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JJ é uma edição do Clube de Jornalistas >> n.º 70 Jul/Set 2019 >> 2,50 Euros HOMENAGEM RUBEN DE CARVALHO ENTREVISTA LUIZ CARVALHO JANELAS PARA O MUNDO LEONEL DE CASTRO HISTÓRIAS DE JORNALISTAS OS JORNAIS E OS REPÓRTERES NAS 50 VOLTAS DE GUITA JÚNIOR AS MÚLTIPLAS AMEAÇAS DA DESINFORMAÇÃO PAULO NOVAIS MÉRITO António TELEVISÃO Victor Bandarra e Ana Luísa Rodrigues (ex-aequo) RÁDIO Mário Rui Cardoso IMPRENSA Virgílio Azevedo MULTIMÉDIA Diogo Cardoso e Sofia da Palma Rodrigues REVELAÇÂO Ricardo Esteves Ribeiro IMPRENSA REGIONAL Notícias de Gouveia FOTOGRAFIA Paulo Novais Prémios Gazeta 2018 Imagem vencedora, de Marcelo Rebelo de Sousa, captada na praia fluvial de Mosteiro, Pedrógão Grande i ÃÇ

JJ n.º 70 Jul/Set 2019 2,50 Euros - Clube de Jornalistas...JJ é uma edição do Clube de Jornalistas>> n.º 70 Jul/Set 2019>> 2,50 Euros HOMENAGEM RUBEN DE CARVALHOENTREVISTA LUIZ

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JJ é uma edição do Clube de Jornalistas >> n.º 70 Jul/Set 2019 >> 2,50 Euros

HOMENAGEM RUBEN DE CARVALHO ENTREVISTA LUIZ CARVALHOJANELAS PARA O MUNDO LEONEL DE CASTRO HISTÓRIAS DE JORNALISTAS OS JORNAISE OS REPÓRTERES NAS 50 VOLTAS DE GUITA JÚNIOR

AS MÚLTIPLAS AMEAÇAS DADESINFORMAÇÃO

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MÉRITOAntónio

TELEVISÃOVictor

Bandarrae Ana LuísaRodrigues(ex-aequo)

RÁDIOMário RuiCardoso

IMPRENSAVirgílio

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MULTIMÉDIADiogo

Cardosoe Sofia da

PalmaRodrigues

REVELAÇÂORicardoEstevesRibeiro

IMPRENSAREGIONALNotícias

de Gouveia

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PrémiosGazeta2018 Imagem vencedora, de Marcelo Rebelo de Sousa, captada na praia fluvial de Mosteiro, Pedrógão Grande

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Director

Direcção Editorial

Conselho Editorial

Grafismo

Secretária de Redacção

Propriedade

Tratamento deimagem

Impressão

Tiragem deste número

Redacção,Distribuição,

Venda eAssinaturas

Mário Zambujal

Eugénio AlvesPaulo Martins

Fernando CascaisFernando Correia Francisco MangasJosé Carlos de VasconcelosManuel PintoMário Mesquita

José Souto

Palmira Oliveira

CLUBE DE JORNALISTASA produção desta revista sóse tornou possível devido aosseguintes apoios:l Santander Tottal Casa da Imprensal Lisgráfical Fundação Inatel

ImpressEstrada da Ribeirinha, nº 92Pavilhão DAlcolombal de Baixo2705-832 Terrugem

Lisgráfica, Impressão e ArtesGráficas, SACasal Sta. Leopoldina,2745 QUELUZ DE BAIXO

Dep. Legal: 146320/00ISSN: 0874 7741Preço: 2,49 Euros

2.000 ex.

Clube de JornalistasR. das Trinas, 1271200 LisboaTelef. - 213965774 e-mail:[email protected]

N.º 70 JUL/SET 2019

SUMÁRIO

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOSDO CLUBE DE JORNALISTAS

E AOS ASSOCIADOS DA CASA DA IMPRENSAPERIODICIDADE TRIMESTRAL

Site do CJ www.clubedejornalistas.pt

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PRÉMIOS GAZETA 2018Distinguir a qualidade em tempos adversos. Premia-dos jornalistas do Expresso, TVI, RTP, Antena 1,Divergente, Fumaça e Lusa.

ANÁLISEDESINFORMAÇÃOA ameaça ao Jornalismo e à democracia analisada porquem a investiga: o jornalista português que tem des-bravado esse mundo, o espanhol que considera as fakenews armas de destruição massiva e a equipa univer-sitária que se propõe escrutinar o fenómeno.Por Paulo Pena, Gustavo Cardoso, Ana Pinto-Martinho,José Moreno, Rita Sepúlveda e Miguel Crespo

ATUALIDADE TRANSPARÊNCIA DOS MEDIA Uma nova área de intervenção do reguladorO conhecimento pelos cidadãos de quem detém e de quemfinancia órgãos de comunicação é indispensável. A ERC,que em breve disponibilizará o Portal da Transparência,esclarece o seu papel neste domínio. Por Carla Martins

MEMÓRIA AMÁLIA & BYASEvocação de um "encontro" em que fado e jazz não seentenderam. Por José Duarte

HOMENAGEM RUBEN DE CARVALHO Ruben, o Jornalismo, A FestaMorreu um velho amigo e camarada, um jornalista quehonrou o Jornalismo. Por Fernando Correia

ENTREVISTA LUIZ CARVALHO "Vejo a fotografia como um culto"Autor do magazine de fotografia "Fotobox", da RTP3,fala do seu percurso de 40 anos de fotojornalismo. Por Paulo Martins

JANELAS PARA O MUNDOALMAS Por Leonel de Castro

HISTÓRIAS DE JORNALISTAS OS JORNAIS E OS REPÓRTERES NAS 50VOLTAS DE GUITA JÚNIOR Por Gonçalo Pereira Rosa

SINDICATOPortugal eleito para Federação Internacionalde Jornalistas Por Sofia Branco

JORNAL[56] Noticiário [58] Sites[62] Livros

OPINIÃOPORQUÊ E PARA QUÊ? Por Victor Bandarra

JJ|Jul/Set 2019|3

Colaboram neste número

Ana Pinto-Martinho, Carla Martins, Gonçalo Pereira Rosa,Fernando Correia, Gustavo Cardoso, José Duarte, José

Frade, José Moreno, Mário Rui Cardoso, Leonel de Castro,Luís Taklim, Miguel Crespo, Paulo Pena, Rita Sepúlveda,

Sofia Branco e Victor Bandarra.

A ortografia dos artigos publicadosnesta revista corresponde à opção

dos respetivos autores.

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Assinatura anual > 4 números: > 10 Euros

( I N C L U I P O R T E S D E C O R R E I O )

Nome...........................................................................................................................Número de Contribuinte.........................................................................................Morada........................................................................................................................Código postal............................Localidade..............................................................Contactos.................................../........................................./......................................Profissão (fac.).....................................................Idade (fac.)...................................Desejo assinar a JJ com início no nº ......................................................................Para o respectivo pagamento envio cheque nº.....................................................Banco...........................................................................................................................Data.............................. Assinatura.....................................................................

Clube de Jornalistas - R. das Trinas, 127 r/c - 1200 857 Lisboa

JJ – Jornalismo e JornalistasA única revista portuguesaeditada por jornalistasexclusivamente dedicada aojornalismo

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Dossiês l análises l entrevistas l notícias l recensõesl crónicas l comentários l memóriasImprensa l Rádio l Televisão l Jornalismo digitall Fotojornalismo l Cartoon

Ao longo de mais de quinze anos, a JJ tem-se afirmado, quernas salas de redacção quer nas universidades, como umaferramenta fundamental para todos os que pretendem estarinformados sobre a reflexão e o debate que, no país e noestrangeiro, se vão fazendo sobre o jornalismo e os jornalistas.

Uma edição doClube de Jornalistas

Rua das Trinas, 127 r/c 1200 857LisboaTelef. 213965774e-mail: [email protected]

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Assine a JJ

Site do CJ www.clubedejornalistas.pt

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Composição do júriO júri dos Prémios Gazeta 2018 teve a seguinte constituição:Eugénio Alves (CJ), Cesário Borga (CJ), Eva Henningsen(Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal), FernandaBizarro (freelancer), Fernando Correia (jornalista e professoruniversitário), Elizabete Caramelo (professora universitária),Fernando Cascais (professor universitário e formador doCenjor) e Paulo Martins (jornalista e professor universitário).

PrémiosGazeta2018

Prémios Gazeta

Os Prémios Gazeta 2018, que consagraram o mérito do cartunista António(Expresso) e, no campo da Imprensa Regional, o Notícias de Gouveia, primarampela diversidade de meios distinguidos. Ana Luísa Rodrigues (RTP) e VictorBandarra (TVI) partilharam o Gazeta de Televisão. Mário Rui Cardoso (Antena1) arrecadou o de Rádio e Virgílio Azevedo (Expresso) o de Imprensa. O Gazetade Fotografia foi conquistado por Paulo Novais (Lusa). Diogo Cardoso e Sofiada Palma Rodrigues (Divergente) e Ricardo Esteves Ribeiro (Fumaça) forampremiados nas categorias de Multimédia e de Revelação, respetivamente. O júridestacou a qualidade dos trabalhos apresentados a concurso, produzidos emcontexto particularmente adverso para os media.

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Paulo Martins

Trump, com kipá na cabeça e óculos escuros, guiado por umcão com a cara de Netanyahu. O cartune, publicado no NewYork Times – ironicamente a 25 de abril, mas de 2019 – deubrado. “Antissemitismo!”, gritou no Twitter o presidente dosEstados Unidos, exigindo um pedido de desculpas. O jornalcedeu. Cedeu tanto que baniu caricaturas políticas da suaedição internacional. O “culpado” da tempestade, mais umgolpe na liberdade de expressão, é português. Chama-seAntónio Antunes, mas sempre assinou, simplesmente,António. É Prémio Gazeta de Mérito 2018.

O cartunista não sabe como foi o desenho parar às pági-nas do NYT. Sabe que nada tem de antissemita. Trata-sede uma crítica à política de Israel para com os palestinia-nos, com a qual o inquilino da Casa Branca é conivente.“Recuso-me a imaginar um jornal como o New YorkTimes sem cartunes. É triste, não percebo. Anular umamodalidade artístico-jornalística como o cartune não éseguramente um bom caminho para a imprensa”, decla-rou então à TSF.

António Moreira Antunes, nascido em Vila Franca de Xiraa 12 de abril de 1953, lida bem com a polémica. Quando em1992 colocou um preservativo no nariz de João Paulo II, oalvo não era o mundo católico, mas um Papa insensível àpropagação por via sexual de doenças fatais. Ouviu das boase seguiu em frente. A “escrever em desenhos”, como emtempos qualificou a sua arte, numa entrevista. Indisponível

para a autocensura, porque só aceita “adequar a forma, parasalvaguardar o conteúdo”.

Detentor de formação artística em pintura, adquirida naAntónio Arroio, e frequência da Escola Superior de BelasArtes, publicou o seu primeiro cartune no extinto República. A16 de março de 1974, dia do golpe falhado das Caldas contraa Ditadura. Não era atividade para levar a sério, mas, graças àsportas que Abril abriu, em dezembro desse ano instalou-se noExpresso. Embora tenha passado pelo Diário de Notícias, ACapital, Vida Mundial e O Jornal, fez carreira naquele sema-nário, onde em 1975 lançou Kafarnaum, rastilho de trabalhosque só não pediam indiferença, que seriam reunidos no seu pri-meiro livro. O segundo, “Suspensórios”, saiu em 1983, ano emque conquistou o Grande Prémio no XX Salão Internacionalde Cartoons, de Montreal. Publicou ainda duas edições de“Álbum de Caras” (1985 e 1987), um baralho de cartas “polí-ticas” e uma edição limitada de peças de cerâmica antropo-mórfica, com figuras como Eanes e Soares.

Multipremiado, com cartunes divulgados em antologias,exposições e jornais de vários países, António é curador daMostra Cartoon Xira, desde a primeira edição, em 1999, ediretor do World Press Cartoon. A sua obra chegou em 2012à estação do Aeroporto do Metropolitano de Lisboa: à vistade todos, 50 “Figuras de Lisboa”, caricaturas em pedraencastrada – de Amália a Eusébio, de Pessoa a Amadeo deSouza-Cardoso.

Homenagema quem “escreveem desenhos”

PRÉMIO GAZETA DE MÉRITO

António

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GAZETA DE TELEVISÃO

Victor Bandarra Nascido em 1958, lançou-se nojornalismo aos 20 anos, no DiárioPopular. Passou pelas agências ANOP,NP, cuja equipa fundadora integrou, eLusa, e por jornais – Portugal Hoje,Expresso, Tal & Qual e O Inimigo. Foicorrespondente em Portugal da

Teledifusão de Macau e coautor e guionista de novelase séries. Hoje, é redator-principal da TVI e cronista darevista Domingo, do Correio da Manhã.“Ciganos – uma longa sina” é uma reportagem emitida emduas partes na rubrica “TVI Repórter”, do Jornal das 8: a29 de janeiro e a 4 de fevereiro de 2018. Dá a conhecervivências de uma comunidade tantas vezes vítima deracismo. Para quebrar preconceitos e ideias feitas. Ou paraque, todos portugueses, nos conheçamos melhor. Incluindociganos que vivem numa prisão.

Ana Luísa RodriguesJornalista da RTP desde 1997, nasceuem 1975. É licenciada em Ciências daComunicação pela Faculdade deCiências Sociais e Humanas (FCSH,Universidade Nova de Lisboa) emestre em Ciências Sociais peloInstituto de Ciências Sociais

(Universidade de Lisboa), com uma dissertação quedeu origem ao livro “Aos olhos do mundo – Portugal eos portugueses retratados por correspondentesestrangeiros” (2008). Foi docente da UniversidadeLusófona. Integrou a Direção do Sindicato dosJornalistas.Estórias de portugueses que passaram pelos campos deconcentração nazis, deportados a partir de França,esquecidas em arquivos alemães e franceses: eis o tema de“Deportados para Outro Mundo”. Primeira grandereportagem que em televisão abordou o tema abafado pelacensura salazarista, em nome da neutralidade oficial do paísna II Guerra Mundial, e a democracia só recentementecomeçou a encarar. Foi emitida na RTP 3 a 11 de maio.

GAZETA DE IMPRENSA

Virgílio AzevedoTem 62 anos e é jornalista doExpresso desde 1982. Já foi editor deEconomia – é licenciado pelo ISEG– e de Assuntos Europeus. Hoje,concentra-se nas áreas da Ciência,Ambiente e Ordenamento doTerritório. Docente e coordenador-

geral de estágios do Grupo Impresa e daRenascença da Pós-Graduação em JornalismoMultiplataforma da FCSH, integrou o núcleofundador da revista Futuro (1986) e é coautor dolivro “Nuclear – O debate sobre o novo modeloenergético em Portugal” (2006).“Investigação na Ilha Terceira – Contaminação nosAçores”, sobre o impacto na saúde e na qualidade de vidados residentes da contaminação de solos e aquíferos pelaBase das Lajes, deu origem a sete peças publicadas naversão impressa do semanário entre 10 de março e 21 deabril e a mais seis no Expresso Online, a última a 14 desetembro.

GAZETA DE RÁDIO

Mário Rui Cardoso Nascido em 1970, é licenciado emComunicação Social pela FCSH.Jornalista desde 1991, colaborou noExpresso e na Visão. Na Antena 1desde 1993, especializou-se nas áreasde Cultura e Internacional. Foi editorde Cultura da RTP e da Antena 1 e

editor e consultor do programa “Câmara Clara”, naRTP 2. Hoje, edita o “Visão Global. Colabora naJornalismo & Jornalistas desde o primeiro número.A reportagem “Teremos Sempre Paris”, evocativa do 50ºaniversário do Maio de 68, em França, foi transmitida naAntena 1 a 2 de maio. É um registo diferente do habitual,que a “imagens sonoras” da época associa um conjunto dedepoimentos maioritariamente de gente anónima,portugueses que testemunharam os acontecimentos.

GAZETA DE MULTIMÉDIA

Diogo Cardoso e Sofiada Palma Rodrigues

Diogo Cardoso,diretor da publicaçãodigital Divergente,passou pela Antena 3,foi produtoraudiovisual, viajandoe trabalhando na

Europa, África, Ásia e Américas. É licenciado emJornalismo pela Universidade de Coimbra. Desde2014, foca-se sobretudo no campo do cinemadocumental e do jornalismo de investigação. Sofiada Palma Rodrigues, jornalista há dez anos,trabalhou no Público e como freelancer. Fezreportagens na Europa, África e América Latina,sendo hoje repórter e editora da Divergente.Licenciada e mestre em Ciências da Comunicaçãopela FCSH, é estudante de doutoramento em

Prémios Gazeta

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Estudos Pós-Coloniais na Universidade de Coimbra.Ambos integram a Bagabaga Studios, cooperativa deprodução em media digital.O impacto do investimento agrícola em terras férteis deMoçambique, sobretudo o Corredor de Nacala, na vida demilhares de camponeses, privados das suas propriedades, éo tema de “Terra de todos, terra de alguns”. O trabalho,que beneficia de múltiplos recursos multimédia, entrou emlinha na Divergente a 12 de julho. Contou com versãoimpressa no Público e televisiva na RTP África.

GAZETA DE FOTOGRAFIA

Paulo Novais Participou na saga das rádios-piratas,envolvendo-se no arranque dasemissões da Rádio Clube daPampilhosa, mas acabou por dedicar-se ao fotojornalismo – no Diário deCoimbra, no Jornal de Coimbra e, desde1994, na Lusa. Estudou Engenharia

Eletrotécnica na Universidade de Coimbra. Foiprofessor nas áreas de Informática e Paginação doscursos de Artes Gráficas e de Comunicação Social eMultimédia da Escola Profissional da Lousã.O périplo de Marcelo Rebelo de Sousa pelas regiõesfustigadas por incêndios no verão de 2017 foiacompanhado a par e passo por Paulo Novais, paraabastecer órgãos de comunicação. A imagem vencedora,captada na praia fluvial de Mosteiro (Pedrógão Grande) fezparte de uma galeria disponibilizada a 29 de agosto naedição digital do Público, com o título “Os 1001mergulhos do Senhor Presidente”.

GAZETA REVELAÇÃO

Ricardo Esteves RibeiroNascido em 1993, Ciência Políticaou Filosofia eram os cursos que, aos17 anos, tinha em mente.Frequentou o de Gestão, maspercebeu que o seu destinoprofissional não era aquele.Trabalhou em empresas

tecnológicas em Lisboa e Milão, satisfazendo emblogues, sob pseudónimo, o “bichinho” da escrita.Fez parte, em 2016, do grupo fundador do Fumaça,projeto de jornalismo independente.Série audio-documental publicada em seis episódios naplataforma digital Fumaça, entre 15 de maio e 2 deagosto, “Palestina, histórias de um país ocupado” dá voza quem resiste à ocupação israelita, ao mesmo tempo queconta, de forma exaustiva, como tudo se passou, desde1948. Foi gravada entre Ramallah, Hebron, Belém eJerusalém.

PRÉMIO IMPRENSA REGIONAL

Notícias de Gouveia

105 anosa defendera região“Forte elo de ligação entre as muitascomunidades de gouveenses espalhadas peloterritório nacional e no estrangeiro”. É este ocompromisso, vertido no Estatuto Editorial, doNotícias de Gouveia, trimensário distinguido como Prémio Imprensa Regional. Cento e cinco anosde vida estão aí para provar que a opção vale apena.Propriedade da Associação de BeneficênciaPopular de Gouveia (ABPG), o jornal tem umatiragem de 2200 exemplares. Dirigido por LilianaCarona desde 2015, conta com pouco mais deuma dúzia de colaboradores permanentes. PauloPrata é chefe de redação e Paulo Saul encarrega-se das tarefas gráficas e administrativas. A ofertado Notícias de Gouveia acompanha os tempos:além da versão em papel, está disponível emwww.noticiasdegouveia.pt, no Facebook, e noYoutube.Lançado em 12 de fevereiro de 1914, ainda aGrande Guerra não eclodira, apresentava-secomo “semanário evolucionista”, ligado aopartido de António José de Almeida, no qualalinhavam o dono, João Pinto de Sousa, e odiretor, Afonso Xavier de Oliveira Fonseca. Tãocaraterístico dos periódicos da I República, o selopolítico foi sol de pouca dura. José de AlmeidaMotta, que assumiu a propriedade e a direçãologo em maio de 1914, removeu-o dois anosvolvidos.O Notícias de Gouveia proclama-se, desde então,“defensor dos interesses da região”.O jornal passou a ser, em 1970, dirigido pelofilho do proprietário, Carlos Gomes de AlmeidaMotta, subdiretor há 16 anos. Foi substituído, em1995, por Hercílio Azevedo Ribeiro, na sequênciada transferência da titularidade para a ABPG. Amudança para trimensário ocorreu em 2007.

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10|Jul/Set 2019|JJ

AMEAÇA AOJORNALISMOAMEAÇA ÀDEMOCRACIAO fenómeno da desinformação não ameaça apenas oJornalismo; institui-se como arma ao serviço de quemaposta na destruição da democracia. Exige, por isso,respostas urgentes, nos dois planos.

ANÁLISE

DESINFORi

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Éao Jornalismo, enquanto disciplina deverificação dos factos, que cabe a maiorfatia de responsabilidade na resposta àsfake news: eis a conclusão de Paulo Pena,o jornalista que em Portugal mais se temdedicado a investigar a questão. Nestedossiê, assina um extenso artigo, que

convoca boa parte dos trabalhos publicados no Diário deNotícias e noutros jornais parceiros do Investigate Europe,de que faz parte.

Para compreender o que está em causa no mundo dadesinformação, ajuíza, não basta apurar as motivaçõespolíticas subjacentes. É necessário seguir as pistas de umnegócio lucrativo, baseado na publicidade direcionada,que vive de receitas antes consignadas à produção jorna-lística. Não se trata de uma realidade exótica: há mais de40 páginas online portuguesas de desinformação.

Paulo Pena, que nos dá conta da relutância dos gigan-tes do digital em ajudar a combater o fenómeno, afirmauma convicção: “Podemos, apesar de tudo, estar segurosde que a investigação jornalística pode desempenhar umpapel importante na compreensão deste problema”. Daíque proponha a abertura do debate, para que o

Jornalismo seja capaz de “recriar uma ligação profunda,séria e útil com os cidadãos”.

O jornalista espanhol David Alandete, autor do livro“Fake news: La nueva arma de destrucción masiva”, sus-tenta, em entrevista à JJ, que a interferência russa em pro-cessos eleitorais demonstra a importância do Jornalismo,“mais necessário do que nunca”. A partir das investigaçõ-es que empreendeu, não tem dúvidas acerca dos danoscausados pela desinformação: “O que era uma técnica demanipulação converteu-se numa forma sistemática defazer política e de governar”.

Um grupo de investigadores do ISCTE, finalmente,revela nestas páginas em que consiste o projeto“Monitorização de propaganda e desinformação nasredes sociais”, que visa identificar mensagens, protagonis-tas e canais de desinformação cujo objetivo é influenciar odiscurso político através do Facebook, Youtube e Twitter.O projeto constitui o contributo da academia para o aler-ta e a prevenção da disseminação de propaganda malicio-sa. O trabalho já realizado pela equipa, liderada porGustavo Cardoso, permitiu perceber que a corrupção é,em Portugal, o tema eleito por quem difunde conteúdosfalsos.

