JOÃO CABRAL DE MELO NETO + 17 POEMAS

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JOO CABRAL DE MELO NETO Joo Cabral de Melo Neto (9 de janeiro de 1920, Recife 9 de outubro de 1999, Rio de Janeiro) foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra potica, caracterizada pelo rigor esttico, com poemas avessos a confessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. Irmo do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do socilogo Gilberto Freyre, Joo Cabral foi amigo do pintor Juan Mir e do poeta Joan Brossa. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com vrios prmios literrios. Quando morreu, em 1999, especulava-se que era um forte candidato ao Prmio Nobel de Literatura. JOO CABRAL DE MELO NETO talvez seja o autor brasileiro que mais se dedicou Metapoesia (poesia pra falar da poesia/poeta) e com mais originalidade. , fora de dvida, um dos que mais escreveram poesias sobre a poesia. Principalmente nas obras inaugurais, na primeira e mais reveladora de suas fases, desde o primeirssimo livro PEDRA DO SONO (1940-1941). Metapoesia (poesia pra falar da poesia/poeta) e com mais originalidade. Muitos de seus poemas tambm apresentam uma ligao entre Pernambuco e Espanha, uma vez que o autor passou grande parte de sua vida no exterior principalmente em Sevilha, Espanha - ocupando cargos diplomticos Algumas de suas obras Pedra do Sono (1942) Os Trs Mal-Amados (1943) O Engenheiro (1945) Psicologia da Composio com a Fbula de Anfion e Antiode (1947) O Co sem Plumas (1950) O Rio ou Relao da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente Cidade do Recife (1954) Dois Parlamentos (1960) Quaderna (1960) A Educao pela Pedra (1966) Morte e Vida Severina (1966) Museu de Tudo (1975) A Escola das Facas (1980) Auto do Frade (1984) Agrestes (1985) Crime na Calle Relator (1987) Primeiros Poemas (1990) Sevilha Andando (1990)

O luto no Serto 1 Pelo serto no se tem como no se viver sempre enlutado; l o luto no de vestir, de nascer com, luto nato. Sobe de dentro, tinge a pele de um fosco fulo: quase raa; luto levado toda a vida e que a vida empoeira e desgasta. E mesmo o urubu que ali exerce, negro to puro noutras praas, quando no serto usa a batina negra-fouveiro, pardavasca. (Pedra do sono) 2 Volta a Pernambuco Contemplando a mar baixa nos mangues do Tijipi lembro a baa de Dublin que daqui j me lembrou. Em meio bacia negra desta mar quando em cio, eis a Albufera, Valncia, onde o Recife me surgiu. As janelas do cais da Aurora, olhos compridos, vadios, incansveis, como em Chelsea, vem rio substituir rio. E essas vrzeas de Tiuma com seus estendais de cana vm devolver-me os trigais de Guadalajara, Espanha. Mas as lajes da cidade no em devolvem s uma, nem foi uma s cidade que me lembrou destas ruas. As cidades se parecem nas pedras do calamento das ruas artrias regando faces de vrio cimento, Por onde iguais procisses do trabalho, sem andor, vo levar o seu produto aos mercados do suor.

Todas lembravam o Recife, este em todas se situa, em todas em que um crime para o povo estar na rua, Em todas em que esse crime, trao comum que surpreendo, ps ndoas de vida humana nas pedras do pavimento. ( Em Paisagens com Figuras -1954) 3 Homenagem a Picasso O esquadro disfara o eclipse que os homens no querem ver. No h msica aparentemente nos violinos fechados. Apenas os recortes dos jornais dirios acenam para mim como o juzo final. (Pedra do Sono, 1940/1941) 4 CATAR FEIJO 1. Catar feijo se limita com escrever: joga-se os gros na gua do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiar no papel, gua congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijo, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 2. Ora, nesse catar feijo entra um risco: o de que entre os gros pesados entre um gro qualquer, pedra ou indigesto, um gro imastigvel, de quebrar dente. Certo no, quando ao catar palavras: a pedra d frase seu gro mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, aula a ateno, isca-a como o risco.

