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392 AGOSTO 2013 VIDAS LUIZ PAULO HORTA • DOMINGUINHOS • HELEN THOMAS PÁGINA 31 ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA A censura econômica levou à morte 150 jornais alternativos do Brasil. PÁGINA 3 O fotógrafo Yasuyoshi Chiba e a publicitária Renata da Paz (acima): vítimas da brutalidade policial. Atônitos diante da amplitude das manifestações de ruas que sacudiram o País, os governos e as lideranças políticas não sabem como tirar o Brasil desse impasse. PÁGINA 23 E EDITORIAL A REPRESSÃO ALUCINADA NA PÁGINA 2. “Hoje temos muitas faculdades formando jornalistas no tapa” MILTON LEITE PÁGINA 16 MARTIN CARONE DOS SANTOS FERNANDO FRAZÃO/ABR

Jornal da ABI 392

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A impiedosa perseguição que o governo militar fez às publicações independentes levou à morte dezenas de publicações alternativas. Isso ajudou a tornar a imprensa brasileira menos plural. Agora, quem indeniza a mídia que foi perseguida? Também documentamos a violência policial que não conseguiu parar as manisfestações que sacudiram o País. Em entrevista, Milton Leite conta bastidores da profissão, fala do prazer de narrar jogos, e critica o repórter que não se interessa pela informação. E mais: Nemo, uma editora que investe na qualidade gráfica de seus lançamentos. A ascensão, agonia e morte da TV Manchete. Dossiê Jango questiona a morte do ex-Presidente. Um parque com a alma de São Paulo. Eliane Brum e as histórias para modificar a vida. Boa leitura.

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392AGOSTO

2013

VIDAS LUIZ PAULO HORTA • DOMINGUINHOS • HELEN THOMAS

PÁGINA 31

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

A censura econômica levou à morte 150 jornais alternativos do Brasil. PÁGINA 3

O fotógrafo YasuyoshiChiba e a publicitáriaRenata da Paz(acima): vítimas dabrutalidade policial.

Atônitos diante da amplitude das manifestações de ruasque sacudiram o País, os governos e as lideranças

políticas não sabem como tirar o Brasil desse impasse.PÁGINA 23 E EDITORIAL A REPRESSÃO ALUCINADA NA PÁGINA 2.

“Hoje temos muitas faculdades formando jornalistas no tapa”MILTON LEITE

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2 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

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03 ESPECIAL - Uma imprensa sem alternativas

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11 REFLEXÕES - O medo necessário, por Rodolfo Konder

13 PROPOSTA - Voto distrital misto, uma solução,

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por Victor Faccioni

13 VISITA - As homenagens da ABI ao Papa

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Francisco, o Peregrino da Paz

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14 JORNALISMO - E o que era segredo virou manchete...

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15 HISTÓRIA - Os 150 anos da Guerra do Paraguai

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16 DEPOIMENTO - Que fase do Milton Leite!

31 TRAJETÓRIA - Eliane Brum e as histórias

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para modificar a vida

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32 HISTÓRIA - Um parque com a alma de São Paulo

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33 TÉCNICA - A arte de entrevistar escritores

34 CINEMA - Dossiê Jango questiona

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a morte do ex-Presidente

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36 LANÇAMENTO - Três vezes Graciliano

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38 QUADRINHOS - Os sonhos da pequena Nemo

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40 QUADRINHOS - Uma viagem singela, por Rita Braga

41 TELEVISÃO - A ascensão, agonia e morte

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da TV Manchete

44 ELEIÇÃO - Schröder é reeleito na Fenaj

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

com 2.524 votos

SEÇÕES

12 ACONTECEU NA ABIÓrgão Especial do TJ-RJ reafirma a validade da

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posse da diretoria da ABI

LIBERDADE DE IMPRENSA

23 Violência da PM-RJ causa perda de um olho

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de jovem de 26 anos

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26 Quando o celular é uma arma

27 RSF quer punir agressores de jornalistas

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durante a visita do Papa

DIREITOS HUMANOS

28 O dramático relato do advogadoWellington Cantal, perseguido e torturado

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por defender posseiros esbulhados

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30 O golpe puniu militares que defendiam a legalidade

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30 Caminhos da verdade, por Fábio Lucas

VIDAS

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45 Helen Thomas, a ‘fera’ da Casa Branca

46 Dominguinhos, o discípulo de Gonzagão que

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

se tornou um gênio da sanfona

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47 Luiz Paulo Horta, jornalista e músico

DESTAQUESEDITORIAL

A REPRESSÃO ALUCINADAMAURÍCIO AZÊDO

AS VIGOROSAS MANIFESTAÇÕES de ruasque sacudiram o País de ponta a ponta emjunho e julho deixaram atônitas as autori-dades governamentais nos diferentes níveisde poder, as lideranças políticas e partidá-rias e experimentados analistas, que nãosupunham que o descontentamento e a in-dignação do povo tivessem raízes tão pro-fundas como esses protestos revelaram. Aprincípio incrédulos e indiferentes ao cla-mor das ruas, os donos do poder só recua-ram em seu autoritarismo quando viram, so-bretudo nas cidades de São Paulo e Rio deJaneiro, que o povo expressava seu cansa-ço e sua insubmissão diante de tantos des-mandos que os governos vêm praticando.

COM ESSAS MANIFESTAÇÕES, pôs-se a nuo elenco intolerável de políticas, decisões eatos contrários ao interesse público, comoa condescendência dos governos diante do

indecente domínio do sistema de transpor-te público por insaciáveis empresas priva-das, que auferem lucros assombrosos com acumplicidade dos governantes, as mazelasda educação, a impiedade do sistema de aten-dimento à saúde da população, exatamenteaquela que mais depende da gestão públicadesse setor, a corrupção que grassa na admi-nistração pública e nos negócios privados.O povo não agüenta mais o descaramentocom que os recursos públicos são desviadospara contas privadas. Nunca se roubou tan-to no País como atualmente.

AS MANIFESTAÇÕES EVIDENCIARAM tam-bém que o Estado Democrático de Direitoé alvo de agressões inadmissíveis, como aspraticadas em São Paulo, Rio e Brasília des-de a malsinada Copa das Confederações,em que as autoridades, cedendo ao coloni-alismo da Fifa, criaram zonas interditadasa manifestações da cidadania, com grosseiraviolação do texto constitucional. Do furorda repressão violenta e desalmada restaramvítimas com lesões graves, entre jornalis-tas e pessoas comuns perseguidas pelastropas alucinadas.

ESTA EDIÇÃO DO JORNAL DA ABI registrauma suma destes momentos de pavor im-postos à cidadania e cobra do MinistérioPúblico da União e de diferentes Estadosações para responsabilização penal e civildesses criminosos e dos hierarcas que osdeixaram à solta.

Durante as manifestações, a Polícia Militar promoveu agressões inadmissíveis que feriram gravemente jornalistas e manifestantes.

MARC

ELLO C

ASAL JR/ABR

MARCELO

CAMARG

O/ABR

O DESENHISTA E CARICATURISTAFERNANDES ILUSTRA A HISTÓRIA DO

PARQUE ANTARCTICA. PÁGINA 32

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3JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

ESPECIAL

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POR PAULO CHICO

Entre 1964 e 1980, nasceram e morreram 150 jornais alternativos no Brasil. Menos do queenfraquecidos pela derrubada do inimigo em comum – a ditadura militar – eles parecem

ter sido vítimas de outro tipo de censura: a econômica. Ignorados pelos anunciantesprivados, e abandonados pelo Estado, eles não resistiram. Saíram de cena.

Poucos ainda persistem. Mas, embaladas pelas plataformas digitais, coberturasdiferenciadas ganham espaço. E já incomodam a chamada ‘grande mídia’.

Democracia pressupõe liber-dade. Esta, por sua vez, rima comdiversidade. Mas para quembusca meios de informação queescapem do filtro dos conglome-rados de comunicação parecenão existirem muitas opções.‘Não há mais imprensa alterna-tiva’, lamentam alguns. Serámesmo? Nas décadas de 1960 e1970 dezenas de títulos com pro-postas diferenciadas se espalha-ram pelo Brasil. O fenômenoeditorial arrefeceu justamente apartir do processo de aberturalenta e gradual feita pelos mili-tares, que culminou com a rede-mocratização, já na década de1980. Amenizou-se o ambientede tensão que amedrontava oPaís. Saía de cena o inimigo co-mum de toda uma geração decombativos jornalistas: a dita-dura implantada no golpe de1964. A mudança de cenário po-lítico certamente tirou parte dopoder de fogo de veículos que, decerta maneira, tinham comocompromisso primeiro contes-tar o regime de exceção, seusabusos e barbáries. Contudo,terá sido somente este o motivoque levou ao fechamento de tan-tas publicações? Não, pareceque não. Há outros aspectos re-levantes nesta crônica sobre amorte anunciada.

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Entre os alternativos, havia de tudoum pouco. Publicações de caráter maisconservador e político, como Opinião(lançado em 1972), Movimento (1975) eEm Tempo (1977). Outras mais rebuscadas,menos doutrinárias e voltadas para refle-xões existenciais, como Bondinho (1970),Grilo (1971) e Ex (1973). E exemplares dalinhagem satírica, feitos basicamente porintelectuais, humoristas e cartunistas ca-riocas, como Pif Paf (1964), O Pasquim(1969), Flor do Mal (1970) e Enfim (1979).Não dá para deixar de fora os representan-tes regionais – isto é, produzidos fora doeixo Rio-São Paulo – como Pato Macho(1971), editado por Luiz Fernando Verís-simo, em Porto Alegre, e Fala Paraná(1981), braço do Movimento na cidade deLondrina. Os temas também eram diver-sos. Lampião (1978) abriu espaço para a

“A imprensa alternativa se define a par-tir de três olhares. O primeiro deles, de na-tureza política. São veículos que atuamcom a visão mais à esquerda sobre a reali-dade, defendendo princípios democráticos,humanistas, com ampliação dos direitos dostrabalhadores, defesa irrestrita dos direitoshumanos, contrariando o discurso domi-nante na chamada imprensa de referência,que é mais conservador, reacionário, pau-tado pelo cerceamento das liberdades. Osalternativos denunciam de forma contun-dente situações que devem ser combatidas,como preconceitos, racismo, homofobia, ea não defesa dos direitos das mulheres”,explica o professor Bicudo, que aponta aseguir os outros dois pontos vitais que ca-racterizam esta prática jornalística.

“Sob o aspecto de execução, eles ten-dem a ser veículos que valorizam muitomais a questão da linguagem, da apura-ção, do rigor, de fazer prevalecer a melhorversão da realidade, do cuidado nas entre-vistas – apresentando um padrão melhordo que estamos acostumados a encontrarna maioria dos veículos da grande im-prensa. Nestes, muitas vezes em nome doentretenimento, do espetáculo ou da pres-sa em chegar às bancas, a gente se deparacom um jornalismo pouco cuidadoso e,não raro, que vende teses e faz publicida-de, e não exatamente trabalha com histó-rias e narrativas. Eles também estão aserviço de alguns interesses econômicose políticos. Por fim, claro, surge a questãodo financiamento. Como são veículosmenores, os ‘nanicos’ não contam com oaporte dos anúncios de empresas privadaspor questões ideológicas, evidentementepelas questões conflitantes. Também nãocontam com o apoio das verbas oficiais,do Governo, pelo seu perfil questionador.Assim, têm que buscar formas alternativas

FRANCISCO BICUDO

“A alocação das verbas publicitáriaspara os meios de comunicação é indecente”

“É inaceitável que,ao invés de usar verbaspublicitárias oficiais

para ampliar apossibilidade de diferentesvozes se manifestarem,os Governos estejamfazendo exatamente

o contrário.”

discussão sobre o homossexualismo. Narelação de ‘falecidos’ há veículos que mar-caram época, como os jornais Última Hora,Correio da Manhã, e Tribuna da Imprensa,além da TV Excelsior. Os títulos listadosacima estão todos extintos. Outros pode-riam engrossar este obituário. É, no míni-mo, ingênuo pensar que a causa mortis detantos veículos tenha sido apenas a faltade capacidade de seus jornalistas de seadaptarem ao contexto de um Brasil quetrilhava o caminho de retomada da demo-cracia – causa pela qual tanto lutaram.Aquelas eram Redações habitadas por gentecompetente, talentosa. Alguns eram mes-mo geniais. Vários estão na ativa até hoje.

Dinheiro. Sim, o vil metal que, diz oditado, não traz felicidade. Mas, compro-va a realidade, faz girar quase tudo. Me-nos do que da perda do foco editorial –

diante da queda do regime militar –, amídia alternativa parece ter sido vítimade outra espécie de ditadura, não maispautada pelo patrulhamento político,mas sim pela asfixia econômica. Com areabertura, os governos, já eleitos demo-craticamente, passaram a gozar de liber-dade para a destinação de verbas públi-cas de publicidade. E, curioso, concen-traram seus recursos nos já estabeleci-dos, nos jornais, emissoras de tv e derádio que pertencem aos grandes gruposde comunicação. Neste ponto, Presiden-tes, Governadores e Prefeitos eleitospelo voto direto não se diferenciam tan-to de seus antecessores militares. Os‘nanicos’ – como eram chamados os ve-ículos alternativos – acabaram sendocondenados à míngua. À extinção. Nãoforam reconhecidos pelo Estado como

relevantes para a construção de um am-biente plural de comunicação.

Para entender como ocorreu esta con-centração da mídia, identificar os respon-sáveis por este processo, apontar suasconseqüências e buscar alternativas, oJornal da ABI ouviu diversos especialistasque, nesta reportagem, ajudam a compre-ender melhor o quanto é complexo o setordas comunicações no Brasil. Quem iniciaas análises por aqui é Francisco José Bicu-do Pereira Filho, jornalista e professoruniversitário, mestre em Ciências daComunicação pela Eca-Usp e autor dolivro Caros Amigos e o Resgate da Impren-sa Alternativa no Brasil. De forma didáti-ca, Chico Bicudo, como costuma ser cha-mado, começou pelo princípio de tudo: adefinição da chamada imprensa alterna-tiva – ou independente.

de financiamento, como ações entre ami-gos, promoções estratégicas de internet,vendas de assinaturas e em bancas, além depequenos anunciantes”.

Para Francisco Bicudo, o segmento damídia alternativa brasileira não se perdeu

– apenas se transformou. “Combater uminimigo comum, durante um regime deexceção, era mais fácil. Neste sentido,combater a ditadura militar, com o aglu-tinar, a soma de forças, facilitava as coi-sas. Com a retomada da democracia, osjornalistas se dispersaram, foram abraçardiferentes experiências. As forças daimprensa alternativa ainda podem e con-tinuam a ser encontradas, talvez não como grau de resistência de antigamente, atépelo contexto. Elas estão vivas nas rádi-os comunitárias, na internet. Na web, aMídia Ninja tem sido importantíssima,sobretudo no contexto das recentesmanifestações de ruas. É ela quem estáconseguindo cobrir tudo de fato, de per-to, das ruas, com proximidade, e não decima dos prédios e dos helicópteros. Noimpresso também temos alguns casospontuais, como as revistas Caros Amigose CartaCapital. E blogueiros classificadoscomo progressistas, tais como RodrigoVianna e Luiz Carlos Azenha. Um pessoalinteressante, que vem tentando abrirfileiras na internet.”

Bicudo contemporiza sobre qual deveser o papel da mídia alternativa. Duran-te os oito anos do Governo FHC, porexemplo, havia uma alternativa de im-prensa mais clara do que nos dias atuais,exatamente pelo fato de o projeto daépoca ser evidentemente conservador,baseado no neoliberalismo, na flexibiliza-ção dos direitos do trabalho, nos ataquesaos movimentos sociais e no incrementodas privatizações. Havia uma consistên-cia de unidade para rechaçar de formacontundente o discurso tucano. “Com aseleições de Lula e Dilma Rousseff, embo-ra eu possa fazer uma série de restrições emfunção de alianças, por vezes, perigosa-mente flertando com a direita, o fato é que

temos, em linhas gerais, um Governo comviés de esquerda. Também é preciso sepensar o que é uma imprensa alternativaneste contexto. Como ela pode atuar, quandoestá no poder um governo de linhagem de es-querda? Acho que ela deveria tensionar: ra-dicalizar este exercício de defesa da demo-cracia, combatendo a homofobia, defenden-do a reforma agrária, trazendo à tona dis-cussões abertas sobre o aborto, a cobrançade impostos sobre grandes fortunas, maio-res investimentos em educação, além daprópria necessidade de se promover a demo-cratização da mídia. A mídia alternativadeveria desempenhar o papel de ampliar seuespectro de atuação.”

Falando em radicalizar, Bicudo é taxa-tivo ao tratar da questão do não empre-go das verbas públicas nos veículos alter-nativos. “Precisamos repensar com ur-gência, nesse processo de democratizaçãoda mídia, essa questão da alocação dasverbas publicitárias para os meios decomunicação. Como está, é indecente. Éinaceitável que, no ano de 2013, ao invésde usar verbas publicitárias oficiais paraampliar a possibilidade de diferentesvozes se manifestarem, os Governos es-tejam fazendo exatamente o contrário.Usando essas verbas para concentrar ain-da mais a produção da mídia. Se pegarmosos últimos balanços, é uma excrescênciao que o Governo federal investe de ver-bas na Folha de S.Paulo, na Editora Abril,sobretudo na revista Veja, e na TV Globo.Isso só faz desequilibrar ainda mais o jogoque já é absolutamente desfavorável paraos médios e pequenos. Deveria haver umaredistribuição, de maneira a sustentarveículos de tamanhos, alcance, posturaspolíticas e públicos variados.”

Aqui cabe um importante parênteses.Embora defenda melhor partilha no re-

ESPECIAL UMA IMPRENSA SEM ALTERNATIVAS

Francisco Bicudo: a favor da redistribuição daverba publicitária do Governo federal.

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5JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

passe de verbas de publicidade oficial, oacadêmico diz ser contrário a projetosque obriguem os Governos a anunciaremem jornais e rádios de pequeno porte.“Seria grande o risco de sair da ditaduradas verbas privadas e cair numa ditadurade chapa-branca, por causa desse financi-amento oficial. Uma das exigências daimprensa alternativa é a garantia irrestri-ta de independência. Ela deve, claro, con-tar com verbas públicas, mas não podeficar atrelada, dependente disso. Vai aca-bar ‘escorregando’, deixando de fazer umjornalismo plural e democrático. Acaba-ria se transformando, infelizmente, emassessorias de imprensa do Poder Público.Esse risco precisa ser evitado!”, alerta.

No entender de Bicudo, a democrati-zação da mídia no Brasil, assim como norestante do mundo, passa pelo ambientedigital. Ainda não dá pra imaginar que ainternet seja verdadeiramente concor-rente dos grandes veículos. Mas há novi-dades alvissareiras na rede. “É claro que ainternet pode ser usada para reproduzirneonazismo, racismo,pedofilia e um montede lixo que precisamoscombater. Mas ela é ummeio bacana de profu-são de valores demo-cráticos, de princípiosrepublicanos e huma-nistas. A internet podee vem cumprindo essepapel de resistência. Evem pautando o noti-ciário dos veículos tra-dicionais. Um exem-plo, bastante represen-tativo, foram as mani-festações populares dejunho. A Folha de S.Paulo e o Estadão che-garam a ‘autorizar’ que as tropas entrassembatendo para valer no manifestantes, mastiveram que recuar, diante das reações da-quilo que era publicado nas análises, tex-tos, fotos, enfim, informações que foramcompartilhadas, pulverizadas, distribuídase reverberadas nas redes sociais. Volto a ci-tar a Mídia Ninja – feita por garotos pers-picazes que perceberam as brechas e deci-diram atuar. Quem quiser entender de fatoo que acontece nas ruas do Rio, ou emfrente ao apartamento do GovernadorSérgio Cabral, não pode se desconectar doque é produzido na internet!”.

Padronização dos discursose crise da narrativa

Citado por Francisco Bicudo comoexemplo de mídia alternativa atual, LuizCarlos Azenha, que comanda o blog Vio-mundo, também falou com o Jornal da ABIpara esta reportagem. Um banner no altode seu espaço digital anuncia a todos osvisitantes que o ambiente não conta como apoio de verbas públicas e nem comanúncios das grandes corporações. Seráque essa é uma opção do jornalista ou, naverdade, a linha editorial independenteé que termina por afastar virtuais anun-ciantes de peso?

“Não tenho tino comercial. Não lidocom anunciantes. Por isso, é difícil dizer

se eles foram ‘afastados’, até porque nun-ca foram ‘buscados’. Optamos pelo cami-nho mais difícil, mas isso nos dá legitimi-dade para cobrar, por exemplo, transpa-rência nos gastos públicos em publicida-de e propaganda. Num ambiente de jor-nalismo horizontal, colaborativo e nãohierarquizado, achamos justo que leito-res nos ajudem e sejam recompensadospelas pautas e assuntos de sua preferên-cia. Nossos maiores colaboradores sãonossos comentaristas e leitores, com osquais temos contato permanente no cam-po dos comentários. É como se fosse umareunião de pauta contínua, sem fim, en-tre os moderadores e os comentaristas.Eles nos colocam para trabalhar e agoratambém fornecem meios para que a genteproduza conteúdo próprio”, revela, expli-cando como mantém o blog no ar.

“Nossas campanhas de assinaturas e dedoações específicas foram surpreenden-temente bem sucedidas até agora. Serácertamente um processo longo e lento atéchegar ao ideal, que é a montagem de uma

equipe básica de apoio.Quando digo ‘apoio’quero dizer que os jor-nalistas, fotógrafos ecartunistas que even-tualmente trabalha-rem conosco vão serviraos leitores/financia-dores do Viomundo, àssugestões de pauta fei-tas por eles.”

Azenha tem dúvi-das se a desconcentra-ção da mídia no Paíspoderia começar peloredirecionamento dasverbas públicas. “Acho

que isso dependeria mesmo de uma lei demeios que impeça, por exemplo, a propri-edade cruzada, aquela que matou muitosjornais em capitais brasileiras, na medi-da em que um mesmo empresário era donoda tv, rádios e dos jornais locais, usandouns para promover os outros, em detri-mento da concorrência. Analise a lentamorte do Jornal do Brasil impresso no Riode Janeiro e você vai ver que, dentre ou-tros motivos, figura a propriedade cruza-da dos Marinho na cidade.”

E já que o assunto é a concentração damídia, a relação de Azenha com as Orga-nizações Globo – maior empresa de co-municação do País e um dos maiores con-glomerados do setor em todo o mundo –é um polêmico capítulo à parte. “Eu eracorrespondente da TV Globo em NovaYork e me sentia insatisfeito pelo fato deter apenas 60 segundos para fazer repor-tagens diárias no Jornal Nacional. Umamigo sugeriu que eu fizesse um blog comos bastidores. Por isso o mote do site setornou ‘o que você não vê na mídia’, queadquiriu outra conotação com o passardos anos. O Viomundo nasceu, portanto,de um desabafo”, confessa, lembrandoque, por muito pouco, o blog não saiu doar no início deste ano.

Na esfera judicial, Luiz Carlos Azenhafoi condenado a pagar indenização deR$ 30 mil a Ali Kamel, Diretor-Geral de

Jornalismo da TV Globo. “Estamos recor-rendo. Ele me acusou de difamá-lo, decitá-lo de forma crítica repetidamente.Sim, de fato ele foi citado várias vezes,mas em função do cargo que ocupa, naalta hierarquia de uma das empresas maispoderosas do Brasil. Um dos objetivos dojornalismo crítico que exerço na interneté desmistificar algumas idéias relativas àprofissão: a de que empresas e profissio-nais pairam ‘acima’ da sociedade, comuma suposta neutralidade que na verda-de não existe; a de que as empresas demídia não têm interesses políticos e eco-nômicos e que não os defendem; a de quejornalistas estão acima das críticas oumerecem tratamento privilegiado. Por-tanto, fazer e receber críticas é do jogo.E foi neste contexto que critiquei o Ali. Emminha opinião, na falta de argumentospara vencer o debate político, ele buscoua Justiça, até porque as idéias que defendia– contra as cotas raciais, por exemplo –foram derrotadas na sociedade. Fiqueidesanimado porque meu blog é sustenta-do do próprio bolso e ações na Justiça sãocustosas. Porém, o grande apoio dos leito-res me fez rever a decisão e mantê-lo no ar.”

A questão a seguir, apesar de delicada,é inevitável. Há quem relacione as críti-cas de Azenha às Organizações Globo aoseu ingresso na Rede Record, onde traba-lha desde 2008. “Minhas críticas à Globonasceram dentro da própria emissora, namedida em que, em minha primeira co-bertura de campanha política nacional noBrasil, vivi experiências que não tinhavivido antes. Em outras palavras, vi comos meus próprios olhos. Faz toda a dife-rença e foi marcante. Aliás, o Viomundo erahospedado na Globo.com e eu era repór-ter da Globo de São Paulo, quando noti-ciei o arranjo entre o Delegado da PolíciaFederal Edmilson Bruno e jornalistas paravazar fotos do dinheiro apreendido competistas bem na véspera do primeiro tur-no das eleições presidenciais de 2006. Fuicobrado pelo meu chefe na emissora porfazer isso e não me arrependi: era notícia!Na Record, meu blog nunca foi assunto.São trabalhos distintos e independentes.A Record nunca impôs qualquer restriçãoa meu trabalho na blogosfera, nem fezqualquer sugestão direta ou indiretamen-te. Se o fizesse, eu optaria pelo blog.”

A declaração de Azenha traz de voltaa figura de Francisco Bicudo. “O jornalis-mo sofre três crises distintas e profundas.A primeira é de formação: quem é esseprofissional hoje, que deve ser preparadopara atuar diante da diversidade, multi-plicidade e profundidade de tantos pro-blemas? O segundo ponto trata de umdilema ético: escrevemos e produzimospara o público ou para o patrão? E, porfim, como fruto direto da concentraçãodos veículos nas mãos de poucos, com oquase extermínio das vozes dissonantes,vivemos uma crise de narrativa. Sofremoscom a pasteurização, a padronização, ahomogeneização do discurso, que levamdistintos veículos a falarem quase semprea partir dos mesmos olhares, enfoques,princípios, a partir dos mesmos pressu-postos ideológicos – o que quebra o prin-

“Estamos na idadeda informação e éimportante que o

público se dê contade que o mensageiroé parte integral dosistema de poder efiltra as mensagensde acordo com seuspróprios interesses.”

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cípio de jornalismo como um serviçopúblico que pretende oferecer à sociedadefocos diversos da realidade.”

O professor da Eca-USP pisa aindamais fundo. “Fazer e ler jornalismo é,cada vez mais, tarefa enfadonha, cansa-tiva, cinzenta, pois parece que escrevermatéria é como preencher um boletim deocorrência. É sempre a mesma fórmula,estrutura, as mesmas mensagens, o mes-mo tom conservador, em que você vaialterando nomes, motivações do crime,local, a arma, num jogo de lego para res-ponder às perguntas básicas de ‘o quê,quem, como, onde, por que e como’. Asmatérias acabam reproduzindo estereó-tipos, preconceitos e o senso comum,banalizando a discussão”, critica, ressal-tando que entre seus alunos há jovens quemantêm acesa a chama da rebeldia.

“Vejo uma garotada disposta a fazercumprir o intuito básico de jornalismo,que nasceu nos séculos 15 e 16 como filhodireto das revoluções humanistas, pelanecessidade de esclarecimento da socieda-de, a partir da ruptura dos diques dos segre-dos, tão comuns na Idade Média.”

Talvez isso possa garantir maior pres-tígio à categoria. Ou, pelo menos, maior

Apontada pelo professor FranciscoBicudo como um dos exemplos contem-porâneos de produção alternativa, a Mí-dia Ninja começa a ganhar espaço. Aospoucos, deixa de ter sua produção veicu-lada exclusivamente na internet. Seus ví-deos, sem produção refinada mas feitosde perto, em cima dos acontecimentos,passam a ser citados e reproduzidos emvários telejornais – chegaram, inclusive,ao Jornal Nacional, da TV Globo, e ao RodaViva, da TV Cultura. Jornalista, escrito-ra e poeta, Elizabeth Lorenzotti é gradu-ada e mestre pela Eca-Usp, foi repórter, re-datora, editora de jornais e revistas dagrande imprensa, alternativa e sindicalde São Paulo. Ela fez uma análise especi-almente para o Jornal da ABI.

Afinal, por que a tal Mídia Ninja pareceincomodar tanto os ditos ‘grandes’ veículos,das principais corporações? “Porque é inde-pendente, não tem patrocínio, é livre. A siglaNinja quer dizer ‘Narrativas Independentes,Jornalismo e Ação’. Jornalismo é o que elesfazem: eles são repórteres entrevistandopessoas onde a notícia está, e no meio dela.Isso não é novidade; é a boa e velha essênciado jornalismo, e já tivemos muito disso naHistória da nossa imprensa. Mas eles tam-bém são ativistas, consideram-se parte dasmanifestações populares. Oficialmente,define-se o jornalista como um ser imparcial– o ativismo não entra. Os manuais de reda-ção pregam que sejamos seres sem história eideologia frente à notícia. Ora, todos sabe-mos que essa visão é irreal. E que também

Afinal, o que é e o quequer a Mídia Ninja?

sejam dados todos os lados da notícia. Masquantas vezes nós, jornalistas, cercamoso fato por todos os lados e chegamos aolide, e na Redação essa reportagem foieditada ao bel prazer da linha editorial doórgão? Quantas?”, questiona Elizabeth.

“A Mídia Ninja assusta porque temcredibilidade, porque milhares de jovensdiariamente repetem ‘A Mídia Ninja merepresenta’. Eu descobri os Ninjas quan-do, irritada com a GloboNews que transmi-tia tudo do alto de prédios, no início dasjornadas de junho, fui até a internet e osencontrei. Fiquei impressionadíssimacom tudo o que via, em tempo real, semcortes, sem edição. E não conseguia des-grudar da tela. Não sei de outra cobertu-ra em tempo real tão verdadeira.”

Para Elizabeth, que é autora de livroscomo a biografia Tinhorão, o Legendário, aMídia Ninja e outros grupos de mídia livresão herdeiros diretos da chamada ‘impren-sa alternativa’ que nos anos 1970 enfren-tou a ditadura militar bravamente – seautofinanciou, escreveu, diagramou, im-primiu, foi censurada e presa. A diferençaé que aqueles, quase sempre, trabalhavamnas Redações, na maioria, e dedicavam seutempo livre, e suas matérias que jamaisseriam publicadas nos veículos tradicio-nais, aos títulos ‘nanicos’. O princípio bá-sico dos ‘alternativos’, segundo ela, é prati-camente o mesmo. Os tempos – e, sobretu-do, as tecnologias – é que mudaram.

“A evolução digital já revolucionou aindústria fonográfica e está no mesmo

caminho no setor de livros. E, como nãopoderia deixar de ser, na mídia impressae televisiva. Tv, jornal, internet, tudo jácabe nas palmas de nossas mãos. Em bre-ve, não haverá mais aparelhos de tv emnossas salas. A imprensa escrita, que sedebate há décadas com crises, não queracreditar, e prefere permanecer deitadaem berço esplêndido, criticando as ou-tras mídias. Em recente artigo intitulado‘Imprensa nas redes sociais: autoridadesem centralidade’, o professor Fabio Ma-lini explicou com detalhes como sua en-trevista foi cortada ao meio pela Folha deS.Paulo, pois ele afirmou que a velha mí-dia tem autoridade, ainda, na rede, masnão mais centralidade. Ele acentuou que“quando computado o volume de RTS queos jornais recebem em relação ao núme-ro total de tweets o resultado é mínimo”.Para o especialista, ‘não adianta o @folha

ser autoridade e estar isolado do mundosocial que interage intensamente. O nú-cleo da interação e a densidade das relaçõesficam com os ativistas, porque eles conver-sam, compartilham, republicam uns aosoutros. Eles estão em contato e em contá-gio permanente, enquanto perfis como o@folha ficam só difundindo informaçõespara seus milhares de seguidores fixos’”,descreve Elizabeth.

Espertos, e ainda beneficiados peladifusão e barateamento das tecnologias,os meninos do Mídia Ninja conseguiramquebrar a ditadura da visão editorial con-servadora dos grandes grupos de comuni-cação. Oxigenaram a cobertura, informa-ram de modo plural e, mais do que isso,fizeram alguns dos principais jornais doPaís caírem no flagrante ridículo da ma-nipulação. Ao contrário das tradicionaispublicações dos anos 1960 e 1970, eles

segurança aos profissionais e ao patrimô-nio de jornais e emissoras de televisão que,em vários dos protestos realizados desdejunho, foram alvos de agressões e seguidosataques. “Condeno de forma veemente

qualquer restrição ao trabalho de colegas.Compreendo, porém, que as manifesta-ções se voltaram contra todas as fontes depoder constituído. Minha percepção é deque muitos manifestantes compreende-ram o papel importante desempenhadopela mídia. Estamos, afinal, na idade dainformação e é importante que o públicose dê conta de que o mensageiro é parteintegral do sistema de poder e filtra asmensagens de acordo com seus própriosinteresses. Esse entendimento é essenci-al para que se lute por maior pluralidade,mais conteúdo local e regional, ampliaçãodos canais de comunicação comunitária,maior número de canais públicos – já quea mídia corporativa, como diz o nome,representa os interesses privados de cor-porações. Costumamos dizer: não quere-mos menos, queremos mais mídia e, comela, mais democracia”, sublinha Azenha.

Essa conquista vem ocorrendo, aospoucos, no ambiente digital. É o que ga-rante o criador de Viomundo. “Muitosdebates pautados exclusivamente na blo-gosfera influenciam a sociedade brasilei-ra, passando ao largo da grande mídiacorporativa. Ainda assim, o Brasil temconcentração da mídia como poucos

países do mundo. Imagine que 50% detudo o que o Governo federal gasta empublicidade vai para uma única empresa!Tudo isso é agravado pelo fato de queexistem deputados e senadores ligados agrupos de comunicação, de tal forma quea mídia extremamente concentrada en-contra apoio político no Congresso; poroutro lado, promove a concentração dopoder político nos âmbitos regional elocal. O exemplo mais notório é o doSenador José Sarney (AP-PMDB) – comseu controle sobre a mídia local e sobre apolítica de dois Estados.”

Em sintonia, Francisco Bicudo diz terentendido o recado vindo das ruas. “Parausar uma expressão da moda, as pessoasdisseram de uma forma explícita que es-sas corporações com monodiscursos ‘nãoas representam’. Esses veículos precisa-rão se reinventar, readaptar, recuar algu-mas vezes, como fizeram na caracteriza-ção inicial de que os protestos eram pro-movidos por ‘vândalos’. Esse, na verdade,é um campo aberto, em disputa... Nãoqueremos mais narrativas sectárias, nemser enganados, pautados unilateralmen-te por empresas midiáticas partidariza-das da pior maneira possível.”

ESPECIAL UMA IMPRENSA SEM ALTERNATIVAS

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Com celulares na mão, os integrantes do grupo Mídia Ninja fazem o registro dos eventos ao vivo.

Azenha: “Não queremos menos, queremosmais mídia e, com ela, mais democracia”

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7JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Outro blogueiro ‘alternativo’ citadopor Chico Bicudo no início desta repor-tagem é Rodrigo Vianna, que, em seu blogEscrevinhador, publicou, em 11 de marçodeste ano, elucidativo artigo sobre asdificuldades pelas quais passam os veícu-los alternativos. O texto é de Juliana Sada.

“Nesta segunda-feira, a Redação da re-vista Caros Amigos, que estava em grevedesde o dia 8, foi alvo de demissão coleti-va. Nas redes sociais, leitores protestaram,considerando a atitude incompatível comuma revista de esquerda. Wagner Nabuco,diretor da Editora Casa Amarela, respon-sável pela publicação, alegou ‘quebra deconfiança’ da equipe. Disse ter sido surpre-endido pela declaração de greve dos onzeintegrantes da Redação. Os funcionáriosdemitidos, por sua vez, dizem que entra-ram em greve por causa da falta de diálo-go e para reagir ao anúncio de cortes de50% na folha de pagamento.”

A jornalista segue em sua análise:“A crise da chamada ‘imprensa alterna-

tiva’, no entanto, é mais ampla. A greve e asdemissões em Caros Amigos expõem umasituação grave: a precariedade e a falta derecursos que afetam vários sites e publica-ções. O portal Carta Maior reagiu de formadireta: divulgou uma nota criticando a pos-tura do Governo federal, e informou que aorigem do problema da Caros Amigos está na‘asfixia financeira, decorrente das decisõesdo Governo federal de suprimir publicida-de de utilidade pública nos veículos da mí-dia alternativa’. Carta Maior disse mais: arevista resistiu ao ciclo tuca-no dos anos 1990, mas nãosuportou os ‘critérios técni-cos’ da Secom no GovernoDilma, cuja prioridade éconcentrar recursos nos ve-ículos conservadores.”

Rodrigo Vianna tam-bém avaliou o cenário dedificuldades dos veículosalternativos. “As informa-ções que chegam de Brasí-lia indicam que a Secom não tem qualquerintenção de mudar os critérios de distri-buição das verbas oficiais de publicidade.O Governo Dilma ajuda a concentrar asverbas nas mãos de poucos. Age, assim, nacontramão das políticas adotadas por de-mocracias ocidentais que destinam par-te da verba para os ‘fundos de democrati-zação da mídia’; e parece mais preocupa-do em não criar ‘zonas de atrito’ commeia dúzia de famílias que, donas de re-vistas e jornais conservadores, se esbal-dam com a verba de publicidade oficial.”

Dados divulgados pela própria Presidên-cia da República, no final de 2012, confir-mam a tese de Rodrigo. Há mais de 3.000

RODRIGO VIANNA

“O Governo Dilma ajuda a concentraras verbas nas mãos de poucos”

veículos cadastrados no Núcleo de Mídia daSecom. Do total de R$ 161 milhões pagosaos meios de comunicação, durante o Go-verno Dilma, R$ 112,7 milhões couberama apenas dez empresas. As demais 2.990dividiram o bolo dos R$ 48,3 milhões res-tantes. É isso mesmo: dez empresas concen-tram mais de 70% da verba federal para pu-blicidade – dentre elas, em especial, a TVGlobo. O argumento da Ministra HelenaChagas, da Secretaria de Comunicação,não variou desde o início do Governo deDilma Rousseff. Na opinião dela, “é inevi-tável que o maior volume de pagamentosseja dirigido a meios e veículos de maior au-

diência, que atingem ummaior público, como é ocaso da televisão”. Mas háquem discorde.

O Presidente da Alter-com (Associação Brasilei-ra de Empresas e Empre-endedores da Comunica-ção), Renato Rovai, con-testa a visão da Ministra.“No Brasil a verba publi-citária é pessimamente

distribuída”, dispara ele, que defende que30% das verbas publicitárias sejam repas-sadas a pequenas empresas e empreende-doras individuais de comunicação, comojá acontece em outras áreas, como na com-pra de alimentos da agricultura familiarpara a merenda escolar. “Reafirmamosnossa posição de que a distribuição dasverbas publicitárias governamentais nãopode atender apenas à lógica de mercado.Ela precisa ser referenciada nos artigos daConstituição Federal que apontam que oEstado brasileiro deve promover a diver-sidade e a pluralidade. A melhor divisãofortaleceria a cadeia produtiva do setorda comunicação. E colocaria o Brasil num

outro patamar democrático, possibilitan-do o fortalecimento e o surgimento denovas empresas e veículos.”

Bernardo Kucinski é jornalista e umadas maiores autoridades sobre mídia alter-nativa no Brasil – atuou em Movimento,Opinião e Em Tempo. É autor de vários livros,como O Que São Multinacionais (editadoem 1981), Síndrome da Antena Parabólica:Ética no Jornalismo Brasileiro (de 1998) eJornalismo na Era Virtual – Ensaios Sobre oColapso da Razão Ética (2005). Em 2002,com a vitória de Lula, se tornou AssessorEspecial da Secretaria de ComunicaçãoSocial da Presidência da República, cargoque deixou em 2006. Polêmico, mas extre-mamente respeitado nos meios jornalísti-cos e acadêmicos, ele também respondeuàs perguntas enviadas pelo Jornal da ABI.

“Deveria haver uma política pública deapoio à diversificação, experimentação epluralismo no jornalismo. Eu propus algodesse tipo quando trabalhei na Secom noGoverno Lula, mas a proposta não prospe-rou. Ela é refém da mídia convencional, oque não ocorre no Ministério da Cultura,que sempre teve uma visão mais avança-da da questão do pluralismo e da criação –e do seu papel como agência contra-hege-mônica. A atual proposta de vale-culturada Ministra Marta Suplicy se assemelhaem parte à que eu fiz naquela época parao jornalismo. Também deveria haver umapolítica pública de uso do jornalismo naformação dos jovens, desde a escola primá-ria. Eu propus isso quando Paulo Freire eraSecretário da Cultura em São Paulo, aindana gestão Luiza Erundina, mas a propostatambém não prosperou. Eu sempre fui mui-to bom em fazer propostas e muito ruim noencaminhamento delas.”

Para Bernardo Kucinski, os alternati-vos surgiram impulsionados por dois fa-

não têm maiores problemas de financia-mento. Quase tudo é feito e transmitidoao vivo, a partir de pequenas câmeras devídeo e celulares. “Em São Paulo, veja só,há uma banca que desistiu de vender jor-nais, porque eles não têm mais saída. Aaudiência global registra graves quedas. Aantiga mídia ainda em vigor pode demo-rar a cair, mas seus dias estão contados. Ésó consultar os especialistas em comuni-cação do século 21”, condena Elizabeth.

Capixaba de Domingos Martins, CicíliaPeruzzo é graduada em Comunicação So-cial, habilitação Relações Públicas, pela Fa-culdade de Comunicação Social Anhembi,mestre pela Metodista de São Paulo e dou-tora pela Usp. Dedica-se especialmente aosestudos da comunicação popular, alterna-tiva e comunitária, da mídia regional e lo-cal e suas interfaces no processo de ampli-ação do exercício da cidadania. Ela concor-da com a visão de Elizabeth sobre o papelestratégico do ambiente digital para descon-centrar a produção de mídia no Brasil.

“A profusão desse tipo de canal é desuma importância para os povos de todoo planeta, pois viabiliza a troca de conhe-cimentos e da informação, além de favo-recer processos de mobilização e articula-ção social. Há um crescente número decanais independentes e de redes sociaisvirtuais no ciberespaço – ao lado das redessociais presenciais e dos meios tradicionaisque persistem por todo o Brasil, tais comoblogs, fotologs, websites, e-zines, webra-dios, webtvs, sites colaborativos... Porém,convém lembrar que nem todo blog é al-ternativo. Ser independente, por si só, nãoquer dizer ser alternativo. Há que se aten-tar para o conceito que tem uma carga his-tórica na sua configuração. Porém, o termo‘alternativo’ é de emprego muito impre-ciso, os conceitos são controversos, e omesmo tem sido criticado e seu uso atésuspenso por longos anos na literatura dacomunicação. No entanto, o ressurgimen-to de novas expressões comunicacionaiso recolocou no debate. Há que se dizerque a comunicação alternativa é aquelaque se pauta pela desvinculação de apara-tos governamentais e empresariais de in-teresse comercial e/ou político-conserva-dor”, disse Cicília Peruzzo em entrevistaao Jornal da ABI.