ORMAÇÃO

ÃÇJJ

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12|Jul/Set 2019|JJ

DESINFORMAÇÃO:DOS AUTORESAO NEGÓCIOQUE A ALIMENTA– E O DESAFIO PARAO JORNALISMOPaulo Pena

Aminha primeira conversa, em Portugal,sobre fake news começou mal, e acaboupior…Liguei a Tiago Sousa Freitas de manhã,no dia 27 de julho de 2018. Ele é advoga-do, especialista em swaps e credit defaultswaps, num dos mais co nhecidos escritó-

rios de Lisboa, a sociedade liderada por Diogo Leite Campos,fiscalista e professor de Direito. Mas a razão para o meu tele-fonema era outra. Freitas escreveu um texto sobre Portugalque rapidamente se tornou viral no Twitter.

O texto não é, sequer, um exemplo perfeito do que chama-rei aqui de fake news (para simplificar, embora a expressão sejaenganadora). Não era um daqueles casos em que uma men-tira intencional é posta a circular com o objetivo de manipu-lar opiniões.

O advogado escreveu um texto em que desabafava sobrea influência do “marxismo” no Governo português. Dava, éclaro, factos falsos para justificar a sua convicção. Um exem-plo: para o autor, os marxistas portugueses tentaram aprovara legalização da eutanásia – quando se sabe que o único par-tido que se assume como marxista no Parlamento, o PCP,votou contra essa legalização.

Mas não é o teor do artigo que é curioso. Curioso é o órgão

que o publica, o Gatestone Institute. Quando me atendeu otelefone, Freitas recusou-se a falar sobre esse site: “Estou maisincomodado com o seu telefonema”.

“Não tenho nada a dizer sobre o assunto”, foi a primeirafrase que ouvi.

E o final não melhorou. “Não lhe dou qualquer autoriza-ção para escrever sobre o assunto”.

Sendo a autorização desnecessária, a conversa telefónicanão progrediu.

Mas isso não nos impede de perceber o que é o GatestoneInstitute, um site com edição em muitas línguas, incluindo oportuguês. É um dos mais conhecidos divulgadores de notí-cias falsas dos EUA. Notícias como esta: há uma “crise de vio-lações cometidas por refugiados” na Europa, o Reino Unidoé uma colónia muçulmana. Ou esta: “Alemanha: Doençasinfecciosas alastram com a chegada de refugiados”. Ou aindaesta: “O Reino Unido proibiu a imprensa de divulgar que ata-ques terroristas são praticados por muçulmanos”.

As principais financiadoras do site – fundado em 2012 –são duas milionárias norte-americanas, apoiantes de DonaldTrump, Nina Rosenwald e Rebekah Mercer, esta última filhado milionário Robert Mercer. Ambos, pai e filha, são os prin-cipais financiadores de Steve Bannon, ex-diretor da campan-ha de Trump, ex-chefe de estratégia da Casa Branca, e que

ANÁLISE

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atualmente se dedica a apoiar os movimentos populistas deextrema-direita na Europa. Os Mercer são também donos daCambridge Analytica, a polémica empresa que ajudou amanipular informações no Facebook nas eleições americanase no Brexit.

Segundo uma investigação do The Intercept, o Gatestonetentou influenciar com notícias falsas as recentes eleições emvários países europeus: França, Holanda, Áustria eAlemanha. Apesar de ter uma versão em português, nãoconstava ainda do registo do site americano nenhuma cola-boração nacional. Até que Tiago Sousa Freitas descreveu astentativas de impor o marxismo em Lisboa.

Foi aí que começou um trabalho que me ocupou boa partedo último ano. Depois de tentar falar com Freitas, sem êxito,consegui entrevistar vários outros criadores de fake news emPortugal. João Fernandes, que gere o site Direita Política –onde surgiu a história falsa do relógiode Catarina Martins, do BE, por exem-plo – ou Mário Gonçalves, também eleum jovem editor de sites online, estechamado Gazeta Política, onde difundementiras como a de haver um processojudicial, iniciado pelo primeiro-ministroAntónio Costa, contra o repórter-foto-

gráfico da Reuters que registou o momento em que umadeputada do PS arranjava as unhas no hemiciclo.

ANONIMATO, REGISTOS FALSOS, PLÁGIOOs exemplos são muitos. Há vítimas de fake news em quasetodos os partidos. E o que eu pensava ser uma realidade ama-dora, pequena, pouco influente, é afinal muito mais comple-xa e eficaz.

Muitos destes sites de fake news apresentam-se como sefossem órgãos de comunicação social. Há umSemanarioextra. Um Jornaldiario. Um Noticiario.com. UmMagazinelusa. Nenhum destes sites é, de facto, um órgão deinformação. Nenhum deles tem registo, nem apresenta onome de uma única pessoa, real, associada. Há mais de 40páginas de desinformação, portuguesas. É uma rede profis-sional. Ou, se quisermos, uma indústria.

Ao copiar as notícias, opiniões eentrevistas dos jornais que de facto exis-tem e estão registados, estes sites gan-ham dinheiro, pago pelo Google, empublicidade. Mas não só: a sua influên-cia (alcance, número de visitantes), queé medida oficialmente, faz com que ten-ham primazia no algoritmo do

O site Gatestone Institute é um dos mais conhecidos

divulgadores de notícias falsas dos Estados Unidos

Há mais de 40 páginasde desinformação,portuguesas. É uma redeprofissional. Ou, sequisermos, uma indústria

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Facebook. Quanto mais populares forem, mais visíveis e maisrentáveis serão. É um ciclo vicioso.

Segundo dados do sistema de análise usado para avaliaras audiências em redes sociais, é comum que dois dos trêsartigos escritos em Portugal com mais partilhas no Facebooksejam publicados por páginas de desinformação. Ou que trêsartigos dos cinco mais replicados venham de sites que imitamórgãos de comunicação social, mas não estão registados naentidade reguladora (ERC), nem têm donos identificáveis.

O Altamente, por exemplo, tem a mesma identificação(Google Analytics) de vários outros sites ali registados, dosmesmos donos: Cura Natural, 1001 Ideias, Muito Bom, MuitoFixe, e outros. O registo é falso, do princípio ao fim. Comoadministrador, está registada uma empresa, a JavaliProductions, que não existe. A morada é Rua de Cima e deBaixo, Porto. Também não existe. E o telemóvel do adminis-trador é, como os leitores terão adivinhado, falso também:911111111.

O que significa outra coisa: além dos crimes praticadospela desinformação propriamente dita (difamação, plágio,entre outros), esta atividade faz-se também à revelia das nor-mas fiscais. O dinheiro ganho em publicidade, pago pelaGoogle, muito dificilmente será declarado. Os trabalhadoresdestas “empresas” clandestinas não farão descontos sobre oque recebem.

O NEGÓCIO PUBLICITÁRIOSe é clara a motivação política das fake news, menos óbvia é asua rentabilidade, como negócio. Essa foi a segunda etapa domeu trabalho.

A avenida é plana. No número 5455, num edifício de 11andares, fica a sede e a “redação” do mais eficaz site de desin-formação de Portugal. Mas a Avenue de Gaspé, onde o site éescrito e administrado, está no Mile-End, um bairro do centrode Montréal, capital do Quebeque, no Canadá.

É, então, do outro lado do Atlântico, que alguém tecla numcomputador as “notícias” – assim lhes chamam – que pedemuma “revolta” em Portugal. Que dizem que AssunçãoEsteves, ex-presidente da Assembleia da República, militantedo PSD, “faz parte da quadrilha que governa Portugal”(“Quem pode, rouba!”).

Chama-se Fan-o-Web a editora canadiana que é dona doVamos Lá Portugal. É uma empresa de websites canadiana,que se anuncia como o “sítio ideal para todo o tipo de anun-ciantes”. A única, vaga, relação que tem com Portugal é onome de um dos seus fundadores,Filipe Bastos, que com dois sócios cana-dianos concebeu esta plataforma depáginas. Em 2016, um grande grupocanadiano, chamado Attraction, com-prou a Fan-o-Web. O Vamos LáPortugal estava no pacote de títulos quemudaram de mãos.

Os 900 mil seguidores portuguesesdo site talvez não saibam, mas a

Attraction é liderada por um bem-sucedido empresário cana-diano chamado Richard Speer, que é descrito no site daempresa como tendo “as qualidades inegáveis dos grandeslíderes agregadores”. Hoje, o Vamos Lá Portugal é apenasuma das muitas páginas onde o grupo canadiano faturapublicidade. As mentiras são a constante, ali.

A página anuncia “notícias”, mas não as faz. Tem partes detextos copiadas de outros jornais, de outros sites do mesmogénero, e muitos conteúdos inclassificáveis. Como este:“Adolescentes estão a usar pensos higiénicos para se drogar!Alguns também usam fraldas sujas”. Só no Facebook, tempáginas específicas para animais, gastronomia e “notícias”destas.

Os consumidores da desinformação desta página em con-creto são um quarto dos votantes habituais em Portugal. Eisso explica, em parte, a razão de ser deste estranho site cana-diano. Estas mentiras são populares. Há milhares de pessoasa visitar o site, dezenas de milhares a partilhar a desinforma-ção, centenas de milhares a visitar as páginas nas redessociais.

O resultado deste estranho mundo “viral” é um negóciolucrativo. Segundo dados da plataforma Similar Web, há maisde sete mil visitantes diários do site. Calculada com base nessenúmero de visitantes, a publicidade paga pelo Google ascen-de a milhares de euros mensais. A estimativa é feita tendo emconta um valor de 2,12 euros por CPM (Cost Per Thousand,custo por mil, o indicador que calcula o preço de um anúnciovisto por mil pessoas). Segundo o site de análise Cutestat, oVAMOS LÁ PORTUGAL vale mais de 200 mil euros e tem umrendimento mensal publicitário superior a 9000 euros.

Bastava abrir a página e constatar. Havia cinco espaçospublicitários, pagos pelo Google, em cada página da secçãode “notícias” deste site, mas depois de publicada a minha his-tória o Google cancelou o contrato publicitário com o site.

A PUBLICIDADE DIRECIONADAOs anúncios variam, como é normal, de pessoa para pessoa.Podem ser cadeias de hotéis, livrarias online, o que quer queo Google saiba que cada um de nós costuma comprar online.

É assim que se explica este novo negócio em expansão: apublicidade direcionada. O Google, ou o Facebook, têm infor-mações precisas sobre os nossos gostos, hábitos e crenças.Sabem o que lemos, que tipo de histórias nos interessam, oque compramos, onde e como. Toda essa informação foi-lhesdada, com consentimento, por muitos milhões de pessoas.

Isso permite que estas empresas cons-truam um novo modelo de venda deanúncios. Este é um mercado gigante –só o Google pagou mais de 12 mil mil-hões de euros de publicidade – masquase sem regulação. Com o conheci-mento que tem de cada um de nós, oGoogle pode garantir aos anunciantesque vai vender a sua publicidade emtodo o lado, às pessoas certas.

ANÁLISE Desinformação

Grupos de militantes dadireita radical organizam“comunidades” falsasnas redes, que alastram amensagem, tornando-adominante

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Nos jornais impressos, na rádio e na TV, o mecanismo ébem diferente. Os anunciantes pagam publicidade acreditan-do que aquele meio chega às pessoas que esperam convencer.Há outra diferença, ainda maior: quando anunciam num jor-nal, as empresas conhecem o seu estatuto, as suas normas.Estão a comprar publicidade num órgão que tem regras e uti-lidade social. Quando delegam nos agregadores gigantesessa escolha, o critério é bem diferente.

Segundo o último relatório do Obercom, mais de 60% dosportugueses consomem informação nas redes sociais. E estarelação entre empresas publicitárias que dominam o acesso àinformação e páginas de desinformação que prosperam gra-ças a essa publicidade, tornou-se um labirinto moderno.

Num artigo publicado na Motherboard, a investigadoraNathalie Maréchal aponta o risco: “Tudo se desmoronou coma publicidade direcionada, que roubou o dinheiro do jornalis-mo e o usou para sustentar plataformas cuja lógica não é edu-car, informar ou responsabilizar os poderosos, mas manter aspessoas ‘engajadas’. Essa lógica de ‘engajamento’ é motivadapela necessidade dupla de agregar mais dados e mostrar maisanúncios, e manifesta-se por algoritmos que valorizam apopularidade em detrimento da qualidade. Em menos de 20anos, o Silicon Valley substituiu as regras editoriais por medi-das matemáticas de popularidade, desestabilizou os sistemasdemocráticos de freios e contrapesos, prejudicando o QuartoPoder, e martelou mais um prego no caixão da privacidade”.

EXTREMA-DIREITA É A MAIS ATIVA NAS REDESDe Lisboa a Varsóvia, de Roma a Oslo, há um pequeno grupode militantes da direita radical, anti-migrantes, que conseguetirar partido desta nova realidade. Criam sites de fake news,

que depois distribuem nas redes sociais de forma repetitiva.Organizam “comunidades” falsas nessas redes, com a ajudade ferramentas tecnológicas, que depois alastram a mensa-gem, tornando-a dominante. A maioria dos europeus des-conhece estas novas formas de propaganda.

Há boas razões para que 73% dos europeus se mostrem“preocupados” com os efeitos da desinformação, como mos-tra o Eurobarómetro. Mesmo os especialistas ficam perplexoscom a dimensão do problema.

Raymond Serrato está sentado a uma mesa de madeiranum café de Berlim. Tem o seu portátil ligado e vai deslizan-do o cursor sobre uma lista de 483 vídeos que identificou.Todos diziam mais ou menos o mesmo: os governos euro-peus querem abrir as suas fronteiras aos migrantes. Numamanhã de sol, em março de 2019, o jovem analista de dadosnorte-americano desabafa: “Não pensei que fosse assim tãomau…”.

Essa campanha ficou bastante clara, logo na primeira reu-nião de análise de dados que tivemos com a Alto Analytics,uma empresa de análise de dados que trabalhou com oInvestigate Europe de janeiro até maio, recolhendo provas dainfluência da desinformação nas redes sociais. Os resultados,preliminares, recolhidos entre dezembro e janeiro, mostra-vam uma coincidência em quase todos os países da amostra.O “pacto da ONU”, “pacto de Marraquexe”, ou – nas palavrasde Marine Le Pen – “pacto do Diabo”, estavam bem visíveisnas listas de termos que marcavam o debate político emFrança, na Espanha, na Itália, na Alemanha. Como na maio-ria das campanhas de desinformação, hoje em dia, o grupodos perfis mais ativos partilha certos recursos. No “pacto deMarraquexe”, os 200 perfis mais ativos eram relativamente

A história falsa do relógio de Catarina Martins surgiu no site Direita Política e foi replicada

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novos, 22,5% tinham conta no Twitter há menos de um ano e37,9% criaram o seu perfil nos meses anteriores à reunião emMarraquexe.

Na Europa, os partidos eurocéticos, anti-migrantes, e deextrema-direita são os mais mencionados no debate públicoonline. É essa a conclusão do trabalho, que analisou mais de48 milhões de mensagens publicadas online entre 15 dedezembro de 2018 e 20 de janeiro de 2019, por 3,6 milhões deutilizadores (Twitter, páginas e perfis públicos no Facebook,Instagram, Vimeo, Youtube e Google+, sites de informação,fóruns e blogs).

Thomas Boestchoten, fundador da Utrecht Data School,que estuda o comportamento da extrema-direita online apósos ataques em Utreque, em março de 2018, não se surpreen-de com estes resultados. “Se os grupos nacionalistas domi-nam o debate online, é em parte porque as redes sociais sãoprogramadas dessa maneira: as mensagens extremas rece-bem mais atenção dos utilizadores, os algoritmos recomen-dam as mensagens mais populares e como não têm filtros éti-cos ...” Para este investigador académico, as redes sociais nãosão responsáveis pelas mensagens extremas mas, por outrolado, o seu modo de funcionamento potencia os comporta-mentos extremos.

Nathalie Maréchal é uma investigadora universitária quetrabalha para a ONG americana Ranking Digital Rights. Nasua opinião, revela-nos numa entrevista, a mudança no deba-te político europeu já é visível. “Isso já está a acontecer por-que não existe regulamentação. Os partidos com menosescrúpulos vão fazer tudo o que acharem necessário paraalcançar o poder, o que significa que muitas pessoas que estãoa fazer campanha a favor de formas antidemocráticas, anti-

direitos humanos e antieuropeias vão ser as mais ativas nautilização de dados para transmitir a mensagem política onli-ne”. E isso ajuda-nos a perceber o lado escondido desta cam-panha política que decorre na Europa. Um pouco por todo olado, de Lisboa a Varsóvia, há “utilizadores anormais” aenquadrar o debate sobre os principais temas das nossassociedades.

UMA CAMPANHA COORDENADA ALÉM-FRONTEIRASDa eleição presidencial norte-americana, em 2016, ao Brexit,ao Brasil, às Filipinas, há indícios de que a desinformaçãopode ter um papel nas decisões políticas tomadas pelos cida-dãos. Um estudo da ONG Avaaz concluiu que a Europa estáparticularmente vulnerável. A história recente “mostra clara-mente que as respostas do Facebook e de outras plataformasface à desinformação na Europa são ineficazes e representamuma séria ameaça ao discurso público saudável e à estabilida-de democrática”. Essa é a armadilha que ameaça o sistemademocrático. Seja para organizar execuções extrajudiciais, nasFilipinas de Duterte, ou para conhecer a demografia exataque deu a Trump uma maioria no Colégio Eleitoral america-no. A nossa biografia online é uma ferramenta ao dispor deprojetos políticos sem ética.

No Brexit, nas eleições em França, em Itália ou no Brasil, jávimos como funciona. Mas veremos mais e melhor. A partirde agora, será igualmente fácil propagar um vídeo manipula-do com declarações falsas de um político. Um vídeo que pare-ce real. Que pode até convencer o mais cético.

A desinformação em escala industrial alimenta-se domesmo ritmo “viral” que faz das grandes redes sociais mono-polistas da publicidade. É um negócio. E ajuda a explicar

ANÁLISE Desinformação

Assunção Esteves, ex-presidente da Assembleia da República, também já foi alvo de notícias falsas

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como, de repente, logo após uma crise financeira, muitas dasgrandes democracias do mundo se tornaram “populistas”,“identitárias”, “nacionalistas”.

Uma prova, matemática, desta escalada online é-nos dadapelos analistas da Alto Analytics. Qual é a probabilidade dehaver mais de 500 perfis do Twitter a publicar críticas ao“pacto de Marraquexe” em várias línguas? É extraordinaria-mente remota. A hipótese de haver um utilizador do Twittera publicar, simultaneamente, em três línguas diferentes, sobreo mesmo tema, é esta: acontece uma vez em cada seis milhõ-es. Há 26 contas, detetadas pela Alto, a fazê-lo na Europa.

OS BOTS E OS PERFIS FALSOSSigamos um perfil do Facebook com o nome de “Maria Silva”.Não tem amigos. Publica em inglês. Partilha sobretudo dis-curso de ódio, anti-migrantes e anti-islâmico, recorre a sitesde desinformação, sugere formas de garantir o anonimatoonline. Fomos mais longe: tentámos saber se a sua fotografiade perfil é verdadeira. Procurámos, através da pesquisa deimagens do Google, e chegámos à fotografia original, que nãoé de nenhuma “Maria Silva”. É uma fotopublicitária de uma agência de modelosfotográficos, descrita assim em váriaslínguas: “Mulher de trinta anos com osbraços cruzados”. “Maria Silva” nãoexiste.

É a perfis como este que se deu onome de bots, diminutivo de robots. Osbots, como “Maria Silva”, podem sermáquinas programadas para interagirnas redes sociais, publicar comentários,

partilhar links, fazer “gostos”. Podem também ser “híbridos”:perfis falsos criados por uma mesma pessoa, e usados por ela,com vários pseudónimos, falsas identidades. O objetivo é omesmo: enganar os outros utilizadores, sugerindo que umaideia tem vários adeptos. A multidão, falsa, de bots transformao debate online num terreno muito perigoso.

Ben Nimmo, analista do think tank norte-americanoAtlantic Council, observa há anos como os grupos políticosusam as redes sociais para influenciar o discurso público. “Asredes sociais são perfeitas para pequenos grupos que queremser grandes”, explica. Por um lado, permitem-lhes criar con-tas falsas, sob nomes falsos. Por outro lado, conseguem teruma influência desproporcional se passarem muito temponas plataformas.

“Um grupo de dez pessoas que decide gastar todo o seutempo em plataformas e redes sociais pode espalhar tantoconteúdo que até parece ser um grande movimento”. Navida real isso é impossível, prossegue Nimmo. Quando umgrupo de dez pessoas se manifesta na rua, não importa oquão alto gritem, todos conseguimos ver que estão apenas

dez pessoas na rua.Entrevistámos, na Polónia, um espe-

cialista em marketing político nas redes.Andrzej (pediu-nos para não usarmos asua identidade real) explica: “Fizemosassim: criámos vinte páginas de fãs noFacebook e dinamizámos o movimentocom campanhas pagas. Os nossostemas eram, por exemplo, o facto de agasolina ser muito cara ou que os salá-rios de uma parte da população eram

Vamos Lá Portugal é apenas uma das muitas páginas onde um grupo canadiano fatura publicidade

A partir de agora, seráigualmente fácil propagarum vídeo manipuladocom declarações falsasde um político. Um vídeoque parece real. Quepode até convencer omais cético

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baixos. Um dia depois, desistimos de 15 dessas páginas, por-que não funcionavam. As pessoas reais não interagiam comelas. Ficámos com apenas cinco, e foi aí que fizemos o resto dacampanha. Isto é o que a verdadeira propaganda online pre-cisa – não se trata de quantidade, mas de fazer o que tem efei-to. Encontrar linhas narrativas que interessam às pessoas.Quando as pessoas começam a interagir com elas, somosbem-sucedidos”.

Em Portugal temos um exemplo concreto. Foi apenas, aoque tudo indica, uma experiência inconsequente. Mas mos-trou o que pode ser o lado B de uma campanha eleitoral: umarede de perfis falsos criada para difamar políticos.

Esta é uma história com várias vítimas. António Costa,Marques Mendes, Ferro Rodrigues, Francisco Pinto Balsemãosão alguns dos muitos portugueses difamados. A identidadede Miguel Sousa Tavares é usurpada para assinar uma fraseque nunca escreveu. Há “piadas” sobre o caso Casa Pia, car-tazes forjados, frases falsas atribuídas a políticos, ligações parasites de fake news.

Dezoito contas falsas, criadas nas redes sociais, foram abase de um plano de propaganda eleitoral sem regras. Sóhavia quatro pessoas, reais, a interagir com estes perfis falsos.

Larissa Rossetti diz ser de Silves e apresenta-se com umafoto de Sophia Loren. António Candeias, alegadamente deSintra, usa uma foto de agência de modelos muito partilhadaem vários países. Andressa Bodião, deSidney, Austrália, prefere usar a foto deum urso panda. Viviane Azevedo, daFigueira da Foz, escolheu uma flor dealeli. Renata Hébil está de costas e nãodiz de onde escreve. Nos motores debusca, não existe nenhuma referência aestas pessoas.

Todas estas contas foram criadas namesma altura, no início de março desteano. Todas escrevem exclusivamente

sobre política. Todas publicam exatamente as mesmas histó-rias, com poucos minutos de intervalo. Todas usam a mesmapalavra-chave (hashtag): geringonçanuncamais.

Em fevereiro, o Diário de Notícias e um grupo de investiga-dores do CIES-IUL, do ISCTE, iniciaram um trabalho conjun-to, o projeto “Monitorização de propaganda e desinformaçãonas redes sociais”, coordenado por Gustavo Cardoso, e pelosinvestigadores José Moreno, Ana Pinto-Martinho, RitaSepúlveda e Miguel Crespo [ler artigo nas páginas seguintes].Esse trabalho ainda está em curso, mas a equipa que desen-volve a investigação encontrou a palavra-chave “geringonça”quando procurava campanhas organizadas no Twitter sobrecorrupção. O termo que designa a maioria parlamentar deesquerda era um dos que decidíramos incluir na pesquisa.