5 DIFCIL DE SER FUNCIONRIO Difcil ser funcionrio Nesta segunda-feira. Eu te telefono, Carlos Pedindo conselho. No l fora o dia Que me deixa assim, Cinemas, avenidas, E outros no-fazeres. a dor das coisas, O luto desta mesa; o regimento proibindo Assovios, versos, flores. Eu nunca suspeitara Tanta roupa preta; To pouco essas palavras Funcionrias, sem amor. Carlos, h uma mquina Que nunca escreve cartas; H uma garrafa de tinta Que nunca bebeu lcool. E os arquivos, Carlos, As caixas de papis: Tmulos para todos Os tamanhos de meu corpo. No me sinto correto De gravata de cor, E na cabea uma moa Em forma de lembrana No encontro a palavra Que diga a esses mveis. Se os pudesse encarar... Fazer seu nojo meu... Carlos, dessa nusea Como colher a flor? Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho.

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Tecendo a Manh 1 Um galo sozinho no tece uma manh: ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos. 2 E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manh) que plana livre de armao. A manh, toldo de um tecido to areo que, tecido, se eleva por si: luz balo. (A Educao pela Pedra)

7 A MORTE DOS OUTROS A morte alheia tem anedota que prende o morto ao dia-a-dia, que ainda o obriga a estar conosco j morto, ainda aniversaria. S que no vamos pelo morto: Queremos ver a companheira, a mulher com que agora vive; compr-la, de alguma maneira. Dizer-lhe: do marido de hoje mais do que amigos fomos manos; para que, amiga, salte um nome de seu preciso livro Quandos.

8 CARTO DE NATAL Pois que reinaugurando essa criana pensam os homens reinaugurar a sua vida e comear novo caderno, fresco como o po do dia; pois que nestes dias a aventura parece em ponto de vo, e parece que vo enfim poder explodir suas sementes: que desta vez no perca esse caderno sua atrao nbil para o dente; que o entusiasmo conserve vivas suas molas, e possa enfim o ferro comer a ferrugem o sim comer o no.

9 COMO A MORTE SE INFILTRA Certo dia, no se levanta porque quer demorar na cama. No outro dia ele diz por que: porque lhe di algum p. No outro dia o que di a perna, E nem pode apoiar-se nela. Dia a dia lhe cresce um no, um enrodilhar-se de co. Dia a dia ele aprende o jeito em que menos lhe pesa o leito. Um dia faz fechar as janelas: di-lhe o dia l fora delas. H um dia em que no se levanta: deixa-o para a outra semana, Outra semana sempre adiada, que ele no v por que apress-la. Um dia passou vinte e quatro horas incurioso do que de fora. Outro dia j no distinguiu noite e dia, tudo vazio.

Um dia, pensou: respirar, eis um esforo que se evitar. Quem deixou-o, a respirao ? Muda de cama. Eis seu caixo 10 O SERTANEJO FALANDO 1. A fala a nvel do sertanejo engana: as palavras dele vm, como rebuadas (palavras confeito, plula), na glace de uma entonao lisa, de adocicada. Enquanto que sob ela, dura e endurece o caroo de pedra, a amndoa ptrea, dessa rvore pedrenta (o sertanejo) incapaz de no se expressar em pedra. 2. Da porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala fora. Da tambm porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeit-la na lngua, rebu-las; pois toma tempo todo esse trabalho. (A educao pela pedra, 1962-1965)

11 A MULHER SENTADA Mulher. Mulher e pombos. Mulher entre sonhos. Nuvens nos seus olhos? Nuvens sob seus cabelos. (A visita espera na sala; a notcia, no telefone; a morte cresce na hora; a primavera, alm da janela). Mulher sentada. Tranqila na sala, como se voasse.

