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EMOÇÃO E LÁGRIMAS NA 62ª CARAVANA DA ANISTIA 383 OUTUBRO 2012 VIDAS ERIC HOBSBAWM • CARLOS NELSON COUTINHO • LEONOR GUEDES • AUTRAN DOURADO • ARTHUR SULZBERGER • ORIOVALDO RANGEL • HEBE CAMARGO ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA FOTO JOSÉ DUAYER PÁGINA 28 EMOÇÃO E LÁGRIMAS NA 62ª CARAVANA DA ANISTIA 383 PÁGINA 3

Jornal da ABI 383

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No mês de aniversário de Ziraldo, o Jornal da ABI 383 publica a primeira parte da entrevista realizada em seu estúdio no dia 25 de setembro. Alegre, de bem com a vida, Ziraldo relembra sua infância; sua paixão pelos quadrinhos; o início de carreira; seu trabalho como relações-públicas em O Cruzeiro; o encontro com Millôr, Jaguar, Zuenir Ventura e muitos outros grandes amigos; o convite para trabalhar nos EUA no final dos anos 60; o projeto da revista Fairplay, e a festa de seus 80 anos em Caratinga. Em destaque a emocionante sessão da 62ª Caravana da Anistia, na qual duas vítimas de torturas durante a ditadura militar levaram às lágrimas os que assistiram seus comoventes depoimentos. Esta edição traz também o depoimento do cineasta Syvio Back, que fala de seu novo filme,”O Contestado – Restos Mortais”; a homenagem a Luiz Gonzaga, que faria cem anos em 2012, e lamenta a perda de Carlos Nelson Coutinho, Hobsbawm, Autran Dourado, Leonor Guedes, Sulzberger, Oriovaldo Rangel e Hebe Camargo.

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Page 1: Jornal da ABI 383

EMOÇÃO E LÁGRIMAS NA 62ª CARAVANA DA ANISTIA

383OUTUBRO

2012

VIDAS ERIC HOBSBAWM • CARLOS NELSON COUTINHO • LEONOR GUEDES • AUTRAN DOURADO • ARTHUR SULZBERGER • ORIOVALDO RANGEL • HEBE CAMARGO

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

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PÁGINA 28 EMOÇÃO E LÁGRIMAS NA 62ª CARAVANA DA ANISTIA

383

PÁGINA 3

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2 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

DESTAQUES

TEMPOS DE BARBÁRIE

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

03 DEPOIMENTO - “O velho está agarrado no presente!”

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

12 DOCUMENTO - O relatório da bomba

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15 MEMÓRIA - Um diálogo Konder-Hebe

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

20 VEÍCULOS - Correio Popular de Campinas faz 85 anos

21 HISTÓRIA - Um texto inédito de Edmar Morel

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

sobre os mortos da imprensa

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32 DEPOIMENTO - As revoluções de Sylvio Back

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

36 HOMENAGEM - O grande Lua do Sertão

38 MEMÓRIA - A ascensão e queda da Manchete

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nas lembranças de Arnaldo Niskier

40 LIVROS - Deus é investigado em livro-reportagem

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de José Carlos de Assis

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41 LIVROS - Retratos de Lima Barreto por ele próprio

SEÇÕES

0 ACONTECEU NA ABI

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16 A ficha limpa barrou 2.200 candidatos no RJ

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

19 Chineses propõem intercâmbio

LIBERDADE DE IMPRENSA

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26 Dono de jornal é morto em Mato Grosso do Sul

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

27 Tentativa de censura em Mariana, MG

DIREITOS HUMANOS

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

28 Emoção e muitas lágrimas na 62ª Caravana da Anistia

30 Executado em 1973 no Araguaia,

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Maurício Grabois ganha cidadania do RJ

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

31 Mais que um prêmio, um símbolo

VIDAS

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

42 A unanimidade de Eric Hobsbawm

43 Carlos Nelson Coutinho: perdemos

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

um grande pensador

44 Sulzberger, parte da história da

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

imprensa norte-americana

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

44 Oriovaldo Rangel, jornalista-escritor

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45 A solidão, segundo Autran Dourado

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

46 Leonor Guedes, criadora da Orbe Press

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

46 Hebe: A rainha da televisão brasileira

EDITORIAL

MAURÍCIO AZÊDO

A VIDA DEMOCRÁTICA NO PAÍS não será esta-belecida plenamente enquanto os crimes come-tidos pelos sicários da ditadura militar, na tor-tura e liquidação dos contestadores do regime,não forem submetidos a julgamento, a despei-to da infeliz decisão do Supremo Tribunal Fede-ral que, com o voto equivocado do então Minis-tro Eros Grau, declarou esses criminosos comobeneficiários da Lei da Anistia de 1979. Esta éuma nódoa imperdoável, cuja superação só seráefetivada quando esses delitos e seus autores foremnominados e expiarem os nefandos crimes quecometeram sob a proteção do Estado terroristaimplantado no Brasil após o golpe militar de 1ºde abril de 1964.

AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS, em seu Site,neste Jornal e em numerosos atos públicos deque participa, a ABI tem exposto com riquezade minúcias as violências praticadas nesses tem-pos de barbárie, a exemplo do que fazem outrasinstituições da sociedade civil, como a Ordem dosAdvogados do Brasil, especialmente através desua Seção do Estado do Rio de Janeiro, a Comis-são de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo,os Grupos Tortura Nunca Mais do Rio de Janei-ro e de São Paulo e o Instituto Vladimir Herzog,que honra com sua atuação o nome desse mártirdas lutas pelas liberdades no Brasil.

A IMPIEDADE DESSES TEMPOS de crimes semcontenção foi retratada neste mês de outubro de2012 na 62ª Caravana da Anistia realizada noRio de Janeiro, durante a qual centenas de pes-

soas comuns ouviram estarrecidas e emociona-das os relatos de duas vítimas de sevícias daditadura, Maria Célia de Melo Lundgren e MariaCristina da Costa Lyra, que, mesmo passados40 anos de seu calvário, não conseguiram do-minar a comoção das terríveis lembranças desuas passagens pelos cárceres do regime mili-tar. Tanto Maria Célia como Maria Cristinasofrem ainda hoje a angústia de um passadotornado tenebroso pelos esbirros da ditadura.Assim como ambas durante seus depoimentos,os participantes da sessão choraram ao teremnotícias da tanta violência e de tanta dor.

IGUAL EMOÇÃO CAUSOU o depoimento de Da-niel Carvalho de Souza, filho do sociólogo Her-bert de Souza, o Betinho, e sobrinho do cartu-nista Henfil. Por força das perseguições promo-vidas contra seu pai, um dos líderes da nascenteresistência à ditadura, Daniel foi exilado com amãe quando tinha três anos, viveu ainda meni-no em vários países e só retornou à sua terra em1979, com l4 anos de idade, com a instituição daLei da Anistia. Como ele, muitas outras crian-ças, como os filhos do jornalista mineiro José MariaRabelo, enfrentaram essa dolorosa provação.

POR MAIS QUE OS SOBREVIVENTES da ditaduradeblaterem, esgrimindo a Lei da Anistia como umestatuto de perdão, não há como poupar os auto-res desses crimes inomináveis de que tantos pa-trícios foram vítimas do destino que uma socieda-de realmente democrática reserva a quantos de-linqüiram de forma tão abjeta: o banco dos réus.

O OLHAR DE ZIRALDO Publicado em O Cruzeiro de 31 de maio de 1958.

EM SEU PROGRAMA, HEBE CAMARGO RECEBIACONVIDADOS COMO RONNIE VON E CAÇULINHA.

MARGARIDAPRESSBURGERPARTICIPOU DOSEMINÁRIO VOTARLEGAL, NA ABI.PÁGINA 16

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3JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

DEPOIMENTO

POR FRANCISCO UCHACOM VERÔNICA COUTO E SANDRO FORTUNATO

FOTOS JOSÉ DUAYER

iraldo! Esta assinatura é umainstituição nacional. Ele não émais aquele menino inteligen-te e agitado que saiu de Cara-tinga pensando em desenharhistórias em quadrinhos. Seu

nome já se tornou lendário, tamanho é o seutalento e o seu sucesso nas mais diversas áreasque abraçou. Quadrinista, chargista, humo-rista, escritor, pintor, designer, cartazista, pu-blicitário, relações-públicas, editor, jornalista,produtor, apresentador de programas de tv.Ufa! Ziraldo é tudo isso e muito mais.

“Eu sou especialista em assuntos gerais,sou especialista em tudo”, disse sem falsa mo-déstia e com um leve tom brincalhão nestaentrevista. Foi assim desde criança: “Quan-do chegava visita, os meninos podiam brin-car; eu tinha que tomar banho, me arrumare ir para a sala conversar”. Todos tinham or-gulho do “menino inteligente da Zizinha”. Oavô se vangloriava: “Meu neto é um RuiBarbosa!” Mas Ziraldo confessa: “Eu era cha-to mesmo”.

De bem com a vida, alegre, inteiro (comocostuma falar), Ziraldo acabou de descobrirque tem mais uma especialidade: velhice. “Ovelho que disser que tem saudades da infânciaé um mentiroso filho da puta. O ancião é umcara do presente.” Pois é. Ele agora sabe qualé a verdadeira idade da velhice: “Um homemde 70 anos não é um ancião! Um homem de80, sim.” E isso não diminui em nada o seuentusiasmo: “Companheiro!... Eu garantioitenta anos. Eu saí da válvula para o chip.Estou feliz de ter vivido 80 anos nestes doisséculos.”

Nesta primeira parte da entrevista que Zi-raldo concedeu ao Jornal da ABI, ele relem-bra sua infância; sua paixão pelos quadri-nhos; o início de carreira; seu trabalho comorelações-públicas em O Cruzeiro; o encontrocom Millôr, Jaguar, Reynaldo Jardim, Lan,Zuenir Ventura, e muitos outros grandesamigos; o convite para trabalhar nos Esta-dos Unidos no final dos anos 1960; o projetoda revista masculina Fairplay, e a festa de ar-romba de seus 80 anos em Caratinga.

Com vocês, o ancião maluquinho.

“O velho estáagarrado nopresente!”

“O velho estáagarrado nopresente!”

Ele garantiu os 80 eestá feliz da vida. Inteiro,

trabalhando muito,especialista em velhice.

Ziraldo não pára.

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4 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOSDEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

Jornal da ABI – Você veio para oRio de Janeiro para se tornar de-senhista. Conte esse início em Mi-nas. Desde quando começou apaixão pela história em quadri-nhos? Quais foram seus inspira-dores?

Ziraldo – Toda a minha geração,de qualquer área de formação; todosos que tomaram conhecimento delivro, de literatura, todo mundo co-nhece e tem uma certa influência doMonteiro Lobato. Na verdade, nãoacredito nem em uma influência, masem uma certa nostalgia. O Lobatopovoou intensamente a infância daminha geração. Toda a entrevista queeu dou, preciso falar sobre a presen-ça do Lobato na minha vida, comPedrinho, Emília, aquela coisa toda.E principalmente porque na minhageração, especificamente no grupoescolar, o Lobato era controverso. AIgreja Católica tinha problema comele; o pessoal anticomunista tinhaproblema com ele.... mas as professo-ras se encantavam com Reinações deNarizinho, As Caçadas de Pedrinho, oSítio do Pica Pau Amarelo, o Jeca Tatu.O Jeca Tatu foi a primeira história emquadrinhos humorística que eu li.Vendendo ankilostomina, que era re-médio contra as doenças da época, obicho-do-pé. Ele calçou botinha nasgalinhas. Aquilo foi emocionante – veras galinhazinhas de botinha para nãopegar bicho-do-pé. Mas Lobato nãoera meu amigo de infância. Meus ami-gos de infância eram o Batman, Su-per-Homem, Tarzan.

Os livros da minha primeira in-fância eram de uma editora católicade Juiz de Fora que fazia muito livri-nho para criança. Lembro de um cha-mado O Que Eu Li e Ouvi. Meu paiera muito pobre, mas foi estudar emJuiz de Fora para trabalhar na Aca-demia de Comércio. Trabalhava var-rendo o internato e o salário dele eraestudar de graça, com comida, roupalavada. E se formou guarda-livros. Oquadro de formatura dele está na fa-mília até hoje. O retratinho na pare-de. Se formou com o Magalhães Pin-to... Daí ele veio para Caratinga e trou-xe muito livro da Academia. Ou eleafanou ou ele comprou ou ele ganhou.Mas tinha muito livro em casa.Muito. Eu passei a vida inteira brin-cando com livro, desenhando nos li-vros, destruindo os livros. Sempre quemeu pai voltava de viagem, o presenteera livro. Sempre. E minha mãe gos-tava muito de ler romance. Tem umque marcou, Um Clarão Riscou o Céu.Lembrei dele agora... Meu pai era ummorador importante da cidade e sem-pre era escolhido para fazer discurso.E nunca fez um discurso que não fosseoriginal. Tinha mania de escrever, deinventar parábola. Às vezes era mui-to engraçado. Ele também tinha umaletra admiravelmente bonita. Cadernode caligrafia.

Tanto a minha mãe quanto o meupai e meus avôs maternos, eram pes-soas notáveis. Eles eram completa-mente fora dos padrões da minha

infância. Veja só: o sonho da minhamãe era juntar dinheiro para me daro Tesouro da Juventude. Era o sonho davida dela. E todo Natal não tinhadinheiro para comprar. Um dia, fuina casa de uma professora minhaque tinha o Tesouro da Juventude naestante. Dona Didi do Ramos – oRamos era um advogado. Minhamãe falou pra ela: “O sonho da mi-nha vida era dar o Tesouro da Juventudepara o meu filho”. Aí, a professoracomeçou a me emprestar. Acabava deler um volume e levava para a DonaDidi. Então, pegava outro volume.Eu li o Tesouro da Juventude todo em-prestado. Eu nunca tive. Depois develho comprei, lógico. Acho que ain-da tenho aqui. O Tesouro da Juventu-de era um computador. Tinha res-posta para tudo. E tinha todos osautores infantis: Collodi, Andersen,Grimm... todas as histórias infantisestavam ali, reduzidas. Era uma coi-sa emocionante. Aquela coisa do livro,

te, apareceu O Globo Juvenil com oSuper-Homem. Então o jornaleiropassou gritando, pegou um e falou:“Toma o Gibi!” E eu falei: “O que éisso, ô, Zé? Eu não tenho dinheiro,como eu vou pagar? O Padre Otofalou que eu não posso ler isso!” E ele:“Deixa de ser besta, menino. Seu paitá jogando sinuca ali, depois eu cobrodele”. Aí pensei: “Tô perdido. Meu paiera muito católico, como é que vaipagar gibi para mim?” Quando eucheguei em casa, papai perguntou:“Que revista o Zé Biscoito te deu?”Eu mostrei e disse: “O senhor pa-gou?”. E ele: “Claro que eu paguei”.Papai era guarda-livros, tinha rendamuito pequena. E ele perguntou: “Émensal?” Respondi que era e meu paifalou: “Vou falar para ele te dar todomês”. Aí eu vibrei! “Porra! Meu pai éum transgressor! Está me ajudandoa desobedecer o padre!” Também tinhao barbeiro da rua que se chamava Yuiue comprava todos os gibis. Aí, meu paicombinou com ele para me passarpela metade do preço esses gibis queele lia. Então eu tinha todos: GibiMensal, O Globo Juvenil Mensal, o Mi-rim, o Gibi Semanal, o Globo JuvenilSemanal, o Lobinho. Assim, eu virei de-senhista de história em quadrinhos.

Jornal da ABI – Como era o nomedo barbeiro?

Ziraldo – Ele se chamava Yuiu.Quer dizer, era conhecido por esse ape-lido. Como todo barbeiro, era bom depapo e, com isto, sabia conquistar aamizade dos fregueses. Ele era um jo-vem. Meu pai, bem mais velho do queele, achava que o Yuiu era um belosujeito! Fantástico desencavar essaslembranças. Deve ser a primeira vez,em quase sessenta anos, que repito onome do Yuiu.

Jornal da ABI – Nessa época vocêjá desenhava?

Ziraldo – Eu já desenhava quan-do nasci.

Jornal da ABI – E como era suainfância?

Ziraldo – Minha mãe me exibiamuito. Quando chegava visita, osmeninos podiam brincar; eu tinha quetomar banho, me arrumar e ir para asala conversar. Lembro um dia que eufui buscar no armazém um pacote demacarrão, um quilo de arroz e umquilo de qualquer outra coisa. Sei queeu vim com um saco, um cereal qual-quer aqui, outro ali, e não tinha ondecolocar o macarrão, que era um pacotecomprido, azul. Eu usava aquela cal-ça de suspensório fixo; então enfiei opacote de macarrão entre os suspen-sórios e vim carregando tudo. Vinhamduas senhoras e, ao verem minhasacada, uma comentou: “Que meni-no danado! Olha a solução que ele deupara carregar o macarrão!” E a outra:“Ah, é o menino inteligente da Zizi-nha”. Eu tinha fama de ser inteligentena cidade. E desenhava todos os car-tões de festa, os convites, fazia jornal-zinho na rua com os meninos.

Minha lembrança mais antiga é detrês anos. Quem fala que lembra bemdos três anos está mentindo, porqueo cérebro não registra. São vagas lem-branças. Morreu meu avô. Eu lembrodo tumulto no quarto e tal, mas agente só organiza os fatos a partir dosseis, sete anos. Aí você se localiza notempo, no espaço. Por exemplo, euuso as músicas de Carnaval a partirdos seis anos, para identificar umperíodo. Quando eu fiz seis anos, seique eram seis anos porque lembro damúsica “...Será você a tal Suzana/, acasta Suzana do Posto Seis?...”, que édo Carnaval de 1938. E quando eu que-ro situar um fato qualquer, vejo amúsica a partir de um livro que guar-do a sete chaves: O Carnaval CariocaAtravés da Música, de Edigar de Alen-car, editado pela Livraria Freitas Bas-tos em 1965. Sua história vai de 1840a 1965. É uma referência para mim.A música de sucesso do Carnaval mar-cava o ano. Pois eu tinha três anos,estava desenhando... lembro dos pésdas pessoas em volta de mim, e eudeitado no chão. E uma voz dizia: “Eleestá dizendo que isso é um tatu.” E eulembro de ter pensado: “Estou dizen-do é o cacete! Isso é um tatu, minhasenhora!” Lembro direitinho – que an-tipatia dela. Eu caprichei. E esse tatu,três anos depois, quando eu já dese-nhava tatu para burro, meu pai man-dou para Folha de Minas. Em 1938, aFolha de Minas publicou meu primei-ro desenho. Eu tinha cinco anos. Fi-quei na dúvida em que ano foi publi-cado. Mas pela música Jardineira, eusei, foi em 1938. “Ó jardineira, por queestás tão triste...”

Jornal da ABI – Você era uma cri-ança calma?

Ziraldo – Calminho nada. Erahiperativo, mas entendia tudo. Atéhoje sou. Mas não tomei trequetolnem fiz eletroencefalograma, nemtinha psicólogo. Tinha era liberdadecompleta. “Menino, não enche osaco, vai brincar na rua”. Voltavapara casa para lavar os pés e dormir.Tomava banho quarta e sábado. Erauma coisa muito libertária.

Jornal da ABI – Tomava banhoduas vezes por semana? Não fa-zia calor?

da mão... Mas a minha vida começaquando eu descubro o gibi. Aí é que éforte! Tinha um padre chamado Oto,que era muito rigoroso, um sujeitointeligente, convicto, fundamentalis-ta mesmo, católico. Fundou a Cruza-da Eucarística, da qual fiz parte. E eleproibiu a gente de ler gibi.

Jornal da ABI – Na época, haviauma campanha forte contra os gi-bis. Você lia escondido? Como fa-zia?

Ziraldo – Eu lia história em qua-drinhos quando sobrava alguma edi-ção, porque o jornaleiro era da minharua, mais pobre. Minha rua não ti-nha calçamento. Botei isso num li-vro, chamado O Menino Quadradi-nho. Um dia eu estava voltando damissa das 10 horas, passou o jorna-leiro – chamava Zé Biscoito – com oGibi que trazia a estréia de um heróichamado Titã. Logo no mês seguin-

“Porra! Meupai é um

transgressor!Está me

ajudando adesobedecero padre!”

No Pasquim,Ziraldo homenageouos personagens desua infância criandodesenhos memoráveisno Poster dos Pobres.

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5JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

Ziraldo – Conselheiro Pena: 45graus à sombra. Vale do Rio Doce, umcalor desgraçado. A gente não toma-va banho. Menino não tem “cecê”,precisa tomar banho nada. Quandoera pré-adolescente, minha famíliatinha mudado para o Rio, e eu vimvisitá-la. A minha tia morava naTijuca, num apartamento térreo,recém-casada. Estava arrumando aágua para dar banho na filha nabanheira. A água na banheira era azulclara, transparente, clarinha. Olheiaquela água assim, perguntei “Tia,o que a senhora botou na água?”“Botei nada”. Mas a água tão limpi-nha fica azulada. Para quem nuncatinha visto aquilo, a água era supe-razul. E é possível que tivesse algumcloro. Já a banheira da minha casa,quando a gente enchia, não via ofundo. Não sei como a gente sobre-viveu. Metade dos amigos da minhainfância morreu de esquistossomo-se. Quero fazer um filme como Ama-cord... O Fellini é mais velho do que eudez anos e ele pegou a ditadura itali-ana, do Mussolini. Há muitos pontosde referência com a infância brasilei-ra daquela época. Só que você não ti-nha mar, não tinha neve, não tinhaaquele vento do Saara. Mas tinha, porexemplo, em agosto, o mês da quei-mada. Vinham aquelas folhinhas desamambaia no ar. Tudo ficava esfu-maçado, você ficava com o ombrocheio de cinza. Aí vinha aquela folhi-nha de samambaia bonitinha, batiaem você e se desfazia toda em cinza.Todas essas coisas eu poria em umAmacord. E o enterro! Havia um en-terro, dois, por semana! Minha ruaera a rua dos pobres, então enterraranjinho era o pau que rolava. E osamigos de infância também. Todosos meus amigos de infância, cujospais não tinham emprego, todosmorreram na infância. Chapelão,João Permanente... a lista é enorme.

Jornal da ABI – Então o contatocom a morte foi muito cedo!

Ziraldo – Rapaz, a gente fez umcenso esquistossomático na região doVale do Rio Doce. Foi muito engraça-do, porque eu já era humorista. Eutinha dez anos, no máximo. Recebe-mos uma latinha para colocar o cocôdentro. Você imagina levar um tremde ferro de cocô das crianças para BeloHorizonte, para examinar e poder vero índice de esquistossomose. Em Ita-bacuri, deu 100%. Todas as criançastinham esquistossomose. Caratin-ga deu 85%. Eu me lembro de quemeu avô estava falando com meupai no almoço sobre esse negócio, aíeu mandei: “Ah, então foi a primei-ra vez que a gente pôde mandar oGoverno à merda.” Fez o maior suces-so essa piada. Eu conversava muitocom meu avô e meu pai. Meus paisforam especiais e meu avô também:primeiro, eu era o neto mais velho.Agora é que eu descobri o que é ser avôdo neto mais velho. Eu não percebiapor que meu avô tinha aquele encan-tamento comigo. Porque eu era o neto

mais velho, pô! Ele também me exi-bia, igual minha mãe. Ele era ferreiroe falava alto. Porque o ferreiro fica o diainteiro batendo ferro, e conversa altocom o auxiliar dele. Quando chega emcasa, fica falando na mesma altura.

Uma vez, meu avô estava na pra-ça contando causo, sentado no bancodo jardim, porque nem todo mundotinha emprego e ficava muito cara nobar, muita rodinha de conversa. Prin-cipalmente porque quem sustenta-va metade dos caras que não tinhamemprego eram as professoras. A pro-fessora era a única mulher que tinhasalário; então ficavam aqueles caras,tudo coçando o saco no jardim. Euvenho andando e meu avô me cha-ma com um grito. Ele era severo paracaralho, era um patriarca, mandavaem todos nós. Figuraça. Perguntei: “Oque é, vô?” E ele: “Stalingrado caiu ounão caiu?” Respondi: “Não caiu.”“Como está a frente do Norte daÁfrica?” “E o Dia D, invasão da Nor-mandia?” E eu respondia a essas per-guntas, e ele: “Pode ir embora.” Aí, diziapara os amigos: “Meu neto! É um RuiBarbosa!” Eu sabia tudo da guerra,com dez anos. Eu era chato mesmo.Era insuportável. Então eu podia serhiperativo, mas dava notícia domundo.

Lembro uma vez, papai conversan-do com um tio chamado Luis Carva-lho e meu avô, no almoço. E eu ouvin-do o Carlos Frias dar notícias da guer-ra. Meu tio era catastrofista. Tinha exer-cício de apagar a luz de noite,para não ser atacado pelosnazistas. Agora você imagina,lá em Caratinga, você apagar aluz!... Também sabia tudo dos na-vios afundados: Araraquara, Aníbal Be-névolo, Meireles... Era uma infância en-graçada lá em Caratinga. E a minha ja-nela para o mundo era o quadrinho.

Jornal da ABI – Você lia tudo, masquais eram os seus preferidos?

Ziraldo – O que mais me empol-gou – eu já era adolescente – foi quan-do descobri o Spirit. Eu já tinha 12, 13anos, já sacava o Will Eisner, aquelacoisa do claro-escuro, da história dra-matúrgica, que não era maniqueís-

ta, o herói tinha problemas. Uma dasmaiores gratificações da minha vidafoi ter conhecido, convivido e ter re-cebido o carinho do Eisner. O WillEisner veio ao Brasil e se encantou,porque ele não tinha idéia de comoera admirado aqui. Ele me disse quenunca foi tão amado quanto no Bra-sil. Afastado dos centros de cultura, agente se esforçava muito para acom-panhar o que estava acontecendo nomundo. Então, a gente sabia de maiscoisas que o americano médio. Ummenino do interior dos Estados Uni-dos não sabe nada de nada. Não sabenem onde fica o Brasil. Um menino dointerior do Ceará ou de Minas sabeonde é que está. Em Vermelho Novo,distrito de Caratinga, onde meu painasceu, havia um grupo de “prous-tólogos”, uns caras que discutiamMarcel Proust, havia grupo de teatro.Então quando o Eisner chegou aqui,ficou encantado. Tornou-se muitoamigo da Marisa Furtado, que fez asérie Profissão Cartunista – com ele,comigo. E aí há uma história linda.Toda vez que eu ia aos Estados Uni-dos, ia falar com o Eisner. Uma vezentrevistei-o para o Pasquim. Ele veiose encontrar comigo num bar em

Nova York, conversou longamente.Levei-o a Belo Horizonte, fiz uma fes-ta para ele no Costa Brava. Foi mui-to gratificante, porque ele foi o caraque me despertou para a qualidade dodesenho. Um dia, cheguei na livrariaStrand, em Nova York, o maior sebodo mundo, virei para o cara e pergun-tei: “saiu alguma coisa nova do WillEisner?” Porque eu queria pegar o livroe pedir para ele autografar. Aí o cara:“Saiu sim, está aqui. Tem mais coisadele, o senhor quer? Pois é, estamosvendendo muitos livros dele, porqueele morreu hoje”. E eu ia me encontrarcom ele! Eisner morreu em Miami,onde montou uma escola de desenho,mas tinha um endereço em NovaYork, na River Side.

Jornal da ABI – A primeira vez quevocê veio ao Rio já colaboravacom O Cruzeiro antes de servir oExército. É isso?

Ziraldo – Ah, sim. Meu avô veiocom a família toda para o Rio. Ele eraum grande aventureiro, maluco,pegou as oito filhas solteiras e veio.Foi morar na Tijuca, no Morro do SãoCarlos, na Rua Maia Lacerda. E afamília se criou aqui. Quando vim daprimeira vez, me encantei com o Rio,mas não conhecia ninguém. Vimfazer o científico. Aí conheci Millôr,Accioly Netto, a Redação de O Cru-zeiro, e publiquei uns desenhos n’ACigarra... Lembro que, quando euentrei na Redação de A Cigarra, eraum sábado e lá estava o Millôr sen-tado, o José Medeiros e o AcciolyNetto. Eu disse bom dia e o Millôrrespondeu [alto]: “Ziraldo Pinto, deCaratinga!” Putz. Pirei. Como vocêsabe que eu sou o Ziraldo? Eu já man-dava umas colaborações. Aí o Millôrvirou o homem mais importante daminha vida. A partir daí, nunca maiso larguei. Quer dizer, depois a genteficou mais velho e todo casamentoacaba, passamos um tempo estreme-cidos. Mas nessa época, onde o Mil-lôr ia, eu ia atrás. Ele gostava, e eu oachava o sujeito mais inteligente domundo. E era mesmo. Uma inteligên-cia absurda. Eu vivi vários anos emfunção do Millôr. Mais tarde, depoisdessa influência muito grande do Mi-llôr na minha vida – toda a informa-ção que eu queria tinha que ser filtra-da pelo julgamento do Millôr –, ve-nho para O Cruzeiro, que estava sen-

do reformulado. Um dos respon-sáveis pela reforma era o Enrico Bi-

anco, que foi assistente do Portina-ri, grande pintor brasileiro. E virou

meu segundo guru. Essas duas influ-ências foram muito poderosas naminha vida no Rio. Depois, Reynal-do Jardim. Esse virou meu irmão. Ostrês são meus irmãos mais velhos.

Jornal da ABI – Aí você voltou paraMinas para servir o Exército.

Ziraldo – Tiro de Guerra, caçadorde rolinha...

Jornal da ABI – Nesse período,conseguiu desenhar?

Ziraldo – Continuei mandandominhas colaborações lá de Caratin-ga. E fui estudar Direito em BeloHorizonte. Nessa época, trabalhavana Standard Propaganda e continu-ava mandando meus desenhos paraA Cigarra, onde fazia uma página. Játinha trabalhado com publicidade noRio, quando vim da primeira vez: naPoiares e, quando fazia científico, naMcCan. Uns três anos antes de meformar, consegui um emprego em OCruzeiro. Mas não tinha lugar parailustrador pago lá dentro. Em OCruzeiro, todos os ilustradores eramfreelancers. Nem Appe, nem CarlosEstevão, nem Millôr. Então larguei aStandard e fui contratado para serrelações-públicas na editora. Antes,na época da McCan, era muito con-fortável, porque a agência ficava naRua México, 3. Eu era auxiliar dedesenhista e depois fui ser aquilo quese chamou de “pastupista”, ou seja,montador. Em vez de computador, aarte-final era com pinça e cola desapateiro. Ia na gráfica pegar as pro-vas em papel Couché, cortar, colar.Eu montei um calendário inteirocom pinça. Tinha que quadricular,colar, botar no esquadro. Número pornúmero. Até os 21, 22... colocava um2 e outro 2. O sujeito me deu umafolha com um monte de 1, de 2, de 3...e eu fui montando. Isso foi para aGrant. O diretor de arte era o mari-do da Tônia Carrero, Carlos ArthurThiré. Ele era muito sofisticado, fa-zia uma página sofisticadíssima naManchete. E era um diretor de arteótimo. Um dia, a Mariinha foi visi-tá-lo na Redação. A “Mariinha” eraa Tônia Carrero. Aí eu saí distraído eentrei na sala onde ela estava. Elaestava em pé! Estava esperandoansiosa... Eu fiquei estático! Foi avisão mais linda que tive em toda aminha vida. Só perdeu para Catedralde São Marcos, em Veneza. Em se-gundo lugar, a Tônia Carrero! Nemsei se em segundo lugar... Assim, deficar estático mesmo! Aaah! Nãotive a oportunidade de contar issopara ela, porque eu fiquei paralisado.Acho engraçado que outro dia fize-ram um concurso da mulher maisbonita do Brasil e ganhou a MariaFernanda Cândido, alta, bonita. Vocênão pode fazer essa eleição. A mulhermais bonita do século é a TôniaCarrero, que ficou 50 anos linda! Enesse dia, ela estava no auge da be-leza. E com a consciência de sua be-leza! Ela viveu em função da belezadela. Era um fenômeno essa mulher.Além de ter aquela alma, aquela forçade ser humano. Boa atriz e umamulher atrevida, despachada, donado seu nariz. Uma coisa espantosa!

Jornal da ABI – E a experiência naCatedral de São Marcos?

Ziraldo – O negócio da Catedral deSão Marcos foi o seguinte. Eu fiz aFaculdade de Direito porque era umachance de ir para a Europa. Naque-la época, no quinto ano, a turmafazia uma excursão à Europa, era

“Aí o Millôr virou o homem mais importante daminha vida. A partir daí, nunca mais o larguei.”

Spirit, deWill Eisner,empolgouZiraldo.

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DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

uma tradição da Faculdade de Direi-to. Mas tinha que passar os cincoanos participando de quermesses,fazendo rifas e pagando uma presta-ção por mês. A escola era de graça,mas eu pagava. Atrasava o paga-mento, eles me expulsavam. Ia lápedir para não me expulsarem. Esta-va no Rio, precisava ir a Belo Horizon-te pagar a prestação. Tinha assem-bléia para ver se me deixavam ficar;me expulsaram umas três vezes, oscanalhas! (risos) Aí fiquei na turma.Éramos trinta e dois só. Pegamos umnavio aqui, o Júlio César; e voltamosno Augustus. Quando chegamos emVeneza, era final da tarde. Pegamosa lancha e desembarcamos numhotel, onde hoje eu não teria dinhei-ro para pagar uma diária! Eramhotéis de primeira que a Polvani[agência de turismo] garantia pra gen-te. Lindo. O quarto cheio de quadros,jarros. Chegamos às cinco e pouco,subimos ao quarto para deixar ascoisas. Eu desci sozinho, pois estavalouco para ver Veneza. Cheguei naporta, d”ov’è la Piazza San Marco?”O sujeito respondeu: “a sinistra e àdestra”. Dobrei à esquerda e dei trêspassos e virei à direita. Achei que iacaminhar muito, igual em Minas.Quando eu virei... os pombos voa-ram, subiram todos! Um espetácu-lo! Havia o crepúsculo atrás da Ca-tedral de São Marcos! Aquela coisaemocionante. Eu sentei e chorei,porra! O que você queria que eu fizes-se? Eu achava que a única chance deir à Europa era aquela. Então aque-la viagem foi uma grande conquista.A gente não ia assim à Europa.

Jornal da ABI – Que tipo de impres-são lhe causou a Redação da revistaO Cruzeiro quando você foi con-tratado? O que era O Cruzeiro?

Ziraldo – Ah, O Cruzeiro era a TVGlobo! Era o Panteão! Flávio Damm,José Medeiros, Luciano Carneiro,Jorge Ferreira, Jean Manzon, DavidNasser. Depois que você lê a verdadei-ra história de O Cruzeiro, do Maklouf[Cobras Criadas – David Nasser e OCruzeiro, de. Luiz Maklouf Carvalho],vê que os deuses têm pés de barro.Mas para mim era uma coisa glori-

osa. E a sala da Redação! Eu entrei nasala de espera de O Cruzeiro e erammóveis do Joaquim Tenreiro – hojeuma cadeira do Tenreiro custa R$ 100mil – e doze quadros do Portinari. OCruzeiro não sabia o patrimônio quetinha. E era um prédio do Niemeyer,lá na Saúde, onde está hoje o Jornal doCommercio. Mas não era aquele par-dieiro de hoje, não. Eu peguei o auge.Eu fiz a revista que mais vendeu noBrasil até hoje. Vendeu 1,4 milhão deexemplares! Foi a revista que come-morava a vitória do Brasil na Copado Mundo de 1958. Não sei se a Vejavende isso. E não era assinatura, não.Era venda em banca. Bellini na capa,com Adalgisa Colombo beijando ele.Eu acompanhei a produção dessafoto. Falei para ela, vem beijar o Be-llini. E ela, que não o conhecia, falou:“Vou beijar não; o que é o Bellini?” Eurespondi: “Ô! É o beque do Brasil,campeão do mundo!” Quando elaentrou no estúdio, perguntou: “Éaquele?! Dou trezentos beijos nele!”Foi lá e deu. Na Fiorentina, estãotodas as fotos feitas pelo IndalécioWanderley.

Comandei a chegada dos jogado-res brasileiros porque era relações-públicas de O Cruzeiro. Ia ser muitaconfusão no aeroporto, aquela coisa...então pegamos todas as famílias dosjogadores e levamos para a Redação.Quando eles chegaram no aeropor-to, não tinha ninguém. Só a Guio-

mar – que era a Guiomar [mulher domeio-campista Didi]: “Comigo não,violão. Eu vou buscar meu marido noaeroporto. Vocês estão malucos.Nem pensar”. E foi para o aeropor-to. A gente tinha uma recepção como Jango na Redação, distribuindo re-lógios para os jogadores. E eu coman-dava isso tudo. Os jogadores foramcolocados num carro do Corpo deBombeiros, que tinha um interfone.Eles precisavam chegar na PraçaMauá e descer a Avenida Rio Branco.Aí dissemos: “Não! Na Rua do Livra-mento, vocês param, deixam os jo-gadores, a gente fotografa, o Jangodistribui os relógios. Aí, os jogadoresvoltam para o carro de bombeiros evão para a Rio Branco. E o Juscelinoesperando os jogadores no Palácio doCatete. O Aciolly desesperado, na-quela aflição. Quem é que instruiu oCorpo de Bombeiros a fazer esse tra-jeto? O Rodolfo Brant, que era umalemão que trabalhava n’O Cruzei-ro. Não sei se vocês conheceram afama dele. Era o cara que protegia osfotógrafos, quando a gente fazia oCarnaval. Na Quarta-Feira de Cin-zas o Brasil inteiro já estava com OCruzeiro com todas as fotos do Car-naval. Para cobrir o concurso de MissUniverso, havia um avião com labo-ratório! Acabava a eleição da miss, oIndalécio corria para o aeroporto,entrava no avião, revelava as fotoscom o Ed Keffel; o avião chegava

meio-dia no Rio de Janeiro, já comtudo paginado na revista. De tarde,no dia seguinte, já estava a ediçãocom a miss nas bancas. Bom, aí veioa informação de que o carro dos Bom-beiros ia direto para a Praça Mauá.Chamamos o Brant: “Brant, o bom-beiro está dizendo que vai para aPraça Mauá”. “Deixe comigo.” Ele foi,parou o carro, tirou o bombeiro dadireção, jogou lá fora, assumiu a di-reção e entrou na Rua do Livramen-to. Nós lá em cima, quando vimosque o carro vinha... o Accioly teveuma crise de choro incontida. Passa-mos a manhã toda, o dia inteiro,tomando conta do Dondinho [pai doPelé], do pai do Garrincha, dandocomida para a filhinha do Oreco...passei o dia todo tomando conta dasfamílias dos jogadores. Quando oelevador abriu, com as famílias espe-rando os jogadores, o Leonam [Car-los Leonam] subiu no elevador parafotografar a cara das mulheres. An-tes de abraçar os jogadores, a gentefotografou a cara delas. Pusemos ascaras das mulheres dos jogadorestodos. Tudo produzido. Essa ediçãotirou 1,4 milhão de exemplares e nãochegou a Porto Alegre. Vendeu tudoantes. Porque na segunda-feira fica-va uma fila de caminhões para levara revista para o Brasil inteiro. Era umadistribuição extraordinária. Esse ca-minhão de Porto Alegre o pessoal deCuritiba não deixou passar – pegouas revistas todas lá. Os revendedores,no caminho, não deixaram.

Jornal da ABI – Quando você che-gou em O Cruzeiro, além do Mi-llôr, que sempre foi uma referên-cia, que outros nomes você des-tacaria? Qual a sua opinião sobreaqueles desenhistas? O PériclesMaranhão, por exemplo...

Ziraldo – Um dia talvez escrevatoda a minha aventura com o Péri-cles. Para o pessoal de jornal é interes-sante contar essa história. O Péricles

era suicida. Permanente. Tentou sematar várias vezes. E aconteceu comele uma coisa fantástica, muito in-teressante. O modelo de O Cruzeiroeram as revistas argentinas. Todas asseções de O Cruzeiro eram copiadas –a Sete Dias, Fototeste, Fatos e Fotos,as Garotas do Alceu eram as garotasdo Divito [Guillermo Divito]. A seçãoEl inimigo del Hombre, também doDivito, virou O Amigo da Onça, en-comendado pelo Leão [Gondim deOliveira], que era muito criativo. Eleficou procurando um desenhistapara fazer o Amigo da Onça. O Au-gusto Rodrigues não se interessoumuito. Tinha um menino de Per-nambuco, o Péricles, que já fazia umpersonagem chamado Oliveira, OTrapalhão, e tinha um desenhomuito ágil. O Leão mandou ele fazero Amigo da Onça e adorou o desenho.Nunca houve um personagem forada televisão que tivesse o sucesso deO Amigo da Onça. Muita gente vi-veu de vender bonequinho com oAmigo da Onça, e o Péricles ficavafeliz porque achava que era umahomenagem. Eu cheguei a comprar.Está lá em casa. E dei um de presen-te de aniversário. O Amigo da Onçaera esperado ansiosamente. Nãohavia barbearia do Brasil que nãotivesse um Amigo da Onça pregado.Era uma coisa espantosa.

O Millôr sabia reivindicar. Ele fa-zia 13 seções. Um dia, disse: “Euquero 13 salários, porque eu faço 13seções. Ou então não faço nenhu-ma”. Só sei que o Millôr ganhavaespantosamente bem. Ganhavamais do que qualquer jornalista domundo. Tinha vinte e poucos anos.Chegou na loja de automóveis naRua Senador Dantas: “Quanto cus-ta este carro aqui?” perguntou parao vendedor. “Pra que você quer saber?”“Eu quero saber.” “Ai, que saco. Cus-ta 30 contos”. “Eu quero um.” Ecomprou o primeiro carro dele assim.Já o Péricles não ligava para dinheiro;bebia, vivia fazendo samba, tinha osamigos mais estranhos do mundo. Enão trabalhava. Só bebia e vivia daboemia. Essa boemia que não existemais. Aí o Péricles começou a bebermuito, e um dos suicídios dele colou.Ele morreu. Como eu era relações-públicas d’O Cruzeiro fui desfazer oapartamento dele. A Polícia já tinhaestado lá. Mas eu fui a primeira pes-soa da revista a entrar. Lembro da-quele cheiro de gás. O forno estavaaberto. Ele colocou a cabeça dentro doforno. E pôs uma coisa antiamigo daonça pregada na porta: “Não acen-dam fósforos. É gás”. Coisa que oAmigo da Onça não teria feito. E háum lance interessante: descobrimosa mãe do Péricles em Pernambuco. Eela queria vir para a missa de sétimodia do filho. Mas a Igreja não celebramissa para suicida. Procurei o DomHélder [Câmara], de quem eu eramuito amigo. Aquelas festas que elefazia no Maracanã – Grande Noiteda Paixão –, com 200 mil pessoas, euque ilustrava os libretos; depois ele me

Três chargesde Ziraldo

publicadas emO Cruzeiro, em

1958, e a capa darevista Pererên°1, de 1960.

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levou para o Banco da Providência.Fui visitá-lo em Pernambuco, eledormia debaixo do altar. Então DomHélder disse: “Traz a mãe que eu voucelebrar a missa. Vou celebrar para ela,coitadinha. Não convida ninguém,senão vira uma missa de suicida e aínão posso”. Fui no aeroporto, pegueia mãe do Péricles. Acordei de manhã,ele celebrou a missa ali no Morro daViúva, numa capela. Chego na capela– eu e minha mulher, Vilma, quemorreu, e mais uma companhia coma gente –, não tinha ninguém namissa. Só D. Hélder celebrando e oArmando Falcão. Era integralista,amicíssimo dele, cearense. E a mãe doPéricles ficou feliz com a missa. DomHélder sabia fazer as coisas.

Ele me contou um dia o sucessoque fez no Palais de la Mutualité, emParis, com um discurso. Ele era o PèreHelder, tão famoso na França comoo Abbé Pierre, ou como o Mandela.Há um diplomata brasileiro que seorgulha de ter retirado o Prêmio Nobeldele. Eu vi esse cara contar essa his-tória na casa do José Aparecido em

Lisboa, dizendo como ele impediu queo D. Helder ganhasse o Nobel. E nin-guém sabe que ele ganhou o Nobel dopovo sueco. Eles dão um prêmio nãooficial, e ele ganhou. Mas ele ia ga-nhar o Prêmio Nobel da Paz. Foi umtrabalho do Itamaraty, e esse diplo-mata se orgulhava disso. Mas DomHelder me contou ali no refeitório doconvento onde ele morava que lá naMutualité, em Paris, ele subiu nopalco e fez um stand up show. Emfrancês. Aí ele começa a dançar e a me

contar o discurso em Paris. E sobe nacadeira, e sobe na mesa, e ããããããããã...,e o repórter que estava comigo pegouele no ar! Ele ia se arrebentar no chão!Ele subiu na mesa, naquela empolga-ção dele, e falando aquele francês decearense. (risos) Nossa! Eu gostavamuito dele. Tivemos uma convivên-cia muito boa, na fundação do Ban-co da Providência. Faço os cartazes daFeira da Providência há 52 anos.

Jornal da ABI – Alguns dessescartazes são premiados, expos-tos no mundo. Há também o be-líssimo cartaz do Festival daCanção...

Ziraldo – A história do galo doFestival Internacional da Canção[que premiava os vencedores com o Galode Ouro] também é fantástica. Euera jurado de tudo que era festival. Émelhor do que pagar ingresso; fica lána frente, sabe o resultado primeirodo que os outros. Nesse caso, o Au-gusto Marzagão, outro grande amigoque eu tive na vida, era muito ami-go do Carlos Leonam também. En-tão o Leonam convenceu o Marza-gão que eu precisava fazer o cartaz doprimeiro Festival da Canção. Fuiencontrar com o Marzagão – “Escutaaqui”, ele perguntou, “Qual vai ser osímbolo do festival?” Eu falei: “Ué!Qual é o único canto que é univer-sal? Qual é o canto que não há nin-guém no mundo que não conheça?”Ele respondeu: “Ah, não tem.” Eu falei:“Ô, Marzagão! Até na Sibéria temgalo que canta de manhã. A cançãouniversal é o canto do galo. Cócócó-ricó!... “Rapaz! Mas é isso mesmo.Faz um galo para mim.”

Jornal da ABI – Como um rela-ções-públicas de O Cruzeiro con-seguia tempo para desenhar arevista Pererê todo mês?

Ziraldo – Quando não tinha nadao que fazer lá n’O Cruzeiro, eu dese-nhava o Pererê. Era relações-públicase eles aumentaram o meu saláriopara desenhar o Pererê. Quando aca-baram com o Pererê, eu perdi essesalário. “Ah, não podemos pagar esse

salário para você desenhar o Pererê”.E parou. Mas aí eles iam parar mes-mo, porque já estavam conspirando,já sabiam que não ia ter repúblicasindicalista. Quando eu alego que oPererê foi fechado pelo golpe militarde 1964 é porque foi fechado.

Jornal da ABI – Esta é a segundapágina da última edição da revistaPererê, que foi lançada em 1º deabril de 1964 (imagem abaixo).Nessa história, chamada de “Otraidor”, parece que você anteviuo que iria acontecer...

Ziraldo – A direção de O Cruzeiromandou parar Pererê em janeiro. É queeu fazia com três meses de antecedên-cia. Porque já estavam conspirando, já

havia gente reclamando que era umarevistinha comunista, que o coelhinhoera vermelho, que eu estava prestigian-do os generais de esquerda. Aí manda-ram parar com a revista. Por isso essafamosa indenização, que eu ainda nãorecebi – agora é bom, porque o Gover-no está me devendo uma baba.

Jornal da ABI – O Governo aindanão pagou?

Ziraldo – Claro que não. Eu fuiagraciado com a anistia 19 anos de-pois. Eu nem sabia. Nem eu, nem oJaguar sabíamos. Quem entrou coma ação não foi nem eu, nem Jaguar,nem Millôr, nem Zuenir, nem nin-guém. Foi o Sindicato dos Jornalistas.O Zuenir caiu fora, o Millôr foi lá. Ah,já está, bota a gente aí mesmo. Atéporque foi tudo comandado peloBarbosa Lima Sobrinho; ele faziaquestão. “Os meus meninos.” Ele sereuniu com a gente, o Sindicato feza lista, a ABI aprovou. Nem eu, nemo Jaguar constituímos advogado. Aí,um dia, 19 anos depois, alguém meliga e diz que o processo iria ser julga-do. Eu estou sabendo que tem gen-te ganhando R$ 24 mil por mês, R$18 mil, que alguém está querendo nãosei quantos milhões. Eu falei: “Jaguar,morreu um tio, deixou uma heran-ça pra gente” (risos). O Jaguar não foi,eu fui lá. Quando leram na ABI ajustificativa da ação, eu fiquei atéencabulado. Porque o relator escreveuum texto sobre um cara que eu nãoera. Um herói nacional. Esse cara támaluco, mas não vou desmentir obicho, né? Quando eu vou saindo, elediz assim: “E aí? Já tinha uns caras

gozando a gente, dizendo que erabolsa-ditadura...” Aí eu falei: “Porra,esses caras não tiraram o dedo daseringa na hora da luta e não quise-ram correr o risco, agora ficam en-chendo o saco? Por que não vieramconosco?” Aí, manchete de O Globo:eu gozando os caras que estavamgozando a gente. Eles tinham espa-ço, eu não tinha. O Globo passouuma semana publicando carta sobreesse negócio. Até hoje na internet meesculhambam. Agora estou doidopara receber. Está em R$ 2 milhões etanto. Eu não posso nem devolver.Não tem juridicamente a possibilida-de de dizer “não quero isso”. No diaque sair no Diário Oficial que o dinhei-ro está depositado, que eu vou rece-ber o precatório, já morri. Demorou20 anos para sair, mais 20... Eu tenhoR$ 1,3 mil de aposentadoria. E háum ano e pouco, eu e Jaguar passa-mos a receber R$ 4 mil e pouco pormês. Os atrasados, é esperar morrer...Mas acho que fica para a família.

Jornal da ABI – Existia mesmouma ideologia por trás da histó-ria do Pererê?

Ziraldo – É só ler. Eu fazia parte daturma que achava que ia mudar aHistória do Brasil, das reformas debase, da reforma urbana, das mudan-ças na educação. Um grupo ligado aoJango, que prometia um outro País.E a direita tinha medo da repúblicasindicalista. O Jango nunca foi comu-nista. O Jango foi industriado peloBetinho, por um pensamento da es-querda. O mundo estava mudandocompletamente. Eu lembro que oManuel Lopes da Cruz, que era dire-tor em O Cruzeiro, dizia: “O mundovai acabar socialista; eu já estouaprendendo chinês”. Ele era muitofalante: “Vai estudar russo, minhagente. O século acaba socialista, mi-nha gente, só não vê quem não quer”.Então ele mandou eu fazer uma revis-ta, o Péricles fazer outra , porque eleachava que assim que o regime seinstalasse ia proibir importação dehistória estrangeira. Eu fiz uma revis-ta; o Péricles só fez uma e não entre-gou; o Carlos Estevão fez seis núme-ros. Eu faria o Pererê a vida inteira. Iriaser um Maurício de Sousa. O Cruzei-ro se adiantou ao futuro. Queria fazeroutras. O Maurício chegou a levar láuma revista também. Porque o Ma-nuel Lopes da Cruz estava convenci-do de que o século ia acabar comunis-ta. Quando a gente voltava de carro,com o Manuel e o Bianco, que tam-bém achava isso, a conversa era essa:“Vamos nos preparar para a sociali-zação do mundo. Estudar chinês”.Então, quando chegou em 1963, nofinal do ano, e em 1964, eles percebe-ram: já estava rolando a conspiração.Aí resolveram parar com o Pererê.Tinha Luluzinha, Bolinha, Peanuts,Pimentinha, cinco ou seis revistas.Cheguei a vender 135 mil exempla-res, a mesma coisa que Bolinha. Ia nocaminhão de O Cruzeiro. Talvez nemfosse tanto mérito da revista. Fazia

“Quando eu alego que o Pererê foi fechado pelogolpe militar de 1964 é porque foi fechado.”

