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INSTITUTO PACKTER & APAFIC Especialização em Filosofia Clínica Renata Bastos Carneiro da Cunha PARALELOS ENTRE FILOSOFIA CLÍNICA E TRANSDISCIPLINARIDADE SÃO PAULO 2008 INSTITUTO PACKTER & APAFIC

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INSTITUTO PACKTER & APAFIC Especialização em Filosofia Clínica

Renata Bastos Carneiro da Cunha

PARALELOS ENTRE FILOSOFIA CLÍNICA E TRANSDISCIPLINARIDADE

SÃO PAULO 2008

INSTITUTO PACKTER & APAFIC

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Especialização em Filosofia Clínica

Renata Bastos Carneiro da Cunha

PARALELOS ENTRE FILOSOFIA CLÍNICA E TRANSDISCIPLINARIDADE

Monografia elaborada para a Especialização em Filosofia Clínica do Instituto Packter e Associação Paulista de Filosofia Clínica

Professora titular: Monica Aiub

SÃO PAULO 2008

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Agradecimentos

Agradeço à Monica Aiub por suas orientações e colocações sempre assertivas

e ao Lúcio Packter por sua criação.

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“A totalidade é a não-verdade” Theodor Adorno

“O problema humano, hoje, não é somente de conhecimento, mas de destino. Efetivamente, na era da disseminação nuclear e da

degradação da biosfera, tornamo-nos, por conta própria, um problema de vida ou morte.”

Edgar Morin

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SUMÁRIO

Introdução_____________________________________________________ 5 Sobre a filosofia e a Filosofia Clínica ________________________________ 6 Sobre o pensamento complexo e a transdisciplinaridade_________________ 9 Paralelos entre Filosofia Clínica e transdisciplinaridade _________________13 Conclusões ___________________________________________________ 35 Referências ___________________________________________________ 37

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Introdução

O presente trabalho se propõe a traçar paralelos entre Filosofia Clínica e

transdisciplinaridade, ambas áreas do saber que, apesar de distintas –

chegando a primeira numa atuação prática em consultório e a segunda,

penetração até mesmo prática em diversas áreas do saber -, podem ser

relacionadas em seus princípios, os quais se mostram ao menos afins em seus

posicionamentos de abertura, consideração por um todo, complexo, conhecido

por isso (ou ao menos pretendido) em partes, de forma aproximada, bem como

de respeito ou relação amorosa à legitimidade de outras formas de ser/ existir.

Antecedendo aos traçados paralelos, discorre-se sobre a filosofia, Filosofia

Clínica, transdisciplinaridade e pensamento complexo para, por fim, tratar

diretamente do tema proposto, utilizando-se basicamente de dois textos: a

“Carta da Transdisciplinaridade”, produzida pela UNESCO e o

“Transdisciplinaridade e Cognição” de Humberto Maturana, bem como dos

próprios pré-juízos da Filosofia Clínica.

Tais temas – Filosofia Clínica e transdisciplinaridade - são antes de tudo

amplos, não sendo possível realizar uma análise exaustiva de ambos ou

esgotá-los em suas próprias especulações. Mas pretende-se iniciar uma

construção baseada em paralelismos entre ao menos estas duas áreas do

saber que envolvem tantas outras e, parecem ter muitas disposições em

sintonia, tanto entre si como diante dos desafios contemporâneos, sendo

assim, através das relações aqui feitas, permitir visualizar não somente pontos,

mas também, retas, espirais e, sobretudo, paralelos ou formas de coexistência.

Mas quem sabe (e/ou saberá?) também, pontos sem ligação.

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Sobre a filosofia e a Filosofia Clínica

A filosofia é de desafiante definição, tendo como característica predominante

uma atitude reflexiva que pode se estender para as mais diversas questões,

primando, no entanto, pela necessidade de argumentação e, sobretudo,

justificação. A filosofia pode ser denominada como ampla, no sentido de ser

raro ou até mesmo impossível, um assunto, tema ou área que não possa

receber abordagem filosófica, permitindo à própria filosofia ser uma maneira,

uma forma de compreender o mundo.

Por ser tão penetrante, é capaz de inspirar atitudes, disposições e

movimentações do pensamento, de conceitos ao longo do tempo (intercâmbio

entre os mesmos), não se compondo propriamente de uma prática e/ou

funcionalidade mensurável, mas volta-se antes à reflexão, à distinção dos

conceitos e seus contextos. Sua própria natureza exigente e sustentada com e

pelo rigor, lhe assegura um exercício saudável em direção à capacidade

discriminatória.

Sua delimitação parece ser esta, a de muitas maneiras, formas, conceitos e

modelos que podem ser usados na aproximação ou representação de seu

movimento e de suas definições. Sendo assim, filosofia é movimento, mas seu

movimento, fluido como qualquer movimento, necessita de acompanhamento

rigoroso para poder se apropriar do que possa ser dito como filosofia ou “amor

à sabedoria”. Portanto, há tensão, no sentido de que a filosofia é

essencialmente dinâmica, mas se relaciona com delimitadores um tanto quanto

rígidos.

A filosofia se propõe a pensar, se caracteriza por essa própria forma de pensar

que conhece e considera o historicamente ocorrido em seu aspecto

cronológico, mas também e, claro, contextual e, desta forma, crítico. E se

considerarmos a metafísica, parte da filosofia que se propõe a estudar a

essência dos seres? Não se relaciona com a cronologia, estando, como seu

próprio nome indica, para a além da physis, para além do tempo/espaço. São

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extensos os braços da filosofia, sendo até mesmo essa forma de ilustração

incapaz de corresponder ao que propriamente possa ser a filosofia, que se

aproxima muito mais de uma mentalidade ou forma de estar no mundo de

diversas formas do que de uma única ou de algumas poucas.

São muitas as tentativas de definição/ caracterização acerca do que possa ser

a filosofia, devendo a própria filosofia se encarregar dessa tarefa, assim, de

forma metafilosófica, já que a tentativa de algum tipo de “delimitação” já exige

um filosofar.

Tal amplitude filosófica pode ser absorvida, sem ser esgotada, por qualquer

área. E por que não se ocupar do auxílio ao próprio bem estar humano?

A Filosofia Clínica, concebida pelo filósofo gaúcho Lúcio Packter, se propõe a

aproximar-se do bem estar subjetivo, podendo até mesmo propiciá-lo,

utilizando-se da própria formação filosófica exercitada em sua condição

pensante, reflexiva e auto-crítica.

O que parece interessante é que diversas áreas fazem uso direto ou indireto da

filosofia, mas a própria filosofia é rigorosa consigo quando faz uso de outras

áreas. É como se ela se mantivesse intacta em sua própria forma de

investigação.

Parece que a filosofia deu condições para áreas como a medicina se

desenvolverem, como se o significado de filosofia - amor à sabedoria – fosse

estendido e passível de uso por diversas áreas, como (e por que não?) fosse

uma nutridora de muitas áreas que hoje podem ser consideradas autônomas.

Desta forma, está tanto na capacidade do “corpo filosófico” se relacionar e

intercambiar com várias áreas, mas quando ela se apropria de alguma área

que foi “alimentada” por ela, mas cresceu e adquiriu “independência”, tal busca

de relação não é tão bem vista, pois a filosofia pode ser considerada como uma

anti-câmera da medicina, da psicologia, bem como da própria ciência, mas

quando se associa à palavra clínica é facilmente criticada e questionada, como

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se uma mãe nunca pudesse aprender com seus filhos, ou mais, como se áreas

mais antigas do saber tivessem que seguir sem mesclar-se ou fazer

intercâmbio com outras.

