociais vivenciadas no período, como

podem fornecer pistas sobre os seus produtores, as suas táticas e os seus códigos de

significação. Meneses (2003) salienta que as relações entre ser ou não ser visto é um dos

Page 7: Gabriel Cruz de Souza

insumos caracterizadores dos regimes de visualidade. O anonimato das cidades e das regiões

de Santa Catarina somado a invisibilidade dos grupos étnicos e a ausência dos artesãos e

artesãs na visualidade do catálogo retratam o modo como o Estado via as pessoas comuns, as

etnias e as tradições que remontavam o mosaico cultural catarinense.

O poder das mãos: interfaces entre o visível e a visualidade

Ao pesquisar sobre as relações entre modernidade e as tradições no Brasil Ortiz (2001)

considera a noção de “integração nacional” importante para compreender a consolidação da

indústria cultural no país. O sociólogo indaga como após as censuras o Governo Militar

começa a atuar de maneira mais efetiva junto a esfera da cultura, “[...] uma vez que

definitivamente ela passa a ser concebida como um investimento comercial” (ORTIZ, 2001, p.

144). Foram diversas às instituições e programas que surgiram com o objetivo de gerir as

políticas da cultura, como o Conselho Federal de Cultura, a FUNARTE, e o Programa

Nacional de Desenvolvimento do Artesanato - PNDA, instituído em 1977.

Em Santa Catarina, o projeto político foi implementado por governos como o de Colombo

Salles7- (1971 - 1975); Antônio Carlos Konder Reis - (1975 - 1979); Jorge Bornhausen - (1979

- 1982); Henrique Córdoba - (1982 - 1983) e Espiridião Amin8- (1983 - 1987). A integração

regional e a articulação dos interesses diante do campo econômico era uma das principais

estratégias aplicadas pelos governos estaduais da época. Percorrendo “As Veredas do Folclore”,

o historiador Thiago Sayão (2004) pesquisou como os intelectuais ligados às instituições

públicas do Estado forjaram uma identidade catarinense que promovia a diferenciação e a

valorização das sub-regiões de Santa Catarina a partir de suas particularidades culturais. Edgar

Garcia Junior (2003) examina como essas práticas construíram as regiões catarinenses como

objetos de saber e espaços de poder associados ao desenvolvimento econômico. De acordo com

7 A integração regional era uma das princípais características do (PCD) Plano Catarinense de Desenvolvimento implementado

por Colombo Salles. GOULART, 2005. 8 A “Resposta à carta dos catarinenses”, publicada no Governo de Esperidião Amin, tinha como um dos propósitos divulgar as

ações feitas para“integrar” os “pequenos” ao desenvolvimento econômico de Santa Catarina. Em sua proposta de Governo

eram considerados “pequenos” os menores carentes, pescadores artesanais, idosos e os pequenos produtores rurais e urbanos.

AMIN, Esperidião. Resposta à carta dos catarinenses. Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1987.

Page 8: Gabriel Cruz de Souza

esses autores, o catarinensismo como “mosaico cultural” diluía as diferenças e as tensões

regionais do Estado em um discurso apaziguador e conciliatório que apostava na gente

catarinense e na sua diversidade cultural como potencial de mercado. Ao lançar à Carta aos

catarinenses como lema de campanha Espiridião Amin propôs uma hipótese para o seu plano

de Governo que visava” inovar” a democracia proporcionando a todos os segmentos sociais a

oportunidade de participar do poder. Em “Resposta à carta dos catarinenses” o ex-governador

destaca como uma das suas principais ações na esfera da cultura “a preservação da memória

e da identidade cultural catarinense através do apoio a todos os grupos culturais do Estado”

(AMIN, 1987).

No catalógo “O poder das mãos” o artesanato é referenciado por sua diversidade cultural

e pela criatividade do artesão catarinense,

Na grande colcha de retalhos cultural que é o artesanato de Santa Catarina, a arte do trançado é uma das mais simples e populares. Utilizando materiais como vime, raiz de imbé, palha, taboa, tiririca, taquara ou bambu, o artesão cria uma arte tradicionalmente utilitária: cestas, bolsas, tapetes e balaios. Trabalhos que nascem dos matos e brejos e da mão hábil e paciente do trançador. O artesanato é uma tradição da mais pura tecnologia caseira, trançado por homens e mulheres de núcleos indigenas e de muitas outras pequenas comunidades catarinenses [...]. (O PODER DAS MÃOS, 198?, p. 32)

A questão do artesanato envolvia estratégias políticas nas áreas da cultura, do turismo e

do trabalho. Um dos propósitos do plano de Governo era “[...] incentivar a organização, a

produção, e a comercialização integrada do artesanato, bem como a promoção das

manifestações culturais de interesse turístico [...]” (AMIN, 1987, p. 152). Se os discursos

produzidos por agentes do Governo como intelectuais e políticos buscavam propagar a

imagem de Santa Catarina como um Estado harmônico e conciliador das suas diferenças

culturais, a visualidade construída em torno do catálogo nos permite imaginar outro

panorama. As interfaces entre a presença e a ausência nas imagens funcionam como um

sistema de controle que torna visível apenas o artesanato enquanto produto cultural do Estado.

Nessas relações de (in)visibilidade pode-se ler as diferentes concepções de arte e os muitos

interesses em jogo no campo da cultura.

