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1 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ENSINO: JUSTIFICATIVAS PARA UM PROJETO DE FORMAÇÃO DE LEITORES MENOS “QUADRADO”. Vinicius da Silva Rodrigues * Professor responsável: Antônio Marcos Vieira Sanseverino RESUMO: este trabalho propõe-se a discutir o relevante papel de outras linguagens associadas ao ensino de Literatura na escola numa proposta híbrida e interdisciplinar dentro do próprio campo artístico. Neste caso, toma-se como foco as potencialidades intertextuais que se apresentam entre a literatura e a narrativa gráfica, compreendendo esta especialmente através das histórias em quadrinhos. O trabalho com a narrativa gráfica e a arte sequencial, assim, acaba abarcando algumas das questões aqui entendidas como centrais dentro da proposta do componente curricular de Literatura e da formação de leitores na escola, quais sejam: mediar o currículo e algumas necessidades que também se impõem através da historiografia literária (sem considerá-la, contudo, a única possibilidade de trabalho) e ampliar o campo de abrangência estética do aluno. Por outro lado, a escolha da narrativa gráfica não é casual e, por sua vez, tenta dar conta de outra reflexão fundamental: discutir os domínios da Literatura como componente curricular na Educação Básica no sentido de também refletir sobre seus suportes e ferramentas. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos, Ensino de Literatura, Formação de leitores. ABSTRACT: This paper proposes to discuss the relevant paper of other languages associated to the teaching of Literature in school with a hybrid and interdisciplinary proposal inside the own artistic field. In this case, it takes as focus the intertextuals potentialities that present theirselves between the literature and the graphic narrative, comprising this, specially, through comicbook stories. So, the work with the graphic narrative and the sequential art ends up covering some of the issues comprehended here as central inside the purpose of the curricular component of Literature and the formation of readers in school, independently of who they are: to measure the curriculum and some needs that also impose among the literary historiography (without consider it, however, the only possibility of work) and to enlarge the field of the student's aesthetic comprehensiveness. In other side, the choice of the graphic narrative is not causual and, on the other hand, tries to manage the other fundamental reflection: to discuss the domains of literature as a curricular component in Basic Education in the sense of also reflect their suports and tools. KEY WORDS: Comicbooks, Teaching of Literature, Upbringing of readers. 1 Introdução * Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; licenciado em Letras pela mesma universidade. E-mail: [email protected].

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HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ENSINO:

JUSTIFICATIVAS PARA UM PROJETO DE FORMAÇÃO

DE LEITORES MENOS “QUADRADO”.

Vinicius da Silva Rodrigues*

Professor responsável: Antônio Marcos Vieira Sanseverino

RESUMO: este trabalho propõe-se a discutir o relevante papel de outras linguagens associadas ao ensino de

Literatura na escola numa proposta híbrida e interdisciplinar dentro do próprio campo artístico. Neste caso,

toma-se como foco as potencialidades intertextuais que se apresentam entre a literatura e a narrativa gráfica,

compreendendo esta especialmente através das histórias em quadrinhos. O trabalho com a narrativa gráfica e

a arte sequencial, assim, acaba abarcando algumas das questões aqui entendidas como centrais dentro da

proposta do componente curricular de Literatura e da formação de leitores na escola, quais sejam: mediar o

currículo e algumas necessidades que também se impõem através da historiografia literária (sem considerá-la,

contudo, a única possibilidade de trabalho) e ampliar o campo de abrangência estética do aluno. Por outro

lado, a escolha da narrativa gráfica não é casual e, por sua vez, tenta dar conta de outra reflexão fundamental:

discutir os domínios da Literatura como componente curricular na Educação Básica no sentido de também

refletir sobre seus suportes e ferramentas. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos, Ensino de Literatura, Formação de leitores. ABSTRACT: This paper proposes to discuss the relevant paper of other languages associated to the teaching

of Literature in school with a hybrid and interdisciplinary proposal inside the own artistic field. In this case, it

takes as focus the intertextuals potentialities that present theirselves between the literature and the graphic

narrative, comprising this, specially, through comicbook stories. So, the work with the graphic narrative and

the sequential art ends up covering some of the issues comprehended here as central inside the purpose of the

curricular component of Literature and the formation of readers in school, independently of who they are: to

measure the curriculum and some needs that also impose among the literary historiography (without consider

it, however, the only possibility of work) and to enlarge the field of the student's aesthetic

comprehensiveness. In other side, the choice of the graphic narrative is not causual and, on the other hand,

tries to manage the other fundamental reflection: to discuss the domains of literature as a curricular

component in Basic Education in the sense of also reflect their suports and tools. KEY WORDS: Comicbooks, Teaching of Literature, Upbringing of readers.

1 Introdução

* Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; licenciado em Letras pela mesma

universidade. E-mail: [email protected].

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Na escola, especialmente no Ensino Médio, o componente curricular de Literatura é

compreendido, em princípio, por sua condição estritamente ligada à historiografia, a

despeito de propostas de mudança e de questões levantadas pelos Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCNs) que tentam reverter tal paradigma. A fruição literária, logo – se é que

pode estar relacionada como tal – depende, nesse caso, de uma materialidade que se

objetiva frequentemente nas condições sócio históricas da obra. Há que se considerar, no

entanto, que esta não é a condição ideal para nortear, sozinha, a mediação de um objeto

artístico frente a grupos de jovens que precisam, muitas vezes, reinventar-se, eles próprios,

como leitores, uma reinvenção que depende, naturalmente, da mediação do professor.