A Filosofia Clínica, de forma nítida, se propõe a esse relacionamento, seja na

“delimitação de seu tema”, seja na atuação que se propõe. Faz uso da

transdisciplinaridade em sua “montagem” inicial, mas também, diante do

complexo que é o ser/existir humano, seu objeto (que é sujeito) na partilha,

segue comungando com as idéias complexas ou transdisciplinares.

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Sobre o pensamento complexo e a transdisciplinaridade

A complexidade é a escola filosófica que considera o mundo como um todo

indissociável e propõe uma abordagem multidisciplinar para a construção do

conhecimento. Contrapõe-se à causalidade por abordar os fenômenos como

um todo, como totalidade orgânica. No contexto de tal trabalho, vale dizer que

essa noção de causa se torna análoga a uma noção interpretativa, que parte

de um pressuposto em direção ao suposto, muitas vezes para além disso,

“tipologizando” ou categorizando esse suposto.

Segundo Morin, a complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos que

são inseparavelmente associados, introduzindo o paradoxo do uno e do

múltiplo.

“A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é

tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente

associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo

momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos,

ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem

nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta

com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da

desordem, da ambigüidade, da incerteza... Por isso o conhecimento

necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o

incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza,

precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações,

necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se

elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como

eu o indiquei, elas nos deixaram cegos.” (Introdução ao Pensamento

Complexo, 2005:13/14).

A proposta da complexidade é a abordagem transdisciplinar dos fenômenos, e

a mudança de paradigma, abandonando o reducionismo que tem pautado a

investigação científica em todos os campos, dando por fim, lugar à criatividade

e ao caos.

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Os saberes fogem do pensamento mutilado, ascendendo aos paradigmas

complexos, alimentados por ambigüidades, contradições e incertezas. Em tais

paradoxos deve-se utilizar uma dialética com mediação, gerando um processo

de regeneração que propicie uma nova produção. Nesta, imenso potencial de

criatividade deve ser amplamente utilizado frente às incertezas, ambigüidades

e contradições, bem como diante de um processo dialético mediador. Na

gestão das incertezas e previsibilidades, a criatividade é estimulada, bem como

seu uso fundamental. E nas palavras de Morin: “...o cosmos é, não uma

máquina perfeita, mas um processo em vias de desintegração e de

organização simultâneas.” (Morin, 2001, p.21).

Neste sentido, o acaso sempre está presente, compreendendo a complexidade

ambigüidades, indefinições e aleatoriedade. Sendo assim, ela relaciona

sistemas semi-aleatórios em uma mistura de ordens e desordens, aceitando

uma imprecisão nos fenômenos.

Assim, a visão sistêmica, determinada, precisa, previsível não compactua com

a visão complexa que está de acordo com a compreensão do cosmos, a saber:

“...desintegrando-se que o cosmos se organiza.” (Morin, 2002, p.65)

Em tal frase há consideração da desintegração, da não organização/

ordenação, do caos em certa medida.

A visão transdisciplinar busca articular uma nova compreensão da realidade

entre e para além das disciplinas especializadas, passando então, entre, além

e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade,

havendo um transpassar em busca de relações, paralelos ou separações.

A palavra complexidade além de poder ser entendida como um tecido,

complexus, pode também ser entendida de forma mais ampla, como um tecido

de acontecimentos, ações, interações, determinações, acasos, constituintes do

mundo fenomenal. Segundo Morin (2001), o Cosmos é, não uma máquina

perfeita, mas um processo em vias de desintegração e de organização

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simultâneas, deste modo, o pensamento complexo deve enfrentar as inter-

retroações com todas as incertezas e contradições presentes nesse jogo.

Considerando a complexidade como matriz da transdisciplinaridade, o primeiro

mal-entendido em torno de tal matriz é considerá-la como resposta ao invés de

desafio, considerá-la inimiga da clareza e ordem ao invés de um esforço para

conceber um incontrolável desafio que o real lança em nossa mente. O

segundo mal-entendido é confundi-la com completude, posto que a

complexidade diz respeito à incompletude do conhecimento e o pensar

complexo luta não contra a completude, mas sim contra o pensamento

mutilado. Desta forma, o ser humano ao mesmo tempo físico, biológico, social,

cultural, psíquico e espiritual, deve ser concebido pela complexidade em suas

articulações, na identidade e diferenças de todos esses aspectos ou, então,

segundo Morin, unificá-los por uma redução mutilante. Assim se lida com a

contradição que, sob a ótica do pensamento complexo, não é somente o sinal

de um absurdo de pensamento, “...pode-se tornar o detector de camadas

profundas do real. Constitui então já não o detector do erro e do falso mas

como o indício e o anúncio do verdadeiro.” (Morin, 2001, p.428-429)

Tronca, em seu livro “Transdisciplinaridade em Edgar Morin” (2006), coloca que

o pensamento simplificador desejou ser superior ao pensamento ingênuo,

complexo naturalmente, eliminando a contradição, tornando a realidade

fragmentada. O pensamento simplificador julga obedecer à lógica e o

pensamento complexo pensa em conjunto com as realidades dialógico-

polilógicas entrelaçadas, parte dos fenômenos simultaneamente

complementares, concorrentes, antagônicos e enfrenta as contradições por

vias lógicas.

Num primeiro momento, a complexidade apresenta-se como regressão, perda,

confusão, dificuldade, já que o caminho do pensar complexo lida com o

aleatório e difícil, mas somente a complexidade permite avançar no que é

incerto e aleatório. “A complexidade não tem metodologia, mas pode ter o seu

método.” (Morin, 2001, p.190).

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O método da complexidade pede para pensarmos nos conceitos, sem

nunca dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas,

para restabelecermos as articulações entre o que foi separado, para

tentarmos compreender a multidimensionalidade, para pensarmos na

singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca

esquecermos as totalidades integradoras. É a concentração na direção

do saber total, e, ao mesmo tempo, é a consciência antagonista... A

totalidade é, ao mesmo tempo, verdade e não verdade, e a

complexidade é isso: A JUNÇÃO DE CONCEITOS QUE LUTAM

ENTRE SI. (Morin, 2001, p.192)

Na visão transdisciplinar, aproximar-se de uma possível compreensão parece

ser mais importante e viável do que determinar uma compreensão. Para além

disso, a compreensão admite possibilidades de não-compreensão

conjuntamente, estando os verbos aproximar-se, transpassar, dialogar, ativos e

presentes na visão transdisciplinar e no pensamento complexo.

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Paralelos entre Filosofia Clínica e transdisciplinaridade

Os paralelos aqui pretendidos se iniciarão com o conceito transdisciplinar da

“Carta da Transdisciplinaridade” - produzida pela UNESCO, com fundamental

colaboração do CIRET (Centre International de Recherches et Etudes

Transdisciplinaires), em 1994 -, bem como com o instrumental teórico e prático

da Filosofia Clínica. A definição do conceito pela “Carta da

Transdisciplinaridade” se desdobra em 14 artigos a serem trabalhados em

relação ao corpo da clínica filosófica:

Artigo 1

Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de

dissolvê-lo no meio de estruturas formais, sejam quais forem, é incompatível

com a visão transdisciplinar.