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muito sucesso, tinha muita reper-cussão, e não tinha encalhe. Você nãoconsegue números antigos do Pere-rê com facilidade.

Jornal da ABI – Você fazia tudosozinho?

Ziraldo – Eu fazia tudo a lápis. OPaulo Abreu fazia a arte-final, o JoãoBarbosa, as letras, e quem coloria erao Heucy Miranda, que ainda traba-lha comigo, fazendo coisas juntos,montou depois uma produtora dedesenho animado, desenhamosmuita coisa juntos, até hoje fazemosmuitas coisas juntos. E quem esco-lhia a cor, realmente, era o cara dofotolito. Porque a gente não marca-va percentagem. Em O Cruzeiro,naquela história da inglesa do CasoProfumo [a modelo Christine Keeler,que teve um caso com Harold Macmi-llan, membro do Governo do ReinoUnido, em 1963] –, uma mulher lin-díssima, a gente recebia as fotos empreto e branco, mandava pros carasdo fotolito e dizia: “Faz essa mulherficar colorida aí”. O cara ia lá e colocavaas cores. Lembro uma vez que saiuuma foto linda, em página dupla, devarais no Nordeste. Aí o Accioly: “Ô,colore esses lençóis, que tem muitobranco nessa porra aí. Bota uns len-çóis vermelhos, amarelos...” Ficou lin-da a paisagem na foto. O pessoal dofotolito era muito, muito bom.

Jornal da ABI – E O Centavo?Como você traz essa turma novapara O Cruzeiro?

Ziraldo – Um parente dos Rodri-gues assumiu o Jornal dos Sports. Aturma da ABI conhece bem essa his-tória. Principalmente o Fichel Davite o Marcelo Monteiro. Então ele re-solveu fazer uma revolução no jornal.Bancou O Sol, do Reynaldo Jardim,e aceitou uma proposta minha defazer o Cartum JS, oito ou dez pági-nas, um jornal de humor. Veio oHenfil, com os fradinhos, eu fazia umeditorial. A gente estava fazendouma célula comunista no Cartum JS.Um dia, o Nelson Rodrigues chegoufalando “Eles querem botar fogo noPaís!”. Aí, tiraram o sobrinho dele delá e fecharam o Cartum JS. Eles fe-charam porque a gente não podia teraquela linguagem. Eu fazia o edito-rial esculhambando. E o Henfil man-dava o saco também: numa revoltade negros dos Estados Unidos, Hen-fil desenhou uma mulher falando“Graças a Deus a gente não tem esseproblema no Brasil. No Brasil, os ne-gros reconhecem o seu lugar”. Umaprovocação tremenda. O Henfil faziaum sucesso danado no Cartum JS.Havia muita gente boa lá, uns mons-tros. Uns morreram, outros sumi-ram. Então eu propus ao Mário deMoraes, que dirigia O Cruzeiro, fazerO Centavo. E levei todos os cartunis-tas do Cartum JS para lá. Fizemosvárias sessões. A TV Tupi era domesmo grupo de O Cruzeiro [Diári-os Associados]. E o Alcino Diniz [umdos diretores da TV] resolve fazer uma

ação promocional e pendurar umterço no Corcovado e faz uma ma-quete com aquelas bolas luminosas.Um terço no Corcovado, no País maiscatólico do mundo. Só o Alcindo Dinizmesmo! Eu peguei e fiz uma páginabrincando com o assunto: “Entãovamos botar a Santa Ceia no Pão deAçúcar, vamos montar um crucifixona zona”... e publiquei esse negócion’O Cruzeiro. Aí que o pessoal desco-briu que O Centavo também era co-munista! Pá, fecharam! Teve umadiscussão lá: “Pô, a idéia do terço éuma promoção dos Diários Associa-dos e vocês criticam isso na revistamais importante? Que esculhamba-ção é essa?! Pára com essa porra”.Não sei quem foi. Aí morreu O Cen-tavo. Essa é a história da minha vida.Agora vou fazer 80 anos.

Jornal da ABI – E agora?Ziraldo – Eu sou especialista em

assuntos gerais, sou especialista emtudo. Agora, tenho uma nova especi-alidade, uma grande descoberta queacabo de fazer: Sou um especialistaem velhice! Qualquer pessoa quequeira tecer considerações sobre a ve-lhice, que queira escrever sobre a velhi-ce, só pode escrever tendo a experiên-cia. Todo mundo que não chegou lá edá palpite sobre a velhice erra tudo! ASimone de Beauvoir escreveu um livrosobre a velhice sórdido. Ela tinha 62anos. Com 62 anos, não se alcançoua velhice ainda! Quero dar essa notí-cia para vocês: o cara fica velho aos 80anos! Velho, ancião! Um homem de70 anos não é um ancião! Um ho-mem de 80, sim. Posso mostrar umalista de anciãos fantásticos: RobertoFarias, Zuenir Ventura, Sérgio Ricar-do, Paulo Casé, Alberto Dines, Jaguar,Jacques Lerner, Antônio Abujamra.Nós podemos falar sobre a velhice!

Jornal da ABI – O que é o ancião,além do fato de ter 80 anos?

Ziraldo – A pessoa com ego mui-to gigantesco envelhece muito mal.Porque, quando a energia começa afraquejar, começa a se sentir liquida-da. Quem é assim não aceita que“aquele gênio” seja liquidado. Em ge-ral, todo sujeito que não tem seusdesejos mais profundos atendidosenvelhece mal. Sartre envelheceu mal,se mijando todo, além de tudo malhumorado. Simone de Beauvoir ficouuma chata, insuportável. Porque onegócio é o seguinte: o que o Carli-nhos de Oliveira queria? O que oSartre queria? Queriam que as mu-lheres gostassem deles, queriam serdesejados. Já imaginou você ser oSartre, aquela inteligência brilhante,e nunca uma mulher bonita desejaro corpo dele? Ele parecia um sapo,caolho. Quer dizer, ele só tinha a in-teligência para comer gente! (risos)Ainda arrumou aquela gigoleia paralevar menina para ele. Porque elatambém seduzia as meninas, paraos dois comerem. Os dois eram liga-dos nessa coisa que se chamava “exis-tencialismo”. (risos) Igual ao Carli-

nhos de Oliveira. O Carlinhos aindaconseguiu comer umas mulheresbonitas. Teve uma, que ele precisouse amarrar na cama do quarto paranão telefonar para ela. Uma das maislindas. Tem mulher que se fascinapela inteligência, não deseja o corpo.Mas o cara quer ser gostoso. Não querser inteligente. Então envelhece mal.Não existe o solitário. Todo sujeito de-pende do outro. Você nasce para sedoar. Não existe sem o outro. Sexual-mente não existe mesmo. Todo ho-mem inteiro deseja mesmo é umamulher bonita. Uma mulher para ele.Não tem esse negócio. Como disse o Ni-emeyer ao José Aparecido... O Zé como câncer na próstata, triste, arrasado.O Niemeyer com a cabeça assim, meiocaída na cadeira: “Ô Zé Aparecido, párade reclamar, rapaz! Bota uma mulherdo lado e sai por aí, rapaz!” Um comcem anos, o outro com setenta. Ovelhinho: “Bota uma mulher do ladoe saí por aí, essa é a vida!”

Falando no José Aparecido deOliveira, deixa eu dar um depoimen-to importante aqui. Eu queria que elefosse Presidente da ABI, mas o pes-soal não aceitou minha sugestão.Essa história é interessante: Eu fuichamado para participar de ummovimento para renovar a ABI. Atéo Danton Jobim, a ABI tinha umaimportância. Eu disse: “Tem umamigo meu que vai transformar esteprédio num luxo; vai fazer o clube quenós quisermos, vai deixar a gentegovernar do nosso jeito e vai trazer oPresidente da República aqui. É o JoséAparecido de Oliveira. É alguém quevai dizer: “Presidente, vou assumir aABI e preciso que o senhor venha aquiesta semana!” Ele faria isso! O Zéganhou um palácio em Lisboa parafazer o Instituto Lusofônico Interna-

cional. O Mário Soares deu um pa-lácio para ele; eu fui lá com ele rece-ber o palácio. Mas o Fernando Hen-rique Cardoso fez a gracinha de tomaro palácio do José Aparecido. Ele tevedois desgostos que o levaram à mor-te: o câncer e a desilusão. Quando elefoi receber a sede do Instituto Luso-fônico, numa reunião em Lisboa commuitos países, o Lampreia [Luiz Fe-lipe Lampreia, embaixador] tira doJosé Aparecido e dá para Angola.Inventou uma eleição por ordemalfabética. O FHC fez essa gracinha.Eu acompanhei o câncer do Zé, dia adia, e essas duas coisas o magoaramprofundamente! Mas eu resolvi pro-por o nome dele como Presidente daABI. Ele me disse “Isso é uma boa idéia.Vai me dar uma razão de viver.” E opessoal da ABI argumentava: “Ah,mas o Zé é de direita, conservador.”Gente! Eu quero salvar a ABI! Issoaqui vai virar um sonho! Eu queria terum clube inglês para os jornalistasaqui do Rio de Janeiro. Mas não como-vi a rapaziada da ABI. Isso, eu façoquestão que saia na entrevista. Agente perdeu uma grande oportuni-dade de salvar a ABI, materialmentefalando. E prestígio também. Porquequem ia inaugurar a nova ABI seria oPresidente da República. No dia que oZé Aparecido determinasse. Ele mexiana agenda do Presidente!

Jornal da ABI – Numa entrevis-ta, a Cora Coralina disse que de-pois dos 50 anos e até os 75 aspessoas devem dizer que têm 50anos. Ela considerava que entre50 e 75 era a melhor fase da vida.

Ziraldo – É verdade... Bom, 75 anosé exagero. A melhor fase para o ho-mem é dos 40 aos 60 anos. O cara quenão for glorioso dos 40 aos 60 tá vi-

vendo errado. Está ferrado! Se vocênão se sentir glorioso em algummomento nessa faixa, de dizer “Eusou um deus!”, olha, meu filho, vocêestá bebendo nos bares errados.Numa entrevista, o Roberto da Mat-ta descreveu uma conversa entre doisvelhinhos. Eles lembravam coisas dajuventude, e num dado momento,uma lágrima rola de um deles. Rober-to da Matta, você não entende por-ra nenhuma de velho! Não se meta!Não há hipótese de um velho intei-ro chorar de nostalgia. A não ser queesteja doente e para morrer. Mas setem saúde – eu tenho saúde, tenhodisposição para viver! –, velho nãoconversa sobre nostalgia. “Ó quesaudades eu tenho/Da aurora daminha vida...” o Casimiro de Abreutinha 20 anos [e morreu aos 21, comtuberculose], quando escreveu isso.“Depois de um longo e tenebrosoinverno/ Eu quis também rever o larpaterno/O meu primeiro e virginalabrigo” – é outro poema, do LuísGuimarães, em livro de quando tinha35 anos. O velho que disser que temsaudades da infância é um mentirosofilho da puta. O ancião é um cara dopresente. O que é que eu tenho a vercom aquele menino de oito anoschamado Ziraldo? É um menino. Eunão tenho saudade dele. Que idioti-ce eu ter saudade de um menino deoito anos! Eu soltava papagaio... vouter saudade? Claro que eu teria von-tade de rever o lar paterno, “meuprimeiro e virginal abrigo”. Mas agente não padece de nostalgia. Velhonão trabalha com saudade. Podebotar aí. O velho está agarrado nopresente. Agarrado! Conversa sobrefutebol, sobre sacanagem... Vai con-versar com o Oscar Niemeyer! Eu oentrevistei quatro vezes. Em ne-nhum momento ele ficou naquela de“Ah, bons tempos aqueles...” Isso ovelho não fala. Porque o velho inteirotem consciência de que é inexorável acondição de você atravessar a vida!

Tem outra coisa: companheiro!...Eu garanti oitenta anos, tudo bem?Vocês vão fazer oitenta anos? Eudesejo que façam, mas vocês podemgarantir? Eu garanti! E garanti osanos mais fantásticos da história domundo. Eu saí da válvula, para o chip.“Me dê uma alavanca e eu moverei omundo” é uma frase ridícula hoje emdia. (risos) Desculpe, Arquimedes. Pre-cisa de alavanca para nada. Eu saí daalavanca para a idade virtual. Então,Da Matta, não se meta a escreversobre velho. Como a Simone de Beau-voir não devia ter se metido. Eu ia dizeruma coisa mais importante do queisso, mas esqueci. Velho tem esse de-feito – esquece tudo! (risos)

Jornal da ABI – Não é um defei-to necessariamente.

Ziraldo – A única mágoa de o tem-po ter passado para o velho cafajes-te é que se passar uma mulher boni-ta perto dele ele não pode dizer a fra-se maravilhosa: “Deus e Maria San-tíssima vão me ajudar, ainda vou co-

Ziraldo fez questão de mostrar a suacoleção do Cartum JS durante a entrevista.

FRANCISCO UCHA

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mer essa mulher!” (risos) Então, eunão perdi tempo na vida. O sujeitotem que viver intensamente. Aque-le texto do Borges que divulgam nose-mails, aquilo é mentira. Ele jamaisescreveria aquela babaquice: “Eu de-veria ter andado mais na poça d’água,ter pegado mais chuva”.

Jornal da ABI – Ah, aquela pulhaque circula na internet...

Ziraldo – Ah... pára com isso! É umapócrifo! O cara que viveu com a in-tensidade que ele viveu, ia ter nostal-gia de andar na chuva? E o velho quetiver essa conversa eu nem quero co-nhecer. É um velho chato. Velho nãoverte lágrima, deixa de ser besta! Ago-ra, tem essa coisa. Para o jovem, os diaspassam rápido e os anos demoram. Ovelho, os dias demoram a passar, e osanos passam muito rápido. Essa éuma frase que eu cito, mas eu nãosinto isso não. Eu não caibo no meudia. Eu preciso acordar seis horas an-tes para ter 30 horas. (risos)

Jornal da ABI – Como é a sua re-lação com seus filhos?

Ziraldo – Se há alguém que crioubem os filhos fui eu. Sou pai da Dani-ela, da Fabrízia e do Antônio. O Antô-nio é o maior músico da História docinema brasileiro. Ninguém mais fez12 filmes nos Estados Unidos. O An-tônio fez música para O Amor nos Tem-pos do Cólera, Colateral, A Estranha Per-feita, O Senhor das Armas... agora estáfazendo um filme do mesmo diretor deO Senhor das Armas, fez cinema nomundo inteiro, foi eleito músico reve-lação do ano, foi para a Bélgica reger aOrquestra Sinfônica da Cidade deDeus. A Daniela é a Daniela, e a Fa-brízia é diretora de cinema, dirigiu al-guns capítulos daquela série Antônia.

Jornal da ABI – Série maravilhosa.Ziraldo – Lembra aquele capítulo

do dia dos ataques dos criminosos emSão Paulo, que uma delas se perde?Tem direção da Fabrízia, minha filha.Então, é aquele negócio do Pablo Ne-ruda: “Confesso que vivi”. Se vocêviveu, vai chorar? Eu não! É claro queeu não trabalho mais com o futuro,mas o presente é do caralho! E a quan-tidade de livros que ainda falta eu ler?...Outro dia saiu uma lista com os 100livros para ler antes de morrer, e eufiquei arrasado! Tem um monte quetenho que ler ainda. Já comprei tudo!

Jornal da ABI – Como é o seu dia?Ziraldo – Eu tinha que estar tra-

balhando agora! Estou atrasado com10 encomendas...

Jornal da ABI – Você ainda dese-nha tudo?

Ziraldo – Tudo!

Jornal da ABI – Não tem equipe?Ziraldo – Tenho. Os quadrinhos eu

faço com equipe. Antigamente eu fa-zia um original, agora não tem mais,faço tudo separado, depois vou para ocomputador com meu mouse...

Jornal da ABI – Você vai?Ziraldo – Eu não. Não sei nem

ligar o computador. O Vitor é o meumouse humano. (risos) Eu pago in-salubridade para ele por causa do bafono cangote. Às vezes eu preciso deuma textura que não dá para fazercom o computador, aí eu venho como guache. Às vezes eu faço tudo comecoline. Antigamente eu não deixa-va manchar nada, fazia máscarascom durex, usava um papel que nãoexiste mais chamado Schoeller. Hojeé impossível, não uso esse recurso. Seeu quiser pintar um céu azul, façoseparado. Estou pintando mulherpelada em quadros com dois metrose meio de altura. Porque eu sou umgrande desenhista de mulher, eu e oLan. O Lan é melhor do que eu paradesenhar mulatas.

Jornal da ABI – Qual foi a influ-ência do Lan na sua vida?

Ziraldo – O Lan é um dos melho-res seres humanos que conheci naminha vida. O Lan não existe, é ummarciano. O Lan não é desta terra. Euo amo de paixão. E o Lan faz essasmulatas extraordinárias, e eu gostomuito de desenhar mulher. Então,quando eu faço mulatas, eu tenhoque fugir das do Lan. Eu não vounaquele exagero. As minhas mulatasnão têm a identidade das mulatas doLan. A mulata dele é um ser. Entãoeu nem me engraço. Agora, como avida inteira no Pasquim eu sempredesenhei o Mineirinho Comequieto,as mulheres do Pasquim, aquela his-tória famosa do “assumi minha por-ção mulher, mas ela é lésbica”. Ouaquela outra: “Quando era jovemperguntava quem é que come essasmulheres lindas que estão por aí, paradescobrir aos trinta que somos nós”.Era o maior sucesso as mulheres doPasquim. Então, eu estou fazendo umlivro só com mulheres. E outro só comOs Zeróis, que vai sair pela EditoraGlobo, não só os pintados, que eu pin-tei para aquela exposição no Banco doBrasil, como os que eu sempre fiz desdeque o mundo é mundo...

Jornal da ABI – Numa Veja de abrilde 1969 foi publicada a seguintenota na página 7: “O desenhistaZiraldo, mineiro de Caratinga, 34anos, depende apenas do seu pe-dido de permanência nos Estados

Unidos para mudar-se de vez paraNova York. Ziraldo, que esperaembarcar em agosto, colaboravadesde 1967 para as revistas ame-ricanas Fortune, Mad e Penthou-se, recebendo 250 dólares porpágina e 100 dólares por dese-nho”. Queria que você falasse umpouco dessa experiência. Você iamorar nos Estados Unidos?

Ziraldo – Ilustrei dois ou três arti-gos no The New York Times. Essa re-vista Penthouse foi uma grande revo-lução nas revistas de nus, que come-çou a botar nu frontal sem tirar ospentelhos com aerógrafo, como aPlayboy fazia. A Playboy retocava eas mulheres ficavam assexuadas.Bob Guccione lançou a Penthouse naInglaterra e foi um estouro. Aí, euchego em Londres e vou à Redação daPenthouse. Era uma sala desse tama-nho aqui, com uma cadeira, o BobGuccione aqui e uma secretária des-lumbrante. Mostrei meus desenhos,e ele fez uma apresentação apoteó-tica do meu trabalho e começou apublicar meus desenhos na Penthou-se. Deve ter sido em 1968. Estes de-senhos eu fiz assim com minha pe-ninha, meu lápis, sozinho, sem nin-guém. Mas para chegar no resulta-do eu fazia 300 desenhos, até mon-tar esse esquema. Eu vou para Parise, quando voltei para Londres e fuivisitar o Bob, ele disse: “Você não querficar aqui na Inglaterra, não? Voubotar mais uma sala e você fica tra-balhando aqui comigo, vamos jun-tos nessa aventura da Penthouse”. Euolhei para ele, olhei as mulheres queele fotografava, pensei na Daniela,Fabrizia, Antônio, Vilma, e penseiassim: “Eu não posso fazer isso, cairneste paraíso aqui. Isso vai dar umaguinada na minha vida enlouquece-dora”. Ele virou um cara milhardário,tinha um avião negro voando paraNova York. Um dia cheguei em NovaYork e fui visitá-lo. Estava com a Pen-thouse em Nova York já, rico, parei narecepção e falei: “Eu queria falar como Bob”. “Você está brincando? Vocêteria de marcar uma audiência, dizerqual é a sua intenção. O que vocêquer com ele?”, disse a atendente. “Euquero revê-lo, eu sou amigo dele. Digaque o Ziraldo quer falar com ele. Vocêpode fazer esse favor e deixar um re-cado na mesa dele? Estou no HotelSheraton”. Aí, no dia de embarcar de

no JB, ensinando as pessoas como irà passeata. Eu fiz no O Cruzeiro tam-bém, o Jeremias ensinando como éque se ia numa passeata. Olha quemulher chique! (mostrando uma dasfotos do ensaio com Odette Lara, ao lado)

Jornal da ABI – Odete Lara co-brou muito para fazer essas fo-tos sem roupa?

Ziraldo – Nada! Nunca pagamosum tostão. Nós tiramos a roupa daFlorinda Bulcão também! Eram en-saios de fotógrafos altamente creden-ciados. Affonso Beato, um dos mai-ores fotógrafos da História do cine-ma brasileiro, fez as fotos da OdeteLara. Ele já era um fotógrafo de res-peito, as mulheres já sacavam quenão era um fotógrafo qualquer.

Jornal da ABI – Como surgiu esseprojeto?

Ziraldo – Primeiro a revista era fei-ta em São Paulo, muito bonitinha,bem feitinha. Comprava fotos de agên-cia. Entrei no número 6. Sabe quemera minha inspiração? A Esquire. Essaera uma Esquire com mulher pelada.

Jornal da ABI – Ganhava-se bempara trabalhar nessa revista?

Ziraldo – É... ganhava bem... Ti-nha um padrão de vida razoável,nunca tive problema financeiro naminha vida. Eu nunca fui rico, poruma razão muito simples: eu nun-ca quis o que não pudesse ter. Nun-ca tive objeto de desejo. Eu só come-çava a ter um objeto de desejo quan-do arrumava dinheiro para isso. Porexemplo, eu tinha um objeto de de-sejo, uma casa na Ilha Grande. Aíbotei uma casa lá. E ia para lá nobarco dos farofeiros, acordava às 5 damanhã aqui com a minha famíliatoda, para poder chegar cedo e pegaro barco dos farofeiros. Eu não queriater uma lancha, agora tenho duas.Mas eu não queria ter uma lanchaporque não podia comprar. Essa coi-sa você aprende em Minas Gerais,com seu pai e sua mãe mineiros. Meupai falava: não avance além dospassos que você pode dar. Meu paiescreveu isso para mim, num decá-logo (ver boxe). Eu ainda tenho essedecálogo do meu pai.

Jornal da ABI – O Ziraldo temalguma religião?

Ziraldo – Fui católico. Mas o ho-mem lúcido, decente, não precisa dereligião. Religião é para os que têmdúvidas e para os que têm fé. Temgente que tem fé verdadeira. Mas amaioria é religioso por medo, porinsegurança. Se o sujeito é decente, éhonesto, é generoso, é leal, para quêele precisa de religião? A religião éfundamental para a massa, porquenem todo mundo tem consciênciadas suas possibilidades rumo ao bem.Muito pouca gente sabe que pode serboa. O que sabe, não precisa de reli-gião. Mas para a maioria, tem quebotar um freio, botar pecado. O caraque é bom tem pecado, mas não vai

volta para o Brasil,chego no hotel, etem um recado“Você está aqui,que prazer, venhame ver”. E eu nãoconsegui falar comele, perdi essa chan-ce. Mas eu arranjeium agente em NovaYork nessa viagem, eacertei com ele queeu iria para os Esta-dos Unidos. Aí eu fuipreso aqui.

Jornal da ABI – Preso?Ziraldo – Fui preso quatro vezes

durante a ditadura. Passei dois Nataispreso, um Carnaval preso. Prisão do-miciliar, essas coisas todas. Aquelaprisão fantástica do Sérgio Cabral,Paulo Francis, Jaguar. Aí, o StevenMonblat, que era da Embaixada Ame-ricana e era muito meu amigo –, ca-sou-se com uma brasileira chama-da Mariah – conseguiu um Green-card para mim. Quando eu saí daprisão ele estava lá em casa com omeu Greencard.

Jornal da ABI – E por que você nãofoi para os Estados Unidos?

Ziraldo – Porque meus amigosestavam todos aqui. Eu não ia fugirdo Brasil. O pau estava comendo aquie eu ia ser desenhista em Nova York?

Jornal da ABI – Mas mesmo sen-do preso?

Ziraldo – Eu fui preso, mas não fuitorturado, não fui condenado. OPasquim teve 18 processos, eu tiveuns quatro ou cinco. Achei que nãofazia sentido sair do Brasil. Isso foidiscutido com a minha mulher.

Jornal da ABI – Mas você chegoua considerar quando saiu essa nota?

Ziraldo – Quando saiu essa nota, euestava conversando muito sobre isso.

Jornal da ABI – Conta um poucoa história dessa revista aqui: aFairplay.

Ziraldo (folheando um exemplar darevista) – É uma revista intelectual,uma revista chique. Olha os colabo-radores: Paulo Mendes Campos, RuyCastro, Paulo Gil, Marina Colasan-ti, Millôr Fernandes, Ferreira Gullar,Sérgio Malta... Grandes fotógrafosbrasileiros começaram a vida aí. ClóvisScarpino, Jacques Avadis, RonaldoCâmara, Luís Cláudio Trípoli, o fotó-grafo mais caro do Brasil, começouaqui. Olha isso: “A empregada da Se-nhora Flicts” é um texto do Wagn,que também desenhava. Esse “Flicts”ele tirou da história da Supermãe; euinventei essa onomatopéia. Ele ado-rou e botou aqui. E depois virou omeu livro...

Jornal da ABI – E na Supermãe oque era o Flicts?

Ziraldo – Era o ruído do gás lacri-mogêneo. Era uma tira que eu fazia

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DEPOIMENTO ZIRALDO, 80 ANOS

queimar no fogo eterno! Você vaiqueimar no fogo eterno? O carapassou 80 anos sofrendo aqui, cheiode carências afetivas e desejos nãorealizados, aí faz uma besteira e ficao resto da eternidade queimando? Oque é isso? A maior religião do mundoé a Umbanda, porque não é manique-ísta. Não existe preto e branco. Todosos seres vivos estão a caminho daluz, você vai caminhando em direçãoda luz, alguns voltam cinqüenta ve-zes à Terra, até aprender. E outros, 10passagens pela Terra já está bom.Então, quando o cara morre cedo, elejá alcançou a luz, isso segundo aUmbanda. Bonito, né?

Ah! Uma outra coisa que eu querofalar: velho não tem é medo da mor-te! É importante dizer isso para ascrianças: velho que tem medo damorte... é um idiota! Por que ele achaque deve viver mais que todo mun-do? O velho saudável não reivindicaesse direito. Quando eu nasci, a ida-

de média do brasileiro era de 45 anos.Eu tenho 80! Rubem Braga, quandoficou com câncer só dizia: “Me dámorfina! Me dá morfina e não en-cham o meu saco”. Sofrer pra caram-ba para ter uma subvida? Eu queroa minha vida! Esta que eu tenho! Enão quero sentir dor e não vou mesuicidar. Eu pensava muito nissoquando era jovem. Meu sonho erachegar ao século 21. Pronto. Século 21com 68 anos, tudo bem. Mas a gen-te, nessa faixa, não tem precisão doque é um velho. Eu lembro quando oJosé Lewgoy tinha feito 70 anos e euo encontrei: “O Zé, parabéns!” E ele:“Parabéns, o caralho! Eu estou fazen-do 70 anos, olha aqui na minha tes-ta escrito VELHO. Eu sou velho. Enão tem graça nenhuma ser velho”.Eu falei: “Pois é. 70 é velho?” “É.” Podiaser. Mas hoje eu considero, com pre-cisão, o sujeito só pode se chamar deancião aos 80 anos. Antes ele nãopode. O americano de 80 anos é ‘ol-der’, que é uma palavra bonita, masaqui no Brasil é ‘velho’. Então, páracom essa porra de ‘terceira idade’.‘Melhor idade’ então, é nojento! Énojento porque é de uma hipocrisiasem limite! Por que a velhice é amelhor idade? Porra! Na velhice vocêcontinua se divertindo e não venha

me dizer que não se diverte! Só que eunão agüento mais aquele Bum! Bum!Bum! Me derruba o crânio. Agora,sentar lá em casa, olhando a paisa-gem e lendo os livros que me faltam!...Pô! Isso me dá uma paz! Não é con-formismo, não! Eu é que estou felizde ter vivido 80 anos nestes dois sé-culos. Puta que pariu, porra! (baten-do na mesa com entusiasmo)

Jornal da ABI – Você já falou degrandes amigos que encontroupela vida: Millôr, Zé Aparecido,Enrico Bianco, Reynaldo Jardim.Que outros nomes você gostariade lembrar?

Ziraldo – Jaguar e Zuenir Ventu-ra, claro! Eu devo muito ao Jaguar.Muito mesmo! Ele que me apresen-tou ao Rio. Quando eu cheguei aoRio, o Jaguar tomou-se de um cari-nho por mim. Toda a descoberta deIpanema eu devo ao Jaguar. Eu nãoposso fazer uma entrevista sem fa-lar no Jaguar e no Zuenir Ventura. Eutenho muitos amigos e não possocitar um ou outro. Mas o Jaguar e oZuenir... Falei muito menos do Car-los Leonam. Ele vivia aqui em casa eera apaixonado pelo Zuenir! Vivia medizendo: “Você precisa conhecer oZuenir!”. Até que eu conheci e fica-mos amigos para sempre. A minhaformação e a do Jaguar são The Punch,The New Yorker, Graphis, todas essasrevistas estrangeiras a que a gentepodia ter acesso. Quando eu vimpara o Rio pela primeira vez, haviauma banca que vendia revistas inter-nacionais ali na Almirante Barroso(Centro do Rio), e era onde eu compra-va Mad, Fortune, e outras revistas. Emuitas vezes eu devo ter cruzadocom o Jaguar, que trabalhava noBanco do Brasil e vivia por ali tam-bém. Quando conheci o Jaguar, nóstínhamos as mesmas influências,gostávamos dos mesmos desenhis-tas, só que eu fui um cara que alcan-cei o meu desenho com muito sofri-mento. Eu não sou de desenhar commuita facilidade. O desenho quandotem muita facilidade tem menosinvenção, porque você sabe fazer oque está vendo. Então o Jaguar, quedesenhava bem, virou um dos mai-ores cartunistas do mundo. Tudo oque ele desenha é uma coisa espon-tânea. Nós ficamos muito juntos.Quando eu estava puxando o sacodo Millôr, eu era o “gafanhoto” doMillôr (uma referência à famosa série detv, Kung Fu, dos anos 1970). Eu sofriamuito quando eu saía com o Millôr,porque ele nunca fez um gesto deagrado para ninguém. Nem o Ja-guar! Eu faço tudo para não desagra-dar as pessoas, e o Millôr cortava logo.Já eu tenho muita paciência porqueacho que eu era chato também, ecomo chateava as pessoas, aceitoquando o cara vem me chatear. Eupedia autógrafo, falava com as pes-soas “Sou seu fã”. (risos) Um dia euestava com o Millôr e o Jaguar co-mendo na churrascaria em Ipanema,o Mario’s, e eu vi o García Márquez

numa mesa com um casal. Aí eu falei“Eu vou lá falar com ele”, porque eutinha escrito um livrinho da minhaColeção ABZ, com um personagemque fazia referência a Cem Anos deSolidão. E eu desenhei essa história equeria dar o livro para o García Már-quez. Queria saber o hotel em que eleestava. Aí o Millôr disse: “Se você forfalar com ele nunca mais falo comvocê na minha vida! Deixa de ser ba-baca!” (risos) E eu disse: “Não voupedir autógrafo para o García, que-ro saber o hotel onde ele está, vou darum livro para ele”. E o Millôr: “Nósvamos sair daqui. Saia com a gente!Porque se a gente sair você vai falarcom ele, seu babaca!”. “Não, podedeixar que eu não vou, não!”. Aí elessaíram, eu fiquei... e depois levanteie fui lá falar com o García. Quandoeu cheguei perto dele, falei “Dá licen-ça?” Eu esperava que o casal que es-tava com García Márquez fosse bra-sileiro e me ajudasse, dissesse para eleque eu era escritor, mas o casal eraestrangeiro também! E quando vocêestá na mesa com pessoas conheci-das, e chega alguém para pedir autó-grafo, a pessoa que está com você sesente muito mais incomodada que

você. Aí os dois fizeram aquela carade incomodadíssimos! E eu falei: “Eusou um escritor brasileiro”. E ele dis-se “En Brasil hay muchos”. Aí eupensei: “Eu vou mandar esse cara paraa puta que o pariu. O que é que eufaço?” (risos) Mas não tive coragem.Aí eu disse: “Só queria cumprimen-tá-lo, muito obrigado”. Por isso é queeu trato as pessoas bem quando elasvêm falar comigo. Porque a pessoa jávem toda contrafeita, sabe, ela já estáse violentando. Então, eu tenho omaior carinho, a maior paciência.Mas eu pensei comigo: o dia que euencontrar com ele de novo eu voudizer “Você é um bom filho da puta”.Depois eu estive com ele numa reu-nião de intelectuais europeus, e eleestava numa paquera danada com aLucélia Santos, na época da EscravaIsaura. E quando eu conversei com ele,foi muito simpático comigo. Mas oque eu queria mesmo é dizer pra ele:“Eu só queria mandar o senhor àputa que o pariu”. (risos) Mas eu voute falar: toda vez que um cara contauma história em que ele fez uma coisaassim, está mentindo! O cara elabo-rou isso depois! Todos nós temos areação perfeita diante do desaponta-mento... mas meia hora depois, só nodia seguinte! Quando você vai con-tar para os outros, você conta a ver-são que te absolve. E é mentira. Oúnico sujeito que nunca titubeou foio Millôr Fernandes. Toda resposta eraem cima da bucha. O Millôr era deuma velocidade de raciocínio espan-tosa. Eu ficava morrendo de inveja.

Jornal da ABI – O Audálio Dan-tas, que também está comemo-rando 80 anos neste mês e sendohomenageado Brasil afora, escre-veu um lindo livro sobre a Infânciade Ziraldo...

Ziraldo – Audálio Dantas é umagrande figura. Conheço-o desde a épocade O Cruzeiro. Audálio é um patrimô-nio deste País. Ele é outro marciano!

Jornal da ABI – Como foi suaparticipação nesse projeto?

Ziraldo – O velho Audálio, meu ir-mãozinho, figura da maior importân-cia na história da imprensa brasileira,decidiu escrever a história da infânciade alguns amigos seus. Não é exata-mente um projeto, é um livro. Boni-to e carinhoso. Que me deixou mui-to comovido e gostando ainda mais donosso guerreiro de Tanque D’Arca.

Eu ainda tenho alguns amigos deinfância que estão vivos, que querofalar deles também: o Alan Viggiano,que é o macaco no Pererê; Pedro Viei-ra, que é o tatu; Galileu que é a onça;o Pimentel morreu, mas tem o Mo-acir Viggiano e Paulo Nogueira, queé de Itajubá. Nós conseguimos umacoisa que os quatro grandes mineirosnão conseguiram (Paulo MendesCampos, Otto Lara Resende, FernandoSabino e Hélio Pellegrino, retratados noJornal da ABI/Edição 382). Estamosjuntos, somos irmãos, vou na festadeles, eles vão na minha festa, eutenho que ir a cinco festas este ano!Todo mundo de Caratinga.

Jornal da ABI – Vai fechar a cidade!Ziraldo – É, uai! Cinco mil crian-

ças, todos os colégios da cidade vãodesfilar, e dos Municípios vizinhos.Caratinga é uma cidade atípica. Por-que mineiro tem muito problemacom quem volta. Se volta, é porquefracassou. “Eu não fracassei não”.“Então por que voltou?” “É porqueeu gosto da minha cidade”. “Ah, gos-ta... Sei.” Essa é a alma mineira. (ri-sos) Mas o pessoal em Caratinga fazfesta até para quem passa no vesti-bular, rapaz! Carreata! (risos) Fazfesta para tudo! Então, você não podeimaginar o que estão aprontandopara mim, lá! É uma coisa impres-sionante. Vai todo mundo paraCaratinga no dia 28, vai ter umafestona em Caratinga...

(Continua no Jornal da ABI/Edição 384)

O decálogo do pai1. Sê perfeito em tudo o quefizeres.

2. Ouvir missa aos domingos edias santificados. Faça suasorações da noite e da manhã.

3. Apresentar-se sempre nahora certa ou antes da hora noserviço e nos estudos.

4. Cuidar dos seus deveres doserviço bancário e dos estudoscom antecedência.

5. No serviço do banco, nuncadispensar sua atenção para coisasfúteis. Cuide do seu serviço eprocure adquirir a simpatia dosseus superiores e dos colegas.

6. Afaste-se das máscompanhias. Quando seoferecer oportunidade de ir aalguma festa em casa de família,em clubes ou outrasorganizações festivas, saiba seapresentar com decência, bemvestido e jogar sempre com umacarta de menos, quero dizer,meu filho, nunca ceder o seudireito a não desejar para outremo que não deseja para si.

7. Recomendo mais uma vezvisitar as pessoas que jáfalamos. Quando se ofereceroportunidade de encontrar umcaratinguense, trate-o com a suahabitual camaradagem.

8. Procure deitar e levantar emhoras certas.

9. Procure controlar sua receitae despesa, a fim de não passarpor vexame.

10. Queira cumprir asrecomendações acima.

Ziraldo em seu estúdio de pintura. Abaixo, um doscartazes de cinema que marcaram época: Os Fuzis.

JOSÉ DUAYER

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Quantos anos têm Ziraldo? Aliás, quan-tas vidas existem dentro de um cartunista?Difícil responder tais questões, quando opersonagem real envolvido é ‘pai’ de tantosoutros, que povoam o mundo encantado daficção. Porém, para todos os efeitos, e des-considerando a natureza plural que envol-ve a fértil existência dos artistas, segundoo calendário nosso de cada dia, Ziraldo Al-ves Pinto completa 80 anos em 24 de ou-tubro deste 2012. Como não poderia dei-xar de ser, o aniversário será marcado porfesta e homenagens. Uma das mais especi-ais aconteceu na noite dodia 18 de outubro, na Li-vraria Travessa do Le-blon, Zona Sul do Rio deJaneiro, quando foi lan-çado o dvd Ziraldo em Pro-fissão Cartunista, docu-mentário de Marisa Fur-tado de Oliveira.

“Neste especial, os fãstêm acesso a toda a traje-tória gráfica do artista. Odocumentário se funda-menta no contexto histó-rico que acompanha a tra-jetória de Ziraldo e se es-trutura em dois episódios.O primeiro, chamado O Menino Astronau-ta, vai de 1932 a 1969, passando pela Segun-da Guerra Mundial até a chegada do ho-mem na Lua. Este episódio fala de um garotoque tem a ambição de ser um astro, se pos-sível um astronauta. Quer dizer, um aven-tureiro do espaço, que sonha ser autor dequadrinhos e cartunista internacional. Osegundo – Ziraldo o Homem, que vai de1969 a 2002 – aborda um cidadão quevive o desbunde dos anos 1970, que temsuas ambições carnais de ser atuante, emtodas as esferas da vida nacional, da fun-dação de O Pasquim, da política, das pri-sões, de suas campanhas de publicidade eda imensa obra gráfica do maior cartazis-ta brasileiro de todos os tempos. E aindafoca no multimídia, que envereda pelaliteratura infantil e obtém sucessos es-trondosos, vira balé, filme, e trabalha emtv. Em 2002, Ziraldo completou 70 anose foi tema de enredo de escola de sambaem São Paulo. Isso também aparece lá”,conta Marisa ao Jornal da ABI.

ais. “Quando terminei o do-cumentário, em 2004, fiz um

projeto para recriarmos o Mu-ral do Canecão que foi pintado

em 1968 e destruído... Che-guei a conseguir apro-

vação do VivoRio e do Mam,

Ziraldo doaria a obra para a cidade do Riode Janeiro e nós faríamos, com a ajuda demuseólogos e de alunos de Belas-Artes, umarecriação do Painel de 180 metros quadra-dos do Canecão para durar pelos próximos200 anos. Não consegui patrocínio e o pro-jeto não vingou. Mas naquela época ele es-tava começando a enveredar pela pinturae de lá pra cá não parou mais. Mas ele con-tinua trabalhando na TV Brasil e agora temum portal exclusivo na internet onde en-trevista pessoas, na TV Zira. Se você querdefinir em que ramo ele está atuando, sim-plesmente não vai conseguir, porque ele‘joga nas onze’ posições”, explica ela, que se-gue em seu detalhado relato.

“Sobre técnicas eu posso dizer que, hápoucos dias, estive na casa dele. Ziraldo es-tava criando uma campanha para a Brahma– linda! – que começava desenhando embico de pena, daquele tipo de bico que semergulha na tinta, coisa ancestral mesmo!E que depois é transposto para o computadorpor um assistente, onde ele vai elaborandoe colorindo cada etapa até o produto final.No segundo episódio do dvd há um trechoonde a gente mostra exatamente isso, comoele trabalha, suas técnicas, paleta de cores ecomo alcança seus produtos finais. A sérieProfissão Cartunista tenta sempre mostrarcomo é a mágica nos bastidores, para aque-les que como eu desejam desenhar.”

O dvd chega agora ao mercado para serparte da bibliografia sobre o Ziraldo, para

servir de fonte de informações para osadmiradores que quiserem pesquisar so-bre o artista. “Estou desenvolvendo umtrabalho com escolas que já começarama produzir projetos a partir dos documen-tários da série”, adianta Marisa, que, alémdo evento no Rio, pretende fazer lança-mentos em São Paulo e Belo Horizonte,e em algumas cidades do Nordeste. Mas,como será que Ziraldo assistiu ao docu-mentário a seu respeito, quando de seulançamento?

“Creio que para ele o documentário émesmo muito emocionante, e talvez porisso tenha se esquivado tanto de mim, atéque eu o realizasse. Ele só assistiu ao filmequando estava pronto, dentro do cinema.Se mostrou muito emocionado com odepoimento dos filhos sobre o período dasprisões. Acho que, por ter feito sempretanta piada daquilo, aquelas histórias vi-raram folclóricas e engraçadas... Mas ha-via ali um aspecto de dor e medo, que ficouimpregnado na família e foi recordado. Elese emocionou muito com a música que ofilho Antônio fez pra Vilma – sua mãe,esposa do Ziraldo –, que tinha falecidosubitamente dois anos antes. Ao final deuma sessão em São Paulo, ouvi pessoas medizerem que haviam chorado, se emocio-nado. Acho que não só o Ziraldo se emo-ciona com sua história. Todo mundo aca-ba se emocionando, pois ela é também aHistória do nosso país”, define Marisa.

O próprio Ziraldo também falou aoJornal da ABI, sobre este momento de lan-çamento do dvd. “Nessas horas, minha re-ação é sempre a mesma. Acho que há umasevera dose de exagero na atenção dis-pensada a mim. O fato é que o documen-tário é um trabalho muito bem feito, e queme comove demais. Fico agradecido aMarisa pelo fato de ela achar que minhavida e minha obra merecem ser documen-tadas, ainda mais por ela, cuja capacida-de enquanto documentarista é inegável.É uma honra fazer parte de uma série de-dicada aos cartunistas, ao lado de nomescomo Henfil e Will Eisner, este segundomeu primeiro ídolo de infância, quandoainda morava em Caratinga, e de quemdepois me tornei amigo. Mas quandovocê me pergunta a sensação que sintoagora, diante do lançamento deste dvd,posso responder que experimento mesmouma espécie de pavor! (risos) E penso emdizer: ‘Menos, querida Marisa, menos...’”,conta Ziraldo.

E cabe mesmo a Marisa a tarefa de ten-tar definir Ziraldo – o homem e a obra. “Háuma entrevista que ele deu ao Roda Viva,da TV Cultura, em que diz desejar provo-car a reflexão das pessoas. Ziraldo afirma,parafraseando o Chacrinha: ‘Eu vim paraconfundir, para fazer as pessoas pensarem’.Mas eu diria que ele faz isso com muitaalegria, e com uma beleza plástica inigua-lável. Se você reparar bem, são raríssimosos artistas que produzem a partir da alegria– a maioria o faz a partir da dor, pois estaé mais produtiva mesmo! O ‘ser feliz’ quercurtir a vida e não viver em devoção ao tra-balho. Mas quando há uma inquietação la-tente como a de Ziraldo, é preciso botar prafora. E a isso eu chamo de talento, voca-ção”, teoriza.

Pelo visto, mais do que confundir oufazer pensar, Ziraldo sabe encantar.

POR PAULO CHICO

80 anos em120 minutosAo completar 80 anos, o cartunista recebe homenagem

com o lançamento do dvd Ziraldo em ProfissãoCartunista, documentário especial, de Marisa Furtado.

Ziraldo em Profissão Cartunista, uma pro-dução da Scriptorium e da Robdigital, fazparte da premiada série de documentári-os – levou o Prêmio HQMix em 2000 e2002 – que biografou Henfil, Jerry Robin-son e Will Eisner, e que foi exibida em ci-nemas e televisões de mais de 40 países.Como o dvd está sendo lançado para cele-brar seus 80 anos, não poderia deixar deabordar o fato de o artista ter mergulhadona pintura. Por isso foi produzido umpequeno Extra chamado Ziraldo Pintor, quemostra um pouco do que foi exposto no

Rio e Brasília na exposi-ção Zeróis. A edição quechega agora ao mercadotraz ainda outro Extra,que é uma animação fei-ta pelo Pequeno Cidadão,onde o biografado cantauma música que fez paraninar seus filhos, eviden-ciando o talento destemineiro enquanto com-positor.

“Ao pensarmos em mes-tres cartunistas no Brasil,Ziraldo certamente é onome na linha de frente.

Referência e formador de tantosdiscípulos, ele estimulou várias geraçõesde artistas em diversas áreas: cinema, te-levisão, teatro, literatura... Não há fron-teiras para o seu trabalho. O artista pujan-te e ativo não tem como parar para fazerretrospectivas e refletir sobre a própriaobra. Todos os artistas que eu retratei sótinham planos futuros e, na maioria dasvezes, fui eu quem organizou a obra emforma de catalogação e pesquisa. Este traba-lho dos documentários busca servir comoreferência sobre a obra do autor. Acho queisso é herança da minha mãe que traba-lhava como enciclopedista na Britânica”,afirma Marisa, lembrando que o docu-mentário conta com depoimentos depersonalidades como Paulo Caruso, Mi-guel Paiva, Sérgio Cabral, Gerald Thomas,Fernando Barbosa Lima, Fernando Pam-plona, Ique, além de parentes e amigos deinfância – muitos deles depois transfor-mados em personagens.

A pedido do Jornal da ABI, a diretoraavalia a produção de Ziraldo nos dias atu-

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1.1. Desde sua fundação, em 7 deabril de 1908, por iniciativa do jorna-lista Gustavo de Lacerda, a AssociaçãoBrasileira de Imprensa (ABI) tem par-ticipado ativamente das mobilizaçõespopulares em defesa da democracia. AABI defende o que considera um dosprincipais valores da grandeza de umanação, ou seja, a liberdade de impren-sa, assim como o repúdio a qualquertipo de censura.

1.2. Ao longo dos seus mais de 104anos de existência, a ABI se destaca tam-bém pela defesa intransigente dos direi-tos humanos e não abre mão dessa de-fesa. O respeito a esses valores é sua mar-ca registrada e a razão de ser de uma ins-tituição que sempre esteve presente nosmomentos relevantes da História con-temporânea brasileira, com destemor ecoragem, sem se intimidar com amea-ças e tentativas de calar a sua voz.

1.3. Seguindo esses princípios, a ABIcriou logo após o golpe militar a Comis-são de Defesa da Liberdade de Impren-sa, com o objetivo de estar sempre vigi-lante na defesa do que considera ser omelhor para o País, Comissão essa quese destacou historicamente em tantosmomentos relevantes e significativos davida política nacional.

1.4. A ABI é uma entidade que reú-ne trabalhadores da área de comunica-ção e proprietários dos mais variados ediversos meios de comunicação, semdiscriminação de qualquer tipo. Atra-vés de sua Diretoria e do ConselhoDeliberativo, tem-se esmerado no sen-tido de jamais esmorecer ou retrocederna luta em prol das instituições e pes-soas que prezam a liberdade, a justiçae a igualdade social, predicados essesque considera serem os propulsores dodesenvolvimento humano.

1.5. Dentro desse espírito, a partir deabril de 1964, quando do golpe civilmilitar que retirou do poder o PresidenteJoão Belchior Marques Goulart e supri-miu todas as garantias constitucionaisdo cidadão, a ABI nunca deixou de ladoa sua razão de existência como entida-de, mesmo nos momentos mais difíceis

esteve presente não apenas na capitalpaulista, por ocasião do sepultamentodo jornalista, como abriu o auditório do9º andar de sua sede no Rio de Janeiropara mais de 300 jornalistas, artistas e in-telectuais, que permaneceram em silên-cio durante dez minutos, exatamenteno horário do sepultamento de Vladi-mir Herzog. Indo mais além em suaindignação, a Diretoria da ABI decretouluto oficial de oito dias, como repúdiopelo covarde ato.

2.2. Juntamente com o Sindicato deJornalistas Profissionais no Estado deSão Paulo, então presidido pelo jornalis-ta Audálio Dantas, empenhou-se a ABIcom todas as forças no sentido de des-mascarar os argumentos mentirososdos que então detinham o poder, segun-do os quais Vladimir Herzog teria se sui-cidado. Com isso, evitou-se que o corpodo jornalista fosse sepultado na ala desuicidas de um cemitério judaico, reli-gião da vítima. Graças aisso a verdade pôde ser res-tabelecida como prova arecente declaração do De-legado Cláudio Guerra,que disse ter sido VladimirHerzog realmente assassi-nado e toda a cena de en-forcamento em sua celater sido montada pelo Dopsde São Paulo.

2.3. Ainda com relação a esse episó-dio, que tanta luta e denodo mereceu daABI, no sentido de buscar a verdade,uma nova fotografia do corpo de Vladi-mir Herzog, obtida com exclusividadee divulgada pelo Deputado Miro Teixeira(PDT/RJ), no site leidoshomens.com.br,amplia as possibilidades de reaberturajudicial do caso e seu exame pela Comis-são da Verdade.

2.4. Como se pode ver na foto, a cin-ta passada em torno do pescoço de Vla-dimir Herzog estava amarrada em umabarra de ferro a 1,63m de altura, o queimpedia a suspensão em vão livre do seucorpo, cujas pernas se dobravam no chão.

2.5. Na correspondência trocada entreo General Newton Cruz, chefe da Agên-cia Central de Informações, e seu superi-or, o General João Batista Figueiredo, fi-cam evidentes as divergências internas arespeito do assassinato e um acordo táci-to de silêncio dos dois sobre o caso.

2.6. A fotografia que exibe as barrassuperiores da janela está entregue às tra-ças, arquivada nos autos do Caso 7338/75,

em um depósito terceirizado pelo Estadode São Paulo, na cidade de Cotia (SP).

2.7. Em A Ditadura Encurralada, pág.177, Elio Gaspari resume a indignaçãonacional: “Herzog não precisava teramarrado a tira de pano na grade infe-rior. Na cela especial nº 1 havia uma ca-deira. Poderia ter subido nela e feito o nóna barra superior, projetando-se em vãolivre”. É o que comprova a imagem, ago-ra revelada.

3.1. Tais fatos ao longo de 21 anos de

vigência da ditadura civil-militar noPaís, e muitos outros que aumentariamsobremaneira este relato, escritos literal-mente a ferro e fogo na memória histó-rica da ABI e ainda recentes também namemória de tantos heróis daqueles tem-pos sombrios que ainda militam na Casa,

são importantes de seremlembrados.