Para Cicília, que foi presidente da Soci-edade Brasileira de Estudos Interdiscipli-nares da Comunicação-Itercom, de 1999a 2002, os grupos independentes de mídiapodem até representar um contrapontoaos modelos pré-estabelecidos. Mas care-cem de estrutura – leia-se financiamento– para combater de fato as redes de televi-são e os jornalões. “Grupos como a MídiaNinja ainda têm alcance bastante disper-so diante dos veículos de massa, que des-frutam de um poder de influência imen-surável. No entanto, esses meios alterna-tivos e comunitários são importantesenquanto canais que participam do debatee se tornam fontes autônomas e comple-mentares de informações. Além disso, ébastante curioso o fato de eles não cons-tituírem apenas meios de difusão, mas seinserirem em processos mais amplos dearticulação e organização social.”

“A distribuiçãodas verbas

publicitáriasgovernamentaisnão pode atenderapenas à lógicade mercado.”

Durante o Governo Dilma, dez empresas concentram mais de 70% da verba federal para publicidade.As outras 2.990 dividem o restante do bolo publicitário: pouco mais de R$ 16 mil para cada uma.

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tores principais. Um de âmbito mundial:a rebelião da juventude contra o conven-cional. E outro de âmbito de motivaçãolocal ou específica: a revolta contra a di-tadura. “Os nossos jornais alternativosprincipais, com exceção do Pasquim e doCoojornal, foram criados e apoiados por co-ligações de grupos políticos, a maioria decultura sectária, o que levava ao rompi-mento de alianças conforme mudava aconjuntura, com o conseqüente enfra-quecimento e até fechamento dessaspublicações. O fim da ditadura, permitin-do a legalização desses grupos políticos, foia pá de cal desses jornais. Cada grupo foifazer seu próprio jornal abertamente par-tidário. Já o definhamento do Pasquimdeve-se a múltiplas causas, a principaldelas, creio, a relutância dos seus dirigen-tes em se tornarem empresários. Houve oenvelhecimento do tipo de humor que elespraticavam, e a curta, mas dramática, pri-são de parte de sua equipe pelo regime mi-litar – o que não ocorreu em nenhuma outraRedação alternativa”, indica ele, numa re-ferência à temporada que nomes como Zi-raldo e Jaguar passaram atrás das grades.

Na visão de Kucinski, o poder dos con-glomerados de mídia foi atropelado pelarevolução tecnológica. Além do conteúdo,hoje são alternativos os próprios meios. “Aprodução midiática de entretenimento ejornalística ainda se origina em grandeparte das Redações e empresas convencio-nais, mas todo processo de filtragem, me-diação, disseminação e fruição se dá pelosmeios que estão fora do controle dos gran-des grupos. São esses meios hoje que movemas multidões, seja na Praça Tahir, seja naAvenida Rio Branco, ou em Tel Aviv. Osgrandes jornais impressos são dinossaurosem extinção. As gigantescas rotativas en-golindo florestas de eucaliptos não têmmais lógica econômica. Esse jornalismo de-saparecerá com a rapidez com que a máqui-na de escrever foi substituída pelo compu-tador. A adaptação ao digital permitirá quemuitos sobrevivam, mas em outra configu-ração e ambiente midiático. A democrati-zação da comunicação já está instalada hámuito tempo. Isso não significa que não sedeveria impor lei e ordem nas concessõesde rádio e canais de televisão, que vivemum verdadeiro caso de polícia no Brasil.”

Não somente os jornais impressos sofre-ram agruras no combate com o regime mi-litar de pós-1964. Muitas empresas nacio-nais foram perseguidas por fazerem oposi-ção à ditadura, ou tão somente por teremdemonstrado simpatia política a governosanteriores de linhagem democrática e popu-lar, como os de Juscelino Kubitschek e JoãoGoulart. A TV Excelsior, por exemplo, tevea sua concessão cassada em 1970. Um de seussócios era Mario Wallace Simonsen, sócio daPanair – então a maior companhia aérea doPaís, arbitrariamente fechada cinco anos an-tes, por decisão do Presidente Castelo Bran-co. Um episódio que continua a ser analisa-do por um grupo de trabalho da ComissãoNacional da Verdade, que investiga a parti-cipação direta de empresários brasileiroscomo apoiadores da ascensão e permanên-cia dos fardados no poder – fato que perdu-raria por duas sombrias décadas.

Francisco Bicudo esclarece que suapesquisa sobre a Caros Amigos cobriu atrajetória da revista desde a sua fundação,em 1997, até 2002. “Até a conclusão daminha tese, ela era representante clássi-ca da tendência alternativa sob os pontosde vista político, jornalístico e de finan-ciamento. O pessoal de lá ‘ralou’ muitonaquele início. Tiveram sucesso, chegan-do a vender mais de 60 mil exemplarespor edição – bom número para uma pro-posta tão segmentada. Mas a ascensão doGoverno do PT colocou a publicaçãodiante de um certo dilema... Isso bateuforte neles, inclusive em discussões acalo-radas internas, quando o Sérgio de Souza– um dos fundadores, falecido em 2008 –defendia o maior afastamento do Gover-no Lula, que ele já não considerava tão deesquerda assim, àquela época. Nos últimosanos, houve problemas e dilemas que, senão abalaram, ao menos trincaram a ima-gem da revista. Ainda assim, acho que elacontinua desempenhando um papel im-portante no cenário da imprensa nacio-nal”, diz o professor, que, no entanto, la-menta a posição da direção da EditoraCasa Amarela quando da recente greve.“Ela agiu exatamente como agiria qual-quer grande corporação de mídia, com ademissão de boa parte da Redação, semmaior espaço para a abertura de diálogo.”

Atual Editor-Executivo da Caros Ami-gos, o jornalista Aray Nabuco falou sobrea situação da publicação – que segue comoreferência de independência editorial —especialmente para o Jornal da ABI. “Arevista sobrevive de assinaturas, vendaem banca e pouca publicidade do PoderPúblico, já que a iniciativa privada tendea recusar anúncios em veículos que, aoproduzirem jornalismo independente,atentam contra os seus interesses merca-dológicos. Assim, os anunciantes da re-vista são do Poder Público – e obviamentenão os que estão nas mãos de partidos dedireita, como o PSDB e Dem. Não aceita-mos nenhum outro tipo de subvenção, degovernos ou da iniciativa privada. Mas,realmente, ainda é pouco o que recebem osveículos alternativos, quando comparadocom a verba pública para publicidade gastana mídia tradicional. Por isso, a direção darevista integra um grupo de editores – aAltercom, dirigida por Renato Rovai – quepleiteia um reparte mais equilibrado dasverbas públicas de publicidade para as re-vistas alternativas e de pequeno porte,como forma de democratizar a informaçãoe romper com os monopólios e a concentra-ção de poder nas mãos das poucas famílias.”

Aray Nabuco considera que não há dú-vida de que, enquanto política de Estado,deveria ser estimulada a pluralidade deopiniões – até para a quebra dos cartéis decomunicação. “Sabemos, por exemplo, quea Caros Amigos, apesar de ter uma posição

Caros Amigos, umcaso de resistência

diversa de outras revistas, não está entreas que são compradas e distribuídas noCongresso Nacional, onde circulam as pu-blicações da mídia hegemônica. Mas oprincipal debate é que a sociedade tem deencontrar mecanismos para democratizara informação, de ter diversos pontos de vis-ta disponíveis para que os leitores formemsua opinião, o que não será conseguidocom a atual concentração de mercado.”

Sem dúvidas, a revista é uma resisten-te. Uma sobrevivente. As dificuldades decolocá-la mensalmente nas bancas sãograndes, sobretudo financeiras. “Ela foi aprimeira revista à esquerda, quando surgiunos anos de 1990 – hoje não mais, há ou-tras, e ainda bem. Cumpre o papel de fazerjornalismo sério e independente no retra-to e debate de questões políticas e sociais,abordando assuntos que não aparecem namídia hegemônica ou que aparecem coma visão conservadora dos que detém opoder econômico ou político. Um grandeexemplo foi a revelação feita pela revistado filho fora do casamento de FernandoHenrique Cardoso com uma jornalista daGlobo, assunto que era mantido em segre-do na mídia tradicional. Mas há muitosoutros exemplos. Outro deles será veicu-lado na próxima edição, de agosto.”

Questiono Aray sobre os riscos, para oPaís, de tamanha concentração da mídianas mãos de tão poucos. “Não é um risco.A falta de uma mídia realmente plural edemocrática já é um fato. Atualmente, umaúnica família detém dezenas de veículos,entre jornais, sites, rádios e tvs, e todos elesrezam a mesma ladainha. Os exemplos sãomuitos, mas um bom para citar é a defesae blindagem pela mídiatradicional dos políticosconservadores, que de-fendem seus próprios in-teresses, e as manipula-ções contra os Governosprogressistas e trabalhis-tas. Por isso, a Caros Ami-gos e tantas outras pesso-as defendem um novomarco para a mídia, umaregulamentação de fato,que impeça o cruzamento da propriedadedas mídias, o que afronta, inclusive, aConstituição brasileira e impede o debateplural e democrático de idéias.”

Apesar do contexto de dificuldades,ele conserva um olhar otimista sobre ofuturo. “Não creio que a tradição da im-prensa alternativa se perdeu; atualmen-te, pode-se dizer que se diversificou, aomesmo tempo em que há outras mudan-ças que ocorrem após a abertura política,fim da ditadura e da censura, já nos anos1980. A Caros Amigos e outros veículos,como a revista Fórum ou o jornal Brasil deFato, são exemplos de imprensa alterna-tiva que continuam veiculando notícias,

movimentos sociais, visões de mundo eopiniões bem distintas – e à esquerda – doque se vê na mídia tradicional. Há umadiversificação maior de publicações alter-nativas, além de, atualmente, com a in-ternet, surgirem novos meios de comuni-cação direta. Mas as alternativas estão aí,circulando por fora do ‘mainstream’.”

O Editor de Caros Amigos reconhece aimportância histórica de seus ‘antepassa-dos’. “Veículos como Pasquim, Opinião eMovimento cumpriram a sua função emum momento específico. Naquele tem-po, eram as raras vozes dissidentes. Tive-ram uma história barra pesada – os aten-tados a bomba contra bancas. A pressãoda ditadura sobre os jornaleiros que ven-diam esses jornais foi determinante. OPasquim ainda sobreviveu mais; mas jánesse Brasil pós-ditadura, com uma novageração de leitores, que já tinha acesso ainformações do mundo todo. Vimos flo-rescer até mesmo uma nova geração dehumoristas, como a turma do Casseta &Planeta, com seu Planeta Diário.”

Já que o Pasquim foi citado tantas ve-zes, com a palavra, o jornalista SérgioCabral. “Temo que o desaparecimento das

principais publicações daimprensa alternativa re-flita uma crise de que pa-dece o próprio jornalis-mo impresso. Movimento,Opinião, Pasquim e ou-tros desapareceram comotambém sumiram o Diá-rio de Notícias, ÚltimaHora, O Jornal, Diário daNoite e Correio da Ma-nhã... Os problemas fi-

nanceiros do Pasquim começaram com anossa prisão, quando os anunciantes fo-ram avisados pela ditadura que anunci-ar no jornal seria subsidiar a subversão.O jornal sobreviveu mais alguns anosporque ficou na mão de um herói, o nos-so Jaguar. De verdade, temo o monopó-lio da produção midiática, como qual-quer outro monopólio. Afinal, estamosfalando do monopólio da opinião, o quenão é nada democrático. Como jornalis-ta, vejo a imprensa alternativa como umagarantia de liberdade e um campo magní-fico para o exercício da democracia.”

Movimento é outro marco da imprensano Brasil. Seu viés alternativo era tão evi-

“A imprensaalternativa é

uma garantia deliberdade e um

campo magníficopara o exercícioda democracia.”

ESPECIAL UMA IMPRENSA SEM ALTERNATIVAS

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dente que sua viabilização econômica esustentação administrativa foram pecu-liares. Fatores sem os quais dificilmen-te o jornal semanal teria conseguido ado-tar uma linha tão contestadora. Movimen-to foi um caso raro de imprensa indepen-dente, dirigido pelos próprios jornalis-tas que o faziam, sem a figura clássica deum patrão-empresário. Era uma empresade sociedade anônima. E o jornal se con-cretizou por meio de uma mobilizaçãofeita em todo o País, e a venda de ações aapoiadores, chegando ao número de 500acionistas – entre jornalistas, intelectu-ais, profissionais especializados, profes-sores e estudantes.

“Movimento circulou de julho de 1975a novembro de 1981. O jornal tinha emmédia 5.000 assinantes, mas as suas ven-das mais importantes eram feitas nasbancas de jornais, podendo chegar a 20mil por edição. E havia venda direta, fei-ta maciçamente por estudantes e jovenstrabalhadores. Havia vendas especiaisaproveitando eventos como as reuniõesda Sociedade Brasileira para o Progressoda Ciência. Sua circulação foi muito pre-judicada pela censura. Diversas ediçõesacabaram sendo apreendidas. Quando acensura recuou, setores militares adota-ram o terrorismo para combater o jornal,bombardeando bancas que o vendiam,assim como outros jornais alternativos.Como o ponto forte eram as vendas embanca, foi um golpe brutal, que precipitouo seu fechamento”, afirma Carlos Azeve-do, jornalista com passagens por veículoscomo O Estado de S.Paulo, Quatro Rodas,Caros Amigos e Realidade, e autor do livroCicatrizes de Reportagem, lançado em 2007pela Editora Papagaio.

Em setembro de 2011, Azevedo lan-çou a obra Jornal Movimento, Uma Repor-tagem, pela Manifesto Editora. O livrocontou com a colaboração de MarinaAmaral e Natalia Viana – as duas à fren-te da Agência Pública, espaço digital di-ferenciado, totalmente dedicado a repor-tagens especiais e ao jornalismo investi-gativo. Mais um respiro de criatividade eousadia diante da mesmice dos grandesveículos. “Sempre haverá espaço parapublicações independentes, que busqueminformar o leitor honestamente, dandocondições à sua formação como cidadãoe participante consciente da sociedade.Só assim nós poderemos ampliar a demo-cracia no rumo de uma sociedade maisjusta”, sentencia Carlos Azevedo.

No meio acadêmico,críticas à falta de diversidade

A tradição de concentração da gran-de mídia por grupos econômicos e polí-ticos acercados do Estado é um proble-ma nacional. É o que pensa Cicília Peru-zzo. “O controle dos meios de comuni-cação por esses grupos representa o do-mínio das mais importantes unidades deprodução econômica do setor, que porsuas características estendem as visõesde mundo das classes dominantes aoconjunto da sociedade. São mecanismosfacilitadores da conquista da hegemoniasocial por meio do controle do modo de

interpretar a realidade e de pensar omundo, segundo os parâmetros favorá-veis à manutenção da sociedade capita-lista ou ao ajustamento dos seus interes-ses. Há que se observar que a realidadecomunicacional do País não se resumeao sistema midiático tradicional queaqui nos referimos como sendo os gran-des meios de comunicação, abarcando amídia privada e a pública estatal. Mesmosendo o sistema predominante, ele vemsendo modificado por intermédio dainserção de novos canais que oferecemconteúdos segmentados, criam suas au-diências ‘especializadas’ e ajudam a con-formar uma realidade mais democráticaquanto aos meios de comunicação.”

Cicília Peruzzo se refere, por exemplo,aos canais de acesso gratuito da televisãoa cabo que têm hoje em dia oito tipos decanais televisivos ocupados e sendo ope-rados por diferentes segmentos da soci-edade, como os órgãos legislativos (Câ-mara dos Deputados, Senado Federal eAssembléias Legislativas nos Estados eMunicípios), e os canais do Executivofederal, da Justiça, Universitário e Comu-

dependente (CMI Brasil) e o Overmun-do. um site colaborativo.”

A ‘pasteurização’ do conteúdo comoum fenômeno próprio da grande impren-sa – que tem suas estratégias de produçãode conteúdos e de formação de audiênci-as – encontra, sim, seu contraponto naimprensa alternativa. “A internet de fatofacilita a constituição de ambientes co-municacionais do ‘jornalismo cidadão’,do ‘jornalismo cívico’, de fontes abertas(open sources), que pode ser feito porqualquer um, principalmente, por suas or-ganizações de base e coletivas. O meio decomunicação não existe mais somentepara ser visto, consumido, e sim para serprocessado por qualquer leitor ou teles-pectador”, teoriza Cicília Peruzzo.

Francisco César Pinto da Fonseca é ci-entista político, historiador e professor deCiência Política da Fundação Getúlio Var-gas de São Paulo. “Muitos fatores levaramà extinção dos jornais alternativos. So-bretudo, o fato de a mídia, no Brasil, terampliado a sua oligopolização, mesmoapós a redemocratização política. Isto é,tanto em termos político/institucionais(com a ausência de marco regulatório damídia, por exemplo) como de linhas decrédito, sobretudo quando avaliamos opapel do BNDES, que financia os grandesconglomerados midiáticos, e não peque-

nos jornais. Assim, eles fo-ram perdendo a capacidadede concorrer, minimamen-te, com os grandes meios decomunicação”, diz Fonseca.

Autor de O Consenso For-jado – A Grande Imprensa e aFormação da Agenda Ultrali-beral no Brasil, livro editadopela Hucitec, em 2005, Fon-

seca analisa na obra o papel dos quatrograndes jornais do País entre as décadasde 1980 e 1990 – JB, O Globo, Estadão e Fo-lha de S.Paulo – acerca de temas referen-tes à democracia política e social, aos di-reitos sociais e trabalhistas e, sobretudo,à ‘agenda neoliberal’, notadamente noGoverno Collor. A tese consubstanciadano livro analisou dez anos, sem amostra-gem, desses periódicos e concluiu justa-mente pela atuação uníssona. Todos elesforam invariavelmente favoráveis àagenda neoliberal, ou seja, às privatiza-ções, à abertura da economia, à diminui-ção da atuação do Estado e contrários aosdireitos sociais e trabalhistas, por exem-plo, na Constituinte de 1986-1987. “Ape-nas para citar um dado muitíssimo escla-recedor: nesses dez anos de análise ne-nhuma greve foi considerada legítimapelos quatro jornais! Isso diz tudo.”

Tamanho alinhamento leva à ‘pasteu-rização’ do conteúdo, com a perda da iden-tidade dos próprios veículos. No caso dosjornais, fica, para os leitores, a estranhasensação de que “leu um leu todos”. “Defato, não há pluralidade de opiniões nagrande mídia, uma vez que 11 famílias –com histórico de golpismo, elitismo, con-servadorismo e postura patronal – domi-nam os meios de comunicação, processoesse que se estende aos grandes portaiscomo G1, Estadão e Uol. Os incentivos a

nitário. Este último conta com aproxima-damente seis dezenas de canais organiza-dos no País. “Há mil rádios comunitárias,também sem fins lucrativos, espalhadasde Norte a Sul do Brasil trabalhando te-mas locais, algumas com a perspectivatransformadora da realidade, que ofere-cem conteúdos a audiências específicas.Sem falar nos pequenos jornais e fanzi-nes que, além de impressos, hoje podemtambém ser virtuais. Ao que se podemacrescentar as micro-experiências sociaisno uso da internet – sites, blogs, redessociais virtuais, plataformas colaborati-vas, rádios e tvs na web. No conjunto, sãosinais de mudança não muito visíveispara o conjunto da sociedade, mas quevêm construindo novos espaços de ex-pressão e para externar reivindicações.”

Durante as recentes manifestações nasruas, o inconformismo com o status quoveio à tona de modo tão expressivo graçasà mobilização e organização social promo-vidas pelos canais de comunicação virtu-ais. “Se houve essa manifestação pública,ela não ocorreu pelo incentivo da grandemídia, que está mesmo é preocupada emoferecer uma programação alienante eincentivadora da criação e manutenção demassas de consumidores afáveis a padrõesreprodutores de um tipo de sociedade quepreza mais o negócio para o lucro de pou-cos do que as necessidadeshumanas. Tanto que, no iní-cio, a mídia nem sabia comolidar com as manifestações.Aproveitou para alimentar oseu intento ao sensacionalis-mo ao invés de ser capaz deanalisar a fundo os aconteci-mentos de modo a entenderas razões de tanta revoltacom base na história”, considera Cicília.

Ela, no entanto, destaca experiênciaspositivas de resistência alternativa na es-fera da mídia. “A imprensa alternativa serevigora de modo extraordinário no Bra-sil. Entre as várias iniciativas apontamosalgumas, como a Agência de InformaçãoFrei Tito para a América Latina (Adital),a revista Caros Amigos, a Agência Brasil deFato e o jornal Brasil de Fato, ambos liga-dos ao Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST), o Le Monde Di-plomatique Brasil, iniciativa conjunta doInstituto Paulo Freire e do Instituto Pó-lis, com edições eletrônica e impressa emportuguês, que analisam criticamente eem profundidade os mais importantesacontecimentos. Podemos destacar ain-da a Agência de Notícias Carta Maior e oJornal Pessoal, um alternativo que inco-moda gente poderosa na Amazônia,mantido há quase três décadas pelo jorna-lista Lúcio Flávio Pinto, no Pará. Temosas revistas Viração, produzida de umaforma coletiva por adolescentes e jovens,e Ocas (Organização Civil de Ação Soci-al), com análises críticas dos aconteci-mentos pela ótica da população de rua,além de jornais similares como o Trechei-ro (SP) e Boca de Rua (Porto Alegre/RS).Num outro universo, não propriamentede jornais e de agências de notícias, há ini-ciativas como a do Centro de Mídia In-

“A imprensaalternativase revigorade modo

extraordináriono Brasil.”

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10 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Enquanto existirem ditadores, opressão contra o povo, desigualdade so-cial, haverá resistência. E essa resistência virá sempre das ruas mas co-mandada por jornalistas. Estes se arriscam, se entregam, até mesmo seimolam, oferecem a própria vida em nome da liberdade. Na História doBrasil e do mundo, os nomes desses verdadeiros heróis se somam, se jun-tam, se multiplicam, são inesquecíveis.

E em todos os tempos, esses lutadores se incluem numa longa lista, cha-mada de imprensa alternativa. As empresas organizadas raramente com-batem, o sacrifício e a responsabilidade é exercido individualmente. Vemde longe essa tradição, alguns se eternizaram, as ditaduras acabam derro-tadas, embora os jornalistas não saiam vencedores, nem mesmo têm comoobjetivo a vitória pessoal, e sim a destruição da arbitrariedade.

Cipriano Barata, uma lenda e uma legenda, fundou mais de 50 jornais,com nomes diferentes, geralmente batizados com lembranças da últimacadeia. Vivia entrando e saindo de prisões, e enquanto estava livre lutavaapenas pela liberdade – não à própria.

Frei Caneca, sem jornal fixo ou fixado, escrevia onde podia, foi o lídermaior da Insurreição de 1817, que levou à Independência de 1822, entreessas duas datas, foi fuzilado. Mas lembrado eternamente. Líbero Badarólutou demais, resistiu demais, escreveu demais. Como não havia como si-lenciá-lo com vida, foi assassinado em 1831. Suas últimas palavras po-dem ser ouvidas até hoje:”Morre um liberal, mas não morre a liberdade.”

Depois do Império e com a nascente e logo triturada República, que commais de 100 anos é muito citada, apesar de não ser a dos nossos sonhos desempre, tivemos várias ditaduras, ostensivas ou enrustidas, mas todas per-seguidoras, torturadoras, selvagens e cruéis, assassinando em nome ape-nas da ambição do Poder e pelo Poder.

Mas tiveram que enfrentar quase que diariamente a resistência de jor-nalistas, que não pretendiam outra coisa a não ser lutar.

Disse quase diariamente, porque a concentração da luta se fazia maisem torno de revistas, como aconteceu no Brasil, (nas duas ditaduras, de1930 a 1945, depois de 1964 a 1985) com tantos mortos e desaparecidos,alguns nem lembrados são.

Nos terríveis regimes de opressão de Portugal (Salazar) e da Espanha (Ge-neral Franco), semanários que não se entregavam alcançavam grandes tira-gens. Aqui no Brasil, principalmente na última ditadura, muitos semanári-os apareciam, lutavam, desapareciam ou surgiam com outros nomes.

Um dos mais notáveis foi o Pasquim, fundado, dirigido e comandadopor um brilhante grupo de jornalistas. Chegou a uma tiragem de 300 milexemplares, muitas prisões e perseguições, mas continuavam a luta.

Não tinham nem o objetivo da recompensa, seja financeira ou atravésda glória, pois derrubada a ditadura os alternativos da resistência desapa-reciam também.

Os ditadores, quando investem contra o povo, sabem que terão que enfren-tar os heróicos alternativos. Estes também sabem que serão personagens daHistória, o mundo não pode ser dominado pela violência ou pela arbitrarieda-de. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, não é invenção da Revolução France-sa. Foi emprestada pela Humanidade, e pela ditadura não será usurpada.

A imprensa alternativacresce com a ditadura

ESPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

POR HÉLIO FERNANDES

opiniões alternativas passam não apenaspelo marco regulatório, engavetado peloGoverno Dilma Rousseff, como pela revi-são da estrutura das comunicações noBrasil, à luz da reforma argentina, porexemplo, em que 1/3 do universo comuni-cacional (rádio e televisões) é privado, 1/3 estatal (como, aliás, é comum na Euro-pa) e 1/3 comunitário. Sem esse conjun-to de reformas, jamais haverá democraciano Brasil, pois, aqui, a ‘censura do capital’obsta a diversidade e a pluralidade de opi-niões”, afirma Fonseca, que ainda escre-veu Liberalismo Autoritá-rio – Discurso Liberal ePráxis Autoritária daGrande Imprensa Brasi-leira, editado pela Hu-citec, em 2011.

Na opinião dele, aprofusão de novas for-mas comunicacionaistem sido fundamental àcriação de contra-infor-mação e ao desmascara-mento das grotescas manipulações. “Con-tudo, ainda se trata de um processo circuns-crito às classes médias intelectualizadas.No Brasil, segundo números divulgadoseste ano, apenas metade da população temacesso com regularidade à internet, sendoque a maioria esmagadora é constituídapor setores de classe média. Em outras pa-lavras, os pobres ainda têm acesso bastanterestrito aos meios digitais, seja pelo preçodos computadores e da banda larga, que noBrasil está entre os mais caros do mundo,seja pelo chamado ‘analfabetismo digital’.Os próprios celulares dotados desses re-cursos são caros, e implicam gastos como acesso, impossibilitando a inclusão dospobres nestas novas ferramentas. E deve-se ressaltar que sequer o ‘analfabetismofuncional’ foi resolvido no País, uma vezque a cada quatro brasileiros que sabemler e escrever, apenas um ou dois, depen-dendo da região, entendem o que leram!Embora o processo de inclusão digital,nesse sentido amplo, possa ser revertidoao longo do tempo, isso pode levar mui-tos anos. Além do mais, as inovações tec-nológicas são rápidas, o que torna, a cadamomento, obsoletos os padrões digitaisaté então vigentes.”

Mas será que o modelo combativo dejornalistas engajados, tão comum nasdécadas de 1960 e 1970, também se per-deu? Isto é, além da questão de viabilida-de econômica, será que não existem maisveículos alternativos justamente porquefaltam jornalistas com aquele perfil, dis-postos a encarar o desafio? “Certamente,a sociedade não vive o mesmo momentopolítico em que jornalistas, militantes deesquerda e estudantes tiveram que viverna clandestinidade. Por conta dessa rea-lidade, havia uma oposição ‘esquerda xdireita’ mais bipolar. Há muitos jornalis-tas comprometidos com o sistema hege-mônico, é claro. Profissionais que proje-tam na comunicação a lógica do capita-lismo. Mas, ainda há aqueles comprome-tidos, que atuam dentro das própriasmídias comerciais, como existem aquelesmais definidos por uma comunicação

popular. Esses profissionais não desapa-receram. Eles existem e atuam de formamais plural”, acredita Catarina Farias deOliveira, doutora e professora de CiênciasSociais da Universidade Estadual do Ce-ará. Então, sendo a vontade de quase to-dos, por que não existem leis ou projetosque já definam o repasse de publicidadepública para práticas alternativas de co-municação? Catarina responde:

“No Brasil, tenho presenciado experi-ências que têm apoios do Estado. Com otempo elas desaparecem. Não há política

definida. Cada gover-nante que entra cria asua. Assim, as experiên-cias de comunicação vi-vem profundas crises fi-nanceiras. Isso ocorrepois nos projetos alter-nativos, o lucro não de-fine a lógica. Precisa-mos ter outras confe-rências de comunica-ção para discutir isso.

Tivemos a primeira em 2009 e paramos aí.Sem essa reflexão, não teremos transfor-mações efetivas. Durante as mobilizações,no período da Copa das Confederações,ouvi em todo o Brasil gritos de críticas àsgrandes redes de televisão. A populaçãoestá insatisfeita, não se sente representa-da e pede transformações. Fiquei muitofeliz em ouvir nas ruas esses gritos. Atoscomo estes são fundamentais para lutar-mos por mudanças na nossa política de co-municação. Não apenas definir recursospara as mídias populares, mas para questi-onarmos nosso contexto de concessão demeios de comunicação.”

O resgate da imprensa alternativa, como estabelecimento de regras claras de fi-nanciamento público que garantam a suaexistência, é, por fim, uma questão de jus-tiça histórica. “No caso da ditadura, aque-les veículos foram vitais para interligar erepresentar uma história das minorias. Ha-via ali a oposição mais explícita da socie-dade brasileira. Com o fim do período di-tatorial – e é preciso esclarecer isso! – nãoconquistamos a plena liberdade de expres-são. Tivemos, sim, um País que já não es-tava sob o jugo de militares, com bem maisliberdade. Mas a realidade política dosmeios de comunicação continuou e seguecontrolada por uma minoria empresarial.Há respostas importantes. O mais belo naHistória da Humanidade é que semprevivemos processos de resistências e ques-tionamentos ao estabelecido. Mesmo emcondições desiguais, não nos calamos. Gos-to muito do filme Contos Proibidos doMarquês de Sade, em que o personagemcentral, sem tinteiro e pena, escreve comsangue. Ainda que sem caneta, usa a ora-lidade para se expressar. E, mesmo sem lín-gua, usa de fezes para escrever na parede.Relaciono toda essa busca por comunica-ção, vivida por ele no filme, com a luta dedores, embates, sangue e brados vivenci-adas pelos atores sociais que têm constitu-ído a trajetória dos meios de comunicaçãona América Latina e em outros países.”

Pelo visto, apesar de tudo, ainda temosalternativas, sim.

“A população estáinsatisfeita, não sesente representada epede transformações.Fiquei muito felizem ouvir nas ruas

esses gritos.”

Hélio Fernandes chega à Tribuna da Imprensa totalmente destruída depois de um atentado.

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ESPECIAL UMA IMPRENSA SEM ALTERNATIVAS

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11JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

REFLEXÕES

POR RODOLFO KONDER

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor daRepresentação da ABI em São Paulo e membro do ConselhoMunicipal de Educação da Cidade de São Paulo.

O medo necessário

M uitos séculos atrás, quandoainda se aprumava, ao des-cer das árvores, o homem

primitivo temia os lugares abertos e asprofundezas das cavernas, porque era ví-tima freqüente, naqueles cenários, da fú-ria dos predadores. Assim, o medo nosacompanha desde o nosso despertarcomo bípedes – e ainda agora trabalha-mos com os mesmos mecanismos dedefesa que nos permitiam sobreviver, na-queles tempos. Algumas pessoas, aliás,tornam-se até prisioneiras dos velhos me-dos, que nelas se transformam em fobi-as. O medo de lugares abertos virou ago-rafobia; o medo das cavernas escuras podeser a claustrofobia de hoje.

Ao longo da História, os seres huma-nos se tomaram animais medrosos porexcelência. “Todos os homens têmmedo”, disse Sartre. Além disso, somenteos seres humanos podem antever a pró-pria morte, conhecendo, portanto, omedo num grau mais temível e duradou-ro do que o podem conhecer os seres dequalquer outra espécie. O nosso medoé ambíguo, inerente à nossa natureza,perturbador. Pode nos fazer regredir. Podeaté nos matar. O medo freqüentemen-te dá forma ao Estado, nos casos de regi-

mes totalitários como o nazismo, quecaía do céu com a Luftwaffe, descia dascolinas com as “panzer divizionen”, tor-turava, estuprava, construía campos deextermínio, promovia genocídios e ame-açava o mundo com o “Reich dos milanos”, o “Armagedon” de Adolf Hitler. OEstado fascista também se ergue apoia-do no medo, cria aparelhos repressivose estabelece a violência totalitária, que vaialém das guerras e despreza todos os di-reitos individuais. Às vezes, o fascismo secombina com as ditaduras militares; àsvezes, simplesmente empresta traços par-ticulares a outros regimes de exceção, for-mas de organização do Estado igualmentemolhadas no medo e jamais limitadas notempo, já que sempre podem ressurgir, es-pecialmente na garupa das crises.

O medo também marcou para semprea experiência socialista, os Estados polici-ais construídos em nome da maior utopiada História, sob o pretexto de que comba-tiam a opressão dos trabalhadores e luta-vam pela liberdade para todos os homens.

Anos atrás, atentados terroristas con-tra a liberdade e a democracia, no dia 11de setembro de 2001, chocaram a cons-ciência do mundo civilizado e libertaram,mais uma vez, os insidiosos demônios

ELIAN

E SOA

RES

do medo. Dos porões do destino, emer-giram naquele momento as forças incon-troláveis da destruição e da morte, paranos amedrontar.

Na América Latina, o medo moldouregimes de exceção e ditaduras militares,inclusive aqui, no Brasil. Atualmente, vi-vemos numa democracia, mas o medonão desapareceu. Ele se alimenta da vi-olência urbana, da droga, da ação de mauspoliciais, dos saques do MST, da corrup-ção, da fisiologia, do desemprego. NoBrasil, como no mundo inteiro, estamoscom medo, porque experimentamos asincertezas de uma fase de mudanças ace-leradas, de transformações profundas, dedúvidas insuportáveis. Mas o medo é ocomeço da sabedoria, como descobrimosem nossa sofrida caminhada – ou na obrade artistas como T. S. Eliot. É uma defe-sa essencial, proteção eficaz contra os pe-rigos, reflexo indispensável à nossa so-brevivência. Pode ser causa da nossa re-gressão, como pode ser a fonte das res-postas corretas e necessárias às indaga-ções que sempre nos chegam em tem-pos de mudança.

Ao longo da História, os seres humanos se tornaram animais medrosos por excelência.

“O Estadofascista

também seergue apoiado

no medo,cria aparelhosrepressivos eestabelecea violênciatotalitária”

‘‘

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12 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISDiretor: José Eustáquio de Oliveira

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda.Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

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Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2013-2016Presidente: Maurício AzêdoVice-Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Fichel Davit ChargelDiretor Econômico-Financeiro: Sérgio CaldieriDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretor de Arte e Cultura: Henrique Miranda Sá NetoDiretor de Jornalismo: Alcyr Cavalcanti

CONSELHO CONSULTIVO 2013-2016Ancelmo Gois, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Miro Teixeira, Nilson Lage, Teixeira Heizer,Villas-Bôas Corrêa.

CONSELHO FISCAL 2013-2014Adail José de Paula, Dulce Tupy Caldas, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas DomingosVaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Manolo Epelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2013-2014Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: José Pereira da SilvaSegundo Secretário: Moacyr Lacerda

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho daGraça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn,Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2013-2016André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Dulce Tupy Caldas, Fernando Foch, Germando de Oliveira Gonçalves, JoãoMáximo, Marcelo Tognozzi, Milton Temer, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Sérgio Cabral, Sérgio Caldieri e Zilmar Borges Basílio

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, FranciscoPaula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,

José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce deLeon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (MiroLopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2013-2016Antônio Calegari, Aluízio Maranhão, Carlos de Sá Bezerra, Daniel Mazola, GilsonMonteiro, Ilma Martins da Silva, José Cristino Costa, Luiz Carlos Azêdo, ManoelPacheco, Marceu Vieira, Miro Lopes, Moacyr Lacerda, Paulo Gomes Netto, VilsonRomero e Yacy Nunes.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Alberto Marques Rodrigues, José Pereira da Silva, Maria Ignez Duque EstradaBastos, Marcus Antônio Mendes de Miranda e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Daniel Mazola; Alcyr Cavalcanti,Antônio Carlos Rumba Gabriel, Carlos de Sá Bezerra, Carlos João Di Paola, ErnestoVianna,Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, MariaCecília Ribas Carneiro, Milton Temer, Miro Lopes, Modesto da Silveira, Vilson Romero,Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.Assistente: Rosani Abou Adal

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor), CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

Em decisão divulgada no dia 30 de ju-lho e proferida em mandado de segurançaajuizado pela ABI, o Desembargador An-tônio Eduardo Ferreira Duarte, membrodo Órgão Especial do Tribunal de Justiça doEstado do Rio, restabeleceu na integralida-de a posse dos eleitos para a Diretoria daCasa, ocorrida em 20 de maio de 2013, e “osplenos poderes de gestão e administraçãoda entidade”. Com esssa decisão, o magis-trado impediu que a ABI ficasse acéfala,como pretendiam, irresponsavelmente,Domingos Meirelles, Orpheu Salles e seusaliados, que vêm fazendo campanha con-tra a Casa desde março passado.

DIREITO LÍQUIDO E CERTOÉ este o inteiro teor da decisão do De-

sembargador Antônio Eduardo FerreiraDuarte:

“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTA-DO DO RIO DE JANEIRO

Órgão EspecialMandado de Segurança nº 040485-

86.2013.8.19.0000Relator: Desembargador Antônio

Eduardo Ferreira DuarteDecisão1- Defiro a liminar para que seja anu-

lado o ato coator que concedeu efeito sus-pensivo ao Agravo de Instrumento nº0030250-60.2013.8.19.0000, até o julga-mento final da presente ação mandamen-tal. Com o presente deferimento da limi-

relles e Orpheu Santos Salles se declara-ram reinvestidos nos cargos de DiretorEconômico-Financeiro e Diretor Admi-nistrativo, embora seus mandatos, nostermos do Estatuto Social da Casa, este-jam extintos desde 13 de maio passado.Orpheu, que chegou a se sentar à mesado atual Diretor Administrativo, FichelDavit Chargel, tentou fazer que a Polí-cia Militar do Estado invadisse a ABI, apretexto de garantir que fosse empossa-do. Com esse fim, dirigiu solicitação ao5º Batalhão da PM, que destacou umapatrulha para o saguão do edifício-sededa ABI. Questionado sobre a origem dopedido de policiamento, um dos respon-sáveis pela patrulha, Cabo Bezerra, infor-mou que partira dos “opositores”.

Em face da decisão da Juíza Maria daGlória Oliveira Bandeira de Mello, de de-terminar a suspensão da reunião ordiná-ria que o Conselho Deliberativo da ABIfaria a partir das 15 horas, os Presidentesdo Conselho e da Diretoria, Pery Cotta eMaurício Azêdo, convidaram os Conse-lheiros presentes a realizarem uma reu-nião informal como simples associados.A suspensão da sessão do Conselho forapleiteada pelos autores da ação contra aABI, Domingos Meirelles e Paulo Jerôni-mo de Souza e comunicada à ABI por umoficial de Justiça às 15h.

Foi esta a segunda tentativa que Mei-relles e Orpheu fizeram de assumir o con-

trole da ABI. No dia 24 de julho, quarta-feira, eles simularam que estavam deposse de uma decisão judicial que os trans-formava em diretores da Casa. Depois deintimidar os funcionários da ABI, exigin-do-lhes que entregassem documentos daTesouraria, a dupla encenou que estavaexaminando a documentação da Casa, emposes para o fotógrafo Osmar AmicucciGallo, que os acompanhava.

Em seguida, Meirelles chamou o ele-vador e se dirigiu ao 13º andar, para fin-gir que fiscalizava as obras de reforma aliem andamento.

A farsa só foi encerrada depois que aadvogada da ABI, Dra. Maria Arueira Cha-ves, do escritório Siqueira Castro Advoga-dos, manteve contato pelo telefone com oadvogado de ambos, Dr. Jansen dos SantosOliveira, e fez ver que a atuação de Meirellese Orpheu carecia de fundamento legal.

Na reunião informal dos Conselhei-ros, Orpheu confessou que solicitara ao5º Batalhão da PM que invadisse a ABIpara impedir que fosse realizada a sessãodo Conselho Deliberativo que a JuízaMaria da Glória decidira suspender e quea Diretoria da ABI acatara. Na reunião, oPrimeiro Secretário do Conselho Delibe-rativo, José Pereira da Silva (Pereirinha),lamentou que um associado da ABI defen-desse a ocupação militar da Casa, violên-cia sempre repelida pelo corpo social desdea ditadura militar 1964-1985.

ACONTECEU NA ABI

nar, ficam restabelecidos na integralida-de a posse dos eleitos para a diretoria daora impetrante, ocorrida em 20/05/2013e os plenos poderes de gestão e adminis-tração da entidade.

O direito líquido e certo se encontraconfigurado no fato de que sem a possedos eleitos, a ora impetrante não poderealizar movimentações de cunho finan-ceiro no tocante ao pagamento de tribu-tos e dos salários de seus funcionários, per-manecendo totalmente acéfala. Tambémpor isso, vê-se nesse aspecto a configura-ção do periculum in mora a exigir a con-cessão da medida antecipatória.

2 – Defiro prazo de 15 (quinze) dias,contados de 22/07/2013 para a juntadado mandato outorgado aos advogados daimpetrante.

3 – Oficie-se à autoridade apontadacomo coatora, requisitando as necessári-as informações e dando ciência do defe-rimento da presente liminar.

4 – Oficie-se ao Juízo de primeirograu para igual efeito, ou seja, informaro deferimento da medida.

5 – Em seguida, à douta Procuradoriade Justiça.

Rio de Janeiro, 29 de julho de 2013.”

AS PANTOMIMAS DEMEIRELLES E ORPHEU

Poucas horas antes de conhecida essadecisão, os ex-Diretores Domingos Mei-

VITÓRIA

Mandado de segurança concedido pelo Desembargador Antônio Eduardo Ferreira Duarte impediuque a Casa ficasse acéfala, como pretendiam Domingos Meirelles, Orpheu Salles e seus aliados.