Paralelo

Num primeiro momento deve-se questionar se já foi possível reduzir ou

dissolver o ser humano a algo, pois tal pretensão pode ter sido apenas

imaginada alcançada, mas de fato, dificilmente compreendida, realizada,

supostamente nublada, pálida, fragmentada. Este primeiro artigo está em plena

concordância com os preceitos preconizados pela Filosofia Clínica, pois esta

trabalha, sobretudo, com e para a visão singular, defendendo definições, além

de plurais, únicas para os seres (e viveres) humanos. Quanto à capacidade de

dissolvê-los em meio a estruturas formais, tal modo de clínica se utiliza de uma

estrutura formal, através dos tópicos presentes nos Exames Categoriais,

Estrutura de Pensamento e Tábua de Submodos, mas sempre buscando

permitir o “aflorar” desse ser, tanto no que se refere ao seu auto-conhecimento

como para torná-lo possível ao filósofo clínico trabalhar em direção a esse

afloramento. Assim, o instrumental formal ou lógico da Filosofia Clínica jamais

compactua com a visão de dissolução ou negação de alguma forma, pelo

contrário, busca permitir a “manifestação” ou expressão de cada modo

humano. Mas como isso ocorre em clínica? Um pouco do funcionamento do

trabalho em clínica será aqui exposto.

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Em primeiro lugar, a Filosofia Clínica, contrariamente às tentativas de redução

ou dissolução do ser humano, tem como pré-juízo a defesa de que o processo

clínico seja realizado com quem se proponha ao trabalho, recebendo o nome

de partilhante a pessoa que busca a Filosofia como clínica, a Filosofia Clínica.

Quem busca tem alguma questão que incomoda ou deseja ser trabalhada. Esta

questão é levada à clínica e, a partir daí, o trabalho pode ser iniciado.

Após conversa inicial e estabelecimento da interseção entre partilhante e

filósofo clínico, há solicitação de preenchimento da ficha clínica com os dados

pessoais do partilhante, a fim de consentir o trabalho clínico, junto de um termo

de esclarecimento. Nesse momento também se tem a intenção de saber se o

partilhante está/ esteve em acompanhamento psiquiátrico ou neurológico,

devendo informar ao filósofo sobre a necessidade de um trabalho

interdisciplinar, entrando em contato com o médico responsável.

No momento seguinte, diante do respeito e importância que a história de cada

um tem na construção vivencial, inicia-se a coleta do histórico do partilhante,

contado por ele solicitadamente de forma cronológica. Esse histórico alimenta

os três pilares da filosofia clínica, a saber: Exames Categoriais, Estrutura de

Pensamento e Submodos. Mesmo que tal história possa ser inventada,

parcialmente contada, distorcida, ainda assim, os dados “faltantes” o são a

partir de referenciais do partilhante, estando em, pode-se considerar, conexão

com sua Estrutura de Pensamento. Além disso, na medida em que a

Interseção se estabelece e que os outros procedimentos clínicos são

efetivados, novos dados surgem, outros são corrigidos no sentido de

esclarecimento dos significados de textos e contextos do partilhante.

Durante essa coleta, o filósofo clínico limita-se a interferências mínimas,

apenas permitindo a interseção para continuidade ou retomada da história. É

necessário suspender os pré-juízos, a fim de evitar distorções, interpretações

equivocadas e/ou mal entendidos. A postura de escuta deve ser atenta,

buscando sempre contextualizar os dados e lê-los a partir do instrumental

clínico-filosófico.

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O próximo passo seria a Divisão da história, a ser contada por partes, quando

aparecem mais dados, devendo ser repetido tal procedimento até que não

surjam mais dados novos. Após a Divisão começa a fase dos Enraizamentos,

tratando-se de um processo epistemológico para pesquisar o conteúdo de

termos, estabelecer relações, testar hipóteses clínicas. Nesse momento são

feitas perguntas específicas sobre dados colhidos no histórico do partilhante.

O filósofo clínico sempre observará os três eixos fundamentais e os atualizará

a cada consulta. Com dados suficientes para compreender o universo do

partilhante: modo de ser, em constante movimento, portanto, sempre em

atualização; maneiras de responder às situações; localização do Assunto

Último, a questão a ser trabalhada em clínica; o filósofo clínico preparará um

Planejamento Clínico com possíveis maneiras de auxiliar o partilhante.

Pelo fato dos procedimentos em filosofia clínica serem flexíveis e adaptáveis às

necessidades de cada partilhante, não existem procedimentos clínicos pré-

determinados, aplicados indistintamente ou a determinados tipos. Diante de

uma lista de 32 Submodos há possibilidades, quando mesclados, de originar

muitos outros. Logo, há possibilidades, permitindo que os procedimentos sejam

exclusivos de/para cada partilhante. Cada partilhante é um universo, um novo

modo que necessitará de seus próprios procedimentos, criados para atender às

suas necessidades.

De volta ao Artigo 1, tentativas de reduzir o ser humano a uma definição não

compactuam com os pré-juízos da Filosofia Clínica que não têm como

possibilidades definir tal ser como de uma só maneira, somente de diversas.

Artigo 2

O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por

lógicas diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar. Toda tentativa de

reduzir a realidade a um só nível, regido por uma lógica única, não se situa no

campo da transdisciplinaridade.

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Paralelo

O artigo 2 continua com a indicação de que o uso de uma só lógica ou de

redução da realidade a um só nível não seja possível, nem desejável na visão

transdisciplinar. A Filosofia Clínica não pode nem trabalha somente com um

tipo de lógica, aceitando tanto a lógica clássica como as não clássicas. Pode-

se citar a lógica paraconsistente que aceita a contradição, sendo tal palavra –

contradição – especial no tema em questão, pois considerando o trabalho

clínico, a noção de contradição é totalmente incorporada e sob a ótica do

pensamento complexo, em que momento e de que ponto de vista se

estabelece algo como contraditório? Talvez o que se possa admitir

considerando os contextos respectivos é que possa haver um estado

contraditório, mesmo assim, por quem, sobre quem, de quem, quando e de que

forma. Logo, a qualificação “contraditório” aparece nesse cenário complexo de

maneira participante, compactuando com a criatividade e caos já mencionados.

A contradição, então, se torna familiar, presente, freqüente, embutindo tanto no

cenário como nas maneiras de encenação novas possibilidades de cenas e

atuações, já que outros tipos de lógica são admitidos e há tentativa de entender

a ausência de paradigmas ou de paradigmas desafiadores.

Tanto a transdisciplinaridade como a Filosofia Clínica pressupõem

possibilidades de existência não previamente determinadas, não trabalhando a

Filosofia Clínica com parâmetros de normalidade ou idéias de cura tampouco

doença. A Filosofia Clínica busca o bem estar subjetivo do partilhante, único.

A(s) lógica(s) deve(m) respeitar esse preceito.

Cabe ressalvar que tal princípio assumido de não parâmetros de normalidade

de modo algum nega ou se contrapõe aos trabalhos psiquiátricos que

consideram os sintomas, mas desconhecem as causas respectivas de

determinado comportamento que pode retirar em parte ou mais do que isso a

liberdade de um indivíduo em seu cotidiano, considerando tarefas coletivas,

rotineiras, mundanas ou sociais, como será melhor exposto no paralelo

seguinte.

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Artigo 3

A transdisciplinaridade é complementar à abordagem disciplinar; ela faz

emergir novos dados a partir da confrontação das disciplinas que os articulam

entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza da realidade. A

transdisciplinaridade não procura a mestria de várias disciplinas, mas a

abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa.