3.2. Para se entendermelhor os motivos da fú-ria dos apoiadores do regi-me ditatorial de 1964, fú-ria essa manifestada comameaças e truculência emvários episódios, o maior emais grave deles ocorridoàs 10h15m do dia 19 de

agosto de 1976, com a explosão de umabomba de alto teor destrutivo, que da-nificou as instalações do 7º andar dasede da entidade, na Rua Araújo PortoAlegre, 71, prédio este tombado peloInstituto do Patrimônio Histórico Na-cional-Iphan.

3.3. A barbaridade e alcance do atopodem ser traduzidos na frase estupefa-ta de um velho e experiente perito doInstituto de Criminalística do Rio:“Nunca vi uma explosão tão violentaquanto essa, ela poderia ter provocadovárias mortes”. Preparada com dinamitecomercial e acionada através de ácidosulfúrico, a bomba, colocada na caixa deinspeção da coluna d’água do 7º andar,era de efeito retardado e os peritos nãosouberam afirmar se ela fora armadacom várias horas de antecedência ou mi-nutos antes da explosão.

3.4. A explosão, planejada nos míni-mos detalhes e programada para des-truir o “centro nervoso” da entidade, se-gundo os peritos da Polícia Civil, “pro-vocou a destruição de uma viga de con-

PESQUISA E REDAÇÃO DE

MARIO AUGUSTO JAKOBSKIN

E ARCÍRIO GOUVÊA NETO

DOCUMENTO

O RELATÓRIODA BOMBA

O texto integral do Relatório encaminhado pela ABI à Comissão Nacional da Verdade pleiteandoinvestigação sobre o atentado terrorista praticado contra sua sede em 19 de agosto de 1976.

e perigosos, atitude que lhe valeu a ad-miração e o respeito da população e dasmais importantes instituições do País.

1.6. Já nos primeiros dias após o gol-pe de 1964, a ABI não mediu esforços naproteção e defesa dos cidadãos brasilei-ros, jornalistas ou não, que não compac-tuavam com o arbítrio, fossem presos ousofressem torturas, e nessa luta destaca-ram-se os Presidentes Herbert Moses,Danton Jobim, Prudente de MoraesNeto, Barbosa Lima Sobrinho e tantosoutros.

1.7. Foi assim que se empenhou oquanto pôde na libertação do jornalis-ta João Etcheverry, integrante do Con-selho Deliberativo da Casa, preso naPolícia do Exército por 30 dias, confor-me consta da Ata de Reunião da Direto-ria, com data de 27 de maio de 1964.

1.8. Nessa mesma reunião, os Conse-lheiros relataram que a Diretoria da ABItambém se empenhou para que o escri-tor e jornalista Astrogildo Pereira, umdos fundadores do Partido ComunistaBrasileiro, fosse libertado imediatamen-te e que durante a sua prisão tivesse res-peitada a sua integridade física.

1.9. Poucas horas depois da eclosão dogolpe civil militar, dezenas de jornalis-tas foram à sede da ABI, por a conside-rarem local seguro, para tentar de algu-ma forma resistir e expressar sua indig-nação pelos rumos dos acontecimentos.

1.10. A Diretoria da ABI empenhou-se ao máximo também na libertação dosjornalistas José Gomes Talarico e Ar-thur Cantalice, Conselheiros da ABI, eCarlos Heitor Cony. E sempre esteveatenta ao longo dos anos para evitar queoutros jornalistas sofressem violêncianos porões da ditadura. Foram célebresas reuniões para traçar estratégias de en-frentamento ao regime militar, realiza-das sob o perigo constante de seus par-ticipantes serem presos, sem contar ooferecimento de suas dependências paramanifestações de todo tipo contra as ar-bitrariedades praticadas durante aque-le período.

2.1. Quando ocorreu o assassinato,

nos porões da ditadura, do jornalista Vla-dimir Herzog, em 25 de outubro de1975, além de demonstrar a sua indig-nação pelo ato de barbárie cometido naárea do II Exército, em São Paulo, a ABI

“NUNCA VI UMAEXPLOSÃO TÃO

VIOLENTAQUANTO ESSA,

ELA PODERIA TERPROVOCADO

VÁRIAS MORTES”

1. UM SÉCULO DE LUTASEM DEFESA DAS LIBERDADES

2. FARSA NO ASSASSINATODE VLADIMIR HERZOG

3. A REPRESÁLIA CONTRA A ABI: UMA BOMBA DE FORTE TEOR

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creto de 30 centímetros de espessura, ar-remessando-a sobre o teto de um eleva-dor, o derretimento de mais de doismetros de tubulação de chumbo e me-tal da coluna hidráulica; a destruição daparede divisória entre os banheirosmasculino e feminino, bem como de to-das as peças sanitárias; rachaduras naparede externa dos banheiros; o deslo-camento de duas portas dobanheiro masculino, sen-do uma delas arremessadalonge; o estufamento daparede externa do corredorque leva ao auditório; o des-locamento de várias jane-las de ventilação e lambrisde todo o sétimo andar; aqueda de parte do revesti-mento do teto da sala dapresidência e a destruiçãodas bandeiras do Brasil e daABI”.

3.5. Nesse andar funci-onavam a Sala da Presidência, a Sala doConselho Administrativo, dois Auditó-rios, a Secretaria, a Tesouraria, o Depar-tamento de Pessoal, o Serviço de Assis-tência Social, a Comissão de Sindicân-

cia, a Sala das Telefonistas, o Serviço deMecanografia e um pequeno arquivo.Na ocasião, lá se encontravam apenasoito funcionários, que por sorte não es-tavam próximos ao banheiro onde ex-plodiu a bomba.

3.6. O mecanógrafo Hugo Martins,que trabalhava próximo ao local da ex-plosão, conta o que viu: “Quando ouvi

aquele barulhão todo, pen-sei que fosse algum proble-ma na caixa de força, quefica perto do banheiro.Tive sangue-frio para su-gerir que todos os outrosfuncionários descessempela escada, principalmen-te as duas mulheres que es-tavam lá na hora que abomba explodiu, dona Ju-rema e dona Camila. De re-pente, vi uma fumaceiradanada saindo pela portado banheiro. Era uma fu-

maça espessa, com muita poeira e umcheiro forte de pólvora. Corri até o ba-nheiro e horrorizado vi aquele estragotodo. Enquanto isso, os lambris da pare-de iam se soltando, os vidros partindo e

caindo no chão. Muitas cadeiras e mó-veis foram arremessadas longe. Gentechorando e assustada. Um cenário in-descritível de pavor”.

3.7. Vários panfletos da Aliança An-ticomunista Brasileira (AAB), que assu-miu a autoria da explosão, foram encon-trados em todo o 7º andar. Inúmerosjornais, espalhados por todo o Brasil,mesmo proibidos pelo regime militarde divulgar atos dessa natureza, deste-midamente, estamparam manchetesdenunciando o ato terrorista. Entre eles,podemos citar o Diário de Notícias, dePorto Alegre; o Jornal de Brasília, OEstado, de Florianópolis; o Diário doGrande ABC, o Correio Braziliense, oCorreio do Estado, de Mato Grosso; aFolha Metropolitana, de São Paulo; aTribuna da Imprensa, o Jornal do Com-mercio, de Recife; O Popular, de Goiânia;o Diário de Brasília; A Tribuna, de San-tos; o Diário do Paraná, Última Hora, deSão Paulo.

3.8. Os extremistas agiram estimu-lados pelo discurso proferido no dia an-terior pelo Deputado José Bonifácio deAndrade, da Arena de Minas Gerais, lí-der do Governo do General ErnestoGeisel, que em linguagem de ódio acu-sava a ABI e órgãos de imprensa de “in-filtração comunista”. De fato, o discursodo líder do Governo detonou a bombana ABI. Bonifácio chegou a acusar tex-tualmente “todos os meios de comuni-cação de estarem sendo efetivamentecomandados pelos comunistas”.

3.9. Nos mesmos moldes de ação daentidade similar argentina conhecidacomo “Triple A” (Aliança Anticomunis-ta Argentina), os extremistas da AABtambém tentaram horas mais tarde ex-plodir uma bomba na Ordem dos Advo-gados do Brasil (OAB/RJ), o que nãoocorreu porque foi descoberta a tempopor um funcionário da entidade, que,como a ABI, se empenhava na luta pelorestabelecimento da democracia no País.

3.10. Logo após a explosão da bombana ABI e da tentativa frustrada na OAB,o mesmo líder do Governo, ao ser inda-gado sobre a grave ocorrência, simpló-ria e ironicamente, responsabilizou “oscomunistas” pelo ocorrido, segundo no-tícia veiculada pelos principais órgãos deimprensa.

3.11. Para se ter mais uma idéia daque-les tempos de repressão ao povo brasilei-ro, à liberdade de expressão e a entidadesrepresentativas da sociedade, que seempenhavam na luta pela democracia,os agentes policiais que chegaram à ABIapós a explosão da bomba agiram de for-

ma autoritária e cuidaram de recolher ospanfletos deixados pela AAB. Forammuito rápidos ao tentar recolher os pan-fletos antes dos trabalhos da perícia.

3.12. Procuraram revistar o jornalis-ta Davi Chargel, Diretor de Sede da ABI,em uma clara demonstração de evitarque o panfleto ganhasse publicidade eajudasse a se chegar aos responsáveispelo ato terrorista. Chargel só conse-guiu evitar a revista porque protestouaos gritos contra a insistência policial.

3.13. Como se isso não bastasse, oConselheiro da ABI e Coordenador deRedação da sucursal do Rio da revistaVeja, afastado momentaneamente docargo para tratamento de saúde, jorna-lista Henrique Miranda Sá Neto, era se-qüestrado em sua residência, no bairrode Ipanema, por três elementos nãoidentificados. Miranda Sá ficou mais detrês horas em poder dos seqüestradores,provavelmente integrantes de algumórgão de segurança, segundo revelou oDiário do Povo, de Campinas, em suaedição de 20 de agosto de 1976, sob otítulo ‘Jornalista da ABI seqüestrado’.Momentos depois da explosão da bom-ba, Miranda Sá tinha sido interpeladopor um militar.

3.14. As lideranças parlamentares dosdois partidos políticos de então (Arena eMDB), ministros de Estado e governado-res, associações profissionais de diferen-tes áreas, instituições culturais e civis(entre elas, órgãos maçônicos, sindicatose de comunicação), a Presidência da Repú-blica e personalidades de todos os setoresda vida pública nacional manifestaram asua enérgica condenação aos atentados deque foram alvos a ABI e a OAB.

4.1. De Norte a Sul do País e mesmo

do exterior, ergueu-se em um único coroo clamor de indignação e repúdio à vio-lência, expresso em uma mensagem en-viada à Casa pela Biblioteca Maçônica daParaíba:

4.2. “Quando mãos criminosas ata-cam o Sagrado Templo da Liberdade,ferindo a alma da Nação brasileira, nin-guém pode calar diante de tamanhamonstruosidade, especialmente aquelesque comungam nos sacrossantos ideaisda grandeza e honra da Pátria, apanágiode todo jornalista brasileiro.”

4.3. Prossegue a mensagem: “A cica-triz dessa afronta ficará para sempre nalembrança dos que comungam dos ide-ais de liberdade e progresso, que ema-

“CORRI ATÉ OBANHEIRO E

HORRORIZADO VIAQUELE ESTRAGO

TODO. GENTECHORANDO EASSUSTADA.UM CENÁRIO

INDESCRITÍVELDE PAVOR”

“A CICATRIZ DESSA AFRONTA FICARÁ PARA SEMPRE NALEMBRANÇA DOS QUE COMUNGAM DOS IDEAIS DE LIBERDADE

E PROGRESSO, QUE EMANAM DESSA NOBRE ENTIDADE. PORÉM,DEPOIS DISSO, FICAREMOS MAIS FORTES E COESOS PARA

COMBATERMOS O INIMIGO TRAIÇOEIRO. PORQUE SÓ ASSIM, ÀTRAIÇÃO, É QUE SE FERE UMA CLASSE COMO A DOS JORNALISTAS”

4. UM CLAMOR DE INDIGNAÇÃOCONTRA A VIOLÊNCIA

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14 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Maurício Azêdo e Francisco [email protected] / [email protected] gráfico e diagramação: Francisco UchaEdição de textos: Maurício Azêdo

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MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

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Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José GomesTalarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira daSilva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa,Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

ERRATA

• • • • • Na Edição 381, de agosto de 2012,matéria Emoção e lágrimas naCaravana da Anistia, página 27,segunda coluna, segunda linha, ondese lê Avenida Visconde de Pirajá, leia-se Rua Visconde de Pirajá.

• • • • • Na Edição 382, página 28, terceiracoluna, tanto na sexta linha quantono primeiro parágrafo, a palavraoarístico foi grafada com erro.

• • • • • No título da matéria publicada naEdição 382, página 30, leia-se: AsDuas Mortes de Marat, L’Ami duPeuple, e não Morat.

nam dessa nobre Entidade. Porém, de-pois disso, ficaremos mais fortes e coe-sos para combatermos o inimigo traiço-eiro. Porque só assim, à traição, é que sefere uma classe como a dos jornalistas”.

4.4. O Presidente em exercício da ABI,Fernando Segismundo, denunciou a co-nexão entre os atentados ocorridos noRio e as declarações que vêm sendo fei-tas em Brasília pelo líderdo Governo na Câmara,Deputado José Bonifácio:

4.5. “Esse Deputadocertamente, está por trásdesse atentado, principal-mente pelo seu posiciona-mento de luta aberta esuspeita contra veículos decomunicação. Ele é o por-ta-voz desse ódio contra aimprensa. Tem de haveruma conexão entre ele aspessoas que fazem isso.”

4.6. O Conselheiro daABI Odylo Costa Filho tam-bém externou a sua revol-ta: “Um episódio como essenão conta apenas pelo da-nos materiais, mas pelospropósitos de que se re-veste, pelo tipo de açãoque se deseja adotar e pelointeresse geral de ameaçar a liberdade deinformação, de pensamento e de crítica”.

4.7. Barbosa Lima Sobrinho, entãoPresidente do Conselho Administrati-vo, assinalou que, ferida, a ABI se senteorgulhosa da provação que sofreu: “Oatentado é a confirmação de que estaCasa permanece coerente e inflexível nadefesa da liberdade de imprensa, dosjornalistas e dos direitos humanos, semfugir um só instante aos ideais em tor-no dos quais foi fundada por Gustavo deLacerda e seus companheiros”.

4.8. A Diretoria da ABI, seus Conse-lheiros e associados, após o atentado, nãotemeram as ameaças extremistas que

afirmavam “de agora em diante tomemcuidado seus lacaios de Moscou”. Osagentes da AAB em um panfleto amea-çaram: “não daremos trégua e já que asautoridades recolhem-se covardemen-te nós passaremos a agir”. Ao final dopanfleto, a AAB reafirmava as ameaçasacrescentando: “cuidado simpatizan-tes, aproveitadores, políticos sem escrú-

pulos e traidores de todasas matizes”.

4.9. Como prova con-creta de que as ameaçasnão intimidaram a enti-dade, vale lembrar queinúmeros associados daABI responderam positi-vamente à idéia de muti-rão, doando somas emdinheiro para se refazeras instalações danifica-das do 7º andar.

4.10. A Diretoria da ABIhavia impetrado ação noSupremo Tribunal Federalpara que o Estado brasilei-ro ressarcisse os prejuízosmateriais provocados peloato terrorista, mas nuncafoi atendida.

4.11. Os extremistasautores do atentado, pro-

vavelmente os mesmos que torturavame matavam covardemente opositores doregime ditatorial, não foram localizadose seguiram impunes ao longo de todosestes 36 anos.

4.12. Outro exemplo de resistênciada Casa foi o fato de a Diretoria da ABIceder generosamente seus espaços paraencontros de familiares de vítimas daditadura. E, como se não bastasse, a sededa ABI foi palco ainda do ato de lança-mento do Comitê Brasileiro pela Anis-tia, em 14 de fevereiro de 1978, com apresença do General Pery ConstantBevilacqua. Em todo o tempo que du-rou o regime de exceção, a ABI defendeu

uma anistia ampla, geral e irrestrita,buscando a reconciliação dos brasileiros.

5.1. Tendo em vista os fatos relatados,que, como já assinalado, tratam apenasde um resumo sintético de outras tan-tas ameaças do regime ditatorial contraa ABI, a Diretoria e o Conselho Delibe-rativo da Casa entendem que é chega-da a hora de o Estado brasileiro pedir des-culpas por todo o dano causado à enti-dade, por todo o constrangimento e per-seguição, pelo único motivo de ter elalutado e se posicionado contra as violên-cias e torturas de toda espécie praticadas

contra cidadãos brasileiros inocentes,que se opunham ao regime vigente de1964 a março de 1985, e tinham o direitoinalienável de expressar livrementesuas preferências políticas e ideológicas.

5.2. A Diretoria da ABI e os Conse-lheiros acreditam que a Comissão daVerdade criada por lei terá a missão his-tórica de fazer justiça para com umaentidade que lutou com todas as suasforças para que o Brasil de hoje viva emplenitude democrática.

5.3. A Diretoria da ABI e seus Conse-lheiros entendem também que o Esta-do brasileiro deve rever medidas recen-tes adotadas contra a entidade, entre asquais as que cassaram seu status deentidade beneficente de assistência so-cial, medida que lhe tem imposto pesa-dos encargos.

5.4. Com isso, fiscais da União, agin-do de forma que lembra os tempos dearbítrio, estiveram na sede da ABI exa-minando documentos e decretaram opagamento de encargos e multas que senão forem anulados levarão à extinçãode uma Casa que é um dos maiores or-gulhos e glórias do povo brasileiro.

“UM EPISÓDIOCOMO ESSE NÃOCONTA APENASPELOS DANOS

MATERIAIS, MASPELOS PROPÓSITOSDE QUE SE REVESTE,PELO TIPO DE AÇÃO

QUE SE DESEJAADOTAR E PELO

INTERESSE GERALDE AMEAÇAR ALIBERDADE DEINFORMAÇÃO,

DE PENSAMENTOE DE CRÍTICA”.

Barbosa Lima Sobrinho: “O atentado é aconfirmação de que esta Casa permanece

coerente e inflexível na defesa da liberdade deimprensa, dos jornalistas e dos direitos humanos.”

DOCUMENTO O RELATÓRIO DA BOMBA

5. O ESTADO NACIONAL TEMDE PEDIR DESCULPAS À ABI

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15JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

MEMÓRIA

Um diálogo Konder-Hebe

Programa Hebe, 13 de junho de 1989.Rodolfo Konder, na época Presidenteda Anistia Internacional, Seção doBrasil, é recebido por Hebe Camargo.

Ele é o primeiro convidado a ser entrevistadopela dama da tv brasileira naquele dia. A seguir,a reprodução do que eles conversaram:

Hebe – Nós vamos receber o jornalista eescritor Rodolfo Konder, meu amigo que-rido. Seja bem-vindo. Dá um jeitinho dechegar com a câmera bem perto dos olhosdele para ver a cor: é turquesa.

Rodolfo Konder – Eu não sei, porque soudaltônico.

Hebe – Você não precisa ver, porque sãoseus. A gente é que precisa. E enquanto vocêsficam mostrando o Rodolfo, bem bonito,eu vou dizer para vocês que ele é ex-diri-gente sindical da Petrobrás, professor deJornalismo. Em 1975, quando era editor internaci-onal da revista Visão, foi preso no Doi-Codi. Forada prisão, denunciou publicamente as torturas pra-ticadas lá dentro, inclusive contra seu amigo Vladi-mir Herzog. Konder já esteve duas vezes exilado.Que vida hein, Konder? Por que aconteceu isso tudocom você? Você era subversivo?

Konder – Apesar desse perfil, a minha vida não temsido muito difícil, no sentido de que tem sido uma vidamovimentada, que até me permitiu conhecer outrospaíses, viver em outras culturas, e isso abre muito a ca-beça da gente e me ajudou a me tornar mais moderno.

Hebe – E por que você foi tão perseguido?Konder – Em razão das opiniões políticas externadas

pacificamente. Eu nunca preguei a violência e nem re-corri à violência. Isso, aliás, é uma das definições de “pri-sioneiro de consciência”, que é um conceito com o quala Anistia trabalha: a pessoa que é detida por defender pa-cificamente as suas convicções. Eu nunca recorri à vio-lência, mas fui vítima da violência de um regime auto-ritário. Mas isso também ajudou a aprofundar a minhaconsciência de que acima das ideologias e das convicçõespartidárias há princípios universais que nós precisamosdefender contra qualquer governo, contra regimes au-toritários sejam eles de direita ou de esquerda.

Hebe – Eu disse isso à revista Visão. Eu até estavalendo sua ficha e disse: “Olha que coincidência, elefoi da Visão”. Hoje está saindo a minha entrevistana revista e eu falo exatamente isso: eu não supor-to esse negócio de ditadura, seja de direita, seja deesquerda. Ditadura é um horror.

Konder – Devemos combatê-las em qualquer partedo mundo. A Anistia é uma grande mobilização daopinião pública mundial contra os governos que vio-lam os direitos das pessoas.

Hebe – E como é que age a Anistia Internacional emrelação ao desaparecimento de pessoas?

Konder – Esse é um crime particularmente perver-so e marca muito esta segunda metade do século 20, odesaparecimento de pessoas sob responsabilidade dosgovernos. Aqui na América Latina mesmo, nós temospaíses como a Argentina, até recentemente antes da

posse do Raúl Alfonsín; no Chile, houve casos tambémno Brasil. No Chile ainda existem 700 casos de pesso-as desaparecidas e até hoje as famílias dessas pessoasprocuram obter informações sem saber o que aconte-ceu com elas. E nós, do nosso grupo de Anistia, estamostratando de um caso, de um homem de 60 anos, mexi-cano, que desapareceu em 1977 em Guadalajara e que,certamente, foi assassinado. Mas é um crime particu-larmente perverso porque é a morte sem cadáver e aspessoas ficam sempre na expectativa de que um dia odesaparecido possa ressurgir, e passam a acreditar emqualquer alternativa, porque se agarram nisso. Na es-perança de que a pessoa ainda esteja viva. Mas, na maiorparte dos casos, essas pessoas já foram assassinadas e,freqüentemente – como aconteceu no Chile – sãoenterradas em minas abandonadas, leitos de rios, lugaresafastados, para que ninguém descubra. Só que semprealguém acaba descobrindo.

Hebe – Você tem conseguido alguma coisa nessesentido?

Konder – O movimento tem conseguido muitas coi-sas desde que surgiu em 1961. Um advogado inglês, umhomem muito influente, leu nos jornais em Londresa notícia de que dois estudantes tinham sido presos emLisboa por terem feito um brinde à liberdade. E ele dis-se: “É preciso fazer alguma coisa”. Não apenas em de-fesa desses estudantes, mas de todas as pessoas detidaspor governos ao redor do mundo que não sejam conhe-cidas. Porque, se a pessoa é conhecida, é famosa, semprehá quem se mobilize em defesa dela. Mas se a pessoa édesconhecida, é um prisioneiro anônimo, esse advogadoachou que era preciso criar um movimento que a de-fendesse, que falasse por aqueles que não tinham voz.Então a Anistia surge como um esforço de mobilizaçãoda opinião pública para fazer pressão sobre governos.É importante esse detalhe porque às vezes as pessoas co-bram de nós para que tomemos atitudes em relação a,por exemplo, violações dos direitos humanos cometi-das por organizações clandestinas ou até por indivíduos.Mas o campo de ação da Anistia envolve o trabalho degovernos. Então, quando não é alguma coisa que envol-va a ação de governos, a Anistia não atua. Porque ela seespecializou em determinados objetivos, em determi-nados campos.

Hebe – Houve um tempo, muito próximo,em que as pessoas tinham medo de tomaruma atitude, de gritar. Hoje você vê que apopulação está mais alerta, ela exige. Hojeeu vi uma manifestação num cemitério pe-dindo até pena de morte. Veja a que pontonós chegamos. Você acha que neste caso,especialmente aqui no Brasil, as pessoasestão mais participantes, enfim, tomandomais posição?

Konder – Eu diria que o número de violaçõesaos direitos humanos no mundo, eu tenho cer-teza, não aumentou. O que aumentou foi aconsciência de que é necessário denunciar es-sas violações, então elas aparecem mais hoje. Osgovernos se sentem mais pressionados. Então,num mundo cada vez mais integrado, atravésda telecomunicação, da informação, os gover-nos temem a opinião pública mundial e essa éa nossa grande arma. Acredito que, nesse sen-tido, a gente avançou muito, até porque, sob pres-

são da opinião pública, os governos freqüentemente re-cuam. A Anistia Internacional não costuma alardear osefeitos do seu trabalho, mas temos conseguido salvarmuitas vidas, pessoas nos procuram de todas as partesdo mundo, agradecendo a Anistia quando estiverampresos, pois a pressão fez diferença para elas freqüente-mente entre a vida e a morte. Eu diria que o trabalho daAnistia tem dado resultados como parte dessa consci-ência crescente no mundo inteiro de que é preciso vi-giar os governos e pressioná-los quando eles não estãoagindo corretamente.

Agora, você falou num ponto polêmico, a respeitodo qual tenho certeza de que temos a mesma opinião,que é a questão da pena de morte. Nós devemos deixarclaro que, no momento que abandonamos um direitouniversal, que é o direito à vida, nós estamos contribu-indo para que as bases morais da sociedade se corrom-pam. E, na verdade, nós não estamos fazendo nem jus-tiça – e todos os estudos mostram isso com clareza –,nem contribuindo para reduzir a criminalidade e o núme-ro de crimes violentos. Nos Estados Unidos, por exemplo,nos Estados da Geórgia e da Flórida, que são estados ame-ricanos onde freqüentemente há execuções, nos períodoslogo subseqüentes às execuções aumenta o número decrimes violentos. Por quê? Porque se o Estado, que é o sím-bolo supremo do poder e até, freudianamente, do poderpaterno, é capaz de usar essa violência suprema para su-postamente fazer justiça, no âmbito das suas vidas parti-culares as pessoas se sentem justificadas às vezes a apelarpara a violência para conseguir seus direitos, e não é poraí. Então, a pena de morte, sob todos os aspectos, não aju-da a reduzir a violência e a criminalidade. Ao contrário,estimula a violência.

Hebe – Nós temos aqui o livro do Rodolfo, Anistia In-ternacional: Uma Porta Para o Futuro. E aqueles pôsteres?

Konder – É um pôster do Millôr Fernandes e um doPetcov, que fizeram recentemente para a Anistia.

Hebe – Como é que pode acontecer uma coisa horrí-vel como a que aconteceu na Praça da Paz Celestial?E estão dizendo que os estudantes vão ser fuzilados.

Konder – Como é uma ação de governo, a Anistia jáestá em cima do governo chinês fazendo pressão, a SeçãoBrasileira também.

Ao entrevistar o jornalista Rodolfo Konder, em 1989, Hebe Camargo expôs seu pensamento humanista.

Konder foi recebido por Hebe Camargo em seu programa no fim da década de 1980.

REPROD

UÇÃO

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16 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

ACONTECEU NA ABI

Com base na Lei da Ficha Limpa, o TribunalRegional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiropromoveu a impugnação de nada menos de2.200 candidaturas às eleições de outubro. Ja-mais houve nas eleições no Estado um núme-ro tão elevado de impugnações. A informação foiprestada pelo Procurador-Chefe do MinistérioPúblico Eleitoral junto ao TRE-RJ, MaurícioRibeiro, em resposta a uma indagação que lhefoi feita no Seminário Votar Legal, que a ABI pro-moveu no dia 21 de setembro, das 9h às 20h, coma participação de jornalistas, cientistas políticos,professores e pesquisadores.

Organizado pela Comissão de Defesa daLiberdade de Imprensa e Direitos Humanos daCasa, o seminário teve por objetivo divulgarinformações sobre o processo eleitoral então emcurso e a influência que nele teria, assim comonas eleições, a Lei da Ficha Limpa, com a qualo Congresso Nacional, acolheu a propostapopular de moralização do processo eleitoral.A abertura do evento foi feita pelo Presidenteda ABI, Maurício Azêdo, que destacou a relevân-cia do debate em torno do processo eleitoral ede ações que contribuem para o voto consciente.

Mudar, só com a consciênciaA primeira plenária reuniu Margarida Press-

burger, Presidente da Comissão de Direitos Hu-manos da Ordem dos Advogados do Brasil-Seçãodo Estado do Rio de Janeiro-OAB e integrante doAlto Comissariado de Direitos Humanos da Onu;o Procurador-Chefe Maurício Ribeiro e, comomediador, o jornalista Arcírio Gouvêa Neto, Se-cretário da Comissão de Defesa da Liberdade deImprensa e Direitos Humanos da ABI.

Margarida Pressburger ressaltou os avançospromovidos pela Lei da Ficha Limpa, que “ repre-senta um passo importante, mas não vai mo-dificar o eleitor, pois a mudança virá através daconscientização”. “Esta lei – disse – tem um gran-de apelo, porque veio do povo e foi criada após umabaixo-assinado com mais de 1 milhão e 500 milassinaturas, por meio do qual, cansados de rou-balheira, mensalões e do que vemos todos os diasna televisão, clamamos por limpeza e transpa-rência nas eleições, o que denota a conscientiza-ção para a necessidade de sermos governados porpessoas íntegras em todos os escalões.”

Sobre a aplicação da lei, Margarida comen-tou o caso específico do Estado do Rio de Janei-ro: “O Tribunal Regional Eleitoral e o TribunalSuperior Eleitoral têm aplicado esta lei. Muitoscandidatos foram cassados, impedidos. Por outrolado, temos tido algumas surpresas, como ar-tistas e outras figuras públicas que se candida-taram e estão cumprindo o seu papel na polí-tica. São políticos ficha limpa trabalhando parao social, e não para obter vantagens pessoais. Oeleitorado deve prestar atenção nesses detalhes”.

Presidente da Comissão de Direitos Huma-nos da OAB-RJ, ela destacou a lisura na propa-ganda eleitoral como elo fundamental para aformação do voto consciente: “Muitas vezes apropaganda eleitoral pode parecer uma perda detempo e de dinheiro, mas ela nos dá um sentido.Preocupo-me com os feudos e o coronelismo.Deveria haver um acréscimo à Lei da Ficha Lim-

pa para proibir que o filho ou o irmão de um po-lítico se candidate. Quando o político vai a públicopedir voto para o parente, esta situação me lem-bra o tempo das famílias dominantes. Se essarealidade está crescendo com força no Municípiodo Rio de Janeiro, imaginem no interior do País,onde as famílias ainda reinam e mandam”.

Margarida Pressburger considera que a pro-paganda eleitoral precisa ser revista: “Assimcomo os políticos são proibidos de contratarparentes, deveriam ser proibidos de fazer pro-paganda eleitoral indicando filho, irmão, mãe.O candidato deve ter a sua experiência própria”.

Ainda com relação ao processo eleitoral noRio de Janeiro, Margarida Pressburger citou asmilícias como entrave ao posicionamento críticodo eleitor: “Os milicianos dominam regiões in-teiras nesta cidade. Vereadores são cassados,mas elegem parentes ou indicam seus sucesso-res. Várias comunidades elegem certos candida-tos locais, até mesmo por medo, enquanto ou-tros candidatos são proibidos de fazer campa-nha nessas áreas. Esses fatos nem sempre sãodenunciados. O importante é que a conscienti-zação do eleitor comece na infância, ainda naescola, onde o cidadão deve aprender os valoresdos direitos humanos, incluindo o voto consci-ente em benefício de toda a sociedade”.

No começo, um vazioO Procurador-Chefe Maurício Ribeiro deta-

lhou aspectos da criação da Lei da Ficha Limpa:“A origem desta lei se encontra na ConstituiçãoFederal, no artigo 18, parágrafo 9º, que dispôs sobrea necessidade de uma lei complementar que es-tabelecesse causas de inelegibilidade de postulantesa cargos eletivos. Logo em seguida, o CongressoNacional promulgou uma Lei de Inelegibilidade,mas de forma muito tímida, englobando poucashipóteses de improbidade cometidas por políti-cos. As sanções eram vazias”.

“Após alguns anos do advento da Consti-tuição – historiou o Procudador-Chefe –, aprevisão de uma lei complementar para tratardas inelegibilidades foi esmiuçada por umaemenda de revisão de 1994, que passou a tra-zer no texto a necessidade de estabelecer cau-sas de inelegibilidade que atentassem para avida pregressa do postulante a um cargo ele-tivo, visando a proteger a probidade adminis-trativa e a moralidade para o exercício do man-dato. Após 14 anos dessa emenda constituci-onal, surgiu uma mobilização popular atravésda sociedade civil organizada para a coleta devotos de 1% do eleitorado, com o objetivo deapresentar em 2008 um projeto de lei para darconcretude a esse mandamento da Constitui-ção. Em 2010, por força da iniciativa popular,conquistamos a famosa Lei da Ficha Limpa.”

Em relação aos projetos de lei de iniciativapopular, relatou Ribeiro que duas das quatroprimeiras leis trazidas à sociedade tiveramcunho eleitoral. “Uma delas de 1999, previu asanção da cassação do mandato de políticoscondenados por compra de votos, o que eraantes um ilícito eleitoral vazio de sentido, por-que não tirava o mandato do político. A outralei é do ano de 2010, a Lei da Ficha Limpa.”

Informou Ribeiro que há cerca de um ano estásendo organizado um grande movimento popular

na internet (no site reformapolitica.org.br), nasredes sociais, de coleta de assinaturas para umaampla reforma política no Brasil que englobe mu-danças a respeito do financiamento de campa-nhas eleitorais. Outro objetivo, disse, é garantirpor meio de ações afirmativas a participação maisincisiva de minorias sociais, como homoafetivos,afrodescendentes, mulheres: “Através dessas as-sinaturas eletrônicas podemos dar nossa contri-buição para uma sociedade mais avançada”.

O Procurador-Chefe assinalou pontos po-sitivos da Lei da Ficha Limpa, entre os quais asnovas hipóteses de crimes: “A Lei da Ficha Limpatrouxe importantes conquistas, como o pra-zo de oito anos para inelegibilidade. Na leianterior eram apenas três anos. Também tive-mos nesta lei a dispensa de uma decisão comtrânsito em julgado para que se pudesse apli-car a inelegibilidade ao político. Num país comoo Brasil, há processos quase intermináveis”.

De acordo com o representante do Ministé-rio Público, o próprio Supremo Tribunal Federalaplicava aos casos eleitorais a presunção dainocência do Direito Penal. Ele disse que isso nãoé cabível para políticos que estão sendo acusa-dos, processados por ilícitos incompatíveis coma própria função que ele exerce: “Agora nós temosa necessidade do devido processo legal dentro deum prazo razoável. Basta haver uma condena-ção por um órgão colegiado. Várias novas hipó-teses de crimes comuns foram trazidas com aLei, como corrupção eleitoral e captação ilícitade sufrágio, práticas antigas que agora passama merecer sanção por oito anos. As pessoas con-denadas nos seus conselhos de classe tambémficam inelegíveis por oito anos”.

A polêmica em torno da leiSobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa

pelos Tribunais, Maurício Ribeiro grifou que aJustiça Eleitoral começou a indeferir registrosde candidaturas com base em seu texto. Ospolíticos começaram a recorrer e quando foichamado a se pronunciar acerca disso o Supre-mo definiu, após hesitação inicial, que a Lei daFicha Limpa só valeria um ano após o seu

advento. Observou o Procurador que esse tipode decisão surgiu em clima de polêmica:

“A Nação ficou perplexa, diante da proximi-dade das eleições. Havia candidatos fichas-su-jas concorrendo. No início de 2012, o STF deci-diu pela plena eficácia da Lei, inclusive determi-nando a sua aplicação para as eleições deste anopara casos já julgados antes do advento da Lei,em 2010. Esta situação está sendo levada commuita intensidade aos Tribunais Regionais Elei-torais neste momento. O trabalho da impren-sa nesse aspecto tem sido muito importante.”

Em resposta a uma pergunta acerca dedados de impugnação de candidaturas naseleições municipais no Rio de Janeiro, Maurí-cio Ribeiro comentou os procedimentos daJustiça Eleitoral: “Com o objetivo de dar trans-parência e visibilidade à questão, a Procurado-ria Regional Eleitoral tomou a iniciativa de ca-talogar todas as impugnações decididas peloTRE do Rio de Janeiro. Foram 2.200 impugna-ções no Rio de Janeiro”.

Ao comentar as novas hipóteses de inelegi-bilidades, Ribeiro citou os crimes contra o meioambiente, abuso de autoridade, crimes contraa vida, racismo, tortura, terrorismo, captaçãoilícita de sufrágio, captação ou gastos ilícitosde campanha, entre outros.

Em relação ao financiamento privado decampanha, o procurador defendeu a proibiçãodesta prática: “Proibir este tipo de doação seriabom, já que sabemos da conduta do caixa 2,como no exemplo do escândalo do mensalão,com a banalização do caixa 2, além da situa-ção da corrupção. Se caminhássemos para umasituação de proibição de verba privada seria mui-to mais transparente”.

Brasil atrasadoO tema ‘Financiamento de campanha’ con-

tinuou a ser debatido na segunda rodada de de-bates, com a participação do Deputado PauloRamos (PDT-RJ); do economista Paulo Passari-nho; dos jornalistas Mário Augusto Jacobskind,Presidente da Comissão de Defesa da Liberdadede Imprensa e Direitos Humanos da ABI; eErnesto Müzell Vianna, Diretor do Sindicato dosJornalistas do Estado do Rio de Janeiro.

Paulo Ramos falou sobre a situação do Brasilem relação às regras de financiamento públi-co e privado: “No campo eleitoral integro aquelegrupo que dificilmente encontra alguém dis-posto a financiar a campanha. Dificilmentevamos arraigar as simpatias daqueles que têmdinheiro e dos que pretendem influir e se bene-ficiar com o resultado da eleição. Na democra-cia os partidos políticos são os instrumentosque definem a ocupação do poder. Os eleitos selegitimam através do voto, dos meios para aobtenção do voto e na forma de legislar”.

Paulo Ramos citou uma matéria publica-da recentemente no jornal O Globo, a qualinformava que o custo das campanhas eleito-rais já ultrapassou R$ 3 bilhões. Este fato, disse,demonstra à população que a eleição é muitocara e comprometida: “Os financiadores sãoaqueles que querem interferir nos gastos públi-cos em benefício pessoal. São as empreiteiras,os bancos, os fundos de pensão, as prestado-ras de serviço, os planos de saúde. O financia-mento é privado, mas o dinheiro é público. Elemascara o desvio de recursos públicos. O Bra-sil é um país economicamente pujante, massocialmente atrasado”.

O Deputado comentou que o Brasil é umdos raros países que têm Justiça Eleitoral, aocontrário do que ocorre nas nações desenvolvi-das: “É preciso entender o significado do finan-ciamento público, que possibilitará um contro-le maior e vai oferecer o mínimo de igualdadede condições, já que nós temos campanhas os-tensivas, massacrantes”.

A FICHA LIMPA BARROU2.200 CANDIDATOS NO RJ

A Justiça Eleitoral impugna postulantes de cargos públicos que não têm bons antecedentes.

POR CLÁUDIA SOUZA CARLO

S DI PAO

LA

Modesto: “Quando estive no Congresso sóencontrei lá homens brancos e ricos.

Só havia um negro típico de São Paulo”.

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17JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

O gerador de corrupçãoEm prosseguimento ao debate, Ernesto

Müzell Vianna passou a palavra ao economis-ta Paulo Passarinho, que se mostrou pessimis-ta em relação ao atual cenário político: “Oesquema de financiamento de campanha se dáfundamentalmente através de mecanismosprivados e esse padrão talvez seja o principalfator de corrupção dentro da máquina do Es-tado. Ele cria um vínculo entre o financiador eo beneficiado. As nossas eleições situam-seentre as mais caras do mundo”.

Passarinho ressaltou que do ponto de vistados financiadores existiria uma concentraçãode poucos agentes em relação aos recursostransferidos para os partidos políticos ou paracandidatos. Ele explicou que mais de 90% dosrecursos recolhidos pelos candidatos têm ori-gem em setores muito específicos: bancos,construtoras, empresas das áreas de minera-ção, siderurgia, papel celulose e agricultura,planos de saúde: “Curiosamente, são setoresque para os seus negócios a relação conquistadaé fundamental. Os mandatos vitoriosos poreste tipo de financiamento acabam se vincu-lando a esses financiadores”, disse.

Vianna destacou, também, que o direito devotar e de ser votado se revela dependente dopoder econômico: “Este tipo de deformação nosleva a pensar em como mudar o nosso proces-so eleitoral. Sou pessimista neste sentido. O fi-nanciamento de campanha está vinculado àsmudanças na reforma política, tributária, etc.Elas apenas seriam viáveis no âmbito de umareforma global decorrente de um processo deruptura com o status quo, que hoje não interessaaos políticos dominantes. Não existem meca-nismos por parte da cidadania para que enfren-temos o problema. A idéia de se alterar o padrãoatual de financiamento deve ser vinculada aocapítulo mais amplo da reforma política”.

Na seqüência, Mário Augusto Jacobskindtambém chamou a atenção para o jogo eleitoral,no qual o poder econômico elege os seus candida-tos. Ele considera que está havendo uma despo-litização da política que favorece os financiamen-tos de campanhas. O capital financeiro dita asregras do jogo e prioriza aqueles que vão defenderos seus interesses: “Vivemos em um País de poucamemória, no qual os financiadores de ontem sãoos mesmos de hoje. Para mudar isso precisamosdemocratizar os meios de comunicação e mobi-lizar os setores sociais em pé de igualdade. Sem issoficaremos eternamente criticando este modelo quenos foi imposto pelas elites”.

Mais debatesApós o intervalo para almoço, teve início a

terceira plenária, com o tema O Papel da Mí-dia e da Pesquisa, cujos debatedores foram CésarRomero Jacob, cientista político e professor daPuc-RJ, e Bruno Cruz, Diretor do Sindicato dosJornalistas Profissionais do Município do Riode Janeiro. A mediação foi feita pelo jornalistaVitor Iório, professor da UFRJ e membro daConselho Deliberativo da ABI.

O tema do debate da penúltima mesa foiVoto Nulo e Descrédito do Eleitor, que reuniuModesto da Silveira, jornalista, advogado emembro da Comissão de Ética Pública da Pre-sidência da República; Gisálio Cerqueira, cientis-ta político e professor da Uff; André Fernandes,Diretor da Agência de Notícias das Favelas; e omediador Alcyr Cavalcanti, repórter-fotográfico,Conselheiro da ABI e integrante da Comissão.

A última mesa do encontro abordou o temaA Reforma Eleitoral e o Voto Eletrônico”, com aparticipação do jornalista Osvaldo Maneschy;Jesus Chediak, jornalista, teatrólogo e Diretor deCultura e Lazer da ABI. A mediação foi de Da-niel Mazola, 2º Secretário da Comissão de Liber-dade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI.

“A pesquisa pode contribuir muito para oprocesso de conscientização do eleitor. Quantoaos veículos de comunicação social, infelizmentenão cumprem o papel que deveriam cumprir deampliar o debate político” – afirmou o Diretorda Agência de Notícias das Favelas, André Fer-nandes. “Já a reforma do sistema eleitoral deveriacomeçar por mudanças no próprio TribunalSuperior Eleitoral”, complementa.

Ao abrir a plenária O Papel da Mídia e daPesquisa, o cientista político César Romero Ja-cob, professor da Puc-RJ, fez uma abordagemsobre a série histórica do processo eleitoral noBrasil, comentando a recorrência de fenômenoseleitorais em campanhas para presidente da Re-pública e governador no Rio e em São Paulo, apartir dos anos 1980.

“A série histórica – disse – é um tipo de pes-quisa que faço há muitos anos, que visa a aju-dar a entender a recorrência dos fenômenos. Claroque a política é dinâmica e pode mudar, a par-tir de alianças, dinheiro, uma série de fatores, mashá certa ocorrência de tendências políticas emdeterminados territórios. Por exemplo, a cidadedo Rio de Janeiro não é una, aqui existem vári-as cidades dentro de uma só. E a nossa pesqui-sa é uma contribuição da Puc para ajudar aspessoas a terem um voto mais consciente pelacompreensão das tendências históricas.”

Em relação à função da pesquisa num pro-cesso eleitoral, Romero disse que esta pode con-tribuir muito para a conscientização do eleitor:“A mais conhecida é a de opinião pública, queacompanha a tendência do eleitorado. Comose utilizam em sua metodologia de dados so-bre partidos e candidatos, essas pesquisas aju-dam o eleitor a entender o que está acontecen-do”, disse Romero.

Respondendo a uma pergunta sobre se se-ria possível apontar que candidato do Rio viriaganhar a eleição para prefeito, Romero explicouque não poderia antecipar uma previsão, já queo estudo que ele e o seu grupo desenvolvem naUniversidade não é uma pesquisa de opinião:“Nós não trabalhamos com pesquisa de opinião,o nosso trabalho é feito com base nos dadosoficiais do TRE ou do TSE. O que nós tentamosfazer, após seis eleições consecutivas para pre-sidente e sete para prefeito, é buscar entender arecorrência do fenômeno. Previsões para as pró-ximas eleições eu não tenho, poderia apenaslevantar a hipótese. Eduardo Paes tem grandechance de ganhar no primeiro turno, mas sehouver segundo turno ele pode perder”.

As máquinas partidáriasSegundo Romero, freqüentemente os gover-

nadores não conseguem eleger seus candidatos,sobretudo quando há segundo turno, por umarazão muito simples: “Não é o eleitor que quero equilíbrio, ele não tem essa consciência, masas máquinas partidárias, que preferem que o gru-po do governador não seja hegemônico. Parajustificar a sua tese, Romero usou como exem-plo os casos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes, quedominam a política estadual do Ceará hámuitos anos e nunca conseguiram eleger o pre-feito de Fortaleza. Isso acontece, disse, porque o

conjunto de forças locais da cidade não deseja queo grupo que se mantém na liderança tenhapoderes demais: “A mesma coisa acontecia naBahia, onde Antônio Carlos Magalhães foi o donodo Estado durante anos e não conseguia elegero prefeito de Salvador. Como agora acontece como PT gaúcho, que dominou a Prefeitura de Por-to Alegre por muito tempo, e o seu candidato estáem terceiro lugar. Isso se dá porque as outrasforças políticas não querem que o mesmo gru-po domine as duas instâncias”, argumentou.

Romero mencionou também o caso de Fer-nando Henrique Cardoso e Mário Covas, em SãoPaulo: “Fernando Henrique em 1996 estava noauge do seu poder, tinha o Plano Real e o primeiroorçamento da República. Mário Covas, umnome respeitadíssimo, tinha o segundo orça-mento. No entanto, Serra tem 15% dos votos.O que eu estou tentando explicar é que há umarecorrência de fenômenos”.

Explicou Romero que quando há segundoturno a lógica tem sido sempre o conjunto deforças políticas disponibilizar suas máquinaspara trabalhar contra o candidato do governa-dor: “Sistematicamente ocorre essa tendência,em que as forças políticas locais, que não inte-gram a base de sustentação do governador, ouàs vezes até fogo-amigo, agirem para que o grupodo governador não seja hegemônico. As máqui-nas atuam porque elas agem sobre o território”.

Ele chamou a atenção para um dado impor-tante sobre a conjuntura política do Rio de Ja-neiro atualmente: “Depois de anos de o prefei-to brigando com o governador, e de brigas dogovernador com o presidente da República, hojenão é mais assim. A série histórica mostra quedesde que o Saturnino rompeu com o Brizola, em1987, houve no território fluminense uma su-cessão de prefeitos brigando com os governado-res, e uma seqüência de brigas de governadorescom os presidentes da República. Mas a minhaimpressão é que em um dado momento um con-junto de forças na cidade chegou à conclusão deque era preciso parar de brigar”.

Na opinião do professor da Puc, existe hoje noRio um acordo tácito: o PT nacional reconhece ahegemonia do grupo do Sérgio Cabral, o grupo dogovernador reconhece a liderança do PT nacional.E isso de algum modo mudou a política no Es-tado: “Não julgo se isso é bom ou ruim. Pode estaracontecendo também um esgotamento domaterial humano. O Sérgio Cabral elegeu-segovernador em 2006 e 2010, e o Eduardo Paes foieleito prefeito em 2008, com chances de se reele-ger em 2012. Isso mostra que a geração de polí-ticos que dominou a cena do Rio de Janeiro de 1983a 2008, como Marcelo Alencar, César Maia eGarotinho, pode ter passado, e a passagem degrupos políticos é normal”, afirmou Romero.

O papel da mídiaBruno Cruz, Diretor do Sindicato dos Jorna-

listas do Município do Rio de Janeiro, disse que

para entender o papel da mídia no processo elei-toral é preciso observar o comportamento dosgrandes meios de comunicação de olho no finan-ciamento da publicidade institucional: “A mídiafaz um balanço econômico da fonte de recursos.De onde estiver vindo mais dinheiro é o segmentoque ela vai apoiar. Infelizmente os meios de co-municação não cumprem o papel que deveriamcumprir, que é ampliar o debate político. Não éisso que acontece”, disse.

Bruno Cruz acha que as pesquisas de opiniãosão fundamentais no sentido de que podemorientar os candidatos na condução de suascampanhas: “Mas eu considero muito compli-cada a divulgação das pesquisas nos jornais paraa grande população, porque induz o voto. E issoé importante, porque se trata de opinião polí-tica. Já em relação à mídia, os veículos impres-sos e eletrônicos não fazem campanhas diretaspara candidatos, mas organizam uma forma depensamento. As mídias sociais cumprem umbom papel, mas eu considero que o seu alcanceainda é restrito”.

César Romero disse que, guardadas as devi-das proporções, é preciso desmistificar a influ-ência dos veículos de comunicação nas eleições:“A mídia pode ‘desfazer’ presidente (referindo-se ao impeachment de Collor), mas ela não ele-ge presidente. Há muitos outros grupos que tra-balham em rede. As redes partidárias existem hámuito tempo. Numa eleição para presidentevamos ver na série histórica que existe um Bra-sil dos grotões dominado por oligarquias, ondeprogramas como Bolsa-Escola e Bolsa-Famíliaromperam com a hegemonia das oligarquias emseus próprios redutos. Isto porque são regiõesonde os grandes veículos como O Globo, Veja eCartaCapital não circulam”.

Segundo Romero, a mídia influencia a clas-se média escolarizada: “Por isso o candidato parase eleger precisa ter um discurso convincente,para conquistar a classe média independente, quetem renda própria e não depende de favores dasoligarquias. Mas eu diria que no Rio a mídiaconservadora da cidade, hegemônica, não con-segue se impor em alguns lugares de classemédia. Ela convence o eleitor que já está conven-cido. Quando se olha o Brasil como um todo, éuma falácia dizer que foi a mídia que elegeuCollor. Ela o derrubou, pois tem poder paraderrubar, influenciar o Congresso e até o Supre-mo. Mas a mídia não tem o poder de eleger, porcausa da diversidade do País”.

Disse o cientista político que quem primei-ro percebeu esse processo foi Marcos Coimbrana campanha do Collor, em 1989, quando mon-tou um discurso para convencer a classe médiaescolarizada, fez alianças com políticos popu-listas e pastores pentecostais nas periferias ebairros populares das capitais e nos grotões coma rede das oligarquias: “Cinco anos depois, Fer-nando Henrique Cardoso fez a mesma coisa eganhou a eleição. A história se repetiu em 1998.

POR JOSÉ REINALDO MARQUES

A intervençãoda mídia no

processoeleitoral

Deputado Paulo Ramos, economista Paulo Passarinho e jornalistas Ernesto Vianna eMário Augusto Jakobskind: O poder econômico tem forte influência no jogo eleitoral.

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E o Lula, depois de três derrotas sucessivas seguiuo mesmo caminho e só então foi vencedor”.

