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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA JOSEMARA AURÉLIO FÉLIX FERREIRA DIAS A FILOSOFIA DO JARDIM NATAL/RN 2016

JOSEMARA AURÉLIO FÉLIX FERREIRA DIAS - Biblioteca Digital de … · filósofos ilustres de Diogénes Laércio (1997), Escritos de filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

JOSEMARA AURÉLIO FÉLIX FERREIRA DIAS

A FILOSOFIA DO JARDIM

NATAL/RN

2016

JOSEMARA AURÉLIO FÉLIX FERREIRA DIAS

A FILOSOFIA DO JARDIM

Monografia apresentada ao Departamento

de Filosofia (DFIL) da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

como requisito parcial à obtenção do grau

de bacharel em filosofia.

Orientador: Markus Figueira da Silva

NATAL/RN

2016

A FILOSOFIA DO JARDIM

Monografia apresentada ao Departamento

de Filosofia (DFIL) da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

como requisito parcial à obtenção do grau

de bacharel em filosofia.

Aprovado em __/__/____

__________________________________________

Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da Silva

Departamento de Filosofia – UFRN

___________________________________________

1º Examinadora: Prof.ª Dr.ª Fernanda Machado de Bulhões

Departamento de Filosofia - UFRN

___________________________________________

2º Examinador: Prof.ª Dr.ª Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia

Departamento de Filosofia - UFRN

Natal/RN

2016

A Josefa Félix Ferreira

Markus Figueira da Silva

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Markus Figueira da Silva, pelos ensinamentos

transmitidos e por me ajudar a desenvolver esse trabalho.

Aos que iniciaram comigo a história na filosofia e que fizeram do convívio

acadêmico um meio agradável, harmonioso, cheio de companherismo, cumplicidade e

onde vi nascer a philia.

À minha mãe, a melhor pessoa que sempre me apoiou incondicionalmente e sempre

esteve ao meu lado.

À minha irmã pela irmandade, apoio, confiança, verdade e amor.

A meu pai que do seu jeito acreditou e me orientou a seguir os melhores caminhos.

Ao companheiro incansável de sonhos, lutas, arte e amor sem fim.

A Noemi Favassa, amiga querida que sempre me ajudou e sempre esteve presente

com palavras e em coração.

Aos amigos que me ajudaram a concluir essa etapa da vida e o apoio fundamental

que recebi.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Nunca se protele o filosofar quando

se é jovem, nem canse o fazê-lo

quando se é velho, pois que ninguém

é jamais pouco maduro nem

demasiado maduro para conquistar

a saúde da alma. E quem diz que a

hora de filosofar ainda não chegou

ou já passou assemelha-se ao que

diz que ainda não chegou ou já

passou a hora de ser feliz.

Epicuro de Samos

RESUMO

O objeto de estudo desse trabalho é o pensamento do mestre do jardim, filósofo do

período antigo, Epicuro de Samos, acerca do exercício ético para a prática da vida

feliz. Ética voltada para o estudo acerca do prazer como bem final. Seu modo de

reflexão se mantém atual a medida que investigamos sobre o foco principal que tem

como objetivo central o estudo acerca dos fenomenos da natureza e a physiología por

ele apresentada como o exercício prático para fundamentar sua ética em favor da

investigação da natureza e consequentemnte da vida feliz. O objetivo é mostrar qual

a finalidade do prazer epicureio e os meios necessários para alcançá-lo, para atingirr

o equilíbrio e manter a mente livre de medos e pertubações infelizes. Para tal,

precisaremos esclarecer os principais conceitos abordados por Epicuro afim de

elucidá-los, disso se faz necessário a explicação dos conceitos de logismós,

phrónesis, ataraxia e aponia como base para a compreensão de seu pensamento. Para

o levantamento de dados sobre o que pretende aqui ser esclarecido, utilizaremos os

principais textos dispóniveis e referências bibliográficas que possa clarear nossa

mente sobre o assunto já citado em questão.

Palavras-chave: Ética. Epicuro. Vida feliz. Filosofia.

ABSTRACT

The object of study in this work is the thought of the garden master, philosopher of the

ancient period, Epicurus of Samos, about the ethical exercise to practice a happy life.

Ethics focused on study of pleasure as the main purpose. His reflection mode remains

current as we investigate about the main focus of the study, based on analysis of natural

phenomenons and physiology, presented by him as the practical exercise to base his

ethics in favor of research on the nature and consequentemnte of a happy life. The

objective is to show the purpose of epicureio pleasure and the means to achieve it, find

balance and keep the mind free from unhappy thoughts, fears and disturbances. To do

this, we need to clarify the key concepts covered by Epicurus. In order to clarify them, it

is necessary to explain the concepts of logismos, phronesis, ataraxia and aponia as a

basis for understanding of his thought. For data collection about what is pretended here

to be clarified, we will use the main available texts and references about the subject

already mentioned in question.

Keywords: Ethics. Epicurus. Happy life. Philosophy.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10

1. CAPÍTULO I - A IMPORTÂNCIA DA PHYSIOLOGÍA PARA O EXERCÍCIO DA

ÉTICA ............................................................................................................................... 13

1.1. SOBRE A PHÝSIS ..................................................................................................... 13

2. CAPÍTULO II - OS ELEMENTOS CONCEITUAIS DEFINIDOS POR EPICURO

PARA A ÉTICA ................................................................................................................ 18

2.1. LOGISMÓS ................................................................................................................. 18

2.2. PHRÓNESIS ............................................................................................................... 19

2.3. ATARAXÍA .................................................................................................................. 21

2.4. APONÍA ...................................................................................................................... 23

3. CAPÍTULO III - A ÉTICA DE EPICURO COMO EXERCÍCIO PRÁTICO DA

VIDA FELIZ ..................................................................................................................... 26

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 37

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INTRODUÇÃO

Epicuro, nasceu em 341 a.C. em Samos e faleceu em 270 ou 271 a. C, ficou

conhecido como o mestre do jardim, o filósofo da antiguidade que comprou um jardim e

fez dele uma escola, diferentemente de uma escola tradicional, sua escola era ao ar livre

e Epicuro não fazia restrição de quem pudesse entrar lá, o filosofar é para todos e a

filosofia é o caminho para a prática da vida feliz.

Epicuro tinha como anseio uma ética voltada para a natureza, onde a importância

da physiología seria o meio para exercê-la. A sua doutrina tinha o desejo de que a vida

prática deveria ser a nossa preocupação máxima, e o contínuo exercício do filosofar nos

possibilitariam para uma vida feliz. Ao longo desse trabalho refletiremos e analisaremos

com calma sobre essas primeiras questões suscitadas.

O mestre do jardim tinha o desejo de que suas obras pudessem transformar ou

orientar a vida humana para uma existência mais simples, sábia e feliz. A natureza

como fonte de sabedoria transformaria a vida do homem que vive de acordo com ela e o

ideal é ainda, viver em harmonia, fazer amigos, viver em comunidade, se afastar da vida

pública e política a fim de evitar os males que assombram a alma.

A filosofia é o saber para a vida, não nega a felicidade humana e permite ao

homem sábio o equilíbrio para sua realização plena, esse equilíbrio é o prazer, e o

prazer é o bem, e o prazer como bem moderado é o essencial para a convivência e

felicidade harmônica. A harmonia, por sua vez, se dá pela relação entre homem e

mundo, o modo de viver conforme a natureza conduz à compreensão do que existe e à

sabedoria prática.

O estudo acerca do pensamento de Epicuro de Samos no que concerne à

tentativa de formular a direção ética de sentido de mundo torna válida sua leitura não

apenas para quem é da área de filosofia, ou estudante de ética, mas também para

curiosos e pensadores que levantam a questão de como é possível ser feliz.

Destarte, sua ética pode ser útil para verificar que nos é possível outro caminho,

à medida que estuda o modo de vida nos coloca diante a pergunta já questionada no

parágrafo anterior, como ser feliz em condições contrárias? Logo mais, examinaremos o

que é filosofia para Epicuro, qual é o caminho para a vida feliz e qual a noção de vida

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feliz, assunto esse que deu origem a pesquisa e é o tema central de estudo desse

trabalho.