A partir daí, a equipa do ISCTE continuou a monitorizarestas e outras hashtags e tweets e averiguámos o percurso dascontas “geringonçanuncamais” – e dos seus seguidores reais.Os perfis falsos começaram a publicar com a precisão de umamáquina. Com poucos minutos de intervalo, os mesmostemas eram replicados em todas as contas.

Quando esta história foi publicada, no DN, o consultor decomunicação do PSD, que era uma das pessoas que interagiacom os bots, demitiu-se – ainda que negando ter tido qualquerpapel na criação daqueles perfis.

Os bots não são proibidos pela lei. Mas a sua atividade dis-torce, de várias formas, o debate. PaulButcher, analista político do think tankEuropean Policy Center, explica como:“Se há pessoas muito ativas online afalar sobre o perigo dos migrantes,todas a falar sobre o mesmo assunto,então isso funciona como uma bola deneve: mais e mais pessoas reparam noassunto e começam a falar sobre isso. Écomo as redes sociais funcionam, é oseu método padrão. No fim, o assunto

ANÁLISE Desinformação

As fake newsaproveitam-se da“bolha de informação”em que vivemos.Isso alimenta as nossascrenças

António Costa em cartazes falsos. Identidade de Miguel Sousa Tavares usurpada para assinar uma frase que nunca escreveu

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torna-se comum para milhões de pessoas e algumas delasacabam por ser convertidas a essa ideologia”.

A INFORMAÇÃO ESTÁ A MUDAR, NAS REDES SOCIAISO Brasil guarda a memória de como tudo funciona. “Em2018, eu aprendi que as fake news são muito mais perigosas,resistentes e toleradas do que eu imaginava. E que as eleiçõ-es só aguçam seu efeito perverso”. É assim que Felipe Nunes,professor de Ciência Política da Universidade de MinasGerais, descreve a sua experiência ao estudar o efeito da des-informação antes e depois das últimas presidenciais ganhaspor Jair Bolsonaro.

Entrevistei, em Lisboa, Duane Wegener, professor dePsicologia Social na Ohio State University. Ele iniciou, recen-temente, uma nova pesquisa sobre o efeito da desinforma-ção. E os resultados começam a surgir: as fake news aprovei-tam-se da “bolha de informação” em que vivemos. Isso ali-menta as nossas crenças. Há um outro dado relevante: tende-mos a confiar em quem gostamos. Se uma informação falsanos é enviada por alguém de quem gostamos, isso faz-nosacreditar nela.

Isto significa uma mudança preocupante. A forma comonos informamos parece ser diferente, agora. Podemos valori-zar menos a qualidade do que lemos, não avaliamos, comofazíamos, as fontes, nem lhes atribuímos um valor decisivoquanto à sua honestidade, ou credibili-dade.

A RESPOSTA POLÍTICA À DESINFOR-MAÇÃO Os estados-membros, por várias razões– boas e más – limitam fortemente aárea em que os funcionários da UEestão autorizados a agir. A regra é sim-ples: apenas os meios controlados a par-tir do exterior da União estão sujeitos à

análise sobre fake news. Não há qualquer tipo de vigilânciasobre sites europeus de desinformação.

“Temos um problema de legitimidade”, admite um dosfuncionários do Stratcom. Isto significa que campanhas peri-gosas como as do “Pacto das Nações Unidas” não são analisa-das. “Tudo o que podemos fazer é tentar dar ímpeto aosgovernos nacionais. Os estados-membros devem levar asério a desinformação. Porque este problema não será resol-vido em Bruxelas”, explicou-nos um responsável.

Em França, e na Alemanha, há duas tentativas recentes demudar esta falta de regulação. E em meados de março, quasedois meses antes das eleições europeias, foi criado na UE um“sistema de alerta rápido”. Tal como os funcionários da UE daEast StratCom, esta rede só está autorizada a comunicar casosprovenientes de fontes não comunitárias. A UE tenta assimevitar conflitos internos com países como a Hungria, porqueem Budapeste o próprio primeiro-ministro Viktor Orbán usafake news com frequência. Já publicou cartazes contra o milio-nário George Soros e afirmou que a Comissão Europeia quer“promover a imigração ilegal”. Por isso, os representantes deoutros estados-membros da UE receiam que o representantehúngaro da rede de alerta possa utilizar indevidamente o sis-tema para denunciar alegadas campanhas de desinformaçãode outros estados-membros, provocando-as assim.

Os comissários e os ministros de cada país da UE estão aapostar numa saída aparentemente mais fácil: as empresasdigitais Google/Youtube, Facebook/WhatsApp e Twitterdevem resolver a situação. Afinal, são elas que ganham din-heiro com a guerra de propaganda nas suas plataformas.Quanto mais pessoas passam o tempo a ver vídeos, ou aescrever sobre o “pacto da ONU”, mais anúncios podem ven-der.

Durante muito tempo, as plataformas recusaram qual-quer responsabilidade pelo conteúdo que distribuem.“Somos uma empresa de tecnologia, não uma empresa demedia”, é a frase chave de Mark Zuckerberg. “Apenas cons-truímos as ferramentas, não produzimos o conteúdo”.

Mas a Comissão Europeia já não aceita essa anunciadaneutralidade. Por isso, em setembro de 2018, instou as empre-sas a assinarem um código de conduta voluntário. Nele, osoperadores comprometem-se a nomear os clientes da suapublicidade e a tomar medidas contra contas falsas, ou iden-tidades falsas.

A experiência do Grupo de Alto Nível, que estabeleceu osobjetivos da “autorregulação” naEuropa, também não é exemplar.Vários membros do grupo que trabal-haram no relatório sobre desinforma-ção, em 2018, acusam as grandes plata-formas de apenas pretenderam “gan-har tempo” e impedir a regulação euro-peia sobre o seu negócio.

Monique Goyens, 60 anos, é direto-ra-geral da Organização Europeia deConsumidores (OEC), que junta 43

Muitas destas críticasquanto à utilidade dosfact-checkers contratadospelo Facebook paracombater adesinformação já sãodebatidas nos EUA e naEuropa

Larissa Rossetti diz ser de

Silves e apresenta-se com foto

de Sophia Loren. António

Candeias usa uma foto de

agência de modelos

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associações nacionais como a Deco. Num dos intervalos paracafé, de uma das reuniões dos 39 peritos, nomeados pelaComissão Europeia, para o grupo de alto nível que estudariaa resposta a dar às fake news na Europa, Monique abordou oresponsável do Facebook, Richard Allan. Allan é o diretor depolíticas europeias do Facebook, tendo a responsabilidade decoordenar o lóbi europeu da empresa, e tem um longo currí-culo político. Trabalha com o seu companheiro de partidoNick Clegg, ex-vice primeiro-ministro do Governo Cameron,que é agora vice-presidente para os assuntos globais doFacebook.

Monique Goyens é belga e participa, regularmente, nestesgrupos de trabalho, que pretendem aproximar – ou conciliar– os interesses das partes sobre políticas europeias. Mas estenão era um grupo de alto nível qualquer… “Sempre quehavia uma voz dissidente, era interrompida de forma muitoagressiva pelos serviços da Comissão”, recorda Goyens. Tudoparecia estar, à partida, “pré-cozinhado”, acusa. Foi por issoque decidiu abordar Allan, na pausa para café. Perguntou-lhe: “Por que têm tanto medo de um inquérito sectorial?” Areação foi dura: “Ele ficou bastante nervoso”, lembra Goyens.E respondeu: “Se pedirem um inquérito sectorial, vamos tercontrovérsia”. A diretora-geral da OEC garante ter testemun-has desta conversa.

Neste contexto, “um inquérito sectorial” significa o estu-do de um mecanismo de regulação – e um escrutínio exatode quanto ganham as plataformas no mercado publicitárioe quanto poupam em benefícios fiscais através da sua sedena Irlanda. “Sim, houve chantagem”, acusa MoniqueGoyens. “As plataformas tentaram enfraquecer e atrasarqualquer coisa que tivesse a ver com o seu modelo de negó-cio”.

“Era o elefante na sala: ninguém queria perguntar: quemestá a ganhar dinheiro com isto? São as plataformas! E os

anunciantes. O modelo de negócio é ganhar dinheiro àmedida que as pessoas clicam. É por isso que a desinforma-ção se dissemina. E isto nunca foi analisado no contexto doGrupo de Alto Nível. Tentámos, mas parámos”, acusaGoyens.

Quando entrevistámos a responsável do Facebook pelocombate à desinformação, Tessa Lyons-Laing, percebemosque a empresa reage com reservas à criação de regras sobre oseu modelo de negócio. “Não nos opomos à regulamenta-ção”, começa por nos garantir. Mas com cautela, explica:“Primeiro, tem de ser eficaz”.

Em Bruxelas, onde entrevistámos os comissários euro-peus com responsabilidade neste tema, Vera Jurova e JulianKing, há um consenso sobre a necessidade de regular asgrandes plataformas, mas nunca no final de mandato daequipa liderada por Jean-Claude Juncker. “A minha previsãoé que a próxima Comissão continue a propor alguma regu-lamentação, mas sempre com muito cuidado, uma vez queas pessoas gostam destes produtos e nós não queremosintervir na área da liberdade de expressão”, afirma Jurova, acomissária checa que tem a pasta da Justiça e da política deconsumidores. “Até agora, existe um amplo consenso entreos estados-membros de que o discurso de ódio é inaceitável,porque pode gerar verdadeira violência. Por isso, receio quese as plataformas não fizerem o necessário, haverá sanções ecomeçarão a remover todas as páginas suspeitas e eu tam-bém não quero isso”.

Julian King é o responsável, na Comissão, pela segurança.E é, como nos sublinhou o Google, “o mais franco” dos res-ponsáveis de Bruxelas neste tema. “Até agora não vimos pro-gressos suficientemente rápidos. Temos um problema comcontas e bots falsos. Parece que temos problemas de conta-gem. E temos de ir mais longe.”

A RESPOSTA SERÁ O FACT-CHECKING?Se os políticos têm – com razão – reservas em definir o queé desinformação, ou onde começa a mentira e acaba aliberdade de opinião, o Facebook passou a gerir uma redede fact-checkers que avaliam, segundo os critérios daempresa, o que é ou não mentira. Em Portugal, o Facebookcontratou o Observador. Mas a experiência nos EUA nãocorreu nada bem…

O Snopes fazia parte, como o Observador, de uma listade mais de 40 sites no mundo, designados pelo Facebookpara lidar com a desinformação publicada pelos seus maisde dois mil milhões de utilizadores. Brooke Binkowski eraa responsável editorial pela ligação entre a sua equipa e oFacebook. Numa entrevista por vídeo-conferência, emmarço deste ano, explicou-nos o que correu mal: “Ficoumuito claro para mim que o Facebook não estava real-mente interessado em acabar com a crise de desinforma-ção, eles estavam interessados em parecer bem. Pareciaque fazíamos parte de uma manobra de relações públicas.Eles empurravam-nos para certas histórias e afastavam-nos de outras”.

ANÁLISE Desinformação

Investigação sobre fake news tem vindo a ser desenvolvida no

Diário de Notícias e noutros jornais parceiros do Investigate

Europe

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Quando Brooke Binkowski acusa oFacebook de “afastar” jornalistas dealgumas histórias, dá exemplos. Elaprópria sugeriu verificar as muitas“notícias” falsas sobre os membros dacomunidade rohingya que tentavamobter asilo nos EUA, dada a perseguiçãode que são alvo em Myanmar. “Eu esta-va no lugar certo, na hora certa e penseique podia ajudar os rohingyas. Propusao Facebook, mas eles ignoram-mecompletamente. Na altura, pensei queera precisamente para isso que nós tra-balhávamos com o Facebook... Mas elesnem sequer responderam”.

Muitas destas críticas quanto à utilidade dos fact-checkerscontratados pelo Facebook para combater a desinformação jásão debatidas nos EUA e na Europa. Quando entrevistámosa responsável do Facebook pela política anti-fake news, TessaLyons-Laing, fizemos-lhe a pergunta. Laing relativizou o pro-blema. “Não dependemos apenas de verificadores de factos.Porque não há verificadores de factos em todos os países domundo que cumpram as regras da International Fact-Checking Network. Por outro lado, se dependêssemos ape-nas disso estaríamos sempre a correr atrás do problema, por-que é sempre mais fácil criar histórias falsas do que desmas-cará-las”.

O PAPEL DO JORNALISMOLions-Laing está certa neste ponto. Não só quando afirmaque “correr atrás do problema” não é uma boa estratégia,mas também porque existem provas (como os estudos deFilipe Nunes, no Brasil) de que a retificação de uma infor-mação falsa não é tão convincente como a mentira original.Essa é a raiz do problema. As mentiras espalham-se, cres-cem, vivem – também – porque há uma crescente banali-zação das opiniões. E essa é a resposta que o jornalismotem de dar, agora. Sendo uma disciplina da verificação dosfactos, que tenta separar a verdade das meras suposições,o jornalismo deve ser a moldura do debate público. É o jor-nalismo que deve fornecer aos cidadãos a informação quelhes permite formar opiniões e fazer escolhas.

É claro que as fake news são um terreno movediço para ojornalismo. Em muitos outros casos que acompanhámos, amentira pode até ser usada para tomar uma posição “huma-nitária”, para chamar a atenção para o sofrimento de pessoasfrágeis. Em resumo: até de boas intenções está o inferno dadesinformação cheio.

Por outro lado, ao abordar tantas vezes o problema da des-informação, pensei muito sobre o efeito dessa repetição. Éimportante mostrar a desinformação, para que sobre ela osleitores possam refletir. Ainda assim, é preciso ponderar seessa não é, também, uma forma de divulgar as mentiras e darnotoriedade aos seus autores. Não há respostas fáceis paraestas dúvidas.

Podemos, apesar de tudo, estarseguros de que a investigação jornalísti-ca pode desempenhar um papel impor-tante na compreensão deste problema.Porque saber quem faz, porquê, e iden-tificar os meios e os perfis falsos, mostraque há uma consequência e uma aten-ção pública. Criar bots e espalhar menti-ras pode ser fácil, mas pode nem sem-pre ter a garantia do anonimato.

O ponto mais relevante, além destaação “preventiva”, é o que nos abreuma discussão decisiva. Com o predo-mínio da publicidade direcionada e as

constantes quedas nas vendas de jornais e audiências, o jor-nalismo precisa urgentemente de debater o seu futuro.

Já não temos um modelo de negócio baseado, emmaior ou menor escala, na ligação direta dos meios decomunicação com o seu público e os seus anunciantes. Eisso devia fazer com que as administrações pensassem naestratégia que impõem: “viralidade” online, para obterreceitas publicitárias baseadas nos clicks; redução dasredações; desinvestimento na profundidade. Isso, comomostra a história recente da desinformação, é uma estra-tégia condenada ao fracasso.

Uma mentira eficaz tem muito mais clicks que uma histó-ria replicada vezes sem conta (o atual critério breaking newsdas redações, em que a informação prioritária é aquela quetodos estão a dar, em simultâneo).

O jornalismo tem de recriar uma ligação profunda, séria eútil com os cidadãos. Só assim poderá ser independente ecumprir o seu papel. Mas isso pode não bastar. Numa era emque a informação se tornou uma mercadoria global, de aces-so fácil, imediato e gratuito, talvez não volte a ser fácil dar-lheum valor, pôr-lhe um preço, torná-la rentável para quem aproduz.

Então tornar-se-á necessário discutir o óbvio: a infor-mação tem um valor democrático, uma importância cultu-ral e social. É um bem público. E, por isso, devem ser pen-sadas formas de contribuição pública para a sua qualida-de. Podem não ser apoios financeiros diretos do Estadoaos media (como existem em França ou em Itália, porexemplo). Podem ser apenas mecanismos de apoio indire-to a projetos de reforço das redações (diversidade, estru-turas de verificação da informação), ou a temas demora-dos e caros. Pode ser uma revisão profunda dos benefíciosfiscais. Pode ser uma regulação das plataformas que redis-tribua de forma mais justa as verbas do negócio.

Essa é a conversa que nos falta.

Os trabalhos sobre desinformação referidos neste texto foram publi-cados no Diário de Notícias e em vários outros jornais parceirosdo Investigate Europe. A investigação foi apoiada por uma bolsaatribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2019.

É importante mostrar adesinformação, para quesobre ela os leitorespossam refletir. Aindaassim, é preciso ponderarse essa não é, também,uma forma de divulgar asmentiras e darnotoriedade aos seusautores

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“INTERFERÊNCIA RUSSA PROVA QUE O JORNALISMOÉ MAIS NECESSÁRIODO QUE NUNCA”José Moreno

David Alandete, ex-editor do diárioespanhol El País e atualmente corres-pondente em Washington do ABC,acompanhou de perto os mecanismosda interferência russa em processoseleitorais e consultivos na Europa,Estados Unidos e América Latina.

Dessa investigação, resultou o livro “Fake news: La nuevaarma de destrucción masiva”, editado em Fevereiro desteano. David Alandete trocou impressões com a JJ, por escri-to, sobre a obra e a situação problemática que ela retrata.No seu livro, estabelece um paralelo entre os perigos que a

desinformação representa para as sociedades democráticas

e as armas de destruição maciça. O que pretende significar

com esse paralelo?

O título do livro joga com o conceito das famosas armasde destruição maciça, que não existiam, mas que deram aogoverno de George W. Bush a justificação para invadir oIraque em 2003. Esse episódio, ocorrido ainda antes dosurgimento das redes sociais, prova que as notícias falsassempre existiram, muitas vezes com efeitos bem reais edesastrosos para a sociedade. Pior: o que era uma técnicade manipulação converteu-se numa forma sistemática defazer política e de governar. Hoje, por exemplo, vemos aRússia a empregar todos os seus meios de propagandapara questionar os ataques químicos contra a populaçãocivil na Síria ou para negar a dimensão da crise humanitá-ria na Venezuela.As redes sociais já existem há bastante tempo. Quando é

que percebeu que estavam a ter esse efeito pernicioso sobre

a democracia?

Pessoalmente, dei-me conta dissodurante uma viagem à Síria, em 2015,para entrevistar o presidente, Basharal-Assad. Ao regressar, reparei comoalguns perfis nas redes, que habitual-mente difundiam propaganda russa,começaram a usar trechos da entre-

vista para glorificar o regime e ocultar os seus abusos.Percebi que existia toda uma indústria de desinformaçãona internet, financiada pela Rússia, que opera em duasfases: primeiro, são criadas notícias falsas, a partir de sitesde propaganda disfarçada de notícias, como o RT ou oSputnik. Depois, essas notícias falsas são amplificadasatravés de perfis falsos nas redes sociais, sejam estes botsautomatizados ou agentes humanos com identidades fal-sas.Graças às investigações que têm sido feitas, sabemos hoje

qual o papel da Rússia na propagação da desinformação

nas democracias ocidentais. Há outros países que já consti-

tuem ou podem vir a constituir uma ameaça nesse sentido?

China? Israel?

A minha área de investigação é a Europa, os EstadosUnidos e a América Latina. E devo dizer que, nessas trêsáreas, a Rússia foi o país que mais refinou a utilização dastécnicas de desinformação como política de estado. Bastaver a dimensão do seu império propagandístico e osmuito idiomas – espanhol, inglês, francês, italiano, portu-guês – em que estão disponíveis os sites da RT e doSputnik. Além disso, o Kremlin colabora com os seus alia-dos, em regimes como o cubano ou o venezuelano, demodo a amplificar os seus temas e as suas mensagens.Mas, claro, há outros países que têm capacidade técnica erecursos para fazer o mesmo, como é o caso da China, aqual, além disso, exerce uma censura muito estrita sobre arede.Há quem diga que o recente relatório Mueller não conseguiu

estabelecer uma correlação clara entre a Rússia e a campan-

ha que levou Donald Trump à presidên-

cia norte-americana em 2016. Como

comenta esse relatório?

O relatório de Robert Mueller chegaa duas conclusões muito claras. A pri-meira é que em 2016 houve efetiva-mente, não uma, mas duas campan-has da Rússia para interferir nas elei-

ANÁLISE Desinformação

“A Rússia foi o país quemais refinou a utilizaçãodas técnicas dedesinformação comopolítica de estado”

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ções e prejudicar Hillary Clinton. Uma dessascampanhas tinha origem numa organizaçãochamada Agência de Investigação da Internet(AII), criada por um amigo pessoal do presi-dente russo, Vladimir Putin, o cozinheiroYevgeny Prigozhin. À outra está associada oGRU, serviço de informações militares russo.A segunda conclusão de Mueller é que, embo-ra essa campanha de ingerência tenha existi-do, ela não foi coordenada com Trump paragarantir a sua vitória. Na minha opinião, oque Trump tenha ou não feito é irrelevante. O que interes-sa realçar é que a Rússia interferiu num processo demo-crático e ainda ninguém em Washington lhes pediu con-tas por isso.Muitas destas interferências estrangeiras acontecem atra-

vés de plataformas transnacionais como o Facebook ou o

YouTube. Considera que “partir” essas plataformas ou asse-

gurar o seu controlo nacional ou regional poderia minorar o

alcance dessas interferências?

Neste momento, decorrem nos Estados Unidos pelomenos três investigações sobre as práticas monopolísticasdas grandes plataformas de internet, mas essas investiga-ções centram-se na questão da publicidade e dos prejuízosgerados em outros setores, como a comunicação social. Eu

penso que o mais importante é regular omercado da internet para obrigar platafor-mas como o Facebook ou a Google a investi-rem mais recursos para desmascarar notíciasfalsas ou injuriosas e para distinguir clara-mente entre meios de comunicação sérios einstrumentos propagandísticos criados peloKremlin para interferir nos processos eleito-rais na Europa e na América.Quais as soluções que propõe no seu livro

para resolver o problema das interferências

estrangeiras nas eleições europeias? Que papel está reser-

vado aos jornalistas e ao jornalismo nessa batalha?

Esta crise prova que o jornalismo é mais necessário do quenunca. Os meios de desinformação e propaganda russos,como a RT ou o Sputnik, tentaram disfarçar-se de jornalis-tas para manipular os cidadãos com notícias falsas sobreprocessos como o Brexit, por exemplo. Quando consegui-ram triunfar, as instituições em causa foram afetadas eabriram-se crises muito sérias, como a que resulta no pro-cesso de saída do Reino Unido da União Europeia. Esseêxito é a prova de que sem jornalismo a sociedade estáperdida. A comunicação social deve ser independente edesligada do poder. Compete aos reguladores europeuscertificarem-se disso. JJ

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MONITORIZARAS REDES SOCIAISO projeto “Monitorização de propaganda e desinformação nas redessociais”, em curso, concentra a atenção nos conteúdos que servemobjetivos de mobilização, polarização e destabilização política emPortugal, independentemente da origem dessas atividades. Analisatrês das principais redes sociais públicas, as mais relevantes para adisseminação de desinformação: Twitter, Facebook e YouTube.

Gustavo Cardoso, Ana Pinto-Martinho, José Moreno, Rita Sepúlveda e Miguel Crespo

Oprojeto está a ser desenvolvido poruma equipa de investigadores do CIES-Instituto Universitário de Lisboa, reuni-dos no MediaLab ISCTE-IUL. Lideradapor Gustavo Cardoso, integra AnaPinto-Martinho, José Moreno, RitaSepúlveda e Miguel Crespo.

Ao longo do período do projeto, que corresponde a ummomento de grande atividade política em Portugal, mar-cada por três eleições (europeias, regionais da Madeira elegislativas), pretende-se identificar e analisar os movi-mentos organizados, de origem partidária ou não, de pro-paganda e desinformação, com o objetivo de influenciar aparticipação informada dos cidadãos nos atos eleitorais.