Dessa forma, assume-se o compromisso com o real objetivo do ensino de Literatura na

escola: a formação de leitores – que adquire, no Ensino Médio, um caráter de reformulação

(ou reformação) desses mesmos leitores, que atendem por novas necessidades e

expectativas ao término do Ensino Fundamental, o que é natural, como adolescentes que

são, que muitas vezes precisam ser, novamente em suas trajetórias escolares, “assediados”

para o mundo da leitura. Com isso, novas estratégias se impõem ao educador,

especialmente na escolha de seu projeto de trabalho para o ano escolar quando na seleção

de textos e obras.

Tendo isso em vista, este artigo propõe-se a discutir o relevante papel de outras

linguagens associadas ao ensino de Literatura na escola numa proposta híbrida e

interdisciplinar dentro do próprio campo artístico a fim de estimular uma compreensão

mais ampla acerca da ideia de leitura, propondo o diálogo com outras linguagens e campos

artísticos. Neste caso, tomarei como foco as potencialidades intertextuais que se

apresentam entre a literatura e as narrativas gráficas, compreendendo estas especialmente

através das histórias em quadrinhos. Assim, são abarcadas algumas das questões que

entendo como centrais dentro da proposta do componente curricular em questão e da

formação de leitores na escola, quais sejam: mediar o currículo e algumas necessidades que

também se impõem através da historiografia literária (sem considerá-la, contudo, a única

possibilidade de trabalho) e ampliar o campo de abrangência estética do aluno. Por outro

lado, a escolha da narrativa gráfica não é casual e, por sua vez, tenta dar conta de outra

reflexão fundamental: discutir os domínios da Literatura como componente curricular na

Educação Básica no sentido de também refletir sobre seus suportes e ferramentas.

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2 A formação do projeto de leitura na escola: trabalhando sob um viés comparatista.

A Literatura parece já nascer como um campo interdisciplinar entre as áreas de

abrangência do ensino escolar. Trata-se de uma área que permite pontos de contato não só

com as outras possíveis abordagens das Linguagens como também com a Filosofia, a

Sociologia, a História, a Geografia e, por que não dizer, toda forma de conhecimento

concebido pelo homem, uma vez que dá conta, em suma, da natureza humana, seja no

campo do fantástico, seja numa abordagem realista. Dessa maneira, podemos entender que

a Literatura, como arte, assume incontáveis potencialidades, como anuncia Edgar Morin:

Literatura, poesia e cinema devem ser considerados não apenas, nem

principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas

também escolas de vida, em seus múltiplos sentidos: - Escolas da língua, que revela todas as possibilidades através dos escritores e

poetas, e permite que o adolescente (...) possa expressar-se plenamente em suas

relações com o outro. - Escolas (...) da poética da vida (...), da emoção estética e do deslumbramento. - Escolas da descoberta em si, em que o adolescente pode reconhecer sua vida

subjetiva na dos personagens de romances ou filmes. (...) (MORIN, 2005, p. 48)

Morin também enunciará que uma prática pedagógica baseada no contato

permanente entre diversas áreas do conhecimento de maneira interdisciplinar ou até

mesmo transdisciplinar contempla alguns princípios básicos que nada mais são do que

posturas do educador frente à sua matéria básica: o saber. É a partir desses princípios que

se constroem, enfim, as abordagens de sala de aula. Entre esses princípios está, por

exemplo, a ideia da “reintrodução do conhecimento em todo conhecimento” (MORIN,

2005, p. 96), melhor compreendida, talvez, através do conceito de “migrações”

transdisciplinares:

Certas noções circulam e, com frequência, atravessam clandestinamente as

fronteiras, sem serem detectadas pelos “alfandegueiros”. Ao contrário da ideia

muito difundida de que uma noção pertence apenas ao campo disciplinar em que

nasceu, algumas noções migradoras fecundam em um novo terreno, onde vão

enraizar-se, ainda que à custa de um contrassenso. (MORIN, 2005, p. 108)

A propósito do “contrassenso” colocado por Edgar Morin, o que se tem aqui é o

estímulo a uma postura demasiadamente necessária ao professor formador de leitores: a do

professor-pesquisador, que estabelece hipóteses e dúvidas em sua prática a fim de extrair

resultados, que se propõe a investigar terrenos inexplorados até por ele mesmo com o

objetivo de compreender novos caminhos, novas abordagens possíveis para o seu trabalho.

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Afinal, formar leitores é um exercício que exige sensibilidade e observação constante das

reações provocadas pela fruição estética e pela imersão ou não no objeto literário proposto.

Considerando tal proposta, no meio escolar o livro & a leitura literária podem vir a

ser, eles próprios, poderosos instrumentos interdisciplinares, na medida em que um

trabalho de formação de leitores assume-se verdadeiramente como um projeto, onde

objetiva-se esgotar a leitura para, num segundo momento, estabelecer a ponte com a

próxima – e assim sucessivamente. Por meio dessa abordagem, um mesmo conceito

estético ou motivação para a narrativa pode ser mediado em diferentes contextos ou

discursos literários. Trata-se de um exercício comparatista, mas que, por outro lado,

compreende a importância da autonomia da obra literária durante o processo de leitura.

Contudo, a “ponte” para outros discursos ou formas & gêneros da literatura não

necessariamente se faz como abordagem única e estruturante; trata-se de uma pequena

abertura que permitiria o diálogo com diferentes fontes para o debate, perceptíveis em

diferentes componentes curriculares, e, ampliando ainda mais a ideia, o alcance de outras

formas narrativas que compartilham com a literatura conceitos e possibilidades de se

contar uma história ou de motivar a fruição estética, que por sua vez ressignificam a leitura

e colocam a arte, seja no quesito da narratividade ou em outros aspectos, numa dimensão

contextual bem mais ampla do que o normal.