Paralelo

Essa união de forças, humildade diante do pretenso “dar conta de algo”, sendo

que, nesse caso, esse algo é humano (e o que é ser humano?), faz parte da

visão da Filosofia Clínica, que se utiliza de diversos olhares, pensares,

organizações e pertinências distintos, mas sempre libertos de algo que os

feche, se relacionando com o perspectivismo, com o movimento e com a

plasticidade.

Como ilustração do artigo 3, bem como já iniciado no paralelo anterior, vale

colocar que, considerando as patologias, a saber: neuroses, psicoses e

psicopatias -, são percebidas somente pelos sintomas que produzem, não

sendo conhecidas suas causas ou origens. Tais sintomas variam em

intensidade e freqüência, sendo que a psiquiatria determina algum como

patológico de acordo com a intensidade e freqüência com que aparece. Se a

intensidade e freqüência de um sintoma são altas, é possível que haja perda de

liberdade por parte da pessoa afetada pelo mesmo, podendo atingir sua

movimentação ou liberdade de ir e vir, considerando os parâmetros de

aceitação/ não aceitação de indivíduos, grupos, entidades, instituições

consideradas normais ou ainda, “normóticas”, quando não apresentam

sintomas classificados como patológicos. O trabalho psiquiátrico considera

origens orgânicas para alguns sintomas e, nestes casos, o uso de

medicamentos pode ser plenamente cabível. Esta é uma ilustração do

caminhar transdisciplinar da Filosofia Clínica, pois acolhe a visão psiquiátrica,

se beneficiando dela, ou melhor, beneficiando o partilhante que se aproxima do

trabalho clínico-filosófico, uma vez que os canais de comunicação e de troca

entre áreas estão ativos.

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Artigo 4

A pedra angular da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e

operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma

racionalidade aberta a um novo olhar sobre a relatividade das noções de

"definição" e de "objetividade". O formalismo excessivo, a rigidez das

definições e a absolutização da objetividade, incluindo-se a exclusão do sujeito,

conduzem ao empobrecimento.

Paralelo

A consideração da abertura é clara no artigo 4, penetrando as noções acerca

da racionalidade, objetividade e definição. Há clara distinção do pensamento

determinista que se diz capaz de acertar, alcançar ou determinar a causa e a

razão dos eventos. Vale citar o artigo de Michel Paty (Caderno Mais nº 5, 7,

2007) sobre o trabalho de Newton da Costa e a noção de “quase verdade”,

presente no livro “O conhecimento científico” (Costa, 1999), no qual este

filósofo situa o problema da ciência como conhecimento, sendo levantadas

relações com a questão da verdade - questão filosófica fundamental e antiga -,

nas diversas acepções da palavra: estrutura teórica, axiomatização, progresso

e continuidade em ciência, entre outras. Costa questiona também dois tipos de

ciências: as chamadas formais (lógica e matemática) e as denominadas

“empíricas”, sobretudo, do mundo da física, cujas teorias são, porém, as mais

matematizadas das ciências da natureza. Diante destas duas ciências e suas

formas, o autor discorre sobre essa questão da verdade, desenvolvendo sua

noção original de "quase-verdade". Apoiando-se nestas análises, ele discute de

forma esclarecedora sobre a racionalidade científica. Paty ressalta que esse

método “filosófico-científico" de Newton da Costa demonstrou fecundidade em

assuntos meta-teóricos. A noção de "quase verdade", por ele chamada

também de "verdade pragmática", corresponde ao tipo de verdade, em

princípio provisória, que os cientistas admitem na sua prática cotidiana. O

conceito de “quase verdade”, como maneira de designar com precisão lógica a

idéia de verdade aproximada vivida pelos cientistas, parece balizar certas

questões não trabalhadas pela filosofia do conhecimento, possibilitando uma

análise mais precisa da racionalidade nesse campo, sendo esta mesma

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considerada como uma lógica diferente da clássica, sendo multidedutiva ou

paraconsistente, admitindo contradições e inconsistências.

Newton da Costa em seu trabalho mostrou aos matemáticos que não é preciso

recear as contradições, pois descobriu como estender a lógica clássica de

modo a obter sistemas formais, ditos paraconsistentes, nos quais a existência

de proposições contraditórias não conduz à trivialização do sistema. O autor

assim, não destrói a lógica clássica, considerada por ele, ao contrário, “mãe de

todas as lógicas”, mas mostra que ela se aplica a um domínio definido e

limitado da matemática. O fio condutor dos trabalhos de Newton da Costa se

relaciona com a imaginação que leva à descoberta, à invenção, aos universos

matemáticos novos, desconhecidos até então.

O conceito de “quase verdade” ou verdade parcial compactua tanto com a

visão da Filosofia Clínica que trabalha no sentido de aproximação de um

conhecimento do partilhante, como com o preceito presente no Artigo 4 da

Carta da Transdisciplinaridade, trazendo outro olhar sobre a relatividade das

noções de “definição” e de “objetividade”.

Artigo 5

A visão transdisciplinar é completamente aberta, pois, ela ultrapassa o domínio

das ciências exatas pelo seu diálogo e sua reconciliação não somente com as

ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a

experiência interior.

Paralelo

A Filosofia Clínica não trabalha apenas com uma linguagem, mas com o que

denomina como dados de semiose, que dizem respeito aos signos ou sinais

usados e entendidos como utilizados para dar sentido ao que se quer

comunicar. Desta forma, a linguagem verbal é uma das formas de expressar ou

estabelecer essa aproximação, podendo se dar através de poesia, música,

imagens (desenhos, fotografias...), textos de todos os tipos são aceitos como

material trocado a ser partilhado em clínica. Os dados de semiose são os

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termos usados para dar vazão aos conceitos presentes na Estrutura de

Pensamento do partilhante, sendo vastos. É possível, por exemplo, que se

obtenha dados do partilhante através de músicas trazidas para a clínica que

podem estimular a compreensão ou surgimento de novos dados, como

exemplo, emoções, pré-juízos ou formas que o partilhante se vê/via,

sente/sentia em determinado período de sua vida. Não há um caminho, uma

linguagem eleita a ser trazida para a clínica, mas a necessidade de observar

qual delas parece ser a mais participante ou integrante/integradora da Estrutura

de Pensamento, qual consegue ser mais íntima ou tradutora do que se quer

transmitir.

Artigo 6

Em relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a

transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional. Leva em

consideração, simultaneamente, as concepções do tempo e da história. A

transdisciplinaridade não exclui a existência de um horizonte transistórico.

Paralelo

A Filosofia Clínica tem como ponto de partida a história do partilhante,

indispensável à clínica. É a partir e somente da história completa do partilhante,

segundo sua própria representação, que a clínica pode continuar. Dessa forma,

a não exclusão da existência de um horizonte transistórico é presente também

no corpo da Filosofia Clínica. Tal consideração é no mínimo sensata, pois já

que a totalidade orgânica é sempre campo dos princípios da

transdisciplinaridade, a história do partilhante compõe esse todo, sendo parte

possivelmente integradora do mesmo. Não há certezas, mas aproximações e

distanciamentos. Como fundamenta Schopenhauer, toda experiência é o

conhecimento do fenômeno e não a coisa em si. Assim, em clínica se trabalha

com possibilidades, não com certezas, havendo a chance de falhar, pois as

próprias representações do partilhante, mesmo que utilizadas pela clínica, não

acessam a coisa em si, somente o fenômeno, podendo, logo, tal conhecimento

ser aproximando, não certo, indeterminado ou mutável. Mesmo quando há

construção dos Exames Categoriais e Estrutura de Pensamento de uma

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pessoa, se constrói uma representação do que inicialmente é representado

pelo partilhante, logo, uma representação da representação, algo por si só já

aproximado, pois se lida com o discurso do partilhante, sendo o conhecimento

adquirido sempre parcial.