ÓRGÃO ESPECIAL DO TJ-RJ REAFIRMA AVALIDADE DA POSSE DA DIRETORIA DA ABI

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A Presidente da República Dilma Rousseff eo Congresso Nacional colocaram em pauta ma-téria da maior relevância para o futuro da Nação,com o anúncio da decisão de promover, com certaurgência, uma reforma política, na expectativade melhor ordenar a vida pública em nosso País.Como fui Constituinte em 1988, e dela saí frus-trado, pela derrota do parlamentarismo, e pior, aodeixarem dele a medida provisória que lhe é es-pecífica, mas inadequada sua presença no presi-dencialismo puro, o que abastardou o Congres-so Nacional e que, dentre outros males, acabougerando o mensalão, fico agora na expectativa deadequadas correções.

Não sendo possível o parlamentarismo, na suaoriginalidade, diante do plebiscito de 1993, queestabeleceu o voto direto para a Presidência da Re-pública, seria mais que apropriado que o Brasilolhasse para o modelo presidencialista de Portu-gal e França, nos quais temos um presidencialis-mo com o Poder Moderador, e daria regular fun-ção para o uso da medida provisória.

Afora tal adequação do sistema de Governocom a medida provisória, no sistema eleitoral,mais que urgente e oportuno seria a Presidentee o Congresso Nacional decidirem pelo votodistrital misto.

Voto distrital misto, modelo Milton Campos,que creio seria mais adequado que o modelo ale-mão, ou mesmo o distritão. No modelo MiltonCampos, o Estado dividiria as eleições parlamen-tares por distritos, em número equivalente à me-tade das vagas, e para cada distrito seria eleito ocandidato mais votado; que os menos votados seclassificariam com os votos obtidos no distritopara as vagas proporcionais, como hoje, que cadapartido vier a conquistar no Estado.

Com a campanha restrita a cada distrito elei-toral, o candidato ficaria mais próximo do elei-tor, e mais transparentes suas ações de campanha,o custo e a prestação de contas, e o exercício domandato. Sua atividade parlamentar, depois deeleito, também ficaria mais transparente peranteos eleitores do distrito que o elegeu.

Estas duas propostas contemplariam o forta-lecimento dos partidos, e principalmente dopróprio sistema político-democrático nacional,melhorando o sistema eleitoral e resolvendo oesvaziamento do Legislativo, com a medida pro-visória no presidencialismo, quando ela é do par-lamentarismo, ao qual se vincula para sua eficáciademocrática, mas pode conviver com o presiden-cialismo que propomos. E ainda assegura melhorviabilização do financiamento público de cam-panha. Penso tratar-se o mínimo de uma urgen-te e importante reforma política, numa grandi-osa tarefa que urge ser equacionada, e sem a qualcreio impossível conseguir-se também a tão re-clamada reforma tributária.

PROPOSTA

Voto distrital misto,uma solução

POR VICTOR FACCIONI

VICTOR FACCIONI foi membro da Assembléia NacionalConstituinte de 1986-1987 e Presidente do Tribunal de Contasdo Estado do Rio Grande do Sul.

Um pontífice carismático, pró-ximo ao povo e interessado em for-talecer o sentimento de solidarie-dade e justiça social dentro da Igre-ja. Essa é a imagem que o argentinoJorge Mario Bergoglio, o Papa Fran-cisco, imprimiu em sua passagempelo Brasil, entre os dias 22 e 28 dejulho, para a Jornada Mundial daJuventude (JMJ), no Rio de Janei-ro. Para a ocasião da chegada doSanto Padre, na qual ele desfilou esaudou fiéis pelas ruas do Centro doRio a bordo do papamóvel, a ABIprestou suas boas-vindas com umafaixa na frente de seu edifício-sede,na Rua Araújo Porto Alegre, com osdizeres “ABI saúda o Papa Francis-co – o Peregrino da Paz. Salve a Jor-nada Mundial da Juventude”.

A JMJ, megaevento católico cri-ado em 1984 pelo então Papa JoãoPaulo II, trouxe para o Rio de Janei-ro um contingente de 400 mil pe-regrinos, que se somaram aos fiéislocais. Durante sua estada em ter-ras brasileiras, Francisco mostrou-se aberto ao contato com fiéis. Des-filou em um papa móvel aberto naslaterais pelas ruas do Rio, beijoucrianças e cumprimentou idosos ecadeirantes.

Acostumado ao trabalho socialnas periferias de Buenos Aires, opontífice visitou a casa de mora-dores da comunidade de Varginha,no conjunto de favelas de Man-guinhos, Zona Norte do Rio, e re-cebeu jovens infratores no Palácio

As homenagens da ABI ao PapaFrancisco, o Peregrino da Paz

As boas-vindas da Casa ao primeiro Sumo Pontífice latino-americano.

POR IGOR WALTZ

VISITA

São Joaquim, de onde, na sacada,celebrou a oração do Ângelus. Elecelebrou ainda uma missa, no dia24, para 200 mil pessoas no Santu-ário Nacional de Aparecida, emAparecida do Norte, interior deSão Paulo.

Durante os eventos, o Papa re-presentou uma Igreja interessadaem renovar-se por meio da aproxi-mação com os mais jovens e do re-forço na promoção de justiça sociale combate à corrupção. Ao mesmotempo, reafirmou posicionamen-tos como o combate ao aborto e àeutanásia. Francisco falou aindaem maior diálogo com o Estadolaico e com outras religiões.

“É fundamental a contribuiçãodas grandes tradições religiosas. Alaicidade do Estado é favorável àpacífica convivência entre religi-ões diversas, pois sem assumircomo própria qualquer posiçãoconfessional, respeita e valoriza apresença do fator religioso na soci-edade, favorecendo as suas expres-sões concretas”, afirmou Franciscodurante evento realizado no The-atro Municipal do Rio de Janeirono dia 27, onde se encontrou comrepresentantes da sociedade civil.

A primeira visita internacionaldo novo Papa desde que assumiu otrono de Pedro chamou a atençãodos olhos do mundo. Segundo aorganização do evento, a edição doRio de Janeiro da JMJ quebrou orecorde de profissionais de im-prensa credenciados para a cober-tura. Foram quase 6 mil comunica-

dores, entre jornalistas, fotógrafos,cinegrafistas, sendo 2 mil da im-prensa internacional. Na ediçãopassada da JMJ, realizada em 2011em Madri, foram 5 mil profissio-nais cadastrados.

ProtestosA visita do Papa não transcorreu,

no entanto, sem a realização de pro-testos. No dia 22, primeiro dia doSumo Pontífice no País, duranteuma recepção organizada pela Pre-sidente Dilma Rousseff no PalácioGuanabara, sede do Governo doEstado, na Zona Sul do Rio de Ja-neiro, uma passeata, inicialmenteem defesa dos direitos da popula-ção LGBT, mas da qual participa-ram outros segmentos, foi violen-tamente reprimida por forças po-liciais. Dois fotógrafos, YasuyoshiChiba, da agência France-Presse, eMarcelo Carnaval, do jornal OGlobo, foram atingidos e dois mem-bros do grupo de mídia alternativaNinja foram detidos por fazerem acobertura em tempo real da açãorepressora policial, acusados de in-citação à violência.

No dia 27, uma marcha organi-zada por grupos feministas em Co-pacabana reuniu cerca de 2 mil pes-soas durante a tarde. Houve trocade hostilidades entre fiéis que esta-vam na praia à espera do Papa e ma-nifestantes que levavam cartazesem defesa do direito das mulheres,a favor da descriminalização doaborto e do casamento entre pesso-as do mesmo sexo.

ALCYR C

AVALCAN

TI

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A prática sugere uma viagem aopassado. Parece coisa dos tempos daGuerra Fria, em que o planeta se divi-dia entre a influência bipolar do capi-talismo e do socialismo. Faz lembrar osfilmes de James Bond. Ledo engano. Aespionagem entre países não é, pois,página virada na História. Tampoucoestá restrita ao mundo da ficção. Sériede reportagens publicadas por O Globocausou polêmica, gerou desconfortopolítico em Brasília e suscitou debatessobre a ética no campo internacional. Ainformação dava conta de que os Esta-dos Unidos mantiveram, até 2002, umesquema de espionagem na capital fede-ral brasileira, via satélites e sistemas decomputação, envolvendo diretamenteinstituições norte-americanas, como aAgência Central de Inteligência – popu-larmente conhecida como Cia. O mesmoocorreu em outros países da América La-tina. A notícia colocou em xeque as rela-ções diplomáticas entre as nações. E agi-tou a própria imprensa nacional.

Sob a tarja de ‘Exclusivo’, a série de re-portagens teve início num domingo – 7de julho. Data em que a manchete ‘EUAespionaram milhões de e-mails e ligaçõesde brasileiros’ ocupou, com o devido des-taque, a capa de O Globo. Na página 36 damesma edição, destacava o lide: “Na últi-ma década, pessoas residentes ou emtrânsito no Brasil, assim como empresasinstaladas no País, se tornaram alvos deespionagem da Agência de Segurança Na-cional dos Estados Unidos (National Se-curity Agency — NSA, na sigla em inglês).Não há números precisos, mas em janei-ro passado o Brasil ficou pouco atrás dosEstados Unidos, que teve 2,3 bilhões de te-lefonemas e mensagens espionados. É oque demonstram documentos aos quaisO Globo teve acesso”.

A reportagem de estréia foi assinada porJosé Casado, Glenn Greenwald e Rober-to Kaz. Este último falou com o Jornal daABI sobre o processo de produção da série.“O material chegou a nós através do Gre-enwald, que assinou algumas das matéri-as em parceria conosco, como freelancer.Ele esteve com o Edward Snowden emHong Kong, acompanhado ainda da docu-mentarista Laura Poitras, que também en-trevistamos, e de mais um jornalista doThe Guardian. Eu o conheci duas semanasantes da publicação, enquanto fazia umamatéria sobre o que os correspondentes es-

trangeiros haviam pensado das manifesta-ções que tomaram o Brasil em junho. Apartir de então, houve uma confiança jor-nalística que o levou a dividir parte das in-formações comigo, com o José Casado e,claro, com O Globo”, contou.

Em tempo. É preciso apresentar o per-sonagem Edward ao leitor. Segue, então,mais um trecho da primeira reportagemda série publicada em O Globo. “Os dadosforam coletados por Edward Joseph Snow-den, técnico em redes de computação quenos últimos quatro anos trabalhou em pro-gramas da NSA entre cerca de 54 mil fun-cionários de empresas privadas subcon-tratadas — como a Booz Allen Hamiltone a Dell Corporation. No mês passado, esseamericano da Carolina do Norte decidiudelatar as operações de vigilância de co-municações realizadas pela NSA dentroe fora dos Estados Unidos. Snowden setornou responsável por um dos maioresvazamentos de segredos da História ame-ricana, que abalou a credibilidade do go-verno Barack Obama.”

Figuras como Edward, hoje caçado peloGoverno dos Estados Unidos, e Julian As-sange, do Wikileaks, atuam como os prin-cipais colaboradores na geração de pautasde investigação e denúncia, em diversospaíses. A pedido do Jornal da ABI, Rober-

to Kaz avaliou essa parceria. “Vejo issocomo um fenômeno que tende a aumen-tar. Existe um site americano maravilho-so, de notícias falsas, chamado The Onion.Me lembro que, um ano atrás, eles notici-aram que o partido republicano dos Esta-dos Unidos havia acabado de encontraro candidato à Presidência para 2040. Tra-tava-se de um rapaz jovem, jagunço, ile-trado, mas que possuía a seguinte quali-dade: era o único americano a não ter umperfil nas redes sociais. Ou seja: era o únicoque ainda não havia comentado ou pos-tado alguma foto que viesse a desacredi-tá-lo no futuro. A partir do momento emque tudo que fazemos e que os Governosfazem está registrado na ‘nuvem’, não hácomo escapar de vazamentos cada vezmais constantes dessas informações”.

O jornalista de O Globo conta aindacomo se deu o processo de publicação daprimeira reportagem. Procedimento quelevou 72 horas. Pouco tempo, dadas a com-plexidade do assunto e a gravidade de suasimplicações políticas. “Tivemos acesso aomaterial numa quarta-feira de tarde. Fe-chamos a primeira matéria na sexta-feirapela noite. Além de mim, do José Casado edo Greenwald, o conteúdo foi discutidocom editores e repórteres da editoria Mun-do, com editores-executivos e com o Dire-

JORNALISMO

E o que era segredovirou manchete...Série especial de O Globo denuncia a política de espionagem praticada

pelos Estados Unidos sobre o Brasil. E reafirma o valor do ‘furo’ jornalístico.

POR PAULO CHICO tor de Redação. A cúpula do jornalesteve constantemente envolvida.O Glenn já conhecia bem o materialque tinha em mãos. Ele havia passa-do onze dias em Hong Kong ao ladodo Snowden, para tentar entendero teor das informações. Glenn éamericano radicado no Brasil. E foiprocurado por Snowden em funçãodo blog que tinha sobre segurançainterna e direitos humanos, no sitedo The Guardian. Ele é o ponto ne-vrálgico da série de reportagens. Amim e ao Casado coube ter acesso àparte do material, e traduzi-lo de for-ma a fazer o leitor entender.”

Os documentos eram sigilosos ereais. O The Guardian, o Washing-ton Post e a Der Spiegel, três dos veí-culos de mais prestígio na impren-sa internacional, haviam publicadoparte deles. “Também tivemos o cui-dado, através da Flávia Barbosa, cor-respondente em Washington, de pro-curar o Governo americano antes dapublicação – mas obviamente, o teorcompleto do material só foi visto pe-los Estados Unidos quando o jornalchegou às bancas. Por fim, zelamos

para que nenhuma informação publicadapudesse colocar pessoas em risco. Não pu-blicamos nomes que apareciam nos docu-mentos, e nos ativemos exclusivamente aomaterial que dizia respeito ao Brasil e àAmérica Latina”, explica Roberto.

A resposta foi imediata. A denúnciade espionagem foi desdobrada por prati-camente todos os veículos brasileiros. Jor-nais, televisões, rádios e portais pegaramcarona na pauta lançada por O Globo. “Averdade é que nós esperávamos essa reper-cussão. Antes mesmo de termos os docu-mentos em mãos, já acreditávamos queessa seria a manchete do jornal de domin-go. Quando vimos os documentos, tive-mos a certeza disso. Publicamos três man-chetes seguidas sobre o assunto, que foi re-percutido pelos dois outros maiores jor-nais do País e por inúmeros veículos in-ternacionais”, revela Roberto Kaz, paraquem a série teve outro mérito. Resgataro valor do ‘furo’ – um dos mais nobres‘produtos’ jornalísticos.

Na era de informação online, produ-zida a jato, muitos analistas da comuni-cação pregam a tese de que o ‘furo’ jorna-lístico acabou. Qual será a visão de Rober-to sobre a questão? “O furo não acabou.Muito pelo contrário. Creio que, nas úl-timas três décadas, desde o fim do Gover-

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no militar, vivemos o período mais ricode furos jornalísticos no Brasil. Foramderrubados um Presidente, dois minis-tros da Casa Civil e um ministro da Fazen-da em função de investigações jornalís-ticas. O furo ainda é a matéria-prima maiscara e buscada entre os veículos da im-prensa diária e semanal. Surgiram váriasoutras formas de fazer jornalismo quenão existiam, mas ainda há espaço paratodos os tipos de apuração”. Ao menosnesta produção de O Globo, não houveconflitos entre o material impresso e odigital. É o que garante Roberto.

“O material que saiu no impresso foipublicado online. Além disso, fizemos en-trevistas em vídeo com o Glenn para osite. Por fim, havia uma atualização cons-tante na página de O Globo sobre a reper-cussão do caso. Basicamente, a divisão foi:furos primeiro no papel, depois no online;repercussão, primeiro no online, depois nopapel”, afirma o jornalista, que revela qualfato mais lhe causou espanto nesta série dematérias. “O rastreamento das informa-ções, em si, não me surpreendeu. Me cha-mou a atenção que parte delas pareça tersido usada para fins comerciais – o quecontraria o discurso de que servem apenaspara prevenir atos de terrorismo. O queme assusta é que empresas e Governos te-nham acesso a dossiês tão grandes sobrepessoas físicas. Não é porque os EstadosUnidos são uma democracia chefiada porum Presidente democrata e, dentro do pos-sível, progressista, que o país se manteráassim no futuro. O possível uso dessas in-formações me parece ser muito perigoso.”

Ninguém admite que fazA respeito da gravidade do ‘delito’

cometido pelos norte-americanos, o Jor-nal da ABI ouviu José Augusto FontouraCosta, 44 anos, professor da Faculdade deDireito de São Paulo (Usp). “A espiona-gem não é tipificada internacionalmen-te e, portanto, não pode ser tecnicamentechamada de ‘crime internacional’. O Di-reito Internacional não regula o que nor-malmente se designa como espionagem.Isso se dá porque, pela própria naturezada atividade, ela é e sempre será negada pe-los países que a realizam, mesmo que, cu-riosamente, seja possível e comum a co-laboração formal entre as agências de in-

teligência. Trata-se de um âmbito sempreposto fora do Direito: ninguém admiteque faz e, portanto, não há incentivo pararegulá-la publicamente. A menos que exis-ta algum prejuízo específico e claramen-te mensurável para um Estado. Na maio-ria dos casos, o que pode acontecer são pe-didos e respostas diplomáticas, como ex-plicações, desculpas formais ou mesmo aruptura das relações. Evidentemente, esseepisódio não é para tanto... Há algum jogode cena no ambiente político. Mas o mun-do continua a girar, como sempre.”

Para ele, a relação diplomática entre osdois países dificilmente será abalada poresse episódio. “Não acredito nessa hipóte-se. Essas são relações muito sólidas e impor-tantes. Do ponto de vista jurídico, a práti-ca da espionagem pelos Estados Unidos nãose justifica, nem mesmo diante do antigoinimigo comunista – a extinta União Sovi-ética, ainda na época da Guerra Fria – ou deameaças terroristas. De uma perspectivaética, há questões bastante complexas,como o dever de não faltar com a verdadee ser fiel aos amigos e aliados, por um lado,e a preocupação com a própria segurança,pelo outro... Parte da política de Estado nãose altera de acordo com o partido que estáno Governo – e os temas relacionados coma defesa são os que conservam maior con-tinuidade. Os Estados Unidos são um paíscom enorme capacidade militar, que pos-sibilitou a vitória dos Aliados na SegundaGuerra Mundial e protegeu, em seguida, aEuropa Ocidental”.

Segundo o professor, embora as açõesmilitares dos Estados Unidos estejam sem-pre relacionadas a seus interesses estraté-gicos e econômicos, não se pode negar quemuito da condição de paz – ou de guerra– mundial repousa exatamente sobre o po-derio americano. Por lá, a espionagem é es-trutural, uma prática recorrente do Esta-do, inclusive dentro das trincheiras do pró-prio país. “Por isso, não acho que esse casopossa ser compreendido como uma políti-ca de Governo Obama, Bush ou Clinton.É mais profundo do que isso”, pondera JoséAugusto, fazendo crer que os aparelhos nor-te-americanos de espionagem no Brasil,como indicam os documentos levantadosrecentemente por Edward, podem não serexatamente um episódio do passado.

Roberto Kaz fala sobre os possíveis des-dobramentos da série de reportagens. “Acre-dito que relações – diplomáticas, afetivas,amorosas ou comerciais – são cíclicas, po-rém duradouras. Caberá aos dois paísessaber conduzir o caso de forma a que ele nãoabale as relações. Muitas das respostas nes-te caso competem à PF, à Anatel, às empre-sas privadas, à Abin... Me parece que o tipode investigação que se busca no momentocompete mais ao Governo do que à impren-sa. Mas O Globo evidentemente está empe-nhado no caso, embora seja da natureza deum jornal diário ter um interesse amplo, portodo tipo de assunto. Ou seja, o Globo estáempenhado nisto tanto quanto está empe-nhado em cobrir as manifestações popula-res, a votação do projeto de ‘cura gay’, asmudanças no Ecad e a vinda do Papa ao Rioe, num futuro não muito distante, a Copa de2014”, concluiu.

Um dos episódios mais mal tratados emal contados da História é a guerra da Trí-plice Aliança, ocorrido há 149 anos e quefoi a maior e mais sangrenta conflagra-ção da América Latina.

Teses vagamente esquerdistas esquecemque o Paraguai, desde 1813, sob a ditadurade Francia, O Supremo, se transformaranuma nação poderosa, centralizada, base-ada nas Estâncias Comunitárias do Estadoe com o maior exército americano. Só lhefaltava uma saída para o mar.

O pretexto foi uma divergência naantiga Cisplatina. O ditador Solano Ló-pez tentou um golpe com os “blancos” ar-gentinófilos, e o Império brasileiro man-dou Tamandaré bloquear com a Marinhao porto de Montevidéu.

Como resposta, López cometeu seuprimeiro erro estratégico, abrindo duasfrentes: invadiu Mato Grosso em 24 dedezembro de 1864 e logo depois atraves-sou Corrientes e ocupou São Borja e Uru-guaiana. No episódio de São Borja o Ge-neral Canabarro se rendeu sem comba-ter. Fato pelo qual foi expulso, condenadoà morte (depois perdoado).

Os argentinos também não aceitarama ousadia de López e então se formou a cha-mada Tríplice Aliança. O caos se estabe-leceu nas várzeas lamacentas do Prata.

Só com a chegada do General Lima eSilva, futuro Duque de Caxias do Império,em 1866, o Brasil tomou a ofensiva. Eleera um organizador nato que já havia es-magado Balaios e Farrapos e derrotadoRosas e Oribe. Em Tuiuti fez alianças comantigos inimigos, organizou uma podero-

HISTÓRIA

Os 150 anos daGuerra do Paraguai

Foi esse o mais sangrento conflito da América Latina:mortos 50 mil brasileiros, 18 mil argentinos e 200 mil paraguaios.

POR PAULO RAMOS DERENGOSKI sa cavalaria, articulou-se com o poder defogo na nossa Marinha de Guerra, cons-truiu hospitais e aumentou por dez o efe-tivo do Exército, incorporando massaenorme de Voluntários da Pátria e ex-es-cravos. Desceram tropas do Ceará ao RioGrande do Sul.

Os combatentes foram crudelíssimos.Em terra e nos rios. Gaúchos a cavalo, bar-rigas-verdes a pé, baianos capoeiristas se-minus adentravam pelas trincheiras para-guaias, lutando como demônios negros.Uruguaiana, Corrientes, Jataí, Passo da Pá-tria, Tuiutí, Curupaiti, Humaitá, Angostura,Lomas Valentinas, Avaí, Itororó – um mar desangue até à ocupação de Assunção em 3 dejaneiro de 1869. E o fim: em 1º de maio de1870, quando o cabo Chico Diabo atraves-sou uma lança no peito de Solano López (quemorreu de armas na mão) em Cerro Corá.

Houve heróis de ambos os lados. Aos mi-lhares. Como o catarinense Marcílio Diaslevantando nossa bandeira com o braço de-cepado. Ou as crianças paraguaias morren-do lutando pelo seu país em Acosta Nhu.

Mais de 50 mil brasileiros, 18 mil argen-tinos e 200 mil paraguaios foram queima-dos no solo guarani.

O Brasil, que antes da Guerra Grande es-tava despreparado, criou um poderoso Exér-cito nacional, nascido no fogo das batalhase com raízes por todos os lados. Os argen-tinos levaram para o Pampa um soldo de mi-lhões de cabeças de gado. O Uruguai se fir-mou como Estado-tampão. O Império bra-sileiro logo se transformaria em república.

Tudo isso a mostrar que as contradi-ções (e os imprevistos) são a única lei daHistória, que é escrita com sangue, suore lágrimas.

ARIMATÉIA - GENERAL OSÓRIO NA BATALHA DO TUIUTI - ÓLEO SOBRE TELAMUSEU HISTÓRICO DO EXÉRCITO E FORTE DE COPACABANA, RIO DE JANEIRO.

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Jornalistas profissionais, jogadores de futebole público concordam: Milton Leite é o melhor nar-rador esportivo do Brasil. A afirmação é compac-tuada tanto por uma enquete realizada pelo portalUol Esporte (na qual 100 jogadores de 15 equi-pes deram a Milton a liderança, com 25% dos vo-tos), como pelo Prêmio Comunique-se 2012, naqual votam os profissionais da imprensa no pri-meiro turno e o público em geral no segundo. Bar-ba, cabelo e bigode, como se dizia antigamente.

Os motivos da unanimidade? Simplicidade,bom humor e espontaneidade. Milton Leite nãoinventa previamente seus bordões, que nascemnaturalmente do dia-a-dia, faz do humor seuestilo de vida, e é apaixonado por esportes e pelaprofissão que escolheu. Queria ser escritor, vi-rou jornalista. Este é Milton Leite. Que beleza!

DEPOIMENTO

Com uma sólida experiência em jornal, rádio, tv einternet, o jornalista, que é um dos mais festejados

locutores esportivos do País, fala de sua carreira, dosbastidores da profissão, do prazer de narrar jogos, e

critica o repórter que não se interessa pela informação.

POR CELSO SABADIN E FRANCISCO UCHA

FOTOS MARTIN CARONE DOS SANTOS

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Jornal da ABI – Como o Jornalis-mo entrou na sua vida?

Milton Leite – Na verdade minhapaixão de adolescente era ser escritor.Eu queria escrever livros. Sempregostei muito de escrever, mas logo decara percebi que não tinha muito ta-lento para isso. Comecei a buscar en-tão um trabalho que me permitisse es-crever, e foi aí que percebi que o jorna-lismo era o meu caminho. Por isso sem-pre me imaginei como um jornalistade jornal impresso, trabalhando emRedação, com máquina de escrever,tudo isso. E foi assim que comecei.

Jornal da ABI – Você começou suacarreira em Jundiaí, não foi?

Milton Leite – Sim, mas nasci emSão Paulo. Ainda garoto fomos mo-rar em Uberlândia, pois meu pai foiser sócio de uma empresa lá. O negó-cio não deu certo, e meu pai não quisvoltar para São Paulo porque nãoagüentava o estresse da cidade. Ima-gina, 40 anos atrás e ele já não agüen-tava a agitação da cidade [risos]. Elequeria morar próximo à capital, maspreferia uma coisa mais calma. Assim,quando eu tinha de 15 para 16 anos,fomos morar em Jundiaí. Foi ali que euentrei na Faculdade de Jornalismo, em1978. Minha família ainda mora lá.

Jornal da ABI – Como foi sua in-fância? O que o levou a querer serescritor?

Milton Leite – Eu cresci na VilaOlímpia, pertinho do Itaim Bibi [am-bos são bairros paulistanos]. Minhafamília vinha da classe média baixa,meu pai era sócio de um pequeno es-critório de contabilidade e minha mãeera dona de casa. Sempre pratiqueimuito esporte, sempre joguei muitabola na rua, brincava de carrinho derolimã, numa época em que aindadava para brincar na rua em SãoPaulo. Eu morava na Rua Casa doAtor, que na época era um lugar bemtranqüilo. Hoje não dá nem paraimaginar brincar na rua por ali. De-pois fomos para Jundiaí, e logo noprimeiro ano de faculdade, comecei aprocurar alguma forma de trabalharem jornal, e rapidamente entrei noJornal de Jundiaí. Como o mesmogrupo do jornal também era propri-etário da Rádio Difusora, eles meconvidaram para trabalhar na rádio,acumulando funções, e eu fiquei umbom tempo trabalhando nos dois ve-ículos, rádio e jornal. Todo o meu iníciode carreira foi em Jundiaí: durantenove anos trabalhei no Jornal de Jun-diaí, no Jornal da Cidade, na RádioDifusora e na Rádio Cidade. Na rá-dio eu comecei como repórter de es-portes, cobrindo o time do Paulista deJundiaí, e ao mesmo tempo tambémfazia o jornal diário, onde eu era re-pórter da geral. Foi na rádio que tam-bém comecei a fazer programas devariedades, o que mais tarde eu viriaa comandar na Jovem Pan. Fiz detudo em Jundiaí: programas de vari-edades, reportagens, escrevi progra-mas, editei jornais, tudo. Nos jornais

impressos foi a mesma coisa. Sabecomo é, jornal pequeno, de interior,você acaba fazendo um pouco detudo. Houve uma época no Jornal daCidade em que eu era Chefe de Repor-tagem, ajudava a fechar o jornal ànoite, diagramava, canetava, tudo[risos]. Quando vim para São Paulo,em 1987, eu já tinha trabalhadoquase 10 anos em Jundiaí.

Jornal da ABI – Quando você aindapensava em ser escritor, que tipode livros você queria escrever?

Milton Leite – Eu queria ser ficci-onista. Eu me lembro com 10, 12anos eu já tinha esse sonho de que-rer ser escritor.

Jornal da ABI – Você lia muito?Milton Leite – Lia e leio até hoje. E

sempre me imaginava escrevendohistórias. Agora, mais recentemente,eu até consegui escrever dois livros,mas de futebol. Mas naquela época eusó me imaginava como ficcionista.

Jornal da ABI – Você se espelha-va em quem? Quais eram seus au-tores favoritos?

Milton Leite – Eu li muita litera-tura brasileira. Quando era menino,li a coleção completa de MonteiroLobato; depois, mais tarde, muitoJorge Amado, muito Machado deAssis. Depois fui expandindo paraliteratura estrangeira, García Már-quez, e comecei a me interessar muitopor biografias. Li e continuo lendomuitas biografias até hoje. Enfim,leio um pouco de tudo, gosto muito.Acho que escrevo bem, que tenho umbom texto, mas não tenho talentopara a ficção, e isso eu percebi logocedo. Ficção é um passo além: nãobasta ter um bom texto. Precisa teridéia, compor personagens, é tudomais complicado. Mas depois meencontrei no jornalismo. Não que eutenha me arrependido, pelo contrá-rio: o trabalho em jornal acabou melevando para o rádio, pelo qual eu meapaixonei também. Hoje lamentonão ter tempo de fazer alguma coi-sa em rádio, de que eu gosto muito.Mas por outro lado o rádio acabou melevando para a televisão, que era umacoisa que eu nunca tinha pensadonem em chegar perto. E hoje eu vivode televisão. Enfim, a vida foi meioque me levando, e as coisas foramacontecendo sem que eu tivessemuito controle. E é curioso porque eutrabalhei em várias áreas diferentes.Quando vim para São Paulo, paratrabalhar em jornal, trabalhei naeditoria de economia. Quando fuipara a rádio, em São Paulo, foi parafazer programas de variedades, ouseja, o esporte só voltou para a mi-nha vida quando eu fui para a ESPN.

Jornal da ABI – Quando sentiu queJundiaí estava pequena para você?

Milton Leite – Depois de quase 10anos de carreira, eu já estava com 28anos e três filhos. Você percebe queseus custos estão altos e que o seu

horizonte acabou. Eu já tinha sidoChefe de Reportagem, Subeditor,Editor... não tem muito para ondeavançar. O máximo que eu podiachegar a ser era Chefe de Redação,mas o problema é que este cargo láera do Sidney Mazzoni, que era umbaita amigo meu, falecido no anopassado, prematuramente. Nós éra-mos muito amigos. Foi ele quem meajudou a vir para São Paulo. Naque-la época, anos 1980, havia muitagente de Jundiaí trabalhando noGrupo Estado, no Estadão e no Jornalda Tarde. Hoje ainda há, mas naquelaépoca havia muito mais. E um iatrazendo o outro. Foi naquele mo-mento que eu percebi que, se quises-se crescer, teria de trabalhar em SãoPaulo. Fiquei sondando meus ami-gos até que apareceu uma vaga, umaúnica vaga no Estadão, para redatorde economia. E eu fui. Nunca tinhatrabalhado em economia, mas fui.Inclusive eu sempre falo isso quan-do dou palestra para estudantes:quem está construindo a carreira nãopode ter nenhum tipo de preconcei-to contra nenhuma editoria. Pegueia oportunidade. Continuei por umtempo morando em Jundiaí e traba-lhando em São Paulo. Fazia rádio demanhã, em Jundiaí, vinha para SãoPaulo e entrava à tarde no Estadão,onde eu ficava até de noite, no fecha-mento. Fiquei quase quatro anos noEstadão. Em 1989 ou 1990, um anoantes de sair do Estadão, tive a chancede ir para a Jovem Pan, por outradestas coincidências da vida. O dire-tor de Jornalismo da Pan, na época,Fernando Vieira de Mello, tinha umacasa em Cabreúva, perto de Jundiaí,onde ele passava alguns finais de se-mana. E ele, apaixonado por rádio,ficava “corujando” várias estações,até que um sábado de manhã eleacabou me ouvindo no programaque fazia na rádio, em Jundiaí, gos-tou do meu trabalho e me convidoupara trabalhar na Jovem Pan. Entãocomecei na Jovem Pan, fazendo oprograma Show da Manhã, entre ofinal de 1989, começo de 1990, e ain-da fiquei uns seis meses no Estadão.Ainda morando em Jundiaí, saía delá cedinho, chegava na Pan onde fica-va até umas duas da tarde, depoisentrava no Estadão às 4 da tarde eficava até umas 10 da noite, pegavao ônibus e voltava pra Jundiaí. Eu sóia pra Jundiaí para dormir. Na JovemPan eu fiquei quase oito anos. E por es-tar na Jovem Pan acabo tendo a chan-ce também de trabalhar em televisão,porque na época eles estavam come-çando o projeto da Jovem Pan TV. Nofinal de 1990 saio do Estadão e fico sóna Pan. 1991 foi o ano de maior em-polgação do projeto da TV Jovem Pan.A emissora já estava no ar, em cará-ter experimental, e eles eram umaespécie de segundo canal da Globo, jáque a Globo repassava para a Pan oseventos que não cabiam na sua gra-de. Tanto que naquele ano nós, na Pan,fizemos o campeonato paulista defutebol, e uma série de outros even-

tos esportivos que a Globo não tinhacomo transmitir, mesmo porque naépoca ela ainda não tinha o SporTV.Em troca, a Pan emprestava os seusequipamentos, que eram os melhorese mais modernos de São Paulo, para aTV Globo. Só pra dar uma idéia, na-quela época, o ônibus que a Globousava para transmitir Fórmula-1 erada TV Jovem Pan. Mas já em 1992 e1993 o projeto da TV começa a nãodar certo por causa de brigas entre ossócios, e em 1995 eu já começo a tra-balhar naquilo que estava começan-do a ser a ESPN Brasil. Concilio o tra-balho na Pan e na ESPN até 1997, esomente a partir do ano seguinte é queeu fico só na ESPN Brasil. É em 1998que, pela primeira vez na vida, eu ficonum único emprego [risos].

Jornal da ABI – Por que você op-tou por sair do Estadão e ficar sóna rádio?

Milton Leite – Achei mais vanta-joso, sob o ponto de vista de pers-pectiva, pois a Pan estava desenvol-vendo o projeto de televisão. E asidas e vindas estavam muito can-sativas. Até fisicamente não esta-va valendo a pena.

Jornal da ABI – Em que momentovocê se especializa no Esporte?

Milton Leite – A TV Jovem Panutilizava todo o pessoal da rádio, e eufui para a TV para ajudar especifica-mente no esporte. Embora na rádio eunão fizesse parte da equipe de espor-tes, na TV eles me pediram para aju-dar nessa área, porque eu gostavamuito de esportes e acompanhavatudo neste assunto. Então eu passeia apresentar programas esportivos,fazer os intervalos dos jogos, e ali foia primeira vez que passei a trabalharmais diretamente nesta área. Eu ti-nha feito isso em Jundiaí, mas muitopouco. É na TV Jovem Pan que eu vironarrador também, porque num pri-meiro momento me colocaram na TVpara ser só apresentador. Num deter-minado final de semana, por algummotivo eles ficaram sem narrador, queera o Flávio Prado, e o Tuta sugeriu queeu narrasse o jogo. Eles gostaram e euvirei narrador esportivo de televisão.

Jornal da ABI – Mas foi assim, derepente, sem nenhuma prepara-ção? Vem aquele instinto de quemnarrava pelada na rua?

Milton Leite – Pelada na rua e jogode botão [risos].

Jornal da ABI – Quais eram oslocutores que lhe serviam de re-ferência?

Milton Leite – Minhas referênciasde locutores eram as do pessoal derádio: Osmar Santos; José Silvério,com quem eu vim a trabalhar depois,na Jovem Pan; Joseval Peixoto, quena minha opinião é um grande nar-rador, uma pessoa muito culta, ad-vogado formado pela São Franciscoque além de narrar bem tem vocabu-lário e coisas interessantes para falar.Essas eram as minhas referências derádio, mas é óbvio que é impossívelcitar minhas referências de televisãosem falar de Galvão Bueno e Lucia-no do Valle. Foram eles os profissio-nais que mais valorizaram a profis-são de narrador esportivo: eles colo-caram o narrador em posição de des-taque nas transmissões esportivas.Todos nós devemos muito a eles.

Jornal da ABI – O seu humor lem-bra o Walter Abrahão.

Milton Leite – Já me falaram isso.Eu cheguei a ver o Walter trabalhar,na TV Tupi, quando eu era menino.Eu conheci o Walter Abrahão quandoele já era do Tribunal de Contas. Che-guei a participar de um programa comele no então CBI, o Canal Brasileiro daInformação, que foi meio que umsucessor da TV Jovem Pan.

Jornal da ABI – Estrear como lo-cutor esportivo foi uma coisa sos-segada pra você? Porque seu es-tilo é muito sossegado. Já eraassim na época?

Milton Leite – Bom, não sei se naépoca foi tão sossegado quanto é hoje[risos]. Lembro que nas minhas pri-meiras transmissões eu me apoiavana minha memória afetiva, tantoque se você ouvir o meu começo decarreira na televisão vai perceber queas transmissões tinham estilo derádio. Eu falava demais e mais altodo que precisava. Eram as minhasreferências: eu cresci ouvindo futebole gostando de futebol ouvindo rádio,e não como a geração mais nova, queé da televisão. Daí o Tuta e o Fernan-do Viera de Mello foram me moldan-do, me ensinando que a imagem eramais importante do que o que eu ti-nha para falar.

Jornal da ABI – Quem te pôs paranarrar na televisão será que já tinhao feeling de que você daria certo?

Milton Leite – Não sei dizer, maso Tuta é um cara genial! Ele, o NiltonTravesso, e a chamada Equipe A, noauge da Record, fizeram coisas geni-ais. Ele me deu muita segurançaporque eu acreditei no taco dele. So-mos amigos até hoje: às vezes eu voulá na rádio conversar com ele. E tinhao Fernando Vieira de Mello, já faleci-do, mas que era um baita jornalistae fazia coisas incríveis. Lembro que oFernando insistia em pautas queninguém achava que iriam dar certo,e todas elas funcionavam muitobem, davam muita repercussão.

Jornal da ABI – Lembra de algumexemplo?

“Galvão Bueno eLuciano do Valle

foram osprofissionais que

mais valorizaram aprofissão de

narrador esportivo.”

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Milton Leite – Teve uma vez queele descobriu um professor da Usp quetinha desenvolvido um líquido queprometia eliminar o ácaro das roupas,dos estofados, enfim. Ele sugeriu apauta, e ninguém colocou fé. Bom,a reportagem foi pro ar e foi umaloucura, aquilo explodiu, com todomundo querendo saber mais sobre otal líquido que combatia o ácaro. Eletinha umas sacadas assim, era umcara genial. Então se estes dois carasgeniais falaram que eu poderia serlocutor de televisão, eu acreditei, né?Acho que deu certo [risos].

Jornal da ABI – No Grupo Esta-do você trabalhou na Rádio Eldo-rado também, não foi?

Milton Leite – Isso foi o seguinte:um dos profissionais que comanda-vam o Estadão naquela época era oitaliano Sandro Vaia, que era muitoamigo meu. Ele foi um dos fundado-res do Jornal da Tarde, foi durantemuitos anos editor do jornal, mas agente se conhecia mesmo era de Jun-diaí, onde ele chegou até a ter umjornal, quando era moço. Na épocaem que a família Mesquita foi afas-tada do Grupo Estado, o Sandropassou a fazer parte de um comitêque administrava as empresas doGrupo, na área de conteúdo. E ele mechama perguntando se eu teria inte-resse em ajudá-lo na reformulação daRádio Eldorado, me convidando parafazer um programa de manhã. Dis-se a ele então que só fazer mais umprograma de rádio não iria acrescen-tar muita coisa na minha vida, queeu não teria interesse. Na época, euestava saindo da ESPN e indo para oSporTV. Mas disse ao Sandro que euteria, sim, muito interesse numnovo desafio: dirigir a rádio. Foi aí queacertamos de eu ser o editor-chefe daEldorado. Eu fazia o programa demanhã, mas participei de toda areformulação da programação, cria-va programas, montava equipes detrabalho etc. Fiquei 20 meses lá, en-tre 2004 e 2005. Foi exatamentequando a rádio sai do bairro da Acli-mação e vai para o prédio onde esta-va todo o Grupo. Feita a reformula-ção, a audiência cresceu, e chegou-senaquele ponto em que, para dar con-tinuidade ao crescimento, seriamnecessários mais investimentos, poisa nossa equipe era formada quasetoda só por estagiários, por estudan-tes ou recém-formados, com poucosprofissionais experientes. Mas eles es-tavam vivendo toda aquela crise doGrupo e não tinham mais como in-jetar dinheiro. E também como euestava tendo alguma dificuldade emconciliar a rádio com o SporTV, poistinha de viajar muito, decidi sair, como dever cumprido da reformulação ter-minada. Foi uma experiência espeta-cular! Uma das melhores experiênci-as que eu tive na vida foi ter dirigidoa Redação da Eldorado.

Jornal da ABI – Foi bom trabalharcom a garotada?

Milton Leite – Eu achei, sim. É umpessoal sem vícios, querendo se firmarna profissão, muito legal. Eu já tinhasido Chefe de Redação e Chefe deReportagem tanto em Jundiaí comona Jovem Pan, mas na Eldorado eu fuichefe de tudo, comandava o sistematodo. Do meu ponto de vida pesso-al, a certeza de que eu podia fazeraquilo foi muito legal.

Jornal da ABI – Uma coisa quechama muito a atenção nas trans-missões esportivas é a memóriae a rapidez que o locutor deve terpara reconhecer e lembrar osnomes de todos os jogadores emcampo, muitas vezes de timespouco ou nada conhecidos. Amemória é um dos requisitosbásicos para um narrador?

Milton Leite – Hoje em dia é umpouco mais fácil por causa da inter-net: um dia antes do jogo é fácil en-trar no site do time e tentar memo-rizar os rostos e os nomes. Mas eutenho uma facilidade em desenharum mapa dos jogadores na minhacabeça desde o iniciozinho do jogo.Como lá de cima, da cabine de trans-missão, muitas vezes há jogadoresque acabam se tornando muito pa-recidos, eu me atenho aos detalhes,como a cor da chuteira, o jeito que ocabelo balança mais ou balançamenos, estas coisas. E faço estasassociações. Por exemplo, lá de cima,o Alessandro, o Émerson e o FábioSantos, todos do Corinthians, sãomuito parecidos, pois são todos ca-recas, brancos e mais ou menos da

mesma altura. O jeito de correr doÉmerson é um pouco diferente, massão parecidos. Então a gente perce-be que um deles está usando umamunhequeira branca, memoriza estedetalhe e faz a diferenciação. Achoque cada um tem sua técnica paramemorizar os jogadores.