O que se apresenta aqui, portanto, é que entendamos a proposta de trabalho do

componente curricular de Literatura como, de fato, um projeto de leitura, concebido em

módulos ou em único bloco, mas onde, enfim, cada escolha representa uma “ponte” para

outra. Podemos considerar, assim, que o ensino de Literatura no Ensino Médio poderia se

dar como um projeto de Literatura Comparada na escola. Tal proposta, em princípio, daria

conta de uma necessidade vital dentro dos objetivos propostos pelo professor de Literatura:

a capacidade de produzir analogias que vão além de relações históricas e/ou sociológicas.

Tal opção se justificaria a partir do momento em que admitíssemos, assim, que

não é possível ler senão comparativamente (ou seja, racionalmente) (...) não se

trata tanto da opção entre comprar e não comparar... Não há de fato como não

comparar. Toda leitura é ativação, partilha e “cooperação interpretativa” (no

sentido que Umberto Eco dá a este conceito) (BUESCU, 2001, p. 23).

Considera-se, portanto, que a construção de um projeto de leitura jamais se dá a

partir de uma seleção aleatória de textos, o que significa, também, poder articulá-la com o

reconhecimento de certos cânones fundamentais e com o domínio da tradição literária, sem

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que isso esteja atrelado tão somente ao peso da tradição de um ensino conservador de

paradigma positivista. Ou seja: a historiografia não pode ser o fim único do ensino de

Literatura na escola, até porque, a priori, ele não privilegia a leitura como instrumento

fundamental do trabalho, o que acaba não proporcionando o grande objetivo de tal

componente curricular, qual seja a formação de leitores.

Aqui, considera-se, fundamentalmente, o trabalho com o Ensino Médio, onde se

revela de maneira mais gritante a problemática de um ensino pautado pela formação

enciclopédica e historiográfica. Na difícil articulação entre formação de repertório,

conhecimento da tradição literária e formação de leitores autônomos, acaba sendo

privilegiado o caminho mais “fácil”, até mesmo pela disposição causada pelos exames de

vestibular que lidam, predominantemente, com vasta carga de conteúdo, que quase sempre

impossibilita um mergulho na leitura, muito menos aquela que não está diretamente

associada à tradição canônica, um problema observado, inclusive, nas Orientações

Curriculares para o Ensino Médio:

Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino

médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros

da Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da

Literatura brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da

Literatura e seus estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se

verifica sobretudo em grande parte dos manuais didáticos do ensino médio –

prescinde da experiência plena de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar

dessa experiência estética, ocorre a fragmentação de trechos de obras ou poemas

isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prática que se revela

um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes (MEC, 2006, p. 63).

Cyana Leahy sintetiza a problemática pedagógica que se estabelece na ação de

privilegiar a historiografia literária ao comentar que tal prática se caracteriza, não raro,

“pela leitura submissa, acrítica e artrítica dos livros didáticos de literatura ou de apostilas

condensadas”, onde se tem “uma memorização acelerada, incongruente e banal, voltada

para a historicidade de fatos, destituída de prazer, com pouca leitura” (LEAHY, 2004,

p.54), de forma que a colocar a leitura literária, basicamente, como servil a partir de

abordagens metodológicas que limitam os valores fundamentais que deveriam estar

inseridos na prática de formação de leitores, como também cita a autora: “o prazer, a

fruição, sensações, emoções, o diálogo verdadeiro com a palavra-arte” (LEAHY, 2004, p.

55), logo, já apontando para a necessidade de mergulho no objeto literário e acerca daquilo

que realmente deveria interessar num pretenso ensino de Literatura, a professora

complementa:

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Raras foram as oportunidades de ampliação e aprofundamento do diálogo

genuíno, querendo genuinamente saber dos alunos suas respostas sensoriais,

emocionais, racionais ao lido: o que realmente sentiram, pensaram,

depreenderam do texto literário. Mais raramente ainda se procedeu à leitura

crítica, à análise teoricamente fundamentada, à interpretação sem maniqueísmo

ou polarização do texto (LEAHY, 2004, p. 55).

Sendo assim, de um ponto de vista pragmático, a Literatura como componente

curricular na no Ensino Médio deveria compreender três aspectos básicos: se abrir como

uma ferramenta transdisciplinar/interdisciplinar, onde, não necessariamente, é o

componente em questão que lida, sozinho, com a divulgação e fomentação da leitura na

escola, mas é quem acaba por centralizar boa parte da discussão, principalmente no campo

estético, e é de onde ela parte, afinal; ser compreendida como espaço para o trabalho sobre

o texto e sobre a fruição estética, que encaminha a compreensão, o debate e o

entendimento não gratuito do texto literário, dentro de uma dimensão social e cultural

maior, possibilitando, a partir daí, a formação do leitor; e também divulgar a tradição

literária a fim de possibilitar outro tipo de formação: a de um repertório de leitura mínimo

que esteja inserido (também) dentro de uma dimensão histórica.

Seriam três os elementos que deveriam orientar a prática pedagógica – que

interagiriam permanentemente. Nessa interação, percebe-se, contudo, que o segundo tópico

abre as possibilidades de intertexto universais da Literatura no diálogo com outras artes, o

que só ampliaria os outros dois aspectos previstos. Dessa maneira, como espaço para

formação de leitores e entendendo a necessidade de contemplar tal questão de forma ampla

e significativa, abrindo-se para todas as possibilidades e contatos com os múltiplos

universos que circundam o aluno, poderíamos entender que a fruição estética far-se-ia não

só de modo interdisciplinar ou intertextual, mas também de modo intersemiótico, logo, em

diálogo com diversas formas de escrita ou de narrativa e, ainda, com diferentes

manifestações artísticas. O domínio estético do ensino de Literatura, dessa maneira,

constituir-se-ia como um ensino, também, de arte, portanto, onde as ferramentas e

procedimentos da literatura comparada parecem dar razoável suporte.