No caso da mídia eletrônica, Romero achaque a cobertura da televisão está se tornando maisequilibrada por causa da concorrência. Refletindosobre as propostas que estavam sendo debati-das no Seminário, Vítor Iório disse que nãopoderia deixar escapar a oportunidade de dizerque “a ABI continua sendo uma voz política forteem nosso País”: “Nada mais interessante do queneste momento estarmos começando a discu-tir aqui na ABI a questão das eleições no Brasil.E com certeza isso vai repercutir em muito, sejapor meio do Jornal da ABI ou da TV Brasil, queesteve cobrindo o debate, logicamente porque sãoos canais mais off mídia possível, do ponto devista político”, afirmou Iório.

Não ao voto nuloNa abertura do painel sobre voto nulo e o

descrédito do eleitor com a política, Alcyr Cava-canti lembrou que o Brasil viveu sob duas gran-des ditaduras, a de Vargas e a militar, que, naopinião dele, trouxeram ao processo democrá-tico vícios que o afetam até hoje. “O voto demo-crático é uma arte do cidadão. As mudanças deestrutura só são feitas de duas maneiras: ou pelaforça ou pelo voto. A questão do voto nulo ouem branco é gerada pelo descrédito por parte dasociedade devido aos governantes não terem feitonada em relação aos avanços esperados. Por outrolado, a classe dominante não tem interesse pelamudança; pelo contrário, deseja que a situaçãopiore, enquanto a sociedade de maneira geral estáinteressada em mudança”, afirmou.

Primeiro palestrante dessa plenária, AndréFernandes, Diretor da Agência de Notícias dasFavelas, elogiou a ABI pela realização de um de-bate sobre eleições, e conclamou a direção daentidade a incentivar outros grupos a promovero mesmo tipo de discussão. Fernandes disse quenão aprova o voto nulo e que a população não deveabrir mão do direito de escolher seus representanteslegislativos, mas alerta para a necessidade de oeleitor agir com consciência na hora de votar, paranão correr o risco de eleger pessoas que não este-jam comprometidas com o bem-estar coletivo.

O Diretor da Agência de Notícias das Fave-las disse que até o dia das eleições deveriam acon-tecer outros debates como o que foi organizadopela ABI, para ajudar o eleitor a se conscientizare votar em candidatos que estejam realmentedispostos a se doar para contribuir para a me-lhoria da qualidade de vida do cidadão: “A nossaescolha passa por isso, não votar nulo e cami-nhar no sentido de eleger pessoas que tenhamboas intenções, que não estejam buscando be-nefício próprio, porque a vida pública de umpolítico não pode servir para aqueles que sópensam em se dar bem, amealhar fortunas. Avida pública tem que ser em prol do povo. E apopulação tem que ter o poder de escolher, vo-tar e eleger, mas também de retirar da vidapública o mau político”.

Fernandes disse que o clientelismo e a com-pra de voto são fatores que prejudicam umaeleição limpa e democrática. Contou que umavez pôde observar, com clareza, o quanto o poderpolítico é baseado na questão financeira: “Viuma pessoa ser eleita sem sair de casa, sem queos eleitores conhecessem o candidato. Esse in-divíduo elegeu-se com a doação de cestas-bási-cas e a instalação de um posto de saúde numacomunidade. O tal candidato só foi eleito na vagade um bom político “porque os eleitores que têmmais consciência não foram às urnas, votaramem branco ou nulo e deixaram a eleição nas mãosdaqueles que venderam os seus votos”.

Disse Fernandes ter informações de casos emque os eleitores já estão com seus votos suposta-mente comprados. Por isso ressaltou a importân-cia do debate sobre a disputa de voto em áreas

carentes. Para justificar o seu ponto de vista,contou um caso que presenciou no Morro San-ta Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio: “Con-vidamos para um debate candidatos que já fre-qüentavam o Morro. O nosso interesse era cons-cientizar os políticos de que eles deveriam apre-sentar suas propostas. Em dado momento, tiveque retrucar uma liderança, quando disse que anecessidade imediata do grupo era ganhar um jogode camisas para o time de futebol. Eu fiz ver a essapessoa que ela estava vendendo o seu voto emtroca de uma benesse antes mesmo da eleição”.

Ao final da sua intervenção, André Fernandesdisse que a Agência de Notícias das Favelas secompromete a ser parceira da ABI no lançamento,em eleições futuras, de uma campanha de cons-cientização do eleitorado sobre a importância dovoto: “Trata-se de uma iniciativa para que o cida-dão vote consciente, principalmente nos bolsõesde miséria das favelas do Rio de Janeiro”.

A descrença do eleitorTambém cientista político e professor da

Universidade Federal Fluminense, Gisálio Cer-queira, disse que não compartilha da idéia de des-crédito da população para com a política: “Oque vejo são as pessoas fazendo esforços emmeio a muitas dificuldades para se informa-rem e para se desalienarem. É difícil, não é fá-cil. Não vejo nem descrédito especial ou novi-dadeiro, mas o costumeiro. E também não vejouma campanha pelo voto nulo. Observo o queé de costume nas eleições municipais, que é ovoto pragmático. Um voto que é diferentedaquele que ocorre nas eleições para Presiden-te da República e para Governador”.

Gisálio enxerga no voto pragmático um com-portamento compreensível do eleitor. E chamouatenção para “a penetração do voto dos Muni-cípios”, que no seu entendimento parece deixara descoberto as capitais: “Na mesa anterior levan-tou-se essa questão, que eu achei bem interessan-te, sobre o voto nas capitais como contrapeso dovoto para Presidente da República e Governador.Eu acrescentaria que o voto nas capitais é tam-bém um contrapeso para a concentração do votono interior, ou seja, nos municípios. Outra coisaque observo é que o voto pragmático talvez de-monstre o desgaste de quem está no poder. Su-giro que tenhamos mais atenção com o que estáocorrendo nas capitais em torno da expressãopragmatismo”, argumentou.

Recém-empossado como membro da Comis-são de Ética Pública da Presidência da República,o jornalista e advogado Modesto da Silveira dis-se que o debate realizado na ABI tinha significa-do histórico: “Este evento é histórico porque re-flete a nossa maneira de conquistar espaços edireitos humanos em um mundo que, sobretu-do, viola o direito humano fundamental, a vida,a segurança, a liberdade, a igualdade, os meios desobrevivência e tudo mais que sabemos do enor-

me elenco de direitos humanos pelos quais tan-tos companheiros da ABI vêm lutando”, disse.

Modesto recorreu a uma observação de AndréFernandes sobre o processo eleitoral norte-ame-ricano, para falar da sua visão sobre o sistemade voto naquele país, comparado com o queocorre no Brasil: “Falamos hoje de eleição e voto.Foi lembrado aqui que o processo eleitoral nor-te-americano é opcional, dando a entender quea opção de votar seria mais democrática, porquerespeita um direito humano. Mas nos EstadosUnidos o patrão sabe quem vota em quem e dátrabalho ao empregado no dia da eleição, paraele não ir votar se o voto for para um candidatoque o empregador não apóia. No Brasil o votoé obrigatório, para não permitir que o patrãoimpeça o eleitor de exercer o seu direito, o que émuito mais democrático”, afirmou.

Em relação ao voto nulo, Modesto expressouopinião contrária à do cientista político GisálioCerqueira, que disse que o voto nulo não chegaa ser um grande problema no quadro eleitoral bra-sileiro: “Nós temos gradações de voto. O votonulo, em branco e até a ausência de voto, que équando o eleitor deixa de comparecer à seçãoeleitoral com uma justificativa qualquer. Quan-do somamos essas três situações verificamosque há um peso. Nunca vi uma estatística nessesentido, mas presumo que o impacto não sejapequeno, quando se soma aos votos nulos ebrancos a ausência do voto. Ou seja, o percen-tual daqueles que nem tomam conhecimentoda eleição”, salientou.

Na opinião de Modesto, a descrença dapopulação para com a política é resultado dacomposição do Congresso Nacional, cujo qua-dro não reflete a realidade da maioria da popu-lação brasileira: “Quando eu estive lá comoDeputado, só encontrei homens brancos e ricos,só havia um negro típico de São Paulo entre maisde 500 parlamentares. E esse negro votava con-tra o interesse dele, porque tinha sido eleito pelaArena. Agora entre os machos brancos e ricos fi-guravam banqueiros ou seus lacaios, latifundi-ários ou seus representantes, industriais e gran-des comerciantes ou seus apaniguados e parentesque cumprem fielmente a ordem empresarial”.

Modesto revelou que até hoje lhe perguntamse houve mudança nesse quadro: “Mudar nãomudou, mas ficou menos ruim. Mas se mistu-rarmos as fotos dos Parlamentos brasileiro,norte-americano e francês, ninguém saberá qualé o Congresso do Brasil, da França e dos EstadosUnidos. Isto porque são métodos que dão nomesmo e não foram alterados da eleição gregana Antiguidade até agora. A eleição no Brasil naépoca do Império era mais ou menos parecidacom a dos gregos: somente os ricos tinham di-reito de votar, os chamados homens bons, bran-cos e que tinham muita grana”, lembrou .

Ele disse que é preciso lutar pelo aperfeiçoamen-to que possibilite a igualdade em um processo elei-

toral. Segundo ele, se essa mudan-ça não ocorrer não haverá evolu-ção: “Tem que haver uma abertu-ra para a evolução. E não se podecolocar o operário ou o favelado emdisputa com o banqueiro, industrialou grande comerciante porque elenão vai ganhar. Quem tem mais di-nheiro ganha a eleição e a realidadedos Congressos capitalistas confir-ma essa tese”.

Modesto considera-se otimis-ta, mas sem a ilusão de que hajaavanços rápidos. “É possível evo-luirmos e acabarmos com o des-crédito que leva à prática do votonulo no Brasil”, disse.

Reforma e voto eletrônicoEm seus comentários sobre

reforma eleitoral e eficiência do voto eletrôni-co, o jornalista Osvaldo Maneschy levantouum ponto polêmico ao afirmar que um dos as-pectos mais importantes da reforma políticano Brasil passa pela discussão do papel da Jus-tiça Eleitoral: “A reforma eleitoral deveria come-çar pela própria Justiça Eleitoral”, disse Manes-chy, que lembrou que ela foi criada em 1932 peloentão Presidente Getúlio Vargas para impediro voto cartorial e colocar o processo eleitoral bra-sileiro num estágio mais profissional e acabarcom os vícios da República Velha, período emque, segundo ele, a fraude era uma prática cons-tante nas eleições do País:

“Mas a Justiça Eleitoral perdeu um pouco oseu rumo. Tanto é que na primeira eleição pós-ditadura militar, em 1982, no pleito para gover-nador, nós tivemos uma tentativa de fraude,enquanto o antigo sistema funcionou durantedécadas sem problemas. Não se falava de frau-de. Mas no primeiro pleito pós-regime militartivemos um caso de fraude por meio do uso decomputadores”, afirmou Maneschy, referindo-se ao caso Proconsult na eleição para governa-dor do Rio, em 1982.

Jesus Chediak, Diretor de Cultura e Lazer daABI, fez uma abordagem que ele mesmo clas-sificou como filosófica sobre a reforma eleitorale o voto eletrônico: “Em uma democracia formal,quem garante o poder não são as armas, é o votodo cidadão. Então se o poder emana do cidadãoele é o agente do poder. Eu quero saber para ondevai o meu voto e a urna eletrônica me impede.O Brizola foi ‘assassinado’ pela urna eletrônica,quando se candidatou a Prefeito do Rio, em2000, e para Senador, em 2002”.

Chediak levantou um ponto polêmico: afir-mou que hoje no Brasil vive-se um processomuito perigoso, porque o País “não chegou auma democracia”: “O que ocorre hoje no Brasilcom toda clareza é o seguinte: a eleição foi total-mente entregue ao poder econômico. O candi-dato é um produto; a eleição, um mercado. Ti-ramos o Governo das mãos dos militares, paradevolver para a população. Mas não fizemos isso,porque perdemos para o poder econômico. Achoque, atualmente, nós estamos vivendo o mo-mento mais difícil da nossa História”, disse.

Maneschy ressaltou que é preciso questio-nar a posição do Tribunal Superior Eleitoral de nãopermitir auditoria do resultado das eleições: “AJustiça Eleitoral não permite que nós cidadãospassemos a ter controle sobre esse processo. OJesus filosoficamente matou essa questão: o queantes era feito sob o controle das armas, hoje éfundamentalmente realizado pela urna eletrô-nica e pelos institutos de pesquisa que vendemos dados. A mídia prepara a cabeça das pessoase a urna eletrônica fabrica o resultado!”

Ele chamou a atenção para os riscos de fraudeeleitoral que podem ocorrer nas 450 mil seçõeseleitorais distribuídas por todo o País: “A fraude

André Fernandes (à esquerda) considera que o eleitor deveria poder tirar da vida pública o mau político.César Romero (à direita) pesquisa desde 1980 o comportamento do eleitor no Estado do Rio e São Paulo.

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Uma comitiva de autoridades e de profis-sionais de mídia da cidade chinesa Shenyangvisitou no dia 26 de setembro a ABI, onde foiciceroneada pelo jornalista Sérgio Caldieri,Primeiro Secretário do Conselho Deliberativoda entidade. A Vice-Ministra do Departamen-to de Publicidade do Comitê do Partido Comu-nista da China, He Shu Hua, liderava o gru-po integrado por Ju Baoping, Vice-Prefeito deShenyang; Xu Zengjun, Diretor da Divisão deIntegração do Departamento de Comunica-ção da Prefeitura de Shenyang; Ding Yu Xiu,membro do Comitê para Cultura e Esporteem Rádio e TV; Guan Ronghni, Diretora daLiteral Art Association de Shenyang, e DavidXiang, Assessor de Imprensa do Centro de Co-municação Brasil-China.

O objetivo da visita foi apresentar propos-tas para que, através da ABI, sejam estabele-cidas atividades de intercâmbio nas áreas decultura e comunicação no âmbito Brasil-Chi-na. Na saudação aos visitantes, Sérgio Caldi-eri expôs a relevância histórica da ABI em de-fesa das liberdades, dos direitos humanos e dacultura nacional.

David Xiang, tradutor da comitiva, aplau-diu a trajetória da ABI e destacou a importânciadas relações de amizade na tradição culturalchinesa: “Estou morando no Brasil há mais dedez anos, sempre procurando aprofundar o re-lacionamento com os brasileiros. Na China,antes de pensarmos em negócios, prezamoso sentimento de amizade. Por esta razão esta-mos nos aproximando da ABI”.

Em nome da comitiva, He Shu Hua agra-deceu a oportunidade de conhecer a ABI e fa-lou sobre o atual cenário socioeconômico deShenyang, capital e a maior cidade da Provínciade Liaoning, no Nordeste da China. “A popu-lação de Shenyang é de 8 milhões de pessoas.Somos o principal centro financeiro, tecnoló-gico, científico e cultural do nordeste chinês, etemos muito interesse em estabelecer inter-câmbio cultural com a ABI e o Brasil”, disse aVice-Ministra.

De acordo com o último relatório da Eco-nomist Intelligence Unit, divulgado em julhode 2012, Shenyang é uma das 13 megacidadesemergentes da China. Desde a abertura eco-nômica do país, a região tem registrado eleva-das taxas de crescimento econômico e demo-gráfico. Fundada no ano 300 a.C., sede depalácios imperiais, a cidade acompanha aspráticas globais de sustentabilidade e preser-vação do meio ambiente e desde os anos 1930é um grande centro industrial, com diversifi-cado parque industrial, boa rede de transpor-tes, recursos naturais abundantes e força detrabalho qualificada.

“Achados arqueológicos apontam para as-sentamentos humanos em Shenyang há cer-

uma fortaleza russa após a Revolta dos Boxers(1899-1900), movimento popular antiociden-tal e anticristão na China, que teve início naProvíncia de Shandong. As raízes da revolta es-tavam na pobreza rural e no desemprego, cujaresponsabilidade era atribuída às importaçõesdo Ocidente. Para sufocar a rebelião, foi organi-zada uma força internacional colonialista com-posta por 20 mil soldados russos, americanos,britânicos, franceses, japoneses e alemães.

Durante a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), Shenyang foi palco da Batalha deMukden. Após a vitória japonesa, a concessãode Shenyang foi uma das principais bases paraa expansão da economia japonesa no Sul daManchúria. Foi também a sede do vice-reinochinês das três províncias da Manchúria. Nadécada de 1920, Shenyang foi a capital daManchúria sob o comando de Zhang Zuolin,posteriormente assassinado.

No início do século 20, foram construídasa estação ferroviária da Ferrovia da Manchú-ria do Sul e a estação ferroviária do Norte deShenyang, que viabilizaram a expansão urba-na da cidade e a construção em suas margensde núcleos industriais, tornando Shenyang umgrande centro comercial e industrial.

O Japão explorou os recursos na Manchúriautilizando a extensa rede ferroviária que atraves-sava Shenyang. Em agosto de 1945, forças so-viéticas ocuparam Shenyang, logo após a ren-dição do Japão na Segunda Guerra Mundial.Pouco tempo depois os soviéticos deram lugaraos nacionalistas chineses durante a GuerraCivil Chinesa, no período 1946-1948, quandoShenyang foi um reduto antiesquerdista, embo-ra os comunistas chineses controlassem o entor-no da cidade. Em 30 de outubro de 1948, apósuma série de ofensivas conhecidas como a Cam-panha Liaoshen, Shenyang foi tomada peloscomunistas. No ano seguinte, em 1º de outubro,foi proclamada a República Popular da China.

pode se dar na mesa, no atacado, se alguémmexer no programa da urna eletrônica. Depen-dendo do nível de atuação da pessoa que está in-teressada em fraudar o resultado, a fraude podeser nacional para Presidente da República, oupode ocorrer na votação no varejo”.

Na opinião de Maneschy, o sistema do votoeletrônico foi forjado em 1986, quando foi feitoo recadastramento eleitoral: “O recadastramen-to nacional de eleitores realizado em 1986 per-mitiu que dez anos depois fosse introduzido noBrasil o voto eletrônico. Participei desse proces-so junto à Justiça Eleitoral no Rio de Janeiro enão tinha a menor idéia de que estava colabo-rando para criar esse monstro”.

Destacou Maneschy que foi o Governo nor-te-americano que patrocinou o uso das urnaseletrônicas no Brasil e no Paraguai. O partido doex-Presidente Lugo questionou na Justiça a efi-cácia do equipamento brasileiro, exatamente porcausa de uma série de defeitos que ele apresenta.

A galinha dos ovos de ouroManeschy comparou a urna eletrônica usa-

da no Brasil à galinha dos ovos de ouro: seu usofraudulento pode permitir perfeitamente umaeleição para Vereador, Deputado estadual e fe-deral, e até Senador. Segundo ele, atualmente noBrasil se ganha uma eleição no hd de um com-putador: “Tenho absoluta convicção do que euestou afirmando. Nós vamos ter uma eleiçãodaqui a 15 dias e se não houver fiscalização naseção eleitoral o presidente de mesa, com a aju-da de mesários desonestos, pode votar pelo elei-tor, uma vez que tem em mãos os chamadosdocumentos da urna, que são as listas com onúmero do título de cada eleitor”. Disse Manes-chy que isso aconteceu na eleição de RoseanaSarney para o Governo do estado do Maranhão:“Comprovamos no Maranhão que uma gran-de quantidade de votos para Roseana Sarney foicomputada depois do horário de fechamento daseção eleitoral. Mais de 200 votos foram dadospelo presidente da mesa. Ele pôde votar peloeleitor porque tinha o número do título eleito-ral do cidadão”, afirmou.

Apesar desses problemas, Maneschy disseque não acha que o voto eletrônico seja umequívoco, mas comentou que no Brasil ele foicriado com o propósito de controlar a socieda-de: “O Brizola comparava a urna eletrônica àargola que se coloca no focinho do touro paralevar o animal para onde a gente quiser. Na opi-nião de Brizola, o Brasil era o touro e a urna ele-trônica a argola que se coloca no focinho doanimal para ele votar”, declarou Maneschyprovocando risos na platéia.

Maneschy entende que o povo brasileiro estásendo usurpado no seu direito de conduzir oprocesso eleitoral: “O voto eletrônico é uma coisamoderna, que chegou para que pudéssemossuperar muitas coisas erradas do passado, e umadelas era exatamente a velocidade da apuraçãodos votos. Agora, é fundamental que permaneçaa possibilidade de fiscalização. Atualmente, nomundo inteiro usam-se urnas eletrônicas, masnão com sistemas atrasados e programas supe-rados como os que são utilizados aqui no Bra-sil. Igual aos nossos somente na Índia, que tam-bém já está mudando de sistema”, finalizou.

POR CLÁUDIA SOUZA

Chineses propõem intercâmbioA colaboração se daria em cinema, fotografia, música, dança, artes plásticas, artesanato e comunicação.

ca de 7.200 anos. Hoje, Shenyang é uma cidade-irmã e recebe investimentos de mais de 100países, sendo conhecida também como cidade-floresta, por seu papel de destaque nas questõesrelativas ao meio ambiente. Em Shenyang fo-ram construídos o primeiro automóvel daChina, o primeiro avião e o primeiro robô sub-marino do país”, frisou He Shu Hua.

O conceito de cidade-irmã tem como obje-tivo estabelecer relações e mecanismos proto-colares nos setores espacial, econômico e cul-tural, através de políticas que valorizemlaçosde cooperação.

“Por toda a força e riqueza cultural dos povosbrasileiro e chinês, gostaríamos de promover umintercâmbio bilateral nas áreas de cinema, foto-grafia, dança, artes plásticas, artesanato, músi-ca, comunicação. Temos todas as condições pararealizar este trabalho e o apoio da ABI é muitovalioso”, afirmou Guan Ronghni, Diretora daLiteral Art Association de Shenyang.

Ao final do encontro, He Shu Hua e a comi-tiva entregaram ao jornalista Sérgio Caldieriuma placa comemorativa de saudação à ABI eum dvd com imagens e informações sobre acidade de Shenyang.

HistóriaO nome da cidade Shenyang significa “a

cidade ao norte do Rio Shen” e é derivado donome do Rio Hun, que corta o lado Sul da ci-dade, anteriormente conhecido como Rio Shen.A região foi fundada pelo General Qin Kai, cercade 300 a.C.

Após a queda da dinastia Ming, em 1644, osmanchus caíram sob domínio chinês e a capi-tal foi transferida para Beijing. No entanto,Shenyang manteve considerável importânciacomo a capital anterior e o lar espiritual da dinas-tia Qing, a última dinastia imperial da China.

Com a construção da Ferrovia do Sul daManchúria, Shenyang se transformou em

A Vice-Ministra He Shu Hua entrega ao Conselheiro Sérgio Caldieri uma lembrança da visita à ABI.

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20 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

O mês de setembro foi marcado peloaniversário de um dos mais importantesjornais do interior do Brasil, o Correio Popular,fundado em 4 de setembro de 1927 pelojornalista Álvaro Ribeiro. Principal veículoimpresso do Grupo RAC (Rede Anhangue-ra de Comunicação), ele tem como grandetrunfo a sua forte atuação regional. “Na áreade Campinas, este é o maior, o mais impor-tante e influente jornal em circulação.Com o passar dos anos, consolidou-secomo uma espécie de porta-voz de Cam-pinas e das 19 cidades que integram sua re-gião metropolitana”, avalia Nelson Ho-mem de Melo, Diretor Editorial do Grupo.

Em comemoração ao aniversário, oCorreio Popular circulou no dia 4 de setem-bro com uma edição especial de 40 páginas.“Os leitores podem esperar o que eles jásabem que habitualmente acontece: o jor-nal vive em constante evolução. Até o fi-nal do ano, teremos novidades na internete, possivelmente no início de 2014 passa-remos por uma nova reformulação gráfi-ca e editorial, que fazemos sempre emparceria com o estúdio Cases y Associats,de Barcelona”, adianta Homem de Melo.

O perfil combativo do jornal esteveexplícito desde seu primeiro número, quetrazia aos leitores uma declaração deintenções, em que afirmava, com a grafiatípica da época: “seremos na imprensavigilantes fiscaes da administração pú-blica e zeladores intransigentes do direitocollectivo”. Tal promessa foi concretiza-da ao longo de sua trajetória. Durante aRevolução de 1932, o jornal sofreu seve-ras sanções por ser contrário ao Governoditatorial de Getúlio Vargas. A mesma

A ABI associou-se àcomemoração dos 185 anos defundação do Jornal doCommercio, festejado emsolenidade com a presença demais de 500 convidados noGolden Room do HotelCopacabana Palace, em 1º deoutubro, dia em que o periódicoveio a público pela primeiravez, em 1827. O Jornal doCommercio é o mais antigodiário do País em circulaçãoininterrupta. Antecedeu-o noinício da circulação o Diário dePernambuco, do Recife, criadoem 1825, mas que deixou de serpublicado em vários períodos,por força de embates políticosde que participou.

Durante a cerimônia, oPresidente dos DiáriosAssociados, Álvaro Teixeira daCosta, e o Presidente do JC,Maurício Dinepi, entregaramum troféu comemorativo doaniversário ao Governador doEstado do Rio de Janeiro, SérgioCabral; ao Presidente daempresa Unicafé, Jair Coser; aoPresidente do Grupo Gerdau,Jorge Gerdau Johannpeter; aoPresidente da Light, PauloRoberto Ribeiro Pinto. Tambémforam homenageados o ex-Presidente Luiz Inácio Lula daSilva, a Presidente DilmaRousseff, o Presidente doBradesco, Lázaro de MeloBrandão, o Ministro doSupremo Tribunal Federal LuizFux; o Prefeito Eduardo Paes,representado por seu pai, e aatriz e cantora Bibi Ferreira,representada por sua filha,Tina Ferreira.

Da mesa participaram oconsultor da ConfederaçãoNacional do Comércio de Bens,Turismo e Serviços, ex-MinistroErnane Galvêas, que completava90 anos, os Presidentes ÁlvaroTeixeira da Costa e MaurícioDinepi, o Governador SérgioCabral e o Vice-Governador LuizFernando Pezão, o Presidente doTribunal de Justiça do Estado,Desembargador Manoel AlbertoRebelo dos Santos, e o Presidenteda ABI, Maurício Azêdo.

Referência entre os jornais do interior do País, o combativo diário festejaseu aniversário com edição especial e muitos planos para o futuro.

VEÍCULOS

Correio Popular deCampinas faz 85 anos

POR PAULO CHICO

posição foi mantida durante os anosposteriores ao golpe militar de 1964.Tempos sombrios em que a Redação doimpresso teve atuação marcante em de-fesa da retomada da democracia.

Em entrevista ao Jornal da ABI, Ho-mem de Melo explicou o poder de fogo doconglomerado de comunicação de que éum dos diretores. “O Grupo é integradopor seis jornais diários – Correio Popular, JÁCampinas, Gazeta de Piracicaba, Gazeta deRibeirão, JÁ Ribeirão e Diário do Povo, esteúltimo de propriedade do ex-Governadorde São Paulo, Orestes Quércia até 1996,quando foi adquirido pelo RAC. Alémdeles, temos uma revista – Metrópole, encar-tada no Correio aos domingos, com reporta-gens especiais e informações sobre as prin-cipais atrações das cidades da região –, umaagência de notícias, o portal RAC e o sitedo Correio Popular. Em Campinas, temos130 jornalistas em nossos quadros. A tira-gem atual do Correio é de 34 mil exempla-

res diários. O portal registra a média decinco milhões de visitas por mês.”

Longe de ameaçar a tradicional ediçãoimpressa, a maior atenção dada pelo gru-po às mídias digitais veio somar audiênciae reforçar a imagem de sua principal publi-cação. “A proliferação dos sites de notíci-as fortaleceu ainda mais o Correio Popular.Ao contrário dos jornais de circulação na-cional, que chegam às bancas com boa partede seu noticiário já veiculado na noiteanterior pela internet ou pela televisãoaberta, o Correio tem em suas páginas umgrande percentual de matérias exclusivas,de interesse regional, que normalmentenão fazem parte da pauta da chamada‘grande imprensa’. Nossa presença na in-ternet, atualmente, é feita através do por-tal RAC e do site do Correio, que tambémsofrerão modificações neste mês de outu-bro. As versões online e impressa atuamem conjunto, uma fortalecendo a outra.”

O jornal é um celeiro de talentos, sen-do reconhecido no interior de São Paulopor abrir espaço para novos profissionais.“Quando completei 17 anos, botei umapasta com desenhos debaixo do braço efui para a Redação. Quatro dias depois,minha caricatura do Aureliano Chavesestava na capa. O Correio Popular foi o pri-meiro grande veículo de comunicação aacreditar em meu trabalho, por isso mi-nha gratidão é infinita”, conta o cartunis-ta Dalcio Machado, que também faz tra-balhos para a revista Veja.

Além de Campinas, onde fica sua sede,o jornal circula por importantes cidades daregião, como Americana, Artur Nogueira,Mogi-Guaçu, Mogi-Mirim, Paulínia, SantaBárbara D’Oeste, Sumaré, Valinhos, Vinhe-do, Indaiatuba, Itapira e Jaguariúna – fei-to que garante seu lugar de destaque comoo mais expressivo jornal do interior doPaís. Presidente do Grupo RAC, Silvino deGodoy Neto reafirma o compromisso dogrupo com a população local. “O CorreioPopular hoje é a síntese do que significa otermo jornal regional, uma tendência mo-derna e eficiente de praticar jornalismo,próximo da realidade vivida pela comunida-de da qual faz parte, abraçando as bandeirasconsideradas essenciais para o crescimentosaudável e sustentado da região onde atua.”

COMEMORAÇÃO

A ABI presentenos 185 anos do

Jornal doCommercio

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Dalcio Machado: Primeiro grande veículo de comunicação a acreditar em meu trabalho

Nelson Homem de Melo: O Correio Popularé porta-voz da região de Campinas.

Primeira edição do jornal: “vigilantesfiscaes da administração pública”.

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21JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

ão é tarefa fácil escrever sobre o sa-crifício de jornalistas assassinadospelos poderosos, quer do Governo

e grupos dos “coronéis do sertão”, finan-ciadores de Sindicatos da morte, enquantooutros tiveram um fim de vida miserável.Acrescem, ainda, embustes criados atra-vés de um noticiário que não correspon-de, em absoluto, à verdade dos fatos.

BAUMGARTE, O ESCROQUEUm exemplo típico foi o assassinato do

escroque Alexandre Von Baumgarte, quese infiltrou ao Serviço Nacional de Infor-mações e conseguiu a proteção de determi-nados setores, recomendando-o a órgãospúblicos e particulares para obtenção defarta e cara publicidade destinada à revis-ta O Cruzeiro, que recebia o dinheiro adi-antado e não divulgava o anúncio.

O Cruzeiro, quando célula dos DiáriosAssociados, chegou a vender, por semana750.000 exemplares, teve o título arrema-tado em leilão judicial por 200 cruzeiros,o mesmo acontecendo com o intrépidoCorreio da Manhã, cuja marca foi adquiri-da por 210 cruzeiros, por um grupo depivetes. Chantagistas deste porte nãopodem ser apontados como jornalistas,uma afronta aos brios da categoria.

E claro que o escroque avançou o sinal,ficou sabendo coisas que não deviamchegar ao seu conhecimento e caiu numacilada, cuja autoria intelectual do crimeé atribuída ao General Newton Cruz,outrora senhor todo-poderoso e chefe doServiços Nacional de Informações-SMIem Brasília. Com a sua morte, a socieda-de ficou livre de um chantagista que agiacom o rótulo de jornalista.

Baumgarte foi atraído para uma pesca-ria, levando a esposa e um pescador. Dostrês só o corpo do aventureiro deu à praia,isto em 25 de outubro de 1982.

APULCRO DE CASTRO,O PASQUINEIRO

Outro caso foi o do pasquineiro Apulcrode Castro, que dirigia o imundo O Corsário,que enxovalhava a honra de qualquer cida-dão que não atendesse aos seus processos deintimidação. Apulcro não respeitava nin-guém, inclusive a família Imperial, levan-do-a ao pelourinho. Nelson Werneck Sodré,em História da Imprensa Brasileira, baseadonum estudo de Carl Von Koseritz em Ima-gem do Brasil, traçou o perfil do pasquinei-ro, morto a 25 de outubro de 1883, com setepunhaladas e dois tiros, desfechados por ofi-ciais do 1º Regimento de Cavalaria.

cano, cujo primeiro número circulou noNatal de 1823. Jornalista por excelência,foi a voz rebelde contra o domínio por-tuguês que, no dizer do seu biógrafo MarcoMorel, foi fuzilado porque três carrascosrecusaram enforcá-lo, como consta do li-vro Frei Caneca, editado pela Brasiliensede São Paulo em 1987. Frei Caneca, porter participado da Revolução Pernambu-cana em 1817, foi arrancado do Conven-to e levado para a Casa de Detenção deSalvador, ficando sob os ferrões do temí-vel Conde dos Arcos. Em conseqüência deuma campanha popular pró anistia, lide-rada por Cipriano Barata, a primeira noBrasil, Frei Caneca voltou à liberdade elogo ingressou na Confederação do Equa-dor, lançando o jornal Tifis Pernambuca-no. Ele, que saíra do Recife acorrentado,agora, era saudado como jornalista dopovo, pregando, como narra MarcoMorel, de quem tenho orgulho de ser avô,a luta revolucionária com frases comoesta: “Um Monarca quando incorre nadesconfiança da Nação é imediatamenterepudiado como inimigo interno”.

Defendia os princípios da Confedera-ção do Equador (1824) exaltando Bolívare San Martin. Dominado o movimento,o Presidente da Confederação refugiou-se numa belonave inglesa fundeada noporto do Recife. Pais de Andrade, prote-gido pelos ingleses, soube que Frei Cane-ca organizara uma expedição e rumoupara os sertões em busca de apoio, cain-do prisioneiro no interior da Paraíba.Num processo relâmpago, foi condenadoà morte e fuzilado a 13 de janeiro de 1825.Quem quiser conhecer a verdadeira his-

tória da Confederação do Equador temque ler o livro Pernambuco: da Independên-cia à Confederação do Equador.

Sorte semelhante teve o Padre Moro-ró, redator do Diário do Governo do Ceará,órgão da Confederação e militante daprimeira linha no movimento que em-polgou o Nordeste. O Governo criou umTribunal Especial que mandou fuzilarmais de 150 patriotas, inclusive o PadreInácio Loiola de Albuquerque Melo, co-nhecido apenas por Padre Mororó.

Mororó colocou a mão no coração egritou: “Camaradas, o alvo é este”.

CIPRIANO BARATAOutro jornalista que dignificou a pro-

fissão foi o baiano Cipriano José Baratade Almeida, revolucionário por índole.Preso dezenas de vezes nas fortalezasmedievais, jamais deixou de publicar asSentinelas da Liberdade. O jornal saía como local da edição: Sentinela da Liberdadeda Guarita de Pernambuco, número 9 de 3 demaio de 1823. Eleito deputado pela Corte,deu o seu recado e de volta ao Brasil rei-niciou sua pregação cívica, combatendoo colonialismo e os excessos da Corte, ati-rando a plebe contra a família real quefugira de Lisboa em 1808 com medo decair nas garras das tropas de Napoleão.

O Brasil, no calamitoso período de1808 a 1825 pode ser comparado ao Bra-sil de 1964 a 1979, com as prisões superlo-tadas de presos políticos. Cipriano foienvolvido em vários motins, sendo figu-ra de destaque na Conjuração Baiana. Mes-mo doente e lutando com imensas dificul-dades, jamais deixou de fazer jornalismo,lecionando em colégios, e acabou seus diasem Natal, em 1º de julho de 1838, na maisextrema miséria, e foi sepultado em covarasa. Seu exemplo de revolucionário foiseguido pelo seu bisneto Capitão AgildoBarata, um dos chefes do levante do 3ºRegimento de Infantaria, na Praia Verme-lha, em 27 de novembro de 1935, quandoo quartel foi atacado por terra, mar e ar.

A História, entretanto, não esqueceuCipriano. Seus biógrafos são Nelson Wer-neck Sodré, Caio Prado Júnior, Luís daCamara Cascudo, Marco Morel, João Ca-bral de Melo Neto e Gilberto Vilar de Car-valho entre muitos outros.

HISTÓRIA

Pesquisador incansável, o autor de ABI – A Trincheira da Liberdade levantoua trajetória de jornalistas que perderam a vida no exercício da profissão.

Um texto inéditode Edmar Morel sobreos mortos da imprensa

Escreveu Carl Von Koseritz:“O Corsário, o pasquim que aqui repre-

sentou um papel não destituído de im-portância, não mais existe. Ele foi bas-tante inábil para atacar de maneiraafrontosa alguns oficiais do 1º Regimen-to de Cavalaria e a conseqüência imedi-ata foi que alguns vinte oficiais do mes-mo Regimento invadiram e depredaramas oficinas. O proprietário teve que fu-gir e está até hoje escondido, pois a suavida está seriamente ameaçada. Apenaso carro se afastava vinte pessoas da Po-lícia que os homens acima referidos ocercaram e apesar da tentativa de defe-sa do Capitão Ávila arrancaram dele omulato e o assassinaram com sete faca-das e dois tiros de revólveres. Tudo foraquestão de um momento. O morto se cha-mava Apulcro de Castro e era proprietárioe redator do famoso Corsário, este pas-quim que desde há muito servia do Riode Janeiro como repositório de escânda-los. O atentado não provocou protestos.”

Nelson Werneck Sodré adiantou:“Somente a Folha Nova arriscou alguns

comentários pouco seguros e as suas ofi-cinas tiveram que ser guardadas pela Po-lícia durante as duas últimas noites”.

O Jornal do Commercio, por exemplo,escreveu:

“A repressão pela força era uma neces-sidade imposta pelas circunstâncias e im-possível é evitar os tristes resultados doemprego das armas contra a multidãoamotinada”.

No episódio, inicialmente figurou oCoronel Moreira Cezar como um dos cri-minosos. Anos depois seu nome voltou àevidência, agora como comandante deuma expedição militar liquidada a ferro ea fogo pelos fanáticos de Antônio Conse-lheiro. Nilo Peçanha, da sacada de O Paiz,num meeting improvisado, declarou:

“Moreira Cezar foi vítima do fanatis-mo aliado à politicagem de brasileiros des-naturados”.

O Governo homenageou a memória doCoronel dando seu nome à Rua do Ouvi-dor, que continua sendo Rua do Ouvidor.

Separado o joio do trigo, a Históriatem novas dimensões. Os picaretas nãoeram jornalistas e por isto não podemfigurar como mártires da imprensa. Fo-ram, sim, seus coveiros.

FREI CANECAComeço falando do admirável frade

Joaquim do Amor Divino Ravelo, o bra-vo Frei Caneca, diretor do Tifis Pernambu-

NCipriano Barata: pregação cívica

contra os excessos da Corte.

Frei Caneca: voz rebeldecontra o domínio português.

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22 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

GUSTAVO DE LACERDAChegou o momento de exaltar três

personalidades marcantes na vida jorna-lística do País: Gustavo de Lacerda, Tra-jano Chacon e José do Patrocínio.

Gustavo era um autêntico filho dopovo. Viveu 11 anos dentro de um quar-tel do Exército. Embora não suportasse otambor e a corneta, deixou a tropa noposto de primeiro-sargento, falando eescrevendo corretamente o francês e oportuguês, matérias que foram úteis nasua curta existência. Trabalhou em vári-os jornais, ocupando funções secundáriasaté que em 1884 fundou Meio Dia, quedurou um mês e dois dias, vendido oexemplar por um vintém. Era um peque-no tablóide, com oito páginas, combaten-do o luxo dos gabinetes ministeriais, astransferências por motivos políticos deoficiais do Exército para unidades distan-tes. Bradava contra a escravatura e defen-dia a República. Existe uma coleção com-pleta do Meio Dia na Seção de Obras Ra-ras na Biblioteca Nacional.

Com o fechamento de sua minúscu-la gazeta, de jornal em jornal, deu comos costados em O Paiz, de propriedade doportuguês João Lage, que perdiamilhões nas patas dos cavalos, nasmesas de bacará, levando vida demarajá, enquanto seus redatorese repórteres percebiam saláriosde fome.

Gustavo, por exemplo, que co-bria o noticiário da Prefeitura, ga-nhava 50 mil réis por mês. Só oquarto que ocupava numa cabeça-de-porco perto da Praça Tiradentescustava 20 mil réis. Para equilibraro mirrado orçamento fazia tradu-ções e dava aulas. Não tinha empre-go público e passava por duras pri-vações. Mal alimentado e enfermo,teve desmaios na Redação, sendointernado na Santa Casa de Mise-ricórdia como indigente.

Quando jovem, Lacerda fun-dou o Partido Socialista Coletivis-ta e promoveu várias greves, in-clusive, a dos cocheiros e carro-ceiros, parando o Rio de Janeiro.Escapou de dois atentados e foium dos animadores do CentroOperário Radical. Caiu doente ena enfermaria da mesma Santa

Casa redigiu os estatutos da AssociaçãoBrasileira de Imprensa, fundada a 7 deabril de 1908, com um programa nitida-mente socialista, perfeitamente adaptá-vel aos dias de hoje.

Totalmente abandonado, faleceu namiséria a 4 de setembro de 1909, comoconsta no registro de óbito, “enterradoem veículo número 3, caixão número 3 eem cova rasa”, características de sepulta-mento de indigentes.

O atestado de óbito diz que a causa-mortis foi arterioesclerose. Mentira. Averdadeira foi desnutrição, fome.

PATROCÍNIOQuando o Tigre da Abolição morreu,

em 1905, depois de ter tido o Brasil a seuspés, como jornalista e tribuno, a família,como escreveu seu biógrafo OsvaldoOrico, não tinha sequer dinheiro paracomprar as quatro velas que iluminassemo corpo de um rei que morreu como men-digo. Paradoxal como pareça, o maiortribuno popular do abolicionismo, depoisda Lei Áurea, em 1888, começou sua via-crucis. O que fazia seu jornal Cidade doRio, uma folha de grande penetração popu-lar, era a campanha antiescravagista. Odinheiro para José do Patrocínio não tinhanenhum valor. Esbanjou verdadeiras for-tunas, inclusive na tentativa de construirum dirigível que deveria sobrevoar o Rio.A República, por sua vez, dividiu os abo-licionistas e Patrocínio deixou de ser figuraque empolgava multidões. O jeito foimorar num distante subúrbio da Centraldo Brasil, escrevendo um artigo semanalpara A Notícia para ganhar 20 mil réis.Aquele negro fabuloso, cujo verbo des-truía os grilhões das senzalas, em 1884 emParis, ofereceu um grande banquete a Vic-tor Hugo. Olavo Bilac definiu Patrocínio:

“Quando chegou a hora da erupçãodaquela cólera vingadora, toda a socieda-de estremeceu, abalada, tomada de umacomoção entontecida, nunca houve noBrasil uma voz que soasse tão alto e queferisse tão fundo, que derramasse emtorno uma tão larga torrente de ódios, de

sustos, de maldições, e, ao mesmo tempo,de esperanças e de bênçãos. E a raça negraviu aparecer o profeta esperado, o Messiasanunciando nas eras, dentro de uma tem-pestade de raios e de flores, acendendocóleras, pensando feridas, despedaçandogrilhões, fulminando orgulhos, beijandocicatrizes, ateando a fogueira com que sehavia de purificar o Brasil.”

TRAJANO CHACONEra um jornalista que condenava a vi-

olência e a política caudilhesca de PinheiroMachado, que transformou o Brasil numafazenda de sua propriedade, fazendo doPresidente Hermes da Fonseca uma figu-ra de marionete. Quando estourou a subli-me Revolta dos Marinheiros, em 1910,sob o comando do fabuloso negro JoãoCândido, o Governo, num ato de pussila-nimidade, jogou centenas de marujosanistiados nos porões do cargueiro Satellitepara que muitos fossem fuzilados e outrosvendidos como escravos na Amazônia.

A escolta militar do navio foi confia-da aos Tenentes Francisco Mello, João daSilva Leal e Libânio da Cunha Matos. Deregresso ao Rio, o Satellite, depois de cum-prir a nefasta missão, fundeou no Recife,sede do Governo do General DantasBarreto, chefe político oposicionista dePinheiro Machado, que convidou o Te-nente Francisco Melo para trabalhar emsua Casa Militar. Aureolado pela tristefama de fuzilar marinheiros anistiados ealgemados, o Tenente Melo achou quePernambuco era um campo aberto parasuas novas torpezas. Vivia no Recife ojornalista Trajano Chacon, que fundaraa revista Atenaide e, posteriormente, oPernambuco. Era destemido e defendia asreivindicações populares, fazendo-o comuma coragem inaudita. Seus artigos inco-modavam o General Dantas Barreto e foitramado o seu extermínio: foi assassinadopelo Tenente Francisco Melo à luz do dia,crime que apaixonou a opinião pública eque ficou impune. Ainda hoje o nome deTrajano Chacon é lembrado pelos per-nambucanos, que reverenciam a sua

memória com seu nome dado emruas e praças.

ANTÔNIO DRUMONDEra pernambucano, porém, fez

jornalismo em Fortaleza, no Cea-rá, onde fundou Gazeta de Notíci-as, isto em 1928, salvo engano. Adespeito de ser o Procurador-Ge-ral da Fazenda no Ceará, não es-condia as falcatruas do Governo.Apesar da precariedade do parquegráfico, A Gazeta era um dos órgãosmais lidos pelo povo.

O Governador Matos Peixototinha a sua corte de bajuladores,conhecidos por Maravilhas, entreeles o Juiz de Direito Virgílio Go-mes. Drumond o chamara de que-ratinoso animal com pequenos chi-fres. Que fez o magistrado paralevar a honra ultrajada? Retiroucinco famosos bandidos de cadeiapública, à frente o celebérrimoJosé Colares, autor de 12 homicí-dios, e arquitetou o crime pratica-do na calada da noite, numa ruaquase sem iluminação. O próprio

Juiz comandou a malta que fulminou ojornalista, com mais de 20 tiros. Premidopela opinião pública e imprensa, o magis-trado ficou em prisão especial. Se a revo-lução de 1930 tivesse fracassado ele teriarecuperado a liberdade através do júri Po-pular. Mas, com a vitória da Aliança Libe-ral, o processo foi reaberto e Virgílio Go-mes condenado a 30 anos de prisão. Visi-tei-o várias vezes na medieval cadeiapública, onde centenas de homens apo-dreciam em vida, encarcerados comoferas. Explico minhas visitas. Ele era fre-guês da barbearia do meu pai. Na mocida-de foi barbeiro e na prisão tornou-se tipó-grafo. Morreu no cárcere, no mais com-pleto abandono, tendo apenas como com-panheira a esposa, o pivot do drama.

TOBIAS GRANJAEra um jovem cheio de esperanças e de

futuro promissor. Antes de concluir seucurso de Direito, em Maceió, fez estágiono Diário da Noite e O Cruzeiro, firmandoreportagens de alto nível. Não tinha medoe enfrentava os usineiros alagoanos quesustentavam o Sindicato da Morte, coma mesma bravura com que atacava os “co-ronéis do sertão”, assassinos de indefesoscamponeses. Tentava a reeleição paradeputado estadual. Ao deixar seu escritó-rio em companhia de um filho menor, foimetralhado na Rua do Comércio. O cri-me revoltou o povo e teve repercussãonacional, sobretudo na imprensa, da qualTobias Granja era uma figura querida.Houve um julgamento farsa e os crimino-sos, à custa de muito dinheiro, tiveramuma pena mínima. Tobias não tinha 35anos quando foi executado.

NESTOR MOREIRAChegou a vez de falar sobre o repórter

Nestor Moreira de A Noite, fundada porIrineu Marinho em 1911 e que caiu nasmãos do gangster Geraldo Rocha em1925, o mais audacioso advogado dostrustes internacionais. Reduto de corrup-ção e de toda sorte de negocistas anti-nacionais, no período dirigido por Geral-do Rocha surgiu uma escola de sublitera-dos sob o comando do vazio Berilo Nevese Carvalho Neto, o secretário que nãoescrevia sequer uma notícia de aniversá-rio. Berilo, que era general farmacêutico,se vangloriava de ser o inimigo número1 das mulheres. Tão inimigo que o levoua contrair núpcias com uma filha do Mi-nistro da Fazenda.

A reportagem tinha em Nestor Morei-ra um excelente apanhador de notas, va-rando madrugadas para apurar um casopolicial. Era um inveterado boêmio. Numamadrugada de maio de 1954, compareceuà Delegacia de Polícia da Rua HilárioGouveia, em Copacabana, em companhiade um motorista de táxi, para resolver umproblema de pagamento. De súbito foiagredido a pontapés pelo guarda conhe-cido por Coice-de-Mula, que com o bicofino dos sapatões perfurou os intestinosdo jornalista, cuja agonia no HospitalMiguel Couto emocionou a cidade. Seumartírio durou dez dias e seu enterro foiverdadeira consagração, tendo sido acom-panhado por mais de 10 mil pessoas. Nes-tor, vítima da monstruosidade policial, desimples repórter, após sua morte, passou

Gustavo de Lacerda: morreu de fome.

José do Patrocínio: o Tigre da Abolição.

HISTÓRIA UM TEXTO INÉDITO DE EDMAR MOREL SOBRE OS MORTOS DA IMPRENSA

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a ser um dos mártires da nossa imprensa,sendo nome de rua. Infelizmente era re-pórter de um jornal desmoralizado, umacópia do Diário Oficial e que aplaudia osatos mais ignóbeis do Governo, inclusi-ve, a violência contra os trabalhadores eestudantes.

MÁRIO ALVESMilitante do Partido Comunista Brasi-

leiro Revolucionário, ao lado de Apolôniode Carvalho, saiu cedo de sua casa ao Lar-go da Abolição para nunca mais voltar. Aopassar pela Praça Saenz Pena foi preso pelafamigerada dupla Doi-Codi, sendo vistopela última vez no dia 16 de dezembro de1970, no quartel da Polícia do Exército, naRua Barão de Mesquita, que era o quartel-general da Gestapo Brasileira, onde os pre-sos políticos eram barbaramente espanca-dos até à morte. Os torturadores davam su-miços aos corpos. Vinte anos depois do seuassassinato Dilma, sua viúva, recentemen-te falecida em Niterói, esperou em vãopelo regresso do esposo.

VLADIMIR HERZOGFoi um crime, com todos os requisitos

de crueldade, e que revelou o quanto eraodiosa e odienta a ditadura militar instau-rada no País em 1964, quando o Brasilmergulhou num regime de trevas quedurou 20 anos. Herzog apresentou-se aum quartel do Exército numa manhã de1975, onde deveria prestar depoimento.No mesmo dia o famigerado Doi-Codi

chamou a imprensa para mostrar Herzogenforcado.

A opinião pública repudiou a farsa.Levado pelo clamor público o então Pre-sidente Ernesto Geisel demitiu o Coman-dante do II Exército, em cuja jurisdiçãoocorreu o crime, Herzog foi assassinadoe o mundo inteiro ficou sabendo comoeram tratados os presos políticos brasilei-ros. O corpo foi entregue à família numcaixão lacrado, a fim de que não fossemvistas as marcas das torturas. Soube-se,então, que outros presos tiveram a mes-ma sorte que Herzog e até hoje estãodesaparecidos 153 corpos das vítimas darepressão feitas pelos Doi-Codi, legendaque espalhou a viuvez e a orfandade emcentenas de famílias brasileiras, sem dis-tinção social. Na infame arte de matar, ossequazes dos órgãos de segurança fuzila-ram até mulheres e menores. O Sindica-to dos Jornalistas Profissionais de SãoPaulo instituiu o Prêmio Wladmir Herzogde Anistia e Direitos Humanos, que tivea honra de receber em 1979.