Jornal da ABI – Você fica mais deolho no campo ou no monitor?

Milton Leite – Eu divido. Quandoa bola está em jogo, quando o joga-dor está com a bola, eu fico mais deolho no campo. Quando a bola estáparada, e a câmera corta para a tor-cida, corta para o banco, aí é hora deir pelo monitor. Quando a câmeranão está na bola, você não sabe o quevai ser mostrado, então é necessárioficar de olho no monitor para poderinformar o público sobre o que estásendo mostrado. Atualmente a qua-lidade da imagem é tão boa, a tecno-logia é tão boa, tem tantas câmerasem campo, o telespectador está ven-do tantas coisas em casa que o nar-rador precisa acompanhar tudo, paraque o público não pense que você nãoestá prestando atenção naquilo queele, telespectador, está vendo. Mui-tas vezes o SporTV pega o mesmosinal da Globo, mas há câmeras quesão exclusivas nossas, do canal. Ecomo o profissional que está comigo,na coordenação, não tem poder sobreo sinal da Globo, ele não tem comome avisar, com antecedência, o queo sinal da Globo vai mostrar. Ele sóvai conseguir fazer isso nas câmerasexclusivas do SporTV. Então se o

sinal da Globo mostra, por exemplo,um ator, uma pessoa famosa vendoo jogo, eu não tenho como saber issocom antecedência. Eu preciso ficarmuito atento ao monitor para poderinformar ao telespectador, imediata-mente, quem é aquela pessoa queacabou de aparecer na tela.

Jornal da ABI – Percebe-se mui-to o diretor de TV praticamente“narrando” o jogo, direcionandoo locutor através das imagens.

Milton Leite – Isso acontece maisna Globo que no SporTV. A Globogosta muito de mostrar torcida,mostrar personagens quando a bolaestá parada. Ela corta mais.

Jornal da ABI – E o quero-queroe a mariposa? [A pergunta se re-fere a um jogo onde, repentina-mente, Milton Leite aproveitou ummomento de bola parada e passoua “narrar” uma briga entre umpássaro quero-quero e uma mari-posa, que estava sendo focalizadapelas câmeras do SportTV. A brin-cadeira já havia alcançado mais de37 mil visualizações no You Tube,até o fechamento desta edição.]

Milton Leite [risos] – Ninguém mefalou que a câmera ia mostrar aqui-lo. Eu olhei para o monitor e lá esta-vam o quero-quero e a mariposa bri-gando. Eu fui pego de surpresa, mascomo tenho raciocínio rápido tiveesta sacada na hora. A repercussãofoi enorme.

Jornal da ABI – Você é brincalhãoem qualquer circunstância?

Milton Leite – Sou. O que me dei-xa natural no ar é que eu sou assimmesmo. Eu não fico pensando antesem coisas para dizer quando estiverno ar. Faço naturalmente estas brin-cadeiras com os amigos, com as pes-soas, eu me divirto muito. Os bordõestodos foram surgindo naturalmen-te, nada foi pensado antes, nada éplanejado. Eu nunca pensei em cri-ar bordões. Nos três ou quatro primei-ros anos, na ESPN, eu não tinha bor-dão nenhum. O primeiro que apare-ceu, o “que beleza!”, surgiu não lem-bro agora se foi nas Olimpíadas deSidney ou de Atenas, que eu pegueiemprestado do Wanderely Nogueira,que já o utilizava há muito tempo naJovem Pan. Eu trabalhei muito comele e meio que absorvi. A gente sem-pre falou o “que beleza!” nas rodinhas,nas brincadeiras, até que um dia esca-pa, vai pro ar, e você percebe que aspessoas gostam. E como na ESPN a

gente lia os e-mails diretamente dotelespectador, sem filtro nenhum,percebemos que as pessoas tinhamgostado muito do “que beleza!”, masnão é uma coisa que eu fique pensan-do. Eu quero é narrar direito, identi-ficar certinho os jogadores, fazer da-quilo um entretenimento, fazer umaboa transmissão. O bordão é só umacoisinha a mais.

Jornal da ABI – E o que o Wan-derley Nogueira acha de você terpego o bordão dele?

Milton Leite – Ele não tem proble-ma nenhum com isto [risos]. Já faleicom ele, sempre que eu dou entrevis-ta eu cito que o bordão é dele, estátudo certo com o Wanderley. Estebordão é o único de alguém conheci-do que já fazia isso no rádio. Os ou-tros são de amigos, gente que nãotrabalha no meio, outros são meusmesmo, e por aí vai.

Jornal da ABI – Então o seumaior trabalho é traduzir os bor-dões para outros idiomas?

Milton Leite – [risos] A primeiravez que eu fiz isso foi na Copa doMundo na África. Não lembro ago-ra em que jogo foi, mas eu traduzi o“que beleza!” para o idioma do timeque estava jogando, e ficou muito en-graçado! Tanto que o rapaz que faziaa coordenação das transmissões in-ternacionais começou a pesquisar esempre antes de cada jogo ele me pas-sava as expressões “que beleza!”, “quefase”, “segue o jogo” nos idiomas dasseleções que iriam jogar. Foi muito di-vertido.

Jornal da ABI – Em caso de Copado Mundo, você não encarna a fi-gura do narrador/torcedor, não é?

Milton Leite – Não, não é muitoo meu perfil. No fundo eu sou umjornalista, e teoricamente estou con-tando uma história. Se eu for me co-locar na posição de torcedor, não voucumprir bem o meu papel de contaruma história que tem dois lados. Temo time do meu país, e tem o time quenão é do meu país, mas que pode sermelhor que o meu. Não é do meu per-fil e eu nem saberia fazer isso direito,se eu me propusesse a fazer. Não vaiaí nenhuma crítica a quem faz isso;cada um tem a sua maneira de fazer.

Jornal da ABI – Mas nem na horade gritar gol?

Milton Leite – Ah, na hora do gol,sim. O grito do gol do adversário nãosai com o mesmo entusiasmo do goldo Brasil, mas não a ponto de eu meexacerbar na torcida. Por exemplo, nojogo em que o Boca desclassificou oCorinthians, nesta última Liberta-dores, os erros de arbitragem foramenormes e grotescos, mas não fica-mos valorizando isso como se fosseuma tragédia, um roubo, nada disso.Tratamos o fato como puro e simples

“Eu sou umjornalista, e estou

contando umahistória. Se eu forme colocar na

posição de torcedor,não vou cumprir

bem o meu papel”.

Em jogos internacionais, Milton Leite tem ohábito de falar seus bordões nos idiomas dostimes estrangeiros que estão em campo.

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erros de arbitragem e ponto final.Segue o jogo.

Jornal da ABI – Na TV Jovem Panvocê não gritava gol.

Milton Leite – É, não gritava. Comoa TV Jovem Pan tinha muitos recur-sos gráficos, quando saía o gol, elescolocavam uns caracteres bem gran-des com a palavra “gol”, e no áudiovinha aquela mesma musiquinhaque tocava na Rádio Joven Pan: “É gol,que felicidade! É gol, o meu time é aalegria da cidade!” Então o narradornão gritava gol, e isso também foi umaidéia do Tuta, pois ele achava quegritar gol seria redundante. Ele pediupara que cada um dos três narrado-res da TV, que eram o Milton Neves,o Flávio Prado e eu, criasse uma fra-se para dizer na hora do gol. A minhaera “A emoção acontece na Pan”.

Jornal da ABI – E difícil não gri-tar gol na hora do gol?

Milton Leite – Ah, no começo foi,tinha que ficar segurando [risos].

Jornal da ABI – Quantas Copasdo Mundo você já cobriu?

Milton Leite – Três: França, Ale-manha e África do Sul.

Jornal da ABI – Do que vivenciou,como jornalista, nestas três Co-pas, você acha que o Brasil terácondições de oferecer, para o jor-nalista que vem nos visitar, asmesmas condições de trabalhoque você teve como visitante?

Milton Leite – São duas coisas. Sevocê pensar nos estádios, nas estrutu-ras de imprensa, equipamentos e logís-tica dos jogos, acho que a gente vai fazerigual ao que os outros já fizeram. Atéporque tudo isso é terceirizado pelamesma empresa multinacional quecuida de todas as Copas. Deste pontode vista, acredito que não teremosproblemas. Acho que teremos proble-mas com outro tipo de estrutura,como deslocamentos, hotéis, trans-porte, trânsito etc. Houve problemasassim na África do Sul. Lá, algumascidades eram pequenas, com aeropor-tos pequenos, e em determinadas oca-siões não havia vôos suficientes paraque os jornalistas pudessem se deslo-car para fazer as coberturas. Nós mes-mos do SporTV perdemos uma cone-xão porque o vôo atrasou, não haviaoutros vôos disponíveis, e a equipe todateve de percorrer quase 400 quilômetrosde carro para não perder o jogo que ti-nha que ser transmitido. Numa das se-mifinais o aeroporto ficou congestio-nado, e muita gente com ingresso com-prado não conseguiu nem pousar nacidade que teria o jogo. A estrutura ho-teleira também não era grande o sufi-ciente na África do Sul. Muita genteteve de ficar em pousadas ou em casasde família. Acho que este tipo de difi-culdade também vai acontecer aqui.

Jornal da ABI – Essas dificulda-des na África do Sul não forammuito divulgadas...

Milton Leite – É, foi muito poucofalado. Todos estavam tratando aÁfrica do Sul com muita condescen-dência, levando em conta que o paíssaiu de um terrível regime de apartheidhá relativamente pouco tempo, e queestava somente agora voltando paraum convívio social e internacional.Todos trataram a África do Sul commuita boa vontade, o que eu acredi-to que não vá acontecer com o Brasil.Temos economia de Primeiro Mundo,é um país que está crescendo, que járecebe muitos turistas. A imprensainternacional não terá com o Brasil amesma condescendência que tevepara com a África do Sul.

Jornal da ABI – No caso da Glo-bo, por exemplo, que é quase umapatrocinadora, praticamente umaco-promotora do evento, em ca-sos como este você acredita queela omitiria as informações ru-ins para a Copa? Ela deixa de tra-tar o evento de forma jornalísti-

ca para tratá-lo de maneira maispromocional?

Milton Leite – Bom, no caso daÁfrica do Sul eu cobri pelo SporTV,que é da Globo mas não é exatamen-te a Globo. Não houve orientaçãopara não falar de problemas porquepegaria mal para o evento. Tanto queo caso da conexão perdida nós chega-mos a comentar no ar, sem problemaalgum. Acredito que não foi faladomuito dos problemas porque no fimdas contas todos eles acabaram sen-do contornados. Não foi uma calami-dade, não foi uma catástrofe e havia

coisas mais importantes a seremditas. Mas orientação para esconderproblemas não houve nenhuma, não.

Jornal da ABI – E como você vêestes casos em que o jornalismofica em segundo plano em rela-ção ao evento? Por exemplo: aGlobo não fala de Fómula Indyporque o evento é da Band, e aBand não fala da Fórmula 1 por-que o evento é da Globo.

Milton Leite – A Globo não é patro-cinadora ou apoiadora de eventos. Elacompra os direitos. Claro que ela querdar um tratamento bom para o even-to do qual comprou os direitos porqueela pagou caro para transmitir. Masse der problema, ela vai falar mal. Eunão sei qual é a política que faz comque a Globo não fale da Indy e a Bandnão fale da Fórmula 1, talvez seja paranão alertar o telespectador que o even-to está em outro canal, mas exata-mente qual é a política eu não sei.Mas noticiar tem que noticiar, não é?

Jornal da ABI – Você sente dife-rença quando narra um jogo pelaGlobo e pelo SporTV? Existe al-guma orientação diferente?

Milton Leite – Não, pelo contrário.Eles me falam para fazer na Globoexatamente o que eu faço no SporTV.No começo eu ficava meio preso, nãosabia se podia soltar os bordões, sepodia brincar como eu brinco noSporTV, e a única coisa que eles medisseram foi para eu fazer na Globoexatamente o que faço no SporTV,que tá dando certo. Mas nunca nin-guém me disse “não fale isso, não faleaquilo, ou fale isso e fale aquilo”.Sempre tive carta-branca.

Jornal da ABI – Pra você, é dife-rente narrar um jogo pela tv pagae pela tv aberta?

Milton Leite – A grande diferençaé o público, que na tv aberta é mui-to mais heterogêneo. O que a gen-te imagina e as pesquisas tambémmostram é que o público do SporTVé muito mas “especialista”, vamosdizer assim, que entende mais deesportes, acompanha, sabe o queestá acontecendo, e está ali porquegosta daquilo. A TV Globo pega umpúblico muito mais diversificado: alinão está só o público que gosta defutebol, que em geral é o pai, o filhomais velho, enfim. Lá também estáa mãe que está assistindo ao jogo sópara esperar o Faustão, ou porqueacabou a novela e está vendo o jogocom o marido, etc. Então o grandedesafio para quem narra na tv abertaé tentar angariar este público nãoespecialista. Eu gostaria de narrarmais jogos na tv aberta, ter maisfreqüência, para ver se eu consigofazer isso. Seria um bom desafio.

Jornal da ABI – Então aquela brin-cadeira que você faz na tv paga,quando diz “ele pensou que era oGérson e tentou fazer um passede 40 metros” não vai funcionarna tv aberta?

Milton Leite – Sim, muita gentenão vai entender porque não vai saberquem é o Gérson. Eu posso até fazera piada, mas vou ter que explicar.

Jornal da ABI – Piada com le-genda não dá, né? [risos]

Milton Leite – As brincadeirastêm que ser diferentes, têm quemexer com o universo mais próxi-mo da maioria das pessoas. No anopassado, quando narrei alguns jogosna Globo, fiz algumas brincadeirasusando o universo das novelas, por-que sabia que o público feminino en-tenderia. Eu acompanhava bem anovela para poder usar nas trans-missões.

Jornal da ABI – Você vê novela?Milton Leite – Vejo, vejo sim. Até

para ficar por dentro do que está acon-tecendo. Se eu quero entender o meupúblico, preciso saber o que ele acom-panha. E acho as novelas bem feitastambém.

“Vejo novela, sim.Se eu quero

entender o meupúblico, eu preciso

saber o que eleacompanha.”

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Jornal da ABI – A Uol fez umapesquisa que te colocou como opreferido entre os narradores defutebol. Como você recebeu isso?

Milton Leite – Embora a pesqui-sa do Uol não tenha um caráter ci-entífico, é sempre bom ficar em pri-meiro, né? Melhor que ficar em úl-timo [risos].

Jornal da ABI – Principalmentelevando em consideração quevocê transmite num canal pago,que não tem a mesma coberturade um canal aberto...

Milton Leite – Neste sentido ésem dúvida um resultado espetacu-lar. Fiquei muito feliz e pra mim issoé sempre muito bom.

Jornal da ABI – Qual é o segre-do do seu sucesso? [risos]

Milton Leite – Não sei, acho quetenho essa característica de levar ascoisas no bom humor, um jeito maisleve de brincar com os personagens,isso faz com que as pessoas se iden-tifiquem com a transmissão. Quan-do encontro as pessoas na rua, emhotéis ou aeroportos, percebo que te-nho um grande público infanto-ju-venil e feminino, que é um público quenão é tão cativo do futebol quanto ohomem adulto. Acho que o jeito levede fazer a transmissão me dá umcerto prestígio com este tipo de pú-blico. E tem ainda o fato de eu estarno SporTV, que transmite os melho-res eventos e cuja audiência tem cres-cido muito. Tudo isso ajudou muito,porque eu cheguei no SporTV exata-mente neste momento de crescimen-to da participação da paga no Brasil,em função do crescimento do poderaquisitivo de uma boa parte da po-pulação. Eu me lembro que, na épo-ca da ESPN, tínhamos uma base de2,5 milhões de assinantes, o que équase nada para um País de 220 mi-lhões de habitantes. E agora já ultra-passamos a base de 18 milhões deassinantes. O crescimento foi real-mente muito grande.

Jornal da ABI – Foi este públicojovem que te fez abandonar o bor-dão “Agora eu se consagro”?

Milton Leite – Abandonei por umperíodo, mas ultimamente tenhousado novamente. Não com tantafreqüência, mas uso. Aconteceu queuma vez um amigo me disse que ofato do bordão ter este erro de concor-dância chamou a atenção do filhodele. Ele me pediu para pensar se eunão estaria ajudando a difundir umerro junto à garotada. Fiquei entãomeio temeroso com isso, e passeimais ou menos um ano sem usar.Mas aí depois me disseram: “Fala-setanta merda na televisão, que não vaiser esse o problema”. E eu voltei ausar, mas agora sempre com umaadvertência. Depois que eu uso obordão, complemento dizendo que“O Ministério da Educação adverte:a frase eu se consagro tem um gra-ve erro de português” [risos].

Jornal da ABI – Por falar em Mi-nistérios, o fã de futebol, ao acom-panhar o noticiário esportivo,cada vez mais se vê diante denotícias sobre denúncias e cor-rupção que propriamente sobreesportes. Como você vê isso?

Milton Leite – O esporte é umarepresentação da sociedade. O queacontece na sociedade acontece noesporte também. Se você for analisartodos os outros setores, Congresso,governo, prefeituras, empresariadotemos no esporte uma representaçãodisso tudo. O que deveria aconteceré que os dirigentes deixassem de cri-ar seus feudos particulares dentrodas entidades esportivas. Quem fica40 anos no poder, numa federação,cria uma estrutura viciada. Deveriahaver no Brasil um mecanismo quenão permitisse isso. Deveria haveruma oxigenação de administraçãoesportiva. Como jornalista, comouma pessoa que sempre foi apaixona-do por esportes, acho muito triste verestas figuras comandando. João Ha-velange, por exemplo, de que todomuito sempre falou muito bem, derepente tem que sair corrido da Fifa porcausa de corrupção! Assim como nóspoderíamos estar melhor em váriossetores da vida brasileira, também noesporte, se não houvesse corrupção,poderíamos hoje estar num estágiomuito mais avançado.

Jornal da ABI – Como você vê hojea qualidade do jornalismo espor-tivo no Brasil?

Milton Leite – Enfraqueceu mui-to, enfraqueceu muito! E há váriasrazões para isso. Temos muitas facul-dades formando muita gente, assim,“no tapa”, para colocar muita genteno mercado. Com a chegada das tvsa cabo e dos portais de internet, opróprio mercado cresceu, demandan-do muita gente num período muitocurto. E eles contratam pessoal semexperiência, formação, e até mesmosem um bom nível pra saber o queestá fazendo. Hoje todo mundo temopinião sobre tudo. Nos blogs, todomundo escreve sobre tudo, todomundo mete o pau em todo mundo.Esta expansão muito rápida domercado fez com que a qualidade dojornalismo esportivo que se faz hojetenha caído muito em relação a quan-do eu comecei.

Jornal da ABI – E na época em quevocê começou, o jornalismo es-portivo era do mesmo nível dosoutros tipos de jornalismo, doeconômico, por exemplo?

Milton Leite – Naquela época opessoal do esporte era visto como umaespécie de segunda divisão do jornalis-mo. A gente ficava lá no fundo daRedação e quando aparecia alguém quenão era muito bom, o pessoal falava:“Põe na editoria de esportes” [risos].

Jornal da ABI – No esporte e naeditoria de polícia, não é?

Milton – Isso, exatamente! Masisso hoje melhorou muito. O espor-te hoje tem um espaço nobre nosjornais, e passou a ter a importânciaque merece. Mas o nível daquela épocaera um pouco melhor. Digo o níveldas pessoas que faziam, um nível

melhor de execução, de produção, depautas, de idéias, do que deveria sernoticiado, do que não deveria sernoticiado, enfim. Hoje o jornalismoesportivo está muito centralizadoem fofocas, do que fulano falou, doque sicrano disse, “o que você acha doque ele falou de você?”, essas coisas.Isso não é jornalismo.

Jornal da ABI – Aconteceu issocontigo num programa com oVanderley Luxemburgo...

Milton Leite – Sim, foi. Em geral,o profissional de futebol, o jogador, otécnico, ele só acha que você é bomjornalista se você fala bem dele.Quando você faz alguma crítica, elesfalam que você é fofoqueiro, que vocêquer derrubar a pessoa, etc. O episó-dio com o Luxemburgo foi claramen-te isso. Eu fiz um comentário sobreuma contratação que ele tinha feitono Palmeiras, na época, que eu acha-va inexplicável. E eu disse que “é comeste tipo de contratação que a gen-te acaba achando que existe algumacoisa a mais que só uma contrata-ção”. E ele viu isso como um ataque.Ele ligou na hora do programa, di-zendo que queria entrar no ar ao vivode qualquer jeito, e a gente bateu bocano ar. E eu falei exatamente isso praele: que ele é uma pessoa que quan-do não está sendo elogiado se rebelae vem atacar. Ele ameaçou me pro-cessar. Foi isso.

Jornal da ABI – Você abandonouseu blog?

Milton Leite – Já tentei três vezester blog... meu Deus! Primeiro noGlobo Esporte, parei. Depois num sitepessoal que eu tinha criado, abando-nei também. Depois me chamaramde novo no Globo Esporte, fiquei lá umtempo, mas não deu. Este meio da

internet é muito virulento: o sujeitopor trás do anonimato se sente nodireito de te xingar de tudo o que énome, não discute a sua opinião, teagride pessoalmente, escreve barba-ridades, e eu cheguei à conclusão deque o desgaste não valia a pena. Gos-to muito de escrever, tinha um es-paço legal, a audiência do blog noGlobo Esporte era muito bacana (erao segundo blog mais lido do Globo-esporte. com), mas não valia a pena.Primeiro porque é preciso dar umaatenção quase diária ao blog, atua-lizando, e eu já não tinha tanto tem-po pra fazer isso, porque viajo mui-to. Além disso eu ainda tinha deaprovar os comentários, porque eunão tinha uma equipe pra fazer isso.Eu tinha a opção de deixar os comen-tários em aberto, ou seja, qualquercoisa que o leitor escrevesse sairiapublicado, mas eu não queria issoporque sabia que deixar tudo abertobaixa o nível da discussão. E os carasescrevem umas barbaridades que vocêpara e pensa: não mereço isso. As pes-soas não têm controle.

Jornal da ABI – Fora do blog, vocêsente pressão de torcida?

Milton Leite – Em alguns mo-mentos. No episódio do vídeo doRogério Ceni, sempre que eu chega-va para transmitir um jogo no Mo-rumbi, aparecia gente xingando, jo-gando bolinha de papel, estas coisas.[Refere-se a um vídeo que vazou nainternet onde, fora do ar, Milton Leitecomenta que o goleiro sãopaulino Rogé-rio Ceni é “chato”]. Já teve o caso de acabine de transmissão ser invadidana Vila Belmiro, num dia em que oSantos perdeu...

Jornal da ABI – Invadiram a ca-bine?

“Torcedores doSantos invadirama cabine, jogaramo equipamento

no chão,ameaçaram bater.”

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21JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Milton Leite – Invadiram, jogaramo equipamento no chão, ameaçarambater... Não era uma coisa pessoal,mas a gente estava ali representan-do a imprensa e o torcedor quandoperde a noção acha que quando otime dele perde é porque a imprensaestá contra, a Globo está contra. Issoaconteceu duas vezes na Vila Belmiro,as duas contra o SporTV, e nas duaseu estava lá. Tanto que ficamos unsquatro ou cinco anos sem transmi-tir jogos da Vila; fazíamos tudo doestúdio, e só o repórter ia ao campo.E agora está acontecendo algo seme-lhante com a Ponte Preta: não con-seguimos mais transmitir o jogo dacabine porque as pessoas ficamameaçando o tempo inteiro. Elesacham que a Ponte Preta é persegui-da, e que isso é culpa da imprensa, damídia, da Globo. Até o presidente daPonte Preta veio pedir desculpas, masenquanto eles não garantirem a nos-sa segurança a gente não transmitemais jogo de lá.

Jornal da ABI – Você acha que issoé algo contra a imprensa em ge-ral ou mais direcionado à Globo?

Milton Leite – Como a Globo é aGlobo, como ela é a grande vidraça,acaba respingando mais sobre ela. Masse fosse a Bandeirantes que transmitis-se os jogos do campeonato, acabariacaindo sobre ela também. Não é nadapessoal, mas naquela hora, naquelemomento, o narrador é a Globo. E oscaras querem bater no narrador.

Jornal da ABI – É por coisas as-sim que dificilmente o narradordiz para que time ele torce?

Milton Leite – Basicamente sim.No meu caso, sim. Se, sem falar paraqual time a gente torce, nós já somosameaçados, imagine falando. [O Jor-nal da ABI apurou para que time Mil-ton Leite torce, mas a informação nos foipassada somente em off].

Jornal da ABI – Como é ter umaprofissão na qual quase não setem fim de semana?

Milton Leite – Bom, eu estou acos-tumado, minha mulher também éjornalista então compreende mais,mas é difícil. Não tem domingo, nãotem feriado, não tem aniversário... Agente sempre está na contramão docalendário dos outros. Tem hora queé cansativo também porque envolvemuitas viagens. Claro que tem umlado bacana, mas muito avião, muitoaeroporto, muito hotel, tudo isso tam-bém cansa. É desgastante, mas poroutro lado você participa de eventoscomo Copa do Mundo, Olimpíadas,de que todo mundo quer participar.

Jornal da ABI – Normalmente ojornalista que aparece na tv é as-sediado na rua. Como você lidacom isso?

Milton Leite – Às vezes ainda meencabula um pouco, porque eu souum pouco tímido, quando não co-nheço a pessoa. Às vezes eu ainda me

surpreendo com pessoas que que-rem tirar foto comigo, mas a minhamulher se diverte muito. E eu fico mequestionando: “Mas eu sou só umjornalista...” Mas encaro numa boa,acho que faz parte da profissão, afi-nal eu entro na casa das pessoas porcausa da profissão. Além do que esteassédio é sempre respeitoso. Nem meempolgo, nem deixo me seduzir,porque isto é absolutamente passa-geiro. No dia em que eu não estivermais na televisão, isso passa.

Jornal da ABI – Dentro do jorna-lismo esportivo, você acha queo espaço dado à cobertura fute-bolística é proporcional ao inte-resse e à paixão que o público tempelo futebol em relação aos ou-tros esportes?

Milton Leite – Sim, é proporcional.Muita gente diz que se a imprensadesse mais espaço para outros espor-tes fora o futebol, esses esportes sedesenvolveriam mais. Mas eu achoque é meio o contrário: o futebol temo espaço que tem porque as pessoasprocuram consumir futebol. Temgente que fala, por exemplo, que o bas-quete está uma droga porque a tele-visão não cobre basquete. Não é isso:o basquete está nesta droga porqueas pessoas não assistem basquete. Sevocê coloca um jogo de basquete noar, a audiência é zero. Vôlei vai um

pouquinho melhor, mas está longe deser a audiência do futebol. A televisãocobre o que as pessoas procuram, nãoé o contrário. Se tem público, a tele-visão vai atrás.

Jornal da ABI – O sucesso dosoutros esportes é pontual. UmGuga, talvez...

Milton Leite – O Brasil torce paraquem ganha. O tênis teve aquele ápiceporque o Guga é um vencedor. Por queo vôlei cresceu? Porque o Brasil se tor-nou um vencedor. O brasileiro nãotorce por um esporte de que ele gosta;ele torce pelos esportes onde estão osvencedores. Veja como caiu o interes-se das pessoas pela Fórmula-1 depoisque o Senna morreu. Uma vez o jor-nalista Maurício Cardoso me falouuma coisa que me marcou muito. Eledisse: “No Brasil, a gente não gosta deesporte. A gente gosta de vitória”.

Jornal da ABI – E você tem maisplanos para escrever outros livros,além dos dois já publicados?

Milton Leite – Eu gostaria muito.Os dois livros que eu fiz foram lan-çados pela Editora Contexto, e sóforam feitos porque eles me convi-daram. Conheci o Jaime Pinsky, odono da Contexto, quando o Nori-ega [Maurício Noriega, comentaristado SporTV], lançou o primeiro livrodele. Na verdade o Noriega começou

uma coleção com o livro Os 11 Mai-ores Técnicos do Futebol Brasileiro. Issodeu origem a uma coleção inteira, comoos 11 goleiros, 11 laterais, 11 centro-avantes e assim por diante. Quan-do fui ao lançamento do Noriega, eleme apresentou à família Pinsky.Além de comandar a editora, sãotodos loucos por futebol. Conheci oJayme, conversei com ele, que meencomendou, primeiro, Os 11 Mai-ores Centro-Avantes do Futebol Brasi-leiro, e mais tarde As Melhores Sele-ções Brasileiras de Todos os Tempos, queacabou saindo primeiro para aprovei-tar o clima de Copa do Mundo. Háoutras idéias, outros projetos. Eugostaria muito de escrever outros li-vros. Me dou muito bem com o pes-soal da Contexto.

Jornal da ABI – Vamos fazer paravocê a mesma pergunta que vocêfez, no Programa do Jô, para o Pau-lo Soares e para o Antero Grec-co. Você falou o seguinte: “Hojea gente vive uma era de muitagente querendo fazer graça comprogramas jornalísticos. Sobre-tudo o esportivo. E muitas vezespassam do ponto, o que não é ocaso de vocês. Queria saber comovocês equilibram isso, para nãodesrespeitar a informação. Ondeestá o limite do bom humor, paranão extrapolar?”

Milton Leite – Acho que o limiteestá em justamente você não usar ainformação para fazer graça. Eu façograça com outras coisas, não com ainformação. E não saio de casa pen-sando em fazer graça; eu saio de casapensando em transmitir o jogo direi-to. Acaba ficando uma coisa bemhumorada porque eu sou assim. Eesta pergunta que eu fiz tem umacrítica embutida...

Jornal da ABI – Uma crítica em-butida a quem?

Milton Leite – É geral, não é con-tra um programa específico ou umapessoa específica. O que está acon-tecendo é que muito repórter sai prarua pensando em qual será a graçaque ele vai fazer com aquela pauta.Não interessa qual a informação queele vai buscar. Ele que saber da brin-cadeira. Eu vejo isso acontecer todosos dias, não só na nossa empresa.

Jornal da ABI – Isso no jornalis-mo esportivo ou geral?

Milton Leite – Eu vejo mais espe-cífico no esportivo. Acontece em ou-tras editorias, mas acho que houve

“Muito repórter saipra rua pensandoem qual será abrincadeira queele vai fazer com

aquela pauta.Não interessaa informação.”

um boom no esporte. E porque issocomeçou a acontecer? Porque o Tia-go Leifert começou a fazer isso noGlobo Esporte de São Paulo. Mas ele éuma pessoa que saber fazer a brinca-deira, sabe fazer um programa maisleve, mais descontraído, ele batepapo com o telespectador e faz umacoisa diferente daquela que é ficarlendo TP [teleprompter]. E logo deinício ele fez um sucesso muitogrande, ao quebrar aquele esquemamais sisudo da Globo. Quando elecomeça a fazer sucesso, os outrosacham que esse é o caminho, e todomundo quer fazer igual. Mas sãopoucos os que têm o talento, o conhe-cimento, a informação que o Tiagotem. Assim, houve uma proliferaçãoerrada dessa idéia de que pra fazersucesso tem que fazer gracinha. E nãoé isso. Cada um tem que fazer den-tro de sua característica. Muita gentecomeçou a sair para a pauta pensan-do na gracinha, e não na informação,e perdeu-se a mão. Passou do ponto.Já melhorou bastante, mas ainda hámuita gente que acha que a boamatéria precisa ser engraçada. E nãoprecisa. Em relação ao que eu faço,sempre tenho muito cuidado emsaber até onde posso fazer graça,quando estou lidando com a infor-mação. Quando estou lidando coma mariposa e com o quero-quero, alinão é informação. Ali eu estou entre-tendo. E faço porque sou assim. Se eunão estivesse na televisão, e visse umquero-quero brigando com umamariposa, provavelmente teria ditoas mesmas coisas que disse na tele-visão. O problema é que a maioria daspessoas que quer fazer brincadeiradentro da reportagem não sabe fazer.Não tem característica nem talentopara fazer. E aí fica ruim, e muitagente força a mão e passa do ponto.Isso não é jornalismo. Eu cheguei afalar isso para o Tiago, e ele me disseque prefere arriscar um pouco, e er-rar a mão, a não arriscar nada e dei-xar tudo como está.

Jornal da ABI – Não seria mesmoo momento de o telejornalismo ar-riscar um pouco mais? Estamosvivendo uma crise do própriomodelo do telejornalismo, quereproduz até hoje um formatoRepórter Esso e não se reinventa.

Milton Leite – Estamos vivendouma crise muito grande do jornalis-mo impresso, e a televisão provavel-mente vai passar por isso daqui apouquinho, sobretudo a tv aberta.Hoje as pessoas estão vendo as coi-sas no celular. A tv aberta já tem umaqueda clara de público e provavel-mente vai ser questionado já-já ojeito de se fazer telejornalismo. Tal-vez seja o caminho de se reinventarmesmo... eu não sei exatamente qualserá este caminho mas alguma coi-sa vai ter que ser feita. Tanto no te-lejornalismo como no impresso.

Jornal da ABI – Você também foinarrador de videogames da Fifa!

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22 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Milton Leite – Fui. Entre 1999 e2006, no único jogo que leva o nomeda Fifa é a minha voz que está lá.

Jornal da ABI – Como é narrar umjogo que não existe?

Milton Leite – É mais um traba-lho de interpretação que de narrador.Eu não ficava assistindo ao jogo. Eurecebia um calhamaço de textos queeu tinha que interpretar, e dar a en-tonação correta dependendo de cadasituação de jogo. E era uma infinidadede nome de jogadores! Mas foi umaexperiência interessante, porque naépoca eu estava na ESPN, logo depoisque eu voltei da Copa na França.Foram duas semanas de estúdio, gra-vando de quatro a cinco horas por dia,três ou quatro mil nomes de jogado-res, e cada nome eu tinha que gravartrês ou quatro vezes em entonaçõesdiferentes. E cada arquivo com umjeito de gravar, um trabalho monstru-oso! Mas a experiência foi muito le-gal, porque isso fez com que muitagarotada daquela época me conhe-cesse primeiro do videogame, e sódepois pela televisão. O garoto ouviaa ESPN e falava: “Olha, é a voz docara do videogame!”. Eu me lembrode receber e-mails na ESPN pergun-tando se este Milton Leite da tv é omesmo do joguinho da Fifa. Até hojeeu encontro gente que me diz que co-meçou a curtir futebol comigo, masno videogame!

Jornal da ABI – Você tem estesjogos em casa?

Milton Leite – Todos eles!

Jornal da ABI – E você os joga?Milton Leite – Nem sei jogar [risos].

Jornal da ABI – Você falou daCopa na França, você que estevelá, o que foi aquela convulsão doRonaldo?

Milton Leite – A melhor explica-ção que eu vi foi na biografia do Ro-naldo, escrita pelo Jorge Caldeira[Ronaldo - Glória e Drama no FutebolGlobalizado, da Editora 34]. Lá diz queo Ronaldo é sonâmbulo, e que ele teriatido uma convulsão logo depois de terdormido um pouco depois do almo-ço, em função desse sonambulismo.Foi a melhor explicação que vi, inclu-sive em termos científicos. É muitoboa esta biografia.

Jornal da ABI – Você falou quegosta de ler biografias. Já pensouem escrever uma?

Milton Leite – Eu gostaria muito!No ano passado, quando falei com aEditora Contexto, a idéia era eu fa-zer grandes perfis, quase biografias.Começamos a cogitar nomes e eupensei em fazer o perfil do José Rober-to Guimarães, técnico da seleção devôlei, o único tricampeão olímpicoque o Brasil tem. Gostaria muito defazer biografias do César Cielo, doGuga; enfim, há muita gente no es-porte brasileiro que mereceria gran-des biografias.

Jornal da ABI – Você tem idéia decomo aquele vídeo que você cha-ma o Rogério Ceni de chato foiparar no You Tube? Qual foi suareação quando isso aconteceu?

Milton Leite – Posso falar umacoisa em minha defesa? Faz unsdois anos, o Rogério Ceni foi capa daRevista da ESPN Brasil, e a chama-da era assim: “Eu sou chato mes-mo” [risos]. Era ele dizendo que ele échato mesmo, que é perfeccionista,que não pára de treinar, etc. etc.Então ele me absolveu [risos]. Esteepisódio aconteceu em julho de2007. Eu e o André Rizek estávamosna Vila Belmiro para fazer o jogoSantos X São Paulo pelo PremièreFC. Nem era o SporTV. Os técnicosdizem que hoje isso não é mais pos-sível, mas naquela época quandosaía o sinal do caminhão do estádio,ia para o satélite, e do satélite ia paraa emissora; se você conseguisse en-contrar o sinal através da antenaparabólica, você conseguiria ver ojogo em casa. E foi assim que alguémcaptou e gravou aquela imagem. Ocurioso é que o episódio aconteceu em2007, mas só foi parar na internet emjaneiro de 2009. Por que, eu não sei. Eele ficou no You Tube uns 3 ou 4 mesese ninguém tomou conhecimentodele. Nem eu sabia. Até que o site dehumor Kibe Loco descobriu e colocouno site. Em seguida o programaPânico, ainda na Rede TV!, viu noKibe Loco e colocou no ar, na televi-são. Aí estourou! Até hoje colocameste vídeo no ar, na televisão. Naépoca, o que me preocupou não foi

chamar o Rogério Ceni de chato,porque afinal “chato” nem é umaofensa tão grande assim. O que mepreocupou foi a possibilidade de so-frer pressão da torcida do São Paulo,que tem o Rogério Ceni como mito.Mas o que ninguém fala é o seguin-te: este vídeo é pirata! E as emissorasde televisão o utilizam sem sequerpedir minha autorização. Ele é pira-ta porque a gente não estava no ar.Estávamos esperando para entrar noar, e a câmera estava nos focalizan-do, mas nós não estávamos no ar. Eo sinal foi roubado no meio do cami-nho. E qual é o contexto daquele ví-deo? A câmera nos pega de frente. Euestou vendo o monitor do que está noar no SporTV, mas isso a câmera nãopega. E no ar estava uma entrevistado Rogério Ceni gravada no dia an-terior, se referindo ao jogo que a gen-te ia transmitir. E a entrevista esta-va longa, estava chata, e eu falei:“Mas o Rogério Ceni é chato pracaralho!”. Eu estava me referindo àentrevista. Eu nem conheço direito oRogério Ceni, que eu só tinha encon-trado pessoalmente até então umaúnica vez. Mas o que deve ser discu-tido é que as emissoras pegaram estevídeo pirata e colocaram no ar sempensar que de repente eu poderia serameaçado pela torcida do São Paulopor causa dele. Não pensaram nasconseqüências, muito menos mederam uma ligadinha pra pedir au-torização para veiculá-lo, nem paraexplicar o contexto. Além do queusaram a minha imagem, e eu soucontratado de outra emissora. Nun-

“O que ninguémfala sobre o vídeodo Rogério Ceni éque ele é pirata!E as emissoras de

televisão o utilizamsem sequer pedir

minha autorização.”

ca ninguém veio falar comigo sobreisso. Eu poderia ter movido um pro-cesso contra eles.

Jornal da ABI – O resultado daCopa das Confederações foi sur-preendente para você? Em queproporção ele altera ou não oquadro dos favoritos para a Copado Mundo?

Milton Leite – O resultado nemtanto. Acreditava que o Brasil pode-ria vencer. Equipes que jogam em casasempre crescem, tem o fator tradi-ção, camisa, essas coisas. Mas ima-ginava que o time fosse jogar menosdo que jogou e que tivesse mais difi-culdades. Acredito que não altera oquadro de favoritos, mas mostra queo Brasil pode ser mais forte do queimaginávamos. E é preciso levar emconsideração que em mata-matanem sempre o melhor vence e numaCopa do Mundo, dependendo do sor-teio dos grupos, do caminho na ta-bela, as coisas podem ser facilitadas.Em 2002 foi assim.

Jornal da ABI – E como vê as ma-nifestações populares contra arealização da Copa no Brasil?Acredita que isso possa ter algu-ma conseqüência mais grave parao evento e para o País?

Milton Leite – Acredito que as ma-nifestações são legítimas, mas comomostrou o Datafolha não represen-tam a maioria, que continua sendoa favor da Copa. Eu sempre fui con-tra o Brasil sediar Copa e Olimpíada,porque sempre considerei que se oPaís tem tantos bilhões para fazertantos estádios, vila olímpica, insta-lações esportivas, deveria ter tam-bém para acabar com os problemasda educação, saúde, transporte, etc.Infelizmente, “o gigante acordou”com alguns anos de atraso nesse as-sunto. Deveria ter se manifestadoantes, quando o Brasil se candidatou.Tenho a impressão de que quando asmanifestações começaram, por ou-tras motivações, perceberam que oevento poderia ajudar na visibilidadedas reivindicações e só aí a Copa dasConfederações e a Copa do Mundoentraram na pauta. Para o ano quevem, dependendo do que aconteceraté lá no que diz respeito às reivin-dicações, talvez utilizem de novo avisibilidade do Mundial para mani-festações. E a Copa do Mundo émuito maior do que a Copa dasConfederações. Portanto, o barulhopode ser muito maior, ainda maisque logo depois teremos eleições. Aesta altura imagino que Fifa e Go-verno devam estar tratando de comoevitar isso em 2014.

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Violência da PM-RJ causa perdade um olho de jovem de 26 anos

A ABI pede ao Ministério Público do Estado a instauração de investigação para apuraras lesões causadas na publicitária Renata da Paz Ataíde e no jornalista Pedro Vedova.

Renata da Paz Ataíde e Pedro Vedovaforam vítimas das violências desenfrea-das cometidas por praças e oficiais da Po-lícia Militar do Estado durante a repres-são desencadeada contra as manifesta-ções de protesto no Rio de Janeiro. Opedido de investigação foi formalizadopela ABI em representação ao Procurador-Geral de Justiça do Estado, Marfan Mar-tins Vieira, assim redigida:

“Na qualidade de instituição devotadaà defesa dos direitos humanos e do res-peito às disposições constitucionais quegarantem as liberdades públicas, a Asso-ciação Brasileira de Imprensa vem reite-rar a Vossa Excelência o pedido de inves-tigação das violências praticadas contracidadãos comuns pela Polícia Militar doEstado do Rio de Janeiro, que vem come-tendo tropelias que ferem fundo o Esta-do Democrático de Direito.

Essas tropelias têm mandantes situadosna alta hierarquia da corporação, incluídoo seu Comando-Geral, os quais acionamum aparelho repressor tão violento quan-to aquele que celebrizou tristemente a di-tadura militar 1964-1985. Os agentes quecumpriram essas ordens ilegais saíram desuas unidades em obediência a escalas deserviço que podem ser requisitadas para

sua identificação, visando à responsabi-lização penal que se impõe e a assunçãodos ônus civis das lesões causadas poresses agentes públicos.