Artigo 7

A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova religião, nem uma nova

filosofia, nem uma nova metafísica, nem uma ciência da ciência.

Paralelo

A Filosofia Clínica não se pretende uma nova filosofia, pois não crê que a

filosofia possa ser nova ou velha, já que um exercício, uma atitude, um

movimento não recebe primariamente essa idéia de novidade. Antes abarca a

atitude filosófica e dela se utiliza em sua formação, corpo e proposta, a qual

não se posiciona de forma a minimizar ou se contrapor a algo, mas antes a

pensar sobre esse algo, assim, não se coloca como um novo caminho, mas

como continuação do caminho em certa medida ou direção.

Artigo 8

A dignidade do ser humano também é de ordem cósmica e planetária. O

aparecimento do ser humano na Terra é uma das etapas da história do

universo. O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da

transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade; mas

com o título de habitante da Terra, ele é ao mesmo tempo um ser

transnacional. O reconhecimento, pelo direito internacional, dessa dupla

condição - pertencer a uma nação e a Terra - constitui um dos objetivos da

pesquisa transdisciplinar.

Paralelo

Viver em uma cidade pode ser menos complexo do que viver num globo, no

caso, o terrestre. Do ponto de vista do artigo 8, os limites não são apenas

municipais, estaduais ou federais, mas extra-globais. A ordem cosmológica é

22

planetária. O ser humano respira, sempre respirou, nesse ambiente sem

fronteiras, estelar. Não só a visão, mas a existência extrapola limites

geográficos que repercutem em não-limites. Cruzando singularidade com esse

território vasto, as possibilidades se multiplicam, confirmam a incerteza das

hipóteses e reafirmam o terreno das aproximações, já que não alcançamos

todos os territórios e não sabemos se, caso houvesse esse alcance, garantiria

algum tipo de certeza. E se sim, se tal certeza seria pra quem, quando, em que

ou quais contextos. O ambiente se amplia, dentro e fora do ser, havendo atuais

considerações acerca do que é esse próprio ser (ou onde/quando ele começa),

bem como quais são os tempos/espaços de uma “era instantânea”. Assumem-

se as incertezas, as fragilidades, as intemperanças. A contradição é parte,

portanto, sob essa ótica, será contraditória? Não deve ser revisitada,

repensada, redefinida? Uma vez que o que parece ser coerente ou estrutural

seria a própria contradição. O que seria então a contradição nesse universo?

Deve haver necessidade dessa ação/reação e de muitos re-pensares,

reconsiderações, atualizados olhares reconsideráveis formando o terreno das

incertezas e das possibilidades. É condição viver desse/nesse complexo.

Os Exames Categorias em Filosofia Clínica são fundamentais e eficientes para

a localização existencial da pessoa. A Circunstância, como um deles, se

propõe a olhar o entorno, tudo que está em volta do partilhante. Já o Lugar visa

se aproximar do lugar existencial, o todo do partilhante (corpo e mente), ou

como ele se sente nos ambientes. Ambos, relacionados, permitem que sejam

levantados os seres e viveres de uma sociedade contemporânea que abarca

desordens, rupturas, crises, relacionando-se com fragmentação. A importância

de se relacionar com o todo deste partilhante considerando uma proposta

terapêutica é clara, mas quando se considera o contexto de um planeta

“desintegrado”, ela aumenta.

O tópico Análise de Estrutura parte de uma análise do todo para as partes,

visando se relacionar com a estrutura macro do sujeito. É um tópico da

Estrutura de Pensamento que se aproxima desse sujeito eventualmente

transnacional, mas sem dúvida, transpassado pelos contextos de um mundo

com poucas fronteiras geográficas, mesmo que com nítidas sócio-econômicas,

23

produzindo infinitas possibilidades de acesso, ao menos quanto ao enxergar

territórios antes nem vistos.

Artigo 9

A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos, às

religiões e temas afins, num espírito transdisciplinar.

Paralelo

A atitude aberta da transdisciplinaridade está presente também na teoria e

prática da clínica filosófica, sendo um dos requisitos para o filósofo clínico

realizar seu trabalho exatamente uma atitude de abertura para o mundo,

fundamentalmente do partilhante, o qual pode estar composto de crenças

religiosas particulares, bem como temas afins bastante peculiares. O

recebimento desses temas pelo filósofo clínico ocorre por haver abertura

também à transdisciplinaridade.

Um dos tópicos da Estrutura de Pensamento é o Tópico Singularidade

Existencial, “previsto”, considerado e aplicado pela Filosofia Clínica, sendo

capaz de legitimar não só a defesa da singularidade pela Filosofia Clínica como

mostrar, também através dele, o respeito por ela. Tal tópico trabalha com o que

não é mapeável, mensurável e/ou nomeável, tendo imensa consideração às

individualidades/ particularidades humanas, já que não é porque um

“fenômeno” não seja aceito, conhecido ou nomeado pela ciência que não exista

e, desta forma, não componha o quadro de existência, de ação do partilhante.

Artigo 10

Inexiste laço cultural privilegiado a partir do qual se possam julgar as outras

culturas. O enfoque transdisciplinar é, ele próprio, transcultural.

Paralelo

O artigo 10 confirma, através da ênfase dada à própria palavra

transdisciplinaridade, que não considera hierarquias culturais, mas transversais

24

nesses laços. Tal postura, de abertura, aceitação e relação, compactua com a

visão Clínica da Filosofia, não podendo ser diferente, pois na consideração do

todo (ou totalidade orgânica), mesmo que esse não possa ser abarcado, é

pressuposto e nesse pressuposto só pode se tornar ao menos “aproximado”

diante de abertura e não eleição de um referencial orientador de sentido a

priori. Não há hierarquias ou privilégios no pensamento transdisiciplinar e nem

clínico filosófico, mas antes, relações que produzem mesclas, tons, gradações,

trocas, mas também choques e negações.

Muitos tópicos da Estrutura de Pensamento, bem como dos Exames

Categoriais podem dizer acerca da presença cultural no indivíduo, mesclados

ou individualmente. No entanto, dois tópicos podem servir diretamente a essa

“captura” de culturalidade, pertencente à Estrutura de Pensamento do

indivíduo: um deles o tópico Como o mundo parece (fenomenologicamente) –

que vai mostrar a forma como a pessoa vê o mundo, sua própria visão de

mundo e o tópico Circunstância, dos Exames Categoriais, que trás o olhar do

indivíduo para (e no) seu entorno.

Artigo 11

Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento.

Ela deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação

transdisciplinar reavalia o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e

do corpo na transmissão do conhecimento.

Paralelo

Já que não há uma única estrutura formal, uma única lógica, o artigo 11

mostra-se disposto para as formas “não científicas” – intuição, imaginação,

sensibilidade, “inteligência” corporal –, as reavaliando como partícipes do

processo, no caso, educativo. A visão transdisciplinar se volta para o humano,

o todo humano, e nesse universo há formas não mensuráveis ou prováveis até.