Consequentemente interessante ou inovador para uns, mas debatido e muito

questionado e até deturpado por outros, o hedonismo, no qual enquadra a ética

epicurista, não é de modo algum, o hedonismo que busca excessivamente o prazer como

modo de vida, mas, sim, busca, sim o prazer como bem moderado, um hedonismo que

escolhe o tipo de prazer e entende que todo e qualquer prazer buscado demasiadamente

não trará a felicidade, estado esse aclamado por Epicuro e desejado por todos. O prazer

desmedido perturba a alma e causa dor ao corpo.

Então o pouco prazer é muito, ou ainda, o pouco é o essencial que se torna muito

por ser o que se precisa e o mais simples de se ter. A disposição do espírito deve ser

acompanhada da autonomia para conhecer a realidade e viver conforme a natureza. Essa

autonomia somente pode ser buscada pelo homem e somente ele é capaz de mudar e

transformar o meio em que vive, ou o modo que vive, porque se ilude por medo dos

deuses, por seguir opiniões vazias ou acreditar nos mitos, ou seja, o homem sofre por

ignorância.

Assim, seguiremos a linha da abordagem de pesquisa científica e processo

monográfico padrão que teve como base referências como Antologia de textos da col.

Os pensadores (1980), As luzes da Ética de João Quartim Moraes (1998), Epicuro:

Sabedoria e Jardim de Markus Figueira da Silva (2003), Vidas e Doutrinas dos

filósofos ilustres de Diogénes Laércio (1997), Escritos de filosofia IV – Introdução à

Ética Filosófica 1 de Lima Vaz (1999), entre outros citados na última página desse

trabalho.

Na tentativa de melhor expor as ideias aqui apresentadas, o trabalho é divido e

organizado em três capítulos, dessa maneira, o primeiro capítulo trata da importância da

physiología para o exercício da ética segundo Epicuro, como se funda a ética estudada

pelo viés da phýsis, qual o sentido de phýsis para Epicuro, consequentemente para a

filosofia e em que isso implica.

Teremos como base a leitura do livro, Epicuro: Sabedoria e Jardim, obra de

Markus Figueira da Silva, que é a leitura obrigatória e essencial para a elaboração desse

trabalho. Todas as referências citadas não só desse livro de Silva, mas de toda

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bibliografia usada, foram selecionadas na tentativa de tornar a leitura consistente e

suficientemente clara e explicativa.

No segundo capítulo a análise do trabalho será focada em esclarecer de maneira

clara e de modo descritivo, quais os elementos e conceitos definidos por Epicuro para

explicar como se dá seu pensamento dentro da ética e como eles são importantes para a

compreensão de sua filosofia e o meio para alcançar a vida feliz. No próximo parágrafo

serão explicitados os quatro conceitos chaves para compreender a filosofia epicurea.

Desta maneira o primeiro conceito a ser estudado no segundo capítulo é o de

logismós, termo definido como cálculo racional das ações que é preciso para atingir o

equilíbrio da alma. O Segundo conceito é o de phrónesis, que significa a sensatez

necessária para guiar o agir humano. O terceiro conceito é o de ataraxía, que significa

manter o equilíbrio e a imperturbabilidade da alma, meio a ser atingido a fim de

tranquilizar a mente. E por fim, o conceito é de aponia, ausência de dor no corpo.

O terceiro e último capítulo evidencia a ética de Epicuro como exercício prático

para alcançar a vida feliz, analisa quais os tipos de prazeres e, segundo ele, qual dos

prazeres deve ser seguido. Assim sendo, como texto primário temos o estudo do livro X

da Carta a Meneceu, obra de Diógenes Laércio e fundamental porque apresenta nas

primeiras páginas a abordagem ética epicureia sobre os meios para alcançar a vida feliz

(makarios zen). No desenvolvimento do trabalho esclareceremos quais expectativas

tinha Epicuro com a sua ética e quais os meios que ele apontou para chegar a ela.

Após o estudo interpretativo das cartas e da leitura de comentadores para a

elaboração desse trabalho, damos agora margem para que outras pessoas se interessem

pelo assunto e quem sabe um dia, queiram estudar a fundo o filósofo do jardim que

tanto almejava uma vida simples, sem regalias e luxos, mas com sabedoria, voltada para

a harmonia da natureza e do convívio entre amigos e da prática ética e feliz. A filosofia

epicureia permanece em aberto para dúvidas, indagações, contestações e porque não

para valiosos ensinamentos.

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CAPÍTULO I

1. A IMPORTÂNCIA DA PHYSIOLOGÍA PARA O EXERCÍCIO DA ÉTICA

1.1. SOBRE A PHÝSIS

A ética para Epicuro tem como ponto de partida o estudo acerca da phýsis. A busca

pela compreensão da natureza primeiramente se faz necessária, visto que a falta de

conhecimento da realidade afasta o homem da vida feliz e em contrapartida causa

temor em relação aos deuses e aguça o medo da morte. E se “a construção de um

pensamento filosófico tem um princípio, sendo este princípio a phýsis.” (SILVA, 2003 p.24.) é

desse princípio que investigaremos na busca pela compreensão acerca da natureza.

Primeiramente esclarecemos o significado do termo phýsis. Em seu livro Epicuro:

Sabedoria e Jardim, Silva diz: “Phýsis é, segundo a etimologia da palavra, o processo

de crescimento ou gênese de alguma coisa, e, neste sentido, Epicuro somente a utiliza

quando se refere aos corpos compostos e aos mundos. Num segundo sentido, phýsis é

princípio (arché), porque é átomos e vazio, e, num terceiro sentido, phýsis é o modo de

ser do todo ilimitado.” (SILVA, 2003, p. 25).

A realização do saber acerca da phýsis é a proposta para gerir a ação do homem

sábio, pois o conhecimento prático em busca da sabedoria possibilita que o homem

mantenha seu estado de equilíbrio e assim possa viver de acordo com a phýsis. Isso

implica exatamente a importância do conhecimento para exercer a ética. A busca do

prazer moderado é o bem comum a todos, o prazer como equilíbrio se dá na própria

compreensão do meio, da própria realidade que o cerca em conformidade com a

natureza.

Este pensador grego do final do século IV e inícios do século III a.C.,

que assentou as bases de pensamento sobre a compreensão da natureza

e sobre o exercício da sabedoria (...) Todo o seu esforço consistiu em

dotar o sábio da capacidade de viver de acordo com a natureza (katà

phýsin), isto é, com a natureza que o circunda e com a natureza que o

compõe. A este esforço realizado com o auxílio de diversas

compreensões existentes acerca da natureza, em sua época, continuou

a chamar philosophía, mas a definiu de maneira simples, porém rica

em especulações: é um saber para a vida (tehné tis perì tòn bíon).

(SILVA 2003, p.16).

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Desse modo, a philosophía tem primordialmente o poder de conduzir o homem

para uma vida melhor, para a eudaimonía (felicidade) que busca a sua própria natureza

a sua mais plena realização. Ao contrário do que se possa imaginar, a filosofia é

indispensável à prática ética, ela dá suporte ao homem sábio que consegue ter equilíbrio

e felicidade na vida prática social. O equilíbrio é o estado de ser que, através do estudo

dos fenômenos possibilita o bem estar físico e emocional do homem feliz regido pela

sabedoria.

Destarte, a importância do conhecimento da phýsis para Epicuro:

No exercício de compreensão da phýsis e dos modos como ela se

realiza, define-se a natureza do que ele mesmo chamou sabedoria, a

sagacidade perscrutadora da realidade que será para o homem o modo

de ser pleno, isto é, a realização plena da sua natureza. O caminho que

conduz da physiología, ou da compreensão da natureza das coisas e da

sua totalidade, até o exercício pleno de realização do homem (o seu

éthos) é o percurso do pensamento epicúreo. (SILVA 2003, p.16).