12 A PALAVRA SEDA A atmosfera que te envolve atinge tais atmosferas que transforma muitas coisas que te concernem, ou cercam. E como as coisas, palavras impossveis de poema: exemplo, a palavra ouro, e at este poema, seda. certo que tua pessoa no faz dormir, mas desperta; nem sedante, palavra derivada da de seda. E certo que a superfcie de tua pessoa externa, de tua pele e de tudo isso que em ti se tateia, nada tem da superfcie luxuosa, falsa, acadmica, de uma superfcie quando se diz que ela como seda. Mas em ti, em algum ponto, talvez fora de ti mesma, talvez mesmo no ambiente que retesas quando chegas, h algo de muscular, de animal, carnal, pantera, de felino, da substncia felina, ou sua maneira, de animal, de animalmente, de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta persiste na coisa seda. (Quaderna, 1956-1959)

A gua e o Poema 13 As vozes lquidas do poema convidam ao crime ao revlver. Falam para mim das ilhas que mesmo os sonhos no alcanam. O livro aberto nos joelhos o vento nos cabelos olho o mar. Os acontecimentos de gua pem-se a repetir na memria. O co sem plumas,pag.51, editora ALFAGUARA (O POEMA E A GUA no fala de poesia mas da leitura mesmo do poema como condio de poesia. Embora referindo-se gua, o tema central a poesia em relao com o tema... Artifcio que o poeta usa magistralmente em muitas outras ocasies. Diferentemente de outros poetas que tentam definir o que e o que no poesia, Joo Cabral faz o poema acontecer como exemplo (ou, no sentido oposto, despistamento) de sua tcnica de criao potica.) 14 O POEMA A tinta e a lpis escrevem-se todos os versos do mundo. Que monstros existem nadando no poo negro e fecundo? Que outros deslizam largando o carvo de seus ossos? Como o ser vivo que um verso, um organismo com sangue e sopro, pode brotar de germes mortos? * O papel nem sempre branco como a primeira manh. muitas vezes o pardo e pobre

papel de embrulho; de outras vezes de carta area, leve de nvem. Mas no papel, no branco assptico, que o verso rebenta. Como um ser vivo pode brotar de um cho mineral? (O Engenheiro) 15 CRIADORA DE URUBUS A mulher de Seu Costa (com medo, se sabia) criava urubus no galinheiro junto com a criao comezinha. Decepo ao saber a correta razo: no era pelo gosto doentio de criar tais bichos do Co. Nem pelo exerccio do estranho e seus desvos: mas, sim, porque o urubu protege, padre, abenoa a criao. {Entre o Serto e a Sevilha (cidade espanhola situada a sudoeste da Pennsula Ibrica e a capital da provncia homnima, na Comunidade Autnoma da Andaluzia.)}

16 A LIO DE POESIA 1. Toda a manh consumida como um sol imvel diante da folha em branco: princpio do mundo, lua nova. J no podias desenhar sequer uma linha; um nome, sequer uma flor desabrochava no vero da mesa: nem no meio-dia iluminado, cada dia comprado, do papel, que pode aceitar, contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta em sua mesa, tentando salvar da morte os monstros germinados em seu tinteiro. Monstros, bichos, fantasmas de palavras, circulando, urinando sobre o papel, sujando-o com seu carvo. Carvo de lpis, carvo da idia fixa, carvo da emoo extinta, carvo consumido nos sonhos. 3. A luta branca sobre o papel que o poeta evita, luta branca onde corre o sangue de suas veias de gua salgada. A fsica do susto percebida entre os gestos dirios; susto das coisas jamais pousadas porm imveis - naturezas vivas. E as vinte palavras recolhidas as guas salgadas do poeta e de que se servir o poeta em sua mquina til. Vinte palavras sempre as mesmas de que conhece o funcionamento, a evaporao, a densidade menor que a do ar. 17 QUESTO DE PONTUAO Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a prpria vida: que viva em ponto de exclamao (dizem: tem alma dionisaca); (alma feliz/alegre) viva em ponto de interrogao (foi filosofia, ora poesia); viva equilibrando-se entre vrgulas e sem pontuao (na poltica): o homem s no aceita do homem que use a s pontuao fatal: que use, na frase que ele vive o inevitvel ponto final.

(Em Questo de Pontuao o poeta utiliza os sinais de pontuao como metforas de comportamentos ou atitudes humanas, ou seja, para o eu lrico cabe ao homem escolher como agir ou reagir diante das diferentes situaes da vida: que ele se encante e se espante (viva em ponto de exclamao); que se questione sempre sobre o que vive ou presencia (viva em ponto de interrogao); que viva oscilando e, muitas vezes, que no tome partido, quando se trata de questes polticas.)

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