LEON ELIACHARNum exame de consciência não con-

sidero o jornalista Leon Eliachar comomártir da imprensa. Foi vítima de suasaventuras amorosas, assassinado a man-do de um marido traído. Verdadeiro com-plô foi organizado no interior do Paranápara exterminar o humorista. Fui seucompanheiro de Redação, porém, nuncativemos maior relacionamento profissio-nal. Pela primeira vez na História donosso jornalismo, todos os que participa-ram do hediondo crime estão presos e opróprio Delegado de Polícia que armou oesquema foi julgado e pegou 14 anos.

MÁRIO EUGÊNIOO jornalista Mário Eugênio era uma

das figuras mais populares em Brasília,onde diariamente ocupava o microfonenarrando casos policiais e denunciandograves irregularidades na Polícia da Capi-tal Federal.

Eram 6 horas da manhã e ele foi avisa-do de que dois estranhos estavam ematitudes suspeita atrás do seu automóvel.Ele não deu maior importância ao fato eao sair do edifício foi metralhado. Erapreciso fazer calar o jornalista. E para istofoi organizado um complô dentro daprópria Polícia.

O crime abalou a população, e o Go-verno sob pressão mandou abrir inquéri-to e toda a cúpula da Polícia foi ouvida,ficando mais que provado que MárioEugênio foi fuzilado por investigadores.Ninguém foi preso.

PAULO BRANDÃOJornalista paraibano, cujo assassinato

foi tramado no próprio Palácio do Gover-no. Fazia oposição cerrada ao Governo ejá havia recebido várias ameaças de mor-te. Paulo Brandão Cavalcanti Filho chegoua pedir garantias de vida ao então Minis-tro da Justiça. O Governador, na época, foiacusado publicamente de ter sido um dosmentores do crime. O Boletim da ABI, emvárias edições, solicitou providências paraa elucidação do hediondo crime.

A impunidade, como era de esperar,imperou, mais uma vez.

A direção dos Diários Associadosanunciou o fim da versão impressa doDiário de Natal em nota publicada naprimeira página da edição do veículo dodia 2 de outubro. Fundado em 18 desetembro de 1939, o Diário de Natal erao mais antigo jornal impresso na capitalpotiguar, com circulação média de 10 milexemplares, chegando a 15 mil aos do-mingos, dia em que era o único jornal acircular em 95% dos Municípios do RioGrande do Norte. O Diário foi o primei-ro jornal do Nordeste a ser impresso emofsete, a partir de 13 de junho de 1970e o primeiro jornal da região a informa-tizar seus equipamentos.

O fechamento da Redação do veícu-lo impresso foi motivado pela necessi-

Mario Alves: assassinado no Doi-Codi.

Herzog: símbolo da luta contra a ditadura militar.

Após 73 anos, o jornal suspende a sua edição impressa.

Fim de linha parao Diário de Natal

“O Jornal Diário de Natal, a partirdesta data, 02/10/12, deixa de circularem sua versão impressa. De acordo como programa de reestruturação das nossasatividades empresariais no Rio Grandedo Norte, vamos priorizar e ampliar anossa versão eletrônica. Nesse sentido,estamos dando mais ênfase à internet etambém às rádios. Tal decisão, aliás, seenquadra na tendência, de amplitude in-

dade de reformulação das áreas finan-ceira e operacional, disse a nota dosDiários Associados. Em fevereiro pas-sado, último, o grupo empresarial jáhavia descontinuado o Diário de Borbo-rema, com 55 anos de fundação, e ONorte, com 104 anos de história, ambosda Paraíba. A empresa alegou prejuízosda ordem de R$ 2,5 milhões em 2011 eanunciou investimentos em outrasmídias, como internet, TV e rádio.

Com o fim do Diário de Natal foramdemitidos cerca de 40 funcionários. OSindicato dos Jornalistas do Rio Gran-de do Norte-Sindjorn divulgou notacontra as demissões e o fechamento dojornal e assegurou apoio aos jornalistasdispensados. (Cláudia Souza)

Íntegra da nota do Sindjorn“O Sindicato dos Jornalistas Pro-

fissionais do Rio Grande do Norte la-menta profundamente o fim da edi-ção impressa do Diário de Natal,anunciado nesta terça-feira (2) e sesolidariza com os trabalhadores quederam a vida pela instituição. Noscolocamos à disposição destes profis-sionais para quaisquer dúvidas.

Também repudiamos o anúnciofeito para os colaboradores do jornal,através do próprio, mostrando totaldesrespeito para com os que o fazem.

Por se tratar de um número tãoalto de demissões, a empresa nãopoderia ter tomado tal atitude semcomunicar ao sindicato e ao Minis-tério do Trabalho. Por isso estamosprotocolando um pedido de medi-ação de urgência no Ministério doTrabalho para revermos a posiçãodo jornal.

É fato que o formato do jornalis-mo vem mudando nos últimos tem-pos e que é preciso que as Redações seadaptem ao que desejam as novas ge-rações. No entanto, também é possí-vel que com um formato mais opina-tivo e com mais informações fortale-

ça a forma de fazer um jornalismocada vez mais sério.

A notícia da versão impressa doDiário de Natal lembra o que vivemoshá pouco com o Jornal do Brasil. Osdois casos são exemplos de empresasque quebraram pela incompetênciade administrações conservadorasque usaram o jornalismo em benefí-cio próprio.

Aos demais profissionais de jorna-lismo do Rio Grande do Norte lamen-tamos o fechamento de postos de tra-balho e nos colocamos à frente demais uma luta em defesa do jornalis-mo do RN.

Ao sofrermos um ataque deste nomeio da Campanha Salarial não du-videm que este será um dos princi-pais argumentos dos patrões, o quenos obriga a renovarmos nosso dis-curso e pensar em novas estratégias.

Que a competência dos profissio-nais que ainda se encontram por láfortaleça as novas plataformas e nãodeixe morrer 73 anos de história.

Agora, mais do que nunca, sai dochão jornalista do RN!

Diretoria Sindjorn”

Íntegra da nota publicadapelos Diários Associados

ternacional, de se alargar, cada vez mais,as opções eletrônicas, graças aos formi-dáveis avanços tecnológicos.

Aproveitamos a oportunidade paraagradecer aos nossos colaboradores, aosparceiros e ao povo potiguar pela aten-ção que têm dispensado aos nossosveículos, ao longo de muitos anos.

Natal, 02 de outubro de 2012.Diários e Emissoras Associados”

VEÍCULOS

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26 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

LIBERDADE DE IMPRENSA

Desde que o Supremo TribunalFederal (STF) revogou em 2009 a Leide Imprensa (Lei nº 5.250/67), porconsiderá-la inconstitucional, odireito de resposta de quem se senteofendido por veículos decomunicação ficou semregulamentação específica. Asquestões relacionadas ao temapassaram a ser decididas pela Justiçacomum, que julga cada caso com basena Constituição, no Código Civil eem decisões já proferidas portribunais. Atualmente, a Constituiçãoestabelece apenas que o direito deresposta deve ser proporcional aoagravo e ensejar indenização pordano material, moral ou à imagem.

Na Câmara dos Deputadostramitam pelo menos 12 projetos delei que tratam do direito de respostaou de assuntos relativos à liberdadede imprensa. Autor de uma daspropostas (PL 3523/12), o DeputadoAndré Vargas (PT-PR) defende aregulamentação. Na opinião dele, odireito de resposta configura uma“cláusula fundamental” para ademocracia e a proteção da imprensalivre. “É comum pessoas da imprensaatacarem personalidades einstituições e não serem obrigadas adar o contraditório. Depois écomprovada a inverdade, mas aí jápassou”, observa o parlamentar.

Considera o Deputado AndréVargas que o direito deve sergarantido o mais rapidamentepossível e a resposta deve ganhar omesmo espaço da ofensa. “Tem queser dado do mesmo tamanho, naprimeira página, se foi em capa derevista, ou no editorial, por exemplo,no mesmo espaço onde a honra foiatacada”, acrescentou.

Autor da ação que resultou narevogação da Lei de Imprensa, oDeputado Miro Teixeira (PDT-RJ)tem opinião contrária à de AndréVargas. Ele considera que não háqualquer lacuna a ser preenchida euma nova regulamentação do direitode resposta apenas cercearia aliberdade de imprensa. “Aregulamentação beneficiaria apenasas autoridades e pouco influenciaria avida do cidadão comum”, entendeMiro. “Quando se fala de direito deresposta, você fala de autoridadesprivilegiadas que não gostam dacrítica. Para fiscalizar essasautoridades, o povo conta com aimprensa. Sou contrário a qualqueriniciativa que possa significarinibição da imprensa”, afirma odeputado.

Luiz Henrique Georges, proprietário doJornal da Praça, de Ponta Porã, Mato Gros-so do Sul, foi assassinado na tarde do dia4 de outubro, na Avenida Brasil, frontei-ra entre esse Estado brasileiro e o Paraguai,quando seguia de carro para sua residên-cia, junto com seu segurança, conhecidocomo Gordo Veras, que também foi mor-to, e outro funcionário, Ananias Duarte,que foi hospitalizado em estado grave emvirtude dos ferimentos.

Luiz Henrique estava dirigindo umacaminhonete quando foi atingido porpelo menos 20 tiros de fuzil, segundo in-formações do site Conesul News, desferi-dos por dois homens não identificados queocupavam um veículo. Ele era sobrinho doempresário Fahd Jamil Georges, acusadode ser o chefe do crime organizado e dotráfico de drogas na região da fronteira.

Responsável pelo caso, o DelegadoSandro Márcio Pereira, da 1ª Delegacia dePolícia Civil de Ponta Porã, disse que iriaaguardar a recuperação de Ananias Duar-te para obter mais detalhes sobre o crime.

No dia 12 de fevereiro deste ano, Pau-lo Roberto Cardoso Rodrigues, 51 anos,conhecido como Paulo Rocaro, Editor doJornal da Praça, foi morto a tiros de fuzilno mesmo local. A Polícia suspeita que ocrime tenha sido motivado pela publica-ção de matérias de denúncias contra tra-ficantes de drogas. O caso ainda não foielucidado. A Polícia vai investigar se osdois crimes estão relacionados.

A ABI fez no dia 9 de outubro um ape-lo ao Governador da Bahia, Jaques Wagner,para que intervenha junto ao Prefeito deCamaçari Luiz Carlos Caetano, para a ces-sação das ameaças que os correligionáriosdele vêm fazendo à jornalista Ana MariaMandim, que é hostilizada pela indepen-dência do noticiário e das opiniões do jor-nal Jauá Abre o Bico, publicação quinzenalque ela fundou há um ano e meio e que temuma tiragem de 3 mil exemplares, distri-buídos gratuitamente numa cidade queconta com 5 mil habitantes.

O Prefeito Caetano e seus partidáriospassaram a hostilizar a jornalista depoisque o jornal denunciou irregularidadesno processo eleitoral do dia 7 e na gestãoda associação de moradores local. Caeta-no levou à vitória o seu candidato e ago-ra postula em seu partido, o PT, a inclusãode seu nome entre os candidatos à suces-são de Wagner.

Ana Maria Mandim é originária doRio de Janeiro, onde trabalhou no Correioda Manhã e no Jornal do Brasil, e estavaradicada em São Paulo há anos. Como o

Dono de jornal é mortoem Mato Grosso do Sul

Área de riscoLuiz Henrique Georges comprou há

pouco tempo o jornal, único diário da re-gião. Em entrevista à RBV News, Edmun-do Tazza, Editor-Chefe do jornal, disseque a reportagem de capa do dia 5 traziagraves acusações contra um dos candida-tos à Prefeitura da cidade, onde há umaforte disputa partidária. “Não podemosacusar ninguém, já que não há provas, masé muita coincidência este atentado teracontecido logo depois de o jornal terpublicado as acusações.”

A fronteira entre Brasil e Paraguai é con-siderada uma área de risco para a atividadejornalística, “uma zona sem lei e ponto detrânsito importante para o contrabando dearmas e drogas”, segundo dados do Interna-tional Press Institute-IPI divulgados emmarço deste ano. Além de atentados, casosde ameaças de morte são freqüentes, comoas dirigidas ao correspondente paraguaioCândido Figueiredo.

Em 2012, nove mortosCom a execução de Luiz Henrique Ge-

orges sobe para nove o número de jornalis-tas mortos no primeiro semestre de 2012no Brasil, que figura entre os países maisperigosos para jornalistas no mundo. Se-gundo o Comitê de Proteção a Jornalistas-CPJ, o Brasil apresenta índice de impunidadede 75% dos crimes e é o país da América La-tina que registra maior número de mortesrelacionadas à profissão. (Cláudia Souza)

Jornalista ameaçadaem Camaçari, Bahia

seu automóvel ainda tem placa de SãoPaulo, os autores das ameaças a hostili-zam com frases como “Vamos te expulsarpara São Paulo”.

O apelo ao GovernadorA mensagem da ABI ao Governador

Jaques Wagner, idêntica, em essência, àenviada ao Prefeito Caetano, tem o seguin-te teor:

“A Associação Brasileira de Imprensaencarece a intervenção de Vossa Excelên-cia junto ao Prefeito de Camaçari, seucorreligionário Luiz Carlos Caetano, vi-sando à cessação das ameaças à nossacompanheira jornalista Ana Maria Man-dim, editora do jornal Jauá Abre o Bico, aqual vem sofrendo hostilidades por par-tidários seus pela independência do no-ticiário e das opiniões da publicação.Esses constrangimentos caracterizamviolação da liberdade de imprensa e deexpressão, bens jurídicos com que o seupartido está historicamente comprome-tido. Atenciosamente, Maurício Azêdo.Presidente da ABI.”

O direito de resposta,um tema em discussão

Tramitam na Câmara dos Deputados 12 projetos de lei que visam a regulara matéria. O autor da ação que revogou a Lei de Imprensa, Miro Teixeira(PDT-RJ), considera desnecessária a regulamentação legal da matéria.

André Vargas diz que um ritosumário de direito de resposta farácom que o jornalismo seja praticadocom mais responsabilidade no Brasil.Os donos dos veículos, diz, ficariamimunes aos interesses de grupospolíticos.

Para Miro Teixeira basta o que estádefinido na Constituição, além deoutras disposições passíveis deaplicação pelos juízes: “Qualquerautoridade pode convocar umaentrevista coletiva e dizer o quequiser. No entanto, o que elas buscamé o silêncio em torno do seudesempenho. Elas querem intimidar,inibir”, completa.

Na opinião da ABI, o direito deresposta, por ser uma garantiaconstitucional, carece deregulamentação, ainda que aConstituição o defina de forma“precisa e objetiva”. Segundo a ABI,ficariam de fora dessaregulamentação prazos deacolhimento, de recurso ao PoderJudiciário, a dimensão da retrataçãoou a reparação a ser concedida.

A ABI lembra que no Estado doRio de Janeiro o direito de respostatem sido concedido pela Justiça emcombinação com disposições doCódigo Civil (Lei nº 10.406/02), massão raros os processos judiciais emque se reclama a resposta, porquantohá uma preocupação dos veículos decomunicação em evitar a divulgaçãode informações e opiniões quesuscitem a invocação do direito deresposta. Além disso, os veículos dãoacolhida aos pedidos de retificação,exatamente para evitar oquestionamento judicial, afirma.

Contrário à utilização do CódigoCivil ou do Código Penal no processo,o Presidente da Federação Nacionaldos Jornalistas-Fenaj, Celso Schröder,defende a elaboração de uma nova Leide Imprensa, desde que respeite ocidadão e a liberdade de expressão:“As punições com base no CódigoCivil ou no Código Penal trazempenalidades que já estão banidas nospaíses democráticos”, observa.

Uma nova lei sobre a matéria,continua Schröder, não cercearia aliberdade de imprensa. Pelo contrário,protegeria os cidadãos do erro, damaledicência e dos equívocoscometidos pelos jornais.

No entendimento da ABI, umaeventual regulamentação favoreceriaprincipalmente os ocupantes de cargospúblicos, “cuja atuação é objeto depermanente acompanhamento pelosveículos de comunicação”.

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27JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

Em declaração ao portalImprensa, no começo da noitede 26 de setembro, a ABIcondenou a prisão do Diretor-Geral do Google no Brasil,Fábio José da Silva Coelho,efetuada pela Polícia Federal deSão Paulo horas antes pordeterminação do Juiz FlávioSaad Perón, da 35ª ZonaEleitoral de Campo Grande,capital de Mato Grosso do Sul.Além de mandar prender odiretor do Google, o Juiz Peróndeterminou a retirada devídeos considerados ofensivospelo candidato a Prefeito deCampo Grande Alcides Bernal.

A ABI considerou ilegal aprisão de Fábio Coelho, que,como diretor do Google, nãoteve qualquer intervenção nadivulgação das supostasofensas, já que esse site debuscas apenas veiculou no YouTube mensagem deresponsabilidade de terceiros.Quanto a estes, sustentou aABI, não caberia qualquermedida restritiva da liberdadeindividual, nem da liberdadede informação, em respeito àConstituição da República.

Alegou o Juiz Perón que suaordem de prisão, expedida nodia 20, assim como a deretirada do vídeo, não poderiaser descumprida pelo Google.“Se a cada pessoa fosse dadoescolher entre cumprir ou nãouma determinação judicial quelegalmente lhe foi imposta –justificou –, a nossa sociedadeviraria um caos.” O Googlerecorreu da decisão, mas o JuizAmaury da Silva Kublinski, doTRE de Mato Grosso do Sul,indeferiu a apelação.

A prisão do Diretor doGoogle foi divulgada pelaprópria Superintendência daPolícia Federal em São Paulo,que indicou a origem daordem, partida do TRE deMato Grosso do Sul, e suamotivação – crime dedesobediência previsto noCódigo Eleitoral. Informou aPolícia Federal que, por setratar de crime de menorpotencial ofensivo, o Diretordo Google seria liberado apósassinar o compromisso decomparecer à Justiça.

Períodos de disputa eleitoral costu-mam ser quentes. São comuns as batalhasjudiciais e a troca de acusações entre po-líticos. O clima, no entanto, esquentoualém da conta na cidade mineira deMariana, onde o candidato à reeleiçãopelo PTB, o Prefeito Roberto Rodrigues,da coligação “Todos Juntos por Mariana”,entrou na Justiça para tentar impedir acirculação do jornal A Semana. Na açãocautelar, os advogados do chefe do Execu-tivo municipal alegaram que a publicaçãosemanal, cuja distribuição é gratuita, “in-fluencia negativamente a candidatura doatual Prefeito”. Eles pediram a “suspensãodo jornal até a data das eleições”. Em de-cisão, no dia 5 de setembro, o juiz da 171ªZona Eleitoral de Mariana, FredericoEsteves Duarte Gonçalves, negou o pedi-do, destacando a revogação “há tempos”do AI-5 – numa referência ao Ato Insti-tucional emitido pelo regime militar nosanos seguintes ao golpe militar de 1964,com a institucionalização da censuracomo prática do Estado.

“Tanto na primeira quanto na segun-da instância, ou seja, na Justiça de Mari-ana e na Corte do Tribunal Regional Elei-toral de Minas Gerais/TRE-MG, foi ne-gado o pedido e o processo foi arquivado,considerando que o próprio Judiciárioreconheceu que procedemos de maneiraisenta com a cobertura eleitoral. Isso omagistrado expressou na sentença, afir-mando que, ao analisar as edições, nadaviu que pudesse justificar tão drásticamedida. Segundo ele, fora concedido es-paço ‘equivalente’ aos candidatos, o querevelou o intento jornalístico do perió-dico e seu comprometimento com a no-tícia, e não com uma ou outra facção po-lítica”, contou Douglas Couto, jornalis-ta responsável por A Semana, em entre-vista concedida ao Jornal da ABI.

A batalha judicial entre o Prefeito can-didato à reeleição e a publicação, que temgrande repercussão na cidade, foi destaquedas edições 441 e 442. Na primeira delas,que circulou de 13 a 19 de setembro, foieditada ampla reportagem sobre o caso,além do contundente editorial ‘Quem temmedo da verdade?’, texto do qual é possí-vel destacar o seguinte trecho: “Temos,diante de nossos olhos, uma oportunida-de de ouro: a de colocar em pratos limposquem é democrata de fato e quem usa a de-mocracia como bandeira de conveniência.Em franco ataque à liberdade de impren-sa, o nosso inexperiente Prefeito de Ma-riana, Roberto Rodrigues, há apenas seismeses no cargo, demonstra a sua verdadei-ra face ao retirar da gaveta o seu chicotepara tentar trazer à tona a face mais cru-el nos anos de chumbo: a censura”.

Na edição seguinte, com data de 20 a26 de setembro, A Semana voltou a tratardo tema no editorial Perda de Tempo. “Aoinvés de colocar o seu plano de governo

Mais uma da JustiçaEleitoral: a prisão doDiretor do GoogleComo em outros episódios, o

exagero veio do TribunalEleitoral de Mato Grosso do Sul.

Tentativa de censura em Mariana, MGEditor de A Semana, Douglas Couto enviou carta à ABI, na qual

denuncia tentativa de mordaça política imposta pelo prefeito da cidade.

POR PAULO CHICO

na rua, o Prefeito de Mariana, RobertoRodrigues, candidato à reeleição peloPTB, preferiu abrir uma guerra contra ojornal. Lançou uma campanha difamató-ria inútil, espalhando folhetos com infor-mações falsas. Pura perda de tempo. Essaestratégia de campanha, feita por meio depanfletos, é bem a cara de quem está àbeira do desespero. No mês passado, ten-taram difamar um candidato com calúni-as em uma folha espalhada pela cidade. Oque virou? Caso de polícia, crime eleito-ral, com flagrante, registro de ocorrênciae muita sujeira nas ruas”.

Douglas conta como foi o clima elei-toral na cidade. “De fato houve uma sériede abusos e desrespeitos no processo elei-toral em Mariana. Prova disto é a avalan-che de processos judiciais no período.Foram cerca de 45, que chegaram ao TRE-MG e outros tantos julgados e arquiva-dos na Comarca. Alguns casos, mais gra-ves, como denúncia de compra de votos,abuso de poder econômico e fraude empesquisa eleitoral, ainda estão sendo in-vestigados e podem resultar em puniçãoséria. Temos que aguardar.”

O Editor de A Semana chegou a envi-ar documento à ABI denunciando a per-seguição contra a publicação, por ação depolíticos e por membros do judiciário.“Venho comunicar a essa entidade declasse as tentativas de censura. (...) “Oórgão de imprensa apenas veiculou o que,verdadeiramente, é notícia na cidade.Não inventou nada. De mais a mais, aimprensa, que tem, ao meu exame, cola-borado decisivamente para a democracianeste País, não tem que se isentar denoticiar assuntos que, virtualmente, se-jam do desagrado de uma ou de outrapessoa. Críticas são inerentes ao jogodemocrático”, diz trecho da carta.

Com tiragem média de 5 mil exempla-res, A Semana recebeu o apoio de diversasentidades. Em nota, o Presidente da ABI,Maurício Azêdo, felicitou o jornal pela“vitória contra o autoritarismo do Prefei-

to”, que, segundo ele, “constitui vitórianão só do veículo em questão, mas dacausa da liberdade de imprensa no País”.A Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, que reúne os sindicatos de jorna-listas de todo o País, também foi informa-da da tentativa de censura. “A Fenaj e seussindicatos filiados se posicionam semprea favor da liberdade de expressão e deimprensa, fazendo a defesa dos profissio-nais jornalistas”, destacou nota firmadapela Vice-Presidente Maria José Braga.Pela Associação Nacional dos Jornais-ANJ,o Diretor de Comunicação, Carlos Müller,informou que comunicaria o fato à Co-missão de Liberdade de Expressão da enti-dade para providências cabíveis.

Apesar da pressão política, e graças aoapoio de entidades representativas do se-tor e com a devida garantia da Justiça, Dou-glas Couto afirma que o jornal segue emsua rota de independência editorial. “Deverdade, não tivemos que fazer qualqueralteração neste sentido. Pelo fato de eu tertido experiência na grande imprensa, as-sumi a edição de A Semana com o compro-misso de aplicar em Mariana a posturaprofissional adotada na capital. Acreditoque isso tenha assustado alguns políticosaqui do interior, acostumados a pagar pormanchetes elogiosas ou por matérias po-sitivas para sua imagem. Esse tipo de jor-nalismo não nos atende”, afirmou.

Como definiu o editorial de uma dasmais recentes edições de A Semana, o pa-pel da imprensa é, mais do que informar,provocar a reflexão. “Quando damos no-tícia, cuidamos para que ela tenha conteú-do suficiente, de maneira que o leitor for-me a sua própria opinião. Nosso papel aquié fazer oposição, sim, àqueles que queremmesmo é o povo cada vez mais burro einfluenciável. Recorremos ao saudosoMillôr Fernandes para lembrá-lo, SenhorPrefeito, que ‘jornalismo é oposição. Oresto é armazém de secos e molhados’.Gostar da gente é opção, respeitar-nos éum dever. Democracia é isto!”.

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28 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

DIREITOS HUMANOS

Uma sessão marcada pela forte emoçãode duas vítimas de torturas durante a di-tadura militar , Maria Célia de Melo Lund-gren, que vive na Suécia, e Maria Cristinada Costa Lyra, seviciada barbaramentequando tinha 19 anos, levou às lágrimas osque assistiram à 62ª Caravana da Anistia,realizada em 8 de outubro no Armazém daUtopia, na Zona Portuária do Rio de Janei-ro, dentro da programação do FestivalInternacional de Cinema do Rio de Janei-ro. A Comissão de Anistia do Ministérioda Justiça julgou e deferiu então os reque-rimentos de Maria Célia, de Maria Cristi-na e de Daniel Carvalho de Souza, filho deHerbert de Souza, o Betinho.

Na ocasião foi lançado o documentá-rio Eu Me Lembro, dirigido por Luiz Fernan-do Lobo, e produzido por Tuca Moraes,sobre as ações do projeto Caravanas daAnistia nos últimos cinco anos. O docu-mentário mostra como a luta contra aditadura atravessou gerações e ainda élatente, não se restringindo ao passado eao esquecimento.

Paulo Abrão, Presidente da Comissãode Anistia e Secretário Nacional de Jus-tiça, Valquíria Barbosa, Diretora do Fes-tival do Rio, e Luiz Fernando Lobo, que éPresidente do Instituto Ensaio Aberto,formaram a primeira mesa do evento. Val-quíria e Lobo agradeceram a oportunida-de de sediar a 62ª Caravana da Anistia noâmbito de debates e atividades promovi-dos pelo Festival do Rio. Disse Valquíriaque um país que se pretende forte precisapreservar a propriedade intelectual, bemmaior daqueles que trabalham com acultura.“Militei durante muitos anos naépoca da ditadura e reconheço vários com-panheiros na platéia. No Festival do Rionão fazemos apenas cinema de entreteni-mento, mas sim um espaço de discussãoem torno da liberdade de expressão e da de-mocracia no Brasil e no mundo”.

Paulo Abrão saudou os membros damesa e os presentes e destacou a oportuni-dade de realizar a Caravana da Anistia noFestival do Rio como forma de confron-tar o processo de invisibilidade das vítimasda ditadura e empoderar a sociedade naluta contra o esquecimento. “Durante mui-tos anos, e de modo autoritário – disse –,se pretendeu impor o esquecimento à so-ciedade brasileira sobre as graves violaçõesaos direitos humanos. Essa luta em favorda construção da verdade, do reconheci-mento da memória enquanto elementoconstitutivo da nacionalidade do povo bra-sileiro é a luta pelas liberdades e a demo-cracia. Considero o Armazém da Utopiaum espaço de resistência dentro da cidade

dias, antes de chegar da Suécia. É como umturbilhão de sentimentos e idéias confu-sas. Uma ferida aberta e profunda. O quemais fiz na vida foi tentar esquecer, masas memórias voltam e me colocam cara acara com o sofrimento do passado, quedeixou marcas principalmente no corpo,mas também na alma”.

Contou Maria Célia que em 1971 foipresa, torturada e violentada por seu vín-culo com a ALN. “Nunca participei deações armadas, mas sim dando aulas de al-fabetização para adultos em Belo Hori-zonte. Vivi longe de minha família nacondição de exilada, primeiro no Chile,depois na Suécia, enfrentando uma soci-edade, língua e costumes diferentes. Fi-quei impedida de manter contato e darnotícias sobre as amarguras, as tristezase as angústias de uma exilada. Perdi meureferencial e os anos de estudo e de traba-lho no Brasil foram deixados para trás”.

A brutalidade da tortura afetou grave-mente a saúde de Maria Célia, que aindahoje sofre as seqüelas: “Por todo esse tem-po lutei imensamente com problemas desaúde que tinha e ainda tenho em conse-qüência da tortura. Lembro-me ainda dequando um médico sueco, após longo tra-tamento ginecológico ao qual fui subme-tida, diagnosticou que eu provavelmentenunca poderia ter filhos por causa dasseqüelas do estupro na prisão, que resultouem um aborto espontâneo e difícil. Mas,casada com o sueco Lundberg, tive doisfilhos e hoje sou avó. Tenho uma netinha”.

Por insistência de amigos e da família,Maria Célia deu entrada no requerimen-to para a anistia: “Estes terroristas, tortu-radores da ditadura, continuaram a rece-ber os seus salários sem ter de apresentarpedido ou requerimento. Nunca precisa-ram ser julgados pelas torturas físicas e psí-quicas que praticaram contra tantos bra-sileiros jovens e velhos, cujo único ideal erao sonho de fazer um Brasil livre, democrá-tico e justo, onde o direito da expressãolivre seria o direito do cidadão. Os crimi-nosos precisam ser punidos, mas não coma mesma desumanidade que impuseram anós, e sim dentro dos direitos humanos”.

O segundo requerimento analisado pelaComissão de Anistia foi o de Maria Cristi-na da Costa Lyra, que participou do movi-mento estudantil em Brasília e militou noRio de Janeiro junto ao Partido Revoluci-onário dos Trabalhadores. Na época a jo-vem foi designada para trabalhar comooperária. Presa em 1970, foi vigiada pelasagências de informação durante o regimemilitar. Tentou suicídio duas vezes emvirtude do trauma provocado pelas vio-lentas sessões de tortura. Entre lágrimas,Maria Cristina falou sobre o período.

“Pertenço a uma geração que sonhoucom um mundo melhor e lutou de dife-rentes maneiras por uma sociedade justa,igualitária, um Brasil democrático. Essaluta, para muitos de nós, culminou naprisão, onde conhecemos a crueldade, abrutalidade, a tortura. Um jogo perversono qual nem sempre soubemos agir coma astúcia necessária. Muitas vezes, dian-te das armadilhas, oscilamos entre a astú-cia e a ingenuidade. Muitas vezes fomoscoagidos a agir contra as nossas vontadesao sermos colocados diante de cruéis es-colhas de Sofia”.

Citando a escritora Clarice Lispector,Maria Cristina ressaltou a importância doespírito de solidariedade que a incentivoua prosseguir, apesar do sofrimento: “a dorfísica foi ultrapassada por uma grande dormoral que acompanhou alguns de nós portoda a vida. Mas, apesar de todos os infor-túnios, vivemos, muitos de nós, momen-tos de grande esperança e motivo de cele-bração ao encontrarmos, até no ambien-te hostil do cárcere, seres capazes de exer-cer a solidariedade, a bondade, a compai-xão, o amor ao próximo. Até mesmo atra-vés de uma palavra, um gesto, um olhar quenos deram força, que nos prestaram socor-ro. Como disse Clarice Lispector, talvezseja uma das experiências humanas dasmais importantes: a de pedir socorro e, porpura bondade e compreensão do outro,este socorro ser dado”.

No final do seu depoimento, Maria Cris-tina homenageou as pessoas que a acolhe-ram nos momentos de dor: “Quero expres-sar minha gratidão a todos os que me socor-reram, que me deram alento e esperança efortaleceram a minha vontade de viver, emespecial aos médicos do Hospital SouzaAguiar que me atenderam, às enfermeirasdo Hospital Central do Exército, que cui-daram de mim e contaram histórias para eudormir. Às minhas queridas companheirasdo hospital-prisão que me deram tantoamparo, força e alegria: Abigail Paranhos, inmemoriam, Maria Dalva Leite de Castro,Regina Maria Toscano e muito especial-mente o Dr. José Luis Campinho Pereira, inmemoriam, e o Capitão Moraes, que soube-ram ouvir os pedidos de socorro daquela ga-rota de 19 anos, e, por pura bondade, com-preensão e compaixão, estenderam a mão.A eles, a minha mais profunda gratidão”.

O terceiro e último julgamento da 62ªCaravana da Anistia foi o de Daniel Carva-lho de Souza, filho de Irles Carvalho e Her-bert José de Souza, o Betinho, irmão do car-tunista Henfil. Nascido em São Paulo, em 23de outubro de 1965, Daniel exilou-se com ospais em Cuba, em 1968. Voltou ao Brasil em1969 na clandestinidade sem contato comfamiliares e amigos. Até os cinco anos de

Quase 40 anos após serem torturadas, Maria Célia Lundberg e Maria Cristina Lyranarram sob choro convulsivo as sevícias que sofreram durante a ditadura militar.

Emoção e muitas lágrimasna 62ª Caravana da Anistia

POR CLÁUDIA SOUZA

do Rio de Janeiro. A ditadura não sabeconviver com o mundo das artes, da cul-tura e da criatividade”.

O Secretário Nacional de Justiça res-saltou o empenho da Caravana da Anis-tia em construir “a idéia de que o brasilei-ro, a despeito de trabalhos reconhecidosde muitos antropólogos, não é apenas umhomem cordial, um homem ou uma mu-lher do jeitinho, mas um homem e umamulher que sabem resistir e lutar contraum ambiente ditatorial capaz de destruiros nossos irmãos”.

Choro e emoçãoApós essas intervenções, os Conselhei-

ros da Comissão da Anistia Marina da SilvaSteimbruch, Luciana da Silva Garcia, Ca-rolina de Campos Melo, Prudente Melo e,Carol Proner deram início ao julgamentodos três requerimentos. O primeiro casoa ser analisado foi o de Maria Célia de MeloLundberg, graduada em Educação Físicaem 1966 e em Geografia em 1971 pelaUniversidade Católica de Minas Gerais.

Maria Célia, que trabalhou como pro-fessora no Município de Sabará e era mi-litante da Aliança Libertadora Nacional-ALN, foi presa em Belo Horizonte, em 7de janeiro de 1971, juntamente com seuirmão Hervê Melo. Na prisão sofreu tor-turas e violências sexuais praticadas poragentes do Estado. Buscou exílio na Sué-cia e não retornou ao Brasil. Atualmentereside em Lund, Ejdervagen, Suécia. Como eventual deferimento da anistia, aspi-ra a voltar a viver no Brasil.

Muito emocionada, Maria Célia falousobre os momentos dramáticos que en-frentou ao longo de quatro décadas: “Di-fícil é descrever o que senti nestes últimos

Maria Cristina da Costa Lyra: “A dor física foiultrapassada por uma grande dor moral queacompanhou alguns de nós por toda a vida”.

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Chorando muito e levando às lágrimasos que ouviam o seu relato, ora ampara-da para poder prosseguir, Maria Célia deMelo Lundgren fez este depoimento di-ante da Comissão da Anistia:

“Difícil é descrever o que senti nestesúltimos dias, antes de chegar da Suécia. Écomo um turbilhão de sentimentos e idéiasconfusas. Uma ferida aberta e profunda. Oque mais fiz na vida foi tentar esquecer,mas as memórias voltam e me colocamcara a cara com o sofrimento do passado,que deixou marcas principalmente nocorpo, mas também na alma.

Em 1971 fui presa, muito torturada eviolentada. Minha atividade foi perten-cer à ALN. Nunca participei de ações ar-madas, mas sim dando aula de alfabetiza-ção para adultos analfabetos em Belo Ho-rizonte. Depois tive uma trajetória difí-cil. Viver longe da família como exilada,primeiro no Chile, depois na Suécia, en-frentando uma sociedade, língua e costu-mes diferentes.

Como venho de uma família muitounida do interior mineiro, fiquei impedidade manter contato e dar notícias sobre asamarguras, as tristezas e as angústias deuma exilada. Vivi em um desafio e, comomuitos outros brasileiros exilados, tive derefazer toda a minha vida. Perdi meu refe-rencial e os anos de estudo e de trabalho noBrasil foram deixados para trás. Sem nadaa fazer e sem nada a ser aproveitado.

Por todo esse tempo lutei imensamen-te com problemas de saúde que tinha eainda tenho em conseqüência da tortura.Lembro-me ainda de quando um médicosueco, após um longo tratamento gineco-lógico ao qual fui submetida, explicou-me que eu provavelmente nunca poderiater filhos por causa das seqüelas do estu-pro na prisão, que resultou em um abor-to espontâneo e difícil. Mas, casada como sueco Lundberg, depois de vários anos,um milagre aconteceu: descobri que esta-va grávida. Tivemos dois filhos e hoje souavó. Tenho uma netinha.

De muitas formas tenho me realizadona Suécia, embora tenha sido um cami-nho de muita luta constante e dura. Noentanto, sinto que não pude fechar o

“Cara a cara com osofrimento do passado”

“O meu caso é muito diferente e, diga-mos, mais leve em relação aos dois anteri-ores apreciados nesta sessão. Na condiçãode filho de exilado a gente não tem muitahistória. Vamos aonde os pais vão. Vivíamosna clandestinidade, com nome falso. Eu nãosabia o nome certo da minha mãe e do meupai. E não sabia que o meu nome era falso.

Passei o tempo todo mudando de casa,de escola, de amigo. Era uma época em quenão havia Twitter e Facebook. Você sim-

capítulo da tortura e da repressão. Aquivolto porque quero e espero fechar estecapítulo doloroso para mim e minha fa-mília, que também sofreu com o queaconteceu comigo. Meu irmão, Hervê,aqui presente, foi torturado e eu ouvi osseus gritos. Eu era retirada da pequena celaonde estava para o quarto de trabalho dospoliciais, onde presenciei nomes como ode Dan Mitrione, que foi para o Uruguai,provavelmente com as mesmas incum-bências de tortura.

Quero sentir-me, juntamente commeus filhos e com meu marido, livre e semmedo de sentir represálias ao chegar emorar no Brasil. O reconhecimento doEstado pelos crimes cometidos durante aditadura é importante para mim. Por insis-tência de amigos e de minha família bra-sileira e sueca entrei com este processo. Narealidade, originalmente, eu não queriaremexer neste assunto, pois as recordaçõesme reabrem a chaga profunda do mal quefizeram a mim. Nenhuma indenizaçãopode ressarcir nem uma fração milésimado mal do terrorismo que o Estado brasi-leiro causou a mim e a muitos brasileiros,uns que até mesmo foram mortos.

Esses terroristas, torturadores da dita-dura continuaram a receber os seus salá-rios sem ter que apresentar pedido ourequerimento para isso. Nunca precisa-ram ser julgados pelas torturas físicas epsíquicas que praticaram contra tantosbrasileiros jovens e velhos, cujo únicoideal era o sonho de fazer um Brasil livre,democrático e justo, onde o direito daexpressão livre seria o direito do cidadão.Muitos desses criminosos foram promo-vidos e até hoje continuam vivendo comsuas regalias, suas mordomias.

Espero que a tortura física ou psíqui-ca nunca, jamais seja usada contra ne-nhum brasileiro ou qualquer ser humano,independente de sua religião, grupo étni-co ou ideal político. Assim, para que ajustiça seja feita, não podemos esquecerque esses criminosos precisam ser puni-dos, mas não com a mesma moeda, nãocom a mesma desumanidade que impuse-ram a nós, mas punidos e castigados den-tro dos direitos humanos.”

Também muito emocionada, MariaCristina da Costa Lyra fez este relato:

“Pertenço a uma geração que sonhoucom um mundo melhor e lutou de diferen-tes maneiras por uma sociedade justa ,igualitária, um Brasil democrático. Essaluta para muitos de nós culminou na pri-são onde conhecemos a crueldade, a bru-talidade, a tortura. Um jogo perverso e nemsempre soubemos agir com a astúcia neces-sária. Muitas vezes, diante das armadilhas,oscilamos entre a astúcia e a ingenuidade.Muitas vezes fomos coagidos a agir con-tra as nossas vontades ao sermos coloca-dos diante de cruéis escolhas de Sofia. Ador física foi, então, ultrapassada por umagrande dor moral que acompanhou algunsde nós por toda a vida.

Mas, apesar de todos os infortúnios,vivemos, muitos de nós, momentos degrande esperança e motivo de celebraçãoao encontrarmos, até no ambiente hostildo cárcere, seres capazes de exercer a so-lidariedade, a bondade, a compaixão, oamor ao próximo. Até mesmo através deuma palavra, um gesto, um olhar que nosderam força, que nos prestaram socorro.

“A dor moralnos acompanhoupor toda a vida”

Como disse Clarice Lispector, talvez sejauma das experiências humanas das maisimportantes: a de pedir socorro e, por purabondade e compreensão do outro, este so-corro ser dado. Talvez possa valer a penater nascido para que um dia mudamente seimplore e mudamente se receba.

Quero expressar minha gratidão atodos aqueles que me socorreram, mederam alento e esperança, fortalecerama minha vontade de viver, em especial aosmédicos do Hospital Souza Aguiar que meatenderam, às enfermeiras do HospitalCentral do Exército, que cuidaram demim e contaram histórias para eu dormir.Às minhas queridas companheiras dohospital-prisão que me deram tanto am-paro, força e alegria: Abigail Paranhos,inmemoriam, Maria Dalva Leite de Castro,Regina Maria Toscano e muito especial-mente ao Dr. José Luis Campinho Perei-ra, in memoriam, e ao Capitão Moraes,que souberam ouvir os pedidos de socor-ro daquela garota de 19 anos, e, por purabondade, compreensão e compaixão, es-tenderam a mão. A eles a minha maisprofunda gratidão.”

“Filho de exilado nãotem muita história”

plesmente deixava para trás um pequenouniverso e seguia adiante. No Brasil era umpouco mais fácil, mas no exterior, tudo seperde. O que ficou daquela época, talveza parte mais complicada, é você passar 15anos da sua vida sem pertencer àquele lugar.Eu sabia que algum dia, independente deonde eu estivesse, teria de sair dali.

Ao mesmo tempo, mantínhamos umarelação muito forte com o Brasil, com amúsica brasileira, a culinária brasileira.Quando chegava feijão-preto na Europa,saía logo uma feijoada. O disco novo doChico Buarque era enviado para nós ouvir-mos. É uma situação na qual você querestar e não pode, não cria raízes, vínculos,não cria nada. Você tem apenas uma malapronta para a qualquer momento fugir.

Cheguei no Brasil em 1979, tirei nota10 nas provas de Inglês e Matemática enota zero nas provas de Português, His-tória e Geografia. Era assim que a gentechegava. Você precisa reaprender a viver.Hoje eu trabalho em comunicação porconta desta educação diferenciada base-ada na luta pelo Brasil, que hoje em dia,com a Comissão de Anistia, está reescre-vendo a sua história da forma correta, semdeixar o passado cair no esquecimento.”

MARIA CRISTINA DA COSTA LYRA

DANIEL CARVALHO DE SOUZA

MARIA CÉLIA DE MELO LUNDGREN

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DIREITOS HUMANOS

Morto na Guerrilha do Araguaia em25 de dezembro de 1973, o ex-DeputadoMaurício Grabois, nascido em São Paulo,é agora cidadão do Estado do Rio de Janei-ro, por ato da Assembléia Legislativa doEstado, que aprovou proposta com esse fimformulada pelo Deputado Paulo Ramos(PDT). A entrega do diploma de Cidadão,em sessão solene, no dia 2 de outubro,integrou as comemorações do centenáriode nascimento de Grabois, que foi depu-tado à Assembléia Nacional Constituintede 1946 e era o comandante militar daGuerrilha do Araguaia quando foi aprisi-onado e executado pela tropa do Exérci-to que o rendeu.

À mesa de honra da sessão tiveram as-sento a filha de Grabois, Victoria Grabois,que é Presidente do Grupo Tortura Nun-ca Mais do Rio de Janeiro; Elizabeth Sil-veira, diretora do Grupo; Suely Belato,Vice-Presidente da Comissão de Anistia doMinistério da Justiça; Rosa Cardoso, mem-bro da Comissão Nacional da Verdade; asocióloga Maysa Santana, que foi aluna deGrabois no curso de Ciências Sociais daantiga Faculdade Nacional de Filosofia-FNFi, e Carlos Henrique Tibiriçá, Presi-dente da Fundação Maurício Grabois. AABI fez-se representar no ato por seuPresidente, Maurício Azêdo, como home-nagem a esse antigo associado: Grabois foijornalista e editor na clandestinidade dojornal A Classe Operária, órgão do Parti-do Comunista Brasileiro-PCB, do qual elese afastaria para fundar em 1962 oPCdoB, ao lado de João Amazonas e ou-tros dissidentes do PC.

Ao agradecer a manifestação da As-sembléia e a iniciativa do Deputado PauloRamos, Victoria Grabois fez comovidorelato sobre a vida do pai, que foi o pri-meiro parlamentar a ocupar a tribuna da

O Juiz Márcio Martins BonilhaFilho, da 2ª Vara de Registros Pú-blicos de São Paulo, determinouem 24 de setembro a retificação noatestado de óbito do jornalista Vla-dimir Herzog, assassinado nas de-pendências do Doi-Codi de SãoPaulo, em 25 de outubro de 1975.

A partir da decisão da Justiça, noatestado de óbito de Herzog deve-rá constar que “a morte decorreude lesões e maus-tratos sofridos nadependência do 2º Exército emSP”. Como se trata de uma decisãoem primeira instância a Promoto-ria de Justiça, contrária à medida,poderá recorrer.

Em seu despacho, reproduzidopelo jornal O Estado de S.Paulo, oJuiz Márcio Martins Bonilha Fi-lho exalta a ação da Comissão daVerdade, destacando que “contacom respaldo legal para exercer di-versos poderes administrativos epraticar atos compatíveis com suasatribuições legais, dentre as quaisrecomendações de adoção de me-didas destinadas à efetiva reconci-liação nacional, promovendo a re-construção da História”.

Preso em 25 de outubro de 1975,Herzog foi levado para ser interro-gado no Doi-Codi do 2º Exército, nacapital paulista. Ele foi torturado emorto na cela por agentes da dita-dura militar (1964-1985), mas aversão oficial foi de que cometeusuicídio, enforcando-se em sua cela.No laudo assinado pelo médico-le-gista Harry Shibata está registradoque Herzog morreu “por asfixiamecânica”, explicação técnica paraenforcamento.

A determinação da Justiça aten-de a uma solicitação da ComissãoNacional da Verdade e foi assinadapelo coordenador do órgão, Minis-tro Gilson Dipp. O pedido foi for-mulado por Clarice Herzog, viú-va do jornalista.

Ao jornal O Estado de S.Paulo oadvogado e membro da Comissãoda Verdade José Carlos Dias disseque a decisão da Justiça terá gran-de repercussão, porque existemmuitos casos semelhantes ao deHerzog: “Nós já estamos estudan-do vários outros casos para encami-nhar à Justiça. A decisão de agoraconfirma que estamos no rumo cer-to”. (José Reinaldo Marques)

idade usou o nome falso de Mariano. Aos seisanos, seguiu com a mãe para o Chile, ondepermaneceu durante 28 dias e, em seguida,partiu para a Suécia. O retorno ao Brasilaconteceu em 1979, após a anistia.

Daniel passou a infância e parte dajuventude na clandestinidade em virtu-de da perseguição política a seus pais, jáanistiados pela Comissão do Ministérioda Justiça. Ele recordou a angústia dos 15anos vividos na clandestinidade e a au-sência de perspectiva em relação ao futu-ro: “O meu caso é muito diferente dosdois anteriores apreciados nesta sessão.Na condição de filho de exilado a gentenão tem muita história. Vamos aonde ospais nos levam. Vivíamos na clandestini-dade com nome falso. Eu não sabia osnomes certos da minha mãe e do meu paie também não sabia que o meu nome erafalso. Passei o tempo todo mudando decasa, de escola, de amigo. A única certe-za era de que algum dia, independente deonde eu estivesse, teria de sair dali”.

Apesar de viver em outros países, a fa-mília Souza cultivava laços estreitos como Brasil: “Mantínhamos uma relaçãomuito forte com a música brasileira, aculinária brasileira. Quando chegava fei-jão-preto na Europa, saía logo uma feijo-ada. Quando Chico Buarque lançava umnovo disco, era enviado para nós. É umasituação na qual você quer estar e não pode,não cria raízes, não cria vínculos, não crianada. Você tem apenas uma mala prontapara sair dali a qualquer momento”.

O retorno ao Brasil foi uma experiên-cia marcada pelo reaprendizado, descre-ve Daniel: “Quando voltei ao Brasil em1979, tirei nota 10 nas provas de Inglêse Matemática e nota zero nas provas dePortuguês, História e Geografia. Vocêprecisa reaprender a viver. Se hoje eu tra-balho em comunicação é por conta des-ta educação diferenciada, baseada na lutapelo Brasil, que hoje em dia, com a Comis-são de Anistia, está reescrevendo a suahistória da forma correta, sem deixar opassado cair no esquecimento”.

Paulo Abrão salientou que a concessãode anistia aos filhos dos perseguidos sejustifica por eles terem enfrentado situ-ações de privação de seus direitos funda-mentais.

O documentário

Logo após a sessão da Caravana daAnistia, o público foi convidado a parti-cipar do lançamento de Eu me Lembro, queapresenta a luta dos perseguidos políticospor reparação, memória, verdade e justi-ça através de entrevistas, imagens de ar-quivo da Comissão da Anistia do Minis-tério da Justiça, incluindo julgamentosde processos de anistia, como os de Glau-ber Rocha, José Celso Martinez e CarlosMarighella, além de acervos pessoais.

O documentário recebeu recursos daprimeira chamada pública do projeto Mar-cas da Memória, que reúne depoimentos,sistematiza informações, fomenta e finan-cia ações culturais relacionadas à anistia,como exposições e documentários.

Produzido pelo Instituto de Estudosdo Trabalho e Sociedade-Iets, organiza-ção da sociedade civil de interesse públi-co-oscip do Rio de Janeiro, o projeto foiproduzido entre 2010 e 2012.

Justiça alteraatestado de óbitode Herzog: elefoi assassinado

Cai por terra, quase 40 anosdepois, a farsa montada pelo

Doi-Codi de São Paulo

Executado em 1973 noAraguaia, Maurício Grabois

ganha cidadania do RJProposta pelo Deputado Paulo Ramos (PDT), a homenagem integrou ascomemorações do centenário do líder militar da Guerrilha do Araguaia.

Assembléia Constituinte de 1946 e pas-sou grande parte de sua existência naclandestinidade. Ela se emocionou aorelembrar que só conviveu com o paidurante a adolescência, e assim mesmopor pouco tempo.

Assim como outros oradores, entre osquais dois sobrinhos netos de Grabois,Carlos Henrique Tibiriçá e Suely Belato,Victoria Grabois apontou a criação daComissão Nacional da Verdade comoresultante da luta de muitos anos de ins-tituições da sociedade civil, como o Co-mitê Brasileiro pela Anistia e o próprioGrupo Tortura Nunca Mais. Ela reclamoua abertura dos arquivos da ditadura mili-tar, para identificação dos agentes doEstado que mataram centenas de presospolíticos, apuração das circunstâncias emque esses crimes foram cometidos, quaisforam os mandantes e quais as vítimas.

Sempre com forte emoção e indigna-ção, Victoria Grabois lamentou a impu-nidade dos torturadores, como o MajorLício Augusto Maciel, atualmente refor-mado, que confessou num livro que ma-tou seu irmão André Grabois, jovem co-mandante de um dos destacamentos daGuerrilha do Araguaia, e mais três guer-rilheiros. Contou Victoria que numa au-diência do processo criminal aberto con-tra ele por esses crimes, Maciel ofendeua juíza e xingou o então Presidente Lula.Disse Victoria que ele deveria sair presoda audiência, mas nada lhe aconteceu.