Destarte, o sophós é o que tem o principio da ação em si mesmo, o seu éthos está

ligado à tranquilidade da ação sábia em consequência do conhecimento que se adquire

ao estudar e viver de acordo com os fenômenos da natureza. O sophós, como a própria

realização da ação prática em si mesmo e como realização da vida plena e feliz, é

favorecido pelo equilíbrio da phýsis.

Visto dessa maneira, a importância da physiología para o exercício da ética,

Epicuro pensa o éthos como prática para a realização do homem feliz, ou melhor, a

felicidade que se busca é o maior bem, o prazer. Para tal, a liberdade é intrinsecamente

necessária para o cumprimento dessa vida plena e feliz, e que é a melhor maneira de

viver bem e conforme a natureza.

“Em suma Epicuro preconiza a volta ao início para traçar o caminho que o

conduza à sabedoria prática, ou ao cumprimento perfeito da natureza do indivíduo, pelo

reconhecimento do saber originário aqui entendido como (physiología).” (SILVA 2003,

p.26-27). A phýsis como princípio originário implica uma noção de equilíbrio que

envolve a relação do homem e mundo como exercício pleno e filosófico da sabedoria. É

então pelo conhecimento da phýsis que se pode garantir o maior bem e o equilíbrio do

homem com a natureza e seu modo de viver plenamente feliz em sua própria natureza

com a natureza, consequentemente para o bem-estar físico, psíquico e social.

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Por conseguinte,

O propósito consiste em compreender a natureza da psychè e o seu

modo de ser específico, em acordo com a natureza (tà katà phýsin) do

todo (...). Compreender a realidade (phýsis) é um “modo de ser” do

sophós, que se ocupa com as reflexões em torno do “modo de ser”

phýsis, seja no sentido universal, seja no sentido de realização íntima

do corpo-carne e do corpo-alma, simultaneamente. O éthos próprio do

sóphos-phronéo é também uma outra maneira de dizer a sua phýsis.

Portanto, a physiología e o éthos do sophós formam uma unidade que

confere sentido à filosofia enquanto “saber para a vida”. A

physiología tem em Epicuro uma finalidade ética, realizável apenas

mediante um modo e uma medida do conhecer. (SILVA 2003, p.43).

O saber acerca da realidade (a phýsis) possibilita a satisfação do prazer

moderado de que fala Epicuro. O equilíbrio da phýsis em seu todo, proporciona ao

homem a ataraxia, a ausência de perturbações na alma e a ausência de dor no corpo

(aponia). O exercício ético da sabedoria prática no pensamento de Epicuro é

impulsionado pela physiología, o estudo da natureza.

A vida feliz gerada pelo prazer moderado, só é possível pela compreensão de

que os desejos naturais e necessários para a vida boa é o viver conforme a natureza. “O

prazer é o bem, a expressão maior da tranquilidade, da liberdade e da felicidade. O

prazer traduz o bem-estar, ou o equilíbrio interno e externo do homem.” (SILVA, 2003,

p. 16).

Se o equilíbrio é o que tentamos alcançar de forma contínua, a prudência no agir

ético equilibrado está diretamente ligada à maneira como nos relacionamos e

entendemos os fenômenos da natureza. O equilíbrio que mantém a imperturbabilidade

da alma resulta na deliberação ética em prol do bem geral. E “a partir da compreensão

da phýsis se torna possível escolher o que lhe apraz e recusar o que lhe é naturalmente

desnecessário.” (SILVA, 2003, p. 18).

O homem para Epicuro dotado de autárkeia, ou seja, possuidor da razão

suficiente para agir por si mesmo e de acordo com a natureza consegue discernir sobre o

que é naturalmente necessário e natural a si mesmo, compreende que os desejos que são

fenômenos do corpo devem apenas ser moderados para conservar a vida. O modelo de

homem sábio caracteriza-se pelo seu éthos que é autárquico.

Sua ética se caracteriza, sobretudo, pela autárkeia, isto é, por uma

conduta na qual a ação fundada na compreensão da natureza supera a

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reação que tem por base o constante desgaste do indivíduo, que perdeu

o domínio de si e vive a impossibilidade de criar o seu modo de vida

segundo o que é natural e necessário. O afastamento do sophós em

relação à insensatez das normas e valores cultivados em sociedade é,

para Epicuro, o caminho para o exercício de um modo de vida

autárquico. (SILVA, 2003, p. 17-18).

A importância da physiología para o exercício da ética se dá antes de tudo pela

compreensão de si e do mundo, uma filosofia voltada para a prática, a fim de evitar uma

vida de excessos e sofrimento, um pensamento que visa à liberdade humana que é a

própria capacidade de se superar e livra-se dos medos que impossibilitam a vida feliz

(makários zén).

A autonomia de decidir sobre o que realmente necessita impulsiona o sábio a

realizar as melhores ações. Um estudo voltado a favor da natureza retorna ao que é

original e essencialmente necessário para a vida feliz. A conduta ética no autocontrole e

autossuficiência da ação que o indivíduo precisa ter mediante os valores cobrados na

comunidade voltadas ao jardim, local de reflexão e vivência comunitária natural, recusa

o modelo político, a fim de evitar os males que perturbam a alma e trazem malefícios ao

corpo.

Observa Vaz em seu livro Escritos de Filosofia IV que o “o jardim é a

alternativa epicuriana à pólis, ao Estado, e a vida política em geral”. (VAZ, 1999, p.

142). Desse modo, o conveniente nas relações entre os homens é o que convém à

comunidade, é o necessário à convivência mútua e o que sedimenta as relações na

comunidade que é a philia (amizade).

A finalidade da vida seria a felicidade oriunda do prazer moderado realizado

pelos desejos naturais e necessários comum a todo homem, uma ética voltada para a

realização da vida plena e feliz. Em contrapartida a autonomia e liberdade do sóphos de

viver conforme a realidade, sem a ilusão da vida inautêntica e enganadora de temer aos

deuses, sobre o medo da morte e das opiniões rasas que confundem a razão e geram

inquietude da alma.

Assim, o interesse da religião é cultivar o temor aos deuses, esse medo

generalizado afasta o homem de si, intranquiliza a alma, e o impossibilita de viver

conforme a natureza de sua real existência. Somente o conhecimento em favor da

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natureza pode resgatar o essencial e a filosofia como sabedoria é a fonte pura para a

eudaimonía, o que busca inicialmente qualquer homem. Logo:

A felicidade (eudaimonía) é o télos da filosofia enquanto modo de

vida. Todavia este télos não extrapola a ordem dos fenômenos que

caracterizam o agir humano, uma vez que ele se realiza como

exercício constante de um saber que confere sentido à própria vida

considerada sábia, ou bem-aventurada. Assim, o sentido da vida

projeta-se no exercício de viver segundo a compreensão que se possa

ter dos limites e das possibilidades de tal realização. A eudaimonía

mostrar-se-á na efetividade da vida, onde o poder de deliberação é o

mais precioso instrumento para torná-la sábia. (SILVA, 2003, p.98).

É preciso moderar os desejos e reconhecer os limites das possibilidades de

qualquer realização. É a partir disso que a phrónesis (sensatez) se torna indispensável

para o homem sábio agir eticamente e alcançar a vida feliz. O exercício pleno e

realizável da ética assentado no pilar da physiología está em agir conforme se faz

necessário o verdadeiro saber a cerca dos fenômenos do mundo e suas manifestações.

Destarte:

A ação do sábio no mundo deriva imediatamente da sua compreensão

do que constitui este mundo, de como ele se realiza, o que só se torna

possível, no exercício da physiología (....) Ser sábio é conduzir a todo

momento de modo autêntico e valoroso a própria vida. (SILVA, 2003,

p.98).

Por conseguinte, a filosofia exercida no jardim de Epicuro não anula a vida.

Pelo contrário, sua filosofia poderia nos possibilitar pensar como nos dias atuais o seu

modo de vida pode ser refletido para questionarmos se esses exageros e falsas ilusões a

respeito das crises existenciais, da falta de conhecimento de si e dos meios da natureza,

não são as fontes do sofrimento e desequilíbrio gerados pelo prazer desmedido que

resultam das opiniões vazias.