Nessa tentativa de considerar, respeitar esse conjunto de limites não fixos nem

permanentes, a Filosofia Clínica dá fundamental importância para o contexto,

buscando na história do partilhante as bases iniciais do trabalho em clínica. E

25

nesse(s) contexto(s), nessa(s) história(s) as formas de expressão são variadas

e particulares, podem ser, havendo os dados de semiose do partilhante que

vão permitir a expressão das formas e conteúdos de maneiras mais

aproximadas ou legítimas. O respeito à intuição, ao imaginário, à sensibilidade

e até mesmo ao corpo na transmissão desse conhecimento ou dessa forma de

existir, existe. Quanto ao filósofo clínico, sua intuição, sensibilidade,

imaginação e percepções corporais também podem auxiliar no processo

clínico, sem, no entanto, interferir nas expressões do partilhante, que será

quem dará as cores, formatos, concepções de suas próprias medidas.

O instrumental da Filosofia Clínica pode ser bastante relacionado aos paralelos

feitos. O tópico Lugar dos Exames Categoriais permite aproximação do lugar

existencial ou como são sentidos os ambientes, as relações, sendo uma base

de percepção, por sua vez, para o tópico Semiose da Estrutura de Pensamento

que é utilizado para dar sentido ao que se quer comunicar; bem como para o

tópico Expressividade que diz respeito ao quanto e como a pessoa expressa o

que vem nela/dela. Contudo, o tópico Epistemologia - modo de conhecer – se

relaciona de maneira próxima com a questão do ensino/aprendizado, sendo os

preceitos da transdisciplinaridade de abertura, mas também do

desenvolvimento de como contextualizar, concretizar e globalizar. Esse tópico

se relaciona com a forma como o conhecimento é construído pela pessoa,

como ocorre a construção do significado dos termos e conceitos que utiliza,

não havendo regras para essas formas, havendo quem prefira ler ou observar,

ou quem escolha vivenciar e porque não ambos?

Pensando em Submodos, que já são os procedimentos clínicos formais a

serem utilizados ou os que já são informalmente utilizados pelo partilhante em

sua vida, três deles podem balizar os paralelos aqui propostos. Um deles, o

submodo Esteticidade seletiva que se relaciona com a forma de expressão

eleita como ideal para determinada demanda da Estrutura de Pensamento.

Também, o submodo Tradução que consiste na transposição de um dado de

semiose para outro, como da escrita para a composição de uma música, ou da

música para a fala, e assim por diante. Por fim, o submodo Expressividade que

busca avaliar e possivelmente modificar a própria Expressividade enquanto

26

tópico. E como esse tópico trata do quanto a pessoa mostra a si mesma ao

outro e como faz isso, a relação enquanto submodo com uma educação

autêntica que deve ensinar a contextualizar, concretizar e a globalizar,

impactaria provavelmente o tópico.

Artigo 12

A elaboração de uma economia transdisciplinar é fundamentada no postulado

segundo o qual a economia deve estar a serviço do ser humano e não o

inverso.

Paralelo

O artigo 12 reforça a visão transdisciplinar na busca de celebração do ser

humano, colocando-o como referência e não defendendo sua submissão a

temas, áreas ou coisas. Parece haver uma crítica aos moldes contemporâneos

de consumo ditados por “leis” de mercado ou por uma “lógica mercadológica”

que expõe regras das relações entre os indivíduos, submetendo assim, todos a

uma, não mais política, mas econômica ditadura. Tais “leis” colocam bens

materiais na frente de “bens” humanos. E quais seriam esses “bens” humanos

diante de seres a serviço da economia? Com relação a esse Artigo, o paralelo

entre Filosofia Clínica e Transdisciplinaridade será estabelecido de forma

diferente da que vem sendo feita até aqui, pois este Artigo parece versar mais

sobre um contexto atual, o qual está presente na sociedade contemporânea,

podendo ser estabelecido aqui mais uma valorização do espaço em clínica

para um filosofar em torno de questões atuais, as quais podem causar uma

séria de desconfortos existenciais, bem como afastamentos, desvios ou

desentendimentos com relação às buscas pessoais. Diante de necessidades

de reposicionamentos, resgates ou repensares, como propõe o Artigo 12, o

espaço em clínica poderia oferecer condições para esse pensar/ repensar em

torno dessas questões e seus possíveis impactos na vida do partilhante,

visando um efeito organizador que permita com que ele se aproprie das suas

idéias e formas de existência. Nestas idas e vindas re-valorativas pode-se

aproximar da noção do que seja um bem para si e os meios para mantê-lo,

cuidá-lo, buscá-lo ou alcançá-lo. O bem-estar subjetivo é o objetivo da clínica

27

filosófica e mesmo que o aspecto econômico presente no Artigo 12 tenha aqui

sido extrapolado e relacionado às valorizações materiais que aparecem em

praticamente todas as instâncias da vida cotidiana, sabe-se que tal relação

permite e necessita de várias considerações mais específicas, profundas ou

cuidadosas e que aqui não são nem serão feitas. O que se quer ressaltar é que

o Artigo 12 em seu apontamento em relação a recuperar a dimensão original

do termo economia – deve estar a serviço do ser humano e não o contrário –

estimula conexões/ questões com o que parece reinar no mundo de hoje – uma

supervalorização do material em detrimento do não material, sendo, por

exemplo, as relações não de troca, mas as que poderiam ser chamadas

humanas simplesmente recebem uma conotação ou ligação com a troca

comumente. Mas se é complexo versar sobre o que seja ou não material (no

sentido de mercadoria da mercadologia) no mundo contemporâneo, também é

difícil conhecer o que poderia estar “embutido” como não material no possível

material, se é que possível. Contudo, se tal Artigo em seu preceito possibilitou

ligações vastas com temas não menos vastos, se sabe que não houve

aprofundamento aqui como já colocado, mas que diante da necessidade de

recuperar uma dimensão inicial de proposta do que seja, no caso, economia,

tal problemática invade a clínica também, já que hoje em dia tal instância

parece influenciar mais a vida rotineira dos indivíduos do que a própria política.

Buscando ao menos uma aproximação com algum paralelo, há um tópico em

Filosofia Clínica que trata dos valores, chama-se Axiologia (tópico 18). Tal

tópico trata dos valores do partilhante, quais, como são eles. Nesse caso, como

o paralelo aqui traçado considerou um valor da sociedade e não de um

indivíduo, será possível acompanhar como esse valor presente no coletivo

afetará de forma singular cada um e seus próprios valores, bem como se esses

valores têm predominância ou não na vida do partilhante.

Artigo 13

A ética transdisciplinar recusa toda e qualquer atitude que rejeite o diálogo e a

discussão, qualquer que seja a sua origem - de ordem ideológica, científica,

religiosa, econômica, política, filosófica. O saber compartilhado deve levar a

28

uma compreensão compartilhada, fundamentada no respeito absoluto às

alteridades unidas pela vida comum numa só e mesma Terra.

Paralelo

O movimento da clínica filosófica passa pelo diálogo, sendo o ponto inicial da

partilha. E mesmo que o diálogo possa se mostrar insuficiente ao longo do

tempo em termos de geração de dados é através dele e do método

compreensivo de Gadamer, como apresentado no livro “Questões

Fundamentais de Hermenêutica” (Coreth, 1973), que esse diálogo é recebido.

Tal método se dá na mediação entre sujeito objeto, alcançando o

conhecimento por meio dessa relação. A compreensão se localiza entre a

interpretação que privilegia a subjetividade e a explicação que pretende a

objetividade, estando a respeito à alteridade como condição fundamental para

qualquer tentativa de compreensão.

Artigo 14

Rigor, abertura e tolerância são as características fundamentais da visão

transdisciplinar. O rigor da argumentação que leva em conta todos os dados é

o agente protetor contra todos os possíveis desvios. A abertura pressupõe a

aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o

reconhecimento do direito a idéias e verdades diferentes das nossas.