Ao longo do projeto, são utilizadas metodologias eferramentas de análise de redes sociais, como a Forsight,desenvolvida pela Crimson Hexagon, a Netvizz, aYouTube Data Tools ou o Google Trends, que ajudam aidentificar, de forma transversal e longitudinal, as mensa-gens, contas, perfis e redes de difusão de informação comobjetivos maliciosos e as suas ligações internacionais, comespecial atenção para as relações entre movimentos popu-listas e a sua partilha de mensagens de desinformação(fake news).

O objetivo final é identificar mensagens, protagonistase canais de desinformação que visem influenciar o discur-so político através das principais redes sociais onlinepúblicas (Facebook, Youtube e Twitter). Trata-se, também,de contribuir para o alerta e a prevenção da disseminaçãode propaganda maliciosa, colaborando com projetos jor-

nalísticos, para desenvolver e disseminar os resultados dainvestigação.

TWITTER POVOADO POR LÍDERES DE OPINIÃOEm Portugal, o Twitter não é uma das redes com maiorpenetração, mas é uma das mais utilizadas para dissemi-nar desinformação. No relatório Digital 2019 da We AreSocial, encontramos o Twitter em 9.º lugar no top dasredes mais utilizadas em Portugal, com 31% dos respon-dentes a assumirem o uso desta rede, em comparação com90% tanto para o Facebook como para o YouTube. NoDigital News Report 2018, o Twitter não aparece sequer notop seis das redes mais utilizadas em Portugal, para acedera todos os tipos de conteúdos.

Apesar da penetração do Twitter não ser a mais eleva-da, é uma rede com importância analítica. A razão princi-pal dessa importância tem a ver com as características dosseus utilizadores: em Portugal, a plataforma é sobretudopovoada por líderes de opinião, jornalistas, analistas, polí-ticos, figuras públicas e humoristas. A outra razão é que oTwitter possibilita um acesso fácil à informação veiculadanas contas dos seus utilizadores, desde que sejam “aber-tas”, para efeitos de investigação.

Com recurso à ferramenta Forsight, foram feitas pes-quisas por palavras-chave e hashtags ligadas a corrupção.Estas palavras-chave relacionadas foram estabelecidascom a ajuda do Google Trends e da análise das pesquisasrelacionadas, bem como com as palavras-chave relaciona-das encontradas através da Forsight.

Com a utilização desta estratégia, chegou-se a um conjun-

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to de contas com características que levavam a crer queseriam contas falsas, com o propósito de propagar informa-ção de teor político. O processo, relatado mais adiante, quan-do abordamos o Facebook, foi semelhante para o Twitter.

Para o futuro, pretende-se continuar as análises com oTwitter através da API (Application ProgrammingInterface) ElectionsPortugal, criada pela equipa doMediaLab ISCTE-IUL no espaço para programadores doTwitter, que recolhe e monitoriza em tempo real dadosretirados desta rede social e vai permitir estabelecer redesde influência e partilha.

FACEBOOK, DISTRIBUIDOR DE DESINFORMAÇÃOEM MASSASegundo dados do Digital News Report 2019, o Facebooké a rede social mais popular em Portugal, sendo usada por77% da população para aceder a todo o tipo de conteúdose por 53% para receber especificamente notícias. Isto,naturalmente, torna esta rede muito apetecível para quemtem por objetivo disseminar desinformação.

Por isso, neste projeto a rede é observada de várias for-mas. Os conteúdos privados da rede não são escrutiná-veis, mas os públicos – páginas e grupos públicos – podemser monitorizados usando vários tipos de ferramentas quevão “beber” dados à API disponibilizada pelo Facebook.No nosso laboratório de redes sociais, usamos a Forsightpara monitorizar páginas e grupos públicos de Facebook eo Netvizz para analisar as relações que se estabelecementre páginas. Com estas ferramentas, podemos detetaratores particularmente ativos em determinadas redes ousobre determinados assuntos e monitorizar as suas ligaçõ-es e as suas publicações, para perceber se fazem parte deuma estratégia de propagação de desinformação.

Da observação que temos feito através do Facebook, énotória a existência de um padrão de temas que claramen-te nos distingue de outros países. Enquanto na maior parteda Europa a questão da imigração e dos refugiados é a maisusada pelos grupos que disseminam conteúdos falsos, emPortugal o tema dominante – e que mais colhe junto dosutilizadores desta rede – é a corrupção, quer os casosdenunciados, quer a corrupção do sistema político, numaperspetiva mais abrangente. Este é, sem dúvida, o grandetema à volta do qual gravita a desinformação em Portugal.

Foi, aliás, no contexto do rastreio das redes sociaissobre o tema da corrupção que descobrimos vários perfisde Facebook falsos envolvidos numa campanha de desin-formação e propaganda. Esses perfis apareceram nas nos-sas pesquisas como partilhando sempre os mesmos conte-údos (alguns deles falsos), sempre às mesmas horas e sem-pre com o objetivo de denegrir adversários políticos. Ainvestigação demonstrou que esses perfis não correspon-diam a pessoas reais e que eram “operados” por alguémpara multiplicar o efeito nas redes sociais. Um exemplo dotipo de campanhas que é possível fazer online, usando asredes sociais.

O PODER DO VÍDEO A partilha de conteúdo no YouTube, através do formatovídeo, pode combinar informação visual, escrita e auditi-va, conseguindo captar uma maior atenção por parte dosutilizadores. Prova das potencialidades do formato e con-sequente interação é o facto de ter sido incorporado comofeature num conjunto de redes sociais.

Segundo dados facultados pela plataforma, em termosglobais mais de 1900 milhões de pessoas acedem à redetodos os meses e, de acordo com os últimos dados doDigital News Report relativos a Portugal, 95% dos utiliza-dores portugueses da internet veem vídeos online, sendoo YouTube o quarto website mais consultado e a quintapesquisa mais comum no Google. É, a seguir ao Facebook,a rede social mais ativa e os conteúdos mais procuradosestão relacionados com música, youtubers e conteúdosfutebolísticos. Estes dados justificaram a pertinência dainclusão do YouTube como plataforma a ter em conta noprojeto.

Para a estudar, recorreu-se à ferramenta YouTube DataTools que recolhe dados através da API (v3) e nos permi-tiu rastrear canais e vídeos através das funcionalidades“canais em destaque” e “canais relacionados” (recente-mente retirada), assim como obter informações e dadosestatísticos sobre vídeos e construir uma rede entre os“vídeos relacionados”.

A pesquisa, de acordo com um conjunto de pressupos-tos metodológicos e com o resultado de pesquisas iniciaisexploratórias, partiu da palavra chave “corrupção”. Nosresultados, dois canais mereceram a nossa atenção parti-cular pelo seu conteúdo, número de seguidores e númerode visualizações – existem vídeos que somam mais de 200mil. Os vídeos dos referidos canais têm em comum o factode incluírem extratos de programas ou noticiários dediversos canais televisivos, com títulos ou legendas popu-listas, fornecendo dicas falsas sobre o conteúdo, na medi-da em que este depois não se verifica. Os visados tendem,em geral, a ser os governos em exercício, os seus membrosou os partidos que os suportam.

A facilidade com que o link de determinados vídeos épartilhado faz com que se disseminem, mesmo quandonão são atuais, se o título é referente a notícias que dealguma forma parecem ser do interesse da população,outorgando um falso contexto e gerando nova propaga-ção.

A estes fatores, soma-se a ação do algoritmo doYouTube, através das suas sugestões, que tem sido apon-tado como um dos responsáveis por certas ondas de infor-mação de caráter duvidoso. Como a ferramenta de fact-checking do YouTube não está disponível em Portugal,compete ao utilizador pôr em prática um conjunto demedidas para garantir que o que está a ver não se trata deuma notícia falsa. Uma atitude de ação individual quedeveria ser incentivada em todas as redes como forma decombate à desinformação. JJ

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ATUALIDADE

O conhecimento pelos cidadãos dequem detém e de quem financiaórgãos de Comunicação Social éindispensável à saúde da democracia.Entrevistado na anterior edição da JJ, opresidente da Assembleia daRepública, Ferro Rodrigues, (re)abriu odebate sobre a problemática datransparência. Pedimos ao regulador,que em breve disponibilizará o Portalda Transparência, para esclarecer o seupapel. Carla Martins, coordenadora daunidade que se ocupa deste domínio,explica nas páginas seguintes o queanda a ERC a fazer.

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Atransparência dos media constitui umarecente área de atuação da EntidadeReguladora para a Comunicação Social(ERC), por força da aprovação da Lei n.º78/2015, de 29 de julho, que regula apromoção da transparência da titulari-dade, da gestão e dos meios de financia-

mento das entidades que prosseguem atividades decomunicação social.

O princípio da transparência dos media apresenta-se,antes de mais, como um imperativo constitucional. O arti-go 38.º da Constituição da República Portuguesa (CRP),relativo à "liberdade de imprensa", determina que "a leiassegura, com carácter genérico, a divulgação da titulari-dade e dos meios de financiamento dos órgãos de comu-nicação social". No mesmo artigo surgem proteções aosdireitos de informação, defesa do pluralismo, existênciade um serviço público de media, independência dosórgãos de comunicação social perante os poderes políticoe económico, proteção dos jornalistas e das suas fontes,independência editorial ou não concentração da pro-priedade das entidades de comunicação social.

A Lei n.º 78/2015, de 29 de julho, aprovada por unan-imidade na Assembleia da República no final da XIILegislatura, vem concretizar a garantia constitucional datransparência das entidades que prosseguem atividadesde comunicação social.

O legislador entendeu que as obrigações detransparência seriam instrumentais na apreciação da

liberdade e das condições de pluralismo e independênciado sistema mediático. Os princípios em causa, por seuturno, correspondem a eixos centrais da atuação regu-latória da ERC, plasmados nos seus Estatutos, aprovadospela Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro.

Um dos objetivos de regulação consiste precisamenteem promover e assegurar o pluralismo cultural e a diver-sidade de expressão das várias correntes de pensamento.No quadro do vasto leque de atribuições e competênciasque densificam a missão da ERC, cabe ainda ao reguladordos media assegurar a não concentração da titularidadedos meios de comunicação social, com vista à salvaguardado pluralismo e da diversidade, e a independência per-ante o poder político e o poder económico.

Constituem ainda competências do ConselhoRegulador participar, em articulação com a Autoridade daConcorrência, na determinação dos mercados economica-mente relevantes no setor da comunicação social; pronun-ciar-se, nos termos da lei, sobre as aquisições de pro-priedade ou práticas de concertação das entidades queprosseguem atividades de comunicação social; bem comoproceder à identificação dos poderes de influência sobre aopinião pública, na perspetiva da defesa do pluralismo eda diversidade, podendo adotar as medidas necessárias àsua salvaguarda.

PROTEÇÃO DE VALORES FUNDAMENTAISPor conseguinte, à conceptualização da lei da transparên-cia subjaz a ideia de que para alcançar aqueles princípios

A aplicação das recentes disposições legais da transparência dosmedia permite sistematizar e aumentar o conhecimento sobre quemsão os detentores diretos e indiretos das entidades que prosseguematividades de media, por quem são geridas e como são financiadas.

Carla Martins *

UMA NOVA ÁREADE INTERVENÇÃODO REGULADOR

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da liberdade de imprensa, do pluralismo e da inde-pendência é necessário possuir um bom conhecimentosobre meios de financiamento e as estruturas da pro-priedade e de gestão das entidades de media.

Trata-se de um diploma inovador a vários títulos. Emprimeiro lugar, plasma uma iniciativa legislativa singular einvulgar na paisagem transnacional de regulação dosmedia, indo ao encontro de recomendações europeiasdirigidas à proteção da liberdade e dos meios de comuni-cação social no designado novo ecossistema mediático,crescentemente determinado pelo ritmo de evolução dastecnologias digitais.

Em segundo lugar, convida a uma abordagem regu-latória fundada num diálogo e numa dinâmica interdisci-plinares, convocando o cruzamento de distintas perspeti-vas na sua interpretação e aplicação, nomeadamente, ajurídica, a económico-financeira, a comunicacional e acomputacional. Deverá ainda referir-se que unifica numsó diploma as disposições relativas à promoção datransparência da titularidade, da gestão e dos meios definanciamento das entidades que prosseguem atividadesde comunicação social dispersas na legislação setorial.

Outra pedra de toque fundamental da lei consiste nadisponibilização pública das informações respeitantes àtransparência dos media, o que se concretizará num futuropróximo através do Portal da Transparência, uma base dedados disponível ao público e de fácil acesso. A ERC temprocedido à consolidação dos procedimentos de recolha,verificação e validação da informação comunicada pelosseus regulados ao abrigo destas normas, com vista, em últi-ma instância, à disponibilização dos dados aos cidadãos.

ÂMBITO E DIMENSÕES DA TRANSPARÊNCIAA lei da transparência apresenta um vasto alcance em ter-mos de âmbito de aplicação, estendendo as obrigações atodas as entidades que, sob jurisdição do Estado por-tuguês, prosseguem atividades de comunicação social(identificadas no artigo 6.º dos Estatutos da ERC),nomeadamente:

l Agências noticiosas; l Pessoas singulares ou coletivas que editam publi-cações periódicas; l Operadores de rádio e de televisão; l Pessoas singulares ou coletivas que disponibilizem aopúblico, através de redes de comunicações eletrónicas,serviços de programas de rádio ou de televisão; l Pessoas singulares ou coletivas que disponibilizemregularmente ao público, através de redes de comuni-cações eletrónicas, conteúdos submetidos a tratamentoeditorial e organizados como um todo coerente.

Vale a pena explicar que o universo regulado é disper-so e diversificado, sendo composto por um elevadonúmero de pessoas singulares e coletivas, de dimensões e

recursos muito díspares. À data de 31 de dezembro de 2018, esse universo inte-

grava 2185 registos ativos de órgãos de comunicaçãosocial, com a distribuição exibida na Figura 1.

No quadro da Lei n.º 78/2015, as dimensões datransparência dos media concretizam-se em três pilares fun-damentais - titularidade, gestão e meios de financiamento.

O diploma alarga o espectro de informações a comu-nicar, em particular em matéria de participações diretas eindiretas (ou "qualificadas", isto é, iguais ou superiores a5% do capital social), fluxos financeiros, clientes rele-vantes (responsáveis por mais de 10% das receitas) edetentores relevantes do passivo (responsáveis por maisde 10% das dívidas).

Todas as entidades abrangidas, independentemente dasua figura jurídica, devem reportar à ERC a respetivarelação dos titulares das participações sociais, a composiçãodos órgãos sociais e a identificação do responsável pela ori-entação editorial e supervisão dos conteúdos.Adicionalmente, se for aplicável, devem descrever a cadeiade entidades ou indivíduos aos quais as "participações qual-ificadas" devem ser imputadas, de forma direta e indireta.

As entidades obrigadas a ter contabilidade organizadadevem ainda reportar dados relativos aos principais flux-os financeiros, clientes relevantes e detentores relevantesdos passivos. As sociedades comerciais devem, cumulati-vamente, elaborar um relatório anual sobre as estruturas epráticas de governo societário por si adotadas.

Na Figura 2 são esquematizadas as informações aprestar pelas entidades que prosseguem atividades decomunicação social neste quadro legal.

Estes dados são transmitidos à ERC através daPlataforma Digital da Transparência, uma ferramenta dig-ital concebida especialmente para este fim e disponibiliza-da aos regulados a partir de abril de 2016.

PERFIS DOMINANTESFazendo um ponto de situação da comunicação de ele-mentos à ERC no âmbito destas obrigações legais, a 3 de

ATUALIDADE Transparência dos media

Figura 1 -Órgãos de comunicação social registadosna ERC, por tipo (31 de dezembro de 2018)

Tipo de órgão de comunicação social N.º %

Publicações periódicas * 1770 81,01

Operadores de rádio 293 13,41

Serviços de programas distribuídos

exclusivamente pela Internet (webrádios e webTV) 87 3,98

Operadores de televisão 25 1,14

Operadores de distribuição 9 0,41

Empresas noticiosas 1 0,05

Total 2185 100

* Inclui publicações anotadas e registos provisórios Fonte: ERC

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junho estavam registadas na Plataforma Digital daTransparência 1399 entidades que prosseguem atividadesde comunicação social, detentoras diretamente de 1736órgãos de comunicação social.

Um total de 82,1% destas entidades corresponde a pes-soas coletivas e 17,9% a pessoas singulares, detendo estasúltimas publicações periódicas ou webrádios e webTV, osúnicos tipos de OCS que podem ser detidos por singulares.

Fig. 3: Pessoas singulares e coletivas registadasna Plataforma Digital da Transparência (03.06.2019)

Numa caracterização do "tipo de sociedade", predomi-nam as sociedades comerciais: 36,3% de sociedades porquotas; 10,7% de sociedades unipessoais por quotas; e8,9% sociedades anónimas. Seguem-se as associações(21%) e, já a alguma distância, as cooperativas (8,3%) e asentidades religiosas (7,9%), que correspondem, sobretu-do, a fábricas de igreja. As demais figuras jurídicas sãoresiduais.

As publicações periódicas, que coincidem com o maiornúmero de órgãos de comunicação social regulados pelaERC, são também o principal tipo de órgão de comuni-cação social detido pelas entidades registadas naPlataforma da Transparência (78,34%). Seguem-se as enti-dades que detêm operadores de rádio (16,01%). É maisresidual a associação a operadores de televisão (1,44%),webrádios e webTV (3,69%), operadores de distribuição(0,46%) e empresas noticiosas (0,06%).

Do total das entidades registadas, 88,64% detêm umúnico órgão de comunicação social, sendo as restantes11,36% detentoras de mais do que um OCS. Reportando-nos a este último subconjunto, praticamente 80% sãomonomedia (editam apenas um tipo de OCS) e 20% sãoplurimedia, possuindo diferentes tipos de OCS, em com-

Fig. 2: Síntese das informações a comunicar à ERC no âmbito das disposições legais da transparência

Áreas de reporte Quem comunica? O quê? Quando?

Titularidade Todos os regulados (pessoas

coletivas)

Titulares das participações

sociais; cadeia de imputação

das "participações

qualificadas" (iguais ou

superiores a 5%)

Comunicação inicial e

atualizações

Titulares e detentores de

participações qualificadas

Identificação da cadeia de

imputação de "participações

qualificadas"; aumento ou

redução da percentagem de

participação

Atualizações

Gestão Todos os regulados (pessoas

coletivas)

Composição dos órgãos

sociais

Comunicação inicial e

atualizações

Órgãos de comunicação social Todos os regulados (pessoas

singulares e coletivas)

Identificação dos OCS

detidos/ editados;

identificação do responsável

pela orientação editorial e

supervisão dos conteúdos

Comunicação inicial e

atualizações

Dados financeiros Regulados (pessoas

singulares e coletivas) com

contabilidade organizada

Dados financeiros; clientes

relevantes e detentores

relevantes do passivo

Anualmente, até 30 de abril

Governança corporativa Sociedades comerciais

reguladas

Relatório de governo

societário

Anualmente, até 30 de abril

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binações variadas. As entidades monomedia com mais doque um OCS foram identificadas exclusivamente na áreada imprensa, sendo que a maior parte detém apenas duaspublicações periódicas.

Do universo das entidades plurimedia que detêm órgãosde comunicação social de diferentes tipos, a combinaçãomais comum, verificada em cerca de 72% dos casos, agre-ga rádio e imprensa. Uma pequena percentagem realizaoutras conjugações ou edita mais do que dois tipos distin-tos de OCS, como se espelha na Figura 5.

Os dados inseridos na Plataforma permitem-nosindicar que 61,5% das entidades registadas têm comoatividade principal a comunicação social.

CONCENTRAÇÃO FINANCEIRADebruçamo-nos agora sobre o leque das entidades quereportaram dados financeiros relativos à atividade decomunicação social (entidades em que é a atividade prin-cipal ou que, sendo outra a atividade principal, repor-taram dados financeiros desagregados referentes à ativi-dade de comunicação social).

Os ativos totais comunicados por estas entidades

ascenderam a 1,2 mil milhões de euros em 2018. Porém, asempresas do setor são, na generalidade, de pequenadimensão. Quando se observa a escala do ativo, constata-se que 51% das entidades que reportaram indicadoresfinanceiros relativos à atividade de comunicação socialapresentaram um ativo inferior a 100 mil euros.

Fig. 6: Dimensão por ativo das entidadesque reportaram informação financeira relativaà comunicação social, em euros (3-6-2019)

Por outro lado, as entidades de maior dimensão têmbastante peso. Concretizando: as entidades com ativossuperiores a 10 milhões de euros, que representam apenas2,8% do total de entidades, concentram 88,5% dos ativostotais do setor da comunicação social. Aquelas com ativossuperiores a 100 milhões de euros representam 73% dosativos totais reportados na Plataforma da Transparência eafetos à atividade de comunicação social. Esta percent-agem traduz um aumento face a 2017, o que sugere maiorconcentração setorial.

As entidades com ativos de maior dimensão correspon-dem aos operadores de televisão, com ativos médios naordem dos 31 milhões de euros. As entidades detentorasde publicações periódicas e de operadores de rádio apre-sentaram ativos médios entre os 2 e os 2,5 milhões deeuros, respetivamente.

ATUALIDADE Transparência dos media

Fig. 4: N.º de publicações periódicas detidas pelasentidades monomedia registadas na PlataformaDigital da Transparência (03.06.2019)

N.º de publicações periódicas %

2 64,57

3 14,96

4 7,09

5 4,72

6 2,36

7 2,36

10 ou mais 3,94

Total 100,00

Fonte: Plataforma Digital da Transparência

Fig. 5: Entidades plurimedia registadas na PlataformaDigital da Transparência (3-6-2019)

Tipos de OCS %

Rádio e imprensa 71,88

Rádio e webrádio 6,25

Televisão e imprensa 6,25

Imprensa e webrádio 6,25

Rádio e televisão 3,13

Rádio e webTV 3,13

Operador de distribuição e imprensa 3,13

Total 100,00

Fonte: Plataforma Digital da Transparência

Fig. 7: Dimensão por ativo das entidades quereportaram informação financeira relativa à atividadede comunicação social (3-6-2019)

Ativo total (euros) Entidades (%) Ativo total (euros) Ativo total (%)

<=100 mil 51,2% 9.104.178 0,7%

>100 mil e <=500 mil 32,3% 31.984.444 2,5%

>500 mil e <=1 milhão 6,9% 21.647.107 1,7%

>1 milhão e <=10 milhões 6,9% 82.226.981 6,5%

>10 milhões 2,8% 1.112.296.241 88,5%

Total 100,0% 1.257.258.952 100,0%

Fonte: Plataforma Digital da Transparência, cálculos ERC

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Cerca de 69% das empresas de comunicação social, ouque conseguem autonomizar essa atividade nas suas con-tas, apresentaram resultados líquidos positivos, e 74%exibiram resultados operacionais ou resultados antes decustos financeiros, impostos, depreciações e amortizações(EBITDA) também positivos.

Em 2018, apenas em dois segmentos foram apresenta-dos resultados líquidos médios negativos, ambos expostosao negócio de publicações periódicas, que mais fortementetem sido atingido pela concorrência da internet. Por outrolado, foram precisamente os segmentos com operações nainternet, eminentemente a rádio, em que menor númerode empresas apresentou resultados líquidos negativos.