Page 9: Gabriel Cruz de Souza

A concepção de arte veiculada pelo catálogo se enquadra no que Néstor Garcia Canclini

designa como a “arte para as massas”, uma arte que tem como objetivo principal a

distribuição, e por razões políticas e econômicas, “[...] interesa-lhe mais a amplitude do

público e a eficácia na transmissão da mensagem do que a originalidade da produção ou a

satisfação de reais necessidades dos consumidores” (CANCLINI, 1980, p. 49). Enquanto essa

noção preza pelo espaço e pela mercantilização, a concepção de arte popular põe a sua tônica

na produtividade e utilidade prazerosa, onde a “[...] qualidade de produção e a amplitude de

sua difusão estão subordinadas ao seu uso, à satisfação de necessidades do conjunto do povo”

(CANCLINI, 1980, p. 49). Para o autor, o popular é constituído por “[...] processos híbridos e

complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e

nações” (CANCLINI, 2013, p. 220).

Assim, o anonimato dos lugares de produção e dos produtores do artesanato pode ser visto

como uma forma de sujeição e de invisilidade, mas o visual de seus produtos e a sua presença

na visibilidade dada ao artesanato catarinense podem ser encarados como uma forma de

intervenção. Para Canclini, a arte do artista “[...] representa as contradições sociais e a

contradição do próprio artista entre a sua inserção real nas relações e a elaboração imaginária

dessa mesma inserção” (CANCLINI, 1980, p. 27). A visualidade do catálogo “O poder das

mãos” pode ser considerada um sistema de comunicação agenciador das políticas culturais do

período, mas também pode ser compreendida como um espaço de visualidade onde as

representações visuais dos artesanatos de artesãos e artesãs se tornaram visíveis no cenário

nacional e internacional provocando uma interação e atuação oblíqua dos grupos subalternos

pelos meios de comunicação.

Page 10: Gabriel Cruz de Souza

Considerações finais

As imagens sobre os artesanatos de fibras vegetais dispostas no catálogo “O poder das

mãos” são importantes recursos para analisar os regimes de visualidade construídos em Santa

Catarina na década de 1980. As indicações bilíngüe, os planos, os enquadramentos e a

ambiência de neutralidade ordenam uma visualidade engendrada com o objetivo de

comercializar e exportar os produtos artesanais como forma de promoção cultural.

É pelo anonimato do artesão e do seu lugar de produção que é possível se desvelar a

imagem de um Estado harmônico e conciliador. As relações entre a presença e a ausência nas

imagens caracterizam o modo como as pessoas comuns, as etnias e tradições catarinenses

eram vistas pelo Estado. Mesmo invisibilizados no catálogo, os visuais dos artesanatos de

fibras vegetais nos deixam indícios sobre os saberes, a cultura e as regiões dos artesãos e

artesãs de Santa Catarina.

A visualidade do catálogo pode ser compreendida como um sistema de comunicação

visual agenciador de valores e identidades correlacionadas com as políticas culturais do

período. Apesar de controlar o que pode ou não ser visto, essa visualidade envolve diferentes

conceitos de arte e disputas por espaços de visibilidade. Assim, é pela presença dos visuais

dos artesanatos de fibras na visualidade do catálogo que os grupos subalternos atuam e

interagem pelos meios de comunicação, em outras palavras, é também por meio dessa

visibilidade que os artesãos promovem as suas identificações culturais e a arte do seu trabalho.

Page 11: Gabriel Cruz de Souza

Referências: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Discursos e Pronunciamentos: a dimensão retórica da historiografia. In: PINSKY, Carla. LUCA, Tânia. O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

AMIN, Esperidião. Resposta à carta dos catarinenses. Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1987.

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói, RJ : Ed. da UFF, 2008. p. 15-88

ARTESANATO de Santa Catarina, O poder das mãos. =: Handicraft in Santa Catarina. [Florianópolis]: Fundação Catarinense do Trabalho, [198?]. 64 p. ISBN (Broch.).

CANCLINI, Nestor Garcia. A socialização da arte:. teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, 1980. . Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: Ed. USP, 2013.

CASSAGNE, Sophie. Le commentaire de document iconographique en histoire. Paris, 1996.

GARCIA JUNIOR, Edgar. Práticas regionalizadoras e o mosaico Cultural Catarinense. Dissertação de Mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2002.

GOULART, Alcides Filho. O Planejamento estadual em Santa Catarina de 1955 a 2002. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 26, n. 1, p. 627-660, jun. 2005.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Tradução de Marina Appenzeller Campinas: Papirus, 2008.

KOSSOY, Boris. O relógio de Hiroshima: reflexões sobre os diálogos e silêncios das imagens. Revista Brasileira de História. V.5, n. 49, p. 35-42, 2005.

LIMA, Ricardo Gomes. Objetos: percursos e escritas culturais. São José dos Campos/SP: Centro de Estudos da Cultura Popular; Fundação Cultural Cassiano Ricardo, 2010.

LOTUFO, Edith. Memórias de uma experiência intercultural em torno do artesanato de Porto Nacional, Tocantis entre 1975 - 1981. Mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG, 2015.

Page 12: Gabriel Cruz de Souza

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, V.23, nº45, p.11-36, 2003.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001. REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro : Elsevier, 2012. p.133-150.

SAYÃO, Thiago Juliano. Nas veredas do folclore: leituras sobre política cultural e identidade em Santa Catarina (1948-1975). Dissertação de Mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 2004.

Page 13: Gabriel Cruz de Souza
Page 14: Gabriel Cruz de Souza
Page 15: Gabriel Cruz de Souza
Page 16: Gabriel Cruz de Souza
Page 17: Gabriel Cruz de Souza