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CAPÍTULO II

2. OS ELEMENTOS CONCEITUAIS DEFINIDOS POR EPICURO PARA A

ÉTICA

2.1. LOGISMÓS

Logismós é um termo essencial na filosofia epicuréia que significa a capacidade

humana fundamental de raciocinar sobre o que quer que seja e em decorrência disso

possibilita o homem a manter o equilíbrio e tranquilizar a alma. Ou seja, logismós é o

fundamento necessário para o pensamento que impulsiona o agir filosófico da phrónesis

(sensatez) para o equilíbrio da vida feliz (makários zén), ou melhor, é o cálculo racional

que deverá anteceder a ação.

Ele é, portanto, o “motor” de toda e qualquer deliberação ou juízo que

o homem faz acerca da realidade que se lhe apresenta; e neste sentido

logismós e phrónesis pertecem a um mesmo âmbito, ou seja, aquele

do julgamento ou deliberação e da subseqüente ação. (SILVA, 2003

p.72.).

Logismós, como foi dito anteriormente, é a análise do modo de ser. Que tem

como capacidade o raciocínio e a reflexão acerca dos fundamentos necessários à

conduta humana, fundamento esse, que possibilita ao homem a tomada da decisão, do

deliberar sobre o que lhe afeta e todo o meio que o cerca. É um passo importante para

discernir sobre o que pode fazer mal e o que pode fazer bem.

Para manter uma postura íntegra, o sujeito deve preservar a dignidade e a

honestidade, é necessário que ele faça um cálculo sobre as escolhas e busque ser justo

em suas ideias, mas principalmente em sua ação. É necessário que o indivíduo seja

autônomo e haja sabiamente, para isso, é imprescindível que suas ações sejam regidas

com sabedoria e autonomia. O cálculo é indispensável na ponderação dos desejos e

sucessivamente para a tranquilidade da alma.

Se pensarmos a nossa condição, temos o prazer como essência, mas temos

também o poder de escolha. Pois estamos o tempo todo tendo que decidir sobre alguma

coisa. É justamente nessa tomada de decisão, na ânsia de selecionar o melhor que

muitas vezes o indivíduo se perde e escolhe o mal por ignorância. O indivíduo faz a

19

escolha errada pela falta de conhecimento sobre as suas verdadeiras necessidades. A

vida feliz depende da escolha a ser tomada.

Desse modo:

“todo prazer por ter uma natureza condizente conosco, é um bem, mas

nem por isso todo prazer deve ser escolhido, da mesma forma que

toda dor é um mal, mas nem por isso devemos fugir de toda dor por

sua própria natureza. Convém então discriminar todas essas coisas

com o cálculo daquilo que é útil e a ponderação daquilo que é

prejudicial, porque em certas circunstâncias o bem é um mal para nós

e o mal é um bem para nós.” (LAÊRTIOS, X, p. 313.).

O indivíduo deve fazer a sua escolha, após ter feito um cálculo racional e em

seguida ter ponderado os desejos. O logismós e a phrónesis se interligam, um não anula

a outro e ambos fazem parte do processo de escolha para a prática da vida feliz. Por sua

vez, temos a filosofia, ao buscar a verdade e ter amor à sabedoria se torna fundamental

para a saúde da alma, consequentemente para obter o prazer da vida feliz (makários

zén).

Assim, o saber para a vida consiste em ponderar sabiamente os desejos, e fazer

um cálculo para distinguir os tipos de desejos existentes e escolher o que Epicuro

denominou de desejos naturais e necessários, por preservarem a vida são os que

deveríamos escolher.

O segundo tipo de desejo, são os naturais e não necessários que são dispensáveis

a vida feliz e por último os desejos que não são naturais e nem necessários à vida, esses

por serem artificiais e darem a ilusão de uma vida feliz, são desejos que enganam e por

isso, deveriam ser seriamente evitados.

2.2. PHRÓNESIS

A noção de phrónesis é a maneira de agir conforme o modo de pensar, que atua

na busca de um esclarecimento e cuidado com o logismós no sentido de orientar a ação

natural do indivíduo rumo à conduta ética, prática, justa e feliz. A phrónesis é a

precaução, ela é a sensatez da conduta prática rumo à vida boa. Ou ainda, a busca da

compreensão de si e do meio ao redor que antecede a ação do sujeito.

20

“A phrónesis é, para Epicuro, o que dá ao homem a clareza necessária para

expor o sentido da sua ação no mundo, a partir da compreensão que tem de si mesmo e

da maneira mais conveniente do agir, sempre de acordo com a natureza (katá phýsin).”

(SILVA, 2003 p.72.) Pelo seu valor moral, a phrónesis denominada por Epicuro como

sensatez deveria anteceder qualquer decisão a ser tomada pelo indivíduo.

A filosofia não anula a phrónesis, ela faz parte da filosofia, visto que, é

imprescindível no exercício do filosofar que o sujeito seja sensato, que ele tenha cautela

na maneira como vai lidar com o que já foi dito anteriormente por outros pensadores, e

com o que ele pensa sobre o que leu e entendeu. Sábia é a própria filosofia, pura

sabedoria e essencial para a prática da vida feliz.

É ela, a phrónesis então a matriz da virtude. Que possibilita a reflexão da análise

do que seria bom e do que não seria bom para a vida boa, ou ainda, é ela que torna

possível o conhecimento sensato para não nos tornamos prisioneiros da ignorância. O

sensato age sabiamente para direcionar a ação sobre como ser feliz e manter a ataraxía,

ou seja, permanecer com a mente livre de perturbações na alma.

Diferentemente de uma teoria meramente especulativa, a phrónesis é sabedoria

prática no agir ético. Com sensatez podemos alcançar o prazer, mas não o prazer do

hedonismo vulgar, já que visa o prazer racional e moderado, ao invés do prazer

excessivo ou a satisfação de qualquer prazer como única maneira de viver. A sensatez

na escolha de qualquer realização é um meio de alcançar a vida feliz.

O prazer é sinônimo de vida feliz, pois é da vida feliz que obtemos prazer. Mas

não qualquer prazer. Porque quase sempre estamos tão insatisfeitos e infelizes? A

felicidade que tanto buscamos está atrelada a coisas que não visam verdadeiramente à

vida feliz? É o que parece, procuramos erroneamente a felicidade onde ela não se

encontra. Ao fazer um logismós, ou seja, o cálculo do que seria bom e do que não seria

bom para a vida. Infere-se então que a felicidade humana pode ser alcançada.

Destarte:

Administrar os desejos, para manter-se nos limites impostos pela

natureza — eis o caminho que conduz à serena felicidade. Atender

apenas os desejos naturais e ne-cessários significa introduzir na raiz

dos atos, na fonte das escolhas, uma sabedoria fundamentada na

prudência (phrónesis) e no cálculo ou medida dos prazeres, em

substituição à impulsividade instintiva. Esse controle racional da

afetividade coloca a existência humana em sintonia com a natureza

21

das coisas revelada pela física e impede que se siga na direção

apontada pelo desejo que não expressa uma necessidade natural, antes

constitui imposição do meio social em seu aparente progresso.

(PESSANHA, 2007, p.15).

É seguro afirmar que a vida feliz não provém da obtenção da riqueza, nem dos

altos cargos com enormes salários, nem da fama exacerbada e de nada que seja

adquirido em demasia. O excesso não traz felicidade, é antes de tudo vaidade e só causa

dor. Somente o natural e o necessário é o que precisamos para manter a impertubilidade

da alma e isso é o essencial para conservar uma vida equilibrada e feliz. A harmonia é a

simplicidade sábia, ou serenidade da alma.

2.3. ATARAXÍA (AUSÊNCIA DE PERTUBAÇÃO NA ALMA)

O prazer como fim último obtido na vida feliz deve ser moderado, visto que o

excesso traz malefício ao corpo e intranquiliza a alma. Em decorrência da moderação

dos desejos em busca de harmonia, temos a ataraxía. Para manter o equilíbrio os

desejos devem ser regrados. Ou seja, alcançamos a ataraxía quando regramos todo e

qualquer desejo e quando conhecemos a realidade que nos cerca e reconhecermos os

limites do conhecimento e de nossas próprias escolhas.