Em homenagem a Grabois, que erajudeu, o coral da sociedade israelita Scho-lem Aleichem interpretou um hino daresistência judia ao nazismo, a cançãoGrandola, Vila Morena, senha para a defla-gração da Revolução dos Cravos em Por-tugal, em 1974, e, encerrando a sessão, ohino A Internacional.

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ARTESDefesa falha com as vítimasFernando de Castro Lopes, do jornalCorreio Braziliense, de Brasília, DF

ESPECIALFilho da RuaLetícia Duarte, do jornal Zero Hora, dePorto Alegre ,RSMenção honrosa - Direito à infânciaCleomar Almeida, de A Redação, deGoiânia, GO

FOTOGRAFIAO amor é o dom maior! AmeFrancisco França, do Jornal da Paraíba, deJoão Pessoa, PBMenção honrosaMutilado na guerra do crackSeverino Silva, do jornal O Dia, do Rio deJaneiro, RJ

INTERNET“Depois que comecei a estudar, nãovejo mais grades”, diz preso de SãoPaulo que faz pedagogiaCamila Rodrigues, do UolMenção honrosaUm navio estacionado na porta de casaYan Boechat, do IG

JORNALQuando a ditadura entrou em campoMurilo Rocha, de O Tempo, de BeloHorizonte, MGMenção honrosa - Dossiê CurióIsmael Machado, do Diário do Pará, deBelém, PA

RÁDIOCrimes contra indígenas na ditaduraMaíra Heinen, da Rádio Nacionalda Amazônia, de Manaus, AMMenção honrosa - À espera de um larRenata Colombo, da Rádio Gaúcha, dePorto Alegre, RS

REVISTAEspecial Comissão da VerdadeDébora Prado, da Caros Amigos,de São Paulo, SPMenção honrosa - Guarani-Kaiwá: Ogenocídio silencioso de um povoSandra Alves, de O Mensageiro de SantoAntônio, de Santo André, SP

DOCUMENTÁRIO PARA TVCrimes da ditaduraConchita Rocha, da TV Brasil/EBCMenção honrosa - A mão de obraescrava urbanaBianca Vasconcelos, da TV Brasil/EBC

REPORTAGEM PARA TVCaso Rubens Paiva: Uma históriainacabadaMiriam Leitão e Claudio Renato, da GloboNewsMenção honrosa - Liberdade aprisionadaEliana Victorio, da TV Tribuna/RedeBandeirantes, de Recife, PE

Quando a idéia de criar um prêmio deimprensa que denunciasse a repressão ecarregasse o emblemático nome de Vla-dimir Herzog ganhou forma e finalmentese tornou possível no Brasil, ainda em1978, participar dele era visto como umato de coragem e um desafio ao Governo.O País estava sob as sombras da ditaduramilitar e a sociedade clamava por justiçae por liberdade. Ter um trabalho selecio-nado para disputá-lo era como fazer partedessa História, aliás, escrevê-la. Passadosmais de três décadas, o cenário nacionalé outro. Hoje, a nação experimenta umregime democrático e não há cerceamen-to da informação. Mas concorrer ao tro-féu “Vlado Vitorioso” continua sendo tãoimportante e prestigiado quanto no pas-sado. São inegáveis os avanços durantetodo esse tempo, mas o clamor pela cida-dania, pela justiça social e por direitosbásicos continua e a premiação tornou-se um ícone dessa luta. Mais do que umalembrança, essa foi a certeza que marcoua divulgação dos vencedores da 34ª edi-ção do Prêmio Vladimir Herzog de Anis-tia e Direitos Humanos, em São Paulo, nodia 10 de outubro.

A recente instauração da ComissãoNacional da Verdade e a determinaçãojudicial da correção do atestado de óbitode Vladimir Herzog, com o reconheci-mento de seu assassinato pela repressão,deram ainda mais destaque ao anúncio dosvencedores nas nove diferentes catego-rias: Artes – ilustrações, charges, cartuns,caricaturas e quadrinhos –, Fotografia,Jornal, Internet, Rádio, Revista, Docu-mentário para TV, Reportagem para TVe Especial, que engloba todas as mídias eneste ano teve como tema “Criança emsituação de rua”.

“Este ano, tivemos um recorde de ins-crições, com 545 trabalhos. Há materiaisde muita qualidade e chama a atenção ofato de os vencedores estarem espalhadospor todo o País e serem tanto veteranoscomo jovens. Quer dizer, a geração maisantiga continua produzindo coisas rele-vantes, mas as novas estão indo pelomesmo caminho”, analisa Ana Luísa Za-niboni Gomes, Diretora da empresaOboré e uma das organizadoras do prêmio.

A 34ª edição do prêmio foi organizadapor onze instituições: ABI, AssociaçãoBrasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji, Centro de Informação das NaçõesUnidas no Brasil-Unic Rio, Comissão Jus-tiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo,Escola de Comunicações e Artes da Univer-sidade de São Paulo- Eca-Usp, FederaçãoNacional dos Jornalistas-Fenaj, Fórum dosEx-Presos e Perseguidos Políticos do Estadode São Paulo, Instituto Vladimir Herzog,Ordem dos Advogados do Brasil-Seção SãoPaulo, Ouvidoria da Polícia do Estado de SãoPaulo e Sindicato dos Jornalistas Profissio-nais no Estado de São Paulo. Essas entidades

tiveram a tarefa de analisar cada trabalhoem um processo de avaliação que tambémtrouxe novidades. Este ano, a avaliação foirealizada em duas etapas, o que qualificouainda mais a escolha dos vencedores. Naprimeira, observou-se a qualidade técnicae jornalística do material. Na segunda, va-leu o ineditismo e a relevância para os di-reitos humanos e a democracia.

Anúncio na praçaA preocupação de usar o prêmio como

inspiração para os jovens jornalistas e paraos estudantes é antiga entre as entidadesque o promovem. Para fomentar aindamais isso, na atual edição, ao fazer a ins-crição de seu trabalho, o jornalista preci-sou desvelar seu processo de produção. Ouseja, escrever uma espécie de making offda matéria, contando como nasceu a pauta,como se deu sua apuração, de que forma foifeita a reportagem e como foi seu trabalho.Algo que, na opinião dos organizadores,pode dar mais elementos para se descobrircomo é feita uma boa reportagem.

“Estamos acostumados a ver o produtofinal e ignorar seu processo de construção.Essa apresentação não apenas dá uma novavisão ao júri, também incentiva a reflexãode quem tem contato com o material. Ecada vez mais podemos ver que o jornalis-mo brasileiro continua pujante e comvitalidade, não restrito apenas às grandesempresas ou a um centro ou outro”, observaJosé Augusto Camargo, o Guto, Presiden-te do Sindicato dos Jornalistas Profissio-nais no Estado de São Paulo, comentandoa relação dos vencedores.

Reconhecer a importância do trabalhoe inspirar, também foram critérios usadospara escolher a entrega do Prêmio Especi-al. Desde sua concepção, o Vladimir Her-zog já previa homenagear profissionaispor serviços relevantes à causa da demo-cracia e da justiça social ou por suas carrei-ras, mas esta categoria só foi instituciona-lizada em 2009. Dessa vez, no entanto,dois nomes foram escolhidos para seremagraciados com a distinção. O primeiro é

o do jornalista, professor e escritor AlbertoDines, dono de uma carreira de mais de 60anos em alguns dos principais veículosnacionais e criador do site Observatórioda Imprensa, o primeiro noticiário deanálise e crítica da cobertura da mídia. Ooutro é o do jornalista Lúcio Flávio Pinto,homenageado pelas denúncias que faz emseu Jornal Pessoal, em Belém, no Pará. Semse intimidar com ameaças, processos ecensura imposta pela Justiça paraense, elemantém uma publicação independente ecom cunho investigativo e de denúncia.

A última sessão do júri do Prêmio Vla-dimir Herzog foi realizada nas dependên-cias da Câmara Municipal de São Paulo etransmitida em tempo real pela internet.Logo após, os representantes das entidadesorganizadoras deixaram o Palácio Anchi-eta e se dirigiram até uma praça ao ladopara fazer o anúncio dos ganhadores. Foiuma forma de valorizar outra iniciativa,essa da Comissão Municipal da Verdade,que também se chama Vladimir Herzog, eda Câmara de Vereadores.

Atualmente chamado de Praça da Di-vina Providência, esse espaço será refor-mado nos próximos meses e ganhará umaescultura “Vlado Vitorioso”, do artistaElifas Andreato, em bronze, medindo 2,2metros de altura, e um mosaico reprodu-zindo a tela 25 de Outubro, conhecidacomo a “Guernica Brasileira”. Finalmen-te, no dia 13 de dezembro, aniversário doAto Institucional número 5, será entre-gue renovada e renomeada como PraçaVladimir Herzog.

“Esse é mais um passo nessa caminhadapela cidadania. Uma caminhada feita dia-riamente e da qual cada edição do prêmiofaz parte. Não tenho dúvidas de que, por seucaráter e mensagem política, hoje o Vladi-mir Herzog é o principal prêmio do jorna-lismo brasileiro. Os ganhadores não rece-bem dinheiro nem são considerados melho-res profissionais que os outros, mas ajudama mudar o País e continuam a reescrever suahistória”, afirma Nemércio Nogueira, Dire-tor do Instituto Vladimir Herzog.

Mais que um prêmio, um símbolo

POR MARCOS STEFANO

A 34ª Edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos registra recorde de inscrições: apresentados 545 trabalhos.

Os ganhadoresdo 34º Prêmio

Vladimir HerzogD

IVULG

AÇÃO

A última sessão do júri do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos se reuniu no dia10 na Câmara Municipal de São Paulo e o evento foi transmitido em tempo real pela internet.

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onversar com Sylvio Back é qua-se tão interessante quanto assis-tir a seus filmes. Nascido em Blu-menau em 1937, além de cineas-

ta, ele é também jornalista. E é com faro derepórter, e a paixão típica dos historiado-res, que este catarinense planeja, produz,filma e divulga suas obras. Provocativo, emseu novo filme, O Contestado – Restos Mortais,que trata dos bárbaros conflitos ocorridosnas divisas entre Paraná e Santa Catarina, noinício do século passado, o diretor propõe aderrubada de fronteiras. Adota uma inédi-ta e inusitada linha narrativa para seu do-cumentário: a fala de médiuns em transe.

“A inserção do relato dos médiuns noâmago do filme, e que perturba e conturbaseu fluxo, serve justamente para borrar asfronteiras draconianas entre documen-tário e ficção. Essa proposta, premedita-damente procurada e já bem recebida porpúblico e crítica, por enquanto apenasem festivais, é uma das claves que empres-tam a amperagem polêmica do filme. Eque melhor lhe definem o torque revisi-onista do tema face às minhas convic-ções como homem e artista”, explica eleque, nesta entrevista ao Jornal da ABI, fazum detalhado resgate das batalhas. E, sempapas na língua, duras críticas ao papeldesempenhado pela imprensa da época,que minimizou ao máximo a relevânciapolítica e a gravidade dos conflitos.

Sylvio não tem medo de críticas. Curi-osamente, iniciou suas atividades no Jorna-lismo exatamente na função de crítico decinema – antes mesmo de tornar-se cineas-ta. Houve quem já tenha ridicularizado a‘narrativa mediúnica’ proposta pela obra.Mas não é isso que move ou preocupa odiretor. “O fato é que, ao longo das pesqui-sas, tomamos consciência do quanto oContestado vem sumindo na memória daspessoas, reforçado pelo fato de que nos li-vros didáticos essa verdadeira revolução nossertões do Sul do Brasil é citada com meiadúzia de palavras, quando não inteiramen-

POR PAULO CHICO

Entre a ficção e a realidade, cineasta apela para médiuns nanarrativa de seu novo documentário, O Contestado – Restos Mortais.

DEPOIMENTO

te esquecida entre os grandes perrenguessociais que tumultuaram a Primeira Repú-blica. Minha proposta neste filme é provo-car o público. Fazê-lo pensar se deve ou nãoacreditar naquilo que vê. Eu faço um cine-ma moral que desconfia!”, diz.

O Contestado – Restos Mortais, será lan-çado neste 2012 como celebração dos100 anos simbólicos do conflito, comple-tados em 22 de outubro, data do Comba-te do Irani. “Ainda que seja um antidocu-mentário – eu diria mais, um ‘docudrama’– pela inédita presença do testemunhomágico, é nessa linguagem iconoclastaque deposito todas as minhas fichas nosucesso. De outro lado, em se tratando deum espetáculo, a imponderabilidade é amelhor e mais fiel companheira de umaobra de arte”, constata Sylvio Back. Suces-so ou fracasso de bilheteria? Qual será aresposta? Talvez algum médium de plan-tão possa antever...

As revoluçõesde Sylvio BackAs revoluçõesde Sylvio Back

Jornal da ABI – Sua primeira incursão nahistória da Guerra do Contestado ocorreuem 1971, com a direção do filme A Guer-ra dos Pelados. O que o levou a filmá-lo,naquela época?

Sylvio Back – Os anos 1960 foram umadécada de fogo, brasa e cinzas, essas ain-da hoje em trágica suspensão. Algo in-contornável, fruto do golpe militar de1964, cuja violência institucional sofrina própria carne, jornalista profissionalque era e cineasta estreando no longa-me-tragem com Lance Maior em 1968, sendoeu denunciado por crime de opinião. Mastambém foi o tempo de uma religiosa esurda radicalização político-ideológica:quem não se alinhasse ao regime vigente,estava contra e deveria ser execrado.Surgiam os primeiros arroubos da luta ar-mada para derrubar a ditadura. Convictode verdades que o cotidiano voraz acabouesmaecendo, nascido em Blumenau (SC)

e então morando em Curitiba, Paraná, apartir daí fui realizando um cinema vol-tado, precipuamente, para os contornoshistóricos e telúricos da região, cujas te-máticas eram inteiramente ignoradaspelo eixo Rio-São Paulo. Então, o proje-to de um filme sobre o Contestado, umaautêntica guerra civil nos sertões sulinos,soou como uma epifânia. Tanto como umousado projeto cinematográfico – A Guer-ra dos Pelados ainda hoje é um dos poucosfilmes épicos do cinema brasileiro – comopor levantar o sangrento véu da Guerra doContestado, ocorrida entre 1912 e 1916,resgatando uma luta fraticida envolven-do caboclos, imigrantes europeus, índios,negros e fanáticos religiosos fascinadospor ideais utópicos. Tudo isso provocandoa nada surpreendente repressão do Exér-cito e das forças militares regionais, asso-ciadas a ‘coronéis’ e seus jagunços. Nem épreciso ressaltar que da preparação às fil-magens de A Guerra dos Pelados, em 1969e 1970, no próprio teatro de operações doContestado, em Caçador, no Centro-Oestecatarinense, em plena ditadura Médici, aprodução enfrentou obstáculos inimagi-náveis, a ponto de os figurantes terem sidofichados na delegacia local. O Exércitotemia que as filmagens fossem apenas umálibi e que, em verdade, estávamos treinan-do a caboclada para uma nova guerrilha.Atuamos sem fugir ao ideário que nosmovia naquela quadra, aí incluído o ro-mancista catarinense Guido Wilmar Sassi(1922-2003), em cujo belo livro, Geraçãodo Deserto, de 1964, eu baseara o roteiro dofilme, assinado em parceria com o jorna-lista Oscar Milton Volpini. A partir daí umconhecido provérbio tornou-se evidente:‘quem sai aos seus não degenera’.

Jornal da ABI – E o que o faz voltar aotema em novo filme, mais de quatro dé-cadas depois?

Sylvio Back – A Guerra dos Pelados nãodegenerou. Embora continue vivo e for-

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Cenas da guerra: desolados, os soldados feridos são levados de volta no trem.Na página ao lado, jagunços com armas em punho fazem pose para o fotógrafo.

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te, filme dileto por tudo que me fez sofrere trouxe de alegria, fortuna crítica e prê-mios, ele acabou decantado pelo cinemamoral que instaurei na minha filmogra-fia a partir de Aleluia, Gretchen. Nesses 41anos que separam o filme de ficção AGuerra dos Pelados ao de agora, às vésperasda fruição nacional do documentário OContestado – Restos Mortais, nos cinemasneste mês de outubro, uma sensação de‘lesa pátria’ nunca deixou de me assom-brar. Claro, não apenas como cidadão, maspor ser um cineasta cuja obra é seduzidapela ânsia de reverter as falácias, as dis-torções e o esquecimento da Históriaoficial. Enfim, quão submersos, ignora-dos, omitidos, quando menos, minimiza-dos, permanecem personagens, fatos eatos, desse inusitado embate no ‘hinter-land’ do Brasil sulíssimo, conhecido comoa Guerra do Contestado pelos temposafora. Voltei ao tema talvez movido pelodesafio do esclarecimento histórico quetento sempre responder em minha obrafeita de 37 filmes de documentário e fic-ção – por onde trafego impunemente, por-que, afinal, qual é a diferença entre a re-alidade bruta e o imaginário contempo-râneo e sobrevivente depois que um eoutro são transformados em cinema?

Jornal da ABI – Como foi feita a pesquisapara seu novo filme e quais dificuldadesencontrou? Há muitos equívocos histó-ricos relativos às batalhas?

Sylvio Back – À época de sua eclosão,segunda década do século passado, nafalta de melhor compreensão do violen-to levante e até pela proximidade histó-rica, logo se alcunhou o Contestado de‘Canudos do Sul’. Sim, há semelhançascom a tragédia de Vaza Barris (1895-1896), principalmente na crença da che-gada de um Messias, no fanatismo dosrevoltosos e na feroz repressão militar,mas seu espectro místico, bélico e geopo-lítico, sócioeconômico e demográficoextravasa em envergadura, recorrência ereflexos nas décadas seguintes – e até hoje– a trágica epopéia de Antônio Conselhei-ro. A Guerra do Contestado, deflagradanas então movediças fronteiras entre oParaná e Santa Catarina – daí a expressão‘contestado’ – abrangia uma área do ta-manho do Estado de Alagoas. Ali, entre1912 e 1916, milícias de ‘coronéis’ (ou“patrões”, na linguagem coloquial da re-gião), ervateiros, madeireiros, políticos,advogados, comerciantes, banqueiros efinancistas multinacionais, asseclas deempresas estrangeiras; pequenos propri-etários (locais ou estrangeiros), posseiros,desempregados, fugitivos da lei, caboclosdevotos e errantes, além de forças milita-res estaduais e federais armadas até osdentes, protagonizaram o maior morticí-nio no campo brasileiro do século 20.

Jornal da ABI – A imprensa acompanhouaquele conflito com a devida atenção? Osjornais da época foram uma boa fonte depesquisa?

Sylvio Back – Como desde as últimasdécadas do século 19, também nos anoscontemporâneos ao Contestado a im-prensa se dividia em assumir uma postu-ra “chapa branca” e a do tipo “morde eassopra”. Jornais e revistas veiculavam

noticiários chamuscados de compromis-sos financeiros e/ou políticos, onde ape-nas o humor, charges e chistes ridiculari-zando os poderosos e as personalidades daépoca emprestavam algum toque de in-conformismo. Em O Contestado – RestosMortais, algumas dessas sintomáticas eácidas tiras publicadas em O Malho, Fon-Fon e Careta, do Rio de Janeiro, foramtecnologicamente coloridas e animadas,criando um pertinente contraponto àsmanchetes bombásticas que davam um arde “guerra do fim do mundo” às escara-muças e aos ataques de canhão e metralha-dora do Exército e das forças militares doParaná e de Santa Catarina sobre os revol-tosos. E, claro, evidenciado o revide vio-lento e virulento dos fanáticos do “Exér-cito Encantado” de São Sebastião, ungi-dos de uma força, destemor e ousadiamilitar, política e mítica que assustavama repressão. Em ambas as capitais, Curiti-

ba e Florianópolis, os registros da impren-sa são invariavelmente desproporcionaisaos fatos, a maioria hagiográfica, inclusi-ve, com acrósticos laudatórios aos suces-sos militares e a seus personagens ofici-ais, ilustrados com desenhos tétricos, maisresposta a relatos de pessoas letradas daregião do que o testemunho de algumjornalista enviado às frentes de batalha.Assim, as notícias vinham ao sabor dapoliticagem paroquial e regional, rarasvezes extravasando para o nacional. Nosjornais do Rio de Janeiro, como de restoem todo o País, pertencentes à elite evassalos de partidos políticos, o eco sócresceu mesmo depois que o Exércitonacional foi convocado para intervir noconflito, em 1914, sob o comando doGeneral Setembrino de Carvalho. Antes,o sinal vermelho fora aceso para quemolhasse em perspectiva com a inesperadamorte do Coronel João Gualberto nofamoso “Combate do Irani”, em 22 deoutubro de 1912, quando também mor-

reu o líder dos caboclos, o monge JoséMaria. Estopim dessa verdadeira guerracivil nos sertões do Sul, o desastre doCoronel João Gualberto desencadeou umluto midiático nunca visto em Curitiba,até os dias de hoje. Fotógrafos, poetas,jornais contra e a favor do Governo seconjugaram para mitificar o soberbomilitar que foi à região contestada dispos-to a liquidar com os posseiros fanáticosdo monge José Maria. E mais: para escar-mento de quem ousasse algo no gênero,desfilar com os cadáveres deles na entãomais que emblemática Rua XV de No-vembro, ex-Rua da Imperatriz, atualmen-te Rua das Flores. O Funeral do Coronel JoãoGualberto, de autoria do cineasta pionei-ro do Paraná, Annibal Requião (1873-1929), cujas antológicas imagens de ni-trato recuperei e estão em alta resoluçãono meu filme, são de uma beleza, osten-tação e desfaçatez nobiliárquica inacre-

ditáveis: parece que estamos assistindo aoenterro de Luís XV! No diz-que-diz-quepop da capital paranaense corria a lendade que o Coronel João Gualberto, nocomando de 400 homens armados até osdentes, saíra de Curitiba sentado e voltoudeitado... A partir da iminência da I Guer-ra Mundial (1914-1918) e ao longo dela,coincidindo com os embates cruciais noContestado (ocorridos nos ataques àscidadelas sertanejas, os chamados redutosde Taquaruçu e Caraguatá), o noticiáriointernacional também colaborou paraofuscar ainda mais o que se passava nalongínqua Santa Catarina. No entanto, eos poderes local e nacional tinham cons-ciência dela, não arrefecia a sua gravida-de junto ao meio militar, aos latifundiá-rios e ao Governo federal. Isso, de formacabal, desfaz e desmente uma balela quevem sendo impunemente repetida aolongo dos anos por acadêmicos, jornalis-tas e curiosos de que o desconhecimentoda historiografia nacional sobre o Con-

testado deve-se à suposta falta de “umEuclides da Cunha”, a exemplo do queocorrera com a fama assumida por Canu-dos após as geniais reportagens dele em OEstado de S.Paulo. Depois, apenas o mile-narismo lhes dá certa irmandade mítica,de resto, são interdependentes, ainda queambos os conflitos sejam revoltas de cam-pônios, uns com terra, outros, não, comlaivos de um utópico retorno à Monar-quia, liderados e manobrados por fanáti-cos religiosos.

Jornal da ABI – Seria correto, então, afir-mar que o Contestado teve sua importân-cia minimizada pela imprensa? A luta pelaposse de terras foi mesmo seu estopimcentral?

Sylvio Back – O achatamento acadêmi-co e midiático da Guerra do Contestadodeve-se à sua vocação política separatis-ta antes que mera luta pela posse da ter-

ra e contra a sua usurpação, ou questãodas fronteiras entre Paraná e Santa Cata-rina, ou ainda, ideologizando suas razões,à presença do capital estrangeiro ou àchegada modernizante do “capitalismoperverso” à região. As lideranças do Con-testado almejavam não a volta da Monar-quia, mas a criação de um Estado indepen-dente, com liberdade de voto, culto e deexpressão, ideário ancorado na Revolu-ção Farroupilha (1835-1845). Esse é omantra que a geopolítica dos portugueses,desde a Colônia, inoculou no inconscien-te coletivo nacional à sombra dos nossosvizinhos latino-americanos: o Brasil ja-mais será desmembrado como acabousendo toda a América Latina! Dito e fei-to. Todos os levantes separatistas do Bra-sil foram sufocados à base da saliva, dacorrupção e à bala! Portanto, não é nadainocente que o noticiário em torno doconflito tenha passado a ser esporádico,em pílulas, minguado e de baixa credibi-lidade, uma inequívoca e surda censura

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agenciada pelo Exército, pelo Governo daRepública e pelos “presidentes” (governa-dores) do Paraná e de Santa Catarina.Desde a primeira hora quando foi capta-da a amplitude do conflito, no Rio deJaneiro decidiu-se por abafar seu implíci-to caráter separatista e de explícito viésde poder dos líderes da caboclada, cujosobjetivos iam além da simples reivindi-cação da posse da terra. Só a partir dorescaldo das batalhas e do fim da guerramundial, em 1918, é que, timidamente,vieram à tona as barbaridades perpetra-das por ambos os litigantes, tanto entreas hostes que se enfrentavam com umafúria inaudita, como junto à populaçãocivil. Terror agendado pelos caboclosreligiosamente fanatizados dentro dos“redutos”, depois acuados, desesperadospela fome, doenças e lideranças cegaspelo poder, como pelas forças militares edos chamados vaqueanos, tropa servil doscoronéis e assalariada pelo Exército que,com o apoio da Polícia Militar de SantaCatarina, protagonizaram uma verdadei-ra limpeza étnica, que durou de dois atrês anos após o epílogo e o armistício as-sinado em 1916. A população entocada erefugiada nos confins do Contestado,quer tivesse participado das refregas, quernão, foi literalmente caçada e assassina-da a sangue frio. Era como que não se qui-sesse deixar memória e rastro algum doque ocorrera na região.

Jornal da ABI – Falta ao cinema nacionaldebruçar-se com mais profundidade sobrea histórica questão fundiária do Brasil?

Sylvio Back – Sim, o cinema brasileiro,ainda que incipiente naquela quadra emmatéria de registros documentais de ex-trato militar, não ficou alheio à Guerra doContestado. Da descrição das imagenshoje perdidas, sabe-se, no entanto, queele se manteve rigorosamente dentro domesmo diapasão ideológico da imprensadiária e semanal, ela própria que preferiaquase sempre ficar do lado do campeão.Conhecem-se três únicos títulos cinema-tográficos restantes que remetem ao con-flito, dois patrocinados pelas forças re-pressoras e pela cooptação de seus cine-grafistas, coetâneo aos fatos e dos quaissubsiste apenas uma iconografia mínima:Os Funerais do Coronel João Gualberto (1912),de Annibal Requião, o “pai” do cinemaparanaense – um hino ao comandante dastropas do Paraná, morto juntamente como “monge” José Maria no Irani; e Os Fa-náticos de Taquarussu (1914), de EmílioGuimarães, documentário de “cinco lon-gas partes”, financiado pelo Exército elançado em Porto Alegre, de acordo como pesquisador gaúcho Antônio JesusPfeil, sob os títulos Na Região dos Fanáti-cos ou As Forças Expedicionárias do Sul,exibido no mesmo ano em São Paulo, eque o jornal O Estado de S.Paulo anunci-ava como “filme patriótico da exclusivaatualidade”. Do primeiro, encontradasolitária cópia em meados de 1950, jun-to a familiares de Requião, em Curitiba,o filme teria sumido, dizia-se à época, nogrande incêndio que destruiu boa parte daCinemateca Brasileira de São Paulo, em1957, mas que acabou ali preservado aolongo de décadas. Do segundo, é mais umapeça-símbolo da “cinemateca imaginá-

ria”, na antológica definição de PauloEmilio Salles Gomes, pioneiro na salva-guarda da nossa memória em nitrato ecelulóide – de que se constitui o passadodo cinema brasileiro. A surpresa fica re-servada para um terceiro título. Dupla-mente, por ser o único feixe de fotogra-mas a salvo e por “denunciar” (numa lei-tura atualizada) a predação das florestasdo Contestado. Companhia Lumbe, de A.Botelho – documentário de encomendafilmado por volta de 1920 – é exemplarao dimensionar a voracidade do comple-xo madeireiro da multinacional Sou-thern Brazil Lumber & ColonizationCompany, subsidiária da Brazil Railway,a estrada de ferro que cortava a regiãocontestada invadindo terras e vidas doscaboclos. Centenas de operários, podero-sas serras elétricas, esteiras mecânicas,uma ferrovia particular cujos trilhos iamavançando à medida que as árvores escas-seavam, para o fundo do matagal de cen-tenárias araucárias, perobas e imbuías,soberbas imagens hoje reproduzidas emO Contestado – Restos Mortais. Diante dasdecrépitas, mas ainda imponentes cons-truções (antigas sede da empresa e hospi-tal, casas da vila-dormitório, cinema...) eda malha ferroviária e do porto fluvialem decadência, que conheci em 1969(nas pesquisas de campo e à procura delocações para o futuro filme de ficção, AGuerra dos Pelados, de 1971), no Municí-pio norte catarinense de Três Barras, dápara entender a origem da extrema con-tundência dos embates, como a corrup-ção política que sancionou e avalizou asatividades açambarcadoras da Lumber.

Jornal da ABI – A História poderia ter sidooutra, talvez menos sangrenta, se a imprensativesse atuado de forma mais incisiva?

Sylvio Back – Não saberia avaliar se aimprensa teria evitado esses massacres,ela que sempre se caracterizava pela suavocação e gosto sabugos, alinhada e cor-rompida pelos donos do poder paroquiale central, ou simplesmente, reproduzindoo sentimento nacional que via nas revol-tas do campo manifestações de “pessoasatrasadas, sem instrução”, ainda carentesdo que se conhecia como “civilização” nascapitais. Assim, o terror que virou moeda

corrente do Contestado só pôde ser con-tado a posteriori pelos seus autores e tes-temunhas, militares ou não, em diários,partes da frente de com-bate, cantorias e roman-ces, que se orgulham atéhoje pelo serviço sujo querealizaram, como pelosdescendentes dos fanáti-cos ainda vivos que carre-gam na lembrança a tra-gédia que os 100 anos daguerra tornam ainda maisnítida. Na guerra, comodiz Rudyard Kipling, aprimeira vítima é semprea verdade. Na Guerra doContestado não foi nem é diferente.

Jornal da ABI – É possível mensurar oquanto foram sangrentos os combates daépoca? Qual o número de baixas de civise militares?

Sylvio Back – Saldo do horror: mais de20 mil pessoas, entre civis e militares,mortas à bala, de fome e doenças, feridas,aleijadas ou simplesmente desaparecidasnos desvãos dos pinheirais centenários.

Jornal da ABI – De que forma a disputapor terras ganhou contornos também de‘Guerra Santa’?

Sylvio Back – Nessa retomada ao temasob outro registro, vali-me como inspira-ção o substrato mítico e mitológico quecercava os monges João e José Maria –inspiradores do movimento, o primeiro,pacifista, o segundo, com vocação guer-rilheira. Bem como de seus seguidores,cuja devoção espiritual era moeda corren-te. Além de rezarem pela ressurreição de‘são’ José Maria, alçado à condição desanto depois de morrer desafiando a Po-lícia Militar do Paraná no combate doIrani, em 1912, os caboclos começaram aacreditar, cegos e ensandecidos em “cha-madas do além”, na vinda de um “exérci-to encantado”, liderado por São Sebasti-ão, para tirá-los da pobreza e da opressão.E lançavam mão da fé, igualmente, paraenfrentar o “polvo” da modernidade,como se alcunhava a chegada do capita-lismo à região através da estrada de ferroe de uma serraria multinacionais – respec-

tivamente, a Brazil Railway e a Lumberand Colonization Company, que já citei.O capitalismo se instalava no planalto deSanta Catarina com todo ímpeto, expul-sando os caboclos sem título de proprie-dade de suas terras, transformando mui-tos em operários ou, no caso da maioria,entregues à própria sorte, rima terrívelpara morte, seu único futuro.

Jornal da ABI – Em que medida o filme de1970 e o documentário de agora se dife-renciam ou se complementam?

Sylvio Back – Para o bem e para o mal,o que eu imaginava que jamais fosse acon-tecer, aconteceu: A Guerra dos Pelados e estepor vir à luz, O Contestado – Restos Mortais,parecem filmes feitos por dois cineastasdiametralmente opostos. Não apenasquanto à narrativa e realização cinemá-ticas, mas em todos os sentidos: da apre-ensão crítica da sua linguagem, que ense-jou uma estética suprarreal, ao sentido po-lítico-ideológico do conteúdo; do questi-onamento existencial às mais pertinen-tes incursões filosóficas e morais que sa-cudiram o País e o mundo nas últimas dé-

cadas. Meu cinema teminvestido, quase de for-ma intuitiva, no des-monte de tabus, mitos eutopias da História doBrasil, seja tematizandoo conluio do nazismocom o integralismo (emAleluia, Gretchen), a evan-gelização autoritária dosíndios guaranis nas mis-sões jesuíticas do ConeSul (em República Guara-ni), o genocídio da Guer-

ra do Paraguai (em Guerra do Brasil), atragicomédia da presença da ForçaExpe-dicionária Brasileira-Feb na II Guerra Mun-dial (em Rádio Auriverde); denunciando amilitarização do índio brasileiro (em Yn-dio do Brasil), e ainda revelando a magni-tude do criticado maior poeta negro dalíngua portuguesa, nosso conterrâneo, ogenial Cruz e Sousa (em Cruz e Sousa – OPoeta do Desterro). Sempre confrontei ecoloquei sob suspeita as próprias convic-ções e certezas poliítico-ideológicas detoda uma vida e carreira. Para tanto bus-quei formatar em O Contestado – RestosMortais um debate com a ficção de A Guerrados Pelados, lançando mão de uma narrati-va, que eu chamaria de insólita: a inserçãodo depoimento de médiuns em transe!Um discurso imagético que fosse ao âma-go dessa história insepulta que o Brasilprecisa homenagear com as merecidasexéquias morais. Assim, por vias transver-sas e transformando o invisível e o indi-zível em visibilidade e oralidade, freqüen-tei cinematograficamente um pretéritomágico na pele de personagens que pode-riam ter existido.

Jornal da ABI – Incluir relatos espíritas ànarrativa é uma decisão inédita. O que olevou a essa inovação?

Sylvio Back – Ainda na fase das pesqui-sas, falando com o historiador EuclidesPhilippi, por sinal já falecido, expus quepretendia investir em médiuns para “ou-vir” a história oculta, não presencial derevoltosos, caboclos possessos e soldados

DEPOIMENTO AS REVOLUÇÕES DE SYLVIO BACK

“É NOTÓRIA ADIFICULDADE QUE

EXIBIR UM LONGA-METRAGEM NO BRASIL

É TÃO OU MAISTRABALHOSO,

ONEROSO, DRAMÁTICOE FRUSTRANTE

QUANTO REALIZÁ-LO.”

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Sylvio Back analisa uma cena durante as filmagens de O Contestado – Restos Mortais.

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envolvidos na Guerra do Contestado.Então, ele próprio espírita, lascou à quei-ma-roupa e em tom solene: “O senhor éespírita?” Mesmo pego de surpresa, con-segui responder na lata: “Sou cineasta!”.Ele abriu um lindo sorriso que, aliás, podeser visto no filme em várias cenas, con-tando suas incursões à galáxia da mediu-nidade imperante entre as “meninas-vir-gens” que lideravam os fanáticos do Con-testado. O transe, como uma insondávelcamada do inconsciente coletivo e daHistória do homem, por isso mesmomatéria-prima de altas indagações nocampo da física quântica, para mim, é amais pura e límpida poesia. Não sou espí-rita, nem cientista, sou poeta! Nada notranse é real, tudo imaginação e imaginá-rio, um salto no escuro na invisibilidadede fatos e feitos inconscientes, eu diria,como se prestidigitação fora rumo ao maisdenso dos mistérios da alma humana! EmO Contestado – Restos Mortais a aposta énessa direção, imiscuir-se, resgatandoatravés da palavra, pela sua verbalizaçãocifrada e entrecortada pela fluidez dotempo e do espaço, no que foi esquecidoe no que é preciso lembrar. Carrego aprimazia, nessa hora em que tanto espi-ritismo tem explodido nas telas, de tersido o primeiro cineasta brasileiro – qui-çá, do mundo, ora direis! – a ter incorpo-rado o transe mediúnico à linguagem ci-nematográfica como elemento da narra-tiva de um documentário! Ao longo demeses, sem muita nitidez e tateandopelas veredas que a História oficial doContestado escamoteia, desvirtua e secala, arregimentei trinta médiuns em ses-sões espíritas dentro do perímetro bélicodo conflito e em Florianópolis e os trans-formei em ‘influxos condutores da lin-guagem’ do filme, uma espécie de perso-nagens plasmáticos. Não foi fácil con-vencê-los de que, sem ser espírita, jamaisiríamos manipular o testemunho deles,nem colocá-los em alguma situação cons-trangedora. Dito e feito: todos os mé-diuns comparecem com uma dignidade euma verdade impressionantes no decor-rer de O Contestado – Restos Mortais. O queapenas ensaiei em A Guerra dos Peladostransformou-se nesse contundente podernarrativo da mediunidade, um discursosempre cifrado, quando menos, proféti-co e dispersivo, a assumir a condição deogro cinematográfico introduzindo o es-pectador à inesperada atemporalidade daGuerra do Contestado. Para atingir essa,digamos, intimidade com os médiuns,fizemos questão de jamais industriá-lossobre o que queríamos saber ou ouvir nahora da filmagem e da gravação.

Jornal da ABI – Teme que a adoção da nar-rativa por meio de relatos mediúnicos sejaalvo de críticas, ou mesmo coloque emxeque a classificação do filme como ‘do-cumentário’?

Sylvio Back – A inclusão do relato me-diúnico como fio condutor do filme jápegou de surpresa espectadores e críticosquando da exibição na competição dosfestivais É Tudo Verdade e em Gramado.Houve quem, equivocadamente, elogiassea minha direção de atores durante osdebates por não acreditar que aquela trin-tena de médiuns explodindo em falas

insólitas, choros, risos, apelos, gritos esussurros, era um elemento de lingua-gem. Ao invés de uma encenação teatral,era uma incursão à, digamos, “invisibili-dade” do Contestado, ele mesmo, inocu-lado pelas mais insondáveis vertentesmísticas e míticas. Houve, sim, quem ri-dicularizasse o recurso, talvez, por desco-nhecer minha filmografia, toda ela nacontramão do discurso cinematográficobanalizante em cartaz, repleta de docu-mentários “chapa branca”, hagiográficose/ou turísticos, e onde jamais dublei umestilo narrativo, mas cujo objetivo sem-pre foi deixar o espectador desarvorado,sem saber se deveria ou não acreditar noque vê e ouve. Como também houve crí-tico que deu crédito ao recurso pontuadopor “vozes do além” que trazem à tonauma “outra” verdade nunca antes discu-tida sobre a Guerra do Contestado. E, pelaconstatação de que eu, com essa operaçãocinemática, levo ao espectador a própriapolêmica se a mediunidade pode ser acei-ta hoje dentro de um filme que se quer“histórico”? Por não ser “espírita”, nemmilitante de qualquer credo religioso,mas por respeitar e admirar a impondera-bilidade e o mistério que corpo, espíritoe alma mutuamente conjuram, é que pro-movi em O Contestado – Restos Mortais umamálgama de cinema, depoimentos, ico-nografia fixa e em movimento, pretéritohistórico e mítico, fatos & atos sob ralosde veracidade e verossimilhança, para

tentar desvendar um Contestado até hojeinsepulto, inacessível, inconcluso! O es-pectador é sempre mais esperto e rápidodo que o filme e o diretor juntos, justa-mente porque o olho é mais rápido do queo pensamento. Portanto, a inserção dorelato dos médiuns no âmago do filme, eque perturba e conturba seu fluxo, servejustamente para borrar as fronteiras dra-conianas entre documentário e ficção.Afinal, qual a diferença entre ambos: umavez o real filmado torna-se depositárioinfiel do pretérito, ou seja, uma ficçãosempre midiatizada pela imponderabili-dade da memória. Cada um apropria e in-trojeta seu complexo sentido como acharmelhor, acreditando, endossando, edulco-rando, contraditando ou desconfiando.Eu faço um cinema moral que desconfia!Depois, a idéia nunca foi fazer um docu-mentário lato sensu – não sou um docu-mentarista clássico – sobre a Guerra doContestado... Daí os “clipes” com imagensde arquivo, fotos e filmes, por exemplo,raras vezes surgirem para sublinhar depo-imentos e entrevistas, o que seria empo-brecê-los, desacreditar nas minhas pró-prias imagens e na capacidade de “viajar”do espectador. Ao contrário, por seremtodas flagrantes oficiais, encomendados,a própria “História oficial”, elas funcio-nam como uma espécie de contrapontoheróico do que sobrevive na cabeça daspessoas um século depois do conflito.Essa autonomia do acervo, premeditada-

mente procurada, e colocada sob suspei-ta pelas recordações afetivas e pela His-tória, é uma das claves que emprestam aamperagem polêmica do filme. E que me-lhor lhe definem o torque revisionista dotema face às minhas convicções comohomem e artista.

Jornal da ABI – Qual sua expectativa emrelação à resposta ao filme, em termos depúblico?

Sylvio Back – Penso que soaria prema-tura qualquer opinião sobre como o filmeserá recebido pelo público. Esse, na ver-dade, é o lado fascinante do showbiz. Noentanto, pelas concorridas exibições noscertames É Tudo Verdade e Gramado, eu sóteria motivos a comemorar. Sabemos quea reação do público de festivais é sempresuspeita. Contaminado pelo privilégio deassistir ao filme antes de quem vai pagarpara vê-lo, confesso, não fiquei indiferen-te à calorosa recepção que teve, inclusi-ve, da crítica. Agora, no circuito exibidorprofissional, tudo fica zerado, ainda quea expectativa seja das maiores e melhores!Ainda que seja um antidocumentário – eudiria mais, um “docudrama” – pela inédi-ta presença do testemunho mágico de trin-ta médiuns, ficando a meio caminho en-tre o documento e a ficção, é nessa lingua-gem iconoclasta e inesperada que deposi-to todas as minhas fichas no sucesso de pú-blico de O Contestado – Restos Mortais.Num panorama nacional de documentá-rios e ficções da última década, majorita-riamente diluindo narrativas conservado-ras, tanto para ganhar como para apascen-tar o espectador, levando aos seus olhos ementes o já visto e ouvido, meu filme é umcorpo estranho e entranhado de surpresas.De outro lado, em se tratando de um espe-táculo, a imponderabilidade é a melhor emais fiel companheira de uma obra de arte.Como sempre fiz filmes para mim mesmo,pois jamais brindaria o público das telas etelinhas com algo em que não tivesse in-vestido minha expertise, meu estro, minhavida e a minha liberdade moral, mantiveo esquema neste O Contestado – RestosMortais, fruto de quase dez anos de pesqui-sas, produção, realização, montagem/edi-ção e, agora, neste processo de lançamen-to nacional. É notória a dificuldade queexibir um longa-metragem no Brasil é tãoou mais trabalhoso, oneroso, dramático efrustrante quanto realizá-lo. Mas, se vocênão toma o cinema como uma obsessãoexistencial, para que fazê-lo, então?

Mais duas cenasdramáticas daGuerra doContestado que sãomostradas nodocumentário:centenas de pessoashumildes, incluindomulheres e crianças,são feitasprisioneiras porgrupos muito bemarmados.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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HOMENAGEM

Do samba vitorioso da Unidos da Ti-juca no Carnaval do Rio este ano, campeãdo desfile com o enredo O Dia em QueToda a Realeza Desembarcou na Avenidapara Coroar o Rei Luiz do Sertão, a shows noSesc paulista e apresentações de grupos deartistas jovens e veteranos por todo o País,cantando e tocando baião, xaxado, maraca-tu, forró, marcha, frevo, ciranda, boi, xote,caboclinhos e quadrilha – Luiz Gonzaga, oLua, também conhecido como o Rei do Baião,está sendo celebrado nos palcos do Brasileste ano, quando completaria 100 anos.

Agora em outubro chega aos cinemasbrasileiros o filme Gonzaga – De Pai paraFilho, longa de Breno Silveira, o mesmo di-retor de Dois Filhos de Francisco (2005). Ofilme retrata a relação entre o sanfoneiroLuiz Gonzaga e seu filho, o cantor e com-positor Gonzaguinha (1945-1991). Ain-da na esfera cinematográfica, outra atra-ção que não pode ser esquecida é o filmeO Homem que Engarrafava Nuvens (2008),documentário musical que conta a vida deHumberto Teixeira, o mais famoso parcei-ro de Luiz Gonzaga.

Culinária, dança, filmes e literaturatambém integram a programação em ho-menagem a Luiz Gonzaga do Nascimen-to, nascido a 13 de dezembro de 1912 nafazenda Caiçara, Serra de Araripe, sertãode Pernambuco, segundo filho de JanuárioJosé dos Santos e Ana Batista de Jesus,conhecida como Santana. Januário traba-lhava na roça, tocava sanfona de oito bai-xos nas horas de folga e mantinha umaoficina de reparos do instrumento.

Admirado por grandes artistas brasi-leiros de várias gerações, como DorivalCaymmi, Gilberto Gil, Raul Seixas e Cae-tano Veloso, entre outros, inclusive ma-estros e compositores eruditos, foi geni-al instrumentista e inspirado compositor.Em sua obra, destacam-se as antológicascanções Baião (1946), Asa Branca (1947),Siridó (1948), Juazeiro (1948), Que Nem Jiló(1949) e Baião de Dois (1950).

ComeçosLuiz Gonzaga ajudava o pai no roçado

desde os sete anos, inclusive no manuseiodas sanfonas que chegavam para conserto,

tinos obrigados a deixar a terra natal paramelhorar de vida:

Lá no meu pé de serraDeixei ficar meu coraçãoAi, que saudades tenhoEu vou voltar pro meu sertão...O gênero musical que consagrou Luiz

Gonzaga foi o baião, que ele consolidou etransformou num sucesso nacional. A can-ção emblemática de sua carreira foi AsaBranca, que compôs em 1947, em parceriacom o advogado cearense Humberto Teixei-ra (1915-1979). No entanto, apesar do ta-lento, ele teve que lutar muito nos primei-ros tempos para conseguir o reconhecimen-to e poder viver de sua arte, depois que veiotentar a vida no Rio, muito distante dafamília, que ficou em Exu. Pouco antes,durante a Revolução de 1930, alistara-se noExército, como muitos jovens naquelaépoca, em busca de melhores condições devida. No Rio, ao dar baixa em 1939, nãosabia o que fazer da vida, até começar a tocarsanfona no Mangue, centro da cidade.

“Um fuzuê dos diabos”, recordaria maistarde o futuro Rei do Baião, que palmilha-va as Ruas Júlio do Carmo e Carmo Netoe arredores. Ganhava a vida tocando nosbotequins, docas do porto, festinhas desubúrbio e cabarés da Lapa ou simples-mente nas esquinas, correndo depois ochapéu, acompanhado pelo guitarristaXavier Pinheiro. Choros, sambas, fox-tro-tes e outros gêneros da época integravamo repertório. Tentava, sem sucesso, os pro-gramas de calouros, apresentando-se como típico figurino do músico profissional:paletó e gravata. Até que, em 1941, noprograma de Ary Barroso, foi aplaudidoexecutando Vira e Mexe, tema de saborregional, de sua autoria. Ganhou nota 5 dofamoso compositor e radialista, e o prêmiode 15 mil réis. O sucesso lhe valeu um con-trato com a gravadora Victor, pela qual

lançou em seguida mais de 50 músicas ins-trumentais. Vira e Mexe foi a primeiramúsica que gravou em disco.

Gonzaga gravou mais de setenta com-posições, entre xotes, mazurcas, sambase choros, sem se empolgar com o resulta-do como solista de sanfona. Pouco depoisfoi contratado pela Rádio Nacional, ondeconheceu o acordeonista gaúcho PedroRaimundo, que usava os trajes típicos dospampas. Passou a aparecer nas rádios ves-tido de vaqueiro, figurino com que viriaa se consagrar como artista. Gravou suaprimeira música como cantor no estúdioda RCA Victor: a mazurca Dança Mari-quinha, em parceria com Saulo AugustoSilveira Oliveira.

O grande encontroApesar da aceitação, Lua não se reali-

zava sendo apenas sanfoneiro. Queriacantar e gravar suas músicas nordestinas.Tinha novo parceiro, Miguel Lima, quecolocava letra nas canções. Vibrou quan-do descobriu, pelos registros de venda,que também agradava o público comocantor. Mas isso só viria a acontecer defato com a revolução musical que promo-veu depois de substituir Miguel Lima, queera fluminense, por um parceiro nordes-tino, Humberto Teixeira, que tocava flau-ta e bandolim e era compositor de suces-so da gravadora Continental.

Logo no primeiro encontro dos dois, emagosto de 1945 – no escritório onde Teixei-ra se iniciava como advogado, na AvenidaCalógeras, Centro do Rio – surgiu Asa Bran-ca. Decidida a conquistar a então capital doPaís, a dupla passou em revista os diversosgêneros do Nordeste, chegando à conclusãode que o baião era o que mais se enquadra-va nessa finalidade. Os habituais viola,pandeiro e rabeca foram substituídos peloacordeão, triângulo e zabumba.

POR CARLOS JURANDIR

Luiz Gonzaga é lembrado em inúmeros eventos deNorte a Sul do País, no ano de seu centenário. Compositor

versátil, gravou músicas em 20 diferentes gêneros.

O grande Luado Sertão

e não tardou a aprender atocar. Ainda adolescente,passou a se apresentar embailes, forrós e feiras, deinício acompanhando Ja-nuário. Mesmo depois,quando se tornou umafigura nacional, com vi-toriosa carreira especial-mente no Sudeste e no Suldo País, foi essa vivência queplasmou sua produção artística de autên-tico representante da cultura nordestina.“Nenhum artista brasileiro foi tão impor-tante para a cultura das Regiões Nordestee Norte do Brasil, para a divulgação decomo vivia, trabalhava e sofria o homemdo mato quanto Luiz Gonzaga”, resume ojornalista Luís Pimentel.

O próprio Luiz Gonzaga recordounuma entrevista a época dessas andançaspelo sertão, acompanhando o velho Janu-ário: “Eu gostava daquela vida. Das festasde São Bento, dos sambas da Chapada doJirome ou do São João do Araripe, ondeaprendi também a tocar zabumba, caixae pife (pífaro). As festas do Bom Jesus doExu eram o que mais me atraía. Tambémas da padroeira do Granito, que se enchi-am de gente de todo canto”.

“Luiz Gonzaga escreveu seu nome nahistória da música popular brasileira aoresgatar a cultura popular no período pós-guerra”, destaca o professor da Universi-dade Federal de Minas Gerais Carlos Er-nest. “O gênero baião já existia, mas Luaadequou o folclore popular ao universoartístico da grande cidade e encontrou umfilão que era desconhecido nacionalmen-te. Uma música de raiz que estará semprepresente.”

“Ele trouxe um novo modo de olharpara o sertão, o Nordeste, a cidade, a mi-gração e a condição do migrante”, expli-ca a professora Maria Sulamita de Almei-da Vieira, da Universidade Federal doCeará, autora de Luiz Gonzaga, O Sertão emMovimento (Editora Annablume, 2000).

Da extensa produção do homenagea-do, que gravou quase 100 discos, entre lpse cds, ela destaca a música Lá no Meu Pé deSerra, em parceria com Humberto Teixei-ra, como exemplo de sua capacidade defalar diretamente aos milhares de nordes-

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Gravada no dia 24 de maio de 1946, amúsica intitulada Baião, que decidiramlançar primeiro, converteu-se num dosmaiores êxitos da carreira de Luiz Gon-zaga, gravada pelo grupo Quatro Ases eUm Coringa, em disco Odeon, com a par-ticipação de Luiz apenas como acompa-nhante, à sanfona. Só em 1950 Lua grava-ria a sua versão.