MUDANÇA DE PARADIGMAA comunicação social prossegue diferentesobjetivos. Apesar de se constituir comonegócio, não se esgota nesta vertente, ao

visar finalidades simbólicas, promocionais, ideológicas ouculturais, entre outras. A informação comunicada pelosregulados ao abrigo das disposições da transparênciacomprova a transversalidade da comunicação social, oque contribui para dar visibilidade a outros campos,agentes e protagonistas de comunicação para além dosgrupos empresariais mais reconhecidos.

Como referido, constituindo a transparência dos mediauma recente área de atuação do regulador, a ERC dispõehoje de um saber mais macro e preciso do setor que regu-la. Pela abrangência e diversidade de dados comunicados,poderemos antever que o cumprimento da lei permitirátraçar, no futuro, um retrato mais completo da comuni-cação social em Portugal.

Na paisagem mediática nacional assim desenhada, per-mite-se ter acesso a informações sobre os grandes gruposde media e comunicação, mas também sobre os médios epequenos agentes, respetivas fontes de financiamento epráticas de gestão. A informação coligida permite a avali-ação de níveis de pluralismo externo, de concentração ede sustentabilidade do setor, bem como a identificação depoderes de influência.

A ERC não ignora que a realidade atual dos media setornou mais complexa nos planos das relações económi-co-financeiras, da globalização dos fluxos de capitais e daformação de grandes conglomerados multimédia. Omaior desafio da implementação da lei da transparênciaconsiste em contribuir para uma mudança de paradigma,através da acomodação de boas práticas de transparênciapelas próprias empresas de media, reforçando as possibil-idades de escrutínio pelos públicos.

* Coordenadora da Unidade da Transparência dos Media daERC. Artigo elaborado com base no capítulo sobre a

transparência dos media que integra oRelatório de Regulação 2018.l

Fig. 8: Ativos médios por tipo de órgão de comunicaçãosocial das entidades que reportaram informaçãofinanceira relativa à comunicação social (3-6-2019)

Ativos Médios por segmento (euros)

Webrádio e Imprensa 261.484

Rádio 324.526

Imprensa, Rádio e Webrádio 459.690

Imprensa e Rádio 542.274

Imprensa 2.057.982

Webrádio e Rádio 2.539.889

Agência Noticiosa 13.149.759

TV 31.308.978

TV e Imprensa 54.161.950

TV e Rádio 321.703.640

Média geral 42.651.017

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Amália& Byas

Um texto para acompanhar em ritmo de jazz

José Duarte

“Musicians don’t retire; they stop when there’sno more music in them”Louis Armstrong (1901-1971)

Chamou-se Don Byas - funny name!Viveu entre 1912 e 1972, só 59 anos, osúltimos 26 na Europa. Era negro mas n-americano e ao que sei foi padrinho decasamento de Luís Villas-Boas, um dosprimeiros jazz maniacs de cá da terra…Villas tinha algo… Nas minhas andan-

ças a divulgar jazz e seus Artistas, entrevistei certa noite –para a Rádio Renascença, para um programa “diário” mel-hor, de segundas a sextas desde 1966 no século 20 séculoque já lá vai “Cinco Minutos de Jazz” – e fui falar com mr.Byas a um hotel em Lisboa. Verdade verdadinha não erahotel nem pensão era um quarto menos que de pobre… eassim nos conhecemos.

Don bebia… muito para quem bebe pouco… e um diaem Manhattan – a ilha de ou em Nova Iorque! – lá fui à“Swing Street” rua do jazz e lá o encontrei no JimmyRyan’s mas depois de ter entrado ouvido bebido e faladocom um Génio (merece o G) que foi o trompetista – hávários Génios que tocaram ou tocam trompete jazz:Marsalis e Satchmo (sorry tem razão julgava que sabia… éo nome que seus amigos chamavam a Louis Daniel

Armstrong) e Gillespie – que viveu entre 1911 e 1989 queeu fui ouver tocar improvisar instrumentista de nome Royapelido Eldridge até que de repentemente Don apareceue ficámos contentes de nos rever tão longe dos 3 F FátimaFutebol Fascismo e conversámos sobre nada até que lheperguntei já tocaste? não! disse deixei o tenor em casa...pausa… mas se me emprestares 5 dólares vou a casabusca-lo… passei-lhe a nota e vi-o sair para a rua 54 nuncamais o vi na vida nem ele a mim… não tive surpresa poisRoy ao ver a cena disse: ele vai é comprar uma garrafa dewhisky e em seu apartamento bebê-la… nunca mais overás… passei de contente a triste e logo soube que amemória a minha iria registar este acontecimento que nãofoi o último! Anualmente desde 75 ao preencher o impres-so “Critics Poll” da revista Down Beat incluo Don Byascomo o artista jazz entre vivos e mortos que merece recon-hecimento e todos os anos ele não consta da lista dos elei-tos!!!... Já protestei e a resposta foi tem razão next yearcorrigiremos este nosso erro… Mentira, pois este erro serepete todos os anos e já são décadas…

“All music is folk music.I ain’t never heard a horse sing a song”Louis Armstrong (1901-1971)

a ligação de Don Byas – um jazzman n-n-a – a Portugal é

MEMÓRIA

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curiosa, pois ouve-se a sonoridade de seu sax tenor e dode Coleman Hawkins o Mestre no filme de Manoel deOliveira “Vale Abraão” um escrito de Agustina Bessa-Luís.Numa certa noite gulbenkiana perguntei ao afamadoManoel – nunca Manuel – realizador de muuuuuuitos fil-mes como inclui Música em seus filmes. Respondeu logogosto mais de silêncios… perdi a oportunidade de lhedizer e da câmara parada!... não disse mas pensei…(quase) sempre fui um arrependido.

ainda aconteceu com mr. Don Byas o que ninguém ima-ginaria um “Encontro” entre Dona Amália Rodrigues &Don Byas. Um encontro fado-jazz (antes do “Pop Fado”onde se improvisou com o swing de Maria a da Fé e o gui-tarrista Fontes Rocha que gostava de e conhecia jazz!),encontro esse gravado em LP em 1968 com 0 notável títu-lo “Encontro”. E foi Villas Boas que o inventou mas mal-vadamente o encontro falhou. Melhor: fado e jazz não seentenderam embora Amália e Byas se tivessem “empen-hado” e gostado muuuuito. É contudo um must umencontro falhado mas histórico.

“If you have to ask what jazz is, you’ll never know”Louis Armstrong (1901-1971)

muito semelhante – bastam os nomes – foi outro encontroentre Música não com m mas sim com M portuguesa por

Carlos Paredes guitarrista e Charlie Haden contrabaixistajazz porque foi vítima da incompetência agravada teimo-sia e “mania de ser original e prá frente” do produtorNeves o Rui responsável pelo Jazz em Agosto desde háanos e de um programa de rádio com jazz e com o nomeduma Fundação e com um europeu do norte dirigindo odepartamento de Música. Antes mesmo de o encontro teracontecido a maldade o promovia como “a não perder”…Vi-o no Coliseu em Lisboa… um vergonhoso, mas já pre-visto falhanço de dois instrumentistas com Carlo umhomem de esquerda atuante e Charlie um american masdo norte um americano com outros hábitos musicais. massem – pouca que fosse – Cultura Política!!!... aliás, comoquase todos os n-a. E foi assim que CH espreitou o comba-te com uma frase combinada dita em concerto mas fraseimportante contra a Censura existente então e há décadasdita num palco, em Cascais, no Festival Internacional o 1.ºem 71 já no século passado.

(e não perca o próximo episódio desta História ou histó-ria em breve)

Até jazz

José Duarte com Raul Calado

JJ

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RUBEN DE CARVALHO (1943-2019)

RUBEN, O JORNALISMO,A FESTA

Na história do jornalismo português em democracia, há vários exemplos de homense mulheres que se destacaram pela dimensão e dinamismo da sua intervençãocriativa, cultural e cívica, na profissão e fora dela. Mas não será fácil encontrar

muitos com a diversidade e qualidade de Ruben de Carvalho.

Fernando Correia

À MÃO OU À MÁQUINA?Ruben de Carvalho entrou para O Século em 1963, tinha19 anos. Houve um motivo compreensível para essepasso. O pai era director clínico da empresa, a mãe tam-bém lá trabalhava, e desde pequeno se habituara a deam-bular pelo casarão, a contactar com os mestres e mesteresda profissão, a sujar as mãos no chumbo da tipografia. Eisso pega-se, diziam os velhos tipógrafos...

Outra razão foi o desejo de prolongar a vontade deintervenção política, comum a muitos jovens dessetempo. “A ida para O Século seguiu-se a um trabalho maisou menos continuado, ao longo de três anos, com aimprensa das associações de estudantes. Por uma questãode gosto por este tipo de actividade, encarei o jornalismocomo opção profissional. Tive uma conversa com o meupai, dizendo-lhe que estava interessado em ir para o jor-nal e ele falou com o Boavida Portugal, na altura subchefede redacção. Em função disto, no dia 1 de Outubro de1963, entrei como estagiário”i.

Os jornalistas escreviam à mão, utilizando a caneta deaparo, com direito a um tinteiro de apoio, a caneta detinta permanente ou, então, a uma modernice recenteem Portugal chamada esferográfica. Logo aí o espíritoempreendedor do Ruben se começou a manifestar, rei-vindicando uma máquina de escrever, nomeadamentequando tinha de atender os telefonemas dos correspon-dentes da província e tirar rapidamente, em letra inteli-gível, as notas que depois os redactores transformavamem notícias. Só que na empresa havia apenas uma, equando a máquina, finalmente, graças à “teimosia”(palavra sua) do Ruben, ficou adstrita à redacção,“alguns jornalistas faziam fila para terem oportunidadede manejar a nova tecnologia”. Alguns aprenderam,outros nunca se viriam a adaptar.

“GOSTÁVAMOS MUITO DAQUILO”O sentimento comum da nova geração é sintetizado porRuben: “Nós gostávamos muito daquilo. E fartávamo-nosde trabalhar. Isso granjeou-nos respeito”. Estas moti-vações mantiveram-se nos anos seguintes e as investi-gações sobre esse período comprovam as razões apon-tadas por Ruben. “Julgo que há dois momentos de alter-ação no funcionamento dos jornais nos anos 50/60 quecorrespondem ao aparecimento de duas gerações denovos jornalistas: uma primeira de gente que vem da agi-tação e da intervenção intelectual ligada ao MUD Juvenil(Movimento de Unidade Democrática), no final dos anos50; uma segunda, já nos anos 60, que vem essencialmenteda imprensa estudantil. Estas duas gerações acabam porse encontrar, particularmente nos jornais da tarde, e estãoculturalmente integradas. Acabamos por ser bem rece-bidos porque somos quem sabe dos grupos de teatro, dasmúsicas que se estão a fazer e isto face a redacções envel-hecidas. (...) Nós trazemos a nova realidade cultural paradentro dos jornais, que estavam profundamente depau-perados e burocratizados. Por outro lado, havia a moti-vação política para intervir e daí a valorização dareportagem. Eram as pessoas que queriam retratar a real-idade, intervir. Isto tem dois eixos de intervenção: areportagem, por um lado, e o internacional, por outro.Quase todos nós fizemos internacional por opção”.

Ruben lembra o estatuto reconhecido aos jornalistas capa-zes de “encher” muitas páginas: “Quando chego ao Século, osgrandes jornalistas eram o Leopoldo Nunes, o AcúrcioPereira e outros que escreviam uma página inteira. Quantomais a metro se escrevia, melhor o jornalista era. (...) A chama-da “guerra dos 6 dias” [guerra israelo-árabe, em Junho de1967] foi uma glória minha no Século porque fiz uma páginae meia numa noite. Aquilo era em corpo 8, foram não sei

HOMENAGEM

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quantas folhas A4 que escrevi (...) Muitas vezes, para preen-cher esta mitologia do escrever muito, o velho e frequente-mente medíocre jornalista sobrevivente adjectivava categori-camente. A nós o problema punha-se ao contrário, tínhamoscoisas demais para dizer. Granjeámos prestígio junto dosrevisores porque a prosa não precisava de ser revista, estavaescorreita, limpa”.

Veio em 1967 a chefiar a redacção da Vida Mundial, revistaligada à empresa e que reunia uma série de jovens jornalistasdos mais competentes dessa geração.

UMA ACTIVIDADE FRENÉTICACom o 25 de Abril, novas possibilidades se abriram.Colaborou em mais de uma dezena de jornais e revistas,em programas de rádio e televisão, foi director da rádiolocal Telefonia de Lisboa, entre 1986 e 90, membro doConselho de Opinião da RTP em 2002, director artístico doFestival Música e Portos, membro da Comissão Executivada Lisboa 94, vereador nas câmaras municipais de Setúbale Lisboa, deputado à Assembleia da República, membroda Comissão Executiva das Comemorações do 25.º aniver-sário do 25 de Abril, nomeado pelo Presidente daRepública, membro da direcção do Centro Cultural deBelém,.

Escreveu vários livros, nomeadamente sobre o fado, de

que era um profundo conhecedor – “Um século de fado” e“História do fado”; mas também “Festas de Lisboa”, “Seiscanções da Guerra de Espanha”, “Dossier Carlucci-CIA”;organizou o livro póstumo “As palavras das cantigas de JoséCarlos Ary do Santos”. Produziu discos e espectáculos, comoPete Seeger em Lisboa, 25 Canções de Abril, Carvalhesa, AInternacional, Uma certa maneira de cantar e outros.

O AVANTE! E A FESTALogo a seguir ao 25 de Abril, uma das primeiras decisõesdo PCP – ao qual o Ruben aderira em 1970 – foi a de pub-licar o Avante!, órgão central do partido, editado desde1931 na clandestinidade. Formou-se uma equipa, combase em jornalistas profissionais e gráficos membros dopartido que trabalhavam em diversos órgãos – Diário deLisboa, Diário de Notícias, O Século, France Press e outros –,tendo o Ruben assumido a chefia da redacção, até 1995.Em 17 de Maio, saiu o primeiro número do semanário,com uma tiragem de 500 mil exemplares, inédita no país,composta e impressa na tipografia de O Século – ser oRuben um antigo homem da casa ajudou muito.

Em 1976, surgia a Festa do Avante!. Integrado desde entãona comissão executiva, com o “pelouro” da música e espec-táculos, o Ruben organiza uma equipa de profissionais daárea. Segundo um balanço global feito há quatro anos, con-tabilizava-se até então uma participação total de 20 a 30 milintérpretes, a maioria portugueses, incluindo os conjuntos eorquestras. Isto nos palcos principais, 25 de Abril e 1º deMaio, sem contar com outros com programação específica –Avanteatro, Cineteatro, Novos Valores, Arraial, etc.

Claro que a Festa está muito longe de ser apenas a músi-ca, como pensará quem nunca lá foi ou só a conhece dos jor-nais e das televisões. Mas isto são outras músicas que valerá apena tocar, mas agora aqui não cabem...

Uma festa como esta exige obviamente uma longa e cui-dada preparação, que praticamente começa quando a ante-rior acaba. Uma equipa que faz o balanço, tira conclusões,planifica melhorias, propõe inovações e da qual o Rubensempre fez parte.

Era um melómano, particularmente especializado na his-tória da música popular norte-americana, ainda que nãoapenas. Não escondia que uma das suas maiores emoções foiquando, em 1996, no palco 25 de Abril e pelos altifalantes emtodo o recinto da Festa, a Orquestra Metropolitana de Lisboatocou Tchaikovsky. E a música clássica, se bem que já antespontualmente presente na Festa, nunca mais deixou de terlugar no palco principal, sempre sexta-feira à noite, nos pri-meiros dias de Setembro.

Morreu um velho amigo e camarada de guerras várias,um jornalista que honrou o Jornalismo. Ficaram vagos o car-tão n.º 77 do Sindicato e a Carteira Profissional n.º 5.

i As frases entre aspas são do Ruben, um dos 40 entrevistadosaquando da elaboração do livro “Jornalistas. Do ofício àprofissão”, Fernando Correia e Carla Baptista, Caminho, 2007.

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“VEJO A FOTOGRAFIACOMO UM CULTO”

LUIZ CARVALHO é autor e realizador de “Fotobox”, magazine defotografia da RTP3. Na realidade, assegura todo o programa, até aomais pequeno pormenor. Nesta entrevista, fala do seu percurso de 40anos de fotojornalismo. Sempre quis – como Eduardo Gageiro, a suagrande referência – “fazer fotografias que pudessem testemunhar”.Reconhece que, atualmente, a qualidade média dos repórteres-fotográficos é muito elevada, mas falta uma marca pessoal e imagensque reflitam novas realidades. Crítico da formação, tem saudades dostempos em que os repórteres dispunham de autonomia, não deredações que se tornaram “asséticas”. Também por culpas próprias:“O facto de o Jornalismo estar hoje como está, desacreditado, tem aver com os jornalistas e as administrações”.

Paulo Martins Texto José Frade Fotos

Como é que um arquiteto vai parar à reportagem fotográfica?

Descobri a fotografia por volta dos meus 14-15 anos.Aquela história de sempre: comecei a experimentar com amáquina do meu pai. Na adolescência, estava muto hesi-tante sobre o que queria fazer. Até quis sempre cançonetis-ta. Um amigo meu, mais velho, estudava Arquitetura. Omeu pai era fiscal das obras do Liceu Padre António Vieira,pelo que tinha contacto com arquitetos. Um arquiteto doLiceu aparecia num Alfa Romeo Julietta, com uma mulherlindíssima, e a fumar. O máximo do charme, que me levoua pensar que era capaz de ser giro ser arquiteto. Foi um dosmeus modelos. Ainda hesitei entre Arquitetura e Cinema,porque tinha sido também admitido no curso de Cinemado Conservatório. Tive de optar. Atéporque, entretanto, comecei a traba-lhar como estagiário de design earquitetura nas Construções Esco-lares. Optei pela Arquitetura, que da-va mais polivalência. E também futu-ro, porque teria a possibilidade deficar nas Construções Escolares quan-do terminasse o curso, o que aliásaconteceu. Nessa fase, tinha uma dua-lidade incrível: era arquiteto, masnunca deixei a fotografia. Revelava

desde os 15-16 anos. Com o meu primeiro dinheiro, com-prei uma Nikon. Já era fotógrafo e colaborador doObservador, desde os 17 anos. Foi lá que publiquei as mi-nhas primeiras fotografias. Consegui manter a vida duplade arquiteto-fotógrafo até 1989.Pelo meio, colaboraste n’O Primeiro de Janeiro…

Sim, em 1979, já era arquiteto. Depois na GrandeReportagem, na Nova Gente. Era terrível: quando chegavaao ministério, o meu chefe tratava-me por senhor fotógra-fo, para me irritar, e na revista tratavam-me por arquiteto.Quando me tratavam por arquiteto, percebia que algo nãoestava a correr bem. Em 1989, decidi mesmo meter umalicença sem vencimento nas Construções Escolares. Os

audazes…como é?A sorte protege os audazes.

Isso! Nesse período de licença semvencimento, fui chamado para oExpresso, onde fiquei 25 anos.Eram outros tempos. Os jornalistas ti-

nham menos formação…

Não sou nada saudosista. Mas quandose entrava numa redação… Tinhaimenso respeito pelos jornalistas queconheci, n’O Primeiro de Janeiro e, maistarde, no Expresso, porque tinha cons-

ENTREVISTA

“Os cursos deComunicação Social, naminha opinião, só vieramestragar a profissão. OJornalismo é umaprofissão muito especial.Não se aprende a partirde meia-dúzia denormas”

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ciência, nos trabalhos que fiz com eles, de que sabiam escre-ver e perguntar muito melhor do que eu. Tinham uma baga-gem, uma formação, uma atitude profissional que eu tinhade aprender. Do Neves de Sousa ao Joaquim Letria…Trabalhei com pessoas muito diversificadas, que tinhamgrande formação cultural, grande bagagem. E grandememória, coisa que a partir de certa altura começou a desa-parecer. Cheguei a ter vergonha de muita gente do Expressocom quem saí em reportagem, que não sabia nada. Os cur-sos de Comunicação Social, na minha opinião, só vieramestragar a profissão – há sempre exceções, claro. OJornalismo é uma profissão muito especial. Não se aprendea partir de meia-dúzia de normas, nas escolas, que, aliás, nãoensinam nada. Também já dei aulas, naUniversidade Autónoma, de Foto-jornalismo. O que se ensina é muitopobre. E há aquela máxima: quem sabefaz; quem não sabe, ensina. Muitosdaqueles tipos que estão ali a ensinarhá anos não exercem a profissão, nãotrazem a experiência do dia-a-dia paraa escola. Eu, naquela altura, tinhamuito respeitinho pelas pessoas queconheci nos jornais.Porque havia apoio aos mais novos?

Foram sendo afastados os jornalistas que tinham mais

memória, ficando os jovens, sem apoio…

Esses profissionais apoiavam quem chegava. Havia um ouvários tutores, digamos assim. Talvez na fotografia essaideia do chefe, do tutor, não tenha sido muito benéfica,porque, tirando dois ou três casos, os restantes não eramde grande qualidade. Teve de haver uma geração de foto-jornalistas que ajudou a mexer um pouco as coisas. Masem relação aos jornalistas [da escrita], devo dizer que tra-balhei com tipos absolutamente notáveis. E eu tenho amania de dizer mal de tudo… Não digo que o Jornalismofosse então melhor do que o praticado hoje. Na reportagem fotográfica tens algum “herói”, alguém que

foi para ti uma referência? É fácil falar

no Joshua Benoliel…

Em Portugal, o [Eduardo] Gageiro eponto final. Nem vale a pena falar demais ninguém. Lá de fora, tenhoimensas referências que me inspira-ram: os tipos da Magnum, o trabalhoda revista Life… Poderia mencionaruma série de nomes. Porque, na ver-dade, o fotojornalismo sempre teveno estrangeiro um protagonismo quecá não teve. Ou teve ao nível do país:

“Em Portugal, a minhainspiração foi o Gageiro.O meu objetivo foi semprefazer fotografias quepudessem testemunhar,ser históricas, epudessem também ter aminha interpretação, aminha intenção”

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O Século Ilustrado, a Flama, a Ilustração Portuguesa. OBenoliel, de facto, era fantástico. Mas as fotografias doGageiro trazem-nos acontecimentos que mais ninguémreproduziu e daquela maneira. As fotografias do 25 deAbril! Quando o Salgueiro Maia mordeu o lábio para nãochorar, o Gageiro fez-lhe a foto. É aquele o instante. Não éo Salgueiro Maia parado a olhar para a máquina. É reportagem fotográfica. Não é a qualidade fotográfica que

conta…

E é a qualidade fotográfica também! Aí é que está: ele con-segue conciliar as duas coisas. É extraordinariamente difí-cil. Os grandes fotojornalistas sempre o fizeram: associar aqualidade da fotografia ao interesse jornalístico. As fotosdele – do PIDE em cuecas, da rendição na Ribeira dasNaus – são fantásticas. Do 25 de Abril, também há grandesfotografias de fotojornalistas estrangeiros. Henry Bureauganhou o World Press Photo com a foto de um alegadoPIDE, cercado por militares. Fez a foto de um tipo a levarpancada no Rossio e, frente ao Ralis, fotografou um tipomorto pelas tropas. Eram fotojornalistas muito bons…Retomando: em Portugal, a minha inspiração foi oGageiro. O meu objetivo foi sempre fazer fotografias quepudessem testemunhar, ser históricas, e pudessem tam-bém ter a minha interpretação, a minha intenção.Porquê a fidelidade à Leica?

É um bocado romântico, para ser sincero. O que vou dizerpode ser entendido como lamechice: desde o início quevejo a fotografia como um ritual. Não direi uma religião,mas um culto. Para mim, a Leica resumia a atitude daque-les fotógrafos franceses – o Cartier-Bresson…Os da Magnum, sobretudo.