A partir dessa reflexão, o que se propõe aqui é uma abordagem estruturada nas

possibilidades de diálogo da literatura com a história em quadrinhos, uma linguagem por si

só híbrida, que se apropria de elementos literários – em especial, ligados à narratividade –

para estabelecer uma relação praticamente indissociável entre palavra e imagem. A

imagem e a iconografia, contudo, são os aspectos talvez mais essenciais aos quadrinhos, o

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que possibilita notar que, por maiores que sejam as variações de nomenclaturas que tentam

dar conta das de tal linguagem, é verdadeiramente o suporte imagético que sustenta as

HQs, sejam ditas como narrativas gráficas, como graphic novels ou, ainda, como arte

sequencial. Assim, tomando como ponto de partida a ideia de um ensino de Literatura

voltado à formação de leitores que deve buscar não só o letramento literário, mas também a

formação de uma sensibilidade artística e a construção de um imaginário poético por meio

de outras manifestações e linguagens, tem-se que o que deve ser estimulado é uma postura

investigativa no aluno, capaz de colocá-lo como sujeito que questiona as possibilidades de

diálogo entre obras diferentes e/ou de diferentes linguagens artísticas. Logo, o que é

trazido nesta proposta é uma ideia de distanciamento de um ensino de Literatura

tradicional, que evoque tão somente o estudo da obra literária historicamente consagrada e

contextualizada que, quando muito, apenas recorre à identificação meramente acessória de

outras linguagens no campo das artes visuais.

As histórias em quadrinhos, nesse sentido, por sua estrutura híbrida, são capazes de

articular seu conteúdo com noções que se estabelecem no campo do literário e das artes

plásticas, explicitando, contudo, real potencial por meio da narrativa. De tal maneira que,

por mais que o literário seja o elemento central desse modelo de ensino – muito mais

voltado a um ensino de arte, pensando a arte de forma ampla –, haveria uma preocupação

toda especial em pensá-lo dentro de uma abordagem intertextual, que utilizasse as

ferramentas da literatura comparada, permitindo a uma abordagem que utilizasse os

quadrinhos como meio para articular estéticas, conceitos e temas literários também aquilo

que defende Antonio Luiz Cagnin como um necessário “aprendizado para a leitura da

imagem” (CAGNIN, 1975, p. 51), o que só ampliaria as noções de escrita e de texto,

como, inclusive, referem-se os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio

(PCNEM):

A utilização dos códigos que dão suporte às linguagens não visa apenas ao

domínio técnico, mas principalmente à competência de desempenho, ao saber

usar as linguagens em diferentes situações ou contextos, considerando, inclusive

os interlocutores ou públicos. (PCNEM, 1999, p. 96.)

3 Quadrinhos & literatura: hibridismo e leitura do texto imagético.

Particularmente, além de ampliar a noção de narrativa, se tomado como ponto de

partida o formato literário, as histórias em quadrinhos são uma linguagem artisticamente

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interdisciplinar, por ser dotada de um código próprio calcado na hibridização, como aponta

Nestor Canclini: “Há gêneros constitucionalmente híbridos, por exemplo o grafite e os

quadrinhos (...) Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular,

aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva” (CANCLINI, 1998:

p. 336). A leitura da imagem revela uma poética particular que muitas vezes torna-se

complexa, principalmente a partir das muitas subversões às quais os quadrinhos se

permitem ao descontruir a própria estrutura narrativa. Antes disso, porém, as HQs revelam

uma maneira toda especial de se lidar com a leitura, revelada ainda no processo criativo,

como aponta Will Eisner:

“Escrever” para quadrinhos pode ser definido como a concepção de uma ideia, a

disposição de elementos da imagem e a construção da sequência da narração e da

composição do diálogo. É, ao mesmo tempo, uma parte e o todo do veículo.

Trata-se de uma habilidade especial, cujos requisitos nem sempre são comuns a

outras formas de criação “escrita”, pois lida com tecnologia singular. (EISNER,

2001, p. 122.)

Logo, como muitos autores irão apontar, histórias em quadrinhos não são literatura,

ainda que muitos busquem uma certa correspondência a partir de seu conteúdo

predominantemente narrativo e em termos como graphic novel, novela gráfica ou romance

gráfico. Como comenta o pesquisador Paulo Ramos,

Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de

procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (...).

Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma,

que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos (RAMOS,

2009 , pág. 17).

As terminologias que acabam por designar, arbitrariamente, os quadrinhos não dão

conta, portanto, de todas as suas potenciais capacidades. O termo graphic novel e suas

correspondentes “traduções” limitam a arte sequencial, por exemplo, a uma relação direta

com o formato literário, de certa maneira estabelecendo um juízo de valor estético na

medida em que excluem da equação outras manifestações da linguagem quadrinizada

como a tira ou a charge, por exemplo. A própria noção de “romance” gráfico é de difícil

aceitação, na medida em que mesmo algumas obras rotuladas como tais não trazem apenas

um único arco narrativo fechado como é próprio do formato romanesco, explorando a

noção de fragmentação e de rompimento com a ideia do romance como espaço da grande

narrativa, da história com início, meio e fim, autônoma e totalizadora de uma certa

realidade no campo da ficção. Como afirmarão Vergueiro & Ramos:

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Diálogos entre linguagens ocorrem. Nem por isso deixam de manter suas

características autônomas. Ou será que alguém espera encontrar balões em um

romance? Não. Pois balões são uma convenção característica da linguagem dos

quadrinhos (VERGUEIRO e RAMOS, 2009, p. 37).