É preciso investigar os fenômenos da natureza a fim de entender e diferenciar

com clareza a realidade do mito. Distinguir a verdade em contraponto a invenção e

opinião humana. Pois, por exemplo, como explicita Epicuro na Carta a Meneceu, os

fenômenos observados a distância não podem ser parâmetro para designar a veracidade

de uma simples opinião. Acreditar indiscutivelmente em uma avaliação vã

consequentemente perturbará a alma e promoverá a infelicidade. E o que busca a

natureza humana é o contrário disso, busca-se o prazer como forma de vida feliz e evita-

se a dor.

Além disso, fenômenos naturais explicáveis não podem jamais ser comparados

com o poder da divindade, não devemos misturar as coisas, se existe Deus ele existe em

um espaço separado ao nosso e nada devemos temer em relação a isso. O medo

22

adquirido pela falta de conhecimento acerca dos fenômenos e dos deuses intranquiliza a

alma. O pensamento racional em busca da verdade ilumina a alma na escuridão.

Desprovida de conhecimento, a alma vira um turbilhão. O cálculo racional

(logismós) protege a alma de perturbações e o conhecimento acerca dos fenômenos é

fundamental para a ataraxía da alma. Por isso:

O mito deve ser excluído, e será excluído se nos apegamos

corretamente aos fenômenos e a partir destes procedermos por

indução à interpretação das coisas que não caem no âmbito dos

sentidos. (LAÊRTIOS, X, p.307)

A saúde da alma depende do exercício filosófico sobre a medição das ações e da

reflexão ponderada. A busca pelo equilibro contra os prejuízos causados pelos desejos

saciados em desmedida, como é, por exemplo, o sentimento de raiva excessiva. A

ponderação se faz necessária para que o impulso raivoso não te domine, ou melhor, para

que você não seja dominado pela raiva. É imprescindível agir racionalmente e com

sabedoria. Só assim evitará algum dano ao corpo, e principalmente ausentará a alma de

perturbações imediatas e também futuras.

Para Epicuro o prazer é o nosso bem supremo, mas o prazer deve ser gozado

equilibradamente, e a filosofia deve favorecer a busca desse equilíbrio, ou seja, o

conhecimento filosófico atrelado à prática da ataraxía pode ajudar a equilibrar a vida. O

prazer entendido como ausência de dor e de perturbações na alma, está associado ao que

é bem, e o mal por sua vez, associa-se com a dor. O prazer deve ser mensurado, nunca à

custa de excessos, jamais em demasia.

Mas então que paixão e que prazer é esse que causa mal e provoca dor?

Segundo Silva em seu livro Epicuro: Sabedoria e Jardim é preciso antes de qualquer

coisa:

Esclarecer que paixões são essas de que nos fala Epicuro, pois a

ataraxia não supõe a ausência total de paixões (ou afecções – páthe),

mas apenas daquelas que causam algum tipo de perturbação à alma.

Para Epicuro, existem afecções que são constitutivas e provocam na

alma o que ele chamou de prazeres constitutivos, ou prazeres em

repouso (hedonai katastematikai). Tais afecções coincidem com a

satisfação dos desejos naturais e necessários, ou dos desejos de acordo

com a natureza (kata phýsin) e resultam da ação deliberativa do

sophós-phronéo. (SILVA, 2003 p. 80).

23

Somente os desejos que nascem naturalmente e são necessários para a vida

humana possibilitam ao homem a satisfação da alma e do corpo sem surtir dano maior a

sua vida. A paixão e o prazer defendido por Epicuro é aquele em que antes medido e

analisado ou bem refletido pode oferecer ao indivíduo uma vida boa, a conservação da

vida requer cuidados, e a ataraxía (ausência de perturbações na alma) é parte

fundamental nesse processo.

Dessa forma, mesmo que a ataraxía possa soar imperativa demais ao parecer de

imediato que ela venha para resolver todos os problemas e infortúnios que muitas vezes

acontecem à vida e que nada podemos fazer para mudá-lo.

Antes de tudo, a ataraxía é um meio pelo qual se possa viver mais e melhor,

porque o essencial é tudo o que o indivíduo precisa para conservar a saúde da alma e

compreender que o equilíbrio advém dos desejos moderados. Se entendermos nossas

reais necessidades nós conseguiremos estar preparados também para lidar com um mal

futuro, suportar ou lidar até mesmo com a dor.

2.4. APONÍA (AUSÊNCIA DE DOR)

Assim sendo, a ataraxía como ausência de perturbação na alma e aponía como

sendo a ausência de dor no corpo são os caminhos necessários para viver de acordo com

a natureza (physiología), sem excessos e com tranquilidade, que é tudo que a alma

precisa para estar em paz. Mediar os desejos é evitar malefícios a alma e ao corpo.

Podemos evitar dor no corpo (aponía) quando não nos entregamos violentamente às

paixões e ao gozo exacerbado de querer tudo como se não houvesse amanhã.

“A ausência de perturbação e de uma grande dor são prazeres estáveis; por seu

turno, o gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua vivacidade.” (EPICURO

1980, p.17). A ataraxía e a aponía por serem estáveis em sua realização tendem a durar

e restaurar o equilíbrio, gerando a harmonia necessária para o autocontrole de uma vida

feliz. O sofrimento é provocado pelo excesso da vontade e da ação impulsionadora para

obter isso ou aquilo. A aponía não oscila para o que provavelmente causaria dor, pelo

contrário, ela é a própria ausência da dor.

24

A respeito do que foi dito anteriormente, é possível entender que a tranquilidade

da alma e a saúde do corpo servem então para combater o sofrimento humano, isto é

atenuar os males da vida. A aponía age como um remédio útil, e o conhecimento

contribui para livrar a alma dos medos, pois o indivíduo que reflete e pondera sobre a

existência e o meio em que está inserido, não se torna fácil prisioneiro das suas

escolhas.

O excesso que traz malefício a humanidade e principalmente para a condição da

vida feliz, ocasiona circunstancialmente a própria infelicidade. Eis a questão, como

proceder para evitar o mal e alcançar a felicidade? Parece-me que a pergunta de ontem

continua sendo a pergunta de hoje. A filosofia de epicuro continua atual para se pensar a

realidade contemporânea.

Segundo Silva:

“Se nos ativermos à noção capital epicúrea de que o prazer (hè

hedonè) é o bem primordial, tornar-se-á possível distinguir entre os

valores que importam à consecução de uma vida aprazível e aqueles

que a perturbam. Tal distinção importa sobretudo ao sábio para a

realização de cada uma das ações que caracterizam o seu modo de

ser.” (SILVA, 2003, p. 78).

O antídoto para viver em harmonia e equilíbrio é o uso necessário do lógos

(razão), portanto, não temer os deuses, não temer a morte, ter amigos e ser amigo, viver

com o essencial e ser autossuficiente, analisar e moderar os desejos seriam o remédio

para uma vida feliz. Epicuro teria encontrado nessas máximas o remédio para a

felicidade, o princípio da sabedoria que falta para reger as nossas ações.

O lógos é o phármacon da alma. Ele nutre, purga , apascenta. É o

elemento que promove o equilíbrio e conduz a ataraxía. Epicuro

confere ao homem sensato – ao sóphos-phronéo – a autarkeía

necessária a uma conduta equilibrada. O sábio tem em si o princípio

da ação e da deliberação, e age impulsionado pelo lógos em direção à

satisfação do seu desejo (epithumía) necessária ao seu bem-estar a um

só tempo físico e psíquico (eustatheía kaì ataraxía). A vida sábia é o

modo de realização da ataraxía, ela é a máxima expressão da

phrónesis, enquanto sabedoria de agir a partir de si mesmo, o que é,

para Epicuro, o bem mais precioso da filosofia. (SILVA, 2003, p.81).