Sim, os da Magnum. Usavam todos Leica. E porquê?Porque foi uma câmara completamente revolucionáriaquando apareceu, em finais dos anos 20. Era uma câmaramuito pequena, minimalista, facílima de utilizar, robusta,fiável. E permitia fazer fotografias perto das pessoas semque se sentissem intimidadas.Quase não estava presente, estando.

Exatamente. É como um Porsche 911. É um carro mítico,porque é muito simples, no fundo. E dá imenso prazerconduzir. A Leica dá imenso prazerdisparar. Na verdade, eu tive muitadificuldade em me habituar à Leica,que é toda manual. Comecei a habi-tuar-me desde muito cedo e usei-asempre. Sou dos poucos fotojornalis-tas que a manteve. Até me castigava amim próprio para a usar em trabalho,porque sabia que o resultado era me-lhor, mais espontâneo. E continuo ausar. Houve um período em que nãohavia leicas digitais e eu fiquei umpouco baralhado. Mas agora já há.Estiveste 25 anos no Expresso. Na fase

final, já não eras editor de fotografia,

mas de multimédia. Foi uma mudança grande?

Foi o contrário: na parte final é que fui editor de fotogra-fia. Sempre quis fazer cinema. Tenho no meu arquivo mi-lhares de horas, cassetes que nunca mais acabam. Nocurso de Cinema fiz alguns filmes em Super 8. A dadaaltura, começaram a aparecer câmaras muito acessíveis eque produziam filmes com qualidade suficiente para pas-sar na televisão. Foi uma câmara dessas que o WimWenders usou no documentário-filme sobre Cuba. OSydney Pollack também fez com ela o documentário sobre

o Frank Gehry, o arquiteto do MuseuGuggenheim de Bilbau. Fiz uns fil-mes no Expresso – com limitações deedição, porque ainda não tinha oprograma que tenho hoje. OBalsemão viu, o diretor viu. Toda agente gostou muito. Era preciso ir àChina fazer uma reportagem, com aCatarina Carvalho, e perguntaram-me se não queria levar a câmara efazer também uma reportagem paraa SIC. Achei fantástico!Esse episódio ocorreu em que ano?

2004 ou 2005. Aquilo não tinha nadade novo: já se fazia na internet e em

ENTREVISTA Luiz Carvalho

“Em termos médios, aqualidade da fotografia émuito alta, mas não háninguém de quem sepossa dizer: ‘eh pá, estafoto é de fulano!’. Não háuma marca pessoal… Háuma série de temas quenos passam ao ladocomo fotojornalistas eque gostava de vertratados”

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algumas televisões lá fora. Não estava a inventar absoluta-mente nada, mas deu polémica. Na SIC, acusaram-me defazer um assalto ao trabalho deles, mas o Martim Cabralajudou a editar e foi emitido em prime time. Quando foinecessário mudar o site do Expresso, que era completa-mente… Que não existia! Morreu o Papa e tinham lá umareceita de culinária! O José António [Saraiva, então dire-tor] teve a sensibilidade – penso eu – de me convidar paraser editor de multimédia. O Pedro Norton [administrador]convidou-me. Fiz uma espécie de caderno de encargos,com o qual concordou. Larguei afotografia durante quase um ano,para começar a fazer jornalismo mul-timédia: inventarmos uma linguagemescrita nova para o online, utilizar-mos a fotografia – na altura, nãohavia Facebook, nem YouTube –fazermos pequenos filmes. Por exem-plo, no julgamento, em Faro, de umamulher acusada de matar a filha: ofotógrafo entrou, fez com o telemóveluma foto, enviou por sms e a foto saiupassados cinco minutos. Na altura,isto era absolutamente novo.Hoje é corrente…

Lembro-me de um redator me enviar uma foto de umevento em Viseu com o Manuel Alegre. A foto era umaporcaria, mas o breaking news estava ali; mais tarde publi-cavam-se as fotos do fotojornalista. Modéstia à parte, con-segui criar uma dinâmica e cruzar com a edição impressa.Tinha poder para dizer: “este título aqui tem de mudar”.Correu tudo muito bem até à entrada do HenriqueMonteiro [para diretor]. Estávamos praticamente a apa-nhar o site do Público. Tinha muito poucas condições, por-que a tecnologia era completamente diferente da de hoje.Não dava para fazer vídeos com o telemóvel e enviar ime-diatamente. Mas gostei muito de desempenhar essa fun-ção.Não foi, portanto, uma mudança difícil. Até tomaste o leme…

Não, não foi. Tive uma excelente relação com as pessoas.Havia pessoas subaproveitadas. Uma colega tinha o cursoda UAL e estava a servir cafés. Mobilizei 20 e tal pessoas,porque também era responsável pelo Cartaz em papel epela rede que ligava a Imprensa Regional. Inexplica-velmente, o Henrique Monteiro decidiu acabar. Passei aeditor de fotografia, durante pouco tempo. Dei-me pessi-mamente com os fotógrafos, ao contrário da relação quetive com os redatores. Foi um período experimental muitobom, o de editor de multimédia. Tenho muito orgulho,porque que eu saiba fui o único fotógrafo que conse-guiu……Dar esse salto sem dramas.

Sem dramas absolutamente nenhuns! Voltei para a foto-grafia e acabei por sair do jornal.Disseste numa entrevista: “Ao contrário de muitos fotojorna-

listas, não estou obcecado só em fotografar desgraças,

embora tenha consciência social e política”. Sentes que há

mesmo uma ânsia dos repórteres-fotográficos de correrem

atrás da desgraça?

Há, há. É ver os concursos. Há uma geração – isto é ditocom a máxima sinceridade – fantástica de fotógrafos deImprensa, como nunca tivemos. São tipos dedicados, queadoram a profissão, embora muitas vezes não consigampublicar as suas fotos, o que é um drama. Mas – como heide dizer isto para ser justo? – gira sempre tudo à volta da

desgraça. Da mulher com cancro queestava a morrer e safou-se, da crian-cinha… Fotos escuras… A realidadesocial não é só isto. Em termosmédios, a qualidade da fotografia émuito alta, mas não há ninguém dequem se possa dizer: “eh pá, esta fotoé de fulano!”. Não há uma marca pes-soal. E os temas! A vida não são sóincêndios. E mesmo nos incêndiospodemos olhar para outras coisas. Aclasse média desta década não estáfotografada. Os hábitos deles, oscarros que compram, os passatem-pos. Onde está esta realidade social?

“Não há ninguém credívela dar formação. É horríveldizer isto, mas éverdade… A questãocentral do ensino dofotojornalismo é o olhar, aabordagem que devemosfazer dos acontecimentoscom uma câmarafotográfica”

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O que é a noite de Lisboa, por exem-plo? Não conheço. Também falo con-tra mim, porque não vou lá fazer. Háuma série de temas que nos passam aolado como fotojornalistas e que gosta-va de ver tratados.Foste professor e promoveste cursos de

fotografia. Já teceste críticas as relaçõ-

es às universidades. Mas, especifica-

mente no campo do fotojornalismo, a

situação melhorou?

Claro que sim.Falo no domínio da formação.

Não há ninguém credível a dar formação. É horrível dizeristo, mas é verdade. É dada por pessoas que estão fora daprofissão, que ainda estão a ensinar os alunos a revelarfotografias tradicionalmente, porque acham que é obriga-tório. Não é nada obrigatório; já estamos noutra. Nãotemos de aprender a dar à manivela no telefone para usaro telemóvel. Tem de se saber a teoria, mas não é precisoensinar a revelar. São métodos com os quais não concor-do. A questão central do ensino do fotojornalismo é oolhar, a abordagem que devemos fazer dos acontecimen-tos com uma câmara fotográfica. A técnica, hoje em dia,não é o principal. A câmara faz tudo sozinha. E faz melhordo que tu.A fotografia jornalística ganhou com a introdução de máqui-

nas digitais?

Ganhou imenso! Se não havia luz, não podias fotografar,problema que desapareceu. Havia o problema da rapidezde transmissão das fotografias. Ias cobrir o descarrilamen-to do comboio em Alcafache e tinhas de regressar decarro, para entregar os rolos. Isso também desapareceu. Aqualidade é fabulosa com a fotografia digital. Acho que sóganhou. Foi um grande, grande avanço. Em 2012, começaste a realizar um programa sobre fotogra-

fia para a TVI, o “Fotografia Total”. Como nasceu a ideia?

Eu sempre adorei televisão. Pouca gente sabe disto: eu viaos programas do Luís Andrade, o “Zip Zip”, e estava a vera realização, a régie. Achava que o Luís Andrade era umtipo fabuloso, muito ousado. O Augusto Cabrita, fotógra-fo, também fez vários filmes para a RTP. O Rangel chegoua convidar-me para ir para a SIC, logo no início, antes dearrancar. Fui falar com ele, mas não queria ser cameramen,nem realizador de informação. E seria muito mais malpago do que no Expresso, onde era um fotojornalistareconhecido. Quando saí do Expresso, perguntei àFernanda Pedro, que já tinha feito um programa na SIC econhecia o ambiente, se queria fazer uma proposta à TVI.Fizemos e quando fomos chamados a uma reunião, o JoséAlberto Carvalho, que não sabia que a proposta eraminha, disse uma coisa que considero histórica:“Queremos dar espaço e dignidade à fotografia, atravésde imagens que possam viver por si”. Nunca intervieramem nada do que fiz durante quatro anos. Correu muito

bem: uma equipa excelente, grandepromoção do programa, que passavacinco vezes ao fim de semana. Masquando entrou o novo diretor deinformação, comunicaram-me queiria acabar. Vim depois a saber queacabaram todos os programas que oJosé Alberto Carvalho tinha posto noar.Sentiste que houve disponibilidade do

meio jornalístico e da classe para par-

ticipar no programa?

O programa foi muito bem-recebido.Ao longo destes sete anos, já levei ao programa [atual-mente, chama-se “Fotobox” e passa na RTP 3] todo o tipode profissionais. Não tenho um plano, improviso muito.Já levei mais velhos e mais jovens. Não quero levar sófotógrafos, mas também pessoas que fazem fotografia nãoprofissional com qualidade. Tenho de ter um pretexto, afotografia, para abordar temas. A minha ideia é ter umprograma muito visual - sem ser bonitinho – informativo,formativo e que não seja chato.Ser informativo, formativo e não ser chato é arte!

Não pode ser chato, nem tonto. Se é chato, corto. Souimplacável comigo próprio. Tem de se perceber logo, temde ser sucinto e direto. Emotivo também, através dabanda sonora.Na RTP3, deste continuidade ao programa sem introduzires

grandes alterações?

Quando acabou o programa na TVI, liguei ao MárioAugusto, que era coordenador da RTP3. Disse-me logoque sim; só pediu uns meses de nojo. O arranque foi difí-cil, mas a relação tem sido impecável. O programa estavainicialmente demasiado longo. O António José Teixeirapediu-me para reduzir. Acho que estão satisfeitos, masnão tenho grande feedback. Na página do Facebook,tenho 16 mil pessoas a seguirem o programa. Pessoas co-nhecidas dizem-me que gostam…Fazes ideia das audiências?

São as audiências da RTP3 àquela hora. Alguns milharesde telespetadores, mas estou satisfeito. O programa é sus-tentado com patrocínios, que já foram mais. Já me deviamter perguntado como é que uma pessoa sozinha faz umprograma de televisão. Neste momento, o programa étodo feito por mim – desde os logos aos separadores. Tudo!Não é nada de novo, há muita gente lá fora a fazer omesmo. Claro que adorava ter um engenheiro de som,não me importava de ter um cameramen, para gravar osmeus pivôs. Mas resolvo isso de maneira a prevalecer atécnica. Invento uma maneira de editar, para não ficar tãoparado.Estás a matar o bichinho do cinema…

Estou, porque o programa tem realização por trás. Adaptoas condições de produção à linguagem. Não posso fazercoisas para as quais não tenho meios. Já usei um drone nos

ENTREVISTA Luiz Carvalho

“Já me deviam terperguntado como é queuma pessoa sozinha fazum programa detelevisão. Nestemomento, o programa étodo feito por mim –desde os logos aosseparadores. Tudo!”

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Açores, mas não posso usar um dronepara me filmar a mim próprio. Sãoquestões irrelevantes; o que interessaé o conteúdo do programa e a fluênciae ritmo que tem. É um desafio. Nofinal, ouço o programa sem o ver, paraavaliar se, mesmo do ponto de vistoauditivo, tem qualidade. A minha pre-ocupação é chegar às pessoas. É comono Jornalismo, afinal. Não tinhas qualquer experiência ante-

rior.

Não, mas tinha sensibilidade. Achoque se nota bastante a evolução, por-que também começamos a ganharuma técnica que nos defende. Comosabemos que certas coisas não funcionam, não fazemos.Não estou sempre a inventar, mas invento muito. Procurofazer algo simples. Mas na fotografia eu já era assim.Quando o programa arrancou, pensei: “Sou fotógrafo deimprensa, andei por tantos sítios sozinho, com quatro oucinco câmaras às costas. Se agora só uso uma câmara, queaté é mais leve do que as outras, não posso transportar umtripé e microfones de lapela para fazer o básico? É eviden-te que posso!” Já fiz sozinho um programa com quatrocâmaras. Não é difícil, porque depois o computador sin-croniza tudo. Tecnicamente, não é difícil. Mas não o podesfazer com uma produtora, porque tens de ter quatro ope-radores. O que faço desde o início é adaptar a técnica, quehoje é de facto fantástica, a uma produção quase minima-lista.

E assim consegues manter o financia-

mento do programa.

Sim. Se não, seria completamenteimpossível. O que pagava pela trans-crição do programa numa produtorajá estava a tornar-se incomportávelpara mim. Por preguiça, não queriasaber como se fazia. Mas é só fazer. Jásabia editar com o I Movie; numasemana, aprendi a trabalhar com oFinal Cut. Não é nada do outromundo! Fazendo tudo sozinho,ganho agilidade. Não considero umalimitação, considero um luxo.Quando quero mudar uma legenda,demoro cinco segundos. O facto de

ser arquiteto, também ajuda muito, porque tenho algumaeducação visual. Sou muito autocrítico, mas acho que oprograma não tem grandes erros, se é que tem.Não tens saudades das redações?

Sonho imenso com jornais! Tenho saudades daquele perí-odo do Jornalismo que vivi intensamente nos anos 1990 –entrei para o Expresso em 1989. Por todas as razões, acomeçar no salário. Nós, fotógrafos, tínhamos uma auto-nomia como nunca houve nos jornais. Foi uma circuns-tância que fez com que um grupo se afirmasse. Noutrocontexto, não se afirmava. Estavam ali reunidas as condi-ções. Viajei muito, conheci muita gente, fui a muito sítios,o que me permitiu ter hoje um arquivo fotográfico muitorico. Para mim, foi fantástico! Mas deixei de ter saudades– isto é conversa de velho – das redações em que já nãopodíamos dizer mal de ninguém, já não podíamos brincar.As redações tornaram-se asséticas. Não sou a favor dasredações com pilhas de papel até ao teto. No Expresso,dizíamos mal do Balsemão. Não havia problema nenhum:ele até gostava. Na altura, achava piada. É fundamentalisto que vou dizer. Havia liberdade total: nós, jornalistas,não tínhamos medo de nada. Quando estávamos noterreno, sabíamos que podíamos enfrentar alguém quenos impedisse de trabalhar ou nos tratasse mal.Estávamos defendidos pela redação e pelo diretor. Nãohavia medo nas redações. No caso do Expresso, depois dasaída de José António Saraiva, instalou-se um período deterror na redação, com um objetivo claro: despedir osséniores, que ganhavam mais – foram todos despedidos, àexceção de dois – e ter uma redação bem-comportada eamedrontada, o que aconteceu. Não acho que as pessoasdevam trabalhar toda a vida no mesmo sítio, mas as coisasdevem ser feitas com ética e com seriedade, respeitandosempre a classe profissional e as pessoas. O facto de oJornalismo estar hoje como está, desacreditado, tem a vercom os próprios jornalistas e as administrações, que seautodesvalorizaram. As direções, na tua opinião, ajudaram a isso?

Completamente! JJ

“[Nos anos 1990] nós,jornalistas, não tínhamosmedo de nada. Quandoestávamos no terreno,sabíamos que podíamosenfrentar alguém que nosimpedisse de trabalhar ounos tratasse mal.Estávamos defendidospela redação e pelodiretor. Não havia medonas redações”

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JANELAS PARA O MUNDO

Se há antídoto para a perda, outro não é que o amor. Portugal é dos poucos paísesda UE onde o estatuto do cuidador não está aprovado. Há 800 mil cuidadoresinformais. Histórias em que a total necessidade de uns obriga à total entrega deoutros. Largam empregos, vidas e profissões feitas, vaidades, materialismo e egoís-mo. Porque para quem cuida não há outro sentido a dar à vida, seja por laços desangue ou de espiritualidade. Mesmo sem meios, sem tempo, sem dinheiro, sem oamparo necessário nas horas de maior aflição. Cuidam porque amam, amamporque cuidam. Provavelmente, a mais pura pureza que estas fotografias deLEONEL DE CASTRO, da Global Imagens, pretendem mostrar é a pureza dasalmas que em vida assumem as formas dos corpos. Pela primeira vez publicadasem conjunto, valeram ao fotojornalista o prémio Estação Imagem deste ano.

Carlos Pereira trabalhou na construção

civil até a doença de Sérgio o atirar

para casa

Mara Ferreira deixou o trabalho para

cuidar do filho, Filipe

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Armando, falecido em 2017, padecia de cancro e tinha à sua guarda o filho Rui Pedro

Carla Nazário e Alexandre

JANELAS PARA O MUNDO

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Gabriela Santos, empregada de escritório, abdicou da carreira pela filha, Matilde

Maria da Luz deixou o hipermercado onde trabalhava mal soube da doença da filha, Rafaela

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JANELAS PARA O MUNDO

Elsa Brilhante, mãe de João, deixou de trabalhar numa clínica de medicina dentária após o nascimento do filho

Maria Irene e Zé Fernando, vítima de acidente de trabalho

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Rute Freitas, mãe das gémeas Rita e Rute, de que cuida há 20 anos

Job Soares, bancário, deixou de trabalhar quando foi diagnosticado Alzheimer à esposa, Amélia

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OS JORNAISE OS REPÓRTERESNAS 50 VOLTASDE GUITA JÚNIOREntre 1950 e 2013, Guita Júnior acompanhou 50 Voltas a Portugal,como jornalista de diversas publicações. À sua frente, desfilaramcampeões e aspirantes, mas ficou sobretudo registada uma história deamor entre um jornalista e o seu desporto.

Gonçalo Pereira Rosa Texto Luís Taklim Ilustração

HISTÓRIASDE

JORNALITAS

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No Estádio do Lima, no Porto, 68 ciclis-tas agitam-se com nervosismo, antesda partida da XV Volta a Portugal de1950. Como em muitas edições ante-riores, a realização da prova esteve nacorda bamba. Por falta de interessa-dos, a Federação Portuguesa de

Ciclismo organizara as edições dos dois anos anteriorescom avultados prejuízos e reclamações de amadorismo.Estava fora de questão nova aventura financeira e aEmpresa Nacional de Publicidade, proprietária do Diáriode Notícias e do Mundo Desportivo (jornais que, com oSports, tinham assegurado boa parte das edições anterio-res), também não mostrava vontade de repetir a loucura.

Avançou por isso o Norte. Desde 1927, o ano da primei-ra Volta a Portugal, que o Norte de Portugal fervilhavacom uma emoção muito própria à passagem dos ciclistas.Logo no primeiro ano, existira até a tentação de replicar aVolta num percurso circunscrito ao Norte, prova que aimprensa de Lisboa, sempre gozona, designara porVoltinha. Desta feita, o Diário do Norte, através do seu dili-gente director António Cruz, responsabilizou-se pelaprova. Assim, no dia 26 de Julho de 1950, o pelotão junta-se no Porto para nova aventura.

A nata da imprensa desportiva da época está presente.Afonso Lacerda e Mário de Oliveira representam A Bola.São pesos-pesados da modalidade. Enquanto lhe permiti-rem escrever em A Bola, Lacerda será um dos mais exube-rantes cronistas da sua geração. Arrumado numa pratelei-ra do dirigismo desportivo, será depois injustamenteesquecido na partilha de quotas do jornal, em 1960. Máriode Oliveira, em contrapartida, fora um dos pais da Volta aPortugal como redactor do Sports.

António Cruz, José Devezas e Manuel Vasconcelos repre-sentam o Diário do Norte. Silva e Costa carrega o estandartede O Século. Artur Agostinho narra todas as peripécias aosmicrofones da Emissora Nacional. Justino Lopes, correspon-dente de A Bola no Porto, trabalha para O Comércio do Porto.Do Jornal de Notícias, seguem Eduardo Soares e ManuelRamos. Manuel Mota cobre a Volta para o Diário de Notíciase o popular Zé de Gaia para O Primeiro de Janeiro. Tavares daSilva, criador de metáforas inesquecíveis, divide as suashoras pelo Diário de Lisboa (DL) e pela revista Stadium.Valentim de Campos escreve para o Sporting e FernandoÁvila para o Diário Popular. Atentemos, porém, nos dois últi-mos representantes da tribo ecléctica da imprensa.

De um lado, está Raul de Oliveira. Em boa medida, odirector do Mundo Desportivo é a razão para toda a multidãose concentrar hoje aqui. Começara a carreira no Sports Lisboa,antes de cumprir o serviço militar no Regimento deTransmissões durante a I Guerra Mundial. Entre 1917 e 1918,esteve em França e, apesar dos horrores que viu em La Lys ena região de Arras, ficou igualmente encantado com as pro-vas velocipédicas que ali tinham lugar. Ganhou o “bichinho”do ciclismo. Em 1923, ao ganhar um prémio de lotaria, inves-tiu o pecúlio na organização da I Volta a Lisboa, um sucessorelativo quando se subtraíram as despesas aos gastos, masum fenómeno notável de adesão popular. Dinâmico, organi-zou provas e pugnou pela promoção do desporto. Foi dele aideia pioneira, durante os Jogos Olímpicos de Amsterdão de1928, de organizar no Rossio um quadro eléctrico que repre-sentava “um campo de futebol e onde uma bolinha, coman-dada electricamente, acompanhava a evolução que, lá longe,tinha a bola a sério”, lembrou o seu jornal de sempre em1972. As multidões aglomeravam-se na praça seguindo abolinha mágica, presas ao que ela significava.

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Em 1927, Raul de Oliveira propôs à administração doDN e do Sports a organização de uma Volta que se torna-ria a menina dos seus olhos (Fernando Ávila virá maistarde a creditar também Cândido de Oliveira pela ideia,mas a sua tese carece de evidências documentais). A pai-xão pelo ciclismo teria custos dolorosos. Em Março de1939, enquanto visitava cidades para preparar mais umaedição da Volta, o automóvel em que seguia – ainda como volante à direita e com o despreocupado Raul deOliveira de braço de fora – embateu num muro rústico edespedaçou-lhe o membro superior direito. Sem braço,mas com o espírito de sempre, o director do MundoDesportivo prosseguiu a sua missão, que o levaria igual-mente a persuadir as autoridades a colocarem potentesprojectores no Estádio Nacional, de forma a viabilizaremo primeiro jogo nocturno de futebol no país.

Perto do homem que chefiou o Sports e o seu continua-dor, o Mundo Desportivo, está um jovem algarvio, de 21anos, chamado Eduardo Guita Júnior. Nascera em Olhão,mas já crescera no Barreiro. Na Grande Lisboa polarizadaentre o Sporting e o Benfica, Guita Júnior escolheu oBelenenses como clube da sua afeição. Num país monote-ísta no que toca ao domínio do futebol, escolheu o ciclis-mo como modalidade predilecta.