Essa violência provocou lesões gravesem muitos concidadãos, como o jorna-lista Pedro Vedova, atingido na testa poruma bala de borracha disparada à quei-ma-roupa, como deu conta levantamen-to efetuado pela Associação Brasileira deJornalismo Investigativo-Abraji (Docu-mento 1), e a publicitária Renata da PazAtaíde, como noticiou o jornal O Globoem sua edição de 14 de julho corrente(Documento 2).

Um relato cru dessa violência foi fei-to pelo jornalista Daniel Mazola no tex-to O dia em que a ordem da PM era atirare bater, publicado na Edição de número391 do Jornal da ABI, data de capa junho-julho de 2013 (Documento 3). Também osepisódios por ele narrados estão a deman-dar investigação, conforme solicitamosformalmente a Vossa Excelência em e-mail expedido em 17 de junho passado,conforme cópia anexa (Documento 4).

Igual investigação deve ser promovi-da em relação à denúncia relatada na in-ternet neste 18 de julho em curso pelonosso concidadão que se assina Rafucko,

A sucursal da rede Al-Jazeerafoi fechada e diversos funcionáriospresos poucas horas após o golpemilitar que derrubou o PresidenteMohamed Mursi em 3 de julho. APolícia interrompeu também oscanais Misr 25, da IrmandadeMuçulmana, e El Rahma, El Nas eJaliguiya, de tendência salafista.

A ong Artigo 19 aponta que asagressões contra a imprensa noMéxico aumentaram 46% noprimeiro semestre de 2013 emrelação com o mesmo período doano passado — a organizaçãoregistrou um total de 151 ataques,entre eles, dois assassinatos, umdesaparecimento, quatro ataquesarmados, 26 ameaças e sete privaçõesilegais de liberdade. O estudorevela que um terço dos agressoresforam funcionários públicos. Apenasem 3% dos casos os agressoreseram reconhecidamente membrosdo crime organizado.

A ong Presse EmblèmeCampagne (PEC) revelou quemenos jornalistas foramassassinados no primeiro semestrede 2013 em relação ao mesmoperíodo de 2012, mas muitosforam vítimas de seqüestro. A PECinforma que, ao todo, 56 jornalistasperderam a vida desde janeiro em23 países. No ano passado, 75profissionais morreram em seismeses. Quanto ao seqüestro, práticaque se tornou comum no Iraque de2003 a 2006, a ong anunciou que aomenos sete jornalistas estrangeirosestão detidos ou desaparecidosatualmente na Síria: DidierFrançois e Edouard Elias (França,desde 6 de junho), Armin Wertz(Alemanha, desde 5 de maio),Domenico Quirico (Itália, desde9 de abril), James Foley (EstadosUnidos, desde 22 de novembro de2012), Austin Tice (Estados Unidos,desde 13 de agosto 2012) e BasharFahmi Al-Kadumi (Palestina,desde 20 de agosto de 2012).

Outros jornalistas foramseqüestrados recentemente emHonduras e no Iêmen. Desde oinício do ano, o Paquistão é o paísmais perigoso, com dez vítimas, àfrente da Síria, com oito. A Somáliae o Brasil estão em terceiro lugar,com cinco repórteres mortos emcada local.

Mortos56 jornalistasem 23 países

o qual foi vítima de ação violenta e pre-conceituosa por agentes do Batalhão deChoque na noite de 17 de julho, quandoparticipava de ato diante do prédio ondemora o Secretário de Estado de Seguran-ça José Beltrame, na Rua Redentor. Ra-fucko foi vítima de uma prisão ilegal e deuma farsa montada pelos policiais que oprenderam. Preconceituoso, o agente daPM dirigiu-se de forma ofensiva à suavítima, cujo relato é também anexado aopresente. (Documento 5).

Há fundadas suspeitas, Senhor Procu-rador-Geral de Justiça, de que parte das vi-olências atribuídas a grupos chamados debaderneiros é praticada por agentes da pró-pria Polícia Militar, integrantes do seg-mento denominado P2, utilizado para jus-tificar a consumação da repressão violenta.Há registros fotográficos que comprova-riam a procedência dessa versão, a qualdeve igualmente merecer investigação.

Em razão do exposto, vem a Associa-ção Brasileira de Imprensa mais uma vezformalizar o pedido de apuração dos fa-tos narrados, como fizera através de e-mail em 17 de junho passado.

Rio de Janeiro, 19 de julho de 2013Maurício AzêdoPresidente da ABI.”

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Atingida por umabomba de efeito

moral durante umamanifestação no Rio

de Janeiro, Renatada Paz corre o risco

de perder a visão.

Fonte: Tambor da Aldeia, nº 28, 8 de julho de 2013.

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26 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

LIBERDADE DE IMPRENSA

“Tem algo de histórico nesta foto. Ain-da não sei bem o que é. Como imagem,entre as duas janelas a nítida divisão entreo poder e o nosso direito de ver/saber/transparecer e de tatear outras formas dejornalismo. O dia em que um Ninja trans-mitiu ao vivo de dentro de um camburão.”

Este foi o desabafo do cineasta paulis-ta Rogério Velloso – autor do documentá-rio Daquele Instante em Diante sobre ItamarAssumpção – depois de ver a foto de Fili-pe Peçanha, representante da Mídia Nin-ja, preso dentro de um camburão duranteas manifestações do Rio de Janeiro (aci-ma). O texto foi publicado no dia 22 dejulho em sua página no Facebook.

Ninja é a abreviação de “NarrativasIndependentes, Jornalismo e Ação”. É umformato de transmitir eventos e fatosacontecendo ao vivo de uma forma inde-pendente e transparente. E ganhou expo-sição nacional com suas transmissões aovivo na PosTV (postv.org) das jornadas dejunho – as manifestações que tomaramconta do Brasil naquele mês – transmitin-do por celulares, durante horas, sem edição,os acontecimentos no olho do furacão.

No dia da prisão de Filipe Peçanha e Fi-lipe Gonçalves (este transmitia a detençãoao vivo), ambos representantes da MídiaNinja, a Polícia Militar do Rio de Janeiropublicava em seu Twitter que “foram pre-sos, por incitar violência, dois manifestan-tes que transmitiam ao vivo as manifesta-ções”. No dia seguinte, Filipe Peçanha con-tava no Facebook como fora a sua prisãona 9ª Delegacia de Polícia, no bairro do Ca-tete, no Rio de Janeiro. A seguir, partes deseu relato:

“Uma mão segura forte meu braço. Umhomem alto, de óculos, com uma camisaclara fala: ‘Me dá uma entrevista? Queropegar um depoimento seu’. Achando estra-nho, pergunto: ‘Qual é o seu nome, pra queveículo?’ Ele não responde. Com a outramão ao celular falava freneticamente comalguém que parecia coordenar sua ação. Eisque começo a ser levado à força pelo ‘entre-vistador’ enquanto um policial fardadochega junto. Ele pede para que eu abra amochila. Revista, pede meu documento.Não acha nada de suspeito ou ilegal. Aindaassim, me avisa que serei encaminhado paraa Delegacia. ‘Averiguação’, diz o policial.

Naquele ponto, ao meu redor, mil pessoastomavam a escadaria da igreja do Largo doMachado. Inconformadas após a investidada tropa de choque contra os manifestan-tes que, meia hora antes, já começavam a sedispersar. Seria, em tese, o final das manifes-tações nos arredores do Palácio Guanabara.Mas a Polícia preferiu atacar.

Bruno Ferreira Telles, que foi detido porportar coquetel molotov em sua “mochi-la” que, conforme mostra uma foto daFolha, ele não carregava mochila alguma.

Percebi que o comandante se comuni-cava em pequenos gestos com alguém nomeio da manifestação e fui apurar. (...)Passei por um homem que falava ao tele-fone: ‘já olhei e não tem nenhum jovemdo JMJ aqui’. Um outro manifestantealertou ‘estão cercando as ruas’. Menos deum minuto depois, voa um molotov naPolícia e, adivinhem? Caíram quatro gra-des do meio, exatamente por onde passa-ram os policiais atacando. Presenciei nacorreria (e transmiti ao vivo) a tropa dechoque que vinha na direção contrária,encurralando covardemente, dando tirosde arma letal, fuzil, em manifestantes etranseuntes. Um foi levado ferido a umhospital na Tijuca. Me refugiei dentro deuma loja na Rua das Laranjeiras, ondehavia crianças e idosos. Ainda assim, atropa de choque atirou bombas e perseguiumanifestantes em seu interior enquantocercava o local. Saí de lá com ajuda da OABe recebo a informação que um ninja esta-va sendo preso. Corri até à 9ª DP, no Cate-te. Enquanto filmava sua prisão ouvi umpolicial atrás de mim falando:

‘Sim, sim! Quer que leve ele? Ok!’.Nesse momento uma menina tentou

me tirar dali, mas o policial me pegou pelobraço [identificado como Tenente Puga] e disseque eu estava ‘incitando a violência’ e meconvidou a entrar na delegacia. (...) Por fim,um homem à paisana, fala ao telefone ‘é praacabar com a história? Vou acabar então!’.Neste momento, já dentro da Delegacia, elee mais três policiais agarram minha mão,tomam meu celular e permanecem com elepor pelo menos uma hora. Sim, eles acom-panham a Mídia Ninja. Nesta noite, duascoisas estavam a meu favor: os amigos e averdade. Preciso apenas destas duas coisaspra não sentir medo. (...) Saí de lá com acerteza de que amanhã vai ser maior.”

A análise dos Advogados AtivistasCom uma página no Facebook, os Ad-

vogados Ativistas se definem como “umcoletivo sem hierarquia, não representa-tivo, consensualista, voluntário e sem finslucrativos que fornece subsídios e assesso-ria jurídica aos manifestantes”.

Depois de ver o vídeo da prisão de FilipeGonçalves [youtube/k1wQHxFTEZM],

Quando o celularé uma arma

Depoimentos dos integrantes da Mídia Ninja e doAdvogados Ativistas desmentem versão oficial da Polícia Militar.

POR ELIZABETH LORENZOTTI Comigo, 10 mil pessoas assistiam à trans-missão da PosTV. Desde às 14 horas eu esta-va com a equipe da Mídia Ninja em campotransmitindo o primeiro dia da visita do PapaFrancisco ao Rio de Janeiro. Às 20h30 o po-licial à paisana me puxa pelo braço. A como-ção foi muito grande. Maior do que podiaimaginar. Centenas de pessoas cercaram ocarro da Polícia, enquanto confiscavam meucelular à força e tentavam partir para a 9ª DP.No meio do caminho, o mesmo paisana, apósme agredir, pede para parar a viatura. ‘Vou terque voltar, preciso prender mais um’, disse.

Cheguei à Delegacia, mas não chegueisozinho. Me esperando, três advogados daOAB para defender o caso. Dentro daDelegacia, a narrativa foi burocrática. Empoucos instantes surge mais um ninja nasala de espera. Foi detido também, porqueestava transmitindo ao vivo.

Enquanto aguardava as providências,alguns rumores no ar. ‘A manifestação estávindo pra cá’, comentam os oficiais. Depoisde 30 minutos já se ouve o grito nas ruas: ‘Eipolícia, solta a Mídia Ninja!’ Sem acusaçãoformal, dou meu depoimento e, finalmente,sou liberado.

Ao sair senti milhares de pessoas vi-brarem. Ali diante da 9ª DP, e diante deseus computadores, onde quer que estives-sem. A fusão entre a rede e a rua se mos-trou mais clara. Eles tentaram derrubarnossa transmissão ao deter um, dois, trêsninjas. Mas eles não entenderam que nãoé uma câmera, um repórter... é uma rede.Podem até derrubar um. E assim surgemoutros mil.”

“Amanhã vai ser maior”No mesmo dia, o outro ninja preso, Filipe

Gonçalves, conta sua versão no Facebook:“Ontem à noite eu estava na Rua Pi-

nheiro Machado, transmitindo a manifes-tação ao vivo para a Mídia Ninja. Minhapauta era clara: o discurso da Polícia Mi-litar do Rio de Janeiro é o de que os mani-festantes incitam a violência, e eu estavaali justamente tentando esclarecer isso.

Cinco policiais estavam à paisana (P2)e a pelo menos um metro e meio de distân-cia dos manifestantes que pediam que seretirassem. Um policial estava com amáscara do Guy Fawkes [máscara usadapor um personagem da série em quadrinhos Vde Vingança]. Após pressão popular, eles sedirigiram para o gradil e foram acolhidospelos colegas fardados. Minutos depois,após a saída do Papa do Palácio da Guana-bara, toda a tropa empunhou os escudos.

Foi estranho porque não havia mani-festantes gritando ou sequer próximos aogradil. Imediatamente corri pra lá. Todosgritavam para os policiais abaixarem osescudos. Fiquei ao lado do manifestante

o grupo publicou em sua página do Face-book, no dia 22 de julho, as seguintes con-siderações:

“Uma equipe dos Advogados Ativistasacabou de assistir ao vídeo da prisão de umdos membros da Mídia Ninja. Em um pri-meiro momento, o policial pede para queo acompanhe até à Delegacia, pois existemindícios de que ele estaria ‘incitando omovimento’. Que fique claro, como jápostamos diversas vezes na página dosAdvogados Ativistas, não existe prisãopara averiguação. Uma pessoa só pode serpresa em flagrante ou com ordem judici-al. Essa história de ‘me acompanhe até adelegacia’ é um resquício de costumes mi-litares implantados durante a ditadura.

Na seqüência, o membro da Mídia Nin-ja (...) diz que o policial o estava prendendo.O policial responde que não foi isso o que eledisse, e ameaça prendê-lo por calúnia. Gos-taríamos de esclarecer que calúnia (artigo138 do Código Penal) significa imputar fal-samente fato definido como crime. Dizer,por exemplo, ‘O Tenente Puga roubou minhacarteira’. Por outro lado, dizer ‘esse policialquer me prender’, não configurou calúnia,não obstante o crime de calúnia necessita dedolo, ou seja, a intenção de caluniar, o que vi-sivelmente não ocorreu.

O debate continua, e o Tenente Pugadiz o seguinte ‘se eu entender mais umavez que você está sendo mal educado comfuncionário público em serviço, eu pos-so conduzi-lo por desacato’. Não, vocênão pode, Tenente Puga: a simples falta deeducação não caracteriza desacato. Para odesacato é preciso o menosprezo, ‘seuvagabundo’, ‘seu mentiroso’, por exemplo.Ademais, um policial não pode ameaçaralguém de prisão em flagrante, ou realizaa prisão ou não realiza, simples assim.

Instantes depois, o policial é chamado porum colega, conversam entre si e no telefo-ne. Ao voltar o Tenente Puga anuncia a pri-são com os dizeres ‘agora é uma ordem’.Entendemos que essa suposta ‘ordem’ deve-ria estar acompanhada de um mandado deprisão, ou seja, uma ordem escrita de um juiz,basicamente com o nome do acusado e aclassificação do crime que motivou sua pri-são. Não foi o que ocorreu, portanto, abusode autoridade. Lei nº 4.898, de 9 de dezem-bro de 1965, art. 4º: Constitui abuso de au-toridade a) ordenar ou executar medida pri-vativa da liberdade individual, sem as for-malidades legais ou com abuso de poder.”

Abuso de poder contra o direito de informar: Filipe Peçanha, do grupo Mídia Ninja, foi preso elevado num camburão para a delegacia porque transmitia a manisfestação ao vivo.

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27JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

O apresentador Paulo HenriqueAmorim, da Rede Record, foicondenado à prisão por crime de “injúriapreconceituosa” contra o jornalistaHeraldo Pereira, da Rede Globo, porchamá-lo de “negro de alma branca”,em seu espaço na Internet. Em 2009,Amorim publicou um post em seublog Conversa Afiada com críticas aojornalista da Globo. Além de chamá-lode “negro de alma branca”, oapresentador afirmou que Pereira“não conseguiu revelar nenhumatributo para fazer tanto sucesso,além de ser negro e de origemhumilde”. A DesembargadoraNilsoni Custódio definiu nasentença que as declarações doapresentador “foram desrespeitosase acintosas à vítima”, reconhecendoque “foi nítida a intenção de ofendera honra” de Pereira. Amorim poderecorrer da decisão.

MINO PERDEO Tribunal de Justiça de São Paulo

rejeitou um pedido de indenizaçãoFonte: Tambor da Aldeia, nº 28, 8 de julhode 2013. Pesquisa e edição: Vilson Romero.

A organização Repórteres Sem Frontei-ras (RSF) pediu no dia 24 de julho que asautoridades brasileiras punam os “abusospoliciais” registrados contra a imprensadurante a visita do Papa Francisco ao Riode Janeiro. A RSF afirmou que a agressãomais grave durante os protestos do dia 22de julho no Rio contra os gastos públicosgerados pela visita do Papa foi a sofridapelo fotógrafo da agência France PresseYasuyoshi Chiba, que ficou “seriamenteferido no rosto e no corpo por golpes decassetete de um policial militar”.

A organização dirigiu-se expressamen-te ao Governador do Estado, Sérgio Ca-bral, e ao Prefeito da cidade, Eduardo Paes,para que abram uma investigação sobreessa e outras detenções e agressões aosjornalistas da Mídia Ninja e do jornal OGlobo. “A ‘primavera brasileira’ de junhojá revelou a incrível brutalidade de algu-mas forças da Polícia em São Paulo e Riode Janeiro, em particular”, afirmou a RSF.

A organização de defesa da liberdade deimprensa, com sede em Paris, pediu umainvestigação e sanções contra os respon-sáveis, assim como uma reforma profun-da das instituições incapazes de distinguira manutenção da ordem e a repressão.

por danos morais do Diretor daCartaCapital, Mino Carta, contra o ex-colunista de Veja Diogo Mainardi e aEditora Abril. Para os desembargadoresda 2ª Câmara de Direito Privado, osjornalistas devem suportar as críticasque recebem, já que também asutilizam na profissão.

Mino Carta questionou artigos deDiogo Mainardi. No primeiro,intitulado “Observatório da Imprensa”,Mainardi dizia que Mino era“subordinado a Carlos Jereissati” etinha “a missão de atacar Dantas ede defender a ala lulista representadapor Luiz Gushiken”. No segundo,“Mensalão da Imprensa”, o colunistacondena um suposto favorecimentoà CartaCapital por meio de verbaspublicitárias. “O mensalão não é sópara deputados. Há também omensalão da imprensa. No últimonúmero da revista CartaCapital,quase 70% dos anúncios eram doGoverno Federal. Lula sempre souberemunerar direito seus aliados”,escreveu Mainardi. A 2ª Câmaraconsiderou que, “emboraextremadas”, as opiniões de DiogoMainardi “não caracterizam aleivosiae, portanto, não causaram danosmorais ao autor [Mino Carta]”.

LEMBRANDO VALÉRIOParentes e amigos do cronista

esportivo Valério Luiz de Oliveira,assassinado com seis tiros em 5 dejulho de 2012 na porta da rádio ondetrabalhava, realizaram uma passeataem 5 de julho para lembrar o caso. Oprotesto foi organizado pelo InstitutoValério Luiz, entidade criada porpessoas próximas ao jornalista com amissão de acompanhar o caso.

A Polícia Civil acredita que o crimeestá ligado às críticas e denúnciasque o comentarista fazia aos timesde futebol do Estado, principalmenteo Atlético-GO. Um inquérito aponta oempresário e ex-dirigente do clubeMaurício Sampaio como mandantedo crime.

MORTOS EM MATOGROSSO EM 16 ANOSNOVE JORNALISTAS

O Deputado federal Fabio Trad(PMDB/MS) fez pronunciamento noplenário da Câmara dos Deputadosdefendendo a criação da 10ª ForçaTarefa entre Polícia Federal, PolíciaCivil, Ministérios Públicos Federal eEstadual com o objetivo de investigarcom rigor os assassinatos dejornalistas no Mato Grosso do Sul.

Nove jornalistas foram executados noMS nos últimos 16 anos, sem que oscrimes fossem solucionados. O casomais recente foi o do jornalistaEduardo Carvalho, dono do siteÚltima Hora News, assassinado emnovembro de 2012 em frente à suaresidência, em Campo Grande.

FOTÓGRAFO BALEADOO fotógrafo André Borges, do

jornal Folha de S. Paulo, foi ferido norosto por uma bala de borrachadurante protesto realizado em 1º. dejulho. Reunindo cerca de 500pessoas, o ato terminou emconfronto entre manifestantes e PM,nas proximidades do EstádioNacional Mané Garrincha.

TV BAND CONDENADAA TV Bandeirantes foi condenada a

pagar mais de R$ 20 mil pela exibiçãoindevida da imagem de uma mulherbeijando o ex-namorado, no Jornal daBand. A cena de um casal se beijandono calçadão da Lagoa Rodrigo deFreitas, no Rio, gravada e veiculadaem junho de 2004, mediante préviaautorização da mulher, foi reproduzidaoutras duas vezes – em 2005 e 2007–, ambas sem autorização, quando o

relacionamento dos dois haviaterminado e ela já estava com outronamorado. Alegando que a exibiçãolhe causou constrangimento e aonovo namorado, a autora relatou queo ocorrido incitou comentáriosmaldosos de colegas equestionamentos de familiares sobresua relação com o ex. A emissorarecorreu ao STJ, mas a Turma do STJrejeitou o recurso e manteveintegralmente a condenação.

TV CORREIO PUNIDAA rede Sistema Correio deve ser

multada em R$ 200 mil por terexibido cenas de um estupro. A Juízafederal Cristina Garcez, da 3ª Vara daSeção Judiciária, determinou que ovalor da indenização será revertido aoFundo Municipal de Defesa daCriança e do Adolescente dosMunicípios de João Pessoa e Bayeux.O processo foi movido contra a TVCorreio e o apresentador SamukaDuarte, que exibiu em seu programavespertino cenas de uma garota de13 anos sendo estuprada, em 2011.Ainda cabe recurso.

Uma das vítimas foi o fotógrafo Yasuyoshi Chiba, da France Presse,atacado com golpes de cassetete no Rio por um policial militar.

POR IGOR WALTZ

RSF quer punir agressores dejornalistas durante a visita do Papa

“A maioria destas agressões, por vezesacompanhada de prisões, são atribuíveisàs forças policiais”, mas “alguns manifes-tantes participaram da hostilidade con-tra jornalistas”, indicou a organização.

A crítica da mídia “não autoriza o ata-que contra os jornalistas” e a “ambiçãode um debate” sobre os meios de comu-nicação não deve permitir “excessos pe-rigosos para o exercício das liberdades ci-vis”, escreveu a RSF, notando que “o di-reito de informar, assim como o direitode se manifestar, é garantido” pela Cons-tituição brasileira.

O Brasil é palco de grandes manifesta-ções que, em alguns casos, resultaram ematos de violência e confrontos. Os protes-tos começaram com a exigência da revo-gação do aumento do preço das passagensdos transportes públicos, a que rapida-mente se somaram outras reivindicaçõese reclamações.

Mais cautelosoEm entrevista às repórteres Bárbara

Marcolini e Roberta Salomone, publica-da na edição do dia 24 de julho de O Glo-bo, Yasuyoshi Chiba revelou que acabou dese mudar para o Rio com a mulher e a filhade nove meses, mas já está há dois anos noBrasil, onde queria ter mais informações

sobre a colônia japonesa de São Paulo.“Amo o País mas sei que agora vou ter quetomar mais cuidado”, disse Chiba, que tem42 anos. Ele levou três pontos na cabeça.

Chiba era um dos 6 mil jornalistas es-trangeiros que vieram ao Brasil para a co-bertura da visita do Papa Francisco. Ao todoeles representavam 1.200 veículos de 70países – um terço deles a serviço de jornais,revistas e sites religiosos. O correspondentede guerra italiano Alfreedo Macch, da TV

Mediaset, confessou sua surpresa diante daviolência dos confrontos entre policiais emanifestantes. “Tudo bem que as pessoasqueiram se manifestar pacificamente, masa visita do Papa não me parece o momentopara tamanha violência. Ontem (terça, 23de julho), uma granada em chamas caiu amenos de 30 centímetros da minha perna.Estive nas manifestações no Cairo e na Tur-quia, sei me proteger. Mas ontem um fotó-grafo foi agredido”, contou.

Paulo Henriquecondenado por injúriacontra Heraldo Pereira

Golpes de cassetete feriram gravemente Yasuyoshi Chiba, fotógrafo da agência France Presse.

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28 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Wellington Cantal e Cida Cantal sãopessoas simpaticíssimas. Ele cearense, dacidade de Caucaia, antiga Sore, ela, pau-listana. Ambos são advogados, ambos sãoidealistas, ambos têm a mesma visão dosproblemas da nossa Pátria e plena cons-ciência de que é preciso coragem e deter-minação para resolvê-los.

Sou amigo e admirador do Cantal e daCida, conheço pedaços da provação queambos passaram por serem idealistas, por-tadores de nobres sentimentos humanos,usando sempre o seu saber, na defesa dosmais humildes e necessitados. Neste mun-do em que vivemos desprovidos desses no-bres sentimentos, reflexo da atuação damídia irresponsável e sem compromissoscom o social, propagando nas 24 horas dodia a violência, o sexo e a droga; faturan-do cada vez mais com essas matérias safa-das numa eterna lavagem cerebral, nonosso pobre e sofrido povo.

Cantal fazia Direito em Fortaleza, ra-paz estudioso não perdia os eventos cul-turais da cidade, logo não poderia deixarde comparecer à Conferência, que o famo-so jurista Miguel Reale proferiu sobre ATeoria Tridimensional do Direito. No de-correr da mesma, fez algumas perguntas aoconferencista.

Após a conferência, na saída, o profes-sor Joaquim Pimenta se aproximou e dis-se-lhe: “Jovem, você tem futuro, vá para oRio de Janeiro”. Cantal respondeu-lhe:“Professor, sou pobre, não tenho dinheiro,como é que eu faço?” “Vá, me procure”.

Deu-lhe o endereço de sua residênciano bairro do Rio Comprido, no Rio de Ja-neiro. Isso foi em 1957. Joaquim Pimen-ta se encontrava em Fortaleza a fim deproferir uma conferência, comemorandoo centenário de Clóvis Bevilácquia.

Pimenta lecionava na Faculdade deDireito do Rio de Janeiro, era catedráti-co do Direito do Trabalho. Foi um dos paisda Lei Sindical, datada de 1931, da Lei dos2/3, que defendia o trabalhador brasilei-ro, obrigando as empresas estrangeirasinstaladas no Brasil a contratar 2/3 debrasileiros entre seus empregados, e tam-bém da lei que presenteou o nosso traba-lhador com a Carteira Profissional; da Leide Convenções Coletivas de Trabalho, de1932, conforme afirma Mestre ArnaldoSussekind, de quem foi professor, emdepoimento, na sua riquíssima biografia,organizada por seis mãos femininas —Ângela Castro Gomes, Eliana da Fonte

sidente Kennedy, no Centro de Caxias. Adefesa dos trabalhadores e dos posseiros oempolga, seu escritório é movimentadis-simo;, são oito sindicatos de trabalhado-res que recebem os seus serviços profissi-onais. Participa ativamente de atividadesculturais e políticas, sem falar na defesados posseiros, na luta constante contra osgrileiros, que forjavam títulos de propri-edade nos cartórios, falsificavam docu-mentos e expulsavam as famílias; famíli-as que já estavam na terceira geração deposse daquelas terras, cultivando-as.

“Os grileiros eram militares, ou filhosde militares, eu era conhecido como ad-vogado da CGT – Central-Geral dos Tra-balhadores. Quando eu entrava para con-versar com o juiz, ele achava que eu atu-ava para subverter a ordem. O pai de umcapitão que forjou títulos de proprieda-de passou com um monte de jagunços aexpulsar os posseiros.

“Eu entrei com uma Ação de Manuten-ção de Posse. Consegui uma liminar e parafazer cumprir essa liminar foi uma bata-lha tremenda. O oficial de Justiça não que-ria ir. O delegado de Polícia também não.A liminar precisava ser cumprida. Encon-tramos uma fórmula. Havia um delegadode Polícia amigo do Secretário da Seguran-ça Pública. Esse delegado era um homemsério, chamava-se Hélio Estrela. Conseguisustar a saída dos posseiros que estavamsendo expulsos por militares. Um capitãodo Exército, filho desse grileiro, foi quemme prendeu em Caxias. O delegado Hé-

lio Estrela, depois, com aditadura militar, foi tor-turadíssimo pelos seuscolegas.”

Cantal estava no Fó-rum, em Duque de Caxias,onde presidia a OAB daregião, quando uma patru-lha do Exército, comanda-da pelo Capitão RonaldCarvalho, filho do grileiro,o prende e o leva para aVila Militar. Lá, é interro-gado logo que chegou.

Com a convicção pró-pria de um homem de bem, nega-se siste-maticamente a denunciar seus colegas,companheiros e amigos. O capitão chefedo interrogatório manda levá-lo para acela. Isso foi na tarde de sua prisão. Namadrugada trazem-no de volta, à frentedo grupo está o filho do grileiro, CapitãoRonald de Carvalho, que o prendeu.

Fixando-me nos olhos, tomado de for-te emoção e revolta, com a voz embarga-da, Cantal lembra-se dos sofrimentos quepassou nas mãos dessa ‘besta-fera’ fardadade capitão do Exército brasileiro. “Ele éuma figura que eu não posso esquecer.Torturava com muita frieza. Eu negava queera comunista. Essa confissão era o cami-nho para entregar outras pessoas, era oprimeiro passo. Você confessa que é comu-nista. ‘Mas de que organização?’ Quemeram os membros dessa organização?”

Acabado o interrogatório volta para acela. “De madrugada foram-me buscar. Já fuidireto para o pau-de-arara. Isso era coman-dado pelo Capitão Ronald de Carvalho, umsargento e mais três ou quatro soldados.Quando era necessária uma tortura maissofisticada eles traziam uma equipe daPolícia Civil. Esse pessoal era mais sofisti-cado na tortura. Eles colocavam o sujeitopendurado, com os pés para cima, amarra-dos numa viga de ferro, tiravam-lhe a rou-pa, enfiavam um cassetete no seu ânus. Eusaí de lá com vários problemas: muito de-pauperado, magro, com problemas na colu-na vertebral, com algumas vértebras que-bradas, com essa cicatriz na testa, um tím-

DIREITOS HUMANOS

O dramático relato do advogado Wellington Cantal, perseguido e torturado

por defender posseiros esbulhadosPreso duas vezes durante a ditadura militar, Cantal sofreu toda espécie de sevícias,

comandadas pelo filho de um grileiro, o Capitão do Exército Ronald Carvalho.

POR GERALDO PEREIRA DOS SANTOS

Peçanha e Regina de Moraes Morel –,intitulada Arnaldo Sussekind – Um Cons-trutor do Direito do Trabalho.

A transferência de Cantal da Faculdadede Fortaleza para a Faculdade do Rio deJaneiro – coisa inimaginável na época – foiobtida rapidamente, com o apoio do profes-sor Joaquim Pimenta. Filho de pais pobres,a luta de Cantal pela sobrevivência, no Riode Janeiro, não lhe foi fácil, nada fácil.Vendedor de publicidade, de máquinas dedatilografia, enfim, já estava matriculadonuma faculdade na capital da República,estudando. Uma vitória! Tinha como pro-fessores nomes ilustres como Joaquim Pi-menta, Roberto Lyra, Célio Boja, HélioGomes, entre outros. “A Faculdade doCatete era o esteio dos grandes mestres, elapagava aos professores mais do que asoutras, então todos os professores queri-am ser professores lá”, lembra Cantal.

Na cidade de Duque de Caxias, na Bai-xada Fluminense, visitava os sindicatostentando vender as máquinas de datilo-grafia. “Já estava no 4º ano quando conhecium grupo de advogados que trabalhavapara os sindicatos, Everaldo Martins, JoséGeraldo Martins, José Maria, esses foramos meus primeiros mestres na advocaciatrabalhista. Eu fazia as audiências, apren-dendo o ‘beabá’, daí passei a estudar maiso Direito do Trabalho, fiz outros cursos.”

Defendendo os excluídosCantal forma-se em 1962, reside no

Rio e instala seu escritório na Avenida Pre-

Wellington e Cida Cantalrecebem o jornalistaGeraldo Pereira para umdepoimento emocionado.

ACERVO

PESSOAL

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29JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

pano estragado, escuto menos, quase nada,tudo isso sob o comando do Capitão Ronaldde Carvalho, que eu vim encontrar depois,depois, muito tempo depois, na minha se-gunda prisão, aqui em São Paulo”. O meuadvogado aqui em São Paulo foi o IberêBandeira de Melo; no Rio, o Modesto daSilveira. O Iberê me disse: ‘Cantal, tem umjuiz auditor, aqui na Auditoria Militar, elequer te ver. Chama-se Nélson, foi seucolega na faculdade’.”

“Nós o chamávamos de Nelsinho nafaculdade. Não me opus. Marcamos. Che-guei com Iberê, o Nélson vem com sua becade juiz, sentou, estendeu a mão, cumpri-mentei, ele não falou praticamente nada.Eu estava abatido, ele sabia que eu tinhasido torturado aqui no Doi-Codi. Esse en-contro foi na Auditoria Militar. De repen-te eu olho para os componentes da mesa,e quem estava lá? O Capitão Ronald deCarvalho, como Auditor Militar, um tor-turador, capitão há oito anos quando daminha primeira prisão. Tornou-se Coronele Auditor Militar. Era tudo escolhido; eraesse sujeito que ia me julgar.”

Pergunto a Cantal qual se-ria sua reação se encontrasse oCapitão Ronald de Carvalho.Ele me responde: “Eu fui mui-to ajudado aqui em São Paulopor Dom Evaristo Arns, quetinha uma aura de santo. Elepassou para mim alguma coisaespiritual, disse-me para eu nãoguardar muito ódio, nem ran-cor, nem mesmo pelos meustorturadores, porque são homens quecertamente foram maus filhos, mal enca-minhados na vida, porque quem vira tor-turador perdeu todo valor do ser humano.Se eu encontrasse o meu torturador euperguntaria: Capitão, o senhor lembra-sedaqueles episódios, daquelas torturas,valeu a pena para o senhor? O que é queo senhor lucrou? Eu lucrei mais amadu-recimento, mais sabedoria diante da vida.E o senhor? Sua família como é que estáhoje? Está bem? Os seus filhos soube osenhor educá-los? A gente não mudanada com ódio e rancor!”

A falsa “cela especial”Após as torturas no pau-de-arara, por-

radas, cassetetes no ânus, durante horase horas, Cantal sai da sala de tortura arra-sado, volta para a cela, era madrugada. Oscompanheiros de cela esboçaram algumareação? Ele responde:

“Geraldo, eu estava numa solitária, parasair da solitária a OAB lutou muito, poiseu tinha direito a uma cela especial comoportador de curso universitário. A Audito-ria mandou que eu fosse transferido parauma cela especial. O que eles fizeram? Elespegaram uma cela isolada, fecharam todaela com material escuro; não entrava umaréstia de luz, me puseram isolado e disse-ram: “Taí, estamos cumprindo as ordens daAuditoria. Esta é a sua cela especial”.

“Um colchão no chão e um buraco, peloqual eu recebia comida. Fiquei um ano semreceber visitas, fiquei um ano sem tomarum banho de sol, passei um ano sem lernada, sem falar com ninguém, um ano e

pouco preso, na Vila Militar, no RegimentoEscola de Infantaria. No dia 13 de dezem-bro de 1968, foi baixado o Ato Instituci-onal número 5. Foi o dia da maior tortu-

ra, eles gritavam: “Pronto!Acabou! A lei somos nós! Foiuma tortura terrível, Geraldo,tortura de toda natureza, tudoo que não se pode imaginar.”

“Um dia, depois que fui paraoutra cela, um soldado deixoucair um pedaço de jornal, me-nos da metade de uma folha.Eu li e reli aquilo mil vezes; deoutra feita um cabo e dois sol-dados iam me levar comida di-

ariamente, abriam a porta e me entrega-vam a comida. Esse cabo esperou que ossoldados dessem alguns passos e deixoucair um livro. Eram Poesias de Ho Chi Min,o libertador do Vietnã. Levei muito tem-po para me lembrar, ou saber por que aquelerapaz fez aquilo! Lembrei-me: ele haviasido meu aluno.”

“Como não tinham mais motivo parame torturar, me enviaram para o Regi-mento Caetano de Farias, da Polícia Mi-litar. Um dia mandaram me buscar, eupensei que ia começar tudo de novo. Aíme fizeram uma acareação com HervalArueira. Esse elemento era do meio sin-dical, pertencera ao Partido Comunista,depois passou a ser informante deles, fi-cou conhecido como informante da Po-lícia, ele dizia que eu era do Partido Co-munista. Eu neguei na cara dele.”

“Passei seis meses no Regimento Cae-tano de Farias. Só quando o local da pri-são foi descoberto por um promotor omeu advogado Modesto da Silveira en-trou com um habeas corpus e eu fui li-bertado. Fui para a clandestinidade, eusabia que eles iam me buscar de novo, oCapitão Ronald de Carvalho não se con-formava que eu não tivesse falado nada.Isso é uma derrota para o torturador, amaior vingança do torturado é não daro que o torturador quer!”

“Eu estava fragilizado, não dormia hámuito tempo. Os companheiros me man-daram para um clínica, para fazer terapia.O Dr. Saad, médico, membro do ComitêCentral do PCB, é que me aplicou a sono-terapia, dormi 15 dias.”

A proteção do exílioA repressão o procura. Alguns compa-

nheiros seus já haviam desaparecido nascâmaras da tortura. É preciso tomar todasas precauções. De posse de documentaçãofalsa, Cantal consegue embarcar, no aero-porto do Galeão, no Rio de Janeiro. Seudestino é Paris. Após alguns dias em Paris,segue para Moscou.

“A solidariedade dos companheiros so-viéticos foi excepcional. Passei seis mesesno Hospital Central de Moscou. Passei porduas operações”, diz-me Cantal.

Quando deixa o hospital em Moscou,após um período de total recuperação, vaiestudar. “Passei cinco anos na União So-viética, fiz doutorado. Eu era um rato debiblioteca, estudava horas, horas e horas.No Brasil se estuda pouco, os que gostamde estudar não têm recursos!”

Cantal, encontrou muitos brasileirosem Moscou? Sim, ele responde:

“Muitos brasileiros, sul-americanos,europeus, eu convivi muito com o pesso-al que esteve na guerra do Vietnã; compa-nheiros mutilados, sem pernas, pessoal doLaos, pessoal da Guiné, das colônias afri-canas. Do pessoal brasileiro, com quemconvivi muito, é uma memória saudosa queeu tenho de Gregório Bezerra, um grandelíder comunista. Tive um convívio mui-to rico com Gregório, inclusive ajudei-o adatilografar uma parte das suas memórias.Quem também trabalhou nas memórias doGregório foi o Ferreira Gullar; ele faziauma parte, eu fazia outra. Convivi comesse pessoal todo. Convivi com Prestes,cuja família eu fui apanhar no aeroporto.Lá vinha Maria Prestes, com aquela pen-ca de filhos, se eu não me engano eram sete.

“Em São Paulo eu tinha escritório naRua Senador Feijó, ao lado da Igreja, naPraça da Sé. Nosso escritório era no 6ºandar, as badaladas dos sinos, às 12 e às18 horas, não davam 15 metros da mi-nha mesa. Eu achava lindo assistir àque-les sinos badalarem. Eu estava jurado demorte pelo CCC-Comando de Caça aosComunistas. Nós vivíamos numa corda-bamba Eu estava no saguão, próximo aoelevador, quando eles invadiram comestrema violência, eu resisti à prisão.Foi o que salvou a minha vida, ter resis-tido, porque nesse período todo eles

Wellington e Cida Cantal, com Laura, uma de suas filhas.

prenderam vários companheiros quedesapareceram.”

“Meus colegas atravessaram a rua, dooutro lado estava a OAB, aí requereramhabeas corpus e legalizaram minha pri-são. Quando cheguei no Doi-Codi, o co-mandante, quando viu o meu estado,gritou: “Vocês são uns incompetentes,esse homem era para chegar sem ninguémsaber.” Porque as equipes de ‘resgate’ agi-am de acordo com a pessoa que iriamprender, mas no meu caso, como houve re-sistência, sete pessoas do prédio forampara o hospital, sem ter nada a ver comisso, todas quebradas também. Quando eufui libertado, e voltei ao prédio, uma moçaque lá trabalhava me disse: “Eu fui para ohospital, mas eu me vinguei, tá vendo es-tas unhas aqui, feri a cara de um deles decima em baixo.”

“Essa reação foi que me salvou a vida– essa reação muitos companheiros pas-saram a praticá-la. Antes, Marighella eApolônio Carvalho já haviam resistido.”

Tortura à americanaPorradas, pau-de-arara, cadeira do dra-

gão, lembro-me que o líder sindical An-tônio Aparecido Flores, meu saudosoamigo, que também, como você, foi bar-baramente torturado, falava-me da tortu-ra com os dois pés em cima de duas latasde óleo; se caísse, era espancado por doistorturadores. Você que passou por tantastorturas, também passou por essa?

“Eu estava no Dops quando houve aRevolução dos Cravos, em Portugal. En-contrei de passagem com Flores e o Afon-so Delelis e outros dirigentes sindicais queestavam presos. Na minha cela, a cela dosintelectuais, havia alguns professores daUsp, presos porque estavam lendo O Ca-pital, de Karl Marx. Esse tipo de tortura foiensinado pelos torturadores americanos,que vieram em 1972 ou 1974 dar curso emnosso País. Ensinaram alguns métodos amais, esse, por exemplo, passou a ser mui-to difundido. Tinha outro: deixar a pessoade pé com os braços erguidos no alto,amarrados numa viga de ferro, isolada dochão. Fizeram isso com Neusa, na frentedo marido; para variar, colocaram-na deponta-cabeça, com os pés amarrados ependurados numa barra de ferro.”

“Outra tortura: a pessoa fica de pé, comas mãos amarradas, dia e noite, se cair elesbatem, batem, batem. Foi o que aconte-ceu comigo. Houve um momento em quedesmaiei. Levaram-me para o hospital,senão eu teria morrido, porque eu tiveuma parada cardíaca”.

Pergunto a Cantal, quanto tempo elepassou de pé, com as mãos amarradas, er-guidas por cima da cabeça? Ele pensa poralgum tempo e responde: “Umas 48 horasseguidas é muito tempo, muito tempo, en-capuzado. É uma questão do instinto hu-mano, para não levar pancada. Resistir!”.

Mais uma pergunta: como funcionaa cabeça da vítima após receber tantaviolência?

“Nas primeiras horas você fica muitooscilante entre o desespero e uma tenta-tiva de encontrar o seu ponto de equilíbrioemocional. Para isso você tem que pensar!”

“Eu fui para ohospital, mas eu

me vinguei,tá vendo estasunhas aqui,feri a cara deum deles de

cima em baixo.”