Aqui, percebe-se o quão interdisciplinar é o campo dos quadrinhos, capaz de, quase

que inevitavelmente, manter seu diálogo frequente com o literário, como percebemos

nesses diferentes rótulos dados às HQs. No entanto, é mais do que necessário perceber que,

ao se lidar com a narrativa gráfica, seja no suporte da arte sequencial propriamente dita,

seja em obras que apostam na subversão do próprio vocabulário básico das histórias em

quadrinhos – mas que ainda utilizam a linguagem imagética como meio fundamental – o

aspecto semântico se constitui num sensorialismo visual, muitas vezes ligado ao seu

código estrutural básico, como o enquadramento – muitas vezes, afinal, não se está a

considerar que o mesmo se dá sempre, uma vez que a própria noção de sequencialidade

tradicional e outros aspectos são frequentemente subvertido, principalmente em narrativas

mais contemporâneas; em outro âmbito, reconhecer nos balões e nas onomatopeias os

elementos fundantes da arte sequencial é subjugar a imagem frente ao texto, o que está,

aqui, tentando ser descontruído. O esforço por tal desconstrução necessária se dá por

considerar que a leitura dos quadrinhos necessita de uma sensibilidade especial pouco

estimulada no campo da educação e do trabalho com a leitura, qual seja a já referida

estimulação à sensibilidade na leitura da imagem. Talvez – cabe-nos tentar avaliar – o que

haja é uma pretensa sensação de compreensão advinda do vínculo permanente que há no

mundo contemporâneo com a comunicação visual, dentro da qual é possível perceber,

inclusive, uma forte presença das histórias em quadrinhos, como aponta Thierry

Groensteen (2004, p. 19); mas o pesquisador francês também dirá que, para se trabalhar

com as narrativas gráficas, é mais do que necessária uma pedagogia que seja capaz de lidar

com a imagem e a forma como a mesma se articula:

Ler as imagens, compreender suas ligações, provar as qualidades próprias de um

desenho, isto se aprende, ou, antes, isto se deveria aprender. Mas a ignorância

neste domínio é tal que alguns introduziram, não sem propósito, o neologismo

d’aniconète (aos moldes d’analphabete) [em nota de rodapé: “Algo como

anicônico, por analogia a analfabeto, ou seja, aquele que não entende os

ícones.”] (GROENSTEEN 2004, p. 42)

Dessa maneira, ao apontar a problemática relação com os “analfabetos do ícone”

que povoam a sociedade, Thierry acabará por sistematizar quatro grandes princípios a

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partir dos quais deveria se fundamentar uma pretensa pedagogia que fosse capaz de

mediar, adequada e profundamente, a leitura da imagem dos quadrinhos e, portanto, da

imagem em si. Dentre esses princípios, poderiam ser destacados pelo menos dois: formar o

gosto pela apreciação do desenho – assim, por extensão, fomentando uma maior

sensibilidade do leitor nas artes plásticas e em outras formas de narrativa gráfico-visuais –

e se libertar dos lugares comuns sobre as relações entre o texto e a imagem, um princípio

de certa forma inquietante, uma vez que é muito tênue a capacidade de colocar ambos

numa estranha e, inevitavelmente, hierárquica, posição de coordenação ou subordinação,

mais uma vez dando ao texto o maior grau de autonomia e estabelecendo que a imagem é o

mero complemento para a significação (GROENSTEEN 2004, p. 43-46).

Esta última ideia do escritor francês, logo, interessa particularmente. Moacy Cirne

dirá que para ler e interpretar o universo narrativo das HQs é necessário conviver com

aquilo que ele chama de “Poeticidade Libertária” (CIRNE, 2000, p. 16), onde seus

recursos, sua “gramática” (por assim dizer) e sua linguagem, historicamente, adquiriram tal

grau de autonomia que se tornaram capazes de se rearticularem constantemente.

Groensteen afirmará que tal apelo condiz com uma motivação e uma “disposição pan-

visual1” (GROENSTEEN 2004, p. 44); Cirne amplia tal compreensão ao refletir sobre o

fato de que a especificidade dos quadrinhos é complexa e reside

No modo narrativo visual capaz de agenciar elipses gráficas e espaciais. O

desencadeamento de imagens (“congeladas” no tempo e no espaço) será sempre

relacional, cuja tessitura significante apontará para a eficácia das relações críticas

entre os diversos planos/enquadramentos de cada série ou estória. Caso

contrário, não teremos um quadrinho de consequências estéticas, inclusive

narracionais e gráficas, realmente produtivas. (...) o elemento semântico da

informação textual, contido em balões ou simples legendas, filtra-se na travessia

icônica de todos os elementos constitutivos do discurso quadrinizante. (...) a

semioticidade dos quadrinhos pode ser localizada numa certa grafia narrativa,

que faz da relação entre as imagens uma relação estrutural, lugar estético de um

não-dito significante (CIRNE, 2000, p. 29).

Passemos a alguns exemplos: a HQ Maus – A História de um Sobrevivente, de Art

Spielgman, é, reconhecidamente, um clássico dos quadrinhos. Testemunho do pai do autor

acerca das experiências vividas durante a II Guerra Mundial, quando fora perseguido pelos

nazistas por ser judeu, a obra imprime um olhar particular sobre o tema do holocausto a

1 “o que funda a linguagem da história em quadrinhos é precisamente a multiplicidade de imagens em

situação de co-presença no seio de um multi-quadro” (GROENSTEEN 2004, p. 44).

