Integração e Desenvolvimento. As relações entre Brasil e Argentina (1822-2012) - Iuri Cavlak

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    Iuri CavlakProfessor Adjunto da Universidade Federal do Amap (UNIFAP)

    Doutor em Histria e Sociedade pela Universidade Estadual PaulistaJlio de Mesquita [email protected]

    RESUMO: A histria das relaes diplomticas entre Brasil e Argentina se caracterizou peladade aproximao distanciamento, com uma caracterstica singular: os maiores ganhos nageopoltica mundial tornaram-se possvel quando ambos tenderam para a unio. Refletir sobreessa assertiva, de um ponto de vista histrico, o objetivo deste artigo.

    PALAVRAS-CHAVE:Diplomacia, Integrao, Poltica.

    ABSTRACT: The history of diplomatic relations between Brazil and Argentina wascharacterized by the pair approach - distance, with a unique feature: the biggest gains ingeopolitics of world became possible when both tended to unity. Reflect on this statement, froma historical point of view, is the purpose of this article.

    KEYWORDS:Diplomacy, Integration, Politics.

    Introduo

    A histria das relaes entre Brasil e Argentina est umbilicalmente ligada questo da

    interao diplomtica. Diferentemente de outros pases lindeiros, os dois passaram por processos

    histricos semelhantes com permanente contato econmico e poltico. Ambos foram colnias de

    potncias ibricas e vivenciaram experincias de separao das respectivas metrpoles, sem que o

    carter semi-perifrico de suas economias frente ao mercado mundial tivesse sido questionado.

    Em 1930, muito por conta da crise que eclodiu ano antes na bolsa de Nova York, tiveram

    rupturas polticas significativas, abrindo um ciclo histrico que levaria industrializao e

    constituio de uma sociedade moderna. Brasil e Argentina passaram pela fase do nacional

    populismo, com Getulio Vargas e Juan Pern, e desenvolvimentismo, com Juscelino Kubitscheke Arturo Frondizi, at sofrerem intervenes militares nos anos 1960. No novo ciclo aberto a

    partir dos anos 1980, elegeram e reelegeram governos neoliberais, to significativos que relegaram

    suas respectivas agendas macroeconmicas para o perodo de Lula e Kirchner nos anos 2000.

    Outrossim, a balana de poder regional esteve sempre marcada pelo relacionamento

    dessas naes, por conta da disparidade estrutural sobre os demais pases sul-americanos.

    Durante o sculo XX, as economias brasileiras e argentinas tenderam para a complementao,

    com a primeira marcada por uma industrializao com o eixo nas indstrias pesadas e naexportao de produtos primrios de clima tropical, e a segunda na indstria leve e exportao de

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    alimentos de clima temperado. Parafraseando Richard Nixon, para onde Brasil e Argentina vo,

    a Amrica vai atrs1.

    Interessante notar que o movimento aproximao distanciamento esteve enfeixado

    pela competio econmica e militar conforme a correlao de foras predominantes

    historicamente. Entre 1822 e 1889, com o Brasil imperial e a Argentina fragmentada, o

    movimento ficou restrito entre alianas estratgicas do Estado brasileiro com provncias que

    iriam compor a Argentina atual (como na Guerra da Trplice Aliana, que evidenciou o interesse

    militar e contingencial da parceria). Na coincidncia dos regimes republicanos oligrquicos, de

    1889 a 1930, algumas tentativas de alianas polticas foram feitas, com destaque para o Pacto

    ABC (Argentina, Brasil e Chile) em 1914. Todavia, o fato de a economia argentina crescer muito

    mais que a brasileira obstou vnculos aprofundados, cenrio que se transformou entre 1930 e

    1960, quando a economia brasileira se emparelhou com a Argentina. Veremos que nesses anos

    vrios acordos, qui os mais importantes at aqui, foram executados.

    A partir de 1964 a economia brasileira deslanchou em relao aos platinos, cenrio

    relativizado com a recesso mundial dos anos de 1980 e a crise da dvida, que selou o estilo de

    industrializao que vinha sendo intentado at ento em ambos os pases. O neoliberalismo dos

    1990 sublinhou o carter perifrico dos mesmos, recolocando na ordem do dia a unio

    diplomtica, incontornvel se tivermos em vista qualquer possibilidade de ascenso de brasileirosou argentinos em direo s mais altas posies na economia de mercado.

    Historicizar toda essa relao e refletir sobre o momento atual so os objetivos que

    intentaremos realizar neste artigo.

    Os primrdios

    A idia de integrao no subcontinente vem de longa data: Artigas, San Martn,

    OHiggins, Bolvar, Sucre por mencionar solo a los ms notorios no admita otro concepto

    que el de la unidad subcontinental como forma de organizacin poltica2.

    Durante grande parte do sculo XIX, sem embargo, Brasil e Argentina se viram

    distantes por causa de regimes polticos distintos. Havia uma monarquia de cunho portugus, em

    territrio brasileiro, e a repblica ainda em formao, devedora da herana da colonizao

    espanhola, em territrio platino. O aparato estatal burocrtico, aps 1822, j estava instalado e

    1Em 7 de dezembro de 1971, na Casa Branca, recebendo o ditador brasileiro de ento, Emilio Garrastazu Mdici, o

    presidente dos Estados Unidos Richard Nixon pronunciou a clebre sentena: We know that as Brazil goes, so willgo the rest of that Latin American continent.2 PARADISO, Jose. Debates y Trayectorias de la Poltica Exterior Argentina. Buenos Aires: Grupo EditorLatinoamericano, 1993, p. 110.

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    em funcionamento no Brasil, enquanto a Argentina vivenciaria uma srie de guerras civis at

    constituir um territrio unificado.

    Aps o enfrentamento entre Brasil e Argentina em 1828, acordos foram estabelecidos

    entre o imprio e algumas provncias platinas, em sua maioria restritos aos aspectos militares, nos

    quais o elemento comercial esteve pouco presente. Aps a ajuda brasileira ao lder Justo Jos de

    Urquiza na derrubada de Rosas, o grande empreendimento conjunto ocorreu na ocasio da

    guerra contra o Paraguai, entre 1864 e 1870. Depois dela, no obstante, se tornara visvel a

    decadncia do Imprio, fruto de contnuos dficits na economia e do crescimento de

    movimentos organizados descontentes, como setores das foras armadas, o movimento

    abolicionista, as revoltas escravistas e o movimento republicano. O avano da revoluo

    industrial e das relaes salariais colocou na berlinda a escravido, outro ponto que iria selar a

    sorte da dinastia de D. Pedro II. Em 1880, quando o presidente da Argentina, Nicolas

    Avellaneda, federalizou a cidade de Buenos Aires transformada em capital do pas , ocorreu

    um enfraquecimento das revoltas internas, que, embora recorrentes, no tiveram fora para abalar

    o poder central.3 At 1930, a ordem constitucional conseguiu ser mantida atravs da forte

    represso aos levantes militares e outros movimentos de oposio. Dentro do arcabouo

    democrticorepresentativo, vrios governos se sucederam, logrando a manuteno do sistema

    poltico que, pressionado pela classe mdia e o movimento operrio, teve que se abrir para ainstituio do sufrgio masculino e secreto, fator de monta para a subida ao poder da Unio

    Cvica Radical (UCR) em 1916.

    No Brasil, um golpe militar deu cabo do moribundo imprio, instaurando o regime

    republicano em 1889. Depois de muitas dcadas, o expansionismo imperial brasileiro - portugus

    no poderia mais ser a alegao para que a Argentina mantivesse um permanente estado de

    desconfiana. Como no pas platino, o Brasil manteve uma estrutura de poder sem rupturas, at o

    significativo ano de 1930. Como l, a elite dirigente tambm se viu na contingncia de reprimirmovimentos autonomistas ou de contestao da ordem oligrquica, comeando com a Revoluo

    Federalista no extremo sul do pas (anos 1890), passando pelas greves operrias e os levantes

    militares de 1922, no Rio de Janeiro, e 1924, em So Paulo. Diferentemente da Argentina, no

    Brasil no houve uma abertura poltica para a participao mais ampla da sociedade, o que talvez

    explique o descompasso do processo de mudana ps-1930. Aqui, com a derrubada da Repblica

    Velha, alcanou o poder uma elite renovada, simptica a certas mudanas econmicas que se

    3 Nas presidncias de Bartolom Mitre (1862-1868) e Domingo Sarmiento (1868-1874), o Exrcito Nacional foiformado, possibilitando o desbaratar das montonerase das oposies federalistas, sustentadas pelas oligarquias ruraisdas outras provncias. Aps 1880, ainda duas revoltas poltico-militares foram vencidas pelo poder central, ocorridasem Buenos Aires (1890) e nas provncias de Crdoba, Mendoza, San Luis e Santa F (1893).