ACERVO

PESSOAL

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30 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

“When we resist...concentration ofpower, we are resisting the powers of de-ath, because concentration of power iswhat always precedes the destructionofhuman liberties.” Woodrow Wilson

Encontro na Literatura e nas Ciênci-as Sociais os melhores conceitos apologé-ticos da Verdade. A Literatura tem sidouma das fontes indispensáveis à Lingüís-tica que se pretende Ciência da Palavra(Escrita e Falada). A palavra, no contex-to, comparece, tanto na fala, quanto naescrita, com dupla possibilidade de uso: opragmático, instrumental, que empurra oemissor, direta ou indiretamente, ao regi-me de trocas. É bem provável que, naque-le comércio, haja ganhador e perdedor.

A outra face da palavra é estética. Oemissor necessita exprimir-se e ser reco-nhecido. O receptor, por sua vez, procu-ra encantar-se, tirar proveito da obraalheia. As partes, na comunicação estéti-ca, podem inscrever-se numa relação van-tajosa para ambos.

No momento, atua no Brasil uma Co-missão da Verdade. Instituída oficialmen-te, destina-se a desvendar os crimes prati-cados por agentes ocasionalmente no

Cuidam ambos os organismos dos impac-tos da tortura sobre as vítimas, submeti-das a tratamentos cruéis, degradantes edesumanos.

É sabido que a Assembléia-Geral dasNações Unidas aprovou, em regime deconsenso, a 10 de dezembro de 1984, re-solução que estabelece como compromissosupranacional, o combate à tortura e àsformas de tratamentos cruéis, desumanose degradantes. Deste modo, o torturadorpode ser julgado e condenado pelo crimecometido, mesmo fora do país em que hajaatuado. Tudo por ter praticado crimehediondo, de tal sorte que lhe fica defe-so argüir, em própria defesa, que o prati-cara em decorrência de ordens superiores.

Finalmente, tendo a convenção cria-do o Comitê Contra a Tortura, autorizao organismo a receber denúncias e a pro-ceder à investigação na busca da verdade.Os Direitos Humanos, portanto, passama constituírem-se servos da Verdade. Ouseja, servos do homem livre.

FÁBIO LUCAS é escritor, ensaísta e crítico literário.Membro da Academia Mineira de Letras, da AcademiaPaulista de Letras, do PEN Clube do Brasil, da ModernLanguage Association (USA); Sociedade Portuguesa deEstudos Clássicos (Coimbra, Portugal) e da AssociationInternacionale des Critiques Littéraires (Paris).

Em relatos feitos sob grande emoção,como o do ex-Capitão-de-Mar-GuerraFerro Costa, que interrompia sua narra-tiva para conter as lágrimas, membros daMarinha de Guerra contaram em audiên-cia da Comissão da Verdade do Estado doRio, em 18 de junho, as violências quesofreram por se opor à derrubada do Go-verno constitucional do Presidente JoãoGoulart. Todos revelaram as torturas aque foram submetidos logo nos primeirosdias de março de 1964, quando os novosdonos do poder buscaram justificar a de-posição do Presidente.

Depois de fazer um breve histórico dasraízes do golpe, Ferro Costa lembrou queos inquéritos julgados pelo Superior Tribu-nal Militar foram baseados em mentirase farsas que tinham por objetivo justificara quebra da ordem constitucional. Eleassinalou que os golpistas usaram as falsasacusações para apresentar à opinião públi-ca a idéia segundo a qual a derrubada doPresidente evitou a instauração do comu-

O golpe puniu militaresque defendiam a legalidade

Em depoimentos na Comissão da Verdade do Rio, oficiais e marinheiros relatam asviolências que sofreram por se opor à derrubada do Governo constitucional em 1964.

POR MÁRIO AUGUSTO JAKOBSKIND nismo no Brasil. Preso no navio PrincesaLeopoldina e posteriormente expulso dacorporação, Ferro Costa disse que nuncaexistiu o propalado “perigo comunista”; oque houve de fato foram militares tentan-do defender a legalidade e que por issoforam presos, cassados, torturados e expul-sos das Forças Armadas.

Ele exortou a Comissão da Verdade aconvocar o oficial militar Vlander Morei-ra, hoje residente na Rua Fadel Fadel, 186,apartamento 202, para prestar depoimen-to sobre os inquéritos no STM e o acusoude ser “um mentiroso por denunciar falsa-mente militares legalistas”.

Emocionado e fazendo esforço paraconter as lágrimas, ao relatar a sua prisãoem 1970, quando foi levado para o quar-tel da Barão de Mesquita, onde “conheceuo horror da tortura e viu a face dos mor-tos nas paredes impregnadas de sanguedos torturados”, Ferro Costa lembrou quefoi conduzido em um camburão para asede do antigo Ministério da Marinha,onde chegou desidratado por causa docalor superior a 40 graus. “Lá então fiquei

DIREITOS HUMANOS

Caminhos da verdadeVale a pena unir a nação em torno de princípios humanísticos.

POR FÁBIO LUCAS

numa prisão, no subsolo do Ministério,em um espaço de quatro palmos por 11”.

Em outro depoimento, o marinheiroAntônio Duarte relatou o processo decriminalização sofrido pelos integrantesda Associação dos Marinheiros e Fuzilei-ros Navais, acusados de “baderneiros”, pordefenderem a legalidade. “Se os oficiaissofreram o que sofreram, pode-se imagi-nar o que aconteceu com os marinheirose fuzileiros navais”, disse.

Duarte relatou a série de prisões que so-freu até ser conduzido como “criminosocomum militar” para a Penitenciária Le-mos Brito, onde uma ação de resistentesconseguiu libertá-lo, juntamente comoutros presos políticos. Ele tinha sidocondenado a 12 anos de prisão. Hoje an-tropólogo, Duarte optou por continuar noBrasil e participar da resistência armadacontra a ditadura.

O marinheiro Osvaldo Araújo disseque não foi expulso, mas obrigado a ir paraa reserva depois de ter sido investigado du-rante sua permanência em um hospital daMarinha onde se recuperava de um aci-

dente em que sofreu graves queimaduraspor todo o corpo.

O cabo José Bezerra da Silva, que ser-viu na Base aérea do Galeão de 1970 a 1979,denunciou ter presenciado torturas na-quele local e contou uma história conhe-cida entre a oficialidade. O BrigadeiroJoão Paulo Bournier teria dado um tapa nacara do ex-Deputado Rubens Paiva e teriadito a ele: “Quero ver você falar o quefalava quando deputado”. Depois disso,segundo José Bezerra da Silva, RubensPaiva desapareceu.

Bezerra da Silva revelou ainda que o en-tão cabo enfermeiro Jose Augusto QueirozPereira Filho, que prestava serviços aoBrigadeiro Eduardo Gomes, tinha sido de-signado para uma operação secreta em Pariscom o objetivo de matar o então ProfessorFernando Henrique Cardoso, que leciona-va na Sorbonne, com uma injeção letal.

Segundo Bezerra, a missão do cabo en-fermeiro vazou e posteriormente ele foiinternado como “doente mental” e colo-cado na reserva. Sua mãe passou a recebero soldo dele.

poder, durante período em que os delitosnão puderam ser revelados, já que os agen-tes encarregados supostamente de defen-der a população e aprimorar o exercício daJustiça e da Democracia apoderaram-se dasarmas para violar direitos universais. Ora,estas pertencem ao povo, foram compra-das, mantidas e renovadas graças aosimpostos pagos pelos brasileiros. Jamaispara praticar ofensas contra os contribu-intes. Seguiram-se destruição de provas,seqüestros, torturas e assassinatos, ocul-tação de cadáveres, queimas de arquivos.

Em razão da censura e do silêncio im-postos aos nacionais, muitas famílias fo-ram agredidas com o desaparecimentoinexplicável de pessoas queridas, estima-das em seu meio. Busca-se, portanto, aVerdade, sem a qual a democracia se frus-tra. Ou se torna imperfeita, ao reduzir acosmovisão dos patriotas brasileiros, aoobstruir os caminhos da paz.

Ocorreu-me, ao isolar expressivo trechode um dos mais sensíveis poemas líricos deMário de Andrade, Girassol da Madruga-da, a citação seguinte a fim de qualificaros atos de ocultamento e destruição: quedesvio triunfal da verdade!

Ao repassar um dos inúmeros cadernosde anotações das minhas leituras e de acon-

tecimentos da minha vivência intelectu-al, surpreendi breve e contundente mani-festação de Carlito Maia, notável ativis-ta da liberdade democrática, num daque-les dias de efervescência popular em favordas eleições diretas. Vale a transcrição danota de fevereiro de 1996: “Num boletimda Pensão Jundiaí (21-11-1995) encontroesta frase de Carlito Maia: ‘A verdade deveter escravos, não donos’. Síntese, creio eu,do sentimento generalizado dos brasilei-ros. Opõe-se à verdade a minoria interes-sada na mentira, ou envergonhada da de-sinformação daqueles tempos bárbaros.Vale a pena unir a nação em torno de prin-cípios. Princípios humanísticos, pois a pazpercorre os caminhos da verdade.

Nota final: Rodolfo Konder, que foiPresidente e Vice-Presidente da SeçãoBrasileira da Anistia Internacional, naobra Desafios da Memória – 1973-2005 (S.Paulo: RG Editores, 2013), dedicou al-guns capítulos à prática monstruosa datortura contra opositores em diversasditaduras, inclusive as brasileiras.

Informa que, na Dinamarca, funcionadesde 1982, o Rehabilitation Center forTorture Victims e que, no Canadá, desde1984, se instalou o Canadian Center forInvestigation and Prevention of Torture.

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A compra de uma escrivaninha Xeri-fe, daquelas de madeira com gavetas, es-caninhos e uma tampa, selou a mudan-ça de vida de Eliane Brum quando com-pletava 21 anos de exercício do jornalis-mo em grandes Redações. Começavauma nova trajetória, de repórter indepen-dente, em 2010.

A busca pelo móvel com que sonharadesde a infância, somada à reflexão sobrea vida até ali e a que iniciaria, abre o volu-me A Menina Quebrada, recém-publicadopela Arquipélago Editorial. A obra reúne64 histórias que, aparentemente banais,acabam por ser únicas no espaço fixo se-manal que ela ocupa às segundas-feiras, háquase três anos, no site da revista Época.

Eliane retrata quase sempre gente quenão costuma aparecer no noticiário. Aautora não só se detém nos ângulos davida brasileira pouco vistos na grandeimprensa, como também levanta fatos deimpacto que os jornais nem sempre con-seguem contemplar – se contemplam,não com a mesma contundência. Comoos bastidores da construção da usina deBelo Monte, o suicídio de Aaron Swartze o anúncio da intenção de morte coletiva,como forma de resistência, dos guaranikaiová. Por vezes, as colunas tambémtratam de livros, outras de filmes, e háaquelas em que, vencendo a natural reser-va, registram sua memória pessoal.

A “carne de suas reportagens”, comodiz na apresentação do livro e também ementrevistas como esta que concedeu aoJornal da ABI, “são os desacontecimentos”,“a extraordinária vida comum”, “aquiloque se repete e, por equívoco ou por mio-pia, é interpretado como banal”. Ao empre-ender esse tipo de narrativa, busca “sub-verter o foco, embaralhando os concei-tos de centro e de periferia.” Só faz senti-do escrever, acrescenta, “se for para desaco-modar, perturbar, inquietar, para compre-ender a época em que vivemos.”

Apesar de repórter de “desaconteci-mentos”, Eliane reconhece que cada vezmais aborda os assuntos mais relevantes dasemana. Pouco a pouco, vão surgindo aolongo do livro os acontecimentos, pois émovida, como explica, pela necessidade de

lançar luz para o que “desacontece” neles.“Busco iluminar os cantos escuros, que éo que acredito ser uma das principais fun-ções do jornalismo. Só escrevo se acredi-to que posso colaborar para lançar luzsobre algo que está nas sombras, das maisvariadas maneiras e pelos mais variadosmotivos. Acabo me movendo na coluna deopinião por esses espaços vazios dos acon-tecimentos – ou os ‘desacontecimentos’dos acontecimentos. E aí a coluna ganhououtra dimensão pra mim, também, quenão estava planejada, ocupando um espa-ço muito maior do meu tempo.”

Escrever longos textos é o contrário doque se costumava recomendar na inter-net, onde só haveria lugar para mensa-gens curtas, rápidas, fragmentadas. Suamarca é outra: são longas as suas históri-as, no que tem a aprovação do leitor.Conta que recebe muitos e-mails, embo-ra parte dessa comunicação tenha já mi-grado para o Twitter. “Quando a colunase torna viral, já cheguei a receber mil e-mails por dia. Mas em geral são algumasdezenas ou centenas por semana, depen-de da audiência da coluna. Quando faloda Amazônia, especialmente, recebomuitas denúncias. É bem complicado,porque são denúncias importantes, e eunão tenho como dar conta delas. Fica bemclaro como é grande a demanda por repor-tagem nessas regiões do País em que hápoucos – ou nenhum – jornalista docu-mentando a história.”

As colunas são escritas entre o sábadoe o domingo. Eliane ainda revisa e cortana segunda-feira, dia em que entram noar. Antes, bem antes disso, inicia-se a apu-ração. “Sempre parto do meu olhar sobrealgo e, a partir dele, faço uma investiga-ção. Minha vida é bem vertiginosa, por-que junto com a coluna estou sempreescrevendo um livro e fazendo uma re-portagem. Hoje demoro muito mais parafazer uma reportagem, por conta disso.Quando estou em São Paulo, acordo porvolta de cinco horas da manhã, sozinha,sem despertador, que detesto. Descobrique esse é o meu horário. Sou matinal,gosto das manhãs, gosto de ver o dia apa-recer. Abro a cortina da sala, dou uma

olhada na paisagem pra ver o que mudou,faço o chimarrão e vou escrever.”

Da safra de 1988 do curso de Jornalis-mo da Puc-RS, atuou por vinte anos em Re-dações de jornal e revista – primeiro, o ZeroHora, de Porto Alegre, depois a Época, emSão Paulo – até intensificar uma atuaçãoindependente a partir de 2010. Venceu atimidez ao descobrir que com bloquinhoe caneta entraria em qualquer lugar. Oespaço foi duramente conquistado. Nocomeço, produzia até cinco pautas por dia,e encontrou também resistência aos tex-tos que fugiam da fórmula da pirâmide in-vertida. Valeu persistir. Conta hoje quase 50prêmios nacionais e internacionais, comoEsso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, So-ciedade Interamericana de Imprensa e Reyde España, Troféu Especial de ImprensaOnu. Num levantamen-to feito em 2011 pelo Ins-tituto Corda e a publica-ção Jornalistas & Cia, foiapontada como a repór-ter mais premiada do Bra-sil em todos os tempos.

Não é a primeira vezque seus textos migrarampara os livros. De repor-tagem, publicou três: Co-luna Prestes – O Avesso daLenda (Artes e Ofícios),A Vida que Ninguém Vê(Arquipélago), que levouo Jabuti de 2007 comomelhor livro de reportagem, e Olho da Rua(Globo). Como documentarista, realizoucomo co-diretora e co-roteirista Uma His-tória Severina e Gretchen Filme Estrada. Emjunho de 2011, lançou seu primeiro roman-ce, pela editora LeYa Brasil, Uma Duas.

Transformações“Reportagem não é o que eu faço, é o

que eu sou”, costuma responder, recor-dando também uma sensação que a acom-panha desde a infância, uma dor queaprendeu a transformar em palavra escri-ta. No jornalismo que atravessa hoje umperíodo de transformações, “a reporta-gem continua fundamental, está maisviva, porque sempre vai ser importante

TRAJETÓRIA

Eliane Brum eas histórias paramodificar a vida

Novo livro da cronista dosdesacontecimentos reúne

64 histórias publicadas em suacoluna no site da revista Época.

POR JOSELIA AGUIAR

contar a história deste momento, a histó-ria cotidiana, e a internet amplia isso”.

Volta e meia, gasta o que consegueganhar financiando as próprias viagensde reportagem. “Estou ainda buscandoalternativas, como todo mundo. Estoutateando nesse novo jeito de viver. Masme sinto muito viva nesse processo.Minha maior angústia ainda é a mesma:não vai dar tempo de viver todas as vidasque quero numa vida só. Estou com 47 anose tenho tantos sonhos, tantos projetos,tanto mundo pra conhecer, tanto de mimque ainda desconheço. Não vai dar tempo,eu sei. Mas, enquanto isso, vou tentandoalargar o tempo que tenho.”

Eliane Brum conta que escreve “para de-sacomodar o leitor, para perturbá-lo, paraprovocá-lo a ver o mundo de outros ângu-

los.” Para alcançar o quedeseja, precisa antes “sedesacomodar”. A experi-ência com os formatos di-ferentes de escrita – “mes-mo quando escrevo comimagens, como no docu-mentário” – passa por isso.“Sempre que sinto queestou me acomodando aum certo jeito de contaras coisas, busco algo queme quebre, me coloque denovo no vazio. Porqueolhar para ver é um atode resistência cotidiana,

tudo nos leva a domesticar o olhar – ou aver apenas aquilo que nos é dado para ver.Então, tento ficar muito atenta a isso, por-que essa é a armadilha cotidiana – e tam-bém a morte do repórter.”

Esse processo de “desinvenção” por quepassa, um percurso de “desidentidades”,como diz, “tem tudo a ver com esse mun-do fluido da internet”. “Acredito profun-damente no poder da história contada, danarrativa, para transformar a vida.”

Entre a força das pautas que corajosa-mente faz circular pela internet e a de-licadeza com que as escreve, Eliane Brumsegue sua trajetória singular no jornalis-mo brasileiro. A Menina Quebrada é pro-va disso.

LILO C

LARETO/ARQ

UIPÉLAG

O

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história no meu traço. Gostei da idéia e até sugerique esse fantasminha renascesse nos dias atu-ais com a reforma deste novo estádio do Palmei-ras, e assim a gente fechou a História.

Jornal da ABI – Quais foram suas referên-cias de imagens para retratar as diversasfases históricas que o livro aborda?

Custódio – As referências históricas factuaisforam buscadas em livros, arquivos de internet,triangulando informações de várias fontes.Neste tipo de trabalho sempre se encontramfuros nas versões oficiais, ou mesmo incongru-ências. É trabalhoso, mas quando você mon-ta o quebra-cabeças e sente contribuir para aHistória ser bem compreendida de algumamaneira, é gratificante. Já a questão das ima-gens ficou toda com o Fernandes. Como já fiztrabalho histórico também como desenhista,enviei referências de imagens sempre que po-dia, mas deixei por conta dele buscar e refinaras escolhas. Não faz sentido chamar um gran-de profissional para parceria se não deixar oinstinto dele trabalhar com liberdade.

Fernandes – Foram muitos livros e muitacoisa da internet. Tive dificuldades com as cores,não pelo fato de eu ser daltônico, mas pela faltade cores das fotos antigas, por isso abusei dosépia. Eu não sabia, por exemplo, qual era a corda camisa de times antigos. Também não sa-bia quantos cravos tinha a chuteira em deter-minada época, e coisas assim...

Jornal da ABI – Como está o mercado paralivros ilustrados no Brasil? O tema fute-bol ajuda a vender?

Fernandes – Tem muita gente fazendo livrosindependentes e vendendo. Tenho visto mui-tas adaptações de obras literárias, por exemplo.Estou com um livro de caricaturas em preto ebranco, que espero lançar logo, e acredito queas vendas paguem o livro. A internet, as redessociais, ajudam muito na divulgação. O livroAlma foi premiado pelo Programa de AçãoCultural da Secretaria de Estado da Cultura-Proac, de São Paulo, tivemos uma verba doGoverno, porém só com as vendas ele já sepagou. Fizemos tudo de forma independente,sem editora. E mesmo assim tivemos umpequeno lucro. Livros com o tema futebol comcerteza vendem bem. O engraçado é que ven-di muito para corinthianos e são-paulinos, quecompram para presentear amigos. E agora coma Copa aqui no Brasil acho que surgirão mui-tos outros títulos.

Custódio – Sempre houve uma dicotomiaentre quem gosta de futebol e quem gosta de ler.Um não costuma se misturar com o outro.Mas felizmente acho que isto está acabando, eas torcidas aos poucos vão compreendendo quegostar de um clube é também conhecê-lo, saberde sua História. Mas não sei se o tema futebolajuda a vender. As pessoas vão atrás de ídolos,seja ele o goleiro Marcos, seja o Paulo Coelho.

Jornal da ABI – Já que Alma é sobre o Par-que Antarctica, como vocês veêm as atu-ais modificações das arenas e estádios

brasileiros para o padrão Fifa?Fernandes – Vejo com bons olhos.

O brasileiro é apaixonado por fute-bol e merece estádios modernos ebelos. Só não merece o preço dos in-

gressos, que estão caríssimos. Alguémpor aí com certeza fatura muito além

do que investe.Custódio – Há duas abordagens. Uma

delas é de quem acha inevitável esta moderni-

zação. As pessoas pagam bem mais do que umingresso de filme em shopping e são maltrata-das nos estádios. Com o dinheiro envolvido noesporte e a passagem do País para um outro pa-tamar econômico, os estádios iriam acompa-nhar isso. A outra abordagem é que esta mo-dificação vai afastar o futebol de suas origenspopulares, a alma do esporte. O futebol é omais humano e universal dos esportes porqueo baixinho, o magrinho, o desdentado, pode jo-gar e vencer o rapaz rosado dos Jardins. Regrassimples, poucos equipamentos e identificaçãopopular são a causa de o futebol ser o esportemais popular do mundo. A elitização do públi-co nas arenas vai mudar esta relação no está-dio. Não sei se é bom. Fico num ponto entreestas duas visões.

Jornal da ABI – Vocês, como palmeiren-ses, aceitariam fazer um livro sobre oParque São Jorge [sede do arqui-rival Co-rinthians]?

Fernandes – Sou palmeirense desde crianci-nha. No momento não faria um livro sobre oParque São Jorge, mas por absoluta falta detempo. Mas poderia pensar no assunto, sim....afinal me casei com uma corintiana e tive umafilha e um filho corintianos. Digo sempre quedescuidei da educação dos meus filhos [risos], eutrabalhava demais quando eles eram pequenos[risos]. Mas só para dar uma idéia, fiz recente-mente uma escultura do goleiro Cássio, doCorinthians, e enviei para um concurso. Cur-ti muito fazer.

Custódio – Eu não faria. Acho que isso ti-raria a autenticidade tanto de um livro quan-to de outro. E olha que eu tenho uma histó-ria com o Corinthians: quando eu era garo-to, fui convidado para fazer teste para jo-gar lá, mas não aceitei. Meu pai fez duplasde bocha com Seu Nicola, o pai do Rivellino,sentamos próximos, lado a lado, para ver osjogos dos nossos pais, uma vez ou duas. Maseu nunca pedi autógrafo pra ele, mesmo sen-do eu um moleque de 12 anos, meia-esquer-da, canhoto, que o imitava. Afinal, ele era doCorinthians... Mal sabia eu que a toda famí-lia dele é palmeirense... [risos].

Um parquecom a almade São Paulo

Dupla de cartunistas desvenda as histórias ecuriosidades de um parque chamado Antarctica.

POR CELSO SABADIN um dos cinco maiores desenhistas/caricaturis-tas do mundo. E foi durante a viagem que fi-zemos para uma um festival literário no inte-rior de São Paulo que tentei convencê-lo a en-trar no projeto. Coitado! Foram seis horas deestrada! Gastei o estoque de histórias interes-santes e toda a minha lábia [risos].

Fernandes – Sim, foi durante esta viagempara Votuporanga. Ele me falou da idéia deescrever sobre o Parque Antarctica, me contou,com entusiasmo palmeirense, vários fatos queeu desconhecia, como, por exemplo, que o gran-de inimigo do Palmeiras sempre foi o São Paulo,e que o Corinthians sempre foi parceiro, nãoatravessando nenhuma compra de jogadores.Ele me contou também o caso do “jogo dasbarricas”, no qual Palmeiras e Corinthiansmarcaram uma partida para salvar o São Paulo,em 1938: como o grande clássico das multi-dões, que levava mais gente aos estádios, eraPalmeiras contra Corinthians, os times fizeramum jogo no qual os torcedores e sócios dos doislados depositavam o dinheiro do ingresso embarricas, na entrada do Parque Antarctica. E foiesse dinheiro que tirou o São Paulo da falêncianaquela época. Para contar todas essas passa-gens o Custódio teve a idéia de criar um fan-tasminha que viveu todos esses anos no Par-que, antes mesmo de o Palmeiras ter sido fun-dado. E ele me disse que gostaria de ver essa

“A História da arena esportiva mais anti-ga do País”. É assim que se auto-intitula Alma,um livro que conta, em quadrinhos, fatos edetalhes dos mais curiosos que envolvem ochamado Parque Antarctica, o histórico está-dio da Sociedade Esportiva Palmeiras. Atual-mente na fase final de uma reforma que omodificou radicalmente, o Parque Antarctica,além de ter sido palco de grandes jogos do timealviverde, também já foi pista de corrida e até“aeroporto” improvisado. Estas e várias outrashistórias são mostradas em Alma através dostextos e traços da dupla de cartunistas e ilus-tradores premiados Custódio e Luís CarlosFernandes, este último também colaborador doJornal da ABI.

Jornal da ABI – Como surgiram o projetoe a parceria entre vocês?

Custódio – Quando soube que havia o pro-jeto de reforma do Parque Antarctica, isso jápelos idos de 2005, pensei em contar a Histó-ria, em quadrinhos, do espaço físico onde hojeestá o Palmeiras. Acumulei livros e referências,como por exemplo um mapa da cidade de SãoPaulo onde há um bairro chamado Palmeirasentre Santa Cecília e Perdizes, do qual sobrousomente a Rua das Palmeiras. Quando o estádiorealmente foi fechado, achei que era hora de fazero projeto. Tive uma das decisões mais felizes davida, que foi chamar o Fernandes, que considero

HISTÓRIA

O craque Ademirda Guia, no traço

de Fernandes.

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33JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Impresso em papel couchê, formatomagazine, totalmente colorido e comcapa dura, Alma revela, em suas 64 pági-nas, muitas curiosidades sobre a Históriade São Paulo e do Parque Antarctica. Eisalgumas delas:••••• Em 1891, um grupo dealemães fundou uma fábri-ca de cervejas e, ao seu lado,construiu um imenso par-que com bosques, lagos, pavi-lhões, coretos, restaurantes epraças de esporte. O Parque,chamado de Antarctica, setornou uma área de lazerpara os paulistanos.••••• Fundado em 1899, o clu-be Germânia passou a ocupar os espaçosdo Parque para práticas esportivas.••••• O primeiro jogo do futebol brasileiroaconteceu no Parque Antarctica em 3 demaio de 1902: Mackenzie College 2 x 1EC Germânia.••••• A primeira corrida de automóveis daAmérica latina, vencida pelo Conde Síl-vio Penteado, aconteceu em 1908 e a li-nha de chegada foi no Parque Antarctica.••••• No dia 30 de agosto de 1910 jogamAA Palmeiras e Corinthians FC,quando os dois grandes rivais ain-da nem haviam sido fundados.

Curiosidades desvendadasNesse mesmo ano o Palmeiras foi campeãopela primeira vez no Parque Antarctica con-tra o CA Paulistano (2x1).• O famoso aviador francês Roland Gar-ros decolou do Parque Antarctica com o

seu Blériot para uma viagema Santos, em 1912. Na vol-ta a São Paulo, ele retornoucom o paulistano Edu Cha-ves, que trouxe uma carta:estava inaugurado simboli-camente o Correio Aéreo noBrasil. Santos Dumont pres-tigiou o evento.••••• O Palestra Itália é criadocom apoio de uma elite deimigrantes italianos e das

Indústrias Matarazzo, que via com sim-patia a criação do clube.••••• O clube passa a realizar seus jogos no Par-que Antarctica em 1918. Em 27 de abril de1920, o Palestra Itália concretiza a com-pra do Parque lançando mão até de um tí-tulo-bônus no ano anterior para levantarfundos, com apoio dos funcionários dasEmpresas Matarazzo.••••• No dia 22 de outubro de 1922 a SeleçãoBrasileira vence dois jogos no mesmo diacom dois escretes diferentes: no Parque An-tarctica ela ganha a Copa Roca sobre a Ar-gentina; no Rio de Janeiro, ganha o Cam-peonato Sul-Americano sobre o Paraguai.••••• Em 1933 é inaugurado o “Stadium” Pa-lestra Itália, o maior e mais moderno naépoca e o primeiro do País a ter arquiban-cadas de cimento armado e alambrados.

No jogo inaugural, vence oBangu, que seria o campeão

carioca daquele ano, por 6 a 0.••••• Com o início da Segunda Grande Guer-ra e a entrada do Brasil no conflito, o Pa-lestra Itália passou a sofrer uma intensa

campanha de difamação. Sem alter-nativa, o clube mudou seu nome paraPalestra (que é um nome grego, e nãoitaliano) de São Paulo. Mas as pres-sões continuaram. No dia 20 de se-tembro, o time entra em campo nadecisão do campeonato contra o São

Paulo, com uma bandeirado Brasil e um novo nome:Palmeiras. O Palestra ter-

minava invicto e o Palmeirasnascia campeão em seu primei-

ro jogo. (Francisco Ucha)

Gore Vidal discorre sobre as inverda-des da História dos Estados Unidos. Var-gas Llosa aborda a natureza dos ditado-res, Toni Morrison recorda a experiên-cia negra americana. Ao todo, 26 gran-des ficcionistas tratam de vida e mor-te, literatura e política, e às vezes degatos e de cheiro de pele de guaxinim emConversas com Escritores, volume que saipela coleção Biblioteca Azul, da GloboLivros. A maioria é conhecida do públi-co brasileiro, alguns já laureados com oNobel, outros cotados para recebê-lo aqualquer momento. E há os que, aindarestritos ao circuito da alta literatura,começam a circular em festas literári-as, como Anne Enright, Hanif Kureishi,Ian McEwan e John Banville, este con-vidado da última Festa Literária de Pa-raty - Flip. Quem os conduz é RamonaKoval, hoje com 59 anos, jornalista quepassou os últimos 15 anos entrevistan-do-os em suas casas, festivais literáriosou no programa que manteve na ABCRadio National, na Austrália. A traduçãoé de Denise Bottmann.

Não há só material de grande interes-se para quem gosta de literatura. Seráútil para quem deseja aprender um pou-co mais sobre esse complexo subgêneroda arte da entrevista, a arte de entrevis-tar escritores. É complexo subgênero por-que, em primeiro lugar, se costuma pen-sar que um escritor, dotado de habilida-de muito além da trivial para escrever,será capaz de reproduzir verbalmente oque já diz à perfeição nos livros. Nãoraro ocorre o contrário. Uma das maisprolíficas autoras da atualidade, commais de 40 romances e dezenas de vo-lumes de contos, não ficção e poesia,Joyce Carol Oates reage embaraçosa-mente lacônica até o instante em queuma pergunta a desarma. A repórterquer saber sobre seus primeiros livros,que são pouco difundidos, e ainda de-monstra conhecê-los muito bem. A au-tora fica tão surpresa, que se anima parafalar não só sobre esse como outrosassuntos mais.

Complexo subgênero também por-que é preciso dominar tecnicamente oassunto, mas guardar medida equilibra-da para que a conversa não seja apenasalcançada por poucos especialistas.

Uma a uma, as entrevistas mostramcomo Ramona Koval enfrenta os doisdesafios, e foge do convencional levan-tando assuntos quase sempre inespera-dos, sem temer parecer banal ou piegas.De Joseph Heller, autor de Ardil 22, quersaber: “Você acredita no amor?” A P.D.James, dama do crime, pergunta por que

TÉCNICA

A arte de entrevistarescritores

De Gore Vidal a Vargas Llosa, 26 ficcionistas sãosabatinados pela jornalista australiana Ramona Koval.

POR JOSELIA AGUIAR os assassinos têm sempre cachorro,nunca gato. Quando se encontra comNorman Mailer, entre questões váriassobre revolução sexual e política ame-ricana, quer saber: “Você consegue lem-brar a primeira janela pela qual quisjogar alguém, ou se jogar você mesmo?”

Não raro dessas questões banais sur-gem as respostas mais densas. Pede aSaul Bellow, por exemplo, que lhe digacomo é mesmo o cheiro de pele de gua-xinim de que fala em vários livros. É oponto de partida para que o autor falede crenças e de antropologia.

Às vezes não há respostas, ou por ou-tra: às vezes as respostas estão no im-ponderável. Por que Amós Oz escolheuuma forma inusitada, de romance emversos e poema em prosa, no seu OMesmo Mar? “Seria muita pretensão deminha parte dizer que eu escolhi”, con-fessa. Na verdade, trabalhara em com-pleta solidão por várias semanas numavaranda que dava para as montanhas eo Mar Mediterrâneo. “Descobri que eraassim que essa obra queria ser escrita”.

Em alguns casos, a ficção funcionacomo surpreendente premonição. Comoquando, em meio à crise financeira nosEstados Unidos em 2008, John Lee Car-ré lança uma nova história de espiona-gem que se passa num banco. “Devo di-zer que foi pura sorte”, e pondera logomais, “Claro que eu tinha a sensação,como eu imagino que a maioria de nóstambém tinha, de que o sistema bancá-rio estava se transformando, e todosaqueles pequenos bancos muito elegan-tes (...) provavelmente quebrariam”.

Desconcertos também rendem algu-mas das passagens mais comoventes.Harold Pinter se recuperava de uma gran-de cirurgia para tratar de um câncer noesôfago. Antes da entrevista, quis saberse em algum momento teria de falar a res-peito. A repórter lhe explicou que sim,havia preparado uma pergunta para fa-zer em algum momento. Então Pinter lhepede para começar com o assunto, e elaacata o pedido. “Creio que você precisa dedois tipos de coisas para sobreviver”, eleexplica. “Uma é um cirurgião excelente;a outra, uma esposa excelente. E tive mui-ta sorte de ter ambos”.

Nenhuma das premonições será maisterrível que a de Gore Vidal, com quemconversa no começo de 2001. RamonaKoval quer saber como estão os EstadosUnidos no começo do século 21. “O pul-so está irregular, eu diria”, responde comhumor, um dos mais ferinos críticos doseu país. A certa altura, diz que ainda vãopagar muito caro pela “mania de ser po-lícia do mundo”. Pouco depois ocorreriao 11 de Setembro.

Palmeiras conseguiuparar o Santos de Pelé e

sagrar-se campeãopaulista em 1963 e 1966.

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Nunca antes na história deste Paísforam produzidos tantos documentários(e ficções também, por que não?) sobrea época da ditadura militar. E pelo quevimos recentemente nas redes sociais,onde pessoas totalmente desinformadaschegaram a pedir a volta desta infameditadura como forma de governo, pode-se afirmar com certeza: quanto mais fil-mes forem feitos esclarecendo o que foio terror daquele período, melhor.

Neste sentido, é mais do que bem-vin-do o lançamento do documentário Dos-siê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle,mesmo sabendo-se que João Goulart jáhavia sido documentado pelo cinemabrasileiro no filme Jango, que Silvio Ten-dler dirigiu em 1984. “São duas obras quefalam de um mesmo personagem, mascom ótica e linguagem completamentediferentes”, afirma Fontenelle. “Enquan-to o filme de Silvio Tendler foca mais acarreira política de Jango e o golpe mili-tar de 1964, o Dossiê Jango foca não so-mente o lado político, como também olado humano do ex-Presidente”, afirma.

Tendler diz não ter visto ainda o filmede Fontenelle, mas concorda “ser impor-tante para o País conviver com versõesdiferentes, com o debate. Não pode haverum único filme sobre um personagem tãorico como João Goulart, um homem re-

pleto de conflitos internos, um persona-gem que vivia a contradição de ser umhomem rico num País pobre. Ele era acu-sado por fazer a reforma agrária, e acusa-do por não ter feito a reforma agrária”,lembra Tendler. “Jango é um filme impor-tante, que vai ficar na história do cinema,mas não pode ser o único”, diz.

Queimas de arquivoO ponto de partida do novo documen-

tário é, no mínimo, intrigante: a partir dofato incontestável de que João Goulart,Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerdamorreram em circunstâncias não total-mente esclarecidas, no curto período detempo inferior a um ano, o filme denun-cia, com clareza e pés no chão, sem des-cambar para insanas teorias de conspira-ção, como os tentáculos da ditadura seestenderam por tempos e espaços que aHistória oficial não registra, cometendosórdidas queimas de arquivo.

Além disso, “falamos também da an-gústia de Jango, seus pensamentos nosanos de exílio, que é um período poucoretratado da vida do ex-Presidente, e dasameaças que ele sofria”, diz Fontenelle.

O projeto surgiu a partir de um argumen-to de Paulo Mendonça e Roberto Farias,não por acaso, a mesma dupla responsávelpelo filme Pra Frente Brasil, que desafiou aditadura em 1982. Na época, Mendonça es-creveu a história junto com Farias, que di-

o filme propõe é quais os motivos que es-tariam entravando tal exumação.

“Colhemos novos depo-imentos e iniciamos umverdadeiro trabalho de in-vestigação sobre o tema,recolhendo documentosdo então Serviço Nacionalde Inteligência-SNI, daCIA, e das polícias secretasuruguaias e argentinas, quecomprovavam as ameaçase os riscos de vida que Jan-go sofria no exílio”, relataFontenelle. O filme tam-bém entrevistou pessoasque conviveram com o ex-Presidente, tanto durante

seu Governo como no exílio, além de jor-nalistas e membros de movimentos dedireitos humanos desses países que pes-quisavam não somente a morte de Jango,mas também a história da Operação Con-dor na America Latina. “Cada entrevistalevava a um novo contato, a uma novapista. Foi um trabalho árduo que durou trêsanos, mas que, no final, conseguiu fazer umpainel bem amplo, não somente sobre JoãoGoulart e sua morte, como também de umgrande período da História do Brasil e daAmérica do Sul”, orgulha-se o cineasta.

A busca pela informação foi penosa.“Além da colaboração do Instituto Presi-dente João Goulart e do Movimento de

CINEMA

Dossiê Jangoquestiona a mortedo ex-Presidente

Documentário reclama apuração da estranhacoincidência: Goulart, JK e Lacerda morreram num

período inferior a um ano, na década de 1970.

POR CELSO SABADIN rigiu o filme. Hoje, ambos fazem parte dadiretoria do Canal Brasil, que produz o do-cumentário. “Roberto esta-va começando a desenvol-ver um longa de ficção so-bre a vida de João Goulartno exílio, e nós começa-mos a filmar algumas entre-vistas iniciais que serviriamde pesquisa para o projetodele”, afirma Fontenelle. “Apartir da entrevista que fi-zemos com um ex-agenteda polícia secreta uruguaia,que afirmava ter conheci-mento do suposto plano deassassinato de Jango, vimosque tínhamos uma novahistória para contar. E partimos para a pro-dução do documentário”, conta.

No filme, o depoimento do ex-agente defato é estarrecedor. Ele conta detalhes, comlucidez e coerência, do que seria toda a tra-ma armada pelos militares para assassinarJango, já em seu exílio. Incluindo uma pí-lula especial, desenvolvida pela Central deInteligência Americana-CIA, que matasua vítima deixando como rastro apenassintomas que sugerem infarto. Hollywoodnão faria melhor. Diz-se, já que nada atéo momento pode ser totalmente com-provado, que uma exumação do corpo deJoão Goulart revelaria traços do supostoveneno. E a pergunta, sem resposta, que

“A partir da entrevistaque fizemos com umex-agente da polícia

secreta uruguaia,que afirmava terconhecimento dosuposto plano de

assassinato de Jango,vimos que tínhamosuma nova história

para contar.”

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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35JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Silvio Tendler é modesto ao dizer queseu filme, Jango, entrará para a História.Ele já entrou: com mais de meio milhãode espectadores só nos cinemas, Jangoestá entre as cinco maiores bilheterias dedocumentários brasileiros em todos ostempos. E com a “nova ordem social” dasmídias pós-internet, é praticamente im-possível que esta posição lhe seja tomada.

“Revi o filme agora e elenão perdeu nada com o tem-po. A realidade, a verdadesobre ele permanecem”,disse mês retrasado o críti-co Luiz Carlos Merten, deO Estado de S.Paulo.

Em conversa com o Jor-nal da ABI, Silvio Tendlerrelembrou detalhes de Jan-go: “Comecei a fazer o fil-me em 1981, sabendo queele jamais ficaria prontopara as eleições de 1982,como era a vontade de al-guns grupos políticos. Falei que ficariapronto, sabendo que não ficaria, apesardas pressões. Quando o filme, conformeprevisto, não ficou pronto em 1982, as pes-soas se dividiram: metade achou que eleprejudicaria a eleição de Brizola, metadeachou que ele ajudaria na eleição do Brizo-la. Mas eu não me preocupei com issoporque não faço filmes circunstanciais

Dilma. Só que quando eu a entrevisteipara o filme ela ainda não era sequer can-didata, quanto mais Presidente. No anoseguinte, quando lancei o documentáriosobre Tancredo Neves, vivi o mesmo pro-blema, mas do lado contrário: entrevisteiAécio Neves quando ele não era candida-

Justiça e Direitos Humanos que nos cede-ram imagens, documentos, fotos e grava-ções, tivemos que recorrer a diversos arqui-vos no exterior para suprir a dificuldadedos arquivos brasileiros”, relata Fontenel-le, que aproveita para fazer um desabafo:“Está cada vez mais difícil fazer documen-tário no Brasil. O preço cobrado por mi-nuto de imagem, em grande parte dosarquivos no Brasil, é exorbitante e com-pletamente fora da realidade para umprojeto de baixo orçamento. Isso é algoque precisa ser revisto”.

Após tantas revelações e novos fatosvindo à tona, o Jornal da ABI perguntoutanto a Fontenelle como a Tendler asopiniões pessoais de ambos em relação àmorte de João Goulart. Diz Fontenelle:“Depois de tudo que vi e pesquisei, paramim, a hipótese de assassinato faz muitomais sentido do que a de morte natural.Levantamos documentos que compro-vam que João Goulart estava marcado paramorrer. Agora, a verdadeira razão de suamorte é algo que só conseguiremos com-provar quando uma investigação séria forfeita por parte do Governo brasileiro.”

Tendler: Resistência causaria um banho de sanguepara este ou aquele momento político”.

Com o distanciamento histórico ne-cessário, Tendler afirma que Jango fezmuito bem em não resistir ao golpe e que‘a frota norte-americana estava nas cos-tas do Brasil, e isso hoje está provado. Seele tivesse resistido ao golpe haveria umbanho de sangue e o País seria dividido”.Tendler admite ter feito um filme parci-

al, favorável ao ex-Presiden-te. “Imparcialidade, no cine-ma, só com a câmera desli-gada. Fiz um filme, sim, fa-vorável ao Jango porque eusou favorável a ele, e comodocumentarista tenho estedireito. E mesmo assim,num debate acontecido noFestival de Gramado de1984, fui acusado de direi-tista porque defendi a idéiade Jango não ter resistidoao golpe”.