Na Volta de 1950, Guita Júnior escreve para um jornalrecém-nascido, o Record, então apenas publicado ao sábado.Nascera das artes do acaso. O atleta do Benfica Manuel Diasganhara um prémio gordo da lotaria (sempre a lotaria…) e

decidira investir o dinheiro num novo jornal. Recorreu aquem melhor conhecia. Fernando Ferreira, treinador e pre-parador físico do clube, assumiu a direcção. Monteiro Poçasorganizou as secções de um jornal que rapidamente recru-tou nomes que dariam que falar, como Alves dos Santos,Henrique Parreirão, Mário Cília e... Guita Júnior. Estava pre-visto que Afonso Lacerda chefiasse a redacção (e o seu nomeaté consta do primeiro número do jornal), mas o grande jor-nalista terá tido pouca confiança no sucesso e deixou-se ficarem A Bola “por motivos da sua vida particular”.

“Em miúdo, terei assistido a duas ou três chegadas deetapas, mas o ‘bichinho’ do ciclismo ficou logo cá”, contaGuita Júnior, hoje com 90 anos, no seu gabinete daFederação Portuguesa de Ciclismo. “Em 1950, fiz a cober-tura parcial da Volta a Portugal para o meu jornal e fiqueiapaixonado pela aventura. O factor mais cativante dociclismo era a aventura. Eram três semanas de obstáculosimponderáveis. Estradas poeirentas ou de macadame.Caminhos florestais. Travessia de linhas férreas e de ribei-ros que, por vezes, estavam mais cheios do que o previs-to. Quedas, furos, acidentes. Vantagens que desapareciamporque o atleta perdia dez minutos à espera de uma novabicicleta. Aquilo era épico!”

O perfil do ciclista da época era igualmente diferentedos restantes desportistas. “Muitos vinham da vida rural.Era gente de fibra. O ciclismo começou por ser passatem-po de ricos, mas, quando as provas endureceram, essagente já não conseguia aguentar. Ganhavam os homens do

HISTÓRIASDE

JORNALITASGuita Júnior

Entre a primeira e a última Volta a Portugal em que

trabalhou como jornalista, Guita Júnior conheceu todas as

gerações do ciclismo português. Aqui, partilha o pódio com

Américo Silva e José Poeira. Arquivo de Guita Júnior

A revista Stadium trouxe inovações

para o desporto. Fotografias como

a desta primeira página de 1950

captaram a essência genuína do

desporto popular

Arquivo Stadium

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campo, muitos dos quais, apesar de competirem durantetrês semanas, acabavam a Volta com mais peso do que tin-ham começado”, conta Guita Júnior. “Nesse período, tin-ham acesso a refeições a que não estavam habituados”.

A Volta de 1950 ficou marcada por várias peripécias. Namais famosa, em Castelo Branco, o vencedor da etapa cor-tou a meta no sentido contrário ao previsto, por deficientesinalização na cidade. Em Vila do Conde, no circuito velo-cipédico que fechava outra etapa, os ciclistas hesitaramentre o número de voltas que era suposto dar. Discutiam-seprémios. A Ovomaltine, patrocinadora da prova, conseguiavergonhosamente inserir mensagens publicitárias no corpodas reportagens de Tavares da Silva no Diário de Lisboa.Nada disto esmoreceu o entusiasmo de Guita Júnior. “Eraum mundo apaixonante. Acompanhávamos os ciclistasnum carro que não estava sujeito às regras modernas.Andávamos para a frente e para trás, falando com os ciclis-tas. Partilhávamos as suas dores e nunca sabíamos o queiria acontecer. Os pelotões também eram mais fragmenta-dos do que hoje – cinco ciclistas aqui, mais quatro acolá”.

Como tudo na vida, o dinheiro fazia alguma diferença,mesmo na cobertura da Volta. Jornais mais endinheiradoscomo A Bola ou o Diário de Lisboa contavam com um carropróprio (no caso do DL, um vistoso Austin preto) e envia-vam os seus relatos por telefone para as redacções. Maismodesto, o Record acompanhava como podia. “No primei-ro ano, nós e o Diário Popular alugámos um táxi paraseguir a prova”, conta Guita Júnior com uma gargalhada.

Como o jornal não era diário, o repórter enviava no finaldo dia as folhas de texto e os rolos de fotografia pelo ser-viço de camionagem, combinando com um camarada oponto de entrega dos materiais em Lisboa.

69 ANOS DE AMOR PELO CICLISMOOs primeiros trabalhos de Guita Júnior captaram a aten-ção do Diário de Lisboa. A partir de 1951, o jornalista juntouas tarefas no Record ao serviço desportivo do DL, ondeTavares da Silva se destacava e era respeitado por... quasetodos (eram conhecidos os atritos entre a equipa de A Bolae o homem que cunhara a expressão dos “cinco” violinos).Em 1957, quando o Diário Ilustrado foi fundado, GuitaJúnior aceitou o convite de outro gigante da imprensadesportiva já esquecido, Trabucho Alexandre. Ali trabal-haria entre 1957 e 1958, num jornal que seria agitado embreve pela debandada de boa parte da equipa redactoriale onde Miguel Urbano Rodrigues, Nuno Rocha ou CarlosEurico da Costa deixaram marcas duradouras.

Em 1960, Guita Júnior teve a oportunidade de se profis-sionalizar, após convite do Mundo Desportivo de Raul deOliveira. No jornal da Empresa Nacional de Publicidade,raramente falhou uma grande prova velocipédica e jun-tou-se mesmo ao director quando este, em 1965, retomouo sonho de organizar novamente a Volta. “Foi uma expe-riência educativa. Percebi a dificuldade de prever todos osimponderáveis. O Raul imaginou o projecto do acampa-mento: os ciclistas pernoitavam num acampamento que,

Dois gigantes de longevidade: o

guarda-redes Carlos Gomes e Eduardo

Guita Júnior. Arquivo de Guita Júnior

Numa reunião do Clube Nacional de Imprensa

Desportiva, juntam-se Artur Agostinho, Manuel

Mota, Guita Júnior, Alves do Santos e

Fernando Sá. Arquivo de Guita Júnior

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no dia seguinte, já estaria montado noutra cidade, com acozinha de campanha e todas as comodidades”. Os muni-cípios não pagavam para acolher uma etapa da Volta eseria uma reunião em Pontevedra (Espanha) a mudar oparadigma: “O governador local recebeu-nos, porque tín-hamos pensado em levar a Volta por estradas galegas. Sóqueríamos autorização para passar a fronteira, mas ele ofe-receu 300 mil pesetas para acolher a etapa. Entreolhámo-nos. Nunca tínhamos imaginado tal hipótese”.

Em 50 Voltas a Portugal, Guita Júnior viveu peripéciasinesquecíveis. “A mais engraçada ocorreu com o fotógrafoJorge Garcia. Numa etapa sob chuva inclemente, suce-diam-se as quedas, mas nenhuma à frente do nossocarro”, conta. “O Garcia estava cada vez mais frustrado esó se queixava do ‘azar’ por não captar nada. Por fim, ànossa frente, caiu mais um ciclista e o Garcia abriu a portado carro. Para sua surpresa, tinha outro ciclista tombadomesmo ali. Fotografou-o e comentou: ‘Que sorte, viste?Que sorte.’ Julgo que nem percebeu que fora ele com aporta do carro a fazer tombar o infeliz”.

O dia mais negro, esse, ocorreu na Volta ao Algarve de1984. Guita Júnior, então ao serviço do Correio da Manhã,estava na meta à espera do final da etapa quando JoaquimAgostinho caiu, na tentativa vã de evitar um cão. “Não ovi cair, mas vi-o chegar à meta, amparado por dois colegas.Sentou-se num lancil do passeio, atordoado, mesmo aolado de uma ambulância. Sugeriram-lhe que fosse ao hos-pital, mas teimou que não precisava e, pelo seu próprio

pé, caminhou para a pensão onde estava alojado. Ali per-deu horas decisivas. Entre esse acidente e os dez diasseguintes em que o Agostinho esteve em coma, vivi osdias mais tristes da minha carreira”.

Do Mundo Desportivo, Guita Júnior saiu novamente parao Diário de Lisboa, depois para a Época e para o Diário deNotícias, antes de rumar ao Correio da Manhã, em 1982. “Euestava no Diário do Lisboa no dia da década de 1950 em quedois jovens aprendizes entraram ali, muito imberbes, paraaprenderem a ser jornalistas. Um era o Carlos Eurico daCosta e o outro o Vítor Direito. Quando o Vítor fundou, comNuno Rocha e Carlos Barbosa, o Correio da Manhã, acrediteino projecto”. Ali trabalhou até se reformar em 1995.

Um dia, Guita Júnior foi mesmo involuntariamente oobjecto da notícia. Na Volta de 1986, o carro do seu jornalcapotou. “Ficámos de pernas para o ar e tivemos de sairpela janela”, conta. “Foi aparatoso, mas sem consequências.Nesse dia, contra minha vontade, fui eu o tema da notícia!”

Em 2011, Eduardo Guita Júnior completou a coberturajornalística da sua 49.ª Volta a Portugal, um recorde abso-luto em todo o mundo. Pensou que ficaria por ali, masFernando Emílio, de A Bola, prestou ao jornalista a home-nagem que só a tribo do ciclismo poderia prestar.Convidou-o a acompanhar os repórteres do jornal naVolta de 2013, assegurando uma crónica diária.“Presentearam-me com uma camisola amarela na qualfigurava o meu nome e o número 50. Fiz assim a minha50.ª Volta. Julgo que ninguém fará igual”, remata.

HISTÓRIASDE

JORNALITASGuita Júnior

Dois dos grandes protagonistas dos primeiros 20 anos

da Volta a Portugal: Raul de Oliveira (Sports e Mundo

Desportivo) e Tavares da Silva (Diário de Lisboa e

Stadium). Arquivo Stadium

Jorge Garcia (à direita) foi

um dos primeiros fotó-

grafos a acompanhar o

ciclismo e a captar o drama

quotidiano de cada etapa,

como neste “furo” de Félix

Bermudes. Arquivo Stadium

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Hoje é umbom diapara mudarHoje é um bom dia para não deixarpara amanhã a mudança que podeacontecer hoje.

Um bom dia para pensar diferente,fazer de outra forma, começar de novo.

Hoje é um bom dia para acordare dizer “É hoje!”. Dar o primeiropasso, seguir em frente. Um bom dia para mudar e ajudar o planeta. Hoje é um bom dia para mudar.

galp.comeletricidade • gás • combustível

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PORTUGAL ELEITO PARA FEDERAÇÃOINTERNACIONAL DE JORNALISTASAssembleia Geral de Tunes aprovou Carta Mundial de Ética

Sofia Branco

OSindicato dos Jornalistas (SJ), emrepresentação de Portugal, foi eleitopara o Comité Executivo da Fede -ração Internacional de Jorna listas(FIJ) pela primeira vez. A eleição oco-rreu em Tunes, capital da Tunísia,que acolheu a Assembleia Geral da

maior organização de jornalistas do mundo, representati-va de 600 mil profissionais e 187 sindicatos e associaçõesde 140 países.

Portugal foi eleito por 169 votos (em 316 delegados detodo o mundo), para um mandato de três anos. Angola eBrasil são os outros dois países de língua portuguesa quefarão parte do Comité Executivo, que integra 16 membros.

Na mesma assembleia geral, que decorreu entre 11 e 14de junho, o SJ foi igualmente eleito, pelo círculo daEuropa, para o Conselho de Género da FIJ. Será, por trêsanos, um dos 13 membros deste organismo consultivo.

Em Tunes, foi discutido o texto final da Carta Mundialde Ética para Jornalistas, que reproduzimos, a partir daversão em francês.

PREÂMBULO: O direito de toda a pessoa a ter acesso a informação e

ideias, compilado no Artigo 19 da Declaração Universaldos Direitos Humanos, é a base da missão do jornalista. Aresponsabilidade do jornalista para com o público temprioridade sobre qualquer outra, em particular face aempregadores e autoridades públicas. O jornalismo éuma profissão que requer tempo e recursos, assim comosegurança material, elementos essenciais à sua indepen-dência. Esta declaração internacional especifica as diretri-zes de conduta dos jornalistas na investigação, edição,transmissão, difusão e comentário de notícias e informa-ções, e na descrição dos eventos através de qualquer meio.

1. Respeitar os factos e o direito do público a conhecê-los é o principal dever do/a jornalista.

2. De acordo com este dever, o/a jornalista defenderá,em todos os momentos, o duplo princípio da liberdade deinvestigar e publicar com honestidade a informação, aliberdade de comentário e crítica, bem como o direito decomentar equitativamente e de criticar com lealdade O/ajornalista fará a distinção clara entre informação e opinião.

3. O/a jornalista só informará sobre factos dos quaisconheça a origem, não suprimirá informações essenciais enão falsificará documentos. Será cuidadoso no uso decomentários e documentos publicados nas redes sociais.

4. O/a jornalista não usará métodos desleais para obter

SINDICATO

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informação, imagens, documentos ou dados. Identificar-se-á sempre como jornalista e abster-se-á de usar gravaçõ-es ocultas de imagens e sons, a menos que seja objetiva-mente impossível obter informações de interesse geraldoutra maneira. Exigirá o livre acesso a todas as fontes deinformação e o direito de investigar livremente todos osfactos de interesse público.

5. A noção de urgência ou imediatismo na dissemina-ção da informação não prevalecerá sobre a verificação dasfontes e/ou a oportunidade de resposta das pessoas envol-vidas.

6. O/a jornalista procurará, por todos os meios, corrigir,de forma rápida, explícita, completa e visível, qualquererro ou informação publicados e revelados inexatos.

7. O/a jornalista manterá sigilo profissional sobre afonte das informações obtidas confidencialmente.

8. O/a jornalista respeitará a privacidade das pessoas.Respeitará a dignidade das pessoas representadas, infor-mará os entrevistados de que os seus comentários e docu-mentos serão publicados e mostrará especial consideraçãopelos entrevistados sem experiência de o serem.

9. O/a jornalista zelará por que a divulgação de infor-mações ou opiniões não contribua para o ódio ou o pre-conceito e fará todo o possível para não facilitar a propa-gação da discriminação com base na origem geográfica,social ou étnica, sexo, no género, na orientação sexual, nalinguagem, na deficiência, na religião e nas opiniões polí-ticas.

10. O/a jornalista considerará faltas profissionais gra-ves o plágio, a distorção mal-intencionada, a calúnia, adifamação e as acusações infundadas.

11. O/a jornalista abster-se-á de atuar como ajudante

da polícia ou de outras forças de segurança. As únicasinformações que deve fornecer a essas entidades são aspublicadas pelos meios de comunicação.

12. O/a jornalista mostrará solidariedade com os seuscamaradas, sem renunciar à liberdade de investigação,informação, crítica, comentário, sátira e à liberdade edito-rial.

13. O jornalista não deve usar a liberdade de impren-sa em benefício dos interesses de terceiros e deve abster-se de receber qualquer benefício pela divulgação, ou não,de informações. Evitará ou acabará com qualquer situaçãoque possa gerar um conflito de interesses no exercício deprofissão. Isso evitará a confusão entre a sua atividadecomo jornalista e a publicidade ou a propaganda. Abster-se-á de qualquer forma de abuso de informação privile-giada e manipulação de mercado.

14. O jornalista não assumirá com nenhum interlocu-tor um compromisso que possa pôr em risco a sua inde-pendência como profissional. Em troca, respeitará asmodalidades de divulgação livremente acordadas, como o“off”, sob anonimato ou embargo, desde que esses com-promissos sejam claros e indiscutíveis.

15. Qualquer jornalista digno desse nome deve seguirrigorosamente os princípios anteriormente enunciados.Não poderá ser forçado a realizar um ato profissional ouexpressar uma opinião contrária à sua convicção ou cons-ciência profissional.

16. No âmbito da lei em vigor em cada país, o jornalis-ta só aceitará, em matéria de honra profissional, a jurisdi-ção de organismos independentes de autorregulaçãoabertos ao público, rejeitando qualquer interferência,governamental ou outra.

13 MOÇÕES URGENTES E UMA MARCHA PELA LIBERDADE DE IMPRENSA

Dos quatro dias de debates e votações, há a destacar13 moções urgentes sobre diversos assuntos, comoas ameaças à liberdade de imprensa em França, a

situação do setor na Grécia, a defesa da democracia e dajustiça no Brasil ou a segurança dos jornalistas nasFilipinas.

A atuação policial desproporcionada na Austrália e emHong Kong também foi tema de resoluções, bem como oimpacto das sanções económicas nos média sírios.

A greve das mulheres na Suíça, à qual aderiram muitasjornalistas, foi aplaudida pela assembleia, que tambémmanifestou o apoio a figuras como Mumia Abu Jamal eJulian Assange, ao mesmo tempo que criticou a decisão doThe New York Times de acabar com cartoons políticos.

Os cerca de 300 delegados reunidos em Tunes partici-param numa marcha pela liberdade de imprensa. O per-curso, entre o hotel onde decorria a Assembleia Geral da

FIJ e a sede do Sindicato de Jornalistas Tunisino, fez-se aosom da palavra de ordem “Solidariedade!” e empunhandobandeirinhas com os rostos e os nomes de jornalistasassassinados ou presos no exercício de funções. JJ

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Jornal | Noticiário

Série de reportagenssobre cancro vence prémioJornalismo em Saúde

Um conjunto de cincoreportagens sob o títulogenérico “O mal-entendido: as

doenças a que chamamos cancro”,emitido na SIC, proporcionou aMiriam Alves a distinção principal daterceira edição do “PrémioAPIFARMA – Associação Portuguesada Indústria Farmacêutica/Clube deJornalistas – Jornalismo em Saúde,selecionada pelo júri, comodetermina o regulamento, entre osvencedores das quatro categorias aconcurso.

O trabalho, também premiado emTelevisão, contou com imagem deRogério Esteves, edição de imagemde Rui Berton, grafismo de PauloAlves, Rui Aranha e FernandoFerreira, produção editorial de DianaMatias e ilustração de António JorgeGonçalves. Particularmente exaustivo,abarca as diversas dimensõesassociadas à doença, com profusão defontes e depoimentos.

O prémio da categoria deImprensa coube a Sara Sá e LuísaOliveira, autoras de “Quando acomida ataca”. A reportagem,publicada na revista Visão, procuradesfazer mitos sobre alergias. CristinaLai Men, jornalista da TSF, foidistinguida em Rádio, pelo trabalho“Renascidos do Cancro”.Concentrado nas marcas que ficamnos sobreviventes, beneficiou dasonoplastia de Luís Borges. Com “OCírculo da Dor”, reportagem sobre ador crónica, João Carlos Malta, daRádio Renascença, recebeu o prémiona categoria de Jornalismo Digital. Ovídeo e a fotografia são daresponsabilidade de Joana Bourgard.

O júri do prémio, iniciativa daApifarma com gestão e organizaçãodo Clube de Jornalistas, decidiu ainda

atribuir uma menção honrosa aCatarina Marques, jornalista da SIC,pelo trabalho “E de nós, quemcuida?”, em torno da tão atualquestão dos cuidadores informais.Participaram na elaboração dareportagem Humberto Candeias(imagem), Rui Félix (edição deimagem), Cláudia Araújo (produção)Rui Aranha (grafismo) e Luís Marçal(coordenação).

Preocupado com a“mercantilização da sociedade atual”,que também se reflete naComunicação Social, o presidente doClube, Mário Zambujal, chamou aatenção, na cerimónia de entrega dosprémios, para o facto de trabalhosjornalísticos da natureza dosconcorrentes constituírem um“serviço à sociedade”. Deconcretização hoje em dia maiscomplexa, como sublinharam váriospremiados. “Nos tempos que correm,é cada vez mais difícil fazer grandereportagem”, lamentou Cristina LaiMen. “Quis fazer um trabalho o maisexaustivo possível que a direção daSIC permitisse. É um privilégio, hojeem dia, poder fazê-lo”, afirmou, porseu lado, Miriam Alves, manifestando

o desejo de que no interior dasredações se encontrem “fórmulas deinvestir” neste campo.

Nesta edição do prémio, o númerode concorrentes quase duplicou, oque não pode deixar de suscitarotimismo – ainda há, afinal, espaçopara reportagens de investigação, quepressupõem tempo e mobilização demeios. Distingui-las por esta via éfundamental para o demonstrar. Como rigor e autonomia de apreciaçãoque o júri preza. “Este é um prémiototalmente independente. AApifarma não tem acesso àscandidaturas”, disse João AlmeidaLopes, presidente da Associação.

Durante a sessão, foi apresentadoo estudo “O Impacto doMedicamento em Portugal”.Produzido por Hugo Espírito Santo,da Mckinsey, avalia, em oito doenças,os efeitos na vida dos pacientes, nasociedade e nos custos do ServiçoNacional de Saúde, além docontributo da indústria farmacêutica,que representa 2,3% do PIB, para aeconomia nacional. Um número é,por si só, revelador: desde 1990, foipossível assegurar dois milhões deanos de vida saudável aos doentes. JJ

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Jornal | SitesPor Mário Rui Cardoso > [email protected]

Para cada vez mais gente, gerir o stress da vidadiária também significa optar por deixar de vernotícias. Um inquérito do Pew Research Center, do

ano passado, concluiu que sete em cada dez americanosestão cansados de notícias (www.pewresearch.org/fact-tank/2018/06/05/almost-seven-in-ten-americans-have-news-fatigue-more-among-republicans). Outras pesquisasdescobriram que esse sentimento é geral no mundo. Aspessoas consideram que as notícias ou não são deconfiança ou são demasiado perturbadoras.

É um fenómeno que pode parecer surpreendente,num mundo em que o homo smartphonicus tem maisacesso a notícias do que nunca. Mas, como sublinhaJoshua Benton, num artigo no NiemanLab, emwww.niemanlab.org/2019/06/why-do-some-people-avoid-news-because-they-dont-trust-us-or-because-they-dont-think-we-add-value-to-their-lives, não é só às notícias que toda a gentetem hoje mais acesso, é a tudo. Por isso, também é maisfácil do que nunca evitar as notícias, substituindo-as poralternativas geradoras de maior alegria e bem-estar.

O estudo do Pew Research Center indica, igualmente,que as mulheres evitam mais as notícias do que oshomens. Dizem que as notícias as perturbam. RuthPalmer e Benjamin Toff escrevem, no NiemanLab, que issoé causa de alarme, “porque se as mulheres, em particularas que ganham menos, estiverem mais mal informadassobre os assuntos políticos, arriscam-se a ficar menosbem colocadas para se defenderem politicamente”.

Um outro artigo do NiemanLab explora as razões pelasquais as mulheres evitam mais as notícias do que os

homens (www.niemanlab.org/2018/11/why-are-some-women-news-avoiders-new-research-suggests-one-reason-has-to-do-with-emotional-labor). Um inquérito também efetuado porPalmer e Toff, junto de mulheres das classes baixa emédia baixa, permite-lhes afirmar que “a ideia de que asnotícias e a política pertencem à esfera masculina,enquanto que as tarefas domésticas estão relegadas paraas mulheres, parece antiquada. Mas estas crenças estãovivas em muitas famílias e o ato de evitarconscientemente as notícias é uma componente forte dadinâmica de género. Ver notícias sai quase por completoda lista de tarefas das mulheres que acumulam umemprego com a missão de cuidar das crianças. [Essasmulheres] confiam aos parceiros e a outros membros dafamília o consumo das notícias. Dessa forma, tentamtambém conservar a energia emocional que lhes permitecumprirem melhor as responsabilidades diárias”.