Através do lógos (razão humana) que o indivíduo pode pensar a respeito dessas

questões. À medida que o sujeito reflete acerca de seu pensamento que tem como

25

propósito base, à libertação dos desejos, da ignorância, do medo dos fenômenos naturais

e da própria morte para alcançar a vida feliz. A ética epicuréa visa à sensatez e exige o

mínimo de bom senso do indivíduo à medida que ele sugere a reflexão racional e a

busca do conhecimento da natureza e de si.

26

CAPÍTULO III

3. A ÉTICA DE EPICURO COMO EXERCÍCIO PRÁTICO DA VIDA

FELIZ

Segundo Epicuro, o pensamento é a continuidade das relações sensíveis

produzido na alma. Conhecemos através da percepção sensível direta porque a sensação

estimula o pensamento. “Epicuros afirma que os critérios da verdade são as sensações,

as antecipações e os sentimentos, acrescentando a estes a apreensão direta das

apresentações do pensamento.” (LAÊRTIOS, X, p.289-290). A veracidade vem da

assimilação primeira da compreensão sensível. A capacidade de resolver alguma coisa

pelo raciocínio, dependente da sensação causada em nós.

O que seria comum a todos os humanos? O prazer e a dor, o primeiro é relativo à

natureza e o segundo, contrário a ela. Todos nós já sentimentos ou vamos sentir prazer e

dor em algum momento da vida. Ambos são relativos à natureza porque nasce

naturalmente no indivíduo. É imanente da consequência de estar vivo. Buscamos o

prazer e contrariamente a ele rejeitamos à dor.

A filosofia de Epicuro não afirma certeza das coisas e nem indica um caminho

dado e acabado, mas mostra caminhos, a via que o indivíduo poderia seguir na busca da

vida feliz. Temos primeiramente a relação com o mundo sensível e só posteriormente

que advém o conhecimento.

Toda relação de conhecimento que temos é o critério da sensação, e “a alma

desempenha o papel mais importante na sensação” (LAÉRTIOS, X, p.298) A melhor

prática de realizar a sensação é o prazer, consequentemente o corpo seria então o

veículo do conhecimento.

Epicuro distingue dois tipos de prazeres, os do corpo e o da alma. Explicita que a

dor da alma é pior que a do corpo, visto que a dor no corpo por mais que perdure um dia

vai passar, mas a da alma pode persistir por uma vida inteira. Adiante “a carne é

transformada pelo sofrimento apenas no presente (enquanto a alma, além de sofrer pelo

presente, sofre ainda pelo passado e futuro.)” (LAÊRTIOS, X, p.314).

27

A ética epicuréa visa favorecer a natureza humana e o prazer deve ser à medida

que possibilite ao homem o sentir-se saciado, a satisfação essencial torna-se natural e

necessária. O prazer não deve jamais ser entendido e nem buscado como uma obsessão

que tem que ser consumida a qualquer preço.

O sábio não precisa de nada em demasia para se sentir satisfeito, ele sabe que o

importante é o indispensável que só advém do prazer moderado e nunca do excesso.

Entretanto, “nenhum prazer é um mal por si mesmo, porém aquilo que produz alguns

prazeres traz perturbações muitas vezes maiores que os próprios prazeres” (VIII, p.

316.).

O prazer é um bem que se busca para ser feliz. O prazer excessivo não é o mal

em si, mas a ilusão, a falta de entendimento e de conhecimento sobre o que seja o real

prazer é que pode resultar no mal. Epicuro diz que cada parte do corpo tem um tipo de

prazer, desse modo, existem diferentes tipos de prazeres e nenhum deles possui duração

infinita.

O bem-estar obtido pelo prazer está diretamente associado à boa condição física

e mental do homem feliz (sophós), O bem-estar causado pelo prazer é o estado da

pessoa que se encontra em ataraxía; ausente de perturbações na alma e em aponía

ausente de dor no corpo. Logo, o prazer é condição humana do indivíduo que

naturalmente se sente confortável; satisfeito e feliz. Mas há limites, mesmo que o prazer

se torne intenso sempre haverá um momento em que irá cessar.

Então os prazeres são consequências dos desejos, eis o problema do desejo

excessivo causar algum mal. Devem-se regrar os desejos e fazer a distinção entre os

tipos de opiniões, visto que, vivemos em um mundo de avaliações, julgamentos e

críticas. Por muitas vezes o que parece não é e o que é não parece ser.

Epicuro destaca que existem dois tipos de opiniões. A opinião reta e a opinião

vazia. A primeira seria a opinião que irá orientar-nos para o caminho do conhecimento,

e a segunda, a opinião vazia, ao contrário da primeira, nos conduzirá ao caminho da

ilusão, que acarretará na falta de entendimento que prejudicará os sentidos e a

compreensão da realidade.

Em suma, é imprescindível a investigação filosófica acerca dos fenômenos

naturais. Epicuro se preocupa com a phísis por que: “quem desconhece a natureza do

28

todo, mas sente um temor cheio de dúvidas por causa de alguns mitos, não consegue

livrar-se do medo em assuntos extremamente importantes. Sendo assim, sem o estudo

científico da natureza não seria possível fruir os prazeres em sua pureza” (XII, p. 317).

O ignorante é alheio à realidade e devido a isso, padece, o desconhecimento da natureza

o torna escravo do temor.

Um dos meios de levar uma vida plena e feliz é não temer os deuses, o filósofo

em questão diz que não há nada para se temer em relação a eles, porque eles são imunes

às oferendas, eles não se importam com isso, eles vivem suas vidas sem se perturbar

com o caminho que você escolher. Os deuses não podem ser comparados ao homem,

pois ao contrário do que pensam a maioria das pessoas, eles não castigam e nem julgam.

Não perturbam e nem são perturbados pelos outros.

A impossibilidade de o homem resolver pessoalmente seus problemas e de

seguir o seu caminho com os próprios pés, é falta do reconhecimento sobre a

responsabilidade que cabe a si mesmo, essa falta faz o indivíduo criar deuses que só

trazem perturbação a alma e atrapalham o caminhar de uma vida plena e feliz. E assim

como o medo que cria em relação aos deuses, cria também o medo em relação à morte.

Destarte, para que temer a morte se ela faz parte do processo vital e nem é

possível prevê-la? Enquanto vivo não existe a mínima possibilidade de saber como seria

estar morto. Portanto, a morte para quem está vivo de nada vale, pois ela não nos diz o

que é de fato, não podemos saber como é não ser, então não adianta sofrer.

Ditamos a vida pela maneira como a conduzimos, e temer a morte é não

desfrutar da vida que se tem, não há sentido viver temendo o que é natural a todos os

homens e sem sentir o que é realmente estar vivo, gozar o prazer de viver. Por isso é

intrinsecamente necessária à reflexão e a busca pelo conhecimento.

Sobre o governo dos povos, Silva observou que:

Segundo a crítica epicúrea, os problemas de ordem política podem ser

explicados pela dessemelhança de atitudes dos seus membros, causada

sobretudo pela ausência de reflexões sobre a natureza de uma

comunidade e do modo de vida equilibrado. No vazio das reflexões

são projetadas as falsas opiniões, ou opiniões vazias, que servem de

alimento às crenças e desejos ilimitados, ás vezes naturais, às vezes

não, mas quase sempre desnecessários. Esses desejos, crenças e falsas

opiniões cumulam em injustas agressões, disputas pelo poder,

desconfiança, insensatez e angústia. (SILVA, 2003, p.92.)

29

O afastamento da política também é visto por Epicuro como elemento necessário

a prática da vida feliz. A postura antropológica é centralizada no indivíduo e não na

pólis. A ausência de assuntos ligados à vida política é necessária para manter a

(ataraxía) a tranquilidade da alma.

Por sua vez, a filosofia não nega o prazer, o prazer está na filosofia. A vida feliz

de que fala Epicuro seria então a saúde da alma? Sim, e se a filosofia por amor a

sabedoria, liberta o homem da ignorância, então o caminho para a vida feliz começa no

ato do filosofar. Encontra-se no início da Antologia de textos de Epicuro a seguinte

passagem:

Todo desejo incômodo e inquieto se dissolve no amor da verdadeira

filosofia. Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o

fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro

nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz

que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao

que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.