Paralelo

Em consonância com o artigo 14, o rigor faz parte da filosofia, bem como da

Filosofia Clínica, que se utiliza de um instrumental em sua forma, rigoroso e

originado da própria filosofia. Além do rigor, uma atitude de abertura e

tolerância é necessária em clínica. A abertura precisa existir em ambas as

partes na Filosofia Clínica, tanto no filósofo clínico quanto no partilhante, sendo

impossível se colocar no lugar do outro, gerando daí tal necessidade. Essa

abertura significa ir além do que se é e desta forma, através do exercício desse

movimento, há mudança do que se é, ocorrendo alteração do/no horizonte do

“viajante”. Já a tolerância se direciona a compreensão do outro como legítimo,

em consonância com o respeito a sua alteridade como já mencionado. Vale

29

relacionar, contudo, que a tolerância é conseqüência de uma real atitude de

abertura, pois se há abertura verdadeira, a tolerância lhe é decorrente,

devendo ser eliminada a idéia ou prática de uma “tolerância tolerante”, no

sentido de exercitar tal tolerância sem compreensão da legitimidade do outro,

mas o tolerando através de uma prática oca ou apenas performática, já que

não necessariamente haverá concepção dele como legítimo, podendo-se tornar

uma atitude apenas superficial do que seria uma real tolerância, pois não

exercitada como conseqüência de uma real abertura e mesmo humildade

diante de um outro ou do que não se conhece, especialmente considerando

que o conhecimento não é possível ser absoluto.

Outro texto que contribui para os paralelos entre Filosofia Clínica e

transdisciplinaridade é o de Humberto Maturana, “Transdisciplinaridade e

Cognição”, elaborado no Primeiro Encontro Catalisador do CETRANS (Centro

de Educação Transdisciplinar) – Escola do Futuro – USP.

Maturana neste texto coloca que há uma congruência dinâmica entre as

estruturas dos sistemas vivos e suas circunstâncias, sendo este o resultado de

uma história de mudanças estruturais coerentes dos sistemas vivos e do meio

no qual eles existem. Diz que esta é a razão do porquê, se tomarmos um

sistema vivo, seja ele qual for, fora de seu tempo de coerência histórica, do

campo em que ele se encaixa, ele não se encaixará. Tal defesa está em

concordância com a matéria prima inicial da Filosofia Clínica que é a própria

coleta de dados através da historicidade, sendo possível deste ponto iniciar o

trabalho em clínica, visando enxergar, na medida do possível, contextos,

contornos, estruturas presentes na vida do indivíduo que se dispõe à clínica.

Há aproximação, assim, da estrutura do sistema do partilhante, bem como da

visão representativa de sua(s) circunstância(s).

O que Maturana defende é que há uma interação entre o ser e seu meio, como

coloca também Ortega y Gasset com relação “Eu sou eu e minha circunstância

e se não a salvo, não salvo a mim” (Ortega Y Gasset, José. Meditações do

Quixote, 1987). Maturana prossegue dizendo que a história é transformação ao

redor de algo que é conservado. Se nada é conservado, não há história. Sendo

30

assim, o que há de mais importante na mudança seria a conservação, pois o

que conservamos abre espaço para o que podemos mudar. Assim, história

significa transformação ao redor da conservação, de vivência e de coerência

com o meio.

A consideração da transformação pressupõe movimento. A Filosofia Clínica é

heraclítica, no sentido de partir do princípio de que tudo se movimenta, tendo

em vista a máxima de Heráclito - “Panta rhei” –, de que tudo flui. Com o tempo

de clínica, ao longo dos meses, dias e até mesmo dos minutos em clínica, os

relatos do partilhante podem ser entendidos ou compreendidos por ele mesmo

de formas diferentes, à medida que se prossegue. Ou seja, as próprias

definições acerca de si mesmo, auto-alcançadas, podem ser alteradas ou

transformadas diante de acontecimentos provocados pelo ou no meio que se

vive, convive e, até mesmo, relembra.

Tanto a Filosofia Clínica como a transdisciplinaridade se propõem ao amplo. A

primeira é uma prática humana que se propõe ao auxílio de outro ser humano,

mais propriamente ao bem estar subjetivo deste. E a transdisciplinaridade é a

disciplina que se encarrega não só de fazer pontes para outras disciplinas, mas

se tornando essa própria nova disciplina, complexa e transversal.

Humberto Maturana prossegue dizendo que o viver humano acontece na

relação, e o que acontece na relação tem conseqüências na corporalidade, e o

que acontece na corporalidade tem por sua vez conseqüências na relação.

Assim, a história do ser humano, novamente, é uma história de transformação.

Prossegue apontando que o que diferencia o ser humano dos outros seres é a

sua capacidade de linguagem, estando a maior parte do tempo imerso nela.

Defende que, diante dessa imersão muitas vezes, não é possível ver o que se

faz porque o fazer obscurece o fazendo, sendo necessário para observar o

fazendo um distanciamento do mesmo, sendo isso difícil de ser alcançado.

Pelo fato da clínica filosófica propiciar algum tipo de interseção, seja ele bom,

ruim ou variante, bem como ser permeada pela linguagem, seja escrita, falada

e/ou esteticamente expressa e até, e não menos significativa/ significante,

silenciosa, cabe relacionar os propostos de Maturana sobre o viver humano e

31

suas relações, bem como suas conseqüências na corporalidade junto de sua

capacidade de linguagem. Todo esse composto se apresenta em clínica e de

certa maneira acontece, podendo até se transformar na clínica. A atenção aqui

é para o que é trazido (adentrado) e de certa forma revivido, imaginado ou até

transformado no tempo/espaço clínico. E se a história do ser humano é uma

história de transformação já por si só, o ambiente clínico em seus cuidados

com a escuta do outro, no mínimo visando não impor a esse outro o que não

lhe pertence, leva a um tipo de transformação que parece única, ao menos

especial, considerando todos os espaços/tempos penetrados durante a

existência. Essa especialidade, mais rara, pode levar a um tipo de

transformação (trans-formação/ formação-trans) individualizante no sentido de

apropriação dos próprios movimentos e naturezas de desejo presentes em si e

por si. Tal percepção pode ser considerada já transformativa de uma condição

em outra e considerando o exercício da Filosofia Clínica como um tempo/

espaço para a terapêutica, tendo como centro a pessoa e o respeito à sua

singularidade, bem como disposição para o pensar de suas questões, esse

trabalho pode levar a um tipo de formação/ transformação do indivíduo,

basicamente e também complexamente, em seu próprio conhecimento ou

aproximação de seus movimentos ou naturezas dos mesmos, através da auto-

escuta propiciada. Assim, há auxílio na aproximação da visão do nosso

fazendo através do contar (e do ouvir) a própria história, devendo haver

permissão para a complexidade, a contradição, de acordo com a visão

transdisciplinar, pois se não é possível acesso ao todo e as aproximações do

que se quer conhecer são desejadas, não se pode desconsiderar o aparente

ou intrinsecamente contraditório, complexo ou caótico.

Cabe citar a colocação de Maturana acerca da linguagem nunca ser trivial, pois

seja lá o que se faça nada pode ser considerado trivial do ponto de vista da

complexidade, sendo qualquer fazer e dizer capaz de transformar o presente.