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    encaminhassem para a industrializao. Na Argentina, os primeiros anos aps a quebra das bolsas

    assinalaram o retorno ao comando do Estado de velhos polticos articulados aos interesses da

    agro-exportao. Interesses que, mesmo sendo acolhidos pela classe dirigente, disputaram espao

    com algumas diretrizes mais industrialistas e voltadas ao mercado interno.

    No perodo entre 1890 at o final da Repblica Velha e o golpe militar comandado por

    Uriburu, Brasil e Argentina participaram do mercado mundial de forma parecida. Eram

    exportadores de matrias-primas e alimentos e importadores de produtos manufaturados, sendo

    os argentinos especializados em carne, soja, couros e ls, e os brasileiros bastante dependentes da

    venda do caf. Assim, a Argentina produziu um desenvolvimento que ultrapassou em muito o

    desenvolvimento brasileiro, eliminando a desvantagem presente em quase todo o sculo XIX e

    desfrutando de grande superioridade. Mediante uma ligao especial com a Inglaterra, que

    comprava a maior parte de suas commodities, e, em troca, investia capitais e concedia emprstimos,

    a Argentina inseriu-se no sistema internacional de circulao de capital auferindo ganhos

    excelentes para sua economia, para os padres da poca. O PIB argentino, entre os anos de 1886

    e 1914, aumentou 15 vezes, gerando uma renda per capita que se multiplicou cinco vezes em

    apenas 30 anos, superando pases como a Sucia, Itlia e Espanha. O pas platino, no incio do

    sculo XX, respondia por 1/3 de todo o comrcio exterior da Amrica Latina.4

    Com a forte corrente imigratria europeia ocupando os espaos do territrio, seconstituiu um mercado interno que impulsionou a industrializao leve. Resultado do extermnio

    da populao nativa e da baixa utilizao da escravido negra, a excluso de setores sociais

    importantes do mercado consumidor foi menor em relao aos demais pases da regio. Na viso

    de Fausto e Devoto:

    Como a origem tnica era tambm uma barreira para a ascenso social, podemosinferir que havia na Argentina uma sociedade civil comparativamente mais extensa,maior igualitarismo social e maiores possibilidades de ascenso, j desde princpios do

    sculo XX.5Desse processo decorreu o crescimento da renda e o estabelecimento de uma pequena

    burguesia articulada aos servios e ao comrcio, com Buenos Aires rapidamente se tornando a

    mais moderna metrpole regional. A malha ferroviria argentina alcanou, em 1915, 33.709 km

    7.000 km a mais do que a brasileira, dinamizando a circulao de mercadorias e barateando os

    fretes. s vsperas da grande crise, em 1929, a indstria na Argentina j produzia 90% dos bens

    4BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: Da Trplice Aliana ao Mercosul (1970-2003). Rio de Janeiro:Ed. Revan, 2003, p. 632-633.5FAUSTO, Boris e DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: Um ensaio de histria comparada (1850-2002). SoPaulo: Editora 34, 2004, p. 44.

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    de consumo e sua participao no PIB atingia o ndice de 22,8%, enquanto, no Brasil, era da

    ordem de 11,7%6.

    Porm, a elite poltica argentina no logrou equacionar de forma positiva o incentivo

    industrializao e o atendimento das demandas dos exportadores de matrias primas. O saldo

    favorvel de sua balana de pagamentos, que permitia investimentos internos para o crescimento

    econmico era justamente gerado pela exportao de alimentos. Ora, a dade agropecuria versus

    indstria tinha que ser resolvida, para que uma varivel, sem descurar da outra, comandasse todo

    o processo. Nem a primeira perdeu a importncia para a economia do pas nem a segunda

    conseguiu consolidar uma base sobre a qual seu crescimento auto-sustentasse7. O sistema

    representativo argentino, por mais que abrisse espao para a UCR, no absorveu as demandas de

    setores dspares e combativos, como o movimento sindical, tornando insatisfatria uma unidade

    e coeso social que alicerasse a implementao de um projeto nacional conduzido pelo Estado.

    A classe latifundiria se assustou com as mudanas adjacentes Primeira Guerra Mundial, e

    bloqueou como pde as medidas dos polticos radicais visando a atenuar a dependncia do

    mercado mundial e da Inglaterra. Assumiu o controle do aparato estatal em 1930 e manteve o

    desenvolvimento desigual e combinado, exportando produtos inelsticos e importando

    mercadorias de maior valor agregado, boicotando ou atrasando medidas industrialistas e

    reprimindo com violncia o movimento dos trabalhadores e dos estudantes.Por mais que os capitais acumulados na atividade agrrio-exportadora migrassem

    periodicamente para o setor industrial, no seria possvel o desenvolvimento de uma

    industrializao auto-sustentada, pela dependncia estrutural que a exportao alimentcia possua

    com a importao de produtos de maior valor agregado. Alm disso, o conservadorismo das

    classes latifundirias em relao s novas classes sociais surgidas do desenvolvimento da

    economia interna impedia uma reformulao da dependncia e das estruturas arcaicas dos dois

    pases.O Brasil, devedor da exportao do caf para acumular divisas, no alcanou o

    desenvolvimento argentino; porm, com as repetidas crises de superproduo e queda de preo, a

    desvalorizao da moeda se tornou um expediente bastante usado pelas elites cafeicultoras para

    socializar os prejuzos, visando aumentar o preo exportvele, por efeito colateral, encarecer a

    importao de outros produtos. Diversas mercadorias importadas necessitaram ser produzidas

    domesticamente. Assim, muitos cafeicultores tambm passaram a investir em atividades

    6BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos...,p. 634.7______. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 634.

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    industriais, evitando uma cesura no seio das classes dominantes e facilitando, aps a ascenso de

    Getlio Vargas, a unidade nacional para a consecuo de polticas industrializantes.

    Em desvantagem militar, ao Brasil coube se aproximar dos Estados Unidos, fato que j

    sucedia desde o final do Imprio, sobretudo pela potncia do norte se transformar em nosso

    principal mercado, comprando caf e borracha. Embora no incorresse na mesma relao da

    Argentina com a Inglaterra, estabeleceu-se importante relao econmica e poltica; novamente,

    os dois vizinhos, agora republicanos, se viram devedores do comrcio e da poltica de duas

    metrpoles diferentes. Se economicamente os norte-americanos no estiveram to presentes

    quanto os ingleses, politicamente cederam, como mediadores, ganho de causa ao Brasil em

    importantes litgios fronteirios, como o ocorrido no sul do pas pela posse do territrio das

    Misses, na demarcao definitiva das fronteiras no Mato Grosso e no reconhecimento do Acre

    como territrio brasileiro, conquistado graas competncia da diplomacia comandada por Rio

    Branco.8

    Com a estratgia do Baro, chanceler brasileiro de 1902 at 1912, de barganha com os

    Estados Unidos visando a melhores condies de insero do Brasil no cenrio internacional, em

    contraponto ao desenvolvimento econmico e militar argentino aliado aos ingleses, alguns atritos

    se tornaram quase inevitveis com o Palcio San Martn. O principal deles ocorreu quando o

    chanceler argentino Estanislau Zeballos acusou o Brasil de se armar para agredir a Argentina.Receoso da amizade entre Rio de Janeiro e Washington, Zeballos tentou aproveitar da

    supremacia blica argentina para precipitar seu pas guerra, chegando a falsificar, em junho de

    1908, um telegrama que Rio Branco havia expedido para Santiago, alegando que neste telegrama

    o Brasil instigava os militares chilenos contra os argentinos. O chanceler brasileiro publicou a

    chave para decifrar tal mensagem, demonstrando a farsa do diplomata argentino, imediatamente

    retirado de sua funo. Aparentemente, fortalecidos os laos entre Washington e Rio de Janeiro,

    pairou sobre alguns setores do governo platino o receio de que o Brasil estivesse recebendoarmamento dos norte-americanos para representar, na Amrica do Sul, o papel de gendarmedos

    Estados Unidos, isto , os fiscais da poltica do Big Stick.A diplomacia brasileira tinha na aliana

    com os Estados Unidos seu grande trunfo, o que no significava propsitos agressivos contra

    seus vizinhos, at porque o imenso territrio brasileiro era ainda pouco povoado. Para Rio

    Branco, importava [...] a busca da supremacia compartilhada na rea sul-americana, restaurao

    8Em relao incorporao do Acre, ainda hoje alguns crticos questionam o modo como o Itamaraty resolveu oproblema, na medida em que o Brasil pagou uma indenizao a empresrios estrangeiros e depois mais uma quantia aBolvia, sendo que, com as revoltas de Luiz Galvez e Plcido de Castro, o territrio do Acre, povoado por brasileiros,de factoj era considerado do pas.