Para Tendler, existe umpatrulhamento que nunca termina enunca terminará. Muito mais recente-mente, em 2009, ele viu diminuir o espaçona mídia para seu documentário Utopiae Barbárie por conta de fatores políticos:“Muitas matérias sobre o filme ‘caíram’,muitas entrevistas minhas já agendadasforam desmarcadas quando viram que nofilme havia um depoimento da Presidente

tadura, vou brigar também com a família?E se o filme é lançado e imediatamente des-mentido pela família, o eu que faço? Deci-di, então, não abordar o assunto no filme”.

De qualquer forma, Dossiê Jango provamais uma vez que ainda há muito o quecavar. Por mais que setores mais conservado-res da sociedade defendam a tese de que épreciso colocar uma pedra sobre tudo isso,

novos fatos e novas informações incessan-temente trazidas à luz comprovam que essetipo de esquecimento não é possível, poisquanto mais se pesquisa mais pedras se en-contram pelo caminho. E várias destas pe-dras são lápides que precisam ser honradas.

Dossiê Jango foi o vencedor do prêmiode melhor filme pelo júri popular da 16ªedição da Mostra Tiradentes deste ano.

“Está cada vez mais difícil fazerdocumentário no Brasil. O preço

cobrado por minuto de imagem, emgrande parte dos arquivosno Brasil, é exorbitante.”

Tendler lembra como a possibilidade deassassinato, já aventada na época em que eledirigiu Jango, influenciou seu filme: “Con-vivi muito com Maria Teresa [a viúva], JoãoVicente e Denise Goulart [filhos], e quandosurgiu a denúncia de que ele poderia ter sidoassassinado, a própria família se fechou emcopas. Eles mesmos não queriam falar sobreisso. E eu pensei: já estou brigando com a di-

“Muitas matériassobre o filme

‘caíram’, muitasentrevistas minhas já

agendadas foramdesmarcadas

quando viram queno filme havia umdepoimento da

Presidente Dilma.”

to a nada, e quando o filmesaiu, fui criticado. Eu não façofilmes para o ano que vem. Eufaço filme para discutir a His-tória. Nunca vou colocar oudeixar de colocar uma pessoaque eu acho importante paracontar esta História, se ela écandidata ou não deste ou da-quele partido”.

Defensor do cinema como“a arte da militância”, Tend-ler lamenta a atual distribui-ção das salas de cinema peloPaís: “No Brasil de hoje, os ci-nemas se concentram em ape-nas 9% do território nacional,e 99% deles estão dentro deshopping centers. Quem en-tra num shopping não vai verfilme político. O público docinema nacional hoje está noscineclubes, nas periferias, naslajes, em locais em que os ór-gãos que medem a quantida-de de espectadores não têm

como aferir. O que está errado é o mode-lo de contabilizar o público: ele existe,mas só se mede quem vai aos shoppings.Se um filme é visto por 2 mil pessoas numfestival ou por 130 mil no You Tube, issoinfelizmente não é contabilizado em lu-gar nenhum”.

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No último dia 20 de março, foram re-lembrados os 60 anos de morte do escri-tor, jornalista, professor e político alago-ano Graciliano Ramos. Em sua vasta obrahá romances, contos, crônicas, históriasinfanto-juvenis e cartas que no decorrerdos anos foram publicados e republica-dos em várias oportunidades.

Alguns destes trabalhos foram adapta-dos para o cinema e para a televisão, commaior ou menor repercussão e sucesso.Entre os menos conhecidos estão Insônia(longa-metragem em episódios lançadoem 1980) e a A Terra dos Meninos Pelados,exibido pela Globo, em 2003 e 2004, soba forma de minissérie.

Mas a obra de Graciliano rendeu tam-bém três filmes que são verdadeiras obras-primas do nosso cinema. Três longas-me-tragens que invariavelmente ocupam as lis-tas dos melhores já feitos no Brasil: VidasSecas, São Bernardo e Memórias do Cárcere.Os três ganham agora uma caixa especial,com cópias restauradas em dvd, lançadapelo Instituto Moreira Salles com curado-ria de José Carlos Avellar.

Desta bem-vinda caixa de três filmeslamenta-se apenas a ausência de extrasnos dvds, lacuna parcialmente preenchi-da pelos livretos que acompanham a edi-ção. Em Vidas Secas há análises críticasde Jean Claude Bernardet, José CarlosAvellar e Júlio Bressane. Em São Bernardo,texto de José Carlos Avellar, e em Memó-rias do Cárcere há depoimentos de Nelson

Pereira dos Santos, e outra análise críticade Avellar.

VIDAS SECAS, NASCEUM FOTÓGRAFO

Vidas Secas foi o quarto título de Graci-liano a ser publicado. Em 1938, após a re-percussão positiva de Caetés (1933), SãoBernardo (1934) e Angústia (1936), a Edi-tora José Olympio, na época comandadapelo próprio José Olympio Pereira Filho,lançou nas livrarias esta contundentehistória de uma família fugindo da seca, nosertão nordestino. O livro só viraria filmeem 1963, pelas mãos de Nelson Pereira dosSantos, cineasta que, embora ainda jovemna ocasião (35 anos), já havia marcado seunome na história do cinema brasileiro comRio 40 Graus.

Vidas Secas é um marco do nosso cine-ma. Sua narrativa árida e crua, quase do-cumental ao mostrar os hábitos do serta-nejo, sem os vícios estilísticos do filmeamericano, ajudou a colocar o cinema bra-sileiro daquela época num patamar supe-rior diante da produção mundial. Já viví-amos os ares do Cinema Novo, que prega-va que os filmes deveriam denunciar ras-gadamente os nossos problemas sociais,sem escapismos. O próprio crítico e his-toriador francês Georges Sadoul chegoua afirmar que o cinema mais criativo dosanos 1960 foi o brasileiro. E certamenteVidas Secas muito contribuiu para isso.

Como faz parte da nossa própria cul-tura e jeito de ser, há um divertido com-ponente de improviso em todo este suces-

so. Conta-se que quando Nelson Pereirados Santos estava montando a equipepara fazer o filme, Glauber Rocha suge-riu que ele contratasse como diretor de fo-tografia um talentoso fotógrafo da revis-ta O Cruzeiro. Nelson achou estranha a su-gestão, pois fotografar para jornais e re-vistas é uma atividade bemdiferente de fotografar paracinema. Aliás, o próprio fo-tógrafo indicado tambémachou tudo muito insólito,mas diante da insistência deGlauber, Nelson aceitou. Oresultado é um dos mais bri-lhantes trabalhos de direçãode fotografia do cinema bra-sileiro, onde o branco explo-de em toda a sua intensida-de, chegando a incomodaros olhos da platéia, da mesma forma que osol nordestino ao exalar todo o seu insu-portável calor. Os tons em preto tornam-se mais silhuetados, o filme équase um alto-contraste, e a sensação da exasperante ari-dez dos personagens é transferida para o pú-blico. E assim começou a notável carreirade um jovem diretor de fotografia chama-do Luiz Carlos Barreto, que acabou assinan-do também a produção de Vidas Secas. E demuitos e muitos outros filmes mais, daí pordiante.

Não foi só na carreira cinematográfi-ca de Barreto que Vidas Secas deu o pon-tapé inicial. Ao chegar na locação do fil-me (Palmeira dos Índios, Alagoas, cidadeonde o próprio Graciliano Ramos havia

Caixa com filmes baseados na obra do escritor faz uma homenagem a Graciliano Ramos e destaca dois grandes diretores do cinema brasileiro.

POR CELSO SABADIN

LANÇAMENTO

sido prefeito, nos anos 1920), Nelson co-nheceu um habitante local, um senhor jácom seus 45 anos, bem falante, de raciocí-nio rápido, voz rouca e possante. Conhe-cedor de tudo no lugar, o homem rapida-mente se tornou um verdadeiro assisten-te de produção do cineasta, ajudando até

na contratação de figuran-tes. Nelson percebeu que otal senhor poderia fazer atéum papel no filme. E fez, ode Fazendeiro. E ali nasceuum astro: mesmo começan-do sua carreira tardiamen-te, Jofre Soares não paroumais de atuar, e colecionoumais de uma centena de tí-tulos, entre filmes, novelase minisséries, numa carrei-ra brilhante que só termi-

nou no ano de sua morte, 1996.Uma outra casualidade delineada pelo

conhecido poder de improvisação brasilei-ro marcou Vidas Secas: na verdade, o filmedeveria ter sido feito dois anos antes, masquando Nelson Pereira desembarcou nolocal escolhido para as filmagens, em plenosertão nordestino, a natureza tinha “estra-gado” tudo: as chuvas dos últimos dias havi-am varrido a aridez necessária ao filme, pin-tando de verde e cobrindo as locações combelas, inesperadas e indesejáveis folhas. Paranão perder a viagem, no sentido literal da ex-pressão, Nelson rapidamente escreveu umaoutra história, utilizou como atores os pró-prios habitantes do local, e fez um filme to-talmente diferente: Mandacaru Vermelho.

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Othon Bastos eIsabel Ribeiro emSão Bernardo, de

Leon Hirszman,um verdadeiro

tratado desociologiabrasileira.

Três vezesGraciliano

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37JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Impossível não conjecturar o que te-ria acontecido se o cineasta, como é obri-gatório nos dias de hoje, tivesse de se sub-meter à interminável burocracia impos-ta pela Agência Nacional de Cinema-An-cine e suas mastodônticas aprovações deprojeto. Talvez Nelson estivesse na caatin-ga até agora, aguardando algum carimbo.

Vidas Secas foi produzido pela HerbertRichers (que, contrariamente ao que mui-tos pensam, não era apenas uma empresade dublagens) com recursos do então Ban-co do Estado de Minas Gerais. Que virouBanco Nacional, que virou Unibanco, quevirou Itaú. O filme foi selecionado paraa Mostra Competitiva do Festival de Can-nes, e levou o prêmio da OrganisationCatholique Internationale du Cinéma etde l’Audiovisuel-OCIC, no mesmo evento.

SÃO BERNARDO,MICROCOSMO DO BRASIL

Quase dez anos após Vidas Secas, ou-tro livro de Graciliano Ramos, o segun-do, chega às telas: São Bernardo, editado em1934, ganha adaptação do cineasta cari-oca Leon Hirszman, que na época aindanão havia realizado seu trabalho mais fa-moso, Eles Não Usam Black-Tie. No papelprincipal, Othon Bastos, um dos atoresmais icônicos do Cinema Novo, interpre-ta Paulo Honório. Mais que um simplesprotagonista, Paulo Honório é a própriaHistória do Brasil compactada: homemde origem humilde, explorado, revolta-secontra o sistema para tentar ser alguémna vida. Em sua trajetória obsessiva, nãose importa em matar para alcançar seusobjetivos. Sua ambição o torna tão cegoque sequer percebe que, ao combater o sis-tema social totalitário, cria ele próprio oseu totalitarismo, tornando-se um lati-fundiário poderoso tão explorador quan-to os exploradores que o exploravam. Éum verdadeiro tratado de sociologia bra-sileira travestido em celulóide.

Em sua ganância, o personagem se mos-tra uma pessoa incapaz de amar, que nuncateve interesse por mulher (que é “difícil degovernar”, segundo ele) , e que vê num fi-lho nada além de um herdeiro para dar con-tinuidade ao seu nome e à sua fortuna.

O diretor Hirszman não esconde a ori-gem literária de seu filme, recorrendo vá-rias vezes ao recurso do texto narrado emoff. O problema é compensado pelos mag-níficos planos abertos, eminentementecinematográficos, e pela notável fotogra-fia de Eduardo Escorel. O elenco tem osolhos tristes de Isabel Ribeiro vivendo ainfeliz esposa de Honório, e participaçõesespeciais de Mário Lago e do já citado JofreSoares, revelado por Nelson Pereira dosSantos. A trilha é de Caetano Veloso.

São Bernardo ganhou o prêmio Inter-film no Festival de Berlim, e os troféusde Melhor Ator e Melhor Fotografia emGramado.

MEMÓRIAS DO CÁRCERE,DUAS DÉCADAS DE ESPERANelson Pereira dos Santos ainda nem

havia terminado as filmagens de Vida Se-cas, em 1963, e já esboçava o projeto parafilmar Memórias do Cárcere. Porém, com o

golpe militar de 1964, o cineasta decidiuarquivar a idéia, já que jamais a ditadurabrasileira permitiria a realização de umfilme sobre outra ditadura brasileira.

Foram necessárias duas décadas paraque o projeto se tornasse realidade, masa espera valeu a pena: com pouco mais detrês horas de duração, Memórias do Cárcereé um épico do cinema brasileiro. Óbvioque, numa primeira leitura, o “cárcere” aoqual Graciliano se refere no título são osanos que ele passou preso, vitimado pelototalitarismo da ditadura de Getúlio Var-gas, que mandou trancafiar o escritor semnem ao menos existir um processo formalcontra ele. No momento de sua detenção,Graciliano era, como se chamava na épo-ca, o “Diretor de Instrução” do Estado deAlagoas. Algo similar a um Secretário Es-tadual de Educação. Uma leitura menos

imediatista do livro e do filme revela, narealidade, que o “cárcere” do título é o pró-prio País, em seus diversos níveis de priva-ção de liberdade. Num primeiro momentoé retratado o quartel do Exército de Recife,um presídio mais “liberal”, se é que podemosusar esta expressão para uma cadeia. Mas,de qualquer forma, ali o escritor goza decerta mobilidade, com direito inclusive ausar o “banheiro dos oficiais”.

Passa-se depois para uma embarcaçãoque nos remete aos antigos navios negrei-ros, tão básicos e estruturais na formaçãodo povo brasileiro. Acontece neste navio,diga-se, uma das melhores cenas do filme,onde os ricos da primeira classe, sem ternoção do que acontece sob seus pés, seentretêm e aplaudem a música cantada comraiva pelos prisioneiros das galés. É o eter-no abismo sócio-cultural brasileiro cine-

matograficamente representado dentro deuma nau dos insensatos. É feita depois atransferência para um presídio mais “con-vencional”, à brasileira, onde as celas ficamsempre de portas abertas e as divisões depoder são difusas e confusas. Instala-se alium novo microcosmo do País, onde os mi-litares presos impõem sua suposta e alega-da disciplina superior aos demais. São todospresos, mas uns são mais presos que outros,neste pequeno Brasil penitencial.

No terço final do filme a prisão é a co-lônia penal de Ilha Grande, no Rio de Ja-neiro. Fisicamente aberta, mas psicologi-camente a mais cruel de todas. É tocanteo momento onde os presidiários, em con-junto, se mobilizam para tentar esconder,aos pedaços, o vasto manuscrito no qualGraciliano vem trabalhando há anos. Mes-mo porque todos os detentos querem “en-trar no livro”, fazer parte dele, sair do ano-nimato, nem que seja através de um par delinhas. O filme não conta, mas sabe-se queo esforço dos prisioneiros foi em vão: omanuscrito foi, sim, confiscado na cadeia,e Graciliano escreveu seu Memórias do Cár-cere de cabeça, anos mais tarde. Infelizmen-te, não chegou a ver sua obra publicada, jáque ela veio a público em 1953, algumassemanas após sua morte.

No elenco, Carlos Vereza dá um show deinterpretação no papel principal, enquan-to uma muito jovem Glória Pires, entãocom 20 anos, faz o papel de sua esposa.Destaques também para Jofre Soares (sem-pre ele), José Dumont, Nildo Parente, e Fá-bio Barreto, filho de Luiz Carlos Barreto,que mais tarde dirigiria O Quatrilho e ou-tros marcantes longas brasileiros.

Memórias do Cárcere ganhou o Prêmioda Crítica Internacional no Festival deCannes.

Indicado por Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto – na época, fotógrafo de O Cruzeiro – foi o responsável pela direção de fotografia de Vidas Secas, um marcodo cinema brasileiro. Abaixo, Carlos Vereza como Graciliano Ramos no épico Memórias do Cárcere. Ambos foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos.

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38 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Moebius, Loisel, François Bourgeon,Hugo Pratt, Enki Bilal, Jacques Tardi. Es-tes são alguns dos nomes de maior desta-que dos quadrinhos europeus e, emboratenham grande prestígio,suas obras nunca forampublicadas no Brasil como cuidado gráfico que elasmerecem e, muito menos,com a regularidade neces-sária. Porém, uma pequenaeditora mineira, fundadahá dois anos, começou amudar esse panorama inós-pito com bastante deter-minação e criatividade. ANemo iniciava sua jorna-da em julho de 2011lançando um álbumicônico que abriria a Coleção Moebius: Ar-zach, do festejado quadrinista francêsJean Giraud, falecido em março de 2012.Para os apreciadores de quadrinhos eraquase inacreditável ver uma edição tãobem cuidada como aquela: capa dura,formato grande (24x32cm), papel deótima qualidade, impressão primorosa,bem editada e com um texto de introdu-ção do próprio Moebius, nome com o qualGiraud assinava suas incríveis histórias defantasia e ficção-científica.

Isso não significa que outras editorasnão tenham lançado, vez por outra, qua-drinhos de qualidade em álbuns bem aca-bados. Mas a Nemo elevou esse trabalhoa outro nível de competência. Ao mesmotempo despertou uma certa desconfian-ça sobre os rumos de seus próximos pas-sos, já que manter essa qualidade nos lan-çamentos a seguir exigiria uma certa dosede empreendedorismo e coragem paraapostar num mercado tão instável.

Mas o lançamento seguinte logo cau-sou uma nova surpresa: a memorável edi-ção de Corto Maltese – A Juventude, deHugo Pratt, encheu os olhos até dos maisexigentes consumidores dessa arte. Alémde ter um alto nível de qualidade gráfica,o livro traz, em 25 páginas, prefácio quecontextualiza a juventude do persona-gem, escrito por Marco Steiner e ilustra-do com fotos magníficas de MarcoD’Anna. Mais um ponto para a pequenaNemo. E ela não parou de ganhar pontos.

Entre um ou outro lançamento um poucomais questionável, foram editadas obrasde fôlego como Era a Guerra de Trincheiras,de Jacques Tardi; A Trilogia Nikopol, um li-vrão que reuniu a futurista saga criada porEnki Bilal em um volume; Animal’Z, ou-

tra criação de Bilal; Peter Pan – Volume 1,o início da cultuada série de RégisLoisel; O Apanhador de Nuvens e ANarradora das Neves, dois álbunscom singelas histórias da duplafrancesa que assina como Béka(Bertrand Escaich e Caroline Ro-

que) e lindos desenhos de Marko. Corto Maltese retorna em dois ál-

buns com a mesma excelência do pri-meiro volume: As Helvéticas e Mu, aCidade Perdida. E a Coleção Moebius

também não parou. Foram lan-çados mais sete vo-lumes e, com isso, fi-

nalmente Jean Giraud teve uma grandeparte de suas aventuras oníricas de fan-tasia e ficção-científica lançada no Bra-sil. O Homem é Bom?, A Garagem Herméti-ca, As Férias do Major, O Homem do Cigurie outras obras se juntaram ao recém-lan-çado e muito aguardado álbum O Mundode Edena, que abre uma nova coleção detrês volumes na qual Moebius apresentaseu conhecido estilo artístico de formamais despojada.

Esse lançamento praticamente iniciaas comemorações de dois anos da Nemo,que em julho presenteou os leitores bra-sileiros com mais uma grande obra dosquadrinhos europeus: Os Companheiros do

Crepúsculo, de François Bourgeon. Lança-do há 30 anos na Europa, quando rapida-mente foi aclamado pelo público e crítica,o álbum é inédito no Brasil e chega depoisde longa espera num grande volume decapa dura e 240 páginas. A história se pas-sa na Idade Média, durante a Guerra dosCem Anos, e se completa em três livros.

Mas a Nemo não voltou os olhos so-mente para a Europa. Dos Estados Unidoschegaram O Incrível Cabeça de Parafuso eOutros Objetos Curiosos, com o desenho in-confundível de Mike Mignola; BollandStrips!, com o elegante traço do inglêsBrian Bolland, e Snoopy – A Felicidade é umCobertor Quentinho!, com os queridos per-sonagens criados por Charles M. Schulzque, pela primeira vez, ganharam umaedição com uma história única, adaptadade um novo especial de animação e tam-bém das tiras originais da série. Do Brasil,o destaque vai para três boas adaptaçõesda obra de Shakespeare – A Tempestade,Hamlet e Macbeth –, dos relançamentos de

POR FRANCISCO UCHA

Editora mineira completa dois anos ousando na forma de lançar hqs ao investirna qualidade gráfica e artística das obras publicadas, muitas delas inéditas no Brasil.

Os sonhos dapequena Nemo

QUADRINHOS

Estórias Gerais, e Fantasmagoriana & Ou-tros Contos Sombrios, ambos de WellingtonSrbek com desenhos primorosos do mes-tre Flávio Colin.

Houve tentativas também de resgataralguns clássicos argentinos, mas elas ain-da não deram frutos. “Há um clássicoargentino inédito no Brasil que eu gosta-ria muito de publicar, mas não conseguiquem me respondesse sobre os direitos.Ajudaria se as editoras de lá respondessema e-mails...”, lamenta Wellington Srbek,que além de autor é também o editor daNemo e o responsável pela linha de qua-lidade que a editora vem mantendo.

A Nemo faz parte do Grupo Autênti-ca, que surgiu em 1997 a partir da funda-ção da Autêntica Editora, especializadaem publicações acadêmicas. Em 2003 ogrupo aumentou seu campo de ação coma criação da Editora Gutemberg, buscan-do atingir o público de livros de interes-se geral, ficção, literatura fantástica e nosegmento jovem. O diretor-executivo daempresa, Arnaud Vin, afirma que traba-lhar no mercado de quadrinhos brasilei-ro tem sido “uma experiência de grandeaprendizagem e grande desafio”, e resu-me a proposta da jovem editora: “trazerautores e hqs de alta qualidade, em edi-ções à altura dessas obras e com preçosacessíveis e voltados a leitores de todasas idades. Paralelamente, buscamos au-xiliar da melhor forma possível as livra-rias e lojas especializadas em quadri-nhos, nossos grandes parceiros no traba-lho de tirar as histórias em quadrinhos doanonimato. Há ainda o objetivo concre-to de oferecer espaço e trabalho a novostalentos brasileiros, como a Nemo temfeito desde o início.”

Parece que os sonhos da pequenaNemo estão apenas começando.

Corto Maltese, deHugo Pratt (à

direita), e Linus e seuinseparável cobertor,de Charles M. Schulz,são dois protagonistasdos álbuns lançados

pela Nemo.

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39JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Jornal da ABI – Como surgiu e comofunciona a sua parceria com o GrupoEditorial Autêntica?

Wellington Srbek – Tudo começou emsetembro de 2010, quando a editora delivros infantis do grupo, Sônia Junquei-ra, entrou em contato comigo para con-versarmos a respeito de um livro sobrequadrinhos. Sônia só sabia de minha pro-dução acadêmica, mas contei a ela quetambém atuava como autor de quadri-nhos e enviei as páginas iniciais de meuroteiro desenhado da adaptação de DomCasmurro, de Machado de Assis. Sôniaentão repassou esse material para RejaneDias, a diretora do Grupo Autêntica.Acontece que a Rejane e o empresárioArnaud Vin, grande leitor de quadrinhoseuropeus, já conversavam há algum tem-po sobre publicar hqs pela Autêntica.Creio que fui “a pessoa certa na hora cer-ta”! E agora sou o editor de quadrinhos doGrupo Autêntica, atuando na coordena-ção editorial da Nemo, para qual propo-nho e discuto títulos e projetos, acompa-nho a produção das hqs nacionais e super-visiono a edição dos álbuns estrangeiros.

Jornal da ABI – Houve alguma resis-tência no lançamento de álbuns comum acabamento tão luxuoso?

Wellington Srbek – Tratamos os qua-drinhos com toda a dedicação que essaapaixonante arte merece. Não é à toa quecomeçamos a editora com o lema “paixãopelos quadrinhos”! Além disso, tambémacreditamos que os leitores de quadri-nhos merecem todo o respeito. Daí, op-tamos por trabalhar os álbuns europeuscom uma qualidade gráfica similar à dasedições originais, além de cuidarmos dastraduções e buscarmos preços acessí-veis. Estamos publicando verdadeirostesouros dos quadrinhos e queremos queo máximo de leitores possível descubraesses fantásticos trabalhos de autorescomo Moebius, Hugo Pratt, Enki Bilal eRégis Loisel.

Jornal da ABI – Como foi sua históriaprofissional?

Wellington Srbek – Como acontece coma maioria das pessoas que se tornamautoras de quadrinhos, desde pequeno eugostava de desenhar, tinha revistas porperto e adorava desenhos animados. Em1986, aos 11 anos, desenhei minha pri-meira hq e não parei mais. No início dosanos 1990, lancei meus primeiros fanzi-nes e, em 1996, minha primeira revista,a Solar. A partir daí, deixei o desenho umpouco de lado e me especializei no rotei-

Wellington Srbek – Basicamente, oponto de partida para os álbuns da Nemosão as edições francesas atuais publica-das pela Les Humanoïdes Associés.Embora na França elas não existam como título Coleção Moebius, seguimos o for-mato, a qualidade de impressão e a orga-nização dos volumes originais. Já emrelação às edições brasileiras anteriores,os volumes da Nemo como O Homem éBom? e A Garagem Hermética, por exem-plo, têm novas traduções, novas intro-duções do autor, um formato maior, capadura e impressão em papel de melhorqualidade. Sobretudo, nossa ColeçãoMoebius traz mais histórias que as edi-ções anteriores, incluindo hqs jamaispublicadas no Brasil, como a genial Ar-zach e os novos volumes lançados esteano: O Homem do Ciguri, Crônicas Metá-licas e Caos.

Na hora certaO editor Wellington Srbek fala ao Jornal da ABI sobre a

proposta da Nemo e comemora os resultados favoráveis.

ro e edição de quadrinhos. Vieram entãoa série Caliban, as revistas e álbuns espe-ciais, como Estórias Gerais e Fantasmago-riana, desenhados pelo saudoso mestreColin. Paralelamente, comecei a escre-ver críticas e textos sobre quadrinhospara jornais e tv aqui, em Belo Horizon-te. Em 1997, formei-me em História e, emseguida, produzi pesquisas de mestradoe doutorado em Educação sobre os qua-drinhos como forma de arte e linguagemeducativa. Trabalhei também com a pro-dução de quadrinhos institucionais ecartilhas educativas, além de produzirálbuns e textos para editoras.

Jornal da ABI – Alguns dos álbuns deMoebius têm muitas diferenças comrelação aos publicados anteriormen-te no Brasil. O que aconteceu no pro-cesso de edição?

Página do primeiro volume da saga Peter Pan,quadrinizada por Loisel (à esquerda) e dois trabalhos

de Moebius que marcaram época nos anos 1970: AGaragem Hermética (acima) e Arzach.

Wellington Srbek satisfeito com otrabalho realizado na Nemo: “nãopoderia cometer o mesmo erro queoutros cometeram ou cometem.”Acima, capa do álbum feito emparceria com Flavio Colin.

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40 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

Jornal da ABI – O Tenente Blueberryjamais teve uma atenção editorial dignado personagem no Brasil. O persona-gem de Jean Giraud está nos planos daeditora?

Wellington Srbek – Concordo que Blu-eberry é um quadrinho que merecia ummelhor tratamento no Brasil. Mas, nomomento, não está em nossos planos.Quem sabe, futuramente.

Jornal da ABI – Alguns álbuns de luxoque a Nemo edita estão sendo impres-sos fora do Brasil. Essa opção é só eco-nômica ou há outra razão?

Wellington Srbek – Apenas alguns denossos títulos foram impressos fora doPaís. Todos os volumes da Coleção Moebius,por exemplo, foram impressos no Brasil.O que foi impresso no exterior são osvolumes da série Corto Maltese e os ál-buns de Enki Bilal. Mas não por umaopção econômica, e sim porque a deten-tora dos direitos não libera a impressãodesses álbuns para outros países. O mes-mo caso com a série O Mundo de Edena, doMoebius: quem quiser editar tem queimprimir na China através da detentorados direitos, que é a Casterman. Ou seja,não foi por uma opção econômica, e simpor uma questão contratual que imprimi-mos alguns álbuns na China. Mas, de fato,imprimir A Trilogia Nikopol lá nos possi-bilitou lançar um livrão de 184 páginas,em cores, capa dura e ótimo papel, por umpreço bastante acessível. Assim, utiliza-mos a economia na impressão para redu-zir o preço de venda final. Mas, no últi-mo ano, com a alta do dólar, imprimir naChina não se tornou necessariamentemais barato. Então, o que é permitidoimprimir no Brasil, nós imprimimos aquimesmo, mantendo a qualidade das edi-ções originais.

Jornal da ABI – Você pode nos contarem poucas palavras como é o trabalhoe quais são as dificuldades de licencia-mento dos materiais estrangeiros?

Wellington Srbek – Resumidamente, éentrar em contato com a editora quedetenha os direitos sobre a obra, discutiras condições, assinar um contrato, pagarum adiantamento e receber o cd com osarquivos digitais. Mas nem tudo que eugostaria de publicar está disponível. Infe-lizmente, temos uma situação no merca-do brasileiro de uma editora que, por con-trato de exclusividade com as editorasoriginais, detém os direitos sobre diversasobras, não as publica, mas impede que

Uma viagem singelaA Narradora das Neves faz uma imersão afetiva e social

num dos ambientes mais inóspitos do planeta.

POR RITA BRAGA

Um dos fundamentos da antropo-logia é manter o olhar ativo como umpêndulo entre o exótico e o familiar. As-sim também, literatura e arte, de modogeral, têm suas raízes entre o subjetivoe o universal. Os quadrinhos de A Nar-radora das Neves – Uma Aventura noPaís Inuit (Nemo, 2013/ Dargaud, 2012)brinda o público com uma experiênciamais do que agradável.

Os autores, Béka e Marko – pseudô-nimos dos roteiristas franceses Ber-trand Escaich e Marc Armspach – jáforam premiados por outros trabalhoscom o mesmo cunho de imersão cultu-ral, e também lançaram recentementeO Apanhador de Nuvens – Uma Aventu-ra no País Dogon (Nemo, 2013).

Como mais um exemplo da comple-xidade desse universo tantas vezes su-bestimado por educadores e leitores, ANarradora das Neves pode desdobrar-seem inúmeras leituras que confrontamculturas em várias instâncias.

No contexto brasileiro é possívelque o primeiro estranhamento venhaa partir do termo “Inuit”. Entre nós, nouso relativamente cotidiano ou mesmono senso comum, ainda vigora a pala-vra “esquimó” para distinguir esse queé um dos povos aborígenes da região doCanadá, nas proximidades do Alasca.

Além do cuidadoso desenho do fran-cês Marko (pseudônimo de Marc Arms-pach) que já nos convida a uma viagemà parte, na qual as nuances e cores con-duzem o olhar sensível pela paisagem, anarrativa em si é uma imer-são em outro ethos, outraorganização política, afe-tiva e social. Vale lembrarque a história se passa num dos am-bientes mais inóspitos do planeta e aover como as personagens se resolvema cada passo ou palavra o leitor temalguns flashes de como a tecnolo-gia, as regras sociais e até a percep-ção dos eventos mais triviais assu-mem singularidade.

O enredo é simples e singelo.Após a experiência de ouvir um via-jante que trazia as histórias de outros

clãs, a jovem Buniq desafia seu avô – ovelho Unioq, que naquele momento sepreparava para a morte – a acompanhá-la em uma última aventura; ela tambémquer ser uma contadora de histórias, maspara isso precisará provar que já pode serresponsável pela transmissão dos sabe-res, dos acontecimentos e símbolos quemarcam essas comunidades tão distan-tes. Na leitura atenta descobrimos temasexistenciais sob a perspectiva dentrodaquele grupo: como nascer, como cres-cer, o que é se apaixonar e até o mistériode acreditar em algo ou de simplesmentereconhecer quais são os verdadeiros li-mites da vida naquele mundo de gelo.

Se é preciso apurar o olhar para enxer-gar a diversidade de tons e texturas daneve, o livro de Béka e Marko tambémnos oferece um ponto pouco conhecidode referência cultural que nos orienta elocaliza no mundo.

outras editoras as publiquem. Então, nemsempre é uma questão de querer publicaruma hq, mas muitas vezes de ela estar dis-ponível para publicação no Brasil.

Jornal da ABI – O nome “Nemo” nosremete a Júlio Verne e ao pequenosonhador de Winsor McCay. Era essaa intenção? Por falar em Little Nemoin Slumberland, há planos de publicarálbuns com este personagem?

Wellington Srbek – O nome Nemo reme-te antes de tudo a uma passagem da tradu-ção de A Odisséia para o latim, na qualUlisses engana o ciclope dizendo-lhe queseu nome é “Nemo”, que significa “nin-guém”. É daí que o personagem CapitãoNemo tirou seu nome, para manter-se in-cógnito. Mas, sim, o nome da editora veiomesmo dessas referências literárias e qua-drinísticas que você citou. E seria muitolegal publicar algum álbum com páginasde Little Nemo! Talvez, futuramente.

Jornal da ABI – Os editores brasilei-ros normalmente acham muito arris-cado lançar álbuns com essa qualidadecom que a Nemo está trabalhando.Como tem sido a receptividade dopúblico aos álbuns de luxo? Esses re-sultados estão dentro do esperadopela direção da Autêntica?

Wellington Srbek – Antes de ser editorde quadrinhos, sou leitor de quadrinhos.E como leitor, não gosto quando me apre-sentam edições em papel de qualidaderuim ou que não respeitem as obras ori-ginais. Então, na condição de editor daNemo eu não poderia cometer o mesmoerro que outros cometeram ou cometem.Acredito que o mercado brasileiro de qua-drinhos está maduro o bastante para edi-ções em formato álbum, e nossos leitoresmerecem material com a mesma apresen-tação gráfica que os leitores europeusrecebem. Agora, totalmente independen-te de mim, o Grupo Autêntica tem umahistória de busca pela qualidade gráfica,em belas edições de literatura e filosofia,por exemplo. Então, creio que os quadri-nhos encontraram no Grupo uma cultu-ra editorial que os está levando a sério etratando com o devido cuidado e carinho.Quanto à receptividade, está sendo óti-ma! Os leitores estão gostando e elogian-do muito nosso trabalho, e estamos jun-to com eles contribuindo para o retornodos quadrinhos europeus ao mercado bra-sileiro, e também para o estabelecimen-to de um espaço reservado aos quadrinhosnas livrarias.

QUADRINHOS OS SONHOS DA PEQUENA NEMO

A atriz que vive com o Bispo no álbum Bolland Strips!, do desenhista inglês Brian Bolland.

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Liberdade. Para informar, criar, comen-tar, criticar.

Trinta anos após a inauguração da RedeManchete, liberdade é a palavra mais fre-qüente nos depoimentos dados ao Jornalda ABI por alguns personagens que ajuda-ram a fazer a história da emissora. Histó-ria curta, tratando-se de uma rede de tele-visão: atolada em dívidas, deixou de exis-tir apenas 16 anos depois de começar aoperar, dando lugar à atual Rede TV!.

Com o slogan “Televisão de PrimeiraClasse”, a Manchete se propunha explici-tamente a ser uma alternativa para opúblico mais intelectualizado e de mai-or poder aquisitivo. Com esse objetivo,apostava em muita informação e em en-tretenimento de qualidade, com filmes,documentários, transmissões esportivase programas de entrevistas.

A partir do momento em que entrou noar, às 19h do dia 5 de junho de 1983, comuma mensagem de seu proprietário, Adol-pho Bloch, saudando as demais emissoras,a Manchete sempre enfatizou a cobertu-ra jornalística como pilar principal. Nãopor acaso, passaram por suas bancadasalguns dos maiores mestres do ramo noBrasil. E o que sobressai nos depoimentosé justamente a liberdade de expressão, umdos mandamentos do bom jornalismo.

Esse aspecto ganha ainda mais impor-tância quando se considera o momentohistórico que o Brasil atravessava noperíodo em que a Manchete surgiu, cres-ceu e se consolidou. Quando ela foi ao arpela primeira vez, o País ainda vivia sob

TELEVISÃO

No ano em que a Rede Manchete completaria 30 anos, personagens de sua história destacam a independência jornalística como um marco da emissora.

POR MÁRIO MOREIRA

A ascensão, agonia emorte da TV Manchete

a ditadura militar; seis anos e meio depois,no final de 1989, realizava suas primei-ras eleições livres para Presidente emquase 30 anos. Para não falar em outrosepisódios marcantes daquela década,como a Campanha das Diretas, em 1984,a eleição indireta e depois a morte deTancredo Neves, em 1985, e o Plano Cru-zado, no ano seguinte.

Nos programas e noticiários da rede,caracterizados pela sobriedade, a presen-ça de jornalistas do porte de Villas-BôasCorrêa, Carlos Chagas e Murilo MelloFilho nos comentários e entrevistas con-tribuía para dar credibilidade à Manchete.

Egresso da Globo – emissora que “abra-çou com força total a candidatura Collor”contra as de Lula e Leonel Brizola e que“era uma panela de pressão”, como defi-ne hoje –, o jornalista e apresentador Eli-akim Araújo atesta a diferença radical queele e a mulher, Leila Cordeiro, sua compa-nheira de bancada, encontraram ao che-gar à nova casa, onde estrearam em agos-to de 1989 para apresentar o Jornal daManchete, o principal da rede: “Nenhumapressão política, ao contrário, entrevista-mos todos os candidatos na bancada dotelejornal com liberdade total de formu-lar as perguntas. Se a direção tinha prefe-rência por algum candidato, isso jamaischegou ao nosso conhecimento”.

Liberdade que contava a favor“A troca de emissora se deu de manei-

ra suave, sem traumas, e com muita von-tade de fazer o que não podíamos nempensar em fazer na outra emissora”, con-tinua Eliakim.

A liberdade de opinião, porém, não serestringia ao jornalismo político. No espor-te, outra área de destaque na programaçãoda Manchete, a independência era total,garante Paulo Stein. Ele, que havia sidocontratado como repórter antes da inaugu-ração, foi em seguida efetivado como locu-tor e apresentador e assumiu a direção deesporte após a Olimpíada de Los Angeles,em 1984, coordenava os trabalhos em pro-gramas e transmissões que contavam, en-tre outros, com Márcio Guedes, ArmandoMarques e o temperamental João Saldanha.“Uma vez o próprio João falou no ar: ‘Aquina Manchete o Adolpho Bloch nuncamandou falar isso ou aquilo!’. Essa liberda-de contava muito a favor”, afirma Stein.

Mas Saldanha não era a única fera que onarrador tinha sob seu comando. Tambémnas transmissões de Carnaval, ele coorde-nava um time de comentaristas cuja prin-cipal estrela era Fernando Pamplona, o le-gendário carnavalesco que revolucionou osdesfiles de escolas de samba nos anos 1960ao usar a temática negra em enredos doSalgueiro – e, assim como o João Sem Medo,dono de forte personalidade.

“Meu jeito de tratar com o Pamplona eo Saldanha era de peito aberto. Eu dizia praeles: ‘Se vocês não me respeitarem, a coi-sa vai pro caralho’”, conta Stein. “Eu faziaum sinal de tesoura com a mão quandoprecisava cortar a palavra dos comentaris-tas. E eles me respeitavam, porque sabiamque depois eu devolvia a palavra. Com oJoão eu às vezes tinha que dar uma coto-velada discreta”, diverte-se.

“O nosso trabalho tinha liberdade ab-soluta”, confirma Pamplona. “Na abertu-

ra de todas as transmissões eu dizia que,assim como matéria assinada é responsa-bilidade de quem assina, nós respondíamospelas opiniões que seriam dadas no ar. OBloch dava total liberdade, nunca recebinenhuma restrição ou orientação. Isso eramuito importante. Nas transmissões daGlobo é ela que define tudo, o cara não temliberdade.”

Pamplona também se recorda das tesou-radas de Paulo Stein. “Falávamos quandoqueríamos. Nossa única restrição era quan-do o Paulo fazia um sinal com os dedospara entrar a publicidade ou o jornalismo.”

Além dos dois, a cobertura das escolasde samba na Manchete incluía nomes comoAlbino Pinheiro, José Carlos Rêgo e Ro-berto Barreira, os mais assíduos, além deoutros que tiveram participação eventu-al, como Haroldo Costa, Sérgio Cabral, aex-carnavalesca Maria Augusta, MestreMarçal e até João Saldanha. SegundoPaulo Stein, embora fossem todos gran-des conhecedores das escolas de samba,cada um tinha sua especialidade: “O JoséCarlos Rêgo, por exemplo, sabia quem eracada componente da escola, sobrinho docompositor tal ou descendente da Tia Fu-lana. Já o Roberto Barreira via uma baia-na a 50 metros de distância e logo identi-ficava que a roupa era de organdi. Eu nemsabia o que era isso”.

A cobertura de Carnaval da Manche-te foi importante para a emissora nãosomente pela qualidade das transmissões.O primeiro ano em que ela cobriu osdesfiles foi 1984, justamente na inaugu-ração do Sambódromo do Rio.

Segundo Paulo Stein, a Globo, que tra-dicionalmente cobria o evento, não con-cordou com o desdobramento do desfileem dois dias – até o ano anterior, era tudode uma tacada só, começando no inícioda noite de domingo e terminando porvolta do meio-dia de segunda-feira, numamaratona que só os aficcionados maisresistentes agüentavam. O então Gover-nador Leonel Brizola, inimigo da Globo,decidiu oferecer a transmissão dos desfi-les à Manchete.

“Tive que criar um estúdio às pressas”,lembra o diretor artístico da emissora naépoca, Maurício Sherman. “Mas deu cer-to e, a partir dali, a rede ficou com a ima-gem ligada ao Carnaval.”

Paulo Stein lembra que sua escolhapara ancorar a transmissão dos desfilesfoi feita por Sherman. “Ele argumentouque locutor de esporte é que tem impro-viso”, recorda. “Mas eu gostava mesmo,então fomos para a Avenida. Começamostransmitindo a primeira noite do Grupode Acesso, na sexta-feira. Só saí às duas datarde do dia seguinte. Aí o Adolpho mechamou, deu os parabéns e me ofereceuum colete para a minha mulher acompa-nhar o resto dos desfiles. A partir dali, elasempre estava na cabine com a gente.”

Não foi o único episódio curioso envol-vendo o locutor e o patrão. Quando se pre-parava para ir ao Equador para um torneiosul-americano de futebol júnior (atualsub-20), primeira cobertura esportivainternacional da Manchete, Stein foichamado à sala de Bloch. “Ele pediu, com

Equipe da Copa de 1990 da TVManchete: Oscar Ulisses,

Armando Marques, HalmaloSilva, Isabel Tanese, Osmar de

Oliveira, Alberto Léo, JoãoSaldanha, Adolpho Bloch, Paulo

Stein, Osmar Santos, Falcão,Mylena Ciribelli, Marcio Guedes.

GIL PIN

HEIR

O

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42 JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

aquele sotaque: ‘Por favor, cuida bem dosequipamentos, não deixa colocarem ascâmeras no chão... Você é o responsável’.Depois tirou do bolso 200 dólares e medeu: ‘É pra você comer uma puta’”, con-ta o narrador, dando risada. “Mas falei praele que não precisava.”