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partir, justamente, de seu conteúdo gráfico. Não fosse isso, talvez a obra perderia muito de

sua força dramática. O que se tem em Maus é a representação dos judeus como ratos e dos

nazistas como gatos, onde o autor ainda acaba experimentando outras abordagens, como o

ato de desenhar os personagens do bloco soviético como porcos. O traço simples e

imediato de Spielgman é quase um contraponto à representação surrealista do rosto dos

personagens. A simples ideia de compor uma metáfora da perseguição dos nazistas aos

judeus, contudo, não é a sua única possibilidade de leitura: os porcos do bloco soviético

são, por si só, uma possível referência ao clássico A Revolução dos Bichos, de George

Orwell; a questão de que a diferenciação dos “bichos” se dá por culturas, ideologias ou

questões de âmbito filosófico, político e sociológico e não somente étnico ou de

nacionalidade reproduz a leviana ideia dos nazistas em torno do arbitrário conceito de raça,

em geral atribuído aos judeus como uma “raça menor” ou, ainda, uma “raça de inumanos”;

o uso do rato reforça o rebaixamento dos judeus a um tipo grotesco e nojento, caricatura da

degradação humana, tal como propagavam (e propagandeavam) os nazistas, inclusive a

partir da imagem de Mickey Mouse, representante da indústria cinematográfica

hollywoodiana, composta, em grande parte (à época e também hoje) por judeus e/ou

descentes de judeus. Fora isso, sobram outras grandes ideias visuais na obra, como o

conflito de identidade do autor com a sua própria cultura (judaica), onde se troca o rosto

por uma máscara, representada assim, portanto, a fim de denotar um simbolismo. Outro

exemplo se dá no momento em que Art mostra-se cansado e demasiadamente

sobrecarregado com o trabalho de composição do livro: além da metalinguagem, um traço

frequente nos quadrinhos adultos, um enquadramento em plano mais aberto (estabelecendo

um dinamismo na troca dos quadros) revela outro simbolismo evidente, uma pilha do que

parecem corpos de judeus mortos nos campos de concentração, como se aquela memória

estivesse, de fato, preenchendo a vida do autor.

(Fonte: SPIELGMAN, 2009, p. 201 / p. 157).

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Figura 1 – A montanha de corpos se avoluma nas memórias do holocausto recolhidas por Art Spielgman.

(Fonte: SPIELGMAN, 2009, p. 201 / p. 157).

Figuras 2 e 3 – em Maus, de Art Spielgman, o recurso da máscara é usado, mataforicamente, tanto para

representar um conflito de identidade quanto um “disfarce”, na medida em que alguns judeus tentam se

infiltrar na massa e não serem descobertos.

Outro aspecto bastante interessante na narrativa de Maus surge a partir de outro

exercício de metalinguagem: em dado momento, tomamos conhecimento de uma outra

história produzida por Art Spielgman no passado, O Prisioneiro do Planeta Inferno; passa-

se, então, à leitura de uma história em quadrinhos dentro de outra história em quadrinhos.

Nessa história, contudo, os personagens são humanos representados como humanos e o

contraponto gritante que se estabelece entre a graphic novel sobre o holocausto e a

pequena história que surge dentro dela mostra-se um exercício estético peculiar: como

analisou Scott McCloud, “Em O Prisioneiro do Planeta Inferno, de Spielgman, linhas

expressionistas representam uma história de horror da vida real” (MCCLOUD, 2005, p.

126.), por outro lado, o traço mais “cru” e menos exagerado de Maus torna tudo muito

mais sóbrio; assim, o horror da guerra e do genocídio, que é mais abrangente (mais geral),

tem formas mais simples e objetivas (quase documentais) de representação, mas os

personagens aparecem de forma “absurda”, como num exercício mais profundo de

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metáfora visual; já o “expressionismo” de O Prisioneiro do Planeta Inferno reproduz os

conflitos particulares dos personagens, ilustrando o mundo ao seu redor em plena

deformação a fim de dialogar com seu personagem principal, apresentando, contudo, seres

humanos ilustrados como tais.

Nota-se, então, que o aspecto gráfico é norteador da experiência plena de leitura de

Maus – A História de Um Sobrevivente. Por mais que eventualmente seja solicitado algum

tipo de experiência prévia do leitor (no caso de certos dados referentes à guerra e ao

período do nazi-fascismo na Europa), a significação das imagens, contudo, não depende

integralmente disso (pelo menos neste caso específico). Poderíamos, contudo, citar alguns

exemplos em que a formação de um “repertório” interpretativo auxiliaria e ampliaria a

leitura do texto imagético no plano do conteúdo. Por mais que neste trabalho esteja em

foco a formação de uma sensibilidade do leitor de imagem, é necessário a articulação de

diferentes níveis sensíveis/sensoriais a fim de que tal leitor seja plenamente capaz de

produzir relações diversas. E lembremos, como aqui já apontado, que este é grande foco da

abordagem aqui prevista: uma abordagem essencialmente intertextual.

Will Eisner já proclamara que

A compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência.

Portanto, para que sua mensagem seja compreendida, o artista sequencial deverá

ter uma compreensão da experiência de vida do leitor. É preciso que se

desenvolva uma interação, porque o artista está evocando imagens armazenadas

nas mentes de ambas as partes (EISNER, 2001 , pág. 13).