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    do prestigio internacional do pas, intangibilidade de sua soberania, defesa da agro-exportao e,

    sobretudo, a soluo de problemas lindeiros9.

    Ao refletir a respeito dessas desavenas, e tentando uma unio de interesses polticos no

    Cone Sul, Rio Branco lanou a idia do Pacto ABC (das iniciais de Argentina, Brasil e Chile).

    Logrando maior destaque nos anos de 1910, significou a articulao em comum de uma esfera de

    discusses entre os principais governos do Cone Sul para intermediar o conflito entre Mxico e

    Estados Unidos, no bojo da Revoluo Mexicana, e dirimir desentendimentos que, oriundos da

    corrida armamentista europeia que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, pudessem respingar na

    regio. Se no ocorreu um desenvolvimento imediato dessa aliana, as discusses serviram como

    inspirao para o futuro. Dessa forma, o presidente argentino Roque Senz Pea, ao lograr seu

    segundo mandato em 1910, executou uma poltica externa que objetivou entendimento

    solidificado com o Brasil. Tanto que, neste mesmo ano, antes de assumir o cargo, foi ao Rio de

    Janeiro, onde conferenciou longamente com os governantes brasileiros e pronunciou a famosa

    frase Todo nos une; nada nos separa10.

    Por outro lado, os Estados Unidos consideraram a aproximao de Brasil e Argentina,

    bem como o Pacto ABC, como atos inamistosos, boicotando tais entendimentos .11Enquanto

    ambos no alcanassem o desenvolvimento industrial, e enquanto prevalecesse uma

    superioridade de desenvolvimento econmico to acentuado, como o argentino sobre obrasileiro, dificilmente haveria possibilidades para um ajuste fino entre ambas as diplomacias.

    O Incio efetivo da integrao: o fim das assimetrias de poder

    A partir dos movimentos militares ocorridos na Argentina e no Brasil no ano de 1930,

    um novo processo poltico econmico passou a vigorar nas duas naes. Tratando-se

    basicamente de pases exportadores de matrias primas e produtos primrios e importadores de

    manufaturas, foram obrigados a gerar respostas comuns para a crise do comrcio mundial.

    Diferenas histricas na configurao econmica tambm obrigaram cada pas a agir

    particularmente na resoluo da crise. Para Moniz Bandeira,

    9CERVO, Amado e BUENO, Clodoaldo. Histria da Poltica Exterior do Brasil.Braslia: Ed. da UNB, 2002, p. 177.10Uma frase parecida foi dita pelo presidente argentino Julio Roca quando visitou So Paulo em 1907. In: BUENO,Clodoaldo. Poltica Externa da Primeira Repblica. Os anos de apogeu (1902-1918). So Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 283.11O Pacto ABC, neste perodo, teve dois momentos: em 1905-1906, quando Rio Branco, ao tentar apaziguar osnimos em razo da iminente aquisio de vasos de guerra pelos governos de Brasil e Argentina, props umcondomnio oligrquico dessas naes na regio e em 1914, na gesto de Lauro Muller, visando aos motivos

    citados na pgina anterior. No livro de Bueno, a verso que os Estados Unidos apoiaram o ABC em ambos osmomentos. Por outro lado, Moniz Bandeira acredita que os EUA sempre consideraram esse tratado como hostil,unfriendly. In: BUENO, Clodoaldo. Poltica Externa da Primeira Repblica..., p. 300. BANDEIRA, Moniz. Brasil,

    Argentina e Estados Unidos..., p. 111.

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    Na Argentina, o golpe militar devolveu o poder aos conservadores e restaurou opredomnio dos interesses agro-exportadores contra as aspiraes das classes mdiasurbanas e do proletariado, e ela revigorou sua dependncia em relao Gr-Bretanha,com a assinatura do Tratado Roca-Runciman (1933). Ao contrrio do que ocorreu naArgentina, a revoluo no Brasil afastou do poder os conservadores e, abatendo equebrando a hegemonia dos interesses agrrio-exportadores, dos fazendeiros de caf,permitiu que os anseios das massas urbanas se impusessem e conformassem novopacto poltico, que aliou o estamento militar, as classes mdias e o proletariado aospecuaristas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, produtores de carne e leite parao mercado interno.12

    O governo de Getlio Vargas conseguiu atenuar a dependncia do mercado norte-

    americano, diminuindo as importaes daquele pas, reflexo da grande depresso, auferindo assim

    certa autonomia na poltica externa. Assinou, em 1934, o Tratado de Comrcio e Reciprocidade

    com Washington, ao mesmo tempo em que firmou o acordo de compensaes com a Alemanha,

    que progressivamente, at 1938, se tornara a maior fornecedora de manufaturas ao Brasil e a

    segundo maior importadora das mercadorias aqui produzidas. Diversificando parceiros e

    mercados, o pas alcanou significativo desenvolvimento industrial, selado pela ajuda militar

    norte-americana, que no queria ver a sociedade brasileira sob influncia germnica, e pelo

    financiamento da primeira grande siderrgica do subcontinente. A Argentina no articulou essa

    barganha, permanecendo distante dos Estados Unidos e ainda apostando em seu comrcio e seus

    vnculos estreitos com a Inglaterra e o restante da Europa Ocidental. Sem receber o auxilio blico

    dos norte-americanos, as foras armadas argentinas foram se defasando e se emparelhandonovamente ao Brasil. Isso significou um afrouxamento significativo das desconfianas e receios

    de setores castrenses, o que refletiu na poltica: ambos participaram da mediao entre Paraguai e

    Bolvia na Guerra do Chaco e a Questo de Letcia que envolveu Peru e Colmbia. Mais que isso,

    assinaram em 1933, no Rio de Janeiro, o Tratado Anti-Blico de no Agresso e de Conciliao, e

    entraram em boa sintonia na Conferncia Sul-Americana de Consolidao da Paz, ocorrida em

    Buenos Aires em 1935.13

    O presidente argentino Augustin P. Justo visitou o Brasil em 1933, sendo retribudo pelavisita de Getlio Vargas dois anos depois.14A essa altura, tornavam-se inevitveis as propostas

    para o acercamento de mercados. Prova disso foi o tratado de 1941 para a formao de uma

    unio econmica. No obstante o crescente entrosamento comercial, as duas naes se viram

    separadas politicamente aps a adeso do Brasil luta contra a Alemanha e a permanncia da

    neutralidade argentina. No final da Segunda Guerra, o comrcio entre as duas naes j era

    12BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 635.13Por conta da mediao e das negociaes de paz na Guerra do Chaco, o chanceler argentino Carlos SaavedraLamas seria agraciado com o Prmio Nobel em 1936.14Nesta viagem, Vargas ainda passou pelo Uruguai. Nos dezenove anos como presidente, foi a nica vez em que seausentou do territrio brasileiro.

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    intenso, e os movimentos peronistas e getulistas novamente aproximaram os pases. A derrubada

    de Getlio Vargas e o fim do Estado Novo encerraram esta conjuntura.

    Nesse sentido, a dicotomia que marcou a Guerra Fria se expressou fortemente, na

    medida em que, na Argentina, o peronismo conquistou o poder, tendo como lder Juan Domingo

    Pern, de plataforma poltica nacionalista e pr-trabalho, em total atrito com a potncia

    hegemnica do continente. No Brasil, pelo contrrio, um movimento antiliberal fora vencido,

    contribuindo para a ascenso de polticos ligados agro-exportao e implementao de uma

    diplomacia ao compasso dos norte-americanos, derivada da participao brasileira no recm

    terminado conflito.