Estava consolidada a aceitação do gê-nero por todo o País.

A melodia singela, no estilo gregoriano,com versos também simples, bastanteentranhados no universo popular, junta-mente com a batida uniforme, convidan-do para dançar – tudo isso configurou osucesso estrondoso no novo/velho estilo.

Eu vou mostrar pra vocêComo se dança o baiãoE quem quiser aprenderÉ favor prestar atençãoNovo porque inaugurava uma nova

época na música brasileira, dividida en-tre o samba-canção e o fox-trote, além dosamba; velho porque o baião ou baianoera uma dança tradicional mestiça, deorigem africana, típica do interior dePernambuco. O maestro Júlio Medagliadestacava o fato de o baião utilizar mo-dos medievais do canto gregoriano aolado do sistema tonal. Especialistas acre-ditam que essa utilização vem da cateque-se dos padres carmelitas, e franciscanos,assim como beneditinos, que se espalha-ram pelo Norte e Nordeste do Brasil.

Em 1947, o já chamado Rei do Baião seimortalizaria com o lançamento afinal deAsa Branca, gravada em disco RCA Victor.Tornou-se internacional ao ser interpre-tada por Carmem Miranda no filme Ro-mance Carioca (Nancy Goes To Rio), dirigi-do por Robert Z. Leonard.

Apesar do enorme sucesso, a parceriacom Humberto Teixeira teria fim quan-do, em 1950, Humberto se elegeu depu-tado, mas Gonzaga encontraria um outroparceiro tão bom quanto o primeiro: omédico José de Souza Dantas, mais co-nhecido como Zédantas, que entretantomorreu logo depois, aos 41 anos de idade.São eles os responsáveis pela belíssimaVozes da Seca, que constitui o primeirobrado de alerta em relação ao problema daseca no Nordeste.

“Respeita Januário”Primeiro artista tipicamente nordes-

tino a conquistar os grandes centros,através dele o nordestino passou a sermais respeitado e ouvido. A influência deLua foi mais marcante que a de Catulo, noinício do século XX, pois enquanto estedeu ênfase apenas ao lirismo em seus tra-balhos literários e nas letras das músicas,Luiz Gonzaga sempre deixou transpare-cer a preocupação maior de levar ao co-nhecimento de todos os valores da cultu-ra e da arte nordestina.

Em 1946 Luiz voltou pela primeira veza Exu, e teve um emocionante reencon-tro com Januário e Santana, que há anosnão sabiam nada sobre o filho e sofrerammuito esse tempo todo. O reencontro énarrado em sua composição Respeita Ja-nuário, em parceria com Humberto Tei-xeira. Em 1948, casou-se com sua noiva,a pernambucana Helena Cavalcanti, pro-fessora que se tornara sua secretária par-

ticular, por quem Luiz se apaixonou. Ocasal viveu junto até o fim da vida deLuiz. Eles não tiveram filhos biológicos,por Helena não poder engravidar, masadotaram uma menina, a quem batiza-ram de Rosa.

Nesse mesmo ano morreu de tubercu-lose a cantora de coro e sambista Odaléia,mãe de Luiz Gonzaga Filho, o Gonzagui-nha, que tinha apenas dois anos e meio.Léia era antiga namorada de Lua. Quislevar o menino para morar com ele, masHelena não o aceitou. Gonzaguinha aca-bou sendo criado pelos padrinhos, Leo-poldina e Henrique Xavier Pinheiro, quemoravam no Morro de São Carlos. Noentanto, Luiz não se dava bem com ofilho, situação que só veio a se revertermuitos anos depois.

Artista que depois se tornou uma daslendas vivas de sua época, Luiz Gonzagateve que enfrentar, no começo, a resistên-cia das gravadoras, que consideravam suaarte como simples folclore. Quando aBossa Nova surgiu, nos primeiros anos dadécada de 1950, com uma proposta maisvoltada para o público do meio urbano, oRei do Baião, mesmo já famoso, passou derepente a não contar com o mesmo espaçona imprensa. E o baião rompia fronteirasnaquela época, em especial por conta dofilme O Cangaceiro, de Lima Barreto(1953), que ganhou o prêmio de MelhorFilme de Aventura no Festival de Cinemade Cannes, na França, e também mençãohonrosa pela trilha sonora, que entreoutras trazia a toada Muié Rendera, mú-sica de Zé do Norte, interpretada porVanja Orico.

Na mesma década, o compositor nor-te-americano Burt Bacharach veio aoBrasil acompanhando a atriz alemã Mar-lene Dietrich. “Ele ouviu o baião e seencantou. Entre suas canções de sucessodos anos de 1960 está Do You Know TheWay to San Jose. É muito forte a presençado baião. Só falta o triângulo”, comentao jornalista e historiador Paulo César deAraújo, autor do livro Eu Não Sou Cachor-ro, Não (Editora Record, 2005).

O baião Delicado, instrumental deWaldir Azevedo, teve cinco versões gra-vadas em Buenos Aires, vendendo maisde 130 mil cópias em toda a Argentina,segundo o jornalista e pesquisador JoséRamos Tinhorão. A música também pas-sou a fazer parte do repertório dos maes-tros norte-americanos Stan Kenton ePercy Faith.

Grande divulgador do novo gênero,Humberto Teixeira buscou promovê-lono exterior, levando à Europa caravanasde músicos brasileiros, mas sem grandesresultados. Como analisa Tinhorão, oritmo estilizado por Luiz Gonzaga (assimcomo ocorreu com a Bossa Nova) nãotinha condições de competir com a in-dústria norte-americana de discos e coma novidade do rock, que tinha em ElvisPresley seu maior ícone. Somente nadécada de 1980 Gonzaga, já consagradopelo público e pela crítica, iria apresentarsua obra nas grandes casas de espetáculode Paris.

Mas o fim dos anos 1960 não trouxebons ventos ao baião. A época do rádioacabava. Vinha a televisão. E, no Brasildesenvolvido, urbano, propagado por

Juscelino Kubitschek, a música nordesti-na perdeu espaço.

Outro nordestino, esse de Juazeiro, naBahia, entrava em cena e já anunciava quealgo novo estava por vir. Era João Gilber-to, que em 1959 lançou Chega de Saudade,seu primeiro disco com duas músicas: aque dá nome ao álbum e Bim Bom:

É só isso o meu baiãoE não tem mais nada nãoMeu coração pediu assim, só...

Volta por cimaNo entanto Luiz Gonzaga tornou-se

ídolo do povo nordestino e figura reve-renciada de Norte a Sul do País. Não tar-dou em voltar à mídia. Muitos artistas desucesso nos anos posteriores jamais es-conderam suas influências do Gonzagão.A começar pelo grupo pernambucanoQuinteto Violado, que surgiu em 1971,logo após a eclosão do movimento tropi-calista. Integrado por jovens músicos,adotou a obra do Rei do Baião como prin-cipal inspiração. Com uma proposta fun-damentada em elementos da cultura re-gional, o grupo traçaria a partir de entãoum caminho para a música brasileira quena essência reproduzia e reforçava a te-mática de Luiz Gonzaga. Hoje com cer-ca de 50 discos lançados no Brasil e noexterior, utilizando como base a aparentesimplicidade da música nordestina, oQuinteto demonstrou que ela tinha pa-rentesco com o erudito e a sofisticação.

Em 1965, o compositor Geraldo Van-dré, ícone da música de protesto, gravouAsa Branca, e Gilberto Gil, líder dos tro-picalistas, citou Luiz Gonzaga como umade suas principais influências. Na décadade 1970, várias das composições do Rei doBaião foram incluídas em gravações,como Asa Branca, por Caetano Veloso(1971), outro líder tropicalista. No mes-mo ano, saiu o lp O Canto Jovem de LuisGonzaga, RCA, com composições de Gil,Caetano, Edu Lobo, Dori Caymmi, Geral-do Vandré e outros. Em março de 1972 foirealizado um show no Teatro TeresaRaquel, do Rio de Janeiro, chamado LuizGonzaga Volta pra Curtir.

Em 1977 ele participou do show come-morativo Trinta Anos de Baião, realizadono Teatro Municipal de São Paulo, comCarmélia Alves, Hervé Cordovil e Hum-berto Teixeira. Lançou em 1979 o Eu eMeu Pai, pela RCA. Januário falecera noano anterior.

No início da década de 1980, sua car-reira ganhou novo impulso, graças prin-cipalmente a Gilberto Gil e CaetanoVeloso. Em 1981, fez parceria com Gon-zaguinha e, na tournée de divulgação deseu lp A Vida do Viajante, retomou a tra-jetória de sucesso. Foi quando ganhou oapelido de Gonzagão, que usou até amorte. No mesmo ano, lançou A Festa,pela RCA, disco no qual interpreta, aolado de Milton Nascimento, com grandesucesso, Luar do Sertão.

Em 1984 Gonzaga obteve o primeirodisco de ouro com o lp Danado de Bom, noqual a maioria das músicas foi compostaem parceria com João Silva. Apresentou-se pela primeira vez na Europa em 1982,no Teatro Bobino, de Paris, França, a con-vite de Nazaré Pereira, cantora amazo-nense radicada em Paris. Em 1984 recebeu

o Prêmio Shell e dois anos depois retor-nou à capital francesa, para fazer o showde encerramento do festival de músicabrasileira Coleurs Brésil. Nesse mesmo ano,foi lançado o livro Luiz Gonzaga, O Rei doBaião, de autoria de José J. Ferreira (Edi-tora Ática, São Paulo). Afastado das tvs edas rádios, ainda na década de 1980, con-tinuava a apresentar-se em shows pelointerior do Brasil, cantando em quermes-ses, circos, cinemas, feiras e fábricas.

Em 1990, foi lançado o livro Eu VouContar pra Vocês, de Assis Ângelo (ÍconeEditora, São Paulo). Em 1996, a BMG lan-çou em cd triplo 50 Anos de Chão, umareedição da caixa de cinco lps homônima,lançada em 1988, que compreendia operíodo de 1941 a 1987, com seleção dopróprio Gonzagão. Em 1996 saiu o livroVida de Viajante - A Saga de Luiz Gonza-ga, de Dominique Dreyfus e prefácio deGilberto Gil (Editora 34, Coleção Ouvi-do Musical, São Paulo).

A Editora Globo lançou, em 1997, fas-cículo e cd Luiz Gonzaga, na série MPBCompositores, n° 20. No mesmo ano, o Jor-nal da Tarde lançou outro cd e fascículoLuiz Gonzaga, na série MPB no JT, n° 5. János anos 1970, a Editora Abril incluiu LuizGonzaga em sua coleção Música PopularBrasileira, também disco e fascículo bio-gráfico vendido nas bancas de jornal.

Gonzaga participou de inúmeras ini-ciativas em prol dos flagelados pela secano Nordeste, muitas vezes por contaprópria. Em 1982, no show Nordeste Ur-gente, em Natal, RN, conheceu AlceuValença, que participou de seu disco LuizGonzaga, 70 Anos de Sanfona e Simpatia,em 1983. Em meados da década de 1980,criou a Fundação Vovô Januário, destina-da a ajudar as mulheres de Exu.

O candeeiro apagouAté o final da vida Luiz Gonzaga seguiu

compondo e lançando discos. O produtorMarcos Veloso assegura que não existeartista mais pesquisado que Luiz Gonza-ga: “Ele tem música com todas as letras doalfabeto e gravou em mais de vinte gêne-ros diferentes. Além disso, Lua quebroumuitos tabus por ser preto, pobre e nor-destino. A música, hoje em dia, tem influ-ência direta do Rei do Baião”.

O candeeiro se apagouO sanfoneiro cochilouA sanfona não parouE o forró continuou“Continuou por mais de meio século”,

registra Luís Pimentel, “período em quecompôs grande número de sucessos, commais de uma dezena de parceiros, entre osquais os mais freqüentes foram Humber-to Teixeira, Zé Dantas, João Silva, HervêCordovil, Guio de Moraes e Onildo deAlmeida”.

Uma de suas últimas aparições foi noTeatro Guararapes, no Centro de Con-venções no Recife, na qual recebeu ho-menagens de diversos artistas, inclusivede seu filho, Gonzaguinha. Luiz Gonza-ga sofria de osteoporose há alguns anos.Morreu a 2 de agosto de 1989, vítima deparada cardio-respiratória no HospitalSanta Joana, na capital pernambucana.Seu corpo foi velado em Juazeiro do Nortee posteriormente sepultado em seu Mu-nicípio natal.

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Os bastidores de quase cinco décadasde história da revista Manchete (1952-2000) estão relatados no novo livro doacadêmico, jornalista e professor Arnal-do Niskier, Memórias de um Sobrevivente –A Verdadeira História da Ascensão e Quedada Manchete (Editora Nova Fronteira),lançado em 20 de setembro, na AcademiaBrasileira de Letras.

Niskier trabalhou 37 anos nas empre-sas Bloch, onde foi Chefe de Reportagem,Diretor de Jornalismo e o responsávelpela criação de um estilo próprio da foto-novela brasileira, quando dirigiu a Reda-ção da revista Sétimo Céu. No livro, o au-tor conta experiências que vivenciou naRedação da Manchete e os fatos marcan-tes que presenciou no convívio com gran-des nomes do jornalismo, dentre os quaisMurilo Melo Filho, Carlos Heitor Conye Gervásio Batista, entre outros.

As lembranças mais curiosas registra-das no livro vêm da sua proximidade comos diretores da revista, entre os quais o“controvertido Adolpho Bloch”, que “erauma figura capaz de grandes gestos de no-breza e em seguida se deixar trair por sen-timentos menores”, afirma Niskier, queocupa a cadeira nº 18 da ABL, eleito em22 de março de 1984, na vaga deixadapelo jornalista, médico e escritor Pere-grino Júnior.

Lançada em abril de 1952, Manchetesurgiu como um dos maiores sucessoseditoriais da imprensa do Brasil; o livrode Arnaldo Niskier tem como objetivofazer perdurar esse rico legado, narrandodesde sua ascensão até à queda, “a partirde reminiscências de um grande amigo”.

“Eu devia este livro a mim mesmo. Du-rante muitos anos resisti à idéia de escre-vê-lo. Mas eu achava que, tendo convivi-do 37 anos com a revista, a sua glória e,depois, o seu fracasso, era importante umdepoimento do jornalista parceiro de to-das essas aventuras”, diz ele sobre osmotivos que o levaram a escrever o livro.

A obra levou três anos e meio para serescrita, período em que Niskier diz quefoi relembrando os fatos, pesquisandonúmeros antigos da revista, revendo ma-térias que escreveu em diferentes épocas:“E daí saiu o livro que em boa hora a Edi-tora Nova Fronteira está trazendo a lume.Achei que o livro ficaria muito enrique-cido se tivesse um caderno de fotografi-as, e por isso incluímos um encarte de 16páginas com 40 fotos históricas a respei-to da Manchete, sua história, seus proble-mas, edições especiais e os vários produ-tos jornalísticos que a revista publicou emcinco décadas. Assim nasceu o livro queaí está, graças a Deus, com boa receptivi-dade junto ao público.”

Histórias e memóriasMemórias de um Sobrevivente, diz o au-

tor, é uma obra que mistura História ememórias. Não é uma biografia, porqueNiskier não é a figura central do livro, emcujas páginas quem aparece em evidênciaé Adolpho Bloch, que na opinião do autorfoi o “gênio criador” do império que maistarde, quando ele envelheceu e morreu,seus sucessores não tiveram competênciapara mantê-lo vivo.

Ao pedido para definir o gênero doseu livro, Niskier diz que Memórias de umSobrevivente é uma obra que reúne memó-rias misturadas com um ensaio históricoa respeito de uma empresa gráfica quedurante quase 50 anos teve momentos deexcepcional brilho: “A Manchete foi con-siderada a melhor impressão do Brasil,tinha um parque gráfico esplêndido, equi-pado com máquinas italianas e alemãs queo Adolpho ia buscar a cada ano nas feirasinternacionais da Europa, para manter oparque gráfico sempre atualizado. E comisso ele granjeou a fama, que ele queria eadorava, de grande tipógrafo. Quandoalguém o chamava de doutor ele soltavaum palavrão”, contou Niskier (risos).

Adolpho Bloch também reagia compalavrões quando era chamado dejornalista:”O Adolpho falava muito pa-lavrão, era engraçado ver aquele russo fa-lando palavrões. Ele veio para o Brasil aos12 anos e foi criado na Aldeia Campista,

próximo de onde viveu também o NelsonRodrigues, que, ao contrário dele, nãofalava palavrão. Convivi por um longoperíodo com o Nelson e conhecia bem assuas particularidades. Ele não pronunci-ava um palavrão, contava aquelas histó-rias cabeludas, mas palavrão não dizia. Jáo Adolpho era fã do nome feio. Porra eleusava como vírgula”, disse Niskier.

O todo-poderoso dono da Manchete ex-plodia de raiva quando era chamado poraquilo de que não gostava.Ele queria que o chamas-sem de tipógrafo, a exemplodo pai Joseph, que na Rús-sia foi dono de uma tipogra-fia, onde eram impressosprogramas de teatro. Adol-pho foi acostumado comessa realidade desde garotoe jurou a si mesmo quequando tivesse recursos in-vestiria em teatro.

Considera Niskier quetalvez a noite mais glori-osa e feliz da vida de Adol-pho Bloch tenha sido a da inauguração doteatro batizado com o seu nome, que in-felizmente foi paralisado totalmente pe-los novos donos do prédio, que promete-ram devolvê-lo ao público e não o fize-ram, contrariando a lei municipal que de-termina que teatros não podem ser des-truídos sem que haja uma compensação

de criação de outro espaço teatral, mesmoque seja em outro local.

“A cultura do Rio de Janeiro e do Paíspede que isso seja cumprido o mais rápi-do possível”, afirma Niskier.

O salto de “Sétimo Céu”Niskier foi convidado para trabalhar

nas empresas Bloch como repórter darevista Manchete Esportiva, em cuja Reda-ção trabalhavam os irmãos Augusto, dire-tor, Paulo e Nelson Rodrigues. Junto comele chegou o jornalista Ney Bianchi deAlmeida, vindo da Última Hora, onde osdois trabalharam como colaboradores.

Da reportagem Niskier foi promovidoa assistente do diretor. Como ele vinhafazendo um bom trabalho, Pedro JackKapeller, conhecido como Jaquito, sobri-nho de Adolpho, que o acompanhava deperto, achou que ele deveria dirigir a re-vista Sétimo Céu, “publicação para jovenssonhadoras, que publicava fotonovelas”,diz Niskier.

A revista era deficitária, vendia somente6 mil exemplares, não era um bom produ-to editorial. Usava fotonovelas argentinasque ele classifica como “abomináveis”. Foiaí que Niskier percebeu que havia espaçopara a criação de fotonovelas essencial-mente brasileiras. Sétimo Céu concorriacom a revista Carinho, da editora Abril, queusava tramas italianas esplêndidas, comGina Lollobrigida e Sofia Loren:

“Nós não tínhamos dinheiro para com-prar esse material, então precisávamoscriar uma coisa nova que tivesse a cara doBrasil. Eu fiz contato com o Mário Lagoe lhe pedi que me cedesse originais da sé-rie que ele produzia na Rádio Nacional in-titulada Presídio de Mulheres. Ele me cedeua primeira história Adelaide Simon Não QuisMatar, com a belíssima Anilza Leone. En-

tão nós fizemos a primeirafotonovela brasileira e foiuma explosão. A revista sal-tou de 6 mil para 200 milexemplares vendidos.”

Seis anos depois, o suces-so das fotonovelas de SétimoCéu levou Niskier a ser con-vidado para Chefe de Repor-tagem da Manchete, substi-tuindo Darwin Brandão,que deixou o comando dasequipes de reportagem da re-vista em janeiro de 1960.

Niskier foi Chefe de Re-portagem e Diretor de Jornalismo da Blo-ch Editora durante 18 anos. Nos últimosanos passou a dirigir a Bloch Educação,empresa do grupo que cuidava de cursos,seminários e livros didáticos, a qual emdez anos faturou US$ 20 milhões:

“Alguns desses livros, como os de Ma-temática, eram de minha autoria, que te-

MEMÓRIA

POR JOSÉ REINALDO MARQUES

Funcionário do Grupo Bloch durante 37 anos, seu ex-Diretor de Jornalismo evoca a densa presença das revistas criadas por Adolfo Bloch.

A ascensão e queda da Manchetenas lembranças de Arnaldo Niskier

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Niskier: Adolpho Blochera uma figura capazde grandes gestos de

nobreza e em seguidase deixar trair por

sentimentos menores.

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Adolpho disse que não poderiaaumentar a oferta AugustoNunes não aceitou a proposta.”

Segundo Niskier, AdolphoBloch tinha um comportamen-to intempestivo; muitas vezesalternava explosões de raiva,que duravam não mais do quetrês minutos, com manifesta-ções de carinho. “Engraçadoisso, porque quem tivesse a bur-rice de enfrentá-lo no momen-to em que a onda subia levavaferro, porque ele era violento”,conta Niskier, acrescentandoque com os anos de convívioaprendeu a lidar com as altera-ções de humor de Adolpho Blo-ch.

Quando Bloch explodia osegredo era lhe dar razão atéque ele fosse se acalmando e semostrasse disposto a mudar deidéia. Essa tática foi usada porNiskier na sua relação com oempresário, e ele a considera-va “infalível”. No livro, o au-tor fala sobre um pensamentoque o mesmo tinha sobre isso:

“Eu conto no livro que elecostumava dizer que toda raivaque durasse mais de três minutos era umadoença patológica. Depois que explodia,ele se desculpava com o ofendido comouma criança. Se a agressão verbal tivessesido muito forte, o Adolpho cuidava depresentear a pessoa com um corte de fazen-da francês ou uma garrafa de champanhe.Era assim que ele se desculpava com assuas vítimas.”

Era esse comportamento que na opi-nião de Niskier fazia de Adolpho Blochuma figura muito controvertida, quemuitas vezes tomava decisões injustascom relação às pessoas:

“O Adolpho muitas vezes foi injustonas suas reclamações. Isso acontecia por-que ele se deixava influenciar pela opiniãoda turma de puxa-sacos que vivia em tor-no dele. Aliás, ele adorava esse tipo depessoa. Como ele não apurava a verdadedos fatos, saía atacando o funcionário. Masquando percebia que não tinha razão, se des-culpava e voltava a ser generoso, como eratambém do seu comportamento”.

Alguns não resistiram

Memórias de um Sobrevivente é um títu-lo sugestivo que foi escolhido porquemuita gente sucumbiu ao fechamento daManchete, em 2000. Alguns morreram dedesgosto, como Ney Bianchi e Tarlis Ba-tista, lamenta Niskier.

“Quando o título me veio à cabeça, tivea certeza de que era um sobrevivente dafase gloriosa da Manchete com a felicida-de de ter tido a idéia de sair da revista notempo certo, sem nenhuma dívida.”

O leitor vai encontrar no livro muitashistórias curiosas sobre a Manchete. Aobra traz uma seleção de reportagens,cuja pesquisa contou com a colaboraçãodo jornalista e ex-redator da revista Re-nato Sérgio, a quem o autor presta umahomenagem. Dentre as reportagens sele-cionadas, está a série de campanhas pro-movidas pela revista como a que apoioua construção de Brasília:

“Naquela época a Manchete defendiaa construção da cidade, enquanto O Cru-zeiro baixava o pau. Eu participei ativa-mente, como Chefe de Reportagem, dacampanha de defesa da mudança da ca-pital para o Planalto Central”, disseNiskier.

A Manchete já tinha se envolvido emoutras campanhas importantes, como aque apoiou o movimento da Bossa Nova,liderado por Ronaldo Bôscoli. Lutou tam-bém pelo Cinema Novo com o JustinoMartins quando este dirigiu a revista:

“Como ele adorava cinema, foi sensí-vel ao movimento. Protegeu o CinemaNovo nas páginas da Manchete, contribu-indo para que o movimento ganhasse for-ça. Outro que esteve engajado nesse pro-jeto foi o Nelson Pereira dos Santos, quetrabalhava conosco, como redator daManchete”, recorda Niskier.

Para dar uma idéia da força editorial daManchete, Niskier lembrou o momento emque a revista publicou a série A Morte de umPresidente. A iniciativa foi tomada depoisque a revista encomendou uma pesquisa aoIbope, que constatou que os leitores que-riam que a publicação aumentasse o volu-me de texto, no lugar da fotografia:

“De posse dessa informação, o Jaqui-to foi a Nova York e comprou os direitosde A Morte de um Presidente. A série foipublicada entre os anos de 1964 e 1965,após a morte do Kennedy, em 1963, e arevista deu um salto de venda de 200 para350 mil exemplares, mas não interessavaaos Bloch vender mais do que isso.”

Niskier narra também o episódio daamizade de Adolpho Bloch com Jusceli-no Kubitschek e revela que a relação en-tre os dois era baseada numa admirávelsolidariedade. Diz Niskier que Adolphoe Juscelino se gostavam como irmãos; elefoi testemunha de que Adolpho, após acassação de JK, em 1964, precisou socor-rer o amigo com remessas de dinheiro quefez para Nova York e depois Paris:

nho licenciatura nessa disciplina. E os li-vros de Matemática para as séries do an-tigo primeiro grau tiveram 10 milhões deexemplares vendidos. Tudo o que eu con-segui na vida em termos de conforto éproveniente dos direitos autorais dessacoleção, A Nova Matemática.”

Adolpho Bloch, um gênio

O autor de Memórias de um Sobreviventeconta que ficou impressionado com Adol-pho Bloch logo no primeiro contato.

“Eu fui apresentado ao Adolpho Blochpelo Augusto Rodrigues e fiquei impressio-nado diante daquele homem forte, narigu-do, com um sapato de camurça azul. Na horao que me ocorreu foi a idéia de que estavana presença de uma pessoa muito rica. Euachava que só um milionário poderia usarum sapato daqueles. Essa foi então a primei-ra impressão que tive do Adolpho.”

Dois anos depois desse encontro,Niskier viveu uma situação delicada e re-solveu pedir ajuda a Adolpho Bloch. Ti-nha sido despejado do apartamento emque vivia com a mãe e uma irmã mais novae não conseguia um fiador para alugaroutro imóvel. Niskier lembra que a situ-ação era dramática. “Tocou o desespero eresolvi procurar o Adolpho Bloch”, con-tou. “Todo mundo tinha medo do Adol-pho, a turma tinha receio das explosõesdele. Eu fui falar com ele. Ele me olhou,me perguntou quem eu era e em que setortrabalhava. Eu contei a situação, disse queestava precisando de um fiador. Ele medisse que o fotógrafo Hélio Santos tinhalhe pedido a mesma coisa, mas que nãoestava fazendo o pagamento em dia. Eleme fez jurar que não ia lhe trazer aporri-nhação, pegou a minha mão e disse: Va-mos fazer uma combinação. Eu vou ser oseu fiador, mas se você não pagar o aluguelem dia eu corto os seus culhões.” (risos).

Na visão de Niskier o sucesso editori-al da revista Manchete se deve à figura deAdolpho Bloch. Sem ele, a revista nãoteria acontecido:

“Ele era um gênio. Intuía as coisas, tinhaum olhar diferenciado para os detalhesgráficos, a beleza da impressão. A sua atu-ação era realmente uma coisa extraordiná-ria. Ele era generoso em certos momentose mesquinho em outros. Os salários são umexemplo da sua falta de generosidade. Eleargumentava que o funcionário deveria sesentir orgulhoso de trabalhar na Manche-te. E que isso tinha um preço, um valor quena cabeça dele deveria ser descontado nopagamento de cada um de nós.”

Niskier lembrou um episódio que pre-senciou de uma conversa de Adolpho Blo-ch com o jornalista Augusto Nunes. Adol-pho pediu que este viesse de Porto Alegrepara encontrá-lo, porque queria contra-tá-lo para dirigir a Manchete no lugar doJustino Martins.

“Depois do almoço, ofereceu 25 milcruzeiros para o Nunes, que disse que esseera o salário que ele ganhava no Zero Hora,e que não sairia de lá para ganhar a mes-ma coisa. Adolpho pôs a mão no ombrodele e disse: ‘Meu filho, olha essa vista doAterro, da praia. Quanto vale isto?’ O Au-gusto então respondeu: ‘Seu Adolpho nofim do mês quando eu tiver que pagar asminhas contas essa vista não irá me aju-dar em nada. Eu preciso de grana’. Como

“Depois que o Juscelino foicassado o Adolpho me chamou,perguntou se eu estava com opassaporte em dia, me entre-gou US$ 7 mil em espécie e pe-diu para eu comprar uma passa-gem de avião e fosse a NovaYork entregar pessoalmente odinheiro ao Juscelino, que se-gundo ele estava passando difi-culdades financeiras no exteri-or”, contou Niskier, que cincomeses depois viajou a Paris coma mesma missão.

Para Niskier, Adolpho e Jus-celino “não fizeram negócios,não foram sócios, mas se apro-ximaram fraternalmente paradar um exemplo de amor aoBrasil e de confiança em seufuturo, com a construção danova capital”.

Com a televisão, o declínio

Durante mais de 20 anos,entre as décadas de 1950 e 1970,Manchete foi a principal revistado País, à frente de O Cruzeiro eVeja, que hoje é outro fenômenoeditorial, com circulação demais de 1 milhão de exemplares.

Mas na época em que disputava mercadocom a Manchete, Veja esteve longe de ame-açar a hegemonia editorial da publicaçãodirigida por Adolpho Bloch. Nas décadasde 1960 e 1970 Manchete foi o principalveículo de comunicação do País. A partirdos anos 1980, com a história da televisãoé que veio o seu declínio.

A causa da queda, diz Niskier, foi por-que “misturaram as estações”:

“O Adolpho nasceu tipógrafo, e nessecampo ele se destacou. Conseguiu fazer,graças à equipe que juntou, uma belíssi-ma revista como Manchete e outras maisque a acompanharam, como Fatos & Fotos,Ele e Ela, Pais e Filhos, entre outras. Quandosurgiu a televisão na vida dele, começouo fim. Não faltou quem o alertasse de queuma grande empresa precisa ter televisãotambém. O Roberto Marinho me disseque muitas vezes alertou Adolpho Blochpara não entrar na aventura da tv. Mari-nho me contou que se não tivesse sidoajudado, a TV Globo jamais teria alcan-çado o sucesso que alcançou.

Lembra Niskier que inicialmente, an-tes de se arrepender de ter investido nesseprojeto, Adolpho Bloch ficou encantadocom a idéia de ser dono de um canal detelevisão. Ele participava pessoalmentedas reuniões da emissora, a ponto de seenvolver com palpites nas produções dasnovelas.

A extinta Rede Manchete chegou a ter7 mil funcionários no auge da televisãobrasileira (1980-1990), mas, diz Niskier, osBloch não entendiam nada do mercadode televisão e por isso perderam muitodinheiro. A tv dilapidou as reservas doGrupo Bloch:

“Eles queriam competir com a TVGlobo, quando poderiam ter ficado numconfortável segundo lugar, e jamais teri-am quebrado. Quando iniciou a tevê, em1983, Adolpho tinha em caixa nada me-nos que 25 milhões de dólares — e issotudo virou pó.”

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 1984,Niskier foi acolhido com carinho por Rachel de Queiróz.

ACERVO

PESSOAL

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40 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

Após cerca de 20 livros sobre econo-mia e política, o jornalista, escritor e pro-fessor de Economia Internacional daUniversidade Estadual da Paraíba (Uepa),José Carlos de Assis, se propõe a construir“uma ponte entre materialismo e espiri-tualidade”. E o faz investigando em abran-gente e pedagógica reportagem baseadaem testemunhos históricos, filosóficos, ecientíficos que se aprofundam com fatos,relatos, opiniões e situações. Tudo reuni-do no livro intitulado A Razão de Deus.

Perseguido desde as mais remotasmanifestações da inteligência humana, otema é dos mais ousados e desafiador, bemdiferente de ensaios jornalísticos anteri-ores do autor. Ensaios críticos que lhederam ampla exposição na mídia e na aca-demia ao analisar desvios e desacertoseconômicos na administração pública.Com alguma profecia em A Crise da Glo-balização (Ed. Mecs, 2008), J. C. Assis che-gou a antecipar a atual erosão capitalista.Seu novo livro A Razão de Deus (Civiliza-ção Brasileira, 351 pgs, R$ 40), destina-seigualmente ao debate. Até com mais po-lêmica e paixão. Principalmente porqueA Razão de Deus expressa claramente asublimação de uma inesperada tragédia,que se o autor não a exibe em detalhes pormotivos evidentes, também não a escon-de como um opróbrio. Tão pungente eespantosa se afigura a tragédia em sua ínti-ma espiritualidade, vamos dizer “quântica”,que a morte como óbvio mistério da vida,o sofrimento como sinal e conseqüênciadeste fim e o desapego como filosóficoremédio para neutralizar fatalidades semvolta, toda essa iminente perda de fôlego– o Atman ou força vital dos hindus refe-rido pelo autor entre tantas outras teoló-gicas referências – estende um fio de pa-tética e sutil emoção através do livro. Mes-mo quando o autor, a páginas tantas, seenvereda numa recidiva econômica aodissertar sobre as implicações múltiplas daatual realidade político-financeira de ummundo pretensamente em marcha para anova “Idade da Cooperação”.

Desde o início o leitor é convidado atomar uma fascinante posição:

– Ponha-se no lugar de Deus!Tamanha responsabilidade, ainda que

meramente retórica ou simplesmenteutópica, impõe incríveis enfrentamentosque podem, paradoxalmente, soar comouma prazerosa lisonja à compreensão doleitor. Como, por exemplo, ter que satis-fazer necessidades básicas de seres cria-dos “à sua imagem e semelhança” estan-do você no hipotético lugar de Deus.Assim – pergunta o autor -, você se con-

– Trato de física quântica – diz emconversa telefônica com o resenhistadeste livro.

Física ou mecânica quântica é aquelaque trata da intimidade – ou seria alma?– da matéria. Cuidando a mecânica ener-gética exatamente dos fenômenos queocorrem entre o universo infinitesimal

dos átomos e subátomos.É aí, nessa intimidade, va-mos dizer espiritual, que ametafísica e a metapsíqui-ca buscariam a tão procu-rada “partícula divina”.Com a qual a ciência ex-plicaria irrevogavelmentea existência de Deus. Napenúltima página o autorreforça o rótulo mágicoque apõe ao seu livro comuma conclusão de trans-cendência poética:

– ... na física quânticahá inúmeros fenômenos descritos, masnão explicados, inclusive a luz.

E inclusive Deus.Assim o inexplicável é sempre expli-

cado com testemunhos às vezes contra-ditórios e contraditados. Como aconte-ce com a mais conhecida das afirmaçõesde Einstein de que “Deus não joga da-dos”, enquanto pesquisas recentes pode-rão, ao contrário, mostrar que “Deus jogadados, sim!” Ou como as sempre renova-das posições do mais celebrado cosmó-logo da atualidade, o matemático-showStephen Hawking, citado “para (o leitor)entender metafisicamente a mente deDeus no processo da criação”. Com essaótica e sem querer antecipar a comple-xidade por vezes escorregadia de A Ra-zão de Deus, observamos que J. C. Assisnão foge às suas origens como repórterao investigar causas e descrever conclu-sões próprias ou de cientistas longa e mi-nuciosamente pesquisados. Sempre nocaminho do conhecimento, ele certa-mente não usa o método do frade inglêsOkhan -– a citada Navalha de Occan –como regra de produção literária. Segun-do este método secular, a mais simples ésempre a melhor entre duas (ou várias)hipóteses. Por acreditar porém nesta sim-plicidade ou simplificação, J. C. Assisrevela como fundamento de suas pes-quisas que “a existência de Deus nãopode ser provada cientificamente, masé uma exigência da razão”.

A exigência da razão provaria, comoponto de referência do livro, a existênciade Deus. E se manifestaria em três mo-mentos supremos da realidade do univer-so conhecido ou inferido cientificamen-te. Momentos nos quais, pelo menos

como tese central, a presença de um Cri-ador consciente se fez necessária:

1. A criação do universo ou o (preten-so?) Big Bang;

2. A criação da vida e posterior diver-sificação (evolução?) das espécies;

3. A aquisição de inteligência criativano homem ou da (subjetivo-objetiva?)linguagem.

Já na dedicatória – para Aniucha e Lu-cinha in memoriam – o autor deixa claroque A Razão de Deus lhe adveio, foi inspi-rada ou sublimada em conseqüência deinenarráveis e sofridas emoções. Pesqui-sa no Google indica a existência de algocomo uma onda de desestímulo à vida vei-culando métodos e práticas de auto-exter-mínio. Os anjos desse “desencanto quân-tico” exploram um sinistro glamour deinexplicável filosofia atrativa para pre-dispostos à depressão, envolvendo men-tes oprimidas por fatores vários que sem-pre preocuparam a psiquiatria, a psicolo-gia e a metapsicologia. As vítimas são des-critas como jovens notadamente brilhan-tes com desenvolvimento intelectualbem acima da média. Mas permanente-mente insatisfeitos com o que a vida lhespode oferecer como justificativa existen-cial. Embora não apareçam no livro refe-rências ao fenômeno que se aguçou comas facilidades da internet, jornais euro-peus principalmente vêm-se ocupandoem desmantelar plataformas da web usa-das para a disseminação no mínimo sinis-tra.

A filha e sua primaAna Assis, a Aniucha da dedicatória,

morreu em abril de 2011 presa de inespe-rado evento psicológico/psiquiátrico/quântico!? E Lucinha era a prima yogue-rosa-cruz Lúcia Maria Silva, inspiradorado autor e vítima de um câncer que nãolhe respeitou o vigor intelectual.

Após advertir com humildade que nãoé “muito sábio, nem muito virtuoso, nemmuito bom”, esclarece J. C. Assis nas li-nhas finais de A Razão de Deus:

“O desaparecimento de uma filha,Ana, em circunstâncias trágicas e inespe-radas me ensinou a compreender do fun-do da alma a necessidade do conceitobudista de desapego como caminho paranos consolarmos da perda trágica de umrelacionamento com uma pessoa amada.

Essa experiência pessoal e intransferí-vel, mesmo para uma obra de investiga-ção filosófica e literária com ritmo deempolgante reportagem, confere amargariqueza e ineditismo ao livro. Amargotambém é o contexto de A Razão de Deusao conectar de passagem a tragédia doautor com a experiência de morte vivida

POR PINHEIRO JUNIOR

Deus é investigado emlivro-reportagem de José Carlos de Assis

Jornalista e professor de Economia Internacional sublima tragédia pessoale guia o leitor através de teoria, fatos e opiniões sobre o cosmo e a vida.

formaria em aceitar a divisão de povos emais povos em diferentes religiões e emmilhões ou bilhões de seitas tão contra-ditórias? Você – “como Deus” – se senti-ria honrado com tantos rituais, liturgias,orações e oferendas para ter que cuidarpessoalmente do destino individual dosatuais 7 bilhões de seres humanos?

São indagações que le-vam em conta a inquestio-nável modéstia divina, umatributo oposto a louvo-res, lisonjas e glórias vãs.São também indagaçõesque se justapõem à propa-lada bondade infinita deDeus. Índole máxima e ba-sicamente cristã. Que aca-baria manipulada na bus-ca do consolo espiritualtão desejado por todos, tãonecessário e tão difícilembora oferecido por tan-tas e por vezes contraditórias interpreta-ções religiosas.

Explicando o inexplicávelO leitor é maciçamente submetido a

uma sucessão de proposições e desafioshistóricos direcionados à compreensãodo cosmos e da vida, em toda maravilho-sa complexidade desses fatores essenci-ais. Fatores que intrigam os pensadoresdesde a aurora da Civilização. Desta for-ma, o convite a tão complexa compreen-são acaba se resumindo à escolha de trêscaminhos clássicos vislumbrados ou sim-plificados por sábios hindus e (possíveis)exegetas gregos:

1. O caminho do conhecimento;2. O caminho da devoção;3. E o caminho da ação.O terceiro seria o mais fácil dos cami-

nhos. Porque ao longo dele, apenas agin-do, “você evitará as perguntas mais com-plexas e simplesmente procurará fazer oque lhe parecer bom para si mesmo e paraos outros”. Embora concluindo que qual-quer que seja seu caminho, “ele o libertaráse perseguido com afinco”, J. C. Assisentra pelo mais complexo e por vezestortuoso caminho do conhecimento. Masdeixa claro que não pretende ater-se àmetafísica, à filosofia, à teologia ou àciência. E como não consegue escapar denenhuma dessas especialidades, o autor élevado a referir-se a uma predominânciapara situar seu livro. Se é que os pensa-mentos, argumentos e fatos ali reunidospoderiam ser circunscritos a uma especi-alidade. Como não podem, o autor cita aárea mais intrigante e de curso talvezmais misterioso cientificamente dentrodas conveniências do tema:

LIVROS

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41JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

“Nunca me meti em política, isto é, oque se chama política no Brasil. Paramim a política, conforme Bossuet,tem por fim tornar a vida cômoda e

os povos felizes. Desde menino,pobre e oprimido, vejo a ‘política’ doBrasil ser justamente o contrário. Elatende para tornar a vida incômoda eos povos infelizes. Todas as medidasde que os políticos lançam mão são

nesse intuito. [...]” (Da crônicaPalavras dum simples, 1922 –

em Marginália, 1953).

“Quando me julgo – nada valho;quando me comparo sou grande.”

(Diário Íntimo, 1905)

por Charles Darwin. Ele – o evolucio-nista criador tão contestado e nuncacompletamente comprovado em suamagnífica teoria das espécies em evo-lução – teria se convertido de ateu emagnóstico, em razão da morte prematu-ra de uma filha.

O pensamento literário, conduzidoquase em suspense e desesperado con-trole, é outra característica confessada,capítulo após capítulo, notadamentequando o autor explica com singelezaas poucas referências literais necessá-rias à exposição e argumentação nocurso da obra:

“Minhas idéias sobre física, biologiae espiritualidade desenvolveram-se aolongo de mais de 40 anos de leiturasanárquicas.”

Ele sobrepõe, também com delibera-da anarquia, linha após linha, autores elivros que exerceram grande influênciasobre o seu pensamento, considerando“uma desonestidade intelectual nãomencioná-los nominalmente”. A come-çar por Bertrand Russel (Analysis ofMatter) e Albert Einstein (Mein Welt-bild) termina ele a vasta bibliografia deduas páginas sem parágrafos, com RobertMonroe (Journeys out of the Body).

Quem éMuito jovem, J. C. Assis deixou mi-

litâncias jornalísticas e sindicais no in-terior de Minas e veio para o Rio. Em1972 estreou como repórter e depoiseditor de assuntos educacionais em OJornal do Rio de Janeiro, extinto órgãodos Diários Associados, tendo dirigidoa Redação por breve período. Transfe-riu-se como repórter de economia parao Jornal do Brasil e depois para a Folha deS. Paulo. Foi colunista de política eco-nômica de O Globo, onde ocupou a pá-gina 3 com severas críticas à economiaoficial. Atualmente colabora com Car-taCapital. Dentre seus livros de maiorinteresse/sucesso destacamos A Chavedo Tesouro (1983), Os Mandarins daRepública (l983), A Dupla Face da Cor-rupção (1984), O Grande Salto para oCaos(1985), com a economista Mariada Conceição Tavares, A Nêmesis da Pri-vatização (1997) e As Sete Bestas do Fimdo Mundo (1998).

Convite à reflexãoSem comprometer o integral interes-

se de A Razão de Deus, cito o parágrafofinal do livro. Diz J. C. Assis: “Quandoiniciei a elaboração deste livro, penseiprincipalmente nas minhas filhas,como forma de compensá-las por nãolhes ter dado formação religiosa con-vencional: infelizmente, Ana partiuantes de lê-lo”.

Mais que uma curiosidade, é sinto-mático que o prefaciador FranciscoAntonio Doria – físico-matemático emembro da Academia Brasileira de Fi-losofia – se autoproclame um ateu. Dizele que “só algo como o ateísmo fariasentido” neste mundo. Mas garanteque a hipótese que J. C. Assis “expõe doCriador natural, simultaneamente de-terminístico e probabilístico, portan-to quântico, se não convence, certa-mente convida à reflexão!”

Acaba de ser lançado o livro Lima Bar-reto: Uma Autobiografia Literária (Editora34, 2012). O volume organizado por An-tonio Arnoni Prado, professor do Depar-tamento de Teoria Literária da Unicamp,mescla vários escritos de ficção e não fic-ção, com notas explicativas para identi-ficar personagens e situações. O primeirotrecho reproduzido acima é da carta deLima Barreto a Mário Galvão – repórterdo Diário do Comércio que viria a ser umdos fundadores da Associação Brasileirada Imprensa. Essas palavras foram escri-tas em 16 de novembro de 1905 e são umexemplo de como a leitura nos faz imer-gir em contextos, sentimentos e expres-sões que beiram os limites da linguagem.A figura de Pelino Guedes, uma espéciede “símbolo da intolerância e da grama-tiquice prepotente”, como se vê, apare-ce em outros momentos e é um dosmuitos elos entre a vida pessoal e a obrade Lima Barreto. Prado comenta quedepois de um desentendimento comPelino – à época, Diretor-Geral da Justi-ça do Rio de Janeiro – esse homem setornou uma referência convertida empersonagens como o Xisto Beldroegas, doromance Gonzaga de Sá (1919), e o minis-tro J. F. Brochado, de Numa e Ninfa (1915).

Não seria o primeiro episódio em quea relação entre vida e obra é especialmen-te notável no caso de Lima Barreto. Ali-ás, outros livros recentes reforçam essapeculiaridade. Entre eles: Contos Comple-tos de Lima Barreto, (Companhia das Le-tras, 2010), com organização de LiliaMoritz Schwarcz; e o volume Lima Bar-reto, da coleção Retratos do Brasil Negro(Selo Negro, 2011), no qual Luiz Silva(Cuti) mostra a atualidade dos proble-mas apontados e enfrentados pelo escri-tor no início do século 20.

As edições acima e o lançamento daautobiografia literária reafirmam a expe-riência de que um bom livro leva a outro,sem qualquer necessidade de ordem cro-nológica. São leituras que despertam ouintensificam a vontade de saber mais.

medida sua voz embarga-da, mas, logo adiante, a au-tocrítica, a consciência e aperspicácia diante de pes-soas do seu tempo.

Cabe destacar, quanto aisso, as palavras de JoãoAntônio, também citadasna autobiografia: “Lima Bar-reto, a bem dizer, deu deombros à própria glória lite-rária. Não pensou nela. Es-crevia por desafogo. Ro-mances, contos e crônicasque publicou mantiveram

caráter de protesto. Contra as rotinas, ospreconceitos, contra a tolice, as frivolida-des, contra o ramerrão, contra as normase regras, que só o tempo consagrara. Nãohouve nas letras brasileiras, escritor tãorevolucionário” (Jornal do Brasil, 17 de ju-nho de 1978).

A lista de comentários sobre o autortraz a voz de outras personalidadescomo Sérgio Buarque de Holanda e CaioPrado, esses, aliás, valorizando a ousadaperspectiva histórica e social adotadadesde as primeiras publicações. Nomescomo Antonio Candido, Alfredo Bosi eoutros também estão registrados entre oscomentaristas.

Talvez seja oportuno para lembrar aspalavras de João Antonio, na apresentaçãode um livro de crônicas escolhidas (Áti-ca,1995): “apesar de algumas tentativassérias de redescobrimento de Lima Barre-to [...] há sempre pontos a ressaltar naimportância do mulato de Todos os Santos,pois vão sendo esquecidos novamente,logo após esses ‘redescobrimentos’. [...]”

“Não tenho editor, não tenho jornais,não tenho nada. O maior desalento meinvade. Tenho sinistros pensamentos.Despeço-me de um por um dos meus so-nhos.” (Diário íntimo, 20/04/1914)

O fato é que após 90 anos de sua mor-te, cá estamos lendo até seus mais ínti-mos lamentos. Suas reivindicações e re-voltas continuam atuais, bem como suasesperanças e seu exemplo de compromis-so com a verdade.

Retratos de Lima Barretopor ele próprio

POR RITA BRAGA

Professor da Unicamp recolhe na obra do escritor confissões, sentimentos e aspirações.

“Bem sabes o que é a dor de escrever. Essa tortura que o papel virgempõe n’alma de um escritor incipiente. É uma angústia intraduzível, essa deque fico possuído à vista do material para a escrita. As coisas vêm aocérebro, vemo-las bem, arquitetamos a frase, e quando a tinta escreve pelapauta afora – oh! que dor! – não somos mais nós que escrevemos, é oPelino Guedes”. (Diário íntimo, 1905, sem data).

“Há meses inaugurou-se a iluminação elétrica em uma qualquer cidade.Para evitar desastres pessoais, o chefe da usina mandou pôr o seguinteaviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores etc.:

‘Perigo! Quem tocar nestes fios cairá fulminado. Pena de prisão e multapara os contraventores.’

Fazer um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fioelétrico...” (Diário íntimo, 1910, sem data).

De conhecer e de mais umavez reconhecer o artista, ointelectual, o cidadão crí-tico, uma mente libertáriatantas vezes rechaçadapelo preconceito.

BricolagemA estrutura de nove ca-

pítulos, do “Autorretrato”aos “Outros retratos”, pas-sa por temas como o narra-dor, os personagens, a críti-ca, a arte, a morte e a peni-tência, entre outros. Cha-ma a atenção o caráter de bricolagem daobra que, com delicadeza e discrição, fazque o leitor se sinta, ele mesmo, um curi-oso revirando papéis de um baú alheio.Nessa colcha de retalhos, quase nem serepara o quanto nos deixamos conduzirpelo olhar do organizador. Ao nos con-frontarmos com preciosidades do Diárioíntimo – por vezes palavras soltas, a inten-ção de um escrito – ouvimos em alguma

DOIS FRAGMENTOS

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Está correto descrever Eric Hobsbawm,morto aos 95 anos no dia 1º de outubro,como um dos mais importantes historia-dores britânicos. Correto, porém incom-pleto. Nas últimas três décadas, ele se tor-nara muito mais que isso: era um intelec-tual lido e respeitado em todo o mundo porgente de todas as áreas de conhecimentoe mesmo de expressão ideológica diferenteda sua – embora fosse um marxista quenunca foi sectário, manteve-se marxistamesmo após o colapso do bloco soviético.Ou seja, à esquerda ou à direita, seus leito-res, do leigo ao mais especializado, apreci-avam a lucidez com que refletia sobre onosso tempo e a clareza com que escreviaseus livros. Ele fazia que o prazer da leituranunca se perdesse por mais complexa quefosse a argumentação. Um caso raro. Umaperda irreparável.

Da geração de historiadores que surgiuno pós-guerra – como os colegas E.P. Thomp-son e Christopher Hill, igualmente brilhan-tes, mas nem tanto conhecidos fora docampo de atuação –, Hobsbawm teve aprincípio como especialidade o século 19.Como poucos, soube explicá-lo, em pince-ladas largas, porém precisas, numa série detrês livros que começou com A Era dasRevoluções. O sucesso foi tanto que elevoltou a pensar sobre o período em A Erado Capital e A Era dos Impérios. Assim, ahistória do capitalismo, de 1789 a 1991, erarevista com erudição, um pouco de humore linguagem acessível. Para o século 20,reservou um dos seus livros mais elogiados:um quarto volume das Eras foi lançado em1994. Ele o denominou A Era dos Extremos,menos histórico e mais especulativo, sobreo período que vai de 1914, quando come-çou a Primeira Guerra Mundial, ao ano de1991, com o fim da União Soviética. Umdesafio e tanto para um historiador: falardo próprio tempo em que viveu.