Voltemo-nos, então, a outros dois exemplos, ambos ligados ao mais popular dos

temas das narrativas gráficas: os heróis (ou super-heróis). Na belíssima Asilo Arkham,

ilustrada por Dave McKean e roteirizada por Grant Morrison, Batman deve invadir o

manicômio do título para conter os prisioneiros que tomaram conta do local. Em meio à

narrativa que se desenrola, vemos o protagonista esgueirar-se em meio aos espaços mais

traiçoeiros do asilo, ao mesmo tempo em que, como é comum nas histórias do herói, passa

a questionar o porquê em se sacrificar daquela forma. Com isso, resgatam-se imagens do

passado, em curtos flashbacks ou quadros sutis que remetem às memórias do personagem.

Num desses momentos, uma das cenas mais repetidas e reinterpretadas dos quadrinhos

volta à tona: Batman relembra da noite em que seus pais foram mortos. Desta vez, porém,

dois pequenos detalhes ressignificam a cena, talvez por fruto do fluxo de consciência do

próprio personagem, na leitura dos autores: na saída do cinema, Bruce Wayne (a

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verdadeira identidade do herói), ainda criança, está acompanhado do pai e da mãe; no

letreiro do cinema, podem-se ler dois anúncios de filmes distintos, Bambi e Zorro; a leitura

possível remete à orfandade de Bruce Wayne, ligada ao primeiro filme, e à imagem icônica

que este escolhera para compor seu vigilante mascarado, que dialoga com o segundo.

Contudo, é possível que se questione o fato de que estamos lidando com a presença do

texto em cena. Observe-se, entretanto, que o texto, aqui, não se articula em nível semântico

com enunciados, frases, diálogos ou sintagmas quaisquer – são palavras “soltas” que tem

uma profunda relação imagética com a composição do cenário, onde sua significação ainda

depende de toda uma apropriação do conteúdo psicológico do personagem. Will Eisner

afirmará que este é um recurso muito presente nos quadrinhos, a palavra lida como uma

imagem: “o letreiramento, tratado ‘graficamente’ e a serviço da história, funciona como

uma extensão da imagem. Nesse contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte

narrativa (...)” (EISNER, 2001, pág. 10).

(Fonte: MORRISON e MCKEAN, 2003, p. 54.)

Figuras 4 e 5 – A versão de Grant Morrison e Dave McKean para a cena do assassinato dos pais de Bruce

Wayne.

Em outra graphic novel, a obra Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross, a

intertextualidade no campo gráfico se dá por meio da homenagem. Em dado momento, o

ilustrador Alex Ross aproveita para homenagear um famoso quadro do pintor norte-

americano Edward Hopper: Falcões da Noite, paradigma do Realismo estadunidense. A

referência, mais uma vez, não vem gratuitamente e pode-se perceber neste movimento ao

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menos uma questão em particular: o traço de Ross, bastante realista, bebe na fonte de

pintores como Hopper e, neste caso, a homenagem vem naturalmente, como um gesto

cuidadoso em explicitar as referências do quadrinista. Além disso, todo o tom de Marvels é

pautado pela proposta de identificar os super-heróis dentro de um contexto verossímil,

abordando-os dentro de uma realidade histórica, onde o verdadeiro protagonista é,

justamente, um fotógrafo que presencia o surgimento das diversas gerações de super seres

desde os anos 1940. Um fotógrafo como protagonista é um elemento a mais de distinção

no traço de Alex Ross, pois este, muitas vezes, chega quase ao nível do hiper-realismo.

(Fontes: BUSIEK e ROSS, 2010, p. 35; HOPPER, http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:800px-

Nighthawks.jpg)

Figuras 6 e 7 – Intertextualidade e referência em Marvels: o traço realista de Alex Ross bebe na fonte do

Realismo de pintores como Edward Hopper.

Tendo já percebido a importância da sensibilidade para com o texto imagético,

observa-se, também, que Marvels aponta, logo, na direção do outro tema proposto neste

artigo: pensando mais objetivamente no trabalho professor de Literatura, o desafio maior

se encontraria na possibilidade de diálogo entre diferentes textos, a partir, portanto, de uma

proposta dialógica entre diferentes modalidades artísticas. O estímulo à fruição estética no

campo da narrativa gráfica se dá de forma diferente do que na literatura, porém, ambos se

comunicam por sua finalidade última, qual seja a de produzir um leitor atento, capaz de

articular os elementos estruturantes a fim de dar a eles funcionalidade dentro da obra e de

ampliar sua compreensão. Se num determinado momento, portanto, a relação se dá com os

componentes próprios da linguagem que está sendo especificamente analisada, chega-se,

logo, ao espaço de transição, onde a obra valer-se-á de seu conteúdo temático e de sua

proposta narrativa e/ou conceitual. Com isso, não apenas Marvels como o próprio Asilo

Arkham seriam ferramentas interessantíssimas para se discutir a figura do herói na ficção,

por exemplo, tema abundante e ilimitado para a literatura, presente como marca registrada

dos quadrinhos pelo viés da fantasia, contudo, sendo capaz de apresentar abordagens e

temas diversificados, seja pelo viés do herói como protagonista, seja, também, tratando a

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figura do herói “épico” ou do super-herói por um viés realista como o de Marvels; a

literatura romântica e a transição para o Realismo podem ser um bom ponto de partida (ou

de chegada, dependendo da abordagem escolhida pelo professor); além disso, a noção do

herói problemático, formulada por Georg Lukács, por exemplo, pode ser analisada em

diversas HQs, inclusive, mais uma vez, nestas que trabalham a figura do herói em seu

sentido mais épico ou aventureiro, como é o caso do Batman de Asilo Arkham. No caso de

Maus, a literatura de testemunho, a narrativa centrada no tema da guerra ou, ainda, a

temática judaica também encontram farto material de diálogo com a literatura, tanto nas

décadas passadas quanto na literatura contemporânea; isso sem contar os próprios

subgêneros biografia e autobiografia.