    Em 1947, a Terceira Posio argentina causou preocupao em Washington,

    caracterizada pela maioria dos polticos norte-americanos como uma postura pr-sovitica, anti

    panamericana e voltada hegemonia na Amrica do Sul. Na verdade, nada disso procedia. A

    Argentina apenas se aproveitava dos atritos entre Leste e Oeste para negociar melhores posies

    polticas e insumos industriais, declarando um no alinhamento automtico. Como se intentava

    um processo com maior autonomia de desenvolvimento nacional, articulado ao crescimento da

    indstria e uma poltica de distribuio de renda, a varivel externa teve que ser utilizada com

    ousadia, uma vez que esse processo tendia a descontentar investidores e a poltica externa norte-

    americana. Para a especialista argentina nas relaes internacionais, Leonor Devoto, apesardessas ressalvas, certo que Pern pleiteou de alguma maneira uma alianza bolivariana com a

    excluso dos Estados Unidos, destacando o principismo e uma luta incessante para reduzir a

    dominao dos Estados Unidos como principais atributos de sua poltica hemisfrica.15

    Por seu lado, a chancelaria brasileira esteve influenciada pela viso norte-americana, de

    que um mundo ideal seria construdo por mercados sem proteo, por economias com a mnima

    interveno do Estado, pelo fomento dos capitais privados e pela desregulamentao dos direitos

    trabalhistas, gerando uma imagem e uma prtica diplomtica em relao a Buenos Aires quetenderam a defenestrar o peronismo, prejudicando as relaes vis a visentre os dois vizinhos. A

    campanha de Pern presidncia foi marcada por um profundo sentimento anti-norte-

    americano, galvanizado na palavra de ordem Braden ou Pern, ou seja, a interveno norte-

    americana, junto com as foras oligrquicas, ou a soberania do pas. 16 Foram inmeras as

    tentativas do governo peronista de se aproximar do Brasil de Dutra, todas elas infrutferas.17

    15DEVOTO, Leonor Machinandiarena. Las Relaciones con Chile durante el Peronismo (1946

    1955). Buenos Aires:Lumire, 2005, p. 31.16Quando o movimento peronista se fortalecia, durante o ano de 1945, a Embaixada dos Estados Unidos, sob ocomando do diplomata Spruille Braden, publicou na mdia vrios documentos que supostamente provavam o

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    Os peronistas sabiam que, de todos os acordos selados com os pases da regio, nenhum

    seria mais importante que os eventuais acordos com o Brasil. Se o Rio de Janeiro aderisse

    poltica de blocos econmicos pleiteados pela Terceira Posio, a correlao de foras no Cone

    Sul transformar-se-ia, no sentido de maior prestgio e poder de barganha para a Argentina e os

    demais pases. Da uma grande mgoa em relao ao Itamaraty.

    Na Argentina, o processo de industrializao substitutiva de importaes, com nfase

    nas indstrias txteis e de alimentos, entrou em fase de esgotamento na metade dos anos 1940. A

    ditadura instalada em 1943 tentou investir na metalurgia e nas indstrias de material pesado. O I

    Plano Quinquenal, j no governo peronista, expandiu o setor de mquinas e equipamentos

    objetivando o alcance da auto-sustentao do desenvolvimento industrial. Porm, a nao platina,

    possuindo pouco ao, carvo e demais recursos no alcanou essa meta, tornando-se cada vez

    mais dependente da importao de material pesado.

    No Brasil, a situao era distinta, em razo de importantes fatores como a existncia de

    grandes jazidas de minrio de ferro e a existncia de um parque manufatureiro de bens de

    consumo. A produo de ao em grande escala em Volta Redonda sustentava o crescimento de

    indstrias ligadas ao processo de substituio, em largas faixas de bens de produo que

    possibilitaria uma base material capaz de atender s demandas do desenvolvimento.18

    Assim, no restou alternativa ao Palcio San Martn seno uma aliana significativa com

    o Brasil, dado o desgaste poltico oriundo da competio argentina com os norte-americanos por

    mercados semelhantes e o discurso peronista anti-Estados Unidos; aliana frustrada no perodo

    Dutra, mas revigorada com o retorno de Getlio Vargas ao poder.

    O Pacto ABC de Vargas e Pern

    A partir da segunda metade de 1949 e durante o ano de 1950, uma intensa campanha foi

    difundida na mdia portenha em favor da eleio de Vargas para a presidncia do Brasil. Tratava-

    se de influenciar no s a opinio pblica argentina, mas tambm a restante do continente, onde

    o aparato de propaganda peronista tinha alcance. Estatsticas, conquistas e acontecimentos

    positivos dos quinze anos em que Getlio governou o Brasil foram diariamente publicados nos

    principais jornais. Por seu turno, em discursos de campanha, Vargas afirmava ser favorvel a uma

    unio econmica no Cone Sul, defendendo a idia do Itamaraty lutar nos fruns internacionais

    envolvimento de Juan Pern com o nazismo. Essa documentao ficou conhecida como Livro Azul. Contra-atacando, Pern se defendeu divulgando um manifesto chamado Livro Azul e Branco, em que expunha sua

    plataforma nacionalista, estadista e pr-trabalho e acusava os Estados de Unidos de sabotagem a sua campanha.17 CAVLAK, Iuri. As Relaes entre Brasil e Argentina no Incio da Guerra Fria. In: Revista Histria: Debates eTendncia, Passo Fundo: EDIUPF, v. 6, p. 83-111, 2007.18BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 638- 639.

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    para que as ilhas Malvinas voltassem para a soberania argentina, o que soava como msica aos

    ouvidos de Pern e seu movimento. Sobre o Itamaraty, Vargas chegou a dizer que levaria este

    rgo em direo Terceira Posio brasileira.19

    Por meio de seus enviados, como deputados do PTB e Joo Goulart, doaes

    financeiras foram amealhadas dos cofres argentinos para a eleio de Getlio. Durante a apurao

    desse pleito, Pern chegou ao ponto de enviar uma comitiva, liderada pelo vice-presidente

    Hortencio Quijano, fazenda de Joo Batista Lusardo em So Pedro, interior do Rio Grande do

    Sul local em que Vargas e seus assessores mais prximos aguardavam o resultado final. Foi

    oferecida ajuda militar argentina, caso a oposio no aceitasse uma eventual vitria trabalhista e

    desencadeasse um processo de guerra civil no territrio brasileiro.20 Desses fatos, pode-se

    imaginar as expectativas e as esperanas depositadas no novo governo para a convergncia

    poltica. Vrios diplomatas brasileiros j se encontravam descontentes com o Itamaraty, pelo fato

    de o Brasil nada auferir em troca do apoio incondicional hipotecado pela administrao de Dutra

    aos Estados Unidos.

    No contexto da diplomacia brasileira, Vargas armou sua barganha com os Estados

    Unidos articulando sua poltica em dois sentidos. Para o Ministrio das Relaes Exteriores,

    nomeou Joo Neves da Fontoura, udenista e ex-presidente da Ultrags, partidrio de uma aliana

    incondicional com os Estados Unidos. Para a Embaixada Brasileira na Argentina, Joo BatistaLusardo, amigo de Pern, que j havia, por duas vezes, trabalhado nesta funo, abertamente

    favorvel aproximao brasileira com o peronismo.21

    Consequentemente, em fevereiro de 1953, Pern e o presidente chileno, Carlos Ibaes

    del Campo, acertaram um notvel acordo comercial e poltico, conhecido como Ata de

    Santiago. Previa-se a liberao de impostos para vrios produtos, abertura de linhas de crdito,

    comrcio compensado para diversas mercadorias e o relaxamento de restries ao trnsito de

    pessoas nas fronteiras. Os dois presidentes prometeram votar em conformidade nos frunsinternacionais. Nesse encontro no Chile, o lder argentino, entusiasmado, acabou divulgando que

    havia recebido do Rio de Janeiro uma carta branca para a formao do ABC, isto , uma

    autorizao pessoal de Getlio para iniciar primeiramente as tratativas com os chilenos visando

    19Em nossa dissertao de mestrado tivemos contato com os recortes de jornais portenhos que eram anexados aosofcios que a Embaixada Brasileira em Buenos Aires remetia ao Ministrio no Rio de Janeiro. So vrias asafirmaes de Vargas nesse sentido quando em campanha. In: CAVLAK, Iuri. A Poltica Externa Brasileira e a

    Argentina Peronista.So Paulo: Annablume, 1998, p. 134-140.20ALMEIDA, Hamilton. Sob os olhos de Pern. O Brasil de Vargas e as Relaes com a Argentina. Rio de Janeiro:Record, 2005, p. 25-26.21RECKZIEGEL, Ana Luiza. O Pacto ABC:As Relaes Brasil-Argentina na Dcada de 50.Passo Fundo: EDIUPF,1996, p. 46.