(EPICURO, 1980, p.13).

A filosofia não recusa o prazer, a prática da vida feliz não se separa da prática

filosófica que é a felicidade, o prazer da alma. O prazer (hedoné) não pode ser temido,

pois o temor não permite uma vida feliz, o prazer tem que ser vivido sem culpa, mas

com prudência. A agradável sensação de sentir prazer, de satisfazer um desejo é a

condição da pessoa que está contente, a alegria é a expressão máxima do prazer.

A justeza é necessária para a prática da vida feliz. “A vida do homem justo é

totalmente imune a perturbações interiores, mas a do homem injusto é repleta de

inquietude.” (XVII, p. 317). Viver conforme as leis e não ser injusto com o outro é a

medida da justeza, a injustiça praticada ao próximo desequilibra a vida e intranquiliza a

alma. O comportamento injusto contraria a equidade e anula o direto do outro de ir e vir.

O mal que se causa a alguém nunca pode ser motivo de felicidade não só para quem o

sofreu, mas principalmente para quem o cometeu.

Quando o sofrimento se afasta, o prazer aparece. A quantidade ou excesso de

prazer não nos torna feliz, a sensação do prazer no corpo e o sentimento de prazer na

alma não pode exceder a medida, pois tudo que vem em excesso acaba resultando em

dor. O equilíbrio da alma é a virtude maior, correspondente ao bem. Ao invés disso,

30

quando se extrapola a fronteira do prazer, surgem às perturbações na alma, o temor

causa dor e é falta de conhecimento de si próprio e das causas reais.

Lê-se na Carta a Meneceu:

A carne não admite limite algum ao prazer, nem é limitado o tempo

necessário para proporcioná-lo. O espírito, entretanto, tendo atingido

um entendimento racional do bem carnal supremo e seus limites, e

tendo dissipado os temores relativos à eternidade, proporciona-nos a

vida integral, e já não temos necessidade de tempo infinito. Mas, o

espírito não repele o prazer, nem, quando as circunstâncias começam a

levar-nos ao termo da vida, aproxima-se de seu fim como se houvesse

interrompido de algum modo a vida ótima. (XX, p. 318).

Assim sendo, é a alma que impõe o limite ao corpo. A alma que seleciona o

prazer, porque o corpo aceita todo o prazer, ele não mede a quantidade, a falta ou o

excesso. Somente pelo logós que se pode mediar os prazeres carnais, a razão vai

justamente avaliar o discernimento claro e distinto do limite carnal para satisfazer a

serenidade da alma. Toda ação vai depender do indivíduo que age, toda ação vai

depender da phrónesis, isto quer dizer, a ação dependerá da sensatez na hora do agir.

A saber, a própria vida é toda relação de conhecimento que se adquire ao longo

de toda experiência vivida. A conexão com a natureza está relacionada com o ato de

conhecer, ou seja, o conhecimento vem da nossa relação com a natureza.

Conforme a natureza se pode tranquilamente viver, porque ela admite uma

medida suficiente. Basta reconhecê-la. O sofrimento é sempre causado pela falta de

alguma coisa, pela ausência do prazer e de conhecimento, o sofrimento surge da

necessidade ilusória daquilo que não é natural e nem necessário.

Recorro novamente a Carta a Meneceu para citar uma máxima de Epicuro que

pode embasar melhor o que foi dito acima:

Quem aprendeu a conhecer os limites da vida sabe que aquilo que

remove o sofrimento devido à necessidade e torna a vida completa é

fácil de obter; sendo assim, não há necessidade de ações que

envolvam luta. (XXI, p.318).

Na obra A Doutrina de Epicuro, Benjamin Farrington expõe sua visão acerca de

sua leitura feita sobre a ética epicurista e escreve o seguinte: “Tôdas as nossas sensações

são acompanhadas de sentimentos, de prazer ou de dor. Êsses sentimentos não nos

31

informam tanto da natureza do mundo exterior quanto sugerem da qual a ação que

deveríamos tomar. O que dá prazer, procuramos; o que provoca dor, evitamos. Mas a

ação que tomamos permanece como uma decisão da vontade e a própria ação será

acompanhada de nôvo prazer ou dor.” (FARRINGTON, 1968, p. 115).

A ação sempre acompanha uma nova decisão, seja ela para buscar o prazer ou

para evitar a dor, não tem como escapar de uma delas, o ser humano vive dessa

alternância entre prazer e dor, é um processo natural. A decisão da vontade é o poder

que o indivíduo tem de viver melhor, o indivíduo tem que ser independente e agir

conforme o poder da escolha. O poder enquanto princípio sobre si mesmo, sobre sua

vida e jamais conceder o seu poder de decisão ao outro.

Somos movidos pelas sensações, a construção das ideias vem posterior à

sensação. A antecipação que ocorre na impressão sensível ocorre no corpo em contato

com a alma. A falsidade não deve ser medida pela impressão sensível. Para Epicuro o

erro não se encontra na sensação e sim na opinião equivocada:

Se entre as imagens mentais criadas por tua opinião afirmas tanto

aquilo que espera confirmação como aquilo que não espera, não

escaparás do erro, pois terás conservado toda causa de dúvida em cada

juízo a propósito do que é verdadeiro e do que é falso. (XXIV, p.318).

Vale ressaltar que daquilo que gera o bem como exercício prático para a vida

feliz (makários zén) é imprescindível também o cultivo pela amizade (philía). Não é à

toa que Epicuro tenha criado em Atenas a escola filosófica em um jardim para

compartilharem da filosofia e o saber para a vida. Epicuro viveu no jardim com vários

pensadores que eram antes de tudo seus amigos e pra quem deixou após sua morte um

testamento que incluía ceder a casa para eles viverem lá até o final de suas vidas.

“De todos os bens que a sabedoria proporciona para produzir a felicidade por

toda a vida, o maior, sem comparação é a conquista da amizade.” (XXVII, p.319). Os

bens são valores éticos e realizam-se através da sabedoria. Das várias noções

apresentadas por Epicuro para uma vida feliz destaca-se a philía, desenvolvido na

reciprocidade entre os indivíduos. A amizade é esse bem maior, correspondente ao bem-

estar mútuo.

Segundo Miguel Spinelli sobre o tema da amizade em Epicuro, lê-se:

32

Entre a amizade cultivada pelos acadêmicos e a que se estabeleceu

entre os epicureus se deu sob base e termos distintos. Na escola do

Jardim, distinto da Academia, a amizade (suposta por Epicuro) não

veio a ser apenas um meio estimulador da discussão e da pesquisa,

mas um fim em si, ou seja, ela era cultivada como um bem (ou valor)

reconhecido em si mesmo. (revista de filosofia, 2011, p. 14).

Ademais, Epicuro relaciona a amizade em ter segurança, a amizade

proporcionaria a segurança para a vida boa, pois a amizade nos torna mais confiantes e

seguros de si. Compartilhar o lar, uma refeição e filosofar entre amigos são

indispensáveis para a felicidade. Feliz daquele que tem amigos, aquele que não

conquistou a amizade, não sabe o que é felicidade.

Assim: “A mesma convicção que nos inspirou a confiança de que nada existe de

terrível que dure para sempre ou mesmo por muito tempo, também nos habilita a ver

que nos limites mesmos da vida nada aumenta tanto a nossa segurança como a

amizade.” (XXVIII, p. 319).

Desse modo, a amizade (philía) como um bem, é considerada virtude, ou ainda

disposição ética que orienta o modo de vida humana? E para tal, a amizade que

proporciona segurança deve ser primeiramente justa, a justiça seria a reciprocidade

acertada para não ser prejudicado e nem prejudicar ninguém. Se não é possível ser feliz

sem ter cativado um amigo, pode-se concluir que segundo Epicuro, o homem não teria

nascido para viver sozinho.