Como já reiterado aqui várias vezes, a particularidade do formato HQ possibilita

uma leitura autônoma desta forma de arte. Percebemos isso, também, quando vemos que

tal autonomia se constitui na profusão de temas, títulos, públicos e variantes narrativas que

há dentro do próprio campo dos quadrinhos. Assim, as possibilidades de articulação entre

literatura e quadrinhos são vastíssimas, como seriam, também, com o cinema, com o teatro,

etc. Dessa forma, estamos tratando de um projeto de leitura que, na medida em que

subverte expectativas do próprio currículo, amplia as possibilidades de abordagem para,

enfim, dar foco ao trabalho com o texto – seja imagem, seja palavra, seja sua constante

hibridização nas HQs, ou seja, ainda, a imagem articulada a outros recursos próprios da

visualidade. Assim, a abertura para os quadrinhos – que traduz a almejada abertura para as

outras linguagens – também recorre em novas ideias: desmistifica a ideia de trabalhar tão

somente o cânone, mas também não significa retirar a presença dos clássicos; em tempo,

estimula a capacidade do aluno em explorar uma perspectiva dialógica, o que estamos a

definir como uma postura investigativa do educando. O conceito de herói é um exemplo

disso. Outro tema possível, recorrente em nossa historiografia (e note-se que estamos a

considerar a historiografia também como uma das muitas possibilidades de leitura da obra

literária) seria o regionalismo: obras para diversos públicos, como Estórias Gerais, de

Welington Srbek e Flávio Colin – bem como quase toda a obra de Colin –, Um Outro Pastoreio, de

Rodrigo dMart e Indio San, Bando de Dois, de Danilo Beyruth e as histórias da Turma do Pererê,

de Ziraldo, seriam alguns exemplos a serem trabalhados. A narrativa de formação, terreno fértil

para a sedução e formação do leitor, que tem na literatura brasileira representantes como Raul

Pompeia, Fernando Sabino, Daniel Galera, Moacyr Scliar, Jorge Amado – além das possibilidades

com a literatura estrangeira –, tem, também nas HQs, autores respeitadíssimos, como Craig

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Thompson e Marjane Satrapi. Outro exemplo ligado à historiografia literária, a narrativa de

viagem, tem um correspondente à altura na novela gráfica: Hugo Pratt e as narrativas de seu anti-

herói navegador Corto Maltese. A representação da cidade na ficção, tema de obras fundamentais

como O Cortiço, tem na obra do quadrinista Will Eisner um de seus maiores artistas. Isso sem falar

da literatura engajada e da sátira política, temas fundantes de uma verdadeira tradição do quadrinho

nacional, calcado na charge e na tira de humor. Neste ponto, mais uma vez, não só a literatura e o

quadrinho nacional fornecem possibilidades enormes, e seria mais do que necessário redimensionar

o currículo de forma a se articular com autores estrangeiros (outro grande tabu na formação dos

projetos de leitura na escola).

Enfim, para cada uma dessas abordagens, novos estilos se impõem, novos desafios em

torno da decifração do código visual também. No entanto, em todos os aspectos, o trato com o texto

se faz presente, uma vez que há estimulo à inquietação, a desacomodar o leitor de uma posição

passiva e voltada a preceitos que limitam a análise literária. Nesse quesito, as histórias em

quadrinhos, ao contrário do que se pensa, possibilita uma leitura ativa, baseada num código

linguístico híbrido e, por isso, vocacionado à subversão do modelo interpretativo e analítico dos

estudos literários, podendo, com certeza, ampliá-lo e auxiliá-lo.

4 Considerações finais

Um ensino de Literatura produtivo é aquele que almeja, a todo custo, a formação de

leitores. Contudo, é necessário discutir os domínios da Literatura como componente

curricular – será que o campo da linguagem, neste caso, não deveria abarcar os outros

fenômenos artísticos de fato?

Tendo em vista a complexidade do texto imagético dentro da arte sequencial aqui

brevemente analisada e todas as possibilidades sugeridas a partir de uma abordagem dialógica entre

literatura e HQ, é necessário, enfim, compreender que um projeto de formação de leitores deve

ampliar seu escopo e ir muito além da historiografia. A capacidade de articulação entre diferentes

modalidades textuais e artísticas, bem como diferentes gêneros, dá ao educando diferentes chances

de fruir e agir sobre o texto, encontrando, ele próprio, em algum momento, a sua própria “voz”

como leitor, logo, consciente de que é um sujeito capaz de compreender o que está além da

superfície. Com isso, é necessário que o professor seja um mediador atento e sensível, capaz de

manter uma postura, ao mesmo tempo, próxima e distante, numa esfera ampla o suficiente para

abarcar os diálogos comparatistas, mas também capaz de refinar os discursos a fim de conferir as

especificidades necessárias à autonomia de determinada linguagem. Assim, percebe-se que a

síntese de Tânia Carvalhal é bastante adequada:

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A noção de intertextualidade abre um campo novo e sugere modos de atuação

diferentes ao comparativista. Do “velho” estudo de fontes para as análises

intertextuais é só um passo. Mas essa é uma travessia que significa para o

comparativista engavetar os antigos conceitos (e preconceitos) e adotar uma

postura crítico-analítica que seus colegas tradicionais evitavam. Principalmente,

as novas noções sobre a produtividade dos textos literários comprometem a

também “velha” concepção de originalidade (CARVALHAL, 1992, p. 53).

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