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    montagem da zona de livre comrcio. De fato, Vargas, confidencialmente, comunicara a Pern

    que poderia contar com sua aprovao para a poltica integracionista, lamentando a

    impossibilidade momentnea de transformar tal postura em posio oficial da diplomacia

    brasileira, pois temia a desaprovao da opinio pblica e de setores importantes do Itamaraty. A

    notcia caiu como uma bomba na imprensa brasileira.

    Desde o final do ano de 1952 estavam sendo confeccionadas listas de produtos para

    serem intercambiados em regimes especiais de condies e preos, sendo constantes os acordos

    para multiplicar as vendas de trigo e caf. Durante este mesmo ano, bateu recorde o nmero de

    viagens de turistas culturais brasileiros, que passaram semanas em Buenos Aires com todas as

    despesas pagas pelo governo argentino. Sindicalistas, estudantes do ensino secundrio e superior

    e grupos de teatros, a todo momento, desfrutaram dessa prtica. No sistema de ensino argentino,

    foi criado o Prmio Brasil, contemplando mensalmente com uma viajem a So Paulo alunos

    que realizassem a melhor dissertao sobre um tema da histria do Brasil.22Ainda em dezembro,

    ambos assinaram um acordo comercial de grande porte, para entrar em vigor em janeiro de 1953,

    com validade prevista at 31 de dezembro de 1956, em carter provisrio, at obter aprovao

    nos respectivos parlamentos.23

    No momento especial pelo qual passava a diplomacia, o presidente argentino,

    novamente numa oratria exaltada, imprimiu outra ndoa na relao. Impaciente, tentando suamaneira apressar o Pacto ABC, Pern resolveu atacar o Itamaraty, em discurso pronunciado na

    Escola Nacional de Guerra, em novembro de 1953. Seus argumentos, divulgados no Brasil em

    janeiro de 1954, transformaram-se em mais um elemento utilizado a favor da derradeira ofensiva

    antivarguistas, nova munio para as velhas acusaes de traio nacional e montagem de uma

    repblica sindicalista revelia do legislativo e do judicirio.

    Em 25 de junho de 1954, a Comisso Mista de Comrcio de Brasil e Argentina assinou

    novos acordos, em regime especial de preos, que envolviam a compra de 700 mil toneladas detrigo, 25 mil toneladas de farinha de trigo, e uma quantidade no divulgada de carne argentina por

    parte do Brasil, e a venda de 300 mil toneladas de caf, 8 mil toneladas de cacau, 12 mil toneladas

    de erva-mate e 250 milhes de metros quadrados (sic) de madeira brasileira. A balana comercial

    22Ofcio Ms poltico e cultural dedezembro de 1952. Balano dos acontecimentos do ano. Arquivo Histricodo Itamaraty. Misses Diplomticas no Estrangeiro. Buenos Aires. Pasta de Ofcios: 19551960.23Nota reversal, dezembro de 1952. Arquivo Histrico do Itamaraty. Misses Diplomticas no Estrangeiro. BuenosAires. Pasta de Ofcios: 19551960.

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    em 1955 fecharia com os seguintes valores: produtos brasileiros importados pela Argentina, US$

    100 milhes; produtos argentinos importados pelo Brasil, US$ 152 milhes.24

    Entrementes, a situao poltica no subcontinente no permitiu a sequncia desse

    movimento. Os presidentes de Chile, Equador e Paraguai ficaram aguardando a fora e a

    polmica que adviriam da declarao pblica de adeso ao ABC feita pelo Brasil. Este ltimo, o

    membro mais importante, no reuniu condies para participar, pois, em agosto, Getlio Vargas

    cometeria o suicdio.

    A Aliana no desenvolvimentismo

    Com a queda de Vargas no Brasil e de Pern na Argentina, houve um interregno na

    aproximao diplomtica que perpassara a primeira metade da dcada de 1950.25

    Emcontrapartida, esse movimento retornou significativamente com a vitria de Juscelino Kubitschek

    nas eleies majoritrias de 3 de outubro de 1955, refazendo a aliana PSD-PTB, com Joo

    Goulart eleito vice-presidente. Temendo a volta do nacionalismo ao poder, setores mais

    conservadores da UDN (Unio Democrtica Nacional) e da elite brasileira influenciaram parte

    das foras armadas para um movimento que impedisse a posse dos eleitos. O ento Ministro da

    Guerra, Marechal Henrique Teixeira Lott, adiantou-se aos acontecimentos e ele prprio

    desfechou um golpe para garantir que Juscelino Kubitschek e Joo Goulart assumissem seus

    respectivos mandatos.

    Na Argentina, a chamada Revoluo Libertadora assumiu o poder aps a queda de

    Pern, reprimindo a classe trabalhadora, congelando direitos sociais e inserindo o pas nas

    instituies financeiras e de comrcio, visando forte participao do capital internacional.

    Seguiu com algumas obras iniciadas no governo passado e manteve um bom entendimento

    poltico com o Brasil.

    Para ambos os pases, era impossvel o retorno s polticas ligadas ao setor agrrio que

    desconsiderassem o pujante setor industrial. As massas populares e a necessidade de produzir em

    grande escala produtos estratgicos outrora importados impulsionou politicamente foras

    parecidas com aquelas do incio dos anos 1950. Assim, se no Brasil retornou ao poder o PTB

    (Partido Trabalhista Brasileiro), coligado com os setores mais dinmicos do PSD (Partido Social

    24CISNEROS, Andrs e ESCUD, Carlos (org.). Historia General de las Relaciones Exteriores de la RepublicaArgentina: Las Relaciones Exteriores de la Argentina Subordinada. Parte III, Tomo XI. Las Relaciones EconmicasExternas (1943-1989). Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1999, p. 111. Em 1955, o Brasil exportou US$

    601 milhes para os Estados Unidos e US$ 60 milhes para a Inglaterra, importando, respectivamente, US$ 537milhes e US$ 17 milhes. A Argentina exportou US$ 118 milhes para os Estados Unidos e US$ 201 milhes paraa Inglaterra, importando, respectivamente, US$ 154 milhes e US$ 76 milhes.25RECKZIEGEL, Ana Luiza. O Pacto ABC: As Relaes Brasil-Argentina na Dcada de 50 .

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    Democrtico), na Argentina, aps dois anos de ditadura, venceu as eleies a ala mais extremada

    da UCR (Unio Cvica Radical), os chamados Intransigentes (UCR I), que receberam apoio de

    Pern no exlio e prometeram industrializao, controle do Estado nos investimentos

    estrangeiros e aumento do mercado interno. A UCR I tinha na integrao sul-americana e na

    parceria com o Brasil uma de suas principais bandeiras, a ponto de Frondizi ser acusado pela

    oposio de excessivo brasilianismo Por seu lado, os anos JK foram certamente os que

    registraram os momentos de maior tenso no relacionamento bilateral entre Brasil e EUA,

    equiparados de certa forma ao pr-1964.26 Ou seja, os platinos buscando o Brasil e esse, em

    dificuldade com a potncia do norte, tendo que buscar o principal vizinho.

    Na Argentina, o desenvolvimento econmico esteve mais truncado, em virtude da

    alternncia de polticas recessivas e industrialistas, fruto da alta tenso entre o peronismo na

    ilegalidade e os militares, bastante prximos do poder. Mesmo tendo que tergiversar nessas

    questes, o governo de Frondizi alcanou significativas metas na economia, obtendo a

    manuteno de um importante nvel de desenvolvimento social, se tivermos em mira a situao

    dos demais pases sul-americanos poca. Jos Luis Beired, sobre o perodo, afirma:

    A Argentina possua a mais elevada renda per capita da Amrica Latina, altos ndicesde escolaridade, ampla classe mdia, baixas taxas de mortalidade e outros indicadoressociais superiores queles encontrados na maioria dos pases da Europa mediterrnea

    na dcada de 1960.27No governo frondizista destacou-se a construo e a modernizao do parque industrial,

    sendo a integrao nacional das regies atrasadas e do movimento peronista um arete para

    dinamizar o desenvolvimento econmico e social.28

    Destarte, na poltica, os governantes e os especialistas projetaram possibilidades de

    construir uma macro-economia planejada, capaz de negociar com as multinacionais no sentido de

    essas ltimas trabalharem subordinadas mais realidade interna das trocas desses pases do que s

    diretrizes enviadas pelas matrizes. Convicesou ilusesenfeixadas no movimento de uniodiplomtica.