Observamos uma relação no pensamento citado acima com a frase marcante e

escrita pouco antes de morrer, pelo jovem Christopher McCandless que após se formar

em direito, abandonou tudo para viver na natureza selvagem pelas bandas do Alasca, na

busca pela própria liberdade e cansado das relações de poder sociais e culturais. Depois

de muitas aventuras, alguns padecimentos e muita reflexão chegou à seguinte

conclusão: a felicidade só é real quando é compartilhada.1

Epicuro acreditava que a sociedade deveria se unir para fazer o pacto da

confiança para não causar dano e nem sofrer injustiça, visto que “a justiça não era algo

em si e por si, mas nas relações recíprocas dos homens em qualquer lugar e a qualquer

1 Frase do autor Henry David Thoreau parafraseada pelo viajante Christopher Johnson McCandless no

livro Into The Wild de 1996, escrito pelo jornalista e alpinista americano Jon Krakauer. Frase traduzida

na adaptação brasileira Na Natureza Selvagem, Companhia das Letras, em 2007.

33

tempo é uma espécie de pacto no sentido de não prejudicar e nem ser prejudicado”.

(XXXIII, p. 320). O maior problema é que as pessoas injustas descubram quão mal

podem causar se praticarem a injustiça e tentem lucrar com ela.

Em seu livro Epicuro: Sabedoria e Jardim, Silva observou que:

(...)Epicuro vislumbra a possibilidade de substituir as normas gerais de

uma sociedade pelo princípio da philía, que tem origem e comando

em cada um. Não se trata, evidentemente, de construir um novo

modelo de sociedade histórica em substituição ao vigente, mas de

estabelecer uma ordem descontínua, molecular, uma comunidade

autárquica onde a convivência se estabeleça enquanto conveniência

mútua, alimentada por uma vontade esclarecida e impulsionadora pela

afinidade. Uma comunidade para ser feliz necessita, antes de tudo, que

seus componentes tenham em comum a compreensão do sentido

natural da ação em comunidade; em outras palavras, a philía emerge

como comunidade de pensamento, que expressa a única e possível

organização equilibrada de um grupo. (SILVA 2003, p.93).

A philía seria um novo meio pelo qual se formaria a comunidade, para a prática

ética e alcançar a vida feliz. Um grupo em comum de pessoas com afinidades, onde a

amizade e a confiança mútua contribuiriam para o equilíbrio e bem estar da

comunidade. Além da philía ser muito importante para o bem estar geral da sociedade,

nela encontramos também a base para a felicidade (eudaimonía), o bem é prazer que por

sua vez, é equilíbrio e é alcançado pelo exercício ético da sabedoria.

34

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período helenístico da filosofia antiga foi marcado fortemente pelo estudo

acerca da ética e suas questões inerentes à vida humana, em torno do sujeito vigente e

os meios viáveis para guiar seu agir em favor do equilíbrio e do agir moral para a

orientação dos valores conforme o modo de proceder do corpo social em que está

inserido.

A filosofia epicurista destaca uma nova visão para a ética não mais voltada para

questões referentes à política e sim para um novo sentido de vida, o voltar para a

satisfação de si e o viver conforme os meios naturais e da filosofia, uma existência

autárquica, sábia e mais próxima da felicidade (eudaimonía). A ética do mestre do

jardim busca a auto-realização do indivíduo frente às mudanças e seu novo modelo de

vida.

Um pouco de sensatez ao pensamento sobre qualquer coisa ou qualquer era, da

libertação em relação ao medo da morte e aos deuses, e a sensatez para tomar decisões e

a moderação dos desejos, não seria de exagero ou de pouca relevância nos dias atuais,

pelo contrário, é exatamente dessas lições de sabedoria deixadas por Epicuro que o

mundo poderia se espelhar para refletir e para tornar as pessoas menos insensatas e

cheias de verdades glorificadoras e vazias de sentido em seu mais salutar existencial.

Porquanto, o epicurismo foi acusado injustamente e confundido com o

hedonismo vulgar que tem o prazer como bem supremo e busca excessivamente o

prazer, mas ao contrário disso, o prazer como bem em Epicuro somente é bem, se for

regido pela moderação, disso distinguem-se claramente um do outro. A busca do prazer

em Epicuro é necessidade natural, que deve ser moderada regido sempre pela sensatez e

com sabedoria.

É pela libertação dos temores e pela moderação dos desejos que trabalha o

epicurista, ele se esforça, reflete e age para conseguir se livrar do medo da morte, do

excesso e da ilusão causados pelos desejos desmedidos, pelas opiniões vazias e pelo

medo dos castigos em relação aos deuses.

O epicurista busca agir sensatamente e calcular o que pode ser bom e o que não

pode. Ele está interessado em conquistar a ataraxía, ausência de perturbações na alma e

35

a aponía, ausência de dores no corpo para cativar a saúde da alma e assim encontrar a

felicidade. Através do conhecimento dos elementos da natureza, pela physiología, que o

homem pode se tornar independente e agir conforme sua própria razão.

A libertação do medo implica aceitar e compreender como funciona a realidade

das coisas do mundo natural, pois a falsidade, a ignorância e a ilusão trazem sofrimento

mental e físico que são contrários à felicidade. Através da filosofia e a busca pela

verdade, que se pode chegar a uma vida feliz. A serenidade da alma encontra-se no

equilíbrio que procura o sábio para em torno da vida prática e feliz realiza-se em sua

plenitude.

A compreensão do modo de realização da phýsis é o meio que fundamenta a

ética, e é o que equilibra o mundo e sua realidade. O estado de prazer adquirido pela

ausência de dores no corpo é o que mantém o estado de alegria, ou melhor, de bem estar

para habitar e a partir das sensações e do pensamento pela alma conhecer e organizar o

mundo.

A ação ética depende do homem sábio, é preciso sabedoria no agir. A hedoné

(prazer) deve ser saciada através do que é necessária a alma e ao corpo. Logo, a saúde

da alma e a ausência de dores no corpo é o que deve visar para quem procura a

eudaimonía (felicidade), desse modo, a felicidade seria então, a própria ausência de

dores na alma e ausência de dores no corpo.

O prazer como bem primordial, visto que, o prazer que é o bem, é exatamente o

que importa e necessita para a conservação da vida humana em geral. O estado de

equilíbrio pela realização do prazer moderado se encontra na vida simples, afastada da

política e das opiniões vãs, alimentação necessária apenas à saúde do corpo, em contato

com a própria natureza, no estudo da filosofia, entre amigos e na comunidade guiada

pela conveniência mútua.

O trabalho salientou a distinção entre hedonismo e epicurismo e disso percebe-se

que a própria doutrina Epicurista sofreu as opiniões vazias de que ele mesmo nos

ensinou de que deveríamos nos afastar, a partir disso nota-se claramente a importância

de agir prudentemente antes de pronunciar o que se pensa e mais, conhecer

verdadeiramente para ter fundamento.

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Importante destacar que aqui não se encerra o assunto relativo à felicidade ou

como atingir a makaríos zén, esse trabalho é mais uma abertura para se pensar a

filosofia epicureia como um tipo de pensamento que marcou uma era e que o

compartilhamento das informações e de seus estudos possibilita conhecer a base de seu

pensamento a cerca da busca da vida feliz, mas não esgota e nem atinge o todo de sua

obra.

O pensamento se expande à medida que refletimos e colocamos nossas questões

à mesa e ajudamos no favorecimento e desdobramento do saber. Esse trabalho analisou

a filosofia do jardim e compreendeu que para ser livre e feliz é preciso agir por si

mesmo, guiar a própria vida, se libertar dos medos e manter o equilíbrio da alma.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARO, Tito Lucrécio. Da Natureza. Trad. Agostinho da Silva. São Paulo: Abril Cultural,

1973. (Os Pensadores)

EPICURO, Antologia de textos, trad. Agostinho da Silva; v. Epicuro, Lucrécio, Cícero,

Sêneca, Marco Aurélio, São Paulo, Abril Cultural, 1980, col. Os pensadores.

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LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2.

ed. Brasília: UNB, 1997.

MORAES, João Quartim de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998.

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Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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VAZ, Lima HC. Escritos de filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola;

1999.