80 horas no arTambém para Stein, a transmissão do

Carnaval de 1984 foi fundamental natrajetória da Manchete, que ainda nãocompletara um ano no ar: a emissorapassou a ser mais conhecida em todo oBrasil. Segundo ele, para concorrer comos desfiles a Globo decidiu, em cima dahora, reprisar o especial de fim de ano deRoberto Carlos, mas não adiantou. “Ga-nhamos de 96 a 2.” Já Pamplona lembrade números um pouco menos acachapan-tes: “Às sete da manhã deu 77 a 7 para nós,aí o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobri-nho, o então todo-poderoso Vice-Presidente deOperações da Globo) me ligou dando osparabéns”, conta. “Na quarta-feira, rece-bemos cartas e mensagens de todo lado,desde presídios até convento de freiras,porque só nós ficávamos 80 horas direto

no ar.” A cobertura ao vivo do Sambódro-mo durou praticamente sem interrup-ções até o Carnaval de 1998.

Ainda no jornalismo, outro programaque marcou época na emissora foi o Cone-xão Internacional, apresentado por Rober-to D´Ávila. Ao entrevistar personalidadesda importância de Fidel Castro, Jorge LuísBorges, Woody Allen ou Marcello Mas-troiani, entre mais de 70 nomes, ele ajudoua consolidar a imagem de qualidade que adireção da Manchete pretendia.

O programa era produzido pela Interví-deo, uma associação de D´Ávila com Wal-ter Salles e Fernando Barbosa Lima. A re-percussão costumava ser grande, principal-mente entre estudantes de classe média eos chamados formadores de opinião.“Houve apenas uma entrevista que eu nãoconsegui colocar no ar: a do Presidenteargentino Raúl Alfonsín. Ele estava tãodesfocado, havia manifestações por todaa Argentina, ele caiu seis meses depois, quea entrevista não vingou. Ele não conseguiase concentrar”, lembra Roberto.

D’Ávila ainda apresentou outros progra-mas na Manchete, como Diálogo e Persona,também criações de Barbosa Lima. Sempre

com total liberdade na relação com a emis-sora, afirma. “Da parceria com a Intervídeonão temos nada para reclamar. Eles só viamo programa no ar, nunca houve nenhumtipo de censura ou algo assim.”

VariedadesPara Maurício Sherman, porém, a ên-

fase no jornalismo e a excessiva preocu-pação com uma “televisão de primeiraclasse” constituíam um problema. Ele afir-ma que, ao assumir a direção artística daemissora, dois meses após a inauguração,convenceu Adolpho Bloch a adotar umaprogramação “normal, voltada para a audi-ência, pois sem audiência você não conse-gue nada”.

“Essa coisa de classe A é ilusória, nuncafuncionou. A classe A, artística e cultural-mente falando, não existe no Brasil. É ín-fima e não vê tv. Nos meus mais de 60 anosde televisão, nunca fui apresentado a ela.”Para Sherman, que atualmente assina adireção-geral do humorístico Zorra Total, daGlobo, a linha que Adolpho Bloch buscavapara sua rede “ia levá-lo à bancarrota”.

“Consegui convencer o Adolpho a fa-zer uma televisão variada, com programas

infantis, filmes, humor e até novelas. Lan-cei a Xuxa como apresentadora (do Clubeda Criança), fiz programa feminino à tar-de, trouxe o Costinha e o Clodovil, lanceia Angélica (então com 11 anos) e uma pro-gramação jovem no fim da tarde”, relem-bra. E quanto ao Bar Academia? “Era umprograma sofisticadíssimo, mas com ospés na música popular”, relembra, comen-tando a atração musical que estabeleciaparalelos entre velhos mestres e grandesnomes da moderna mpb.

Na teledramaturgia, o marco inaugu-ral foi a minissérie Marquesa de Santos,com 40 capítulos, exibidos entre agostoe outubro de 1984. A protagonista era vi-vida por Maitê Proença, trazida da Glo-bo. Ela contracenava com Gracindo Jr.,que interpretava Dom Pedro I.

Mas as dificuldades inicialmente eramgrandes, conta Sherman. “A Manchete nãotinha nem estúdios, só os de jornalismo.Tive que improvisar o estúdio de fotogra-fia das revistas da casa como estúdio denovela. Também aluguei os da antiga Tupi,na Urca, que estavam abandonados, e fiztrês séries lá.” De acordo com ele, a situa-ção só melhorou quando Bloch decidiu

TELEVISÃO A ASCENSÃO, AGONIA E MORTE DA TV MANCHETE

João Saldanha, Alberto Léo, Paulo Stein e Márcio Guedes participam da bancada do programa Toque de Bola. Roberto D'Ávila entrevista Woody Allen para o Conexão Internacional. Abaixo à esquerda,Gracindo Júnior e Maitê Proença em sua primeira participação na Rede Manchete na minissérie Marquesa de Santos. À direita, Cristiana Oliveira na novela Pantanal, que marcou época na tv brasileira.

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Leila e eu deixamos a Globo em julhode 1989, um momento extremamentedelicado da vida nacional, pois o País sepreparava para escolher o primeiro Presi-dente pelo voto direto depois de períodode escuridão iniciado em 1964.

A Globo era uma panela de pressão, nemLula nem Brizola poderiam ser eleitos.Brizola porque prometia fechar a emisso-ra no primeiro dia de seu governo e Lulaporque era a ameaça de transformar oBrasil em uma república sindicalista. Co-vas foi a opção da família Marinho pormuito pouco tempo, pois logo logo elaabraçou com força total a candidaturaCollor, jovem descendente da oligarquiaalagoana e parceiro local no negócio decomunicação.

No início daquele ano, a direção de jor-nalismo da Globo, leia-se Armando No-gueira, convocou ao seu gabinete cada umdos sete apresentadores de rede, individu-almente, e a cada um recomendou quemantivesse em segredo absoluto o nomedo candidato em quem votaria. “De prefe-rência, nem a sua família deve saber emquem você vai votar”, dizia.

Essa aparente neutralidade, entretan-to, não combinava com a linha editorialdos telejornais da emissora. Quase diari-amente, no noticiário e nos editoriais deO Globo, geralmente aos sábados, os apre-sentadores eram obrigados a ler notíciase editoriais totalmente parciais, sobretu-do contra a administração Brizola no Es-

“Liberdade total para formular perguntas”ELIAKIM ARAÚJO

(DEPOIMENTO A MÁRIO MOREIRA)

tado do Rio. O noticiárioantibrizolista era tão mas-sacrante que até hoje aspessoas menos amadureci-das acham que ele é o culpa-do de todas as mazelas dacidade. Enquanto isso, umaedição especial do GloboRepórter, acho que em abril,enaltecia as virtudes do“caçador de marajás”.

Alguns apresentadores,incomodados com essa si-tuação, agendaram uma reu-nião dos sete com o objeti-vo de discutir uma pauta dereivindicações que seriaapresentada à Direção deJornalismo. A reunião foiem nossa casa e dela saiu umdocumento em que, entre aumento de sa-lários e melhores condições materiais detrabalho, encaixamos um pedido para queos editoriais fossem lidos por algum repre-sentante da Direção, para que se mantives-se incólume a neutralidade dos apresenta-dores, como queria a Direção.

Evidentemente, um questionamentodesse tipo na Globo só poderia dar no quedeu: uma retaliação geral, com mudançasnas bancadas dos telejornais. Toda essapressão nos levou à sala do Boni, onde pe-dimos diretamente a ele a rescisão de nos-sos contratos.

Assinamos a rescisão e entramos nocarro de seu Adolpho Bloch, um velho Mer-cedes de cor verde, que nos esperava naRua Lopes Quintas.

Certamente na Globo eu não teria essachance, sobretudo por minha conhecidapreferência brizolista, embora jamaisdeixei que isso interferisse em meu traba-lho jornalístico.

Na Manchete foram três anos e meiodeliciosos, com Mauro Costa à frente doJornalismo, e uma equipe onde poucasvezes encontrei tanta garra e vontade defazer a melhor tv. Haja vista o trabalhoque a emissora fazia nas transmissões doCarnaval. Até hoje encontro pessoas quesentem saudade da transmissão empol-gante da Manchete em contraste com atransmissão gelada da concorrente. Mui-tas das idéias da Manchete foram copiadaspela Globo, como o Botequim do Samba.

Hoje podemos afirmar que pegamos aépoca de ouro da Manchete. Na noite emque fomos apresentados à mídia, numafesta na sede do Automóvel Clube doBrasil, na Rua do Passeio, a emissora esta-va lançando sua primeira novela de gran-de impacto, Kananga do Japão. Depoisdela, veio seu maior sucesso, Pantanal,que fez tremer os alicerces da Globo eelevou a Manchete a números fantásticosno Ibope, ajudando o Jornal da Manchete,que a antecedia, a conquistar audiênciaspróximas de 20 pontos.

Mas como tudo que é bom dura pou-co, os Bloch, em dificuldades financeiras,acabaram transferindo o controle daemissora ao empresário paulista Hamil-ton Lucas de Oliveira. Para nós, foi o si-nal de que era hora de partir. Em janeirode 1993 já estávamos em São Paulo paraassumir o comando do Jornal do SBT.

transformar um depósito de papel no su-búrbio carioca de Água Grande em estúdiopermanente para as novelas.

Após o relativo sucesso de Marquesa deSantos, a Manchete investiu cada vez maisnessa área, com produções como DonaBeija (novamente protagonizada porMaitê Proença), Corpo Santo, Carmem,Kananga do Japão e o maior sucesso detodos, Pantanal, exibida em 1990.

“Não sei como não fomos presos!”Um certo improviso, porém, ainda era

perceptível em 1987. “Durante as grava-ções de Corpo Santo, fomos a Los Angelesgravar cenas externas e havia uma buro-cracia danada para poder filmar. Mas agente saía filmando sem nenhuma auto-rização. Não sei como não fomos presos!A gente fazia com tanta confiança queconseguia”, relata Maitê.

A atriz afirma que não se lembra exa-tamente do motivo de ter trocado a Glo-bo, onde já fizera alguns papéis importan-tes, pela Manchete. “O que deve ter meseduzido foi a história da Marquesa deSantos, o que é importante num País quenão tem memória. E também o fato deque se abria um novo mercado para todomundo, contra o monopólio da Globo.”

Segundo ela, as condições de trabalhono geral eram boas, embora os profissio-nais envolvidos ainda estivessem “tatean-do, aprendendo a fazer”. “A gente brinca-va dizendo que a Manchete era um restau-rante ótimo com uma editora e uma emis-sora em cima”, diz, referindo-se à sede daempresa na Rua do Russel, na Glória. “Mashavia compensações, uma relação maisdireta com os diretores e o empenho detodo mundo. Eu precisava de afetividadepara deixar aflorar a minha sensibilidade,e ali era um ambiente mais amigo.”

Maitê relembra detalhes da segundapassagem pela Manchete, na qual inter-pretou Dona Beija, papel que a consagroudefinitivamente como uma estrela. “Quemme chamou foi o Herval Rossano (dire-tor), que tinha me tratado muito mal naGlobo. Fui para lá perplexa, porque 70%da novela era em cima do meu persona-gem. Falei pro Herval: ‘Você não precisagostar de mim, mas precisa me tratarbem, ou não vai dar.’ Ele prometeu isso ecumpriu, viramos grandes amigos. Sóhouve uma vez em que eu estava gravan-do fazia várias horas e ele me cobrou umatraso quando eu estava me maquiando.Fiquei irritada e joguei os textos em cimado Herval, mas ele fingiu que fazia parte

da marcação da cena. Aí chorei por horase ele teve que me esperar.”

Em relação às cenas em que aparecianua – o que provocou alvoroço na épo-ca, pois era algo inédito em novelas –, aatriz conta que participava da edição. “Apreocupação era que todas essas cenasfossem editadas com a minha presença.Eu autorizava aquela edição, e assim iaao ar.”

Para Maitê, Dona Beija foi um momen-to decisivo em sua carreira. “No meu caso,a novela representou que dava para eu seratriz. Até então eu tinha dúvidas. Olha-va o meu trabalho e não sabia por que nãoconseguia fazer o que eu queria e imagi-nava. No papel de Dona Beija, senti quecomecei a acessar o lugar das minhasemoções pela primeira vez.”

Hoje ela atribui essa virada na carrei-ra ao ambiente que encontrou na Man-chete. “Na Globo eu me defendia muitono processo. Era ignorante do meu ofícioe de como agir nos corredores, não sabiadireito quem cumprimentar. Olhava oresultado e achava deplorável o que euestava fazendo. Na Manchete havia muitagente novata, aprendendo como eu, entãoera mais simples de começar a trabalharmeu universo mais sensível”, avalia. “Para

mim foi uma passagem inaugural. Só fiqueicomo atriz porque passei por lá.”

O ápice da teledramaturgia da emisso-ra, porém, só viria quatro anos depois,com Pantanal. A novela de Benedito RuyBarbosa, uma trama de realismo mágicoambientada entre fazendas, campos, ria-chos e praias fluviais, tinha no elenco ato-res já rodados, como Cláudio Marzo, JussaraFreire e Antônio Petrin, e jovens comoCristiana Oliveira, Marcos Winter e Mar-cos Palmeira. A direção-geral ficou a cargode Jayme Monjardim, que já ocupava adireção artística da rede e imprimiu à nove-la uma linguagem mais cinematográfica –o que foi considerado uma novidade –, comum ritmo mais lento na ação e longas toma-das aéreas do Pantanal Matogrossense.

“A pessoa que mais incentivou o novofoi Adolpho Bloch, um homem com visãode futuro com muita vontade do inéditoe das grandes mudanças. Pantanal tinhaisso, ousadia, e era nova, diferente e prin-cipalmente emocionante, a base de umaboa novela. Mas acho que a Manchete con-quistou pelo bom gosto, pela qualidade epelo jornalismo com muito conteúdo”,avalia hoje Monjardim.

Segundo ele, nessa época a estrutura detrabalho era “maravilhosa”. “Tive toda a li-

Na Manchete – onde estreamos em 21de agosto – encontramos um clima bas-tante diferente. Nenhuma pressão polí-tica, ao contrário, entrevistamos todos oscandidatos na bancada do telejornal comliberdade total de formular as perguntas.Se a direção tinha preferência por algumcandidato, isso jamais chegou ao nossoconhecimento.

Por isso a troca de emissora se deu demaneira suave, sem traumas, e com mui-ta vontade de fazer o que não podíamosnem pensar em fazer na outra emissora.Participei como representante da emisso-ra dos dois debates presidenciais, um naBandeirantes, em São Paulo, e outro noTeatro Manchete, no Rio, também comtotal liberdade de escolher as questões.

Leila Cordeiro e Eliakim Araújo em foto promocional quando foramcontratados para assumir a bancada do Jornal da Manchete.

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berdade do mundo. Levamos Benedito RuyBarbosa, vários atores, Alice-Maria no jor-nalismo e muitos artistas na linha de show.Foi um momento mágico em minha vida.”

A crisePara Paulo Stein, o que acabou derru-

bando a Manchete foram as dívidas. “Nãoposso afirmar com absoluta convicção. Oque sei é que o Adolpho fez um emprésti-mo de US$ 200 milhões para pôr a emisso-ra no ar e, com a maxidesvalorização docruzeiro, a dívida aumentou muito.”

A moeda brasileira foi desvalorizadaem 30% em fevereiro de 1983, menos dequatro meses antes de a emissora entrarno ar. Mas os investimentos – oficial-mente, foram US$ 52 milhões só na com-pra de equipamentos – já vinham sendofeitos desde que Adolpho Bloch recebeudo Governo Federal, em março de 1981,a concessão da extinta Rede Excelsior, emSão Paulo, e de quatro canais da Tupi (noRio, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza).

“O Adolpho tinha mania de perfeição.As revistas da Bloch, por exemplo, tinhamalta qualidade gráfica. Ele dizia que erapobre, não podia gastar duas vezes. Então,quando ganhou a concessão, comprou osmelhores equipamentos da época, inclu-sive as câmeras japonesas Ikegami, mui-to superiores às da Sony, que eram usadasentão. As câmeras tinham tripé comamortecedores a óleo, o que dava maisestabilidade para movimentá-las”, contaStein. “Uma vez convidei o Walter Clark(diretor da Globo entre 1965 e 1977 e que foio principal responsável por transformar aemissora na grande potência do setor), queera diretor do Flamengo na ocasião, paraparticipar de um programa, e ele pediupara chegar uma hora mais cedo só paraconhecer os equipamentos.”

Em maio de 1992, devendo o que nãotinha e pressionado pelo Governo Collor

Schröder é reeleito naFenaj com 2.524 votos

a pagar os emprésti-mos contraídos embancos federais, Adol-pho Bloch vendeu aManchete para o Gru-po IBF, de São Paulo,presidido pelo empre-sário Hamilton Lucasde Oliveira. A novadireção demitiu cen-tenas de funcionáriose transferiu a sede daemissora para a capi-tal paulista. A crise,porém, continuava.Em outubro daquele

ano, Paulo Stein foi escalado para ir aZurique narrar um confronto entre Bra-sil e Suíça pela Copa Davis de tênis. “Mepediram para pagar as despesas com meucartão de crédito, que depois me reembol-sariam. Quando chegou a fatura e fui co-brar, quiseram me dar o calote. Tive quesegurar o funcionário pelo colarinho paraele mandar vir o dinheiro.”

Em meio a atrasos de salários, greves defuncionários, interrupções da transmis-são e muitos boatos sobre o futuro da emis-sora, Adolpho Bloch conseguiu na Justiçarecuperar o controle da Rede Manchete emabril de 1993, sob a alegação de que o IBFnão honrara integralmente o pagamento.“Foi quando os funcionários decidiramtomar a Manchete. No dia seguinte, como sindicato na porta, aquela confusão toda,o Adolpho subiu num murinho e prome-teu a todo mundo pagar em 12 parcelas osnove meses de salários atrasados, juntocom os salários normais. Ele cumpriu, masa situação continuou se degradando”, re-lembra Stein.

Após um período de relativo reergui-mento, na segunda metade da década, noqual adotou uma linha de programaçãomais popular, a emissora entrou definiti-vamente em decadência e acabou vendi-da, em maio de 1999, ao empresário Amil-care Dallevo Jr.

Maurício Sherman, que ficou apenastrês anos na Manchete e nem chegou avivenciar de perto o auge da emissora, acre-dita que saiu “na hora certa”. “Eu tenhoum faro tremendo. Voltei para a Globo,onde não tinha que me ocupar dia e noi-te. O Adolpho consumia muito a gente.”Na sua avaliação, o que derrubou a Man-chete foram mesmo problemas adminis-trativos, e não artísticos. “Você percebequando a emissora entra no velório”, diz.“Apesar de tudo, a Manchete foi uma es-tação vitoriosa.”

TELEVISÃO A ASCENSÃO, AGONIA E MORTE DA TV MANCHETE

Com 2.524 votos, o jornalista CelsoSchröder foi reeleito Presidente da Fe-deração Nacional dos Jornalistas-Fenajem pleito realizado nos dias 16 a 18 dejulho e apurado no dia 22. A chapa deSchröder elegeu também os membros daComissão Nacional de Ética: SérgioMurilo de Andrade, Elizabeth Costa,Ângela Marinho, Beatriz Barbosa e Má-rio Messagi Jr.

Participaram do processo eleitoral4.365 jornalistas. A Chapa 2 “Luta Fe-naj” obteve 1.393 votos. Foram registra-dos 80 votos nulos, 107 votos em brancoe 261 votos nulos. De acordo com a Fe-naj, não foram realizadas eleições emMato Grosso e no Maranhão. A Comis-são Eleitoral Nacional, embora tenha va-lorizado o esforço de realização da elei-ção na Bahia e em Rondônia, não com-putou o resultado nesses dois Estados.No primeiro caso porque os critériospara definição dos sócios aptos foi dife-rente do definido no Regimento Eleito-ral da Fenaj; no segundo, porque a atanão foi enviada em tempo hábil.

A posse da nova Diretoria ocorrerádurante o XIX Encontro Nacional deJornalistas-Enjai, que será realizado noRio de Janeiro, de 22 a 25 de agosto.

Schröder, em nome da nova Direto-ria, agradeceu o empenho da categoriapara a realização do pleito:

“Muito obrigado pelo apoio de mi-lhares de jornalistas que participaramda mobilização para garantir esta elei-ção direta, que nos orgulha por ser aFenaj a única, tanto entre as federaçõesde trabalhadores brasileiros, como nasorganizações de jornalistas em nívelmundial, a radicalizar a democracia esubmeter-se à decisão direta da base. Oapoio da sociedade brasileira é funda-mental para que nestes momentos im-portantes e desafiadores à nossa joveme custosa democracia se defenda a ativi-dade jornalística como um patrimônioque não só custou vidas e liberdade dediversos jornalistas, mas também o sa-crifício de centenas de brasileiros.”

Nos sindicatosSimultaneamente à eleição da Fenaj,

sete sindicatos de jornalistas realizaramo pleito também para suas direções en-tre os dias 16 e 18 de julho. Em três de-les houve disputas envolvendo mais deuma chapa. A eleição para o Sindicatodos Jornalistas de Pernambuco teve aChapa 1, “Avançar Com Mobilização”,como vencedora, com 224 votos contra15 votos da Chapa 2, “Você Sabe Porquê”.No Ceará a Chapa 1, “Jornalistas Unidos,Sindicato Forte!”, venceu as eleições por197 votos. A Chapa 2, “Jornalistas: OSindicato Merece Mais”, obteve 160votos. Nos Sindicatos dos Jornalistas deGoiás, Bahia, Rio Grande do Sul e Ser-

gipe, a eleição foi com chapa única. EmSergipe haverá nova eleição nos próxi-mos dias, pois na votação ocorrida nodia 18 de julho o número de votantes foiinsuficiente para alcançar o quórum es-tatutário do Sindicato em caso de elei-ção com chapa única, 50% mais um.

No Rio de JaneiroPara o Sindicato dos Jornalistas do

Município do Rio de Janeiro a disputacontou com quatro chapas. A Chapa 2,“Sindicato É Pra Lutar – Oposição deVerdade”, foi a vencedora da eleição com143 votos dos 429 contabilizados. AChapa 1, ficou com 95 votos; a 4 com 94e a Chapa 3, obteve 90 votos.

A chapa vencedora, encabeçada porPaula Mairán, vai comandar a entidadeno triênio 2013-2016. A eleição aconte-ceu entre os dias 16 e 18 de julho, juntocom o pleito da Federação Nacional dosJornalistas-Fenaj. A apuração foi en-cerrada na madrugada de sexta-feira, 19de julho.

Os integrantes da futura diretoria doSindicato dos Jornalistas Profissionaisdo Município do Rio, que assume emagosto, são estes: Presidente: Paula Mai-rán; Vice-Presidente: Randolpho de Sou-za; Secretário-Geral: Cláudia de Abreu;1º Tesoureiro: Camila Marins; 2º Te-soureiro: Amélia Sabino; Conselho Fis-cal: Daniel Fonsêca, Cecília de Moraes,Fran Ribeiro; Delegados na Fenaj: Gize-le Martins e Vivian Virissimo; Suplen-tes: Regina Quintanilha, Raquel Júnia,José Olyntho Contente Neto, SamuelTosta, André Vieira; Comissão de Ética:Sylvia Moretzson, 169 votos; AlbertoJacob, 150 votos; Alvaro Britto, 116votos; Iara Cruz, 116 votos, Dante Gas-taldoni, 114 votos.

Foi esta a votação no Sindicato doRio: Chapa 1, Linha Direta Com Os Jor-nalistas, 95 votos; Chapa 2, Sindicato ÉPra Lutar, Oposição de Verdade, 143 vo-tos; Chapa 3, Sindicato De Todos ParaTodos, 90 votos; Chapa 4, Democracia eTransparência, 94 votos; nulo, 1; embranco, 6; total, 429 votos.

Eleição da Fenaj no RioChapa 1, Sou Jornalista, Sou Fenaj!, 143

votos; Chapa 2, Luta, Fenaj!, 184 votos;nulos, 31; em branco, 34; total, 392 votos.

Eleição da ComissãoNacional de Ética no Rio

Beth Costa, 171 votos; José Alves Pi-nheiro Júnior, 162 votos; Bia Barbosa, 107votos; Sérgio Murilo Andrade, 92 votos;Helena Palmquist, 73 votos; RomárioSchettino, 72 votos; Francisco Canindé,67 votos; Ângela Maria Marinho Perei-ra, 66 votos; Luiz de Azevedo Compia-ni Júnior, 52 votos; Mário Messagi Jú-nior, 43 votos.

ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHAPRESS

Maurício Shermanacredita que a Manchetefoi uma tv vitoriosa, mastinha uma reclamação:“Adolpho consumiamuito a gente.”

ELEIÇÃO

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45JORNAL DA ABI 392 • AGOSTO DE 2013

VIDAS

Poucas pessoas tiveram tanto acessoà Casa Branca quanto ela. A jornalistaHelen Thomas, que cobriu o centro dopoder dos Estados Unidos por quase cin-co décadas, morreu aos 92 anos, em seuapartamento em Washington, no dia 20de julho. A veterana ficou conhecida porsempre ocupar a primeira fila em coleti-vas de imprensa e fazer perguntas afia-das aos Presidentes norte-americanos.Ao longo de 49 anos de atividades, de-senvolveu a habilidade de fazer questi-onamentos contundentes aos dez titu-lares que por lá passaram – de John F. Ken-nedy, que se tornou chefe da nação em1961, a Barack Obama.

Quando do aniversário de 89 anos dajornalista, comemorado em 2009 (foto àesquerda), o atual Presidente até ofereceua ela cupcakes – numa referência ao ges-to de seu colega de Partido Democrata BillClinton, que lhe ofereceu um bolo em1997. Obama lamentou a morte de Helen,a quem chamou de ‘verdadeira pioneira’,que quebrou barreiras ‘para gerações demulheres no jornalismo’. “Ela nunca dei-xou de deixar presidentes, incluindo eu

Helen Thomas,a ‘fera’ da Casa Branca

Por quase cinco décadas ela ocupou a primeira fila de entrevistadores dos Presidentesnorte-americanos. Nada menos que dez deles enfrentaram suas perguntas desafiadoras.

POR PAULO CHICO

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Gerald Ford e Barack Obama (abaixo): Helen Thomas era íntima do poder.

mesmo, sob pressão”, afirmou Barack, elo-giando a jornalista por sua crença de quea democracia funciona melhor quando asperguntas mais difíceis são feitas.

Suas perguntas sempre afiadas e seutom duro a tornaram uma personalidadenão só no pequeno mundo dos jornalis-tas políticos, mas também para a audiên-cia das redes de televisão dos Estados Uni-dos. Entre Kennedy – o primeiro – e Oba-ma, cobriu os Governos de Lyndon John-son; Richard Nixon; Gerald Ford; JimmyCarter; Ronald Reagan, George Bush, BillClinton e George W. Bush. Helen Tho-mas, que trabalhou por 57 anos para aUnited Press International, não escon-dia sua opinião de que George W. Bush foio pior Presidente da História dos EstadosUnidos. Não por acaso, ele ficou três anossem responder à jornalista, que, numa per-gunta, o acusara de mentir sobre as reaiscausas que levaram o país a entrar naGuerra do Afeganistão. Em 2009, Helenevocou George, ao questionar Obama:“Quando você vai sair do Afeganistão?Por que continuamos matando e morren-do lá? Qual é sua desculpa realmente, enão fale esse ‘bushimo’ de ‘se nós nãoformos lá, eles virão para cá’”, disparou.

A longevidade, o pioneirismo e a ‘lín-gua afiada’ fizeram dela uma ‘lenda’ en-tre os jornalistas da capital dos EstadosUnidos. Helen Thomas teria alcançadoum estatuto mítico no jornalismo políti-

co norte-americano, não fosse o episódioque a afastou definitivamente da profis-são, em 2010, com quase 90 anos: a divul-gação de comentários anti-semitas, numaconversa filmada por um rabino e docu-mentarista que estava de visita à CasaBranca. Ela surgia a dizer que os judeus‘deviam pôr-se a andar da Palestina’ e ‘irpara um lugar a que pertençam, como aAlemanha, os Estados Unidos ou a Polô-nia’. Helen é filha de dois imigrantes li-baneses. A jornalista pediu desculpaspor suas afirmações e disse que aquelaspalavras não expressavam sua crença deque a paz no Oriente Médio só viriaquando todos os envolvidos tivessemrespeito e tolerância entre si. Não resis-tiu à controvérsia, que acabou por ditara sua aposentadoria.

Helen nasceu no dia 4 de agosto de1920, em Winchester, Kentucky, e foi cri-ada em Detroit. Era uma entre os dez fi-lhos de George e Mary Thomas. Seu paiera analfabeto e incentivou todos os fi-lhos a estudarem e irem para a universi-dade. Foi o que ela fez. Depois de sair dafaculdade, tornou-se garçonete, mas nãodurou, segundo ela, “porque não sorria obastante”. Logo depois, começou a traba-lhar no The Washington Daily News.

Durante sua carreira, escreveu diver-sos livros, principalmente sobre a cober-tura dos mandatos presidenciais – criti-cando, inclusive, a postura da imprensa,após os atentados de 11 de Setembro de2001, de ser muito leniente com os Pre-sidentes em relação a suas supostas açõescontra o terrorismo. Ela sempre foi decla-radamente contra a guerra no Iraque. Emuma entrevista ao New York Times, em2006, questionada sobre a diferença en-tre uma pergunta afiada e uma mal-edu-cada, ela simplesmente disse: “Eu nãoacho que existam perguntas mal-educa-das”. Helen, que completaria 93 anos em4 de agosto, morreu em seu apartamento,após prolongada doença.

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VIDAS

“Minha mãe olhou para os quatro can-tos. Não tinha nada na panela. Ela pegouos filhos e levou todos pra feira, pra gen-te tocar. E o pessoal começou a jogar mo-edinha. Ela foi minha primeira empresá-ria”. Assim, saudosamente sorridente, queDominguinhos conta ao jornalista Tárikde Souza, em entrevista no Canal Brasil,como foi seu “início de carreira”.

José Domingos de Morais nasceu nacidade de Garanhuns, Pernambuco, em12 de fevereiro de 1941. A origem era dasmais humildes, mas o berço era musical.Seu pai, Mestre Chicão, era conhecidosanfoneiro da região, além de afinadorde sanfona para outros tocadores. Aosseis anos, Dominguinhos já se viravabem no seu pequeno acordeom de oitobaixos. Junto com seus irmãos, Moraise Valdomiro, apresentava-se em feiras,festas e em portas de hotéis. Foi exata-mente na porta de um desses hotéis deGaranhuns (o Tavares Correia, que exis-te até hoje) que alguém chamou os me-ninos, dizendo que eles deveriam tocarpara uma pessoa muito importante quelá estava hospedada. E lá foram os garo-tos, mais o pai, fazer uma rápida apresen-tação para ninguém menos que LuísGonzaga, o próprio Rei do Baião, em car-ne, osso e chapéu de couro.

“Eu nem o conhecia”, confessou depoisDominguinhos. Mas o fato é que Gonza-gão se encantou com o grupo musical, e

ar Domingos Ambrósio, que fora mestre desanfona de Gonzaga, no tempo em que eleserviu o Exército, em Juiz de Fora.

Tocando em shows de Gonzaga e aospoucos se enturmando no meio artísticocarioca, Dominguinhos conheceu PedroSertanejo, que, assim como seu pai, tam-bém era afinador de sanfonas (e que maistarde viria a ser conhecido ainda como“pai de Osvaldinho”). Apaixonado pormúsica, Pedro monta em São Paulo umapequena gravadora, a Cantagalo, e convi-da Dominguinhos para gravar seu primei-ro disco: Fim de Festa, em 1964.

O primeiro grande sucesso veio em1967, com Lamento de Sertanejo (“Por serde lá, do sertão, lá do cerrado. Lá do inte-rior do mato, da caatinga do roçado....”),composição do próprio Neném... ou me-lhor, Dominguinhos. “Enquanto o selo eraCantagalo, era tudo uma maravilha”, dizDominguinhos em entrevista ao CanalBrasil. “Mas depois que venderam a gra-vadora para a CBS, estragaram tudo. Osdiscos vendiam muito e eu, que não soude briga, nunca vi um vintém. Nuncapagaram nada!”, diz, sem deixar de sorrir.

Também em 1967 conheceu LucineteFerreira (cantora de forró que usava onome artístico de Anastácia), com quemse casa e faz uma pareceria musical de 11anos de sucessos. Entre eles, Só Quero umXodó, canção quase “instantânea” na qualAnastácia cria a letra em poucos minutos,a partir de uma melodia que Domingui-nhos assobiava na rua.

“Foi ele que medeu a estrutura todapara eu vê-lo tocare aprender sobreo instrumento”,

reconhecia o meninode Garanhuns que

o Rei do Baiãoprotegeu.

POR CELSO SABADIN deu para Mestre Chicão uma quantia emdinheiro e um endereço para que eles fos-sem encontrá-lo, assim que possível, noRio de Janeiro. Parece cena de filme?Havia mais. Na saída do hotel, na mesmahora, no mesmo dia, uma senhora chama-da Almerinda, que havia presenciado opequeno show, perguntou a Mestre Chi-cão se os meninos estavam estudando.Não estavam. E ela, dona da Escola PráticaComercial de Olinda, arrumou todos ospreparativos para transferir a família paraRecife, onde os garotos poderiam ter umaeducação formal. E tocar, é claro. Alme-rinda financiou quatro anos de estudospara os irmãos, ao mesmo tempo em queempresariava pequenos shows para osgarotos. De calças pretas, jalecos brancose gravatinhas borboletas, lá foram os ir-mãos Morais, lançados ao estrelato como nome de Os Três Pingüins.

Porém, a tal da “educação formal” pro-metida não era exatamente o que se es-perava. Pelos mais diversos motivos, osirmãos invariavelmente apanhavam naescola. Diz Dominguinhos que Moraispulou o muro do internato e denunciouos maus tratos a um tal Dr. Arnaldo, figu-rão local. O caso virou sindicância, o queevidentemente enfureceu Almerinda. Eos pequenos “pingüins”, expulsos da esco-la, voltaram a Garanhuns, na mesmapenúria com que saíram.

Era hora então de pegar o velho ende-reço dado por Luís Gonzaga, quatro anosantes, e tentar a sorte no Rio de Janeiro.

Morais foi na frente, em 1953, e arrumouemprego numa tinturaria. Dominguinhos,que ainda não tinha este apelido, foi umano depois, de pau-de-arara, numa viagemque durou 11 dias. E conseguiu tambémtrabalho na mesma tinturaria do irmão. Opai também foi. Quando a família locali-zou a casa de Luís Gonzaga, que moravaem Nilópolis, o Rei do Baião reconheceua todos imediatamente. “Ele nem mandoua gente entrar, nem falou nada. Já foi logocolocando uma sanfona de 80 baixos nopescoço do pai, de presente”, recorda Do-minguinhos, que passou a acompanharGonzagão como sanfoneiro de seus shows.

“Eu não saía mais da casa de Luís Gon-zaga”, conta Dominguinhos no programaEnsaio, da TV Cultura. “Lá eu comia bem,bebia, e ainda ficava o dia inteiro vendo oMestre ensaiando e tocando. Foi ele quemme deu toda a estrutura para eu sobrevivertocando baião”, afirma. Certo dia, duran-te uma entrevista para a revista Radiolân-dia, Gonzagão apresentou Dominguinhosao repórter como sendo seu “herdeiro ar-tístico”. A matéria saiu com duas páginasde destaque para o menino, que desta for-ma estreava em grande estilo também namídia especializada.

Faltava, porém, mudar o apelido do ra-paz, a quem todos chamavam de “Neném”ou “Neném do Acordeom”. Luís Gonzaga,sempre ele, achava que “Neném” era coisade criança, e o “rebatizou” como Domingui-nhos, não apenas por causa do sobrenomeDomingos, como também para homenage-

O DISCÍPULO DE GONZAGÃO QUE SETORNOU UM GÊNIO DA SANFONA

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Mesmo vários anos após o término darelação, Dominguinhos sempre se man-teve eternamente grato a Anastácia, comquem compôs dezenas de canções, “mui-tas das quais só tocavam no Nordeste”,afirma. Dominguinhos conta que a par-ceria nasceu por acaso, num hotel emAracaju, durante uma turnê que fazia comGonzagão. À noite, distraído na porta dohotel, Dominguinhos dedilhou em suasanfona uma melodia qualquer. Anastá-cia, que de longe ouvia o dedilhado, apa-rece de repente com um pedaço de papeldizendo que havia escrito uma letra quecabia naquela música. Surge o sucessoMundo de Amor (“Eu de repente vi surgir nomeu caminho amor tão lindo assim e cheiode carinho”) e Dominguinhos, sem querer,descobre que também é compositor. Epassa a se apresentar em shows e forróstambém como sanfoneiro de Anastácia.

Porém, ainda nos anos 1960, “a sanfo-na cai em desgraça, ninguém mais quertocar”, conta o próprio Dominguinhos.Associado pela classe média à imagem dapobreza nordestina, o instrumento sai demoda, principalmente depois que a Jo-vem Guarda e o iê-iê-iê passam a utilizaro órgão. “Nem Luís Gonzaga mais sabia sequeria continuar tocando sanfona”, dizDominguinhos. Morais, o irmão maisvelho, começa a se dedicar ao piano, masNeném insiste: “Minha mão já está acos-tumada. Não vou agora aprender tudo denovo em outro instrumento”.

A teimosia valeu a pena, principalmen-te quando, no início dos anos 1970, ele ga-nha mais dois outros padrinhos importan-tes: cai nas graças de Caetano Veloso e Gil-berto Gil, que voltavam do exílio europeudispostos a mexer nas estruturas da músi-ca brasileira. O Tropicalismo incorpora asanfona de Dominguinhos e muda com-pletamente a imagem do instrumento, atéentão rotulado pelas elites como “coisa debaiano”. Ou de “paraíba”, se a elite fossecarioca. Neste sentido, tocar no show deGal Costa foi um divisor de águas para omúsico, que se torna parceiro de Gil e vêsua carreira decolar novamente.

A contribuição musical de Domingui-nhos é bem maior do que as pessoas emgeral imaginam. Foi arranjador e exímiotocador de choros, frevos, sambas, tangose até Bossa Nova. Gravou mais de 50 dis-cos e compôs em parcerias que muitossequer imaginam, como Rita Lee (AnjoForasteiro) e Chico Buarque (Tantas Pala-vras). Ganhou inúmeros prêmios nacio-nais e internacionais do setor musical eaventurou-se até no cinema, onde foi“mestre de cerimônias” do ótimo docu-mentário O Milagre de Santa Luzia (quemapeou os diversos estilos de se tocarsanfona pelo Brasil). Ainda compôs atrilha sonora e participou como ator narefilmagem de O Cangaceiro.

A sanfona se calou no dia 23 de julhono Hospital Sírio Libanês, em São Paulo,quando Dominguinhos perdeu uma lutade seis anos contra um câncer de pulmão.

Uma vida dedicada a três paixões: amúsica clássica, a religião e o jornalismo.É o que se pode dizer em poucas palavrassobre a obra deixada pelo intelectual LuizPaulo Horta. Ocupante da cadeira 23 daAcademia Brasileira de Letras desde2008, Horta foi autor de obras sobremúsica clássica e teologia e dedicou maisde cinco décadas à carreira na imprensa.

Horta nasceu no Rio de Janeiro em 14de agosto de 1943, chegou a estudar Di-reito, mas abandonou o curso e, no iní-cio dos anos 1960, começou a colaborarcom o Correio da Manhã. Em 1964, passouao Jornal do Brasil, onde trabalhou por 26anos. No início dos anos 1990 trabalhouno jornal O Globo, onde por mais de duasdécadas foi editorialista e crítico demúsica clássica. Em seus artigos, refletiacom erudição e clareza sobre política,artes e religião.

Prestes a completar 70 anos, no dia 14de agosto, organizava a festa de seu ani-versário, mas o coração cortou seus pla-nos. Ele se dedicava à produção de umlivro sobre a transição promovida naIgreja por Francisco, em quem via umarara figura pública a inspirar “esperança,numa época em que as lideranças decep-cionam”. Sua obra mais recente, A Bíblia:Um Diário de Leitura, foi lançada em 2011pela Editora Zahar, como resultado demais de dez anos de pesquisas e debatesem um grupo de estudos que mantinhana própria casa. Também liderou um gru-po de estudos bíblicos no Centro Loyo-la da Puc-Rio, entre 2000 e 2001, e foimembro da Comissão Cultural da Arqui-diocese do Rio.

Como crítico musical, era generosonos elogios e construtivo nas críticas,num claro reflexo do seu temperamen-to sereno e amistoso. Acompanhava avida musical do Rio desde a década de1960, quando começou a escrever críti-cas para o Jornal do Brasil. A música bra-sileira, sobretudo a de Villa-Lobos, erasua grande paixão. Sobre ele, escreveuartigos e o livro Villa-Lobos: Uma Introdu-ção (Zahar), de 1987.

De 1985 a 1990, dirigiu a seção demúsica do Museu de Arte Moderna doRio e trouxe ao Brasil personalidadescomo o compositor alemão KarlheinzStockhausen. Antes disso, já havia pu-blicado, em 1983, Caderno de Música

(Zahar), uma coleção de suas crônicasmusicais, e, em 1984, “Dicionário deMúsica Zahar”, adaptação brasileira doDicionário Hamlyn inglês. Seu empe-nho em apresentar a música clássicacomo uma arte prazerosa e acessível eranotório. Detestava a expressão “músicaerudita”, que considerava pedante enociva. Preferia “música de concerto”ou, simplesmente, “música clássica”. Emsuas críticas, antes de abordar qualida-des ou defeitos das performances, cos-tumava gastar alguns parágrafos co-mentando as obras e compartilhandocom os leitores os sentimentos que elasproporcionam. Em 1994, Horta se tor-nou membro titular da Academia Brasi-leira de Música.

Luiz Paulo Horta,jornalista e músico

POR IGOR WALTZ

Amante das letras e da música clássica, Horta preparava afesta dos seus 70 anos, mas o coração pregou-lhe uma peça.

Luiz Paulo Horta foi o 150º acadêmi-co ligado à imprensa, reforçando a posi-ção do jornalismo como a profissão commais representantes na história da casa.E o primeiro a ter uma relação estreitacom o universo da música. No discursode posse da cadeira 23, que tem como pa-trono José de Alencar e foi ocupada an-tes por Jorge Amado e Zélia Gattai, des-creveu a ABL como “lugar de congraça-mento, de amor às letras, de dedicaçãoà nacionalidade através da língua”.

O corpo de Luiz Paulo Horta foi vela-do na sede da ABL no dia 3 de agosto esepultado no mausoléu da instituição noCemitério São João Batista. Ele era casa-do com a jornalista Ana Cristina Reis edeixa três filhos e seis netos.

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