    No Brasil, Kubitschek se elegeu visando a justamente essa poltica econmica e a

    participao do capital externo, uma vez que a poupana nacional e o Estado brasileiro no

    tinham como arcar sozinhos com uma tarefa de tal magnitude. Assim, o Brasil novamente

    26MELLO e SILVA, Alexandra. Desenvolvimento e Multilateralismo: Um Estudo sobre a Operao Pan-Americanano Contexto da Poltica Externa de JK. In: Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 224, jul./dez. 1992.

    Sobretudo os anos de 1958-1959.27BEIRED, Jos Luis. Breve Historia da Argentina.Sao Paulo: Atica, 1996, p. 61.28JAMES, Daniel (Dir.).Nueva Historia Argentina: Violencia, Proscripcin y Autoritarismo (1955-1973).Buenos Aires: Ed.Sudamericana, 2003, p. 189.

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    pleiteou a ajuda dos Estados Unidos, que novamente lhe foi negada, por meio de evasivas e

    tergiversaes. Tentou-se a colaborao com pases da Europa, resultando, sobretudo, na

    instalao das primeiras montadoras de automveis. No intento de pressionar os Estados Unidos,

    JK construiu uma poltica externa regional de parceria com Buenos Aires, percebendo o

    momento de desgaste no qual padecia a maior nao ocidental em relao opinio pblica

    latino-americana. Depois de 1945, os Estados Unidos no efetivaram uma colaborao

    econmica com o subcontinente, diferentemente do ocorrido em relao Europa. Muito por

    essa razo, em junho de 1958, o vice-presidente Richard Nixon viajou pelos principais pases da

    Amrica do Sul recebendo vaias e ataques de populares, a ponto de ser concebido um plano de

    emergncia para sua retirada da Venezuela pelas foras armadas norte-americanas baseadas na

    Amrica Central.

    Nessa conjuntura, JK enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Dwite

    Eisenhower, em maio de 1958, enumerando uma srie de fatores que gerava o descontentamento

    da maioria das naes sul-americanas, e um programa de desenvolvimento, contemplando

    problemas comuns ao atraso dos pases da regio, que gostaria de ver executado com o aporte de

    dlares estadunidenses. Era a chamada Operao Pan-Americana (OPA). Eisenhower respondeu

    missiva, naquele momento j com bastante publicidade na mdia latina, prometendo a ajuda,

    todavia atravs dos canais tradicionais como a OEA (Organizao dos Estados Americanos), oEximbank e o FMI, instituies que exigiam uma contrapartida invivel para um governo

    industrialista perifrico. Assim, Kubitschek teve que endurecer o discurso, ameaando com a

    aproximao ao bloco socialista e a Unio Sovitica.

    Os movimentos da poltica externa alimentaram o debate interno sobre os problemas

    da industrializao e do subdesenvolvimento. Depois de romper com o FMI (fins de 1959), que

    exigia conteno dos gastos pblicos e o combate a inflao para continuar emprestando dinheiro

    ao Brasil, JK incentivou um resguardo por parte do Itamaraty imposio da poltica dosEstados Unidos. Alm disso, obrigou os candidatos a sua sucesso, Jnio Quadros e o General

    Henrique Teixeira Lott, a pautarem os problemas de poltica externa como um dos principais

    contedos programticos de suas candidaturas. Na viso de Moniz Bandeira, Mais do que

    qualquer outra poca, o antiimperialismo dominou a campanha eleitoral. As duas candidaturas, de

    uma forma ou de outra, tomaram o sentido de contestao aos Estados Unidos.29 Jnio

    Quadros, antes de vencer as eleies majoritrias, com Goulart novamente eleito vice-presidente,

    viajou a Cuba e conversou com Fidel Castro, num momento j de deteriorao do

    relacionamento da ilha com os norte-americanos.

    29BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 402.

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    Eleito, Quadros dinamizou as premissas da OPA, por meio da chamada Poltica

    Externa Independente (PEI). No seu curto perodo presidencial, contribuiu para que a

    diplomacia brasileira aprofundasse concepes crticas diviso internacional do trabalho, sob o

    comando de polticos avessos subservincia as grandes potncias, como Afonso Arinos de

    Melo e Franco e Francisco Clementino de San Tiago Dantas. A situao econmica do Brasil

    abriu possibilidades para a reformulao do carter de relacionamento com a Amrica do Norte.30

    O auge do processo foi o encontro de Arturo Frondizi e Jnio Quadros na cidade

    gacha de Uruguaiana, fronteira com Passo de Los Libres, provncia de Corrientes, entre 20 e 23

    de abril de 1961. Na medida em que o capital internacional, os EUA e setores burgueses

    tensionavam contrariamente, os governos buscavam atravs da presso poltica o contrabalanar

    de tendncias, alimentando os plos que aufeririam ganhos com o incremento da unio.

    Entretanto, tanto no Brasil quanto na Argentina as oposies domsticas e externas

    impediram o avano do processo. No incio de 1962, militares argentinos se mostraram

    insatisfeitos com o apoio que a diplomacia frondizista vinha apresentando a Cuba. Quando, nas

    eleies provinciais de maro os peronistas saram vitoriosos em alguns estados, Frondizi no

    resistiu e acabou apeado do poder por um golpe militar.

    No Brasil, o governo de esquerda de Joo Goulart, o vice-presidente que assumiu o

    poder aps a renncia de Jnio Quadros em agosto de 1961, se viu limitado pelo regime

    parlamentarista, imposto ao mesmo como condio para sua assuno ao cargo de presidente.

    Porm, com o apoio de vrios movimentos sociais, Goulart teve foras para dinamizar ainda mais

    a diplomacia brasileira atravs da PEI (Poltica Externa Independente), praticada em seu governo

    sob a liderana de polticos como Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Reafirmou varias

    posies contrrias aos Estados Unidos, alm de incrementar o dilogo com os pases africanos,

    asiticos e pertencentes ao bloco sovitico. Em 1963 conseguiu importante vitria poltica

    quando o presidencialismo venceu o plebiscito contra o ento regime parlamentar.

    Com a subida da temperatura das lutas sociais, os militares tambm no Brasil

    intervieram no poder civil, desfechando um golpe em abril de 1964 que derrubou Goulart do

    poder e inaugurou os anos ditatoriais.

    Os afastamentos no perodo militar

    30Em agosto de 1961, Quadros condecorou Ernesto Che Guevara com a mais alta honraria do Estado brasileiro, aMedalha da Gr-Ordem do Cruzeiro do Sul. Em que pese seu significado teatral, o fato em si reflete aspeculiaridades desse processo.

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    Com a subida dos militares ao poder no Brasil desapareceu o estilo de desenvolvimento

    econmico que propiciava a diplomacia da integrao com a Argentina. Por outro lado, nessa

    ltima, os golpes militares de 1962, 1966 e 1976 igualmente prejudicaram o movimento.

    No Brasil, um novo projeto de desenvolvimento foi levado a cabo. Pela insuficincia do

    mercado interno, sempre prejudicado pelo arrocho salarial e altssimas taxas de explorao do

    trabalho, os militares tiveram que projetar a diplomacia de forma agressiva para a conquista de

    novos mercados externamente. O combate ao que se imaginava ser a expanso comunista

    ganhou destaque, logo evidenciado pelo rompimento de relaes com Cuba, ainda em 1964.

    Mesmo o Itamaraty continuando hegemnico na formulao da poltica externa brasileira,

    abandonou-se, sobretudo no governo de Castelo Branco, as aspiraes integracionistas e terceiro-

    mundistas, bem como a multilateralizao praticada nos anos anteriores. Declarou-se uma aliana

    automtica com os Estados Unidos (o lema chegou a ser: o que bom para os EUA bom para

    o Brasil) e as teorias inspiradas na Guerra Fria formuladas pela ESG (Escola Superior de Guerra)

    tornaram-se predominantes.

    A partir de 1969, estabeleceu-se o novo trip econmico: as empresas estatais ficariam a

    cargo do investimento em infra-estrutura, como energia e bens de capital (ao e mquinas-

    ferramentas), as multinacionais encarregar-se-iam de desenvolver o setor de bens de consumo

    durveis (automveis e eletrodomsticos) e o capital privado nacional especializar-se-ia nosinsumos industriais (autopeas) e bens de consumo popular.31A poltica externa foi despolitizada.