A literatura académica sobre a chamada “fadiga dasnotícias” é cada vez mais abundante. Os própriosjornalistas confessam que estão debaixo de uma pressãoinformativa demasiado intensa, no exercício da suaprofissão (ver www.surveymonkey.co.uk/r/CJGSMFC).Palmer e Toff receiam que esta “patologia da era digitalcontemporânea”, como a classificam, perpetue e aumenteas desigualdades sociais já existentes. Porque a tendênciaé para o fenómeno continuar a evoluir, num contexto emque a oferta alternativa é todos os dias maior e em que apolarização política e o clima de crescente animosidadeentre grupos políticos opostos também estão a contribuirpara essa “fadiga das notícias”.

www.niemanlab.org/2018/12/from-news-fatigue-to-news-avoidance

“Fadiga das notícias”

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www.lesjours.fr

Jornalismo de investigaçãopor episódios

Há três anos, um grupo de jornalistas do Libérationdecidiu abandonar o jornal para fundar um sitede notícias com o objetivo declarado de tornar o

Jornalismo de Investigação mais acessível e excitantepara os leitores. Apareceu o Les Jours, um projetojornalístico que “flirta” com as técnicas do guionismo eda ficção. As histórias são contadas por episódios, comonas séries televisivas. Têm até bandas sonoras, sob aforma de playlists escolhidas em estreita ligação com ostemas tratados.

Os jornalistas do Les Jours – a maior parte freelancers– não estão organizados em editorias tradicionais, nemoperam nos contextos de especialização jornalísticahabituais. Não andam a saltar de umas histórias paraoutras. Pelo contrário, podem ficar “agarrados” a umtema – uma série – por um tempo indeterminado,porque se algumas séries são curtas, outras podemultrapassar a centena de episódios.

Os responsáveis do Les Jours acreditam que estaabordagem é não só mais atrativa como transmite aoleitor – e às fontes de informação – a mensagem de queum jornalista do Les Jours é alguém de confiança queesteve com uma história ontem, continua com ela hoje enão vai largá-la amanhã, mesmo quando todos os outrosmedia já desertaram.

No Les Jours, as histórias nascem mais dos interessespessoais dos jornalistas – e dos leitores, que podemcontribuir com sugestões – do que da agenda mediáticahabitual. Aliás, no Les Jours chamam às histórias

“obsessões”. Já sete “obsessões” deram livros, quevenderam 80 mil cópias. Ou seja, uma fonte de receitasadicional para o site, que tem 11 mil subscritores e nãotem publicidade.

Nestes três anos, o conceito do Les Jours tem-serevelado extremamente versátil. O “site” aperfeiçoou-se do ponto de vista estético, com uma maiorvalorização da fotografia. Começou a transmitirpodcasts, originais ou adaptados de “obsessões” jápublicadas; negociou um contrato de preferência, nasedições em livro, com a Seuil; e mantinharecentemente negociações com canais de televisãopara a realização de documentários baseados em“obsessões”. Este interesse não surpreende. Uma sérieparticularmente bem-sucedida, sobre o retorno dejihadistas a França, originou um best-seller, gerou umdebate nacional sobre a forma de lidar com oproblema e inspirou o último filme de André Téchiné,“Farewell to the night”.

Les Jours não é ainda um caso extraordinário desucesso na paisagem informativa gaulesa. Não se tornou,num meio de massas, longe disso. Mas também não é denicho. É uma curiosa experiência jornalística que ocupahoje um lugar intermédio, em França, entre uma coisa eoutra. Com contas equilibradas, ao fim de três anos, emuito potencial ainda para explorar, é uma startup quetem sabido prosperar num país onde tantas outras têmfalhado, e um projeto editorial a seguir com muitaatenção. JJ

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Jornal | Sites

Mark Lee Hunter e Luk N. Van Wassenhovepropõem, na Ethical Journalism Network, umareflexão sobre a ideia de objetividade

jornalística num tempo complexo em que, aos jornalistas,não basta serem objetivos e factuais nos seus relatos paraserem considerados isentos e neutrais. Donald Trump,por exemplo, dissemina por milhões de seguidores, noTwitter, a impressão de que os jornalistas e os meios decomunicação são “inimigos do povo”, sempre quepublicam algo que não agrada ao presidente norte-americano, mesmo que seja verdadeiro, factual eobjetivo.

Hunter e Wassenhove promovem, no artigo, a ideiade que é urgente passar a encarar a objetividadejornalística já não tanto como um imperativo ético,como até aqui, mas como um processo técnico focadona busca da verdade. Enquanto desígnio ético, a ideiade objetividade no Jornalismo pressupõe os princípiosde correção, neutralidade e distanciamento emrelação às fontes. Mas Hunter e Wassenhove pensam-na mais como uma ferramenta que, se devidamenteutilizada, proporciona uma vantagem competitivapara chegar a um público muito alargado que precisade informação “utilizável”. Uma pesquisa do INSEAD,instituto de que Wassenhove faz parte, mostrou, porexemplo, que, especialmente em situações de crise,movimentos cujos media associados publicam factossólidos podem ser muito mais poderosos do quegrupos adversários que recorrem à manipulação deinformação. Permanece, portanto, uma condição-chave da objetividade: que os factos tenham de serverificados.

Os autores sugerem, então, uma nova inflexão numconceito que nem sempre foi visto da mesma forma. A

ideia de “objetividade jornalística” surgiu, na América,para justificar a publicação de notícias sensacionalistas decrimes, ainda na primeira metade do século XIX. Maistarde, serviu como slogan para apoiar uma estratégiacomercial da imprensa assente no princípio de que oJornalismo partidário tem naturalmente audiências maisrestritas do que um Jornalismo neutral. Agora, há outratransformação em curso.

Publicações como as redes de media alt rigth queajudaram Trump a chegar à Presidência, ou outrasligadas a ONG, ocuparam o espaço deixado vago pelosmeios de comunicação tradicionais, que perderampúblico e receitas. Essas publicações nada querem comuma informação justa e equilibrada e muito menos comuma ideia de neutralidade no Jornalismo. Querem, sim,vencer as batalhas em que se envolvem. A ponto dejornais respeitados como o New York Times e o WashingtonPost terem evoluído para posições semelhantes, aoconstituírem-se como “escudos e faróis da ‘resistência’americana”. São agora verdadeiros jornais de oposição aTrump e conseguiram, com isso, ganhos de audiências ede receitas.

Hunter e Wassenhove sublinham que esta tendênciapara consumir informação que toma partido e tem“pontos de vista fortes” é internacional e geracional.Pesquisas do Reuters Institute permitiram concluir que sãoos jovens abaixo dos 35 anos quem mais consomepublicações panfletárias. E essa evolução, dizem, faz comque seja urgente criar uma força oposta, um exército daobjetividade ao serviço da verdade. Um exército que sóserá verdadeiramente eficaz, acrescentam, se conseguiratrair para as suas fileiras uma multidão de ativistas,empreendedores e público que sejam os seusamplificadores.

https://ethicaljournalismnetwork.org/death-rebirth-objectivity

Ainda a objetividadejornalística

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Um jovem estudante turco de Jornalismo, Ömer Furkan Aktas, criou umjogo que simula a experiência de um jornalista. Chama-se Ethics:Journalist’s Way e foi desenhado depois de uma longa investigação do

autor sobre as contingências do exercício da profissão na Turquia e noutrospaíses do mundo. O protagonista do jogo é um jornalista que trabalha para ummeio de comunicação da fictícia República de Shaodor. Ele aceita tarefas doeditor e tem de tomar decisões. Mas nunca se pode ganhar este jogo. Mesmoquando o jornalista faz opções de acordo com a sua consciência, não consegueganhar. Em muitos casos, tem até de escolher entre opções moralmentecondenáveis. Porque “os jogos não são sempre só entretenimento. Por vezes,ensinam-nos muito”, diz Aktas.

https://play.google.com/store/apps/details?id=com.FurkanAktas.EthicsJournalistsWay

Jogar aos jornalistas

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Jornal|Livros

A queda de Salazar – O princípiodo fim da ditadura JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA,ANTÓNIO CAEIRO E NATAL VAZTinta-da-China, 2018

Paulo Martins

Oque fora concebido comoum empreendimentodestinado a sistematizar

informação já conhecida, paraassinalar o 50º aniversário doacidente sofrido por OliveiraSalazar, transformou-se numa obraque excede o simples juntar depeças. Entra, de facto, no gruporestrito da bibliografiaindispensável para compreenderum período decisivo da nossaHistória. Porque tem a marca dapersistência dos três jornalistas quea assinam, indisponíveis para sesatisfazerem com a primeiraexplicação, profissionalmenteforjados na eliminação da dúvida,rigorosos na perseguição daverdade.

Se o produto final oferece um parde novidades, é porque beneficia deuma multiplicidade de fontes,algumas das quais foramdesvalorizadas por outrosinvestigadores. A arquivos como onorte-americano que reúne acorrespondência diplomática entre aembaixada em Lisboa e oDepartamento de Estado, não tinhasido prestada a devida atenção.Revisitado, o Arquivo Salazarproporcionou informação que nãofora considerada. O diário escritopelo ditador entre 1932 e 1968revelou-se um verdadeiro maná.Mais de 60 entrevistas e a passagema pente fino das edições de 14jornais, limitadas pelo crivo dacensura, ajudaram a compor oretrato, num caso ou noutromarcado por versões contraditórias,que talvez nunca deixem de o ser.

Foi no Arquivo da Presidência daRepública que os autoresdesencantaram a ata autêntica dareunião do Conselho de Estado que a

17 de setembro de 1968 transferiu opoder para Marcello Caetano.Publicada pela primeira vez, esta atanão coincide exatamente com asconhecidas (a que integra o espóliode Mário de Figueiredo e a divulgadapor Franco Nogueira). Trata-se dediferenças terminológicas, não deconteúdo. Nogueira, antigo ministrodos Negócios Estrangeiros, que nasua volumosa biografia de Salazaracolhe a versão original, ainda semcorreções, é nesse dia um dosderrotados. Caetano – estava escritonas estrelas – leva-lhe a palma. A elee aos outros dois putativossucessores: Adriano Moreira eAntunes Varela.

As “misteriosas injeções”administradas a Salazar constituírama componente mais mediatizada dolivro. Não porque o mistério sejadesfeito, mas porque é, em si, umarevelação, já que a historiografia éomissa e nenhum dos entrevistadostinha conhecimento do assunto.Pelas contas da arquivista MadalenaGarcia, que se dedica ao trabalho detranscrição, figuram no diário 1211referências a injeções, a que sesubmeteu ao longo de mais de 20anos. Numa das entradas, de 5 deabril de 1956, é identificado omedicamento: Eucodal. Não ésecundário o facto de Salazar ter

pelo menos uma vez tomado esteopiáceo produzido na Alemanha,que se tornou o preferido de Hitler àmedida que se apercebeu dos seusefeitos estimulantes.

Uma fotografia do extinto jornalO Século, que não foi publicada,prova que Marcello Caetano visitouSalazar no Hospital da CruzVermelha em 8 de setembro de 1968,antes de este sofrer um AVC, e não a16 desse mês, data apresentada pelobiógrafo Franco Nogueira, a que temsido atribuída credibilidade. Osautores limitam-se a constatar que avisita foi “silenciada”. Não emitemjuízos de valor sobre a divergênciade datas, que se presta a váriasleituras, entre as quais a de queCaetano só alinhou na romaria devisitas ao quarto 68 quando lhecheirou a poder.

Sabe-se que o regime montouuma encenação, para que Salazar seconvencesse de que permanecia napresidência do Conselho deMinistros, já entregue a MarcelloCaetano. Não se espere deste livroque responda à pergunta-chave:sabia ou não que fora exonerado?Um jornalista francês ficou perplexoao constatar que Salazaracompanhava a par e passo a políticafrancesa, mas desconhecia a suaprópria situação? Pode ter sidoludibriado. Uma criança teráinvoluntariamente desfeito amarosca? A todo-poderosagovernanta D. Maria, queobstinadamente se recusou ainformar Salazar da destituição,talvez pudesse tirar a coisa a limpo,se fosse viva e quisesse falar.

Avalie o leitor o peso relativo dasdiferentes versões. Pode acreditarque, por “manha”, Salazar faria deconta que ainda estava em funções,como alvitra Jaime Nogueira Pinto.Ou tomar como válido o diagnósticodo psiquiatra José Gameiro: teria“flutuações de memória”, quadroclínico típico de demência vascular,que se segue a um AVC. Isto é,momentos de lucidez, intercaladosde alheamento. JJ

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Manual de Infografia deImprensa JOANA MOREIRAAbysmo, 2018

Gonçalo Pereira Rosa

Em 1723, a Gazeta de LisboaOcidental noticiou a morteinvulgar de uma baleia

aprisionada no estuário do Tejo.Decidida a relatar com minúciao episódio para os seus leitores,a publicação juntou ao relato odesenho de uma baleiaacompanhada de uma escalamétrica que permitia assimilarmelhor as dimensões colossaisdo mamífero. Desde o trabalhopioneiro de Susana AlmeidaRibeiro (“Infografia deImprensa”, 2008, Minerva), esteregisto tem sido apresentadocomo a primeira infografia dahistória da imprensaportuguesa, o início de umarelação conturbada entre osjornais e um dos elementos maisversáteis do arsenal jornalísticopara contar uma história. Énesse debate que se insere agoraa obra de Joana Moreira.

Vão longe os tempos domármore de paginação, dacomposição apressada do jornalatravés da medição das linhas decada linguado e do cálculo da áreadisponível para a fotografia.Ocasionalmente, justificava-seabrir espaço para um mapa, masraramente para um diagrama quecombinasse texto e imagem com aexpectativa de melhor explicarum acontecimento.

Com a diversificação dasredacções, explica JoanaMoreira, criaram-se novasprofissões dentro dos jornais. Aojornalista, juntou-se omaquetista, mais tarde odirector de arte e,pontualmente, o infógrafo e ocriador de animações. Com oboom da Internet, estas novasfunções tornaram-se mais

relevantes. Compete-se peloescasso tempo que o leitor noecrã ou no papel dedica a cadanotícia e os novos saberesganharam utilidade para geriruma montanha de dados,reconfigurá-los e apresentá-lossob a forma de um padrão(geográfico, cronológico,temático) que facilite a digestãoinformativa. Richard Wurmanchamou a este saber a novaarquitectura da informação.

O livro converte umadissertação de mestradoapresentada na Faculdade deBelas-Artes da Universidade doPorto num manual paraprofissionais – com um guiãoincluído para aplicar a cadaacontecimento e avaliar se omesmo requer uma infografia. Seaceitarmos o princípio de que ainfografia resulta da dissoluçãoda fronteira clássica entre texto eimagem, validamos igualmente anecessidade de apelar a outrosprocessos cognitivos na leitura danotícia através de novos códigosde interpretação.

Joana Moreira demonstracabalmente que a infografia não éum substituto da fotografia, nemuma artimanha para reter o leitorna página durante mais alguns

segundos. A autora convoca aexperiência da sua licenciaturaem Jornalismo e aplica-a a estecampo. Sem nunca o dizerexplicitamente, considera ainfografia como um novo génerojornalístico, uma ferramentaadicional para revelar padrões,descrever relações e fornecercontexto.

Nem todos os acontecimentosdo quotidiano podem ser vertidosnuma infografia. Nem todas asinfografias conseguem superar odrama de uma fotografia ou asensibilidade de uma descrição.“Manual de Infografia deImprensa”, porém, é muito bemsucedido em demonstrar que,numa era em que os jornaissobreviventes lidarão cada vezmais com o chamado Big Data, ainfografia de imprensa terá umaposição privilegiada paratransformar montanhas de dadosem padrões compreensíveis pelosleitores. Estamos longe da baleiado século XVIII presa em frenteda zona da Madre de Deus, mas ainfografia continua a ser tão útilcomo então para sugerir novasideias e ampliar o conhecimentodo quotidiano.

Sophia de Mello BreynerAndresen ISABEL NERYA Esfera dos Livros, 2019

Paulo Martins

Ogénero biográfico é tãodifícil de concretizarquanto desafiador. Ao

convocar memórias que o temposempre refaz, tende a percorrer oestreito trilho entre a realidade e aficção. A “Sophia” de Isabel Neryparece ter encontrado o justoequilíbrio, graças à fórmula quedesigna de “reportagembiográfica”. Se é reportagem,consente a (re)construção do real,na condição de o respeitar. Daí

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Jornal|Livros

que o produto final acabe por seruma peça de Jornalismo Literário,género tão pouco praticado entrenós, a cuja investigação a autoratem vindo a dedicar-se.

O livro percorre, como nãopodia deixar de ser, os lugares davida da Sophia – mesmo os que elanunca visitou, como a longínquailha de Föhr, de onde partiu o seubisavô para a aventura marítimaque haveria de inaugurar no Portoa dinastia Andresen. Por mais quetente reproduzir o que sentiuquando por lá passou, esses lugaresadquirem tonalidades diferentes,porque vistos por outros olhos. Daíque, a cada passo, seja aos textos dapoeta – sempre poeta, nuncapoetisa, para manter a fidelidade aoque ela preconizava – que a autoravai buscar traços (auto)biográficos.

Percebe-se que fez um trabalhoárduo e minucioso para aquichegar. E salta à vista que tem davasta obra da biografada umprofundo conhecimento. “Sophiadeixou-nos contos para crianças etextos para adultos que legam umaética, um código de conduta (o bemsobre o mal; o justo sobre o injusto;a aristocracia para todos sobre apobreza). Como não reconhecer aatualidade da sua obra em plenoséculo XXI?”, escreve.

Isabel Nery assume que nuncaconheceu pessoalmente Sophia deMello Breyner Andresen, nem nassuas deambulações de jornalistacom anos no batente. Porém,abraçou este empreendimento,para assinalar os 100 anos sobre onascimento, com o arrojo derepórter. Logo a abrir, afirma que“uma biografia rigorosa não podedeixar-se cegar pela aura querodeia o biografado”. Não se tratade uma observação gratuita. Narealidade, constitui uma espéciede compromisso. E, emsimultâneo, um subtil pedido aosleitores para verificarem se ocumpre.

Pelo menos que se note, não sevislumbra no livro a mais

pequena preocupação deexpurgar da narrativa defeitossuscetíveis de toldar o mitoimortalizado no Panteão Nacional,consumando “o milagre de nãoestar no sistema, mas poderrepresentar o sistema, ademocracia e a liberdade”, comoobserva José Manuel dos Santos.

Lá está a passagem pelaFaculdade de Letras daUniversidade de Lisboa, semresultados que se vissem – comdocumentação comprovativa,Isabel Nery apresenta umaestudante de Filologia Clássicacom notas sofríveis, que nem ocurso terminou, simplesmenteporque já era rebelde e já odiavalevantar-se cedo.

Lá está uma intelectual sempaciência para o politicamente

correto, que nos tempos quentesdo PREC alinha numa discussãode horas, madrugada dentro,sobre o conteúdo de uma moçãodo PS, mas enfurece toda a gente,ao recusar-se a assiná-la, à últimahora, porque, na versão de VascoPulido Valente, “não queria nadaque pudesse parecer de direita”.

Lá está uma mulher dada, parasermos benignos, a excessos desinceridade, que despejava nosamigos sem cuidar de saber secaíam mal. Como quando MiguelTorga lhe confidenciou que queriaescrever um poema sobre ela eouviu uma resposta lancinante:“Logo agora que está a escrever tãomal?”.

É assim que a autora desnuda aSophia que está para lá da obra,como cumpre a um biógrafo. Apoeta que também escreveu paraas crianças – para os seus filhos,desde logo, primeiros leitores,convocados a ajudar na criação deenredos. A aristocrata arrastadapara o lado esquerdo da política,que combateu o regime salazaristatambém com a arma da escrita,com ficha na PIDE e um par deinterrogatórios, mas poupada àprisão, ao contrário do marido,Francisco Sousa Tavares. A católicaque ao envolver-se em vigíliascontra a guerra colonial teráchocado muito boa gente – “osutilizadores da Igreja beata eobediente aos poderesestabelecidos terão,provavelmente, dificuldade emencontrar coerência no catolicismoe no espírito insurgente deSophia”, avalia Isabel Nery. Adeputada constituinte que teve desaborear a política ativa para nãovoltar a consumi-la, ao tomarconsciência de que a escrita era asua forma de participarpoliticamente. A mulher orgulhosa,porventura egocêntrica,indisponível para o perdão, quenão compareceu no funeral dohomem de quem se divorciou apósquatro décadas de casamento. JJ

O livro percorre, comonão podia deixar de ser, os lugares da vida da Sophia – mesmo os que ela nunca visitou, como a longínqua ilha de Föhr, de onde partiu o seu bisavô para a aventura marítima que haveriade inaugurar no Portoa dinastia Andresen

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Porquê e para quê?Victor Bandarra

Após mais de 40anos de profissão,dois filhos maispequenos (12 e 7anos) obrigam-metodos os dias arepensar o

Jornalismo que se tem vindo a fazerem Portugal e no Mundo. Alertamcamaradas de ofício, bem-intencionados, que o Jornalismo jánão é, nem pode ser, o que era.Nesta "aldeia global", da Net e davelocidade, os jornalistas sãoobrigados a ser, as mais das vezes,técnicos de comunicação, simplesrecolectores/retransmissores deinformação seleccionada por outros.

Houve um tempo em que o bomjornalismo (notícia, reportagem,entrevista...) pugnava pela respostaa seis perguntas básicas: QUEM,ONDE, QUANDO, COMO,

PORQUÊ E PARA QUÊ? Hoje,lêem-se, vêem-se e escutam-seapenas respostas às primeirasquatro perguntas (por vezes,esquece-se o ONDE, quando setrata de Lisboa, ou o QUANDO,para não parecer notíciarequentada...). Mas as criançasnunca desistem de nos confrontarcom as duas mais difíceis questõesda Vida e do Jornalismo: PORQUÊE PARA QUÊ? Duas interrogaçõesque muitos profissionais deixaramde fazer - aos outros e a si próprios.Uns por necessidade desobrevivência física e mental,outros por falta de engenho e arte,

alguns por refinada trafulhice. Enredados em moralismos, talvez

legítimos, há quem aponte ochamado "jornalismo deinvestigação" como a disciplina fina-flor da profissão. Depois, designam-se os jornalistas como "desportivos","económicos", "políticos". Apontam-seainda os jornalismos "de referência","popular", "tablóide" ou "cor-de-rosa".Uma baralhação arrogante! Umjornalista deve ser, primeiro quetudo, simplesmente jornalista - comtodo o peso ético, deontológico,técnico, emocional e artístico que aprofissão implica. E toda a notícia,reportagem ou entrevista é, ou deveser, "jornalismo de investigação" -tenha 30 ou 2 minutos, uma páginaou duas linhas. Não é fácil. Um terçodos jornalistas com carteiraprofissional ganha pouco mais doque o ordenado mínimo. Barrigavazia nunca foi boa conselheira. Porisso, um dos baluartes da profissãodeve ser o Princípio da Não-Necessidade e por ele há que lutar.Até porque, quanto mais se baixam ascalças, mais se vê o rabo...

Hoje, há patrões e assalariados queinsistem no Jornalismo atabalhoado,mentiroso, tortuoso ou rococó, tantasvezes contraproducente ao próprioesquema de lucro. Mas as crianças,senhores!, não perdoam a mentira.Por elas, pela perenidade futura doJornalismo, devemos todos nós,jornalistas, repensar e discutir asinterrogações primordiais. Porque hásempre alguém que resiste, éfundamental que os jornalistasvoltem a tentar responderdiariamente, em nome daLIBERDADE, às mais nobres questõesdo quotidiano: PORQUÊ e PARAQUÊ?

CRÓNICA

JJ

Toda a notícia, reportagem ouentrevista é, ou deve ser,

"jornalismo de investigação"

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