A biografia de Eric Hobsbawm decer-to o ajudou a compreender seu tempo. Nas-ceu em Alexandria, no Egito, em 9 de ju-nho de 1917 – era a época em que o impé-rio britânico dominava aquele país. Olocal de nascimento o tornava particular-mente sensível ao tema da hegemonia e dacolonização. O ano coincidia com o daRevolução Russa. Era neto de judeus polo-neses, o que o fez não só testemunhar,como viver ele mesmo o terror do anti-semitismo que culminou com a SegundaGuerra Mundial. O pai era um inglês quese mudara para o Egito; a mãe, austríaca,estava de passagem pelo país. O filho Eric

do comunismo. Uma prova de como suaaudiência era eclética foi a lista de convi-dados de seus aniversários de 80 e 90 anos:compareceram às celebrações pessoas tan-to da ala liberal quanto da esquerda britâ-nicas. Apesar da idade avançada, conti-nuou a escrever. Era constantemente pro-curado por jornalistas para falar de todosos assuntos. Atendia-os quase sempre, sónão acontecia devido a impedimentos desaúde ou compromissos. Subia os trêsandares de uma escada estreita e íngremee enfim alcançava seu escritório, sala 33 daTavistock Square nº 35, sede do Institutode Estudos Latino Americanos da Univer-sidade de Londres.

Quem se recordou da cena, num dos obi-tuários publicados na imprensa brasileira, foiNicolau Sevcenko, respeitado historiadorbrasileiro, hoje professor titular de línguase literaturas neo-latinas da UniversidadeHarvard, que compartilhou o lugar enquan-to preparava seu livro Orfeu Extático na Me-trópole. “A direção do Iela havia insistido váriasvezes para que ele aceitasse se alojar nosandares inferiores. Nunca aceitou. A sala 33era uma das maiores e nela ele dispunha suamiríade de livros, em estantes horizontais,pilhas verticais, arcos, pirâmides e labirintos.Sempre sabia encontrar o que precisava”,contou Sevcenko, que se recorda de que Ho-bsbawm ia ao prédio de sapatos, mas troca-va por um par de tênis especialmente reser-vado para a grande escalada. Chegando, le-vava alguns minutos para recuperar o fôle-go, e logo se punha a trabalhar concentrado.“Nunca se queixou do esforço.”

“Vulgarizador”A generosidade de Hobsbawm era es-

pontânea e genuína, como recordou Se-vcenko. “Gentilmente, ele me pergunta-va sobre o andamento das minhas pesqui-sas, fornecendo indicações preciosas, re-buscando dentre seu enorme acervo tudoo que considerava relevante para o desen-volvimento do trabalho. Não raro, me

trazia livros de sua biblioteca pessoal.”Hobsbawm se apresentava como “vulga-rizador”, mas, como ressalta Jorge Gres-pan, historiador brasileiro que leciona noDepartamento de História da Usp, a auto-denominação não deve levar a enganos:“atingir um público amplo significava nãosatisfazer a curiosidade acrítica do merca-do editorial, e sim participar de um esfor-ço formador.” Como outro de seus legados,diz que Hobsbawm “mostrava aos críticosque o marxismo não precisa ser economi-cista; mas o mostrava também aos marxis-tas”. Continua Grespan: “Como seria ine-vitável, há quem discorde de teses expos-tas na sua vasta obra. Mas não quem negueque ele foi um dos maiores historiadoresmarxistas de nossa era, cujos ‘extremos’parece que só começaram depois de 1991.”

A sorridente simplicidade do gigante bri-tânico encantou imprensa, leitores e mo-radores de Paraty quando lá esteve comoum dos convidados da primeira Festa Lite-rária da cidade, a Flip, em 2003. O vigor oajudou a vencer o calçamento irregular e astantas solicitações. Uma queda em meadosde 2010 reduziu sua mobilidade. Intelectu-almente, manteve-se ativo. Numa das últi-mas entrevistas à imprensa brasileira, falousobre que imagens marcavam o século 21.Respondeu que no começo da Era das Re-voluções um observador que estivesse forado planeta só via a Grande Muralha daChina como resultado da ação do homemna Terra. Vendo hoje por satélite, encontra-vam-se muitos mais sinais: o declínio dasflorestas, o tamanho e a luz das metrópo-les, o reflexo de guerras e catástrofes.

Hobsbawm observou ainda que a gran-de dificuldade de ir de um lugar para o outroque se tinha até o século XVIII foi superadapor duas revoluções sem precedentes: o trem,depois o avião. Outra, ainda mais imprevi-sível, foi a da internet. Sua capacidade dejogar luzes sobre o óbvio sempre deixou atodos boquiabertos. E, a partir de agora, ór-fãos de sua inteligência e simplicidade.

JUA

N ESTEVES/FO

LHA

PRESSA unanimidade de

Eric Hobsbawm

POR GONÇALO JÚNIOR

Marxista mesmo após o colapso do bloco soviético,historiador inglês se tornou um dos intelectuais

mais lidos e respeitados do mundo.

foi o primeiro, depois nasceria Nancy. Elepassou a infância em Viena, na década de1920. Ficou órfão na adolescência – o paimorreu de ataque cardíaco em 1929, a mãe,de tuberculose dois anos depois.

Jazz, uma paixãoEric e Nancy, então, foram viver com um

tio em Berlim, até ele completar o ensinosecundário. Aprendeu a falar perfeitamenteo alemão e então leu Marx pela primeiravez e se tornou um jovem politizado. Logoentraria para o Partido Comunista. Nocomeço da década de 1930, quando AdolfHitler ocupava o poder na Alemanha, ele jáera um estudante de História em Cambrid-ge, pólo de uma das mais importantes uni-versidades do Ocidente. Foi na Inglaterra,assim que chegou, que descobriu o jazz,uma de suas paixões e que renderia um dosmais respeitados estudos sobre o tema, AHistória Social do Jazz, lançado no Brasil pelaeditora Paz & Terra.

A reputação cresceu muito cedo. “Háalguma coisa que Hobsbawm não saibaresponder?” Era assim que os colegas deuniversidade falavam do rapaz, ainda jo-vem. Antes do fim da guerra, em 1943,casou-se com Muriel Seaman, sua primei-ra mulher. Como professor, estreou quatroanos depois, no Birbeck College, em Lon-dres. O primeiro livro veio logo depois: em1948, lançou uma coletânea de textos so-bre o começo da Revolução Industrial. Suatrajetória como autor foi cada vez mais fe-cunda e original – além da história social dojazz, publicou, por exemplo, o banditismosocial de Pancho Vila a Lampião, a invençãode tradições, sociedades secretas da Europa.

O casamento de Hobsbawm com Murielterminou em 1951. De um relacionamentoque não foi oficializado, nasceria seu primei-ro filho, Joss Bennathan. O segundo enlaceocorreu em 1962, com Marlene, sua compa-nheira até a morte. O casal teve dois filhos,Andrew e Julia – ao morrer, contava tam-bém sete netos e um bisneto. Os volumes dasEras saíram entre os anos 1960 e 1990. Vie-ram fazer sua fama, inclusive no Brasil. Entreos mais recentes, destacam-se o volume dememórias Tempos Interessantes, e um tomo so-bre questões contemporâneas: Globalização,Democracia e Terrorismo. Até se aposentar,Hobsbawm continuaria a lecionar na Birbe-ck College. Universidades de vários paísesconcederam-lhe o título de doutor honoris.

Com bons argumentos na ponta da lín-gua, Hobsbawm se manteve marxista mes-mo após o colapso do mundo soviético. Porsua qualidade como pensador, era respei-tado mesmo pelos mais ferrenhos críticos

VIDAS

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A morte do filósofo Carlos Nelson Cou-tinho, professor da Universidade Federal doRio de Janeiro e um dos pensadores políti-cos marxistas mais respeitados do Brasil,está sendo considerada uma grande perda,pois abre uma lacuna em um dos mais im-portantes ciclos da produção intelectualbrasileira sobre o estudo da política e domarxismo, que ele ajudou a difundir no Paíscom a inestimável colaboração do tambémfilósofo Leandro Konder.

Coutinho, que faleceu de câncer em 20de setembro, aos 69 anos, alcançou reco-nhecimento internacional como um dosmaiores especialistas no pensamento dofilósofo húngaro György Lukács e do ita-liano Antonio Gramsci. Sobre este último,foi responsável pela tradução, coordena-ção e edição da obra no Brasil, a exemplode Cadernos do Cárcere (Civilização Brasi-leira, 1999-2002). É também autor de vá-rios livros considerados fundamentaispara os estudos de teoria política, entre osquais Gramsci, um estudo sobre seu pensamen-to político e A Democracia Como Valor Univer-sa. Além disso, sua tradução de O Capital,de Karl Marx, é muito elogiada.

Pelo vasto legado que Coutinho deixoupara o Brasil nos campos da filosofia, po-lítica e serviço social, sua morte teve gran-de repercussão nos meios acadêmico e in-telectual. Em nota, o Reitor da UFRJ, Car-los Levi, disse que Coutinho foi “um dos no-mes de maior destaque na História daUFRJ e um dos principais pensadores doBrasil”: “Gramsciano de referência naci-onal e internacional, seu trabalho ajudoua formar pesquisadores e pensadores mar-cados pelo traço crítico essencial para aUniversidade e para a mudança social”.

Levi falou ainda sobre o prazer de con-ferir a Carlos Nelson Coutinho, recente-mente, o título de Professor Emérito daUFRJ, “numa cerimônia onde se via nosolhos de estudantes, professores, funcio-nários, políticos e amigos o carinho e orespeito que tinham por esse grande pen-sador’: “Presto minha solidariedade e pe-sar à família e amigos”.

Coutinho foi professor da Escola deServiço Social da UFRJ, dirigida pela pro-fessora Mavi Pacheco Rodrigues, cuja for-mação teve forte influência do filósofo:“Fui formada por ele, toda uma geração depesquisadores da área de Serviço Social, quehoje são reconhecidos, foi formada porCarlos Nelson Coutinho. Ele extrapolavao serviço social, era nosso Gramsci brasi-leiro e foi um dos pioneiros na divulgaçãoda obra de Lukács no Brasil, a partir dosanos 1960”, disse Mavi Rodrigues.

Nos meios de comunicação do Paísregistrou-se enorme manifestação de

Segundo Cristina e Leandro Konder,esse foi o quadro em que Carlos NelsonCoutinho empreendeu sua trajetória. (Paraler o artigo na íntegra acesse jb.com.br/pais/noticias/2012/09/21/morte-de-car-los-nelson-coutinho-deixa-legado)

Socialismo e democraciaA revista História & Classes se refere

a Coutinho como um dos maiores pen-sadores brasileiros, “sempre renitente emdefesa da tradição marxista”. A publica-ção ressalta as edições das obras de Gra-msci realizadas pelo filósofo, em con-junto com Leandro Konder, na década de1960, suas teses polêmicas sobre a for-mação econômico-social do Brasil e o sig-nificado da democracia e conclui que “aperda de Carlos Nelson Coutinho nosdeixa mais desamparados intelectual-mente na resistência à tentativa de im-posição neoliberal de um ‘pensamentoúnico’ e contra os relativismos pós-es-truturalistas que tanto seduzem os mei-os acadêmicos e intelectual”.

Carlos Nelson Coutinho:perdemos um grande pensador

POR JOSÉ REINALDO MARQUES

Ao lado do filósofo Leandro Konder, ele foi um dos maioresdivulgadores da obra de Marx, Gramsci e György Lukács no Brasil.

apreço e respeito pela memória de CarlosNelson Coutinho. Cristina e LeandroKonder prestaram uma homenagem aoamigo e companheiro, de muitas lutas po-líticas e relevantes trabalhos no campoacadêmico num artigo publicado no JBOnline, no qual afirmam que “a morte dofilósofo Carlos Nelson Coutinho nos de-safia a um reexame das relações de ummarxismo aberto, fundado em Gramsci eLukács, com as complexas relações exigi-das pela situação do campo socialista”.

Cristina e Leandro Konder ressaltamque a atuação e a contribuição filosóficae política de Coutinho têm duas verten-tes. De um lado, “temos um movimentotenso na História das idéias sociais, umaproposta que mudou o mundo nos últi-mos dois séculos, mas agora enfrenta odesafio de se renovar”. De outro lado, “te-mos a agitação peculiar à ascensão daclasse operária ao poder por caminhosbastante diferentes daqueles que haviamsido previstos pelo barbudo filósofo ale-mão: Karl Marx”.

Para o Movimento em Defesa da Econo-mia Nacional (Modecon), Coutinho foiintelectual combativo e intransigente de-fensor da democracia e do socialismo. “Suamorte é uma perda mais sentida ainda emrazão do momento em que os rumos daHumanidade se encontram atingidos pelocrescimento de manifestações de barbáriea mutilar os espaços de democracia e liber-dade conquistados pelas forças sociais pro-gressistas”, escreveu o historiador Lincolnde Abreu Penna, Presidente do Modecon.

Coutinho nasceu no interior da Bahia,no Município de Itabuna, em 28 de julhode 1943. Com a família mudou-se paraSalvador quando ainda era menino. Seupai era advogado e elegeu-se três vezesDeputado estadual pela antiga UniãoDemocrática Nacional (UDN). Ele se for-mou em Filosofia na Universidade Fede-ral da Bahia. “Um péssimo curso, e commeus 18 ou 19 anos sabia mais do que amaioria dos professores”, disse numaentrevista à revista Caros Amigos.

Na entrevista, Coutinho revela comose tornou comunista: “Eu me tomei co-munista lendo o Manifesto Comunista queo meu pai tinha na biblioteca. Ele era umhomem culto, tinha livros de poesia.Minha irmã, que é mais velha, disse queeu precisava ler o Manifesto Comunista.Foi um deslumbramento”.

Nessa época, Coutinho era um adoles-cente perto de completar 14 anos. Resol-veu cursar Direito porque era a faculda-de onde se fazia política. “Eu estava inte-ressado em fazer política. Me dei contade que uma maneira boa de fazer políti-ca era me tornando intelectual. Aos 17anos entrei no Partido Comunista Brasi-leiro, que naquela época tinha presença”,disse Coutinho a Caros Amigos.

Florescimento políticoEm 1976, meses após o assassinato do

jornalista Vladimir Herzog, em 25 de ou-tubro de 1975, por agentes da ditadura mi-litar (1964-1985) nas dependências do Doi-Codi do 2º Exército, em São Paulo, Couti-nho disse que teve o pressentimento de queia ser preso. Exilou-se na Europa, onde pa-sou três anos e, contou, aprendeu muitapolítica.

Coutinho morou na Itália “na época doflorescimento do eurocomunismo. Nesseperíodo, publicou o artigo A Democracia ComoValor Universal, seu primeiro texto, do qualtinha orgulho do “auê causado na esquerdabrasileira” na época. O texto foi considera-do reformista e revisionista, o que o deixouentusiasmado com a sua repercussão.

Após retornar do exílio na Itália, ingres-sou na UFRJ, onde lecionou por quase 30anos. Em sua biografia como militantepolítico consta que foi filiado a três par-tidos políticos: PCB, PT e PSOL. Sobre oPCB, onde ingressou aos 17 anos, disse quese desfiliou em 1982, “quando me dei contade que era uma forma política que tinha seesgotado”.

Carlos Nelson Coutinho era professortitular de Teoria Política na Escola de Servi-ço Social da Universidade Federal do Rio deJaneiro. É autor de vários livros, entre osquais, além dos já citados,Contra a Corrente:Ensaios Sobre Democracia e Socialismo (Cortez,2. ed., 2008) e O Estruturalismo e a Miséria daRazão (Expressão Popular, 2. ed., 2010).

ALEXAND

RE CAM

PBELL/FO

LHAPRESS

Carlos Nelson tinha adoração pelo pensador Gramsci, aqui na tela de seu computador.

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44 JORNAL DA ABI 383 • OUTUBRO DE 2012

VIDAS

Nas três décadas em que atuou como pu-blisher do The New York Times, Arthur OchsSulzberger ajudou a renovar o jornal comseções especiais e diversificou o modelo denegócios da empresa. Sulzberger, que so-fria de Mal de Parkinson, morreu na ma-nhã de 29 de setembro, aos 86 anos, em suacasa em Southampton, Nova York. Nasci-do em 1926, mais novo de quatro irmãos,formou-se em Inglês na Universidade deColumbia, mas fez carreira no jornalismo.

Na maior parte do tempo ele atuou nopróprio The New York Times, onde começoucomo repórter. Em seguida, foi correspon-dente em Paris, Roma e Londres. Assumiua direção do jornal em 1963, aos 37 anos,quando o veículo passava por séria criseeconômica. Ajudou a companhia a conquis-tar estabilidade financeira, abrangêncianacional e a ampliar os negócios com revis-tas e emissoras de rádio e de televisão. Emsua gestão, a publicação ganhou 31 prêmi-os Pulitzer. Entre 1992 e 1997, Sulzbergeratuou como Presidente da empresa, man-tendo voz ativa na administração até 2002,quando se despediu do Conselho do grupo.

Veterano da Segunda Guerra Mundial emais conhecido pelo apelido de Punch (‘soco’,

POR PAULO CHICO

Sulzberger, parte da históriada imprensa norte-americana

em inglês), recebido ainda na infância, Sulz-berger atuava na Marinha, em função decomando dos fuzileiros navais. Talvez poreste perfil, tenha surpreendido tanto os crí-ticos ao transformar o The New York Times emum enorme conglomerado de mídia nos Es-tados Unidos e na Europa. Sua decisão maisradical como editor ocorreu em junho de1971, quando bancou a divulgação de repor-tagens sobre papéis secretos (Pentagon Pa-pers) que revelavam que o Governo ameri-cano havia mentido sobre seu envolvimen-to na Guerra do Vietnã. Na ocasião, comba-teu a tentativa do Presidente Richard Nixonde barrar a veiculação das matérias.

Os documentos obtidos pelo jornal naépoca mostravam que os Estados Unidosencobriram operações no Vietnã, taiscomo a expansão dos bombardeios e açõespor terra, ao contrário do que informavamoficialmente. “Eu não tinha dúvidas deque os americanos tinham o direito de leressas informações, e que nós no Times tí-nhamos a obrigação de publicá-las”, disseo próprio Sulzberger, no auge do conflitocom o Governo Nixon, numa disputa quechegou aos tribunais. “Foi ele quem deci-diu que aquele seria um caso que tinha deser enfrentado. Essa decisão honrará parasempre não somente os jornalistas, como

as futuras gerações americanas”, lembrouFloyd Abrams, o advogado que represen-tou o jornal na Justiça, esfera em que oNYT obteve autorização legal para publi-cação das denúncias, numa histórica deci-são em favor da liberdade de imprensa.

Defensor da liberdade“Sulzberger tinha uma forte crença na

importância de uma imprensa livre e inde-pendente, sem ter medo de procurar a ver-dade, vigiar os poderes e contar as históri-as que precisam ser contadas”, avaliou oPresidente dos Estados Unidos, BarackObama. “Ele foi um defensor absolutamen-te feroz da liberdade. Sua batalha pessoal nocaso dos ‘papéis do Pentágono’ ajudou aampliar o acesso à informação crítica e arefrear a censura e a intimidação do Gover-no sobre os jornalistas”, declarou ArthurSulzberger Jr., seu filho e sucessor no co-mando do conselho do grupo. Além de Ju-nior, Arthur deixou as filhas Karen, Cynthia,Cathy e sua esposa Allison Cowles.

Quando deixou a presidência do jornal,em 1997, o The New York Times começavaa explorar o universo digital, que nuncaassustou Sulzberger. O jornalismo impres-so como único pilar do veículo não era oque defendia. Assim conseguiu desenvol-

ver uma empresa que hoje está à frente namaioria das áreas, tanto no papel como noonline, com os conteúdos mais diversifi-cados. Basicamente o que fez foi fortale-cer a posição do papel, expandir o negócio,suas operações e crescer, a partir de NovaYork, para o resto do país e do mundo.

“Muito presente na Redação, Punchserá lembrado por raramente interferirno trabalho de edição. Seu comando foimarcado também pela revitalização fi-nanceira e pelas inovações no jornal”,destacou Luciana Coelho, corresponden-te em Washington da Folha de S.Paulo, emartigo publicado no Observatório da Im-prensa. “Sob sua direção o jornal norte-americano ampliou e consolidou sua cir-culação nacional, reforçou sua indepen-dência editorial e iniciou inovações comoo uso de cor, a ampliação de cadernos e acriação de suplementos. Ele foi um dosúltimos representantes de uma espéciehoje em extinção nos Estados Unidos, ado publisher todo-poderoso, que se guiaprincipalmente por suas convicções”,definiu Sérgio Dávila, Editor-Executivoda Folha de S.Paulo, no mesmo site.

A eficiência de sua gestão sob o pontode vista empresarial pode ser medida pe-los números. Quando assumiu a direção doperiódico, o Times tinha uma tiragem de714 mil exemplares diários. Ao deixar ocargo para a sucessão de seu filho, o jornalcontabilizava tiragem diária de 1,1 milhãode exemplares. Durante este período, o fa-turamento do diário que se tornou o maisinfluente do mundo subiu de US$ 100 mi-lhões anuais para US$ 2,6 bilhões.

Oriovaldo Rangel,jornalista-escritor

Afastado há anos de atividade na im-prensa, o jornalista Oriovaldo Rangel fa-leceu no dia 12 de setembro, em Niterói,onde se radicara desde jovem. Ori, comoera chamado pelos amigos, trabalhou nodiário Imprensa Popular, no começo dosanos 1950, na Última Hora de SamuelWainer e na Agência Fluminense de Infor-mações, órgão do Governo do antigo Esta-do do Rio. Sobre ele o jornalista PinheiroJúnior, Conselheiro da ABI, fez comovidacrônica sob o título “Oriovaldo podia teresperado um pouco. Nós íamos fazer o seuperfil”, a seguir transcrito:

“Trabalhamos juntos na velha e atribu-lada UH. Ele como redator de Esportes.Cobria o Flamengo. Era 1958. Vez por ou-tra nos esbarrávamos na Redação da Geral.Sabia que ele tinha vindo da Imprensa Popu-lar, onde contou que entrou em 1953 parafazer tudo ou quase tudo na Redação doórgão superesquerdista que só faltava ter afoice e o martelo junto ao logotipo.

Apesar de sermos vizinhos de bairrosem Niterói, não o via com muita freqüên-cia na Última Hora da Sotero dos Reis, poistalvez ele passasse às carreiras pela Reda-ção principal, que era a Redação-corredor-de-trânsito da Reportagem Geral.

Muito tempo depois – o jornal já empas-telado e incendiado pelos paramilitares em

1964 e depois comprado em 1972 pela pró-pria ditadura – encontrei Oriovaldo Ran-gel, o Ori, no Sindicato-RJ, quando ambosintegramos nos anos 2000 as seguidas cha-pas encabeçadas por Sílvio Paixão e porErnesto Vianna. Das duas vezes entramosna representação junto à Fenaj.

Em seguida ele lançou o seu Espólio deFantasmas. Fui à noite de autógrafos naSala Carlos Couto e comentamos aconte-cidos de Miracema – ‘um burgo fluminen-se mineiríssimo’ –, o set literário, aliás, deseu livro, uma fracionada ilíada regionalcom Maria Batuquinha e outros protago-nistas de acontecências sertanejas mirace-menses, fronteira com MG. Um livro dehistórias curtas, mas de primeira grande-za como memorial gostoso de ser lido. Ojeito narrativo e literário faz lembrar mui-to Guimarães Rosa, Grande Sertão, Corpode Baile, Sagarana... E quando um jornalis-ta/escritor faz lembrar o inimitável e porvezes impenetrável Rosa é porque ele émuito bom. E Ori era muito bom mesmo!

Depois dos autógrafos que atraíram ve-lhos companheiros ultimahorenses – inclu-sive o também miracemense e homem dosamba José Carlos Rêgo – desandei a ver oOri na rua. Quase sempre o via e parava paraum dedo de papo na área de sua casa que seestende no raio que vai do fim da Amaral

Peixoto até à Rua Dr Celestino e a AvenidaMarquês do Paraná. Rememorar UH era depraxe, como se cumpríssemos um dogmáti-co ritual de saudade ao Velho Vespertino deSamuel Wainer.

Enquanto ele comprava laranjas e pe-ras no Hortifruti da Marquês, eu buzina-va novidades no ouvido dele. Ele retribuíacom críticas ácidas quase sempre aos per-sonagens do dia-a-dia, que podiam ser crí-ticas a um candidato malenjambrado à Pre-sidência, como podiam ser uma compara-ção dos políticos da hora com os bons no-mes de outrora – um dos quais era LeonelBrizola, ao qual se referia como ‘O Enge-nheiro’. Ori era comuna. Daqueles comu-nas idealistas bem abertos e bonachões.

De uma das últimas vezes ele comen-tou o quanto estava bom o Jornal da ABI:‘A melhor leitura que temos agora!...’ Con-cordei com ele, falando de matérias que ti-nham saído no Jornal da ABI, como aque-la do fim do JB, a dos sinos dobrando pelaTribuna da Imprensa... E então voltávamosà vaca-fria da morte de UH: ‘Uma pena,nunca mais apareceu outro jornal igual’.Concordei. Então pegávamos o gancho enos comprazíamos em desancar os jorna-lões sem livrar a cara de nenhum: ‘Ler qual-quer um é ler qualquer todos’.

Rimos ao constatar que notícia mesmoa tv até estava dando para o gasto. ‘Pena quea Globo continuava esterilizada, facciosa,fascista’. E imprecisa, inclusive imperdo-avelmente quanto a locais: ‘Como é quepode eles não dizerem nem a cidade ondeas coisas aconteceram?!’ Era verdade, é ver-dade: a precisão dos fatos até com relação

à localização é ignorada em detrimento daimagem. ‘Afinal, Pinheiro, texto é só legen-da e fala de apresentador analfabetizadoque não está nem aí para a verdade do queele está falando ou escreveram para elefalar como um papagaio que só fala bem sefor palavrão’. Concordei. E vou continu-ar concordando com tudo de e sobre Ori.Só não concordo com sua morte assim tãodepressa. Será que não dava, oh! Deus!,para esperar mais um pouco?

O Continentino Porto tinha me pedi-do para fazer um perfil dele que ia sair nopróximo número de O Jornalista, o jornaldo Sindicato. Prometi fazer. Continenti-no me disse então que ia pegar uns dadosiniciais com ele: nascimento, educação,jornais todos onde trabalhou etc... Eu fa-lei com Continentino que ia arrancar deleumas coisas engraçadas sobre sua vida dejornalista e de assessor de imprensa prabotar no perfil que faríamos a quatro mãos,pois duas mãos só não iam dar conta parafazer um bom perfil do cara. Ficou combi-nado. Só esquecemos a lição do Garrinchade combinar com ele, com Ori. Não esque-cemos não, aliás! Não deu foi tempo. Orimorreu nesta quarta-feira, 12 de setembro.

Enquanto escrevo essas anotações queme vêm de repente à cabeça... e aos olhosturvos... penso que Ori acabou de ser sepul-tado naquele cemiteriozinho meio mirace-mense do Saco de São Francisco. Ondetambém está enterrado Paixão. Sílvio Pai-xão, o cabeça de chapa sindical. Será que osdois já se encontraram lá em cima e estãono maior abraço depois de tanta atribula-ção aqui por baixo?...”

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mineiro Autran Dourado (1926-2012) costumava dizer que oescritor é, na verdade, um soli-tário. A frase resumia seu pró-

prio modo de encarar o ofício que abraçoupor toda a vida: explicava não saber quemera seu leitor nem pretender procurá-lo.Apenas ocupava-se em fazer seus livros.Via com espanto as novas gerações deautores que, entre festas literárias e listasde mais vendidos, dedicavam-se a logo setornar famosos – afinal, “vender livro é umacidente na vida de um escritor”, comodeclarou em longa entrevista em 2005,quando sua obra voltava outra vez às pra-teleiras em novas edições da Rocco. E foiassim, em quase silêncio, combinando umtipo de sensibilidade e discrição que, paramuitos, advinha sobretudo de uma minei-ridade ainda marcante apesar de tantasdécadas de vida no Rio de Janeiro, queconstruiu uma obra sólida, caracterizadanão por ser fenômeno de vendas, mas porser apreciada como poucas não só no Bra-sil como no exterior.

Escrever – como explicou Dourado emoutra de suas definições – é uma fatalida-de. “Você é destinado à literatura, e nãoa literatura a você”, disse ele, que morreuno dia 30 de setembro, aos 86 anos. Suavocação apareceu muito cedo. Quando selembrava de como tudo começou, gosta-va de citar a primeira frase que construiu,ainda criança, já com personagem e enre-do. Foi simples assim: “Paulo tinha umabola”. Da infância e começo de juventu-de, passou então a colecionar personagense ambientes guardados das cidades ondeviveu: nasceu em Patos de Minas, depoismorou em Monte Santo de Minas e SãoSebastião do Paraíso, até se mudar paraBelo Horizonte, aos 17 anos, como fazi-am os jovens que desejavam continuar os

nha quando o livro estava pronto, quan-do experimentava o sentimento de quemdescarrega um peso grande dos ombros.Sobre o que seria a inspiração, respondiacom graça: dizia sempre que preferia usara expressão “idéia súbita”, e esta se deviacultivar até se tornar um romance. A quemlhe perguntava se o romance como formanarrativa iria morrer, respondia, aindamais bem-humorado: “Se vai morrer, eunão posso dizer, porque quem pode mor-rer antes sou eu.”

Até seus 86 anos, Dourado acordavacedo e, com as mãos trêmulas devido aomal de Parkinson, escolhia na estante olivro que iria ler – ou reler — durante odia. Até que, na manhã do domingo, 30 desetembro, sentiu-se mal assim que desper-tou em sua casa em Botafogo, Zona Sul doRio. Sofria de insuficiência respiratória, oque o levara a passar quase cinco mesesinternado. Liberado pelos médicos, esta-va convalescendo em casa havia doismeses. Foi enterrado no fim da tarde domesmo dia em que partiu. Na despedida, afilha Inês Autran Dourado Barbosa se re-cordou de um pai “muito afetivo e sempremuito carinhoso”, que chamava cada umdos netos de “menino bom”. Dizia, com asapiência de quem sabia do poder transfor-mador da palavra: “A gente tem que cha-mar de menino bom. Vai que ele acredita.’’

O apuro com o estilo sempre foi mui-to elogiado pelos pares – à notícia de suamorte, seguiram-se textos e declaraçõesde colegas de ofício que o respeitaramtoda vida. Carlos Heitor Cony, cronistae romancista, recordou em crônica na úl-tima semana o seu estilo inconfundível,na verdade “mais uma técnica do que umestilo”, que o fez estudado em universi-dades brasileiras e do exterior. Para Cony,é difícil catalogar Autran Dourado emqualquer escola ou geração. “Como mi-neiro, pode lembrar Cornélio Pena oumesmo Lúcio Cardoso.” Para ele, o cole-ga não inventou palavras, “mas soube usá-las de forma magistral, rompendo as fra-ses de maneira tão pessoal que qualquerum de seus textos pode ser facilmenteidentificado. Não criou uma linguagem,como Guimarães Rosa, mas a usou de for-ma tão pessoal que o torna original, paranão dizer único.”

O escritor baiano Antônio Torres lem-brou o seu legado com o que de melhorensinou à literatura brasileira: “a carpin-taria literária”. Raimundo Carrero, ficci-onista pernambucano, disse que o quedefinia o autor mineiro era a seriedadecom que lidava com a literatura: “criar eraalgo como um ritual religioso para ele.Seus livros apontam diretamente para ascontradições do mundo. O romance, paraele, tinha que ser cruel, tinha que baterno centro da alma humana”. Para o poe-ta maranhense Ferreira Gullar, o minei-ro, sem fazer alarde, exercia o ofício commuita consciência e sensibilidade. O crí-tico literário José Castello, carioca radi-cado em Curitiba, também o elogiou emdeclarações públicas depois do anúnciode seu falecimento: “Ele foi um escritorde uma obra muito coerente, seguiu pordécadas a fio no seu caminho. Não sedeixou influenciar por modismos ou ten-dências, era muito convicto de seu proje-to literário”.

estudos. As memórias desta época ajuda-riam a povoar sua literatura ao longo deseis décadas. Como não reconhecer naslembranças de sua vida mineira as tintascom que pintou a fictícia Duas Pontes,repetida em muitas das histórias, narradaspelo mesmo João da Fonseca Ribeiro?

O incentivo para prosseguir na litera-tura veio também muito cedo: ainda najuventude, Autran Dourado recebeu seuprimeiro prêmio literário – sem grandeexpressividade, tanto que não se lembra-ria do nome – por um conto.Com prêmio ou sem prêmio,decerto não iria parar. Estu-dou Direito, pois não haviacursos de Comunicação.Mas foi como jornalista es-tabelecido no Rio de Janei-ro, então capital do País, queobteve sua subsistência. Adele e da família, que logo setornaria numerosa. Do casa-mento com Lúcia Campos,que durou seis décadas, teve quatro filhos,dez netos, dois bisnetos. Num curto in-tervalo da vida na Redação, trabalhou,durante o Governo Juscelino Kubitschek(1902-1976), como seu Secretário de im-prensa. O Rio de Janeiro em que viveu eratambém de outros mineiros, com quemcompartilhou dias de sol e chuva, comoFernando Sabino (1903-2004) e Otto LaraResende (1922-1992), e o capixaba de Ca-choeiro do Itapemirim Rubem Braga (1913-1990), mestres como ele.

Entre romances, contos e ensaios,foram mais de duas dezenas de livros queDourado escreveu, entre as quais obras-primas como O Risco do Bordado e Óperados Mortos, este escolhido pela Unescocomo um dos livros da lista dos mais re-presentativos da literatura mundial.

Outro de seus romances, Os Sinos da Ago-nia, foi escolhido para exames em univer-sidades francesas. Os exemplos servemapenas para dar uma medida de sua apre-ciação no exterior. A idade avançada nãoo impediu de se manter ativo nos últimosanos: o derradeiro romance saiu em 2003,Monte da Alegria, e, três anos depois, elelançou o volume de histórias curtas OSenhor das Horas. Entre os prêmios e hon-rarias que essas obras lhe renderam, rece-beu do brasileiro Jabuti ao alemão Goe-

the. Dos mais significativos,destaca-se o Camões, o maisimportante da literatura emlíngua portuguesa, e o Ma-chado de Assis, concedidopela Academia Brasileira deLetras, pelo conjunto da obra.

Não só o Autran Douradodos romances e contos setornou presente e apreciado.Publicou um livro de memó-rias, Gaiola Aberta, em que se

recordou dos tempos de JK. Como liçãoaos aprendizes do ofício, preparou seislivros de ensaios, entre eles Uma Poéticado Romance, Um Artista Aprendiz e BreveManual de Estilo e Romance. Nessas obras,revela suas mais importantes influênci-as, de Cervantes a Flaubert, refaz sua tra-jetória e estabelece suas principais idéi-as sobre a arte da escrita. Sua obra tam-bém chegou às telas do cinema. Uma Vidaem Segredo se tornou filme homônimodirigido por Suzana Amaral.

Autran Dourado concordava que seuspersonagens se pareciam muito com elemesmo. Certa vez, confessou: “Eu osconheço muito bem e sofro a angústia queeles sofrem”. Longe do glamour que cer-ca a vida literária, explicava que não ti-nha prazer em escrever. A satisfação vi-

Escritor, morto aos 86 anosno dia 30 de setembro, deixouuma obra sólida e consagrada,

embora não buscasse ostatus de best-seller.

POR GONÇALO JÚNIOR

“Você édestinado àliteratura,

e não aliteraturaa você”

O

A solidão,segundoAutran

Dourado

A solidão,segundoAutran

Dourado

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VIDAS

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Contra as lendas não há argumentos.Foi assim com a apresentadora e canto-ra Hebe Camargo (1929-2012), falecidaaos 83 anos, em 29 de setembro. Ela de-veria cantar o Hino da Televisão brasileira,no dia da inauguração da primeira emis-sora brasileira, a Tupi, de São Paulo, em18 de setembro de 1950. A música foracomposta para a ocasião. O convite par-tiu do próprio Assis Chateaubriand,magnata da imprensa brasileira, donodos Diários Associados. A jovem, comcerto atrevimento, faltou ao evento para– como confessaria apenas décadas maistarde – sair com um namorado. E assimfoi substituída por aquela que seria umade suas melhores amigas, a atriz LolitaRodrigues. Outra história, porém, dizque foi por causa de Hebe que somenteuma das duas câmeras adquiridas paracolocar a Tupi no ar funcionou porqueela seguiu o protocolo de quebrar umagarrafa de champanha no equipamento,que o danificou de modo irremediável.Corre a história de que a primeira versãoé verdadeira e a segunda, não. Foi a pró-pria Hebe quem confirmou isso. Comonão havia tv gravada, só ao vivo, nadarestou daquele momento histórico.

Fato foi que aquela moça de 21 anosque queria ser estrela, sem saber exata-mente se faria isso como cantora, atriz ouapresentadora, atrelou sua longeva vidaà longa trajetória do veículo no Brasil esímbolo de uma época que só havia em seuprograma. Se existe uma realeza na tv bra-sileira, Hebe foi a grande soberana pormais de meio século. Não podia então serdiferente no dia de sua despedida: astransmissões de sua morte no sábado, 29,e de seu sepultamento no domingo, 30 desetembro, atingiram recordes de audiên-cia. O SBT, casa onde atuou nas últimastrês décadas e que anunciara dias antes desua morte a assinatura de um novo con-trato com a estrela, elevou em dois pon-tos sua média diária. A emissora que cos-tuma alcançar seis pontos aos domingos

A rainhada televisãobrasileira

Com 62 anos de carreira, Hebe Camargo se tornou personagem singularda História da televisão do País e deixa como legado uma vida emblemática.

POR GONÇALO JÚNIOR fez par com o comediante Amacio Ma-zzaropi (1912-1981), então humorista desucesso no cinema. Na Rádio Nacional, acantora estrelou o programa EncontroMusical – ao microfone, a informalidadena conversa com convidados era cativan-te e inovadora. Ninguém antes se atreveua ficar tão à vontade. Se a primeira apari-ção na televisão foi adiada, logo entraria

para nunca mais sair. Jácom os cabelos tingidosde loiro, estreou, enfim,no comando do seu pri-meiro programa na tv.Era o ano de 1955. Cha-mava-se O Mundo é dasMulheres, considerado oprimeiro voltado para opúblico feminino, exibi-do pela antiga TV Pau-

lista nos cinco dias da semana.Uma maratona televisiva que a leva-

va à exaustão, apesar da pouca idade,porque tudo continuava a ser feito aovivo. “Nunca tive a intenção de me tor-nar apresentadora. Aconteceu”, diziaHebe, sobre a estréia na profissão que aconsagrou. Agnaldo Rayol, cantor e ami-go dessa época, se recordaria numa entre-vista, no dia de sua morte: “Ela batalhoue trabalhou muito. Venceu pelo talento edemonstrou uma força extraordináriaaté o fim. E era aquela mulher de felicida-de transbordante sempre, era aquilomesmo, muito autêntica”.

A trajetória de cantora não foi com-pletamente interrompida, mas não eramais prioridade. Após lançar três discosentre 1959 e 1966, Hebe compilou suascanções mais conhecidas no cd MaioresSucessos, de 1995. Depois, lançou maisquatro discos. Pra Você (1998), Como éGrande Meu Amor por Você (2001), As MaisGostosas da Hebe (2007) e Hebe Mulher(2010, ano em que participou do badala-do Prêmio Grammy Latino).

Pedidos de casamentoNa década de 1960, a cantora silenci-

ava, a apresentadora explodia. Nessa épo-

LeonorGuedes,

criadora daOrbe Press

Primeira mulher no Brasil a criar emanter uma agência de notícias, a jor-nalista Leonor Guedes morreu no dia14 de setembro, em Niterói, onde mo-rava. Leonor, de 88 anos, estava inter-nada havia um mês no Hospital Pro-cordis, em Santa Rosa, Niterói, comquadro de insuficiência respiratória erenal. Seu corpo foi sepultado no dia15, no cemitério do Maruí, no Barreto.

Leonor Guedes iniciou a carreira naimprensa ainda na adolescência, emFlorianópolis, Santa Catarina. Sóciada ABI desde 17 de janeiro de 1963,ela fundou a Agência Orbe Press, quese especializou na produção e distri-buição de reportagens e notícias sobrea vida nos países socialistas e princi-palmente na antiga União Soviética.Isso provocou perseguições pela dita-dura militar, após o golpe de 1º de abrilde 1964. A repressão plantava notíci-as falsas a seu respeito, como uma pu-blicada na primeira página do jornalO Globo sob o título “Espiã brasileiraa serviço da União Soviética.”

Mulher de fibra, apesar do seu 1,47m de altura, Leonor invadiu o gabine-te do diretor do jornal, Roberto Ma-rinho, chamando-o de leviano, men-tiroso e covarde. Dali foi para o De-partamento de Ordem Política e Soci-al-Dops e exigiu providências, mas foipresa e torturada. Com a intervençãodo advogado Heleno Fragoso, conse-guiu ser libertada no dia seguinte.

Após inúmeras invasões de mem-bros da Polícia Federal à sua agência denotícias, Leonor decidiu deixar o Bra-sil e viajou para diversos países, inclu-indo a Rússia, onde recebeu várias ho-menagens. Anos mais tarde, retornouao Brasil e casou-se, em segundas núp-cias, com Valdir Muniz.

“A trajetória de Leonor Guedes me-rece ser reverenciada pelo seu firmepropósito de combater a brutalidadee a prepotência do regime militar”,disse o jornalista Arcírio GouvêaNeto, Secretário da Comissão de De-fesa da Liberdade de Imprensa e Direi-tos Humanos da ABI.

– cada ponto corresponde a 60 mil domi-cílios na Grande São Paulo – chegou a 7,8pontos. No velório, uma das cenas maismarcantes, destas que entram para a his-tória, foi a do beijo comovente que seucorpo recebeu do rei da tv brasileira – seexiste mesmo uma realeza. Debruçadosobre o caixão, Silvio Santos, patrão eamigo, lhe deu um selinho, marca regis-trada da apresentadora.

A doença que aco-metia Hebe havia doisanos nunca conseguiulhe tirar o bom humor.Se isso aconteceu, elafoi uma lady em escon-der. Com classe e graça.A risada larga, sonora efácil a acompanhavadesde a estréia, quandoos primeiros aparelhos de televisão co-meçaram a chegar ao País. Em 1950, ela erauma jovem cantora de rádio quando foiconvidada a cantar na transmissão queinauguraria a televisão no Brasil. Até aque-la data, a moça morena nascida em Tauba-té, interior paulista, em 8 de março de1929, já tinha uma trajetória bem sucedi-da. Com o pai, o violinista e maestro FêgoCamargo, descobriu a música cedo. Ele alevava para participar de corais nas igrejasda cidade. O destino, então, deu-lhe umamão. A família Camargo se mudou paraSão Paulo em 1943, onde Fêgo passou a in-tegrar a Orquestra da Rádio Difusora. Aolado da irmã Estela, Hebe formou umadupla, Rosalinda e Florisbela, que se apre-sentou no programa Arraial da Curva Tor-ta, na Rádio Difusora; pouco depois, elaseguiu em carreira solo. Nos programas decalouros, um dos números recorrentes eraa imitação que fazia de Carmem Miranda.

Logo a dupla Camargo gravaria o pri-meiro disco, em formato de 78 rotações(apenas uma música de cada lado), pelagravadora Odeon. No repertório, havia detudo – samba, boleros, mambos e guarâ-nias. Até baião as duas irmãs cantaram. Asimpatia extrema foi cada vez mais abrin-do portas nas rádios para Hebe. Na Tupi,

“Nunca tivea intenção

de me tornarapresentadora.

Aconteceu”

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condições em que a indústria cultural seconsolidou no País. Ao focar em Hebe, eledemonstrou como a apresentadora, assu-mindo as personas de mãe, filha, esposae dona de casa, duplicou os papéis sociaisreservados à mulher. Desse modo, refor-çou a necessidade de conformidade sociale a adesão a um determinado universoideológico. Ao adotar um programa deauditório como tema, ainda no início dosanos 1970, o sociólogo propôs uma reor-ganização da hierarquia dos objetos deestudo acadêmico e inaugurou uma fe-cunda linha de reflexão nas ciências so-ciais brasileiras. Mais do que isso: mos-trou os meios de comunicação de massacomo instrumentos estratégicos da domi-nação de classe, numa crítica contunden-te à cultura oficial do País em plena dita-dura militar.

Só uma brincadeiraEra uma época em que os holofotes es-

tavam sobre ela, o tempo todo. Em repor-tagem publicada na revista Intervalo, em1971, que Miceli reproduziu em seu livro,Hebe declarou que era uma “calúnia dessagente” considerá-la “uma atriz”. E um absur-do quererem ver suas participações em es-peciais humorísticos da Record “como se es-tivessem julgando uma Cacilda Becker, umaFernanda Montenegro”. E perguntou: “Seráque eles (os jornalistas) não entendem quetudo isso é só uma brincadeira?”, concluiuantes de dar uma de suas gargalhadas carac-terísticas. Mesmo assim, como lembrouEduardo Escorel, da revista Piauí, os varia-dos papéis que Hebe representou em seuprograma não deixam dúvida de que, à suamaneira, ela sempre foi e continua a ser umaatriz, embora pareça não saber que brinca-deira é coisa séria.

Em 1985, quando assinou contratocom o Sistema Brasileiro de Televisão(SBT), de Silvio Santos, Hebe deu inícioà sua última e uma das mais gloriosasfases como apresentadora. Foram quasetrês décadas em que receberia no seu fa-moso sofá artistas, políticos, desportistas,celebridades do Brasil e do exterior (leiaa entrevista que Hebe fez com Rodolfo Kon-der em seu programa na página 15). “Gra-cinha!” se tornaria seu elogio preferido;as roupas vistosas e as jóias enormes,parte do seu estilo. Um figurino sofisti-cado que variava sempre. Jamais lideroua audiência, mas tinha público cativo einfluente, pois suas atrações rendiammuitos comentários e a imprensa televi-siva não se cansava de seguir seus passose comentar sua vida. Ela só sairia da TVdo amigo Silvio em dezembro de 2010,quando anunciou que se transferiu paraa Rede TV! Na época, ela argumentouque deixava o canal devido às constantesmudanças e horário de sua atração.Quando isso aconteceu, ela estava mui-to doente, embora a informação não ti-vesse se tornado pública.

A doençaO diagnóstico divulgado em janeiro de

2010 assustou: Hebe descobriu que eraportadora de um câncer raro, no peritô-nio, membrana que reveste a cavidade ab-

dominal. Após a cirurgia, que retirouparte dos nódulos, começou a fazer ses-sões de quimioterapia para combater adoença. Em março deste ano, a doençavoltou. E de modo letal, como se veria. Aapresentadora passou por outra cirurgia,desta vez para retirar um tumor no intes-tino. Um mês depois, recuperada, voltouao ar na Rede TV! Em junho, foi levada àspressas ao hospital para a retirada da ve-sícula. No mês seguinte, é internada porcinco dias para realizar exames de rotina.“Vou vivendo como se nada tivesse acon-tecido”, disse a apresentadora ao fim dagravação, em uma de suas últimas entre-vistas. “Vou para a quimioterapia e nãosinto nada, é uma coisa mágica na minhavida”, contou.

Não acordou no sábado, dia 29. Mor-reu em sua casa de uma parada cardíaca.Sua última semana não tinha sido fácil.O câncer a debilitara bastante; apesar dapiora, preferiu ficar em casa a enfrentarmais uma internação. A decisão era pas-sar os últimos dias em repouso.

Ao velório no Palácio dos Bandeiran-tes compareceram fãs anônimos e famo-sos, cerca de 8 mil pessoas, segundo sua as-sessoria. Coroas foram enviadas pela Pre-sidente Dilma Rousseff, e os ex-presiden-tes Luiz Inácio Lula da Silva e FernandoHenrique Cardoso. Colegas de ofício –Ana Maria Braga, Fausto Silva, LucianaGimenez, Serginho Groisman, Jô Soares– fizeram homenagens. Na manhã dedomingo, houve uma missa de corpo pre-sente rezada pelo padre Marcelo Rossi. Opadre contou ter escolhido as músicas dasquais Hebe mais gostava – entre elas,Como É Grande o Meu Amor por Você e JesusCristo, ambas de Roberto Carlos e ErasmoCarlos. O SBT transmitiu durante toda amanhã a despedida. O caixão, coberto poruma bandeira do Brasil, saiu em um car-ro do Corpo de Bombeiros por volta de10h. O cortejo aberto foi acompanhadopor batedores nos cerca de três quilôme-tros até o Cemitério Gethsemani, noMorumbi. Entre os cerca de 600 presen-tes, havia autoridades, amigos e familia-res, do filho Marcelo ao Governador deSão Paulo, Geraldo Alckmin. Nas mãos,muitos seguravam rosas colombianasvermelhas, as preferidas da apresentado-ra; pétalas foram jogadas no caixão en-quanto era depositado; suas músicas pre-feridas, cantadas mais uma vez.

De tão emocionado, Silvio Santos nãoconseguiu gravar o comunicado que oSBT pretendia colocar no ar como partedas homenagens naquele dia. RobertoCarlos publicou em seu site oficial:“Hebe é um símbolo de alegria e de amor.Uma alegria e um amor que ela distribuiudurante toda a sua vida. Uma mulher euma artista maravilhosa e um ser huma-no da maior qualidade, amada por todosnós brasileiros. Hebe vai ficar pra sempreno meu coração e com certeza no coraçãode todos nós. A gente nunca vai esqueceralguém como Hebe”.

Dias após seu enterro, uma avenida daZona Sul da capital paulista ganhou seunome. Uma garantia de que ela jamaisserá esquecida. Não que precisasse.

ca, já era a rainha na TV Record, e assimpassou a ter um programa com seu nome,“Hebe Camargo”. O primeiro convidado?O galã Roberto Carlos, líder do movi-mento musical da Jovem Guarda. Seriaoutro dos grandes amigos. Até os últimosdias, a apresentadora se divertiria lhefazendo pedidos de casamento nas horasmais inesperadas. Em 1969, ela mostrouao repórter da revista Realidade JoséHamilton Ribeiro, com humor, um diplo-ma para comprovar não ter só o cursoprimário. Nele estava escrito: “Homena-gem a Hebe Camargo, pela colaboraçãoprestada na divulgação do primeiro ani-versário do governo do Presidente Costae Silva.” Quando a tv em cores chegou aoPaís, em 1973, o programa de auditórioque inaugurou a novidade foi o seu.

Foi assim que a trajetória de Hebe pas-sa a se confundir com a História da tele-visão no Brasil – sua presença nas telas foiainda mais longeva que a de Flávio Ca-valcanti, Jota Silvestre, Blota Junior eChacrinha, outros gigantes como ela nasprimeiras décadas. Se brincava muito, ela

jamais expôs sua vida pessoal em busca depublicidade. Na vida amorosa, dois casa-mentos deram tranqüilidade a Hebe. Em1964, casou-se com Décio Capuano,empresário com quem teve Marcelo, hojecom 47, seu único filho. Na ocasião, pordois anos, ela ficou afastada da tv, paracuidar do seu bebê. A união do casal, noentanto, não durou muito. E chegou aofim em 1971. Dois anos depois, Hebepassou a namorar o empresário LélioRavagnani (1921-2000), com quem vi-veu até à morte dele. Jamais deixou demostrar em público seu amor e respeitopelo companheiro de tantos anos.

Hebe começou a virar mito da tv em1972, quando foi lançado o livro A Noiteda Madrinha, um inovador estudo sobreo meio televisivo, numa época em que aacademia e a elite intelectual torciam onariz para a televisão, que já era o maisimportante veículo de comunicação demassa do País. Seu autor, o hoje respeita-do acadêmico Sergio Miceli, dedicou-sea desvendar os suportes ideológicos daclasse média brasileira e investigou as

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