    Na Argentina, a instabilidade poltica foi perene, impedindo a estruturao de uma

    poltica externa coerente e com um sentido claro. O fato do peronismo permanecer ilegal e, ao

    mesmo tempo, desfrutar de prestigio junto aos sindicatos, causou uma situao em que os

    militares no permitiam abertura e poltica e, em troca, os trabalhadores obstavam os planos de

    estabilizao e/ou crescimento. O chamado Processo de Reorganizao Nacional, inaugurado

    com o golpe militar de 1976, conferiu a diplomacia uma postura inercial, na medida em queaplicavam internamente uma poltica de desindustrializao, abrindo seus mercados para a

    importao de manufaturas, na esperana de esterilizar a luta dos trabalhadores extinguindo os

    empregos industriais. Para os militares, a melhor maneira de desenvolvimento econmico eram as

    vantagens comparativas, isto , os pases da periferiadeveriam se restringir a venda somente de

    produtos alimentcios, limitando a necessidade de tecnologia atravs da compra das naes do

    centro.32 Esta desastrosa poltica econmica levou rapidamente a perda de legitimidade,

    31VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relaes Internacionais do Brasil. De Vargas a Lula.So Paulo: Ed. Perseu Abramo,2003, p. 46.32BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 642.

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    instigando os militares a Guerra das Malvinas, em 1982. Perdida a guerra para a Inglaterra, os

    militares se retiraram do poder e o pas demonstrou-se devastado social e economicamente.

    Nos anos 1970, o crescimento da economia brasileira alcanava 10% ao ano, enquanto a

    Argentina chegou a apresentar crescimento negativo, ou seja, abriu-se novamente, como nos anos

    1889-1930, uma imensa distncia entre os dois, todavia agora com o sinal trocado. Construindo

    estradas, aumentando estatais e incrementado a estrutura exportadora, o Brasil passou a atrair

    outros pases do entorno para sua influncia, como Paraguai, Uruguai e Chile. Pode-se dizer que a

    nica esfera de inteligncia entre Buenos Aires e Braslia foi a Operao Condor, acordo entre

    militares para caar comunistas continente afora. Aos argentinos restou cunhar o

    desenvolvimento econmico brasileiro como agresso externa, reclamando na ONU sobre a

    construo de hidreltrica que atingia indiretamente guas platinas. Para os vizinhos, os

    brasileiros praticavam o subimperialismo.

    Com a revoluo microeletrnica desenvolvida nesses anos, a crise do petrleo e a crise

    da dvida, tanto Brasil quanto Argentina viram os pases do primeiro mundo multiplicarem ainda

    mais a distncia econmica e tecnolgica j existente. As ditaduras entraram em crise e foram

    todas substitudas por governos civis durante os anos 1980. Em crise, os governos de Jos Sarney

    e Raul Alfonsn lanaram um novo empreendimento integracionista, com os acordos de Foz do

    Iguau, em 1986. Em um cenrio internacional extremamente adverso, a unio de Brasil eArgentina mais uma vez era proposta pelos governos.

    O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)

    Quando a crise dos regimes militares j se fazia presente, em 1980, fundou-se em

    Montevidu a ALADI (Associao Latino Americana de Integrao), num esforo de retomar as

    energias do passado para a integrao regional tornar-se realidade futura. Foram 13 os integrantes

    fundadores (Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Cuba, Equador, Mxico, Panam,

    Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela).

    A disparidade e a quantidade dos pases sinalizava para uma instituio provisria, que

    centralizasse esforos para o afinamento futuro de polticas comerciais. Assim, a ALADI

    inspirava uma necessidade de prticas conjuntas visando o enfrentamento dos novos desafios

    colocados internacionalmente. A Guerra Fria estava terminando e no se tinha no continente a

    efervescncia social e a busca de reformas tpicas do inicio dos anos 1960. As prioridades haviam

    mudado.

    Em 1985, do ponto de vista institucional, terminou o regime ditatorial no Brasil. Jos

    Sarney, antigo lder civil dos prprios militares assumiu a presidncia, eleito de forma indireta na

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    chapa de Tancredo Neves, esse ltimo poltico experiente do stablishment, morto, momentos antes

    de assumir o cargo, em funo de problemas de sade.

    Na Argentina, o civil Raul Alfonsn j governava desde 1983 com enormes problemas

    para lidar com a inflao, os militares derrotados na Guerra das Malvinas, o movimento social

    que exigia punio para os crimes cometidos pelo regime autoritrio e as questes econmicas,

    com a dvida externa aumentando e o pas perdendo competitividade e capacidade de importar.

    De todos os pases da ALADI, foi Brasil e Argentina a estreitarem significativamente

    seus laos. Alfonsn para tentar sanar problemas internos e Sarney, cnscio de que o Brasil j

    alcanara o status de potncia mdia e tinha muito a ganhar com acordos que elevassem sua

    hegemonia regional. O ano de 1986 foi permeado de encontros e acordos, com destaque para o

    de julho, em que ambos os lideres criaram o Programa de Integrao e Cooperao Econmica

    (PICE).

    O problema foi que, encerrado os anos 1980, uma onda neoliberal atingiu ambos os

    pases. No Brasil, eleito Fernando Collor de Melo e, posteriormente, Fernando Henrique

    Cardoso. Na Argentina, Carlos Saul Menem, conferindo um novo desenho para o recm iniciado

    movimento integracionista. De defesa da economia nacional via alianas regionais para uma

    abertura do pas a uma economia global, sendo a pacto regional um arete para uma insero mais

    qualificada no movimento predominantemente financeiro do capital internacional.

    No Brasil, a partir de 1990, o Itamaraty foi relegado a um segundo plano na elaborao

    da poltica externa, ombreado pelo Ministrio da Economia e pela diplomacia presidencial.

    Fernando Henrique Cardoso, com formao de professor de sociologia e poliglota, viajou mundo

    afora promovendo a abertura comercial brasileira, mecanismo para conter a inflao e, por

    conseqncia, diminuir o poderio da indstria nacional.

    Na Argentina, Menem foi ainda mais radical, postulando relaes carnais com os

    Estados Unidos e realismo perifrico, donde a afirmao que um pas deve se contentar com a

    estrutura contempornea de poder e tirar a mxima vantagem possvel atravs de alianas com a

    potncia hegemnica do continente. Ambos os pases seguiram o Consenso de Washington, que

    em sua essncia obrigou: 1) disciplina fiscal; 2) mudanas de prioridade no gasto pblico; 3)

    reforma tributria; 4) taxas de juros positivas; 5) taxas de cmbio em conformidade com as leis do

    mercado; 6) liberalizao do comercio; 7) fim das restries aos investimentos estrangeiros; 8)

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    privatizao das empresas estatais; 9) desregulamentao das atividades econmicas; 10) garantia

    dos direitos de propriedade.33

    Na prtica, essas exigncias da poltica externa norte-americana geraram: 1) diminuio

    de gastos com educao e sade e arrocho salarial; 2) paralisao nas contrataes de

    funcionrios pblicos; 3) desonerao dos ganhos de capital e aumento da carga tributaria sobre o

    salrio e o consumo; 4) transferncia de recursos do fundo pblico para o pagamento mensal dos

    credores da dvida externa; 5) sobrevalorizao da moeda, encarecendo as exportaes; 6)

    aumento das importaes de produtos industrializados, prejudicando as indstrias nacionais; 7)

    abertura de possibilidades para os investidores externos participarem de setores estratgicos do

    Estado; 8) transferncia de gigantescos patrimnios empresariais pertencentes ao Estado para o

    empresariado; 9) reduo da fiscalizao governamental em relao as grandes transaes

    financeiras; 10) represso sobre os movimentos sociais, como os sem terra e os sem teto.

    Assim, ao MERCOSUL foi conferido um carter livre cambista, incrementando as

    transaes comerciais ao mesmo tempo fragilizando as economias regionais frente o mercado

    mundial. Em 26 de maro de 1991 foi assinado em Assuno, capital do Paraguai, o tratado que

    deu origem oficial ao Mercado Comum do Sul (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai), sendo

    complementado com o Tratado de Ouro Preto de 1994. O MERCOSUL entrou definitivamente

    em atividade em 1 de janeiro de 1995.