Menciona a contínua congruência das transformações coerentes dos sistemas,

determinadas pelas estruturas que estão interagindo umas com as outras

recorrentemente e, então, recursivamente. Essa complexidade pretendida e

considerada está fortemente relacionada com a idéia de aproximação do que

possa ser/acontecer no mundo do partilhante. E se há complexidade em cada

32

organismo, como dar conta do todo orgânico? Somente por aproximação ou ao

menos se utilizando de uma visão transdisciplinar, complexa.

Maturana continua dirigindo-se ao amor como pertencente ao campo do

comportamento relacional, definindo todos os comportamentos como

relacionais, mas enfatizando a dinâmica do relacional como essencial em todos

os casos em que se considera a emoção humana tão relacionada por sua vez

a tantos fatores - orgânicos, existenciais, morais, casuais/ eventuais. Sobre

isso diz que os comportamentos são abstratos, sendo relações, mas estas

geram conseqüências na concretude do corpo, complementarmente, as

emoções especificam como você está no campo relacional, como está em sua

corporalidade, como está em sua atitude e como também em sua impaciência,

neste campo do comportamento relacional, através do qual o outro ou você

mesmo surge como um legítimo outro em coexistência com você. Em suas

palavras, o que eu faço é o que faz com que o outro seja, surja como um

legítimo outro. Por outro lado, a agressão estaria no campo do comportamento

relacional através do qual se nega o outro, ou você é negado como o outro

legítimo em coexistência com você. O amor permite e a agressão nega em

relação a nós mesmos e em relação à outra pessoa. Diante dos diferentes

significados que a palavra amor possui, vale ilustrar, a saber:

� Eros: enquanto amor erótico;

� Filia: o amor amigo, da palavra filosofia, amor à sabedoria, ou ainda,

referindo-se à afinidade, possível nas amizades e como interessante ilustração

seria a denominação hidrófilo que significa a molécula que tem afinidade com a

água;

� Ágape: o amor pleno, abrangendo os outros dois – Eros e Filia.

O trabalho em Filosofia Clínica se direciona para a idéia amorosa de acolher

esse outro no sentido de permitir que ele venha a ser legítimo e o mais próximo

possível do que possa representá-lo ao seu próprio olhar e percepção, desta

forma havendo uma atitude de acolhida, respeito e busca por sua forma

existencial, devendo ser tal atitude amorosa, mas não piegas.

33

No livro “Emoções e Linguagem na Educação e na Política” (Maturana, 2005),

Maturana desenvolve uma parte do livro que tem como título “As Emoções e

Interações Humanas: O Amor” (págs. 66 a 68). Vale destacar suas

considerações iniciais:

Para que haja história de interações recorrentes, tem que haver uma

emoção que constitua as condutas que resultam em interações

recorrentes. Se esta emoção não se dá, não há história de emoções

recorrentes, mas somente encontros casuais e separações (Maturana,

2005, pág. 66).

Complementa dizendo que a rejeição e o amor são duas emoções pré-verbais

que tornam o escrito acima possível. Porém, a rejeição constitui uma forma

relacional que nega o outro como legítimo outro na convivência e o amor

constitui a forma que aceita o outro como legítimo outro na convivência. Ainda

ressalva para o fato de que a rejeição e o amor não são opostos, pois a

ausência de um não leva ao outro, mas são opostos em suas conseqüências: a

rejeição nega, o amor constitui. Por fim, conclui que o amor é a emoção que

constitui as ações de aceitar o outro como um legítimo outro na convivência,

abrindo um espaço de interações recorrentes, no qual a presença do outro é

legítima, sem exigências. Nos preceitos da Filosofia Clínica estão o ter como

centro a pessoa e respeitar sua individualidade, análogos à ausência de

exigências “exigida” nas interações e defendida por Maturana no espaço de

interação com o outro.

Por fim, uma clínica só pode ser amorosa, pois o amor é a emoção que define

o domínio das ações em que se constituem as relações humanas, cotidianas e

por que não terapêuticas. A filosofia em seu princípio foi batizada com esse

estigma. Na concepção de Maturana o amor expande a visão, sendo esta a

única emoção capaz de expandi-la. A ambição, a competição e o medo a

restringem. E como seria possível ter visão de um mundo partilhado sem o

sentimento de amor ou abertura de real visão à legitimidade do outro? Tais

colocações de Maturana no texto “Transdisciplinaridade e Cognição” são muito

34

pertinentes aos paralelos aqui traçados, reafirmando as relações existentes

entre Filosofia Clínica e transdisciplinaridade.

35

Conclusões

As conclusões do presente trabalho se aproximam mais de reflexões do que

delimitações propriamente ditas, já que a natureza dos temas aqui tratados

antes de tudo se avizinha de uma visão contemporânea através de uma

tentativa de rearticular o olhar para a atualidade do indivíduo ou de sua época.

Ao se tratar de uma proposta clínica e filosófica não se deve partir de

pressupostos rígidos e fixos. Cabe para a compreensão dessa proposta

inicialmente, boa dose de abandono dos próprios pré-juízos, diante do

conhecimento socrático amplamente divulgado pelos tempos e espaços, de

que mesmo a história dos seres humanos tendo sido fortalecida por feitos e

conquistas, apropriadas ou inadvertidas, também se mostra igualmente forte o

desconforto com o que se pode chamar por terreno, ou sustentador/ base para

a eleição de princípios vitais. Até mesmo esse “poder chamar de” pode ser

questionado na visão transdisciplinar, uma vez que defende que não houve na

história da racionalidade humana, consideração pelo todo, pelo que se pode

chamar de totalidade. Antes de discorrer sobre as impossibilidades desse

abarcamento, cabe recorrer ao pressuposto transdisciplinar que parece criticar

o olhar humano como “iniciado” de forma a selecionar, retirar, clarificar,

distinguir, hierarquizar elementos e nestas operações, necessárias ao

entendimento, tornar o que se vê ou entende obscuro, não representativo. Ao

mesmo tempo que a natureza intelectiva parece fluir desta forma, há

paralelamente conhecimento de que não se conhece de fato por essa maneira,

parecendo surgir algo que se assemelhe a um “metaconhecimento”, capaz de

criticar o que possa ser entendido, pretendido ou eleito como conhecimento. Os

paralelos traçados neste trabalho compactuam duas áreas que ativam a, pode-

se dizer, humildade diante dos eventos. É interessante notar que o radical da

palavra humildade vem de húmus, matéria orgânica depositada no solo,

resultante de um processo de decomposição de organismos mortos.

Organismos são complexos e a humildade parece ser desenvolvida diante da

complexidade ou de situações complexas.

36

De qualquer modo, voltando para a impossibilidade de abarcar o todo, também

é insensato tentar não se relacionar com o complexo, muito mais eliminá-lo,

pois da mesma forma que não se consegue abarcá-lo, também não se pode

extingui-lo. Sendo assim, o caminhar deve ter orientação única, mas também

múltipla, indicando mudança para o significado do que possa ser orientador,

orientativo, passando a orientação, comumente associada a uma reta, ponto ou

seta, agora também se relacionar com a abertura, logo, além dessas formas,

outras simultaneamente podem conduzir, aparecer, existir nesse caminhar.

Talvez tal abertura necessite de companhias e pelo menos uma pode se

pensar como boa, “a melhor” quem sabe, a que respeite, permita e conviva

com a legitimidade de um outro, qualquer que seja este.

Não se pretende parecer ingênuo, mas de fato, conforme Morin preconiza, ser

complexamente ingênuo, posto que a própria complexidade é dificilmente

conceituada, por estar emergindo de um lado e, de outro, não deixar de ser

complexa. E nessas proximidades e aproximações é que se encontra o respirar

filosófico da clínica.

37

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