    O crescimento das transaes comerciais que o bloco promoveu no compensou a

    recesso regional pela qual a Amrica do Sul atravessou na dcada de 1990. Tanto que, no inicio

    dos anos 2000, vrios presidentes foram derrubados do poder por presses populares. No Brasil,

    via eleies, chegou ao poder o candidato da esquerda, Luis Incio Lula da Silva, que de sada

    deu continuidade as diretrizes macro-econmicas de seu antecessor. Na Argentina, a crise social

    foi tamanha que derrubou 5 presidentes no intervalo de 2 semanas, na virada de 2001 para 2002.

    Ora, os 10 anos seguintes no demonstraram avanos significativos na unio de Brasil e

    Argentina e os demais pases lindeiros. A moeda nica, a poltica econmica em comum e a

    diminuio das desavenas comerciais parecem longe de se tornarem realidades. A economia

    brasileira se mantm articulada no esforo de exportar comoditiespara a China e a ndia, enquanto

    o cada vez mais problemtico mercado interno argentino no oferece atrativos para seu principal

    vizinho. As multinacionais respondem pela imensa maioria das trocas comerciais na zona do

    MERCOSUL, minando o poder de barganha e planejamento dos Estados.

    33Apud: BANDEIRA, Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos..., p. 476.

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    Enfim, se a prxima dcada demonstrar um recuo comercial do Brasil em termos

    mundiais ou uma transformao na correlao de foras da poltica interna talvez tenhamos nova

    etapa nesta eterna relao de proximidade, com a diminuio das disparidades que hoje pesam

    fortemente em favor do Brasil.

    Concluso

    Dentro das semelhanas entre as formaes sociais de Brasil e Argentina ocorreram e

    ocorrem as particularidades que configuraram e configuram o relacionamento desses pases, to

    prximos e distantes ao mesmo tempo.

    No sculo XIX, o processo de independncia poltica transcorreu diferenciado para

    ambos, na medida em que a Amrica hispnica envolveu-se em guerras civis capitaneadas pelaselites locais, impulsionando a diviso dos antigos vice-reinados e regies econmicas que

    formavam o imprio espanhol de ultramar. Na luso-Amrica a transio foi de outro tipo,

    negociada entre as elites dirigentes portuguesas europias e as elites portuguesas radicadas no

    Brasil. Donde a quase nenhuma afinidade na geopoltica regional entre os povos, tambm nas

    esferas polticas, econmicas e culturais.

    Entre 1825 e 1828 houve um curto e intermitente conflito pela Colnia de Sacramento

    ou Provncia Cisplatina, concludo com esse territrio no sendo anexado a nenhum beligerante,seno transformado, com a concrdia da Gr-Bretanha, em novo Estado nao soberano, atual

    Uruguai. E mesmo nessa guerra percebeu-se o diminuto interesse da opinio pblica da poca,

    resumida nas poucas pessoas que eram alfabetizadas e se interessavam pelo que ocorria no

    entorno.

    Assim, a aliana que se constituiu em 1850, entre D. Pedro II e Justo Jos de Urquiza,

    contra Juan Manuel de Rosa, tambm padeceu dessa falta de interesses orgnicos e de uma

    participao significativa das populaes. A Guerra da Trplice Aliana contra o Paraguai, nos

    anos de 1860, que poderia gerar um incremento nas ligaes brasileiro-argentinas, acabou

    ofuscada tanto por problemas externos quanto internos: disputas pelo esplio de guerra, novas

    fronteiras, e grupos polticos emergindo no cenrio domstico, como abolicionistas e

    republicanos no Brasil. Enquanto na Argentina a campanha contra os ltimos indgenas e um

    novo patamar na disputa entre federalistas e centralistas no ensejava necessidade prementes no

    estreitamento de relaes diplomticas. Ou seja, o sculo terminou com Brasil e Argentina muito

    voltados para seus problemas internos, expressando uma configurao poltica e econmica

    distante da necessidade do acercamento na esfera internacional.

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    O cenrio se transformou na entrada do sculo XX, sobretudo pela corrida

    armamentista entre a jovem repblica brasileira e a europia repblica argentina. O chanceler

    brasileiro Rio Branco encarou a questo com muita pertincia e, mirando arrefecer as tenses,

    gradativamente contribuiu para que a poltica externa brasileira pautasse e relacionamento com os

    argentinos de forma estruturada e contnua. Por seu lado, os argentinos, apegados economia

    inglesa e com uma composio social predominante de imigrantes europeus, no puderam

    ignorar que um salto qualitativo era necessrio nas relaes com o grande vizinho, ainda que no

    significasse necessidade de alianas polticas e acordos comerciais de monta. Enfim, uma relao

    satisfatria para os padres da poca foi estabelecida, tendo seus pontos de maior tenso em

    1906, com o problema da falsificao do telegrama diplomtico pelo chanceler Estanislau

    Zeballos rapidamente removido de suas funes, e de maior estreitamento em 1910, com asgestes para o Pacto ABC.

    Todavia, somente com o novo ciclo histrico aberto em 1930 os pases encarariam seu

    relacionamento com maior responsabilidade e importncia. Nessa dcada, as mediaes de

    conflitos entre pequenos pases vizinhos prenunciariam a aliana que viria a ser construda nos

    prximos anos. Na primeira metade dos anos 1940, com a participao na Segunda Guerra

    gerando srios atritos, contornados pela ditadura do Estado Novo e a nova elite poltica que

    galgou o poder em Buenos Aires. O nvel das trocas comerciais atingido, o maior da histria atento, e a percepo de Vargas e dos militares argentinos sobre a diplomacia inaugurou uma

    sintonia fina, que doravante iria atingir coraes e mentes na classe dirigente e diversos setores da

    vida social de ambas as naes.

    Na primeira metade da dcada de 1950 e na virada para os anos 1960 se deu o grande

    empreendimento integracionista. Como vimos, as tratativas impulsionaram o comrcio e

    construram uma agenda poltica apontando para a progressiva (e na aparncia definitiva) unio

    diplomtica. Como se tratasse de uma era de ouro da convergncia no Cone Sul, desfeita pelaprpria incapacidade de se auto-sustentar frente aos desafios da secular estrutura econmica

    mercantil e das peculiaridades da Guerra Fria. O tamanho das esperanas colocadas em jogo foi

    proporcional ao fracasso atingido, fruto das novas condies econmicas e polticas advindas na

    segunda metade dos anos 1960 e na dcada de 1970. A modernizao da economia brasileira

    demonstrou ser antagnica parceria com os argentinos, ao passo que os problemas da economia

    argentina mostraram-se igualmente incompatveis a uma diplomacia sul-americanista.

    Aps a crise dos anos 1970 ressurgiu nos 1980 a conjuntura propcia para a uniodiplomtica, no obstante dentro de um contexto novo e de mltiplas determinaes. A

    necessidade era de abertura comercial frente a nova rodada de expanso do capital financeiro

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    internacional, e uma inteligncia poltica e econmica era necessria para coordenar esse avano

    na regio. Em outras palavras, uma regionalizao para implementar uma globalizao, sem que

    problemas estruturais e pontos de estrangulamentos locais fossem sanados. Ao contrrio,

    aspiraes para a construo de um parque produtivo com alguma autonomia e um mercado

    interno dinmico foram abandonados, sendo a economia no Cone Sul ainda mais internalizada e

    a populao mais excluda das macro decises.

    Assim, o MERCOSUL foi um avano e um retrocesso: avano, na medida em que

    finalmente, depois de quase dois sculos, a integrao entre Brasil e Argentina foi oficializada,

    agregando a parceria de outros pases vizinhos. Retrocesso, pois o carter de oposio ao

    mercado mundial, estruturado na crescente assimetria de poder, desapareceu. A integrao

    regional, to presente para Bolvar, Rio Branco, Vargas, Pern, Kubitschek, Frondizi e Goulart,

    hoje segue comandada pela fora das economias centrais do sistema, com o Estado brasileiro e

    argentino secundrios em relao aos organismos internacionais, como FMI e Banco Mundial, e

    fundos de investimentos e conglomerados empresariais.

    Cabe a indagao: em pocas passadas, a integrao, se consequentemente

    implementada, poderia proporcionar um cenrio completamente oposto? Na dialtica da

    aproximao e distanciamento, no obstante, podemos observar que, historicamente, quando a

    primeira varivel tendeu a predominar, os Estados angariaram maior poder de barganha nageopoltica mundial, o oposto ocorrendo quando a segunda se fez hegemnica.

    Recebido: 02/05/2012Aprovado